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EXPOSIÇÃO E MÉTODO DIALÉTICO EM O CAPITALMarcos Lutz Müller * Boletim SEAF, nº 2, Belo Horizonte, 1982, pp. 17-41. [17] A progressiva perda de especificidade metodológica do conceito de dialética, paralela à generalização do seu uso e à sua ampliação semântica, desembocou, hoje, nas versões não ortodoxas ou humanistas do marxismo, numa comprometedora diluição teórica do conceito, reduzido, muitas vezes, a um adjetivo pleonástico que qualifica um substantivo inexistente, ou, no marxismo-leninismo convertido em visão de mundo, no seu alinhamento ideológico, que evita voluntariamente aquela diluição pela invocação dogmática das três leis de Engels, reabilitadas em 1956. Mas nenhum dos elementos constitutivos ou dimensões da dialética como método foi tão atingida por esta dissolução teórica e soterrada pelo esquecimento quanto a caracterizada pelo conceito de exposição(Darstellung), que indicava para Hegel e para o Marx dO Capital a explicitação racional imanente do próprio objeto e a exigência de só nela incluir aquilo que foi adequadamente compreendido 1 . Quando não se desprezou ou recusou pura e simplesmente o caráter dialético do método dO Capital como um hegelianismo comprometedor, descartando simultaneamente o conceito de uma exposição dialética enquanto método, como já fizera o primeiro resenhista russo dO Capital a que Marx se refere no Postfácio à segunda edição 2 , e como fizeram muitos outros, posteriormente (BöhmBawerk, Schumpeter), seja para louvar o verdadeiro trabalho científico de Marx e distingui-lo da exposição dialética, seja para julgá-lo comprometido por esta e rejeitar ambos, quando não ocorreu isso, apagou-se, aos poucos, a consciência da especificidade filosófica da exposiçãoenquanto conceito inserido numa determinada tradição, retomando-se a conhecida contraposição de Marx * Professor do Depto. de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP. 1 A exigência de que a exposição, fiel à natureza da especulação, deve manter a forma dialética e só incluir nela o que foi concebido e enquanto é conceito, foi formulada no Prefácio à Fenomenologia do Espírito: “Fiel à visão que atinge a natureza do especulativo, a exposição deverá manter a forma dialética e nada incluir nela senão na medida em que é concebido e é conceito.” HEGEL, Phänomenologie des Geistes, Ed. Hoffmeister, Meiner, Hamburg, 1952, p. 54; trad. Lima Vaz, em: Hegel, Os Pensadores, Abril, São Paulo, 1975, p. 42. A seguir citado como Phän. 2 MARX, Das Kapital, l. Band, Dietz, Berlim, 1968, p. 25. A seguir citado como K, I.

MULLER, Marcos. Exposicao e Metodo Dialetico em O Capital

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  • EXPOSIO E MTODO DIALTICO EM O CAPITAL

    Marcos Lutz Mller*

    Boletim SEAF, n 2, Belo Horizonte, 1982, pp. 17-41.

    [17] A progressiva perda de especificidade metodolgica do conceito de

    dialtica, paralela generalizao do seu uso e sua ampliao semntica, desembocou,

    hoje, nas verses no ortodoxas ou humanistas do marxismo, numa comprometedora

    diluio terica do conceito, reduzido, muitas vezes, a um adjetivo pleonstico que

    qualifica um substantivo inexistente, ou, no marxismo-leninismo convertido em viso

    de mundo, no seu alinhamento ideolgico, que evita voluntariamente aquela diluio

    pela invocao dogmtica das trs leis de Engels, reabilitadas em 1956.

    Mas nenhum dos elementos constitutivos ou dimenses da dialtica como

    mtodo foi to atingida por esta dissoluo terica e soterrada pelo esquecimento quanto

    a caracterizada pelo conceito de exposio (Darstellung), que indicava para Hegel e

    para o Marx dO Capital a explicitao racional imanente do prprio objeto e a

    exigncia de s nela incluir aquilo que foi adequadamente compreendido1. Quando no

    se desprezou ou recusou pura e simplesmente o carter dialtico do mtodo dO Capital

    como um hegelianismo comprometedor, descartando simultaneamente o conceito de

    uma exposio dialtica enquanto mtodo, como j fizera o primeiro resenhista russo

    dO Capital a que Marx se refere no Postfcio segunda edio2, e como zeram

    muitos outros, posteriormente (BhmBawerk, Schumpeter), seja para louvar o

    verdadeiro trabalho cientfico de Marx e distingui-lo da exposio dialtica, seja para

    julg-lo comprometido por esta e rejeitar ambos, quando no ocorreu isso, apagou-se,

    aos poucos, a conscincia da especificidade filosfica da exposio enquanto conceito

    inserido numa determinada tradio, retomando-se a conhecida contraposio de Marx

    * Professor do Depto. de Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH), UNICAMP.

    1 A exigncia de que a exposio, el natureza da especulao, deve manter a forma dialtica e s

    incluir nela o que foi concebido e enquanto conceito, foi formulada no Prefcio Fenomenologia do

    Esprito: Fiel viso que atinge a natureza do especulativo, a exposio dever manter a forma dialtica e nada incluir nela seno na medida em que concebido e conceito. HEGEL, Phnomenologie des Geistes, Ed. Hoffmeister, Meiner, Hamburg, 1952, p. 54; trad. Lima Vaz, em: Hegel, Os Pensadores,

    Abril, So Paulo, 1975, p. 42. A seguir citado como Phn. 2 MARX, Das Kapital, l. Band, Dietz, Berlim, 1968, p. 25. A seguir citado como K, I.

  • entre mtodo de exposio e mtodo de investigao3, para acentuar apenas a

    necessidade de um esforo prvio de apropriao analtica do objeto anterior sua

    exposio metdica. Sobre o carter desta exposio metdica existe a maior falta de

    clareza. Quando no se toma o termo exposio no seu sentido comum de discurso, de

    texto escrito (ou falado) que se organiza metodicamente conforme o [18] encadeamento

    das proposies, transferindo-se o nus da dialtica para o mtodo de pesquisa, presta-

    se uma homenagem encabulada ou puramente verbal ao carter dialtico da exposio,

    concebido vagamente como um mtodo gentico. J Hegel dizia que o mais difcil

    produzir a exposio da coisa, enquanto ela deve unificar a sua crtica e a sua

    apreenso4.

    Face a essa dissoluo do conceito de dialtica, contrabalanada apenas pelo seu

    enrijecimento dogmtico correspondente ao seu alinhamento ideolgico na ortodoxia

    marxista-leninista, imps-se, nos ltimos anos, como j em circunstncias histricas

    anteriores, a tarefa de banhar, mais uma vez, a dialtica marxista nas suas fontes

    filosficas imediatas, para questionar a interpretao cannica iniciada por Engels e

    Lenin. Trata-se de melhor compreender a motivao original que levou Marx a

    comprometer-se com o caroo racional5 da dialtica hegeliana e a conceber a

    exeqibilidade de uma transformao materialista da dialtica, atravs da crtica frontal

    aos seus pressupostos idealistas em Hegel e atravs da mutao que ela sofre enquanto

    instrumento de exposio sistemtica e crtica da economia poltica. claro que este

    empreendimento s teria a sua justificao plena passando por uma desconstruo

    hermenutica da histria da atuao da dialtica na tradio terica e prtica do

    marxismo enquanto pensamento que se pretende ligado histria do movimento

    operrio. Mas esta uma tarefa quase interminvel e que ultrapassa os propsitos desta

    abordagem.

    O caminho aqui proposto antes um atalho: ele mantm na lembrana, como

    uma espcie de bastidor, os avatares dessa histria da atuao do conceito da dialtica,

    para abordar com mais justia o intrincado problema da incorporao por Marx da

    dialtica como mtodo de exposio crtica dos resultados de uma cincia social

    emergente, a economia. Quais os aspectos da dialtica hegeliana da Cincia da Lgica

    que foram paradigmticos para o projeto marxiano de transformao materialista da

    3 K, I, p. 25.

    4 O que h de mais fcil julgar o que possui contedo e densidade. Mais difcil apreend-lo e o mais

    difcil produzir a sua exposio, que unifica a ambos. Phn., p. 11; trad. loc. cit., p. 13. 5 K, I, p. 27.

  • dialtica na reconstruo sistemtica e crtica da economia poltica burguesa,

    apresentada nO Capital?6. Quais as transformaes que o caroo racional da dialtica

    hegeliana sofre na tentativa marxiana de desvincul-la dos pressupostos idealistas da

    metafsica do conceito da Cincia da Lgica e de vir-la materialistamente ao avesso,

    [19] tornando-a, assim invertida, numa fonte de inteligibilidade das estruturas

    econmicas da sociedade capitalista? Qual a importncia do conceito hegeliano de

    exposio para o mtodo dO Capital e qual o sentido da retomada deste conceito

    numa dialtica que se quer materialista?

    As duas primeiras questes sero abordadas na medida em que elas incidem

    sobre este elemento constitutivo ou dimenso do mtodo dialtico designada pelo

    conceito de exposio. Pergunta-se o que a dialtica enquanto mtodo de exposio

    dO Capital?7. A abordagem restrita a este aspecto, se insere contudo no quadro mais

    amplo de uma tentativa de analisar, a partir de um confronto entre certas caractersticas

    metodolgicas globais da Cincia da Lgica e dO Capital, quatro caractersticas ou,

    melhor, dimenses principais do mtodo dialtico dO Capital, que poderiam ser

    concisamente designadas pelos conceitos de: exposio, procedimento progressivo-

    regressivo, contradio e crtica. O mtodo dO Capital se caracterizaria por ser uma

    exposio crtica, progressivo-regressiva das contradies do capital a partir de sua

    contradio fundamental.

    . . . . .

    Dialtica significa nO Capital primeiramente e, tambm, predominantemente, o

    mtodo/modo de exposio crtica8 das categorias da economia poltica, o mtodo de

    6 No s a dialtica lgica, prpria da exposio do auto-movimento do conceito na Cincia da Lgica,

    que atua no texto e na arquitetnica dO Capital, mas, tambm, a dialtica fenomenolgica, exposta por HEGEL na Fenomenologia do Esprito, como por exemplo no Livro I, captulo 1, dO Capital, a propsito da deduo da forma valor e do ponto de partida com a mercadoria, como um imediato tambm

    fenomenolgico, e no s lgico, e, principalmente, no movimento geral da exposio do Livro III dO Capital, que conduz reconstituio da gnese necessria das categorias imediatas da esfera da circulao

    (as formas de rendimento) a partir do movimento do capital social total. Aqui a contraposio se limitar

    Cincia da Lgica. 7 Cf. o ttulo de um artigo de H. F. FULDA, Dialektik als Darstellungsmethode im Kapital von Marx,

    in: Ajatus 37, Yearbook of the Philosophical Society of Finland, 1978. O presente trabalho deve muito a

    este artigo, embora no concorde com ele em todos os pontos. 8 Darstellungsmethode, Darstellungsweise K, I, p. 25 e 27. A anlise do elemento exposio no

    mtodo dialtico dO Capital no pode, em nenhum momento levar ao esquecimento de que a exposio das categorias da economia poltica est indissociavelmente unida crtica, e que este um dos aspectos

    em que a exposio dialtica de Marx se distingue da de Hegel. A exposio essencialmente crtica

    porque ela s reconstitui a totalidade sistemtica das determinaes do capital, atravs da tematizao da

  • desenvolvimento do conceito de capital9 a partir [20] do valor, presente na

    mercadoria, enquanto ela a categoria elementar da produo capitalista que contm o

    germe das categorias mais complexas. O conceito fundamental, aqui, para o Marx

    crtico da economia poltica, o de exposio, mtodo de exposio, que designa o

    modo como o objeto, suficientemente apreendido e analisado, se desdobra em suas

    articulaes prprias e como o pensamento as desenvolve em suas determinaes

    conceituais correspondentes, organizando um discurso metdico.

    Exposio , tambm, um conceito central da dialtica especulativa de Hegel.

    A Cincia da Lgica se apresenta como a exposio sistemtica das categorias do

    pensamento puro enquanto formas de concepo da realidade, com o intuito de fundar o

    prprio conceito de cincia (filosfica) e de mtodo10

    . Ela pretende, assim, justificar o

    seu nico pressuposto, o de que a razo, especificamente, o conceito enquanto idia,

    tem em si a fora infinita de sua auto-realizao11

    . O conceito de exposio na

    Cincia da Lgica est, assim, vinculado intimamente a um projeto de autofundao da

    razo e do prprio mtodo, enquanto este nada mais do que a forma do auto-

    movimento do contedo enquanto ela tem conscincia de si12

    . Dialtica designa, aqui,

    genericamente, a exposio do movimento lgico do contedo (da coisa concebida,

    Sache) enquanto este movimento que preside ao desdobramento das determinaes

    do contedo e se constitui, desta maneira, como o seu mtodo. o prprio Hegel quem

    d ao conceito de exposio a conotao metafsica da explicatio Dei para acentuar

    o aspecto simultaneamente subjetivo e objetivo da exposio13

    . Mais especificamente, a

    sua estrutura e do seu movimento contraditrios, a partir da pretenso de dominao total do capital sobre

    o trabalho e do seu malogro sistmico (crise), visto que o capital depende do trabalho, formalmente,

    enquanto trabalho assalariado, e materialmente, enquanto o trabalho objetivado, morto, constitui o nico

    contedo social do capital. Enquanto exposio das contradies do capital ela essencialmente crtica,

    embora a crtica se exera exatamente e apenas (enquanto teoria) atravs da exposio sistemtica da sua

    instabilidade estrutural e da necessidade da sua superao. 9 MARX, Grundrisse der Krik der politischen konomie, Dietz, Berlin, 1974, P-405. A seguir citado

    como G. Na exposio do conceito de capital, diz Marx, no se trata de uma forma particular do capital,

    nem do capital individual entre outros capitais individuais, mas do capital em geral como o conjunto de determinaes que distinguem o valor, enquanto capital, de si mesmo como mero valor ou dinheiro. G., p. 217. As reaes posteriores devem ser consideradas como desenvolvimento a partir deste germe. Ibid. - As tradues, quando no houver indicao contrria, so do autor. 10

    HEGEL, Wissenschaft der Logik, Ed. Lasson, Meiner, Hamburg, 1963, vol. I, p. 23 e 31. A seguir

    citada como WL, I e II. 11

    WL, II, p. 486-487. 12

    WL, I, p. 35: A exposio do que somente pode ser o mtodo da cincia filosfica pertence ao prprio tratado da Lgica, pois o mtodo a conscincia sob a forma do movimento interno do prprio

    contedo. 13

    WL, I, p. 31: A Lgica deve ser tomada, portanto, como o sistema da razo pura, como o reino do pensamento puro. Este reino verdade, como ela em si e para si mesma sem vu. Pode-se, por isso,

  • dialtica designa o princpio motor do conceito14, o princpio do movimento que

    preside exposio das determinaes, que se produzem a partir do universal e nele se

    dissolvem. Estritamente falando, apenas o segundo dos trs momentos em que se

    articula, conforme a Enciclopdia, a dimenso lgica, o momento negativo-racional

    qualificado de dialtico15

    .

    O conceito de mtodo de exposio em Marx guardar no s reminiscncias

    do conceito hegeliano de exposio, mas um dos seus elementos essenciais. Quando

    Marx, em 1857, se lana s primeiras tentativas de uma crtica [21] sistemtica da

    economia poltica, que vo resultar nos Grundrisse, e se pe a questo de como

    organizar sistematicamente os resultados de suas investigaes crticas dos teoremas e

    das categorias da economia poltica burguesa, ele recorre explicitamente ao conceito

    hegeliano de dialtica enquanto mtodo de exposio16

    . A dialtica enquanto mtodo

    caracteriza um procedimento que pretende expor construtivamente o desenvolvimento

    conceitual do capital (G, 405) enquanto capital em geral (G, 217), o capital

    enquanto tal, isto , o capital social total (G, 252) a partir de sua forma elementar (K,

    I, 49), a mercadoria (enquanto objeto imediato da circulao e forma econmica dos

    produtos do trabalho humano), e das determinaes progressivas das formas de

    manifestao do valor, presente na mercadoria: forma-valor simples, forma-valor total,

    forma-valor universal, dinheiro em suas determinaes fundamentais. Ela reproduz,

    assim, idealmente, o movimento sistemtico (lgico) atravs do qual o capital se

    constitui naquilo que , autovalorizao do valor. Mas enquanto na Cincia da Lgica a

    exposio das determinaes progressivas do pensamento puro, enquanto conceito,

    simultaneamente o processo de sua autodeterminao e de sua auto-realizao, at ele

    emergir como sujeito ltimo e atividade pura (idia) que perpassa todo o processo como

    dizer, que este contedo a exposio de Deus, como ele em sua essncia eterna antes da criao da

    natureza e de um esprito finito. 14

    HEGEL, Rechtsphilosophie, 31. Anmerkung, Theorie Werkausgabe Suhrkamp Verlag, 7, p. 84. 15

    HEGEL, Enzyklopdie der philosophischen Wissenchschaften, 79 e 81, Theorie Werkausgabe

    Surhkamp Verlag, 8, p. 168, 172-176. 16

    Em carta a Engels de 14 de janeiro de 1858, Marx se refere ao acaso que o levou a folhear novamente a Lgica de Hegel, por receber de presente de Freiligrath os exemplares que pertenceram a Bakunin, e menciona o grande prstimo que ela lhe trouxe no mtodo de elaborao da crtica da economia poltica. Neste contexto ele exprime seu grande desejo de, futuramente, se tiver tempo, tomar acessvel ao entendimento comum o que h de racional no mtodo que Hegel descobriu, mas simultaneamente mistificou.. Marx-Engels, Briefe ber Das Kapital, Dietz, Berlim, 1954, p. 79. Se foi o acaso que devolveu as suas mos a Lgica, no mero acaso que a sua releitura tenha atuado em

    aspecto to decisivo da sua teoria. Quanto expresso mtodo dialtico, relembra H. F. Fulda (art. cit. na nota (7), Ajatus, 37, p. 192, nota (36)), ela no existe em Hegel e seria mesmo imprpria para designar

    o que ele compreendia como seu mtodo especulativo. A expresso mtodo dialtico foi provavelmente. formulada pela primeira vez, Cf. Fulda, em 1840, por Trendelemburg, em suas

    Investigaes Lgicas, no contexto da crtica ao mtodo especulativo de Hegel.

  • o seu mtodo (WL, II, 484 e 486), nO Capital, que tematiza uma relao social inserida

    na materialidade da produo, a exposio enquanto mtodo no ela mesma,

    simultaneamente, nem o processo de constituio histrica dessa relao, nem o

    processo de sua reproduo enquanto sistema de produo capitalista. Por isso, a

    exposio marxiana reconstri, no plano ideal, o movimento sistemtico do capital

    enquanto diferente, logicamente, de sua emergncia e universalizao histricas e

    diferente, como mtodo, de sua reproduo real sistmica17

    . A exposio dialtica no ,

    portanto, nem o [22] processo diacrnico atravs do qual o capital se constitui em

    totalidade, subordinando a si todas as relaes sociais de produo (G., 189), nem o

    processo sincrnico de sua reproduo como sistema. Por isso o desenvolvimento

    conceitual do capital em geral, no mtodo dialtico, no engendra o capital no sentido

    em que o conceito hegeliano se autodetermina criando a esfera de sua realizao e

    manifestao, mas ele , primeiro, a condio de compreenso adequada do devir

    histrico do capital e da sua constituio em totalidade, e segundo, ele pretende ser

    apenas, isto , to s e cabalmente, a exposio das articulaes sistemticas de todas as

    relaes econmicas que se implicam reciprocamente numa sociedade submetida

    dominao do capital18

    . Como mtodo de exposio dialtica, portanto, distinto do

    movimento efetivo, ele supe a apropriao analtica prvia do material econmico

    pesquisado, a investigao das suas formas de desenvolvimento e da sua conexo

    interna, para ento reconstruir discursivamente (enquanto procedimento do expositor) a

    lgica objetiva do material. Mas enquanto exposio dialtica, ela expressa, reproduz,

    apenas (to s e cabalmente), em conformidade com a apropriao analtica, o

    movimento efetivo do material, de modo que este se espelhe idealmente no

    mtodo19

    .

    17

    Meu mtodo dialtico , quanto ao seu fundamento, no s diverso do de Hegel, mas o seu oposto direto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele converte, inclusive, sob o nome de idia, num

    sujeito autnomo, o demiurgo do real efetivo, que constitui apenas a sua manifestao externa. Para

    mim, inversamente, o ideal nada mais do que o material transposto e traduzido na cabea humana. K, I, 27. 18

    Neste sentido legtimo dizer que o conceito de capital precede, logicamente, o capital como processo

    histrico e como sistema que se reproduz. Se no sistema burgus completo cada relao econmica pressupe a outra na forma econmica burguesa e assim tudo o que posto simultaneamente

    pressuposto, o mesmo acontece com todo sistema orgnico. Este sistema orgnico tem seus pressupostos

    mesmo enquanto totalidade, e seu desenvolvimento para a totalidade consiste em subordinar a si todos os

    elementos da sociedade, ou em criar a partir da totalidade os rgos que ainda lhe faltam. Ele torna-se,

    assim, historicamente uma totalidade. O devir para esta totalidade constitui um momento do seu processo,

    do seu desenvolvimento. G., p. 189. 19

    A pesquisa deve apropriar-se detalhadamente do seu material, analisar as suas diversas formas de desenvolvimento e rastrear o seu nexo interno. Somente aps consumado este trabalho pode ser

  • Com o recurso dialtica como mtodo de exposio, no sentido indicado, Marx

    procura integrar no seu programa de transformao materialista da dialtica especulativa

    hegeliana, que se realiza atravs da crtica economia poltica, o elemento

    especificamente dialtico naquela presente, e que ele julga racional, desde que

    desvinculado dos seus compromissos idealistas com a especulao20

    , enquanto unidade

    resolutiva das contradies e integradora do negativo e do positivo (WL, I, 38).

    O que caracteriza o conhecimento dialtico , primeiramente, que o verdadeiro

    (Hegel), o racional e o concreto (Hegel, Marx), no so de acesso imediato a qualquer

    tipo de intuio intelectual ou experincia direta, que intuiria ou tomaria o objeto no seu

    ser dado imediato, mas que eles so o [23] resultado de um movimento de pensamento,

    do que Hegel chama de trabalho do conceito, que expe progressivamente, a partir

    das determinaes mais simples e abstratas do contedo, suas determinaes cada vez

    mais ricas, complexas e intensas, at o ponto de sua unidade, que no uma unidade

    formal, mas uma unidade sinttica de mltiplas determinaes21

    . Esta caracterizao

    vale, em princpio, tanto para Hegel, como para Marx. Conforme a esta exigncia, o

    verdadeiro concreto da realidade capitalista no dado pela experincia direta da

    circulao de mercadorias e pelo movimento dos preos, isto , pelas categorias da

    circulao, mas o resultado de um processo de pensamento que reconstri a

    constituio sistemtica do capital a partir das determinaes mais simples, abstratas e

    aparentes da produo capitalista (mercadoria, valor, dinheiro, circulao), para chegar

    as mais ricas concretas e essenciais, atravs da explicitao das categorias da produo a

    partir da lei da valorizao (mais-valia, explorao, tempo de trabalho, trabalho

    necessrio e excedente, mais-valia absoluta e relativa, cooperao, diviso do trabalho,

    adequadamente exposto o movimento efetivamente real. Conseguido isso, e se a vida do material se

    espelha idealmente, pode parecer que se tem a ver com uma construo a priori. K, I, p. 27. 20

    Trata-se da conhecida distino, afirmada por Marx, entre o envoltrio mstico e o caroo racional da dialtica hegeliana. K, I, 27 Tanto verdade que esta dialtica a ltima palavra de toda a filosofia, quanto necessrio libert-la da aparncia mstica que ela possui em Hegel. Carta de Marx a Lassalle, de 31 de maio de 1858, Marx-Engels Werke, Dietz, Berlim, 1973, vol. 29, p. 561. 21

    1. A dialtica tem um resultado positivo porque ela possui um contedo determinado ou porque o seu resultado , verdadeiramente, no o nada vazio, abstrato, mas a negao de certas determinaes, que

    esto contidas no resultado exatamente porque este no um nada imediato, mas um resultado. 2. Este

    racional , por isso, embora algo pensado e tambm abstrato, simultaneamente um concreto, porque ele

    no a unidade formal, simples, mas a unidade de determinaes diferentes. HEGEL, Enzyklopdie 82, Suhrkamp, 8, p. 176-177. O concreto concreto porque sntese de muitas determinaes, isto , unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo de sntese como resultado,

    no como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida

    tambm da intuio e da representao. G., p. 21-22. Trad. Giannotti/Malagodi em: Marx, Os Pensadores, Abril, So Paulo, 1978, p. 116.

  • maquinaria, trabalho assalariado, reproduo e acumulao, para indicar algumas das

    principais categorias do Livro I dO Capital).

    uma das crticas principais e constantes de Marx ao mtodo da economia

    poltica burguesa, inclusive a Smith e Ricardo, a de que ela permanece exterior ao seu

    objeto por ser incapaz de desenvolver as suas determinaes categoriais a partir do seu

    movimento essencial, a lei do valor, enquanto determinaes cada vez mais complexas

    do trabalho abstrato objetivado. No sabendo utilizar o mtodo gentico, a economia

    poltica burguesa toma as suas categorias diretamente da empiria e as emprega como

    conceitos descritivos22

    das formas econmicas em sua aparncia imediata, sem

    conseguir penetrar em suas relaes essenciais. Por isso ela termina expondo o processo

    de reproduo global do capital na tica do capitalista individual e no sabendo conectar

    esta descrio, feita da perspectiva do agente econmico individual, com a explicao

    do processo global a partir de sua lei essencial. Isso vai reetir-se na [24] arquitetnica

    errnea da obra de Smith e Ricardo, que so incapazes de revelar a articulao das

    categorias no prprio movimento do valor. Alm disso, ela no consegue explicitar as

    categorias de mediao entre a lei do valor e os fenmenos da esfera da concorrncia

    entre os capitais individuais, por exemplo, a formao da taxa geral de lucro e dos

    preos de mercado (em Ricardo por causa identificao entre valor e preo de custo),

    limitando-se, ento, a subsumir diretamente os fenmenos da concorrncia sob a lei do

    valor ou a abandon-la para salvar os fenmenos.

    O mtodo dialtico quer superar essa exterioridade do conhecimento em relao

    ao objeto e a concepo instrumental de mtodo ai presente. Ele exige que o

    conhecimento apreenda as determinaes do contedo no prprio movimento pelo qual

    elas se desdobram, estabelecendo a conexo necessria e imanente entre elas23

    . Ele

    neste sentido apenas ex-posio da lgica objetiva da coisa, exprimindo to s e

    cabalmente aquele movimento. Alm disso, a dialtica concebida por Hegel como o

    princpio ativo do desenvolvimento das determinaes e como o seu vinculo necessrio.

    Esta dialtica no um fazer externo de um pensamento subjetivo, mas a prpria alma

    22

    Verstandesbegriffe, conceitos do entendimento, como diz Marx, aludindo diferena entre entendimento e razo, nas Teorias sobre a Mais-Valia. Marx-Engels Werke, vol. 26/2, p. 156. 23

    O dialtico constitui, por isso, a alma motora do avanar cientifico e o princpio pelo qual, unicamente, advm ao contedo da cincia conexo imanente e necessidade, assim como no elemento

    dialtico em geral esta a elevao verdadeira e no exterior sobre o infinito. Enzyklopdie, 81A, Suhrkamp, 8, p. 173.

  • do contedo, que faz brotar organicamente seus ramos e seus frutos24. Ela no o

    instrumento de um conhecimento que busca, mas o ser determinado em si e para si do

    conceito no conhecimento verdadeiro (WL, II, 487). Por isso ela , para Hegel, no s

    o conhecimento do absoluto, mas o conhecimento de si do prprio absoluto no processo

    de sua determinao (particularizao e juzo, partio, Urteil) e de superao e

    dissoluo das determinaes opostas numa unidade integradora. Este o sentido da

    especulao na dialtica especulativa: autoconhecimento do absoluto na oposio das

    suas determinaes e na unidade positivo-racional que integra o negativo e o positivo.

    Aqui surge a questo crucial do projeto marxiano de transformao materialista

    da dialtica especulativa: como retomar a idia de conhecimento dialtico sem

    comprometer-se com a componente especulativa da exposio dialtica e sem romper

    com a crtica do jovem Marx aos seus aspectos mistificadores e harmonizantes? A

    questo se impe de maneira tanto mais aportica quanto Marx partilha positivamente

    com Hegel o esforo do conceito, isto , o esforo de um pensamento que deve se

    despojar de suas opinies, [25] preconceitos e hipteses externas ao objeto, e que deve

    abdicar, como diz Hegel, daquela desenvoltura que paira vaidosamente acima do

    contedo, para mergulhar decididamente no objeto e considerar apenas o movimento

    prprio do contedo25 e apenas trazer conscincia este trabalho prprio da razo da

    coisa26. Se a dialtica, tambm para Marx, no uma tcnica de interveno externa no

    objeto, um saber metodolgico que o manipularia conforme hipteses que o analista traz

    consigo, como conservar a sua componente autoexpositiva, o trabalho da razo da

    coisa, apreendido por uma viso pura (teoria) no sentido literal da especulao

    enquanto espelhamento, sem comprometer-se com a sua componente propriamente

    especulativa (vinculada ao sistema), de um autoconhecimento do absoluto na

    superao positiva das contradies em uma unidade integradora e sistemtica? Numa

    palavra: como no mtodo de exposio no se desfazer da dialtica ao rejeitar a

    especulao? Como expor a lgica do capital (no sentido do espelhamento, da

    transposio/traduo ideal do movimento efetivo K, I, 27) sem o acesso a um

    equivalente do saber absoluto, que deixaria o contedo mover-se segundo a sua prpria

    24

    HEGEL, Rechtsphilosophie, 31A, Surhkamp, 7, p. 84 e 85. O pensamento enquanto subjetivo apenas olha este desenvolvimento da idia enquanto desenvolvimento da prpria atividade da sua razo.

    Considerar algo racionalmente no significa trazer de fora ao objeto uma razo que se lhe acrescenta e

    trabalh-lo por ela, mas, sim, que o objeto racional para si. Aqui o esprito, em sua liberdade, a ponta

    extrema da razo autoconsciente, que se da a realidade efetiva e se produz como mundo existente. A

    cincia tem apenas a tarefa de trazer a conscincia este trabalho prprio da razo da coisa. Ibid. 25

    HEGEL, Phn., 48. Trad. Lima Vaz, loc. cit., p. 38. Compare-se Phn., p. 45. 26

    HEGEL, Rechtsphilosophie, 31A, Suhrkamp, 7, p. 85.

  • natureza, ou seja, por meio de Si como Si do mesmo contedo e apenas contemplaria

    esse movimento27

    ? Como conceber uma dialtica real do capital sem a explicitao

    prvia das estruturas racionais do real na Cincia da Lgica? Como compreender, para

    formular quase absurdamente, que o que resultado do pensamento, o verdadeiro

    concreto, possa impor seu movimento prprio a um esforo conceitual que deve to s

    considerar, contemplar este movimento?

    Como evitar o duplo escolho de uma dialtica materialista, tributaria em sua

    inteligibilidade da dialtica hegeliana, a nica a possuir inteligibilidade prpria e

    autnoma, graas ao seu idealismo conseqente28

    , e o do achatamento vulgar-

    materialista da dialtica em termos de espelhamento (Widerspiegelung), este

    bastardo positivista da especulao hegeliana, que assolou a tradio marxista fazendo-a

    regredir a uma posio pr-kantiana? O que significa que a dialtica hegeliana est de

    ponta-cabea e como entender adequadamente o programa marxiano do umstlpen

    (inverter e virar ao avesso) da dialtica especulativa?

    Marx o legitima, num primeiro momento, ao afirmar a possibilidade de uma

    distino de princpio entre o potencial crtico29

    e de inteligibilidade [26] da dialtica

    hegeliana e as implicaes idealistas que a falseiam e a mistificam. Mas o abuso da

    metfora da extrao do caroo racional do seu envoltrio mstico, como nico

    esclarecimento questo posta, acabou por exauri-la e torn-la um expediente. E

    associada outra metfora da Umstlpung, traduzida insucientemente por

    inverso, ela termina por tornar aquela extrao uma operao de mgica trivial,

    como se bastasse por, novamente, a dialtica hegeliana de p, restabelecendo os direitos

    do realismo da conscincia natural face ao idealismo de especulao, para que a prola

    sasse sozinha da ostra. No basta inverter, uma segunda vez, aquilo que a especulao

    j inverteu, com a inteno de fazer a dialtica hegeliana andar com os prprios ps,

    para que ela revele um potencial de racionalidade que a projete alm de seus limites

    idealistas. E preciso, alm de invert-la, vir-la ao avesso, como exige a outra

    significao presente na palavra alem umstlpen, mostrando que as contradies

    27

    HEGEL, Phn., p. 48. Trad. Lima Vaz, loc. cit., p. 38. 28

    Posio defendida com solidez e esprito de sistema por Klaus Hartmann, Die Marxsche Theorie, De

    Gruyter, Berlim, 1970, embora no irretorquivelmente. 29

    Tanto a critica de Marx Filosofia do Direito de Hegel quanto a crtica Fenomenologia do Esprito

    do terceiro manuscrito dos Manuscritos Econmico-Filosficos destacam o potencial critico da filosofia

    hegeliana, no primeiro caso, o da Cincia da Lgica, no segundo, o da Fenomenologia, mostrando que

    apesar da mistificao idealista, a filosofia de Hegel no se limita a transfigurao do real e a resoluo ideolgica das contradies. Cf. Marx, Frhschriften, Ed. Furth/Lieber, Cota Stuttgart, 1962, vol. I, p.

    644.

  • presentes nos fenmenos no so a aparncia de uma unidade essencial, mas a essncia

    verdadeira de uma objetividade alienada (e no da objetividade enquanto tal)30, e

    que a sua resoluo especulativa na unidade do conceito que representa o lado

    aparente, mistificador, de uma realidade contraditria. Virando ao avesso a realidade

    invertida, alienada pelo capital, enquanto figura objetiva consumada da propriedade

    privada31, a contradio, que estava do lado de fora, transforma-se no seu verdadeiro

    interior, na prola racional desta realidade, e o que estava por dentro, a unidade

    resolutiva e integradora das contradies, revela-se como o seu exterior aparente, o seu

    envoltrio no s mstico, mas mistificador32

    . Da a importncia de reler O Capital

    tambm numa perspectiva de continuidade da crtica do jovem Marx a Hegel,

    particularmente da crtica ao duplo aspecto mistificador do idealismo: ao aspecto

    positivista, enquanto o dado imediato, o existente, transfigurado pela especulao,

    assumido acriticamente e ratificado em sua positividade pelo sistema, e ao aspecto

    especulativo, propriamente idealista, enquanto resoluo harmonizante das contradies

    numa unidade essencial, que se torna para Marx aparente, ideolgica. E preciso

    interpretar a Umstlpung neste horizonte, para que a crtica ao idealismo d

    plenamente os seus frutos. Marx fala do positivismo acrtico e do idealismo acrtico

    das obras posteriores Fenomenologia33

    , do falso positivismo e do criticismo

    aparente34 do idealismo, para denunciar este estranho e surpreendente conluio entre

    especulao e positivismo na lgica especulativa. A inverso que ela provocou ao

    atribuir a verdadeira atividade e subjetividade idia, impe a Hegel, diz Marx, no

    mais a tarefa de conduzir a existncia emprica sua verdade, mas, inversamente, de

    realizar empiricamente a verdade lgica, assumindo, assim, acriticamente, uma

    existncia emprica como verdade efetiva [27] da idia35

    . Mas nesta perspectiva da

    continuidade entre a crtica ao idealismo do jovem Marx e a dO Capital, preciso,

    contudo, no esquecer duas mudanas capitais: primeiro, o compromisso definitivo nO

    Capital com a dialtica antes de tudo enquanto mtodo de exposio dos resultados das

    investigaes da economia poltica e da crtica a ela, e no mais, primariamente, com a

    dialtica enquanto estrutura objetiva do devir histrico (do desenvolvimento do gnero

    30

    MARX, Frhschriften, vol. I, 654. A seguir abreviado FS. 31

    MARX, FS, p. 589. 32

    Devo a H. F. Fulda, ao artigo citado na nota (7), p. 186-187, a anlise do duplo significado da

    Umstlpung e das suas implicaes crticas. 33

    MARX, FS, p. 644. 34

    MARX, FS, p. 654. 35

    MARX, FS, p. 306. Nesta passagem Marx menciona, como tema a ser mais detalhadamente abordado,

    esta inverso/passagem necessria da empiria em especulao e da especulao em empiria.

  • humano, como nos Manuscritos), embora este sentido de dialtica no esteja ausente em

    certos contextos dO Capital36; segundo, a retomada do programa especulativo de Hegel

    de pensar a substncia como sujeito e como atividade pura37

    , no, certamente, enquanto

    processo de auto-realizao do conceito, mas aplicado como instrumento de concepo

    e exposio da estrutura do capital: de uma substncia (o valor enquanto trabalho

    abstrato objetivado e substncia social (G., 183) das mercadorias) que se transforma

    em sujeito (relao do valor consigo mesmo, enquanto processo de autovalorizao).

    Mas esta retomada do programa de Hegel em direo oposta crtica do jovem Marx

    subjetividade da idia no rompe inteiramente com aquela. Por isso, mantm-se uma

    continuidade fundamental entre a crtica aristotlica do jovem Marx subjetividade

    da idia hegeliana e a critica propriamente metodolgica da Introduo aos Grundrisse e

    dO Capital confuso feita por Hegel da dialtica como mtodo com a dialtica

    como gnese do real (G., 22), e idia como demiurgo do real (K, I, 27). Esta

    continuidade profunda da crtica se revela, como mostrou agudamente Theunissen38

    , no

    conceito marxiano de trabalho como atividade objetiva, em que Marx, por um lado,

    incorpora o conceito hegeliano de atividade enquanto exteriorizao e retorno a si,

    atribuindo-a, contudo, por outro lado, a um substrato material, a uma essncia

    objetiva que natureza e que exterioriza suas foras essenciais objetivas ao

    transformar a natureza39

    . A retomada do programa hegeliano, [28] nO Capital, como

    instrumento de caracterizao do capital enquanto autovalorizao, implica, portanto, na

    revogao apenas parcial da crtica a Hegel: a revogao ocorre apenas na medida em

    que a crtica dos Manuscritos se apoiava ainda no imediatismo de Feuerbach para

    afirmar, contra a subjetividade da idia, o gnero humano como o sujeito ltimo no

    sentido de um positivo que repousa sobre si mesmo. Esta positividade do sujeito se

    36

    No Posfcio segunda edio dO Capital, Marx menciona, a propsito dos ciclos peridicos em que o movimento contraditrio da sociedade capitalista se manifesta ao burgus prtico, a crise geral que novamente se aproxima e que pela sua universalidade e intensidade ir inculcar dialtica mesmo aos felizardos do novo sacro imprio prussiano-alemo. K, l, p. 28. E analisando a tendncia histrica da acumulao capitalista, no cap. 24 do Livro I dO Capital, Marx fundamenta sua teoria da revoluo como uma negao da negao, que atua no processo histrico com a necessidade de um processo natural para destruir o capitalismo e que restabelecer no a prioridade privada, mas a propriedade individual sobre a base das conquistas da era capitalista (K, I, p. 791). 37

    HEGEL, Phn., p. 19. Trad. Lima Vaz, loc. cit., p. 18. 38

    THEUNISSEN, M. Sein und Schein. Die kritische Funktion der Hegelschen Logik, Surhkamp,

    Frankfurt/M., 1978, p. 483. 39

    MARX, FS., p. 650: Ele (o ser objetivo) cria, pe apenas objetos, porque ele posto por objetos, porque ele originariamente natureza. No ato de pr no cai, pois, de sua atividade pura em uma criao do objeto, seno que seu produto objetivo apenas confirma sua atividade objetiva, sua atividade

    de um ser natural e objetivo. Trad. Bruni em: Marx, Os Pensadores, Abril, So Paulo, 1978, p. 40.

  • dissolver na pseudo subjetividade do capital e no esvaziamento e na represso da

    subjetividade individual pelo capital.

    A distino entre um potencial racional da dialtica especulativa e suas

    implicaes idealistas preside, de resto, a nica reflexo metodolgica mais longa de

    Marx, na Introduo aos Grundrisse, sobre o mtodo cientificamente correto (G., 21)

    de exposio crtica da economia poltica. Somente o mtodo dialtico pode conduzir ao

    verdadeiro concreto, porque ele o expe na forma de um resultado desenvolvido pelo

    pensamento a partir das categorias mais simples e abstratas (e aparentes), que se

    determinam e enriquecem progressivamente em categorias mais complexas e intensivas

    (e essenciais), at chegar ao concreto total, totalidade concreta enquanto totalidade de

    pensamento, ao concreto de pensamento (G., 22). Mas ao assumir o componente

    propriamente dialtico da exposio, Marx faz valer, ao mesmo tempo, sua crtica

    Fenomenologia do Esprito a partir do seu conceito de trabalho: depois de ter elogiado a

    grandeza da obra que apreendeu o auto-engendramento do homem como um

    processo, que a essncia do trabalho, cujo resultado homem objetivo, Marx

    censura a Hegel o conhecer apenas o lado positivo do trabalho, o trabalho espiritual

    e o conseqente desconhecimento do lado negativo do trabalho, e o trabalho de

    transformao da natureza sob as condies da propriedade privada (FS, 645-646). Se

    esta a determinao histrica fundamental da atividade humana, ento a pretenso

    ontolgica da dialtica especulativa, que contm o pensamento enquanto ele

    igualmente a coisa em si mesma, ou, a coisa em si mesma, enquanto ela , igualmente, o

    pensamento puro40, no pode ser assumida. Marx marca a sua diferena fundamental

    face a Hegel distinguindo a exposio dialtica enquanto mtodo atravs do qual o

    pensamento se eleva do abstrato ao concreto e o expe como resultado (concreto de

    pensamento) e a exposio dialtica enquanto seu processo de surgimento (G., 22)

    como manifestao de uma razo que se realiza, isto , para Marx, como ato de

    produo real (G.,22). Tudo se passa para Hegel, diz Marx, como se o prprio real

    fosse o resultado do pensamento que sintetiza e se aprofunda em si e que se movimenta

    a partir de si mesmo (G., 22). O que para a dialtica especulativa a auto-exposio do

    movimento imanente do contedo, a forma desse movimento enquanto ela tem

    conscincia de si na idia (WL, I, 35), mtodo no sentido subjetivo e objetivo (alma e

    substncia, WL, II, 486), torna-se para Marx, de um lado, mtodo de reproduo do

    40

    HEGEL, WL. 1, p. 30.

  • concreto, movimento das categorias, e de outro, gnese real, ato de produo

    efetivo: para a conscincia - e a [29] conscincia losca determinada de tal modo

    que, para ela, o pensamento que concebe o homem efetivo, e o mundo concebido

    como tal, o nico efetivo, o movimento das categorias aparece, portanto, como o ato de

    produo efetivo41. Donde a crtica frontal de Marx, segundo a qual Hegel confunde o

    processo lgico com o processo real, transformando este em fenmeno daquele,

    escamoteando, assim, as contradies reais atravs da sua resoluo especulativa numa

    essncia aparente (FS, 655). Contra esta confuso, que apenas o resultado

    conseqente e inevitvel do que para Hegel inseparvel, e que representa o ponto em

    que o mtodo se amplia num sistema (WL, II, 500), Marx faz valer, no sentido do

    realismo aristotlico, a prioridade ontolgica do concreto emprico, imediato, face ao

    concreto reproduzido dialeticamente no pensamento. Aquele constitui no s o ponto de

    partida, mas permanece o pressuposto da exposio42

    . E o concreto verdadeiro, que

    resulta da exposio, no de modo nenhum o produto do conceito que pensa separado

    e acima da intuio e da representao, e que se engendra a si mesmo, mas da

    elaborao da intuio e da representao em conceitos. (G, 22; trad. loc. cit. p. 117).

    A ressonncia kantiana da linguagem faz Colletti dizer que Marx retoma ao conceito

    gnoseolgico, e no ontolgico, de conceito e armao do papel constitutivo e

    permanente da multiplicidade da experincia para a elaborao do conceito43

    . Neste

    sentido, o mtodo de Marx no s diverso, mas o oposto direto (K, I, 27) do mtodo

    41

    MARX, G, p. 22. Trad., loc. cit., p. 117. 42

    O sujeito real permanece subsistindo, agora como antes, em sua autonomia, fora do crebro, isto , na medida em que o crebro no se comporta seno especulativamente, teoricamente. Por isso, tambm, no

    mtodo terico (da economia poltica trad.), o sujeito - a sociedade - deve figurar sempre na representao como pressuposio. (Ibid.) 43

    interessante ter presente, como contraponto, a posio oposta de Hegel a propsito das condies

    empricas do conceito: A losoa, entretanto, d a viso conceitual sobre o que se passa efetivamente com a realidade do ser sensvel e faz as etapas do sentimento, da intuio, da conscincia sensvel, etc.,

    preceder ao entendimento, na medida em que elas so as condies do devir do conceito, mas so

    condies somente enquanto ele emerge da sua (delas) dialtica e da sua nadidade (Nichtigkeit) como o fundamento delas, mas no como se ele fosse condicionado pela realidade daquelas. Hegel, WL, II, 225-226. Mas basta ler a seqncia imediata do texto de Hegel - tendo presente a anlise marxiana do

    fenmeno da troca equivalente na esfera da circulao, e a sua reduo a mera aparncia formal de um

    contedo diferente na passagem anlise da produo, e enm, ao seu desvendamento temtico como aparncia na reproduo, quando se toma clara a lei da apropriao capitalista, para perceber a maneira

    sutil e astuciosa como Marx utilizou a doutrina do conceito hegeliana, transformando-a em regra

    metdica: O pensamento abstrato no deve ser considerado como um mero pr de lado o material sensvel, que desse modo no sofreria nenhum dano, mas ele antes a supresso e a reduo do mesmo,

    como mera aparncia, ao essencial, que se manifesta s no conceito. (Ibid.)

  • de Hegel44

    . A prpria terminologia de Marx acusa este deslocamento realista,

    materialista, da dialtica [30] enquanto mtodo, revelando uma certa oscilao entre

    expresses que indicam antes o carter reconstrutivo da dialtica como procedimento

    subjetivo, e expresses que traem a sua provenincia especulativa como forma de

    autoexposio do contedo: a dialtica um modo de apropriao do concreto pelo

    pensamento (G, 22), um mtodo de elaborao45 que reproduz (G, 22) o concreto

    que as cincias empricas analisaram e prepararam para a exposio, que ento

    transpe, traduz, expressa idealmente o movimento efetivo do contedo e

    espelha idealmente a vida do material (K, I, 27). Se algumas expresses marcam a

    diferena irredutvel entre a dialtica enquanto mtodo de exposio e o movimento

    efetivo do contedo, outras acentuam a pretenso propriamente dialtica de uma forma

    de exposio que expresse integralmente e exclusivamente o movimento efetivo do

    material, desde que este tenha sido analiticamente investigado e a sua maturao

    histrica o tenha levado a um ponto de diferenciao e organicidade suficientes para a

    exposio46

    . Dialtica transforma-se, assim, em mtodo no sentido subjetivo de um

    procedimento de reconstruo categorial, em oposio ao mtodo enquanto atividade

    universal absoluta, enquanto sujeito da prpria forma de movimento (idia) (WL, II,

    486). O mtodo no mais a forma do automovimento do contedo que se expe, mas

    um procedimento de reconstruo categorial que pressupe o trabalho prvio de

    investigao das cincias empricas e a maturao histrica do objeto para ento expor a

    sua lgica interna de acordo com os nexos que a anlise apreendeu entre suas

    determinaes.

    Como lembra Fulda47

    , tambm Hegel conhece este conceito subjetivo de

    mtodo e dele trata no incio da Filosoa da Natureza a propsito da relao entre a

    Fsica como cincia emprica e a Filosoa da Natureza como modo de exposio

    losco. Esta, enquanto considerao conceptiva da natureza, pressupe as

    44

    Outro sentido, talvez mais especfico, desta oposio frontal a Hegel a crtica, j mencionada, ao

    aspecto mistificador da resoluo especulativa da contradio, que se toma em Marx a fonte geradora de toda dialtica (K, I, 623). 45

    Carta de Marx a Engels de 14 de janeiro de 1858, em Briefe ber Das Kapital, ed. cit., p. 79. 46

    Este ltimo aspecto aparece na Introduo aos Grundrisse, a propsito da funo estratgica que Marx

    atribui sociedade capitalista como chave da interpretao das formaes pr-capitalistas. (G., p. 25-26; Trad. loc. cit., p. 120), e nas Teorias sobre a Mais-Valia , em relao ao pleno desenvolvimento das

    potncias sociais do trabalho (cooperao, diviso do trabalho e produo por mquinas, at a realizao tendencial da plena automao) enquanto ele 6 a condio objetiva. _ do ponto de vista da

    maturao histrica de uma produo plenamente socializada. - de uma correspondncia adequada entre

    mtodo dialtico e processo real. 47

    Artigo citado na nota (7), p. 193.

  • investigaes da cincia fsica e seus resultados como condio, embora estes no

    devam aparecer como fundamento, pois nela deve impor-se exclusivamente a

    necessidade do conceito, para a qual no h apelao para a experincia48. Este

    conceito de mtodo, observa Fulda, que [31] pressupe a apropriao analtica do objeto

    prvia sua exposio em suas articulaes necessrias, toma-se para Marx o conceito

    determinante e central de dialtica.

    aqui que se revela plenamente o sentido e a importncia da distino de Marx

    entre mtodo/modo de exposio e mtodo/modo de pesquisa (K, I, 25/27). A

    dialtica pode ser o modo de exposio racional de um objeto depois que a investigao

    o conduziu pela anlise e pela crtica ao ponto sem que ele esteja maduro para a

    exposio. Em carta a Engels, de 1 de fevereiro de 1858, Marx critica a ingenuidade

    terica da Lassalle ao pretender expor a economia poltica hegelianamente, aplicando

    diretamente a lgica hegeliana aos conceitos econmicos. Ele tomar conhecimento,

    para seu prprio dano, que uma coisa totalmente diferente conduzir uma cincia,

    atravs da crtica, ao ponto em que ela pode ser exposta dialeticamente, e aplicar um

    sistema da lgica abstrato e acabado a pressentimentos de um tal sistema49. A funo

    paradigmtica da dialtica hegeliana para Marx no consistiu em pr disposio uma

    caixa de ferramentas polivalentes, prontas a serem utilizadas para organizar os

    resultados de uma cincia social, tomada no seu estado atual, mas em antecipar em sua

    lgica especulativa estruturas racionais que Marx, em sua anlise do capitalismo,

    reconheceu como exprimindo de maneira crptica algumas dimenses econnricas

    fundamentais da sociedade burguesa dominada pela relao capitalista de produo.

    Para exemplificar, menciono trs dessas estruturas, cuja atuao nO Capital deveria ser

    objeto de anlises especficas: 1.) o j citado conceito de atividade enquanto -

    exteriorizao e retorno a si (este redefinido por Marx como reapropriao com todas

    as conseqncias nisso implcitas), decisivo para compreender a teoria do valor; 2.) o

    conceito de sujeito como auto-relao, no mais de uma atividade pura e absoluta, mas

    de um substrato, o valor, que na sua relao consigo se torna processo de

    autovalorizao, capital; 3.) a dialtica da dominao presente na lgica das

    determinaes da reflexo, relaes em que um plo contm em si o outro plo e o

    48

    No s a losoa deve concordar com a experincia da natureza, mas tambm o surgimento e a formao da cincia losca (da natureza, MLM) tem a fsica emprica como pressuposto e condio. Uma coisa, entretanto, 0 caminho de surgimento da cincia e seus trabalhos preparatrios, outra, a

    prpria cincia; nesta aqueles no mais podem aparecer como base, a qual, s mais tarde pode ser a

    necessidade de conceito. Hegel, Enzyklopdie, 246, Suhrkamp, 9, p. 15. 49

    Marx-Engels Werke, vol., 29, p. 275.

  • rebaixa a momento de si mesmo, tornando-se o todo da relao, estrutura paradigmtica

    para a ,concepo da pretenso de dominao do capital sobre o trabalho assalariado,

    como mostrou Theunissen50

    . Mas esta decifragem das estruturas econmicas da

    sociedade burguesa nas relaes conceituais da lgica hegeliana s ocorreu atravs de

    longo trabalho de apropriao e crtica do pensamento econmico burgus, que

    transformou profundamente a economia poltica como cincia ao mostrar os vnculos de

    classe em sua estrutura categorial, permitindo, por um lado, uma compreenso

    sistemtica dos fenmenos econmicos a partir de sua lei essencial, a lei do valor e da

    valorizao do capital e possibilitando, por outro, a inteira reconstruo do sistema

    categorial da economia poltica conforme um determinado paradigma [32] de dialtica,

    cuja fora heurstica s foi to avassaladora, porque Marx viu antecipadas em certas

    relaes conceituais da Cincia da Lgica estruturas econmicas que seu diagnstico do

    capitalismo j reconhecera como determinantes da anatomia da sociedade burguesa.

    preciso, portanto, uma apropriao crtica prvia dos resultados da economia poltica

    como cincia social para que a sua reconstruo categorial seja efetivamente uma

    exposio do desenvolvimento conceitual (G, 405) do material pesquisado, isto , uma

    apresentao discursiva daquela organizao das suas determinaes que resultam do

    movimento do seu conceito, do trabalho prprio da razo da coisa (cf. nota 24). S

    que em Marx este movimento imanente do conceito de capital a lgica contraditria

    da sua valorizao, cuja exposio implicar na tematizao das contradies da

    produo capitalista e caracterizar aquela como uma exposio crtica da realidade

    econmica. Da porque a dialtica materialista a dialtica enquanto mtodo de

    reconstruo categorial de uma cincia social com vnculos de classe, como a economia

    poltica, no diretamente um procedimento de descoberta, uma lgica da inveno.

    Em Hegel a dialtica enquanto forma de automovimento do conceito o mtodo

    absoluto (WL, II, 490), que contm em si toda riqueza das determinaes do conceito

    (os conceitos enquanto sistema de determinaes do pensamento puro, WL, I, 46) e o

    princpio da sua descoberta51

    . E sendo o mtodo a forma imanente da coisa em seu

    movimento, o seu comeo, o simples e o universal imediato, j concebido como

    carncia do seu desenvolvimento ulterior e como animado pela pulso (WL, II, 489)

    de se autodeterminar. Neste sentido pode dizer-se que a lgica especulativa uma

    50

    THEUNISSEN, M., Krise der Macht, Thesen zur Theorie des dialektischen Widerspruchs, in: Hegel

    Jahrbuch, 1974, Pahl-Rugenstein Verlag, Kln, 1974. 51

    O mtodo absoluto no se comporta como uma reflexo exterior, mas toma o determinado do seu prprio objeto que o prprio mtodo seu principio imanente e sua alma. (WL, II, 491).

  • lgica heurstica. Em Marx a situao outra. Como o mtodo no a forma de auto-

    exposio da coisa, mas o modo de exposio critica de uma cincia social e, atravs

    dela, de uma realidade (econmica) cuja determinao ltima uma contradio real e

    no a automanifestao da razo, ele pressupe um trabalho anterior de investigao e

    critica que assegure a penetrao racional do objeto em suas determinaes essenciais.

    E preciso, assim, que o mtodo de pesquisa (K, I, 25) assuma o nus idealista da

    lgica especulativa apropriando-se analtica e criticamente do contedo, antes que a

    exposio possa exprimir seu desenvolvimento conceitual, prescindindo de hipteses

    que o analista ou o crtico trariam consigo, e espelhar exclusivamente o seu

    movimento efetivo.

    Aqui surge mais uma vez e inadiavelmente a questo da legitimidade de uma

    dialtica no idealista, materialista, para assumir o, conceito e a dicotomia

    consagrados. Como se mantm, se que se mantm, o elemento especificamente

    dialtico da exposio em face desta transformao da dialtica em mtodo no sentido

    subjetivo, enquanto procedimento reconstrutivo de um expositor? Quid juris de um

    mtodo que pretende ser teoria stricto sensu, cincia, no s no sentido do paradigma

    moderno de cincia, mas tambm no [33] sentido hegeliano, dentro do pressuposto

    materialista de uma realidade prvia e irredutvel sua reconstruo lgica no

    pensamento? O que legitima uma dialtica materialista que no pode ser mais a

    exposio de uma realidade que seria a prpria manifestao e auto-realizao da razo?

    O que a legitima e toma, assim, em ltima anlise, vlida a desvinculao,

    reivindicada por Marx, entre o ncleo racional da dialtica e seus compromissos com a

    metafsica hegeliana do conceito, o diagnstico histrico do capitalismo como modo

    de produo dominado pela abstrao real do valor e do seu fundamento, o trabalho

    abstrato capitalizado. E o diagnstico histrico de uma sociedade cujas relaes sociais

    de produo esto dominadas por um universal que se auto-adjudica uma subjetividade

    pseudo-concreta s expensas da atividade concreta dos indivduos reais: o capital

    enquanto valor que se autovaloriza, princpio determinante da reproduo material de

    uma sociedade que repe todas as suas condies histricas e lgicas como momentos

    internos da sua reproduo.

    A exposio crtica da economia poltica nO Capital contm um diagnstico

    histrico da sociedade capitalista que a situa como a ltima fase opositiva do processo

  • social de produo52, porque ela leva s ltimas conseqncias a separao entre o

    trabalho e as suas condies objetivas de realizao (G., 375), o antagonismo de classes,

    como pressuposto e instrumento histricos do desenvolvimento da produtividade do

    trabalho social, isto , da plena socializao do trabalho e da completa dominao da

    natureza. Esta separao, a mais radical historicamente, na qual as condies de

    efetivao do trabalho se defrontam opositivamente ao trabalhador, juridicamente livre

    e no mais proprietrio53

    , como capital, consolida a dissoluo dos laos orgnicos do

    indivduo trabalhador com a comunidade na qual ele se inseria como proprietrio e

    instaura a sua individualidade nua, despojada da propriedade. (G., 375) A dupla

    constituio histrica do individuo, enquanto livre da apropriao alheia54

    e livre da

    propriedade, transforma-o, ento, em pura capacidade de trabalho subjetiva, que vai

    se defrontar com as condies de produo como sua no-propriedade, como

    propriedade alheia, como valor existente para si, como capital (G, 397; 203). A

    emergncia histrica do trabalhador assalariado e a transformao da sua capacidade de

    trabalho em mercadoria no decorrer do processo de acumulao originria torna-se

    assim o pressuposto histrico e sistemtico da autonomizao dos meios de produo de

    propriedade alheia em capital, em principio de subjugao do trabalho vivo para os fins

    da valorizao do capital. E a progressiva subsuno do processo de trabalho sob o

    processo de valorizao, e a sua transformao sistemtica pelos diferentes mtodos de

    obteno de mais-valia relativa, asseguram a reduo progressiva do trabalho vivo e

    concreto a trabalho abstrato, isto , a [34] trabalho considerado apenas enquanto

    dispndio de uma atividade, medida quantitativamente pelo tempo cronolgico, e que se

    tomou indiferente ao seu sujeito. Esta reduo j est logicamente pr-definida na

    constituio do trabalho assalariado.

    Assiste-se, assim, emergncia e expanso histricas de um tipo de sociedade

    em que atua um processo de reduo da atividade concreta dos indivduos a uma

    atividade abstrata e indiferente a eles e, conseqentemente, como outra face, um

    processo de autonomizao das condies objetivas de efetivao do trabalho enquanto

    capital. Esta reduo de atividade concreta de atividade concreta do trabalho, a uma

    atividade abstrata e universal, geradora de riqueza abstrata, o valor, que vai assumir uma

    autonomia real e oposta aos sujeitos do trabalho, o que define a dinmica da relao

    52

    Marx-Engels Werke, Vol. XIII, p. 9; Trad. in: Os Pensadores , p. 130. 53

    Proprietrio nem da terra, nem dos instrumentos do trabalho, nem do prprio fundo de consumo. 54

    Quer dizer, livre da subsuno imediata sob as condies objetivas de produo. G. p. 397.

  • capitalista. Uma relao em que um extremo, o capital, pretende, subjugando o outro e

    contendo em si como momento o trabalho, constituir-se como o todo da relao, a qual

    se transforma, assim, enquanto tal, num sujeito autnomo, cuja dinmica aparece como

    propriedade imanente e natural do substrato material desta relao, agora dotada de vida

    prpria: a propriedade privada alheia dos meios de produo enquanto valor, que entra

    em relao consigo mesmo como mais-valia e se propulsiona atravs da dominao e

    absoro do trabalho vivo reduzido a atividade formadora de valor. (K, I, 169). E a

    relao de produo capitalista transformada no verdadeiro sujeito social da produo e

    no princpio determinante de todas as estruturas econmicas da sociedade. A descrio

    metafrica do capital como um vampiro que suga, enquanto trabalho morto, o trabalho

    vivo do trabalhador, ressalta estes dois aspectos da relao capitalista: l.) reduo da

    atividade concreta do trabalho atividade formadora de valor; 2.) a sua pseudo-

    subjetivao num substrato alheio, que domina aquela pelo poder de dominao que

    resulta do trabalho vivo55

    . Constitui-se um sujeito que, pela sua pretenso de tomar-se o

    todo da relao, incorpora e transforma em sua autoatividade o trabalho vivo

    previamente reduzido a trabalho abstrato, fazendo aparecer como propriedades suas,

    imanentes e naturais, todas as dimenses tcnicas e sociais do processo de trabalho. O

    contedo social desta relao hipostasiada e das formas em que ela articula a sua

    reproduo e se organiza como sistema de produo o valor enquanto trabalho

    abstrato objetivado, que se toma, pela universalizao desta relao, a substncia social

    comum (G, 183) das mercadorias e das relaes entre os agentes da produo.

    Constitui-se, desse modo, uma sociedade perpassada em sua base econmica pela

    universalidade real do trabalho abstrato, forma imediatamente social dos trabalhos

    privados (K, I, 91) e, enquanto capitalizado, contedo de todas as relaes sociais de

    produo capitalistas. Estas relaes so verdadeiros universais reais, no concretos,

    que s mediatizam os agentes individuais subordinando-os a estas relaes

    autonomizadas. Enquanto formas de manifestao do trabalho [35] abstrato elas negam

    o seu carter relacional para se armarem como relaes que repousarn em si mesmas

    (G, 81) e que se opem aos indivduos nelas implicados na qualidade de potncias

    coisais56. Por isto, antes de serem abstraes tericas do analista, as categorias da

    55

    O capital trabalho morto que s se anima como um vampiro sugando o trabalho vivo, e ele vive tanto mais quanto mais suga trabalho vivo. (K, I, p. 247). Cf tambm G., p. 357. 56

    sachliche Mchte. Estas relaes de dependncia coisais, em oposio s relaes pessoais, aparecem tambm de tal maneira que os indivduos so agora dominados por abstraes, enquanto antes

    dependiam uns dos outros. (A relao de dependncia coisa consiste to s nas relaes sociais que se

  • economia poltica so pensadas por Marx como expresses tericas da abstrao real

    presente nestas relaes, que se opem aos indivduos como um poder de dominao. O

    fetiche das categorias da economia poltica, que exprimem a abstrao real destas

    relaes, implica dois momentos que consolidam a sua falsa imediatidade: primeiro, sua

    autonomizao face aos indivduos e sua transformao em abstraes (G, 82) que os

    dominam, e, segundo, a sua incorporao, assim subjetivadas, como propriedades

    objetivas (coisais) dos substratos econmicos materiais ( o valor como propriedade

    natural da mercadoria, a comensurabilidade das mercadorias como resultante da ao

    mediadora do dinheiro, a produtividade como qualidade inerente ao capital). O

    fundamento dessas relaes coisicadas e da sua expresso terica nas categorias da

    economia poltica o movimento de autovalorizao do capital (para as categorias de

    produo imediata, antes de tudo); mas seu contedo comum o trabalho abstrato

    objetivado que se toma, assim, o prprio contedo lgico da exposio dialtica e o

    responsvel pelo nexo imanente entre as categorias da exposio57

    . As categorias so

    compreendidas como formas de exposio do trabalho abstrato objetivado e como

    formas de articulao do seu movimento autnomo enquanto autovalorizao.

    Portanto, a capitalizao progressiva do trabalho (a constituio histrica do

    trabalho assalariado e a sua reduo a trabalho abstrato), desencadeada pela separao

    histrica mais radical entre o trabalho e as condies objetivas de sua efetivao,

    constitui a valorizao do capital, em finalidade no s do processo de produo, mas de

    toda reproduo material da sociedade. E a transformao da valorizao em finalidade

    do sistema acarreta um desenvolvimento [36] incondicionado da produtividade do

    trabalho social que vai implicar uma apropriao progressivamente total da natureza por

    uma produo convertida em fm de si mesma, e uma dominao, tambm

    tendencialmente e total, dos indivduos e da sua socializao pela valorizao do capital.

    Uma produo autonalizada pela expanso do valor converte-se, por sua vez, na

    defrontam, enquanto automatizadas, com os indivduos aparentemente independentes, isto , suas relaes

    de produo recprocas autonomizadas face a eles.) G, p. 81 e 81. 57

    Este nexo nem sempre imanente, pois a prpria exposio dialtica s verdadeira quando conhece

    os seus limites (G, 364, 945) e aponta para os pressupostos histricos a que ela deve recorrer. De resto,

    medida que a exposio dO Capital avana, ela recorre sempre mais, ao invs da exposio lgica de Hegel, a determinaes que no so o resultado imanente e necessrio da explicitao das categorias

    anteriores. Alm disso, na medida em que a exposio sistemtica e reconstri a totalidade contraditria

    da reproduo capitalista, penetrando no fundamento da reduo do trabalho e da autonomizao do

    valor, ela , simultaneamente, crtica, e tem a funo de devolver s categorias o seu verdadeiro estatuto

    lgico, que o de serem expresses de relaes sociais, embora ela no coincida, como exposio crtica,

    com o prprio processo real de descoisificao das relaes sociais e de ser abordada especificamente a

    propsito da anlise temtica da dialtica enquanto crtica.

  • finalidade e no contedo nicos do trabalho, reduzindo a atividade formadora do valor.

    Esta a condio histrica objetiva para a apreenso adequada da prpria razo do

    capital58 e da sua exposio efetivamente dialtica que, primeiro, espelha59 to s e

    cabalmente a estrutura econmica da sociedade enquanto ela est, em princpio,

    exaustivamente determinada e dominada pela lei da [37] valorizao do capital (aspecto

    mimtico da exposio, oriundo da componente auto-expositiva da dialtica

    especulativa, cf. p. 11), segundo, reconstri a lgica objetiva do modo de produo

    58

    Uma razo evidentemente contraditria para Marx, porque entre a finalidade da produo capitalista

    (garantir a manuteno e expanso do valor e das relaes sociais congruentes a ela) e os meios a que ela

    recorre para isso, o desenvolvimento incondicionado das foras produtivas sociais do trabalho (K, III, 259-260) com as conseqncias econmicas inevitveis e indesejveis a implcitas (queda da taxa de

    lucro, desvalorizao do capital existente e desenvolvimento das foras produtivas do trabalho s custas das foras produtivas j desenvolvidas, lbid.), instaura-se uma contradio insolvel dentro da pretenso

    de dominao do capital. Esta contradio frustra recursivamente a sua pretenso de dominao,

    submetendo a reproduo social a uma instabilidade essencial que toma a plena adequao da realidade

    capitalista ao seu conceito inalcanvel. 59

    Introduzido por Marx no contexto da reflexo metodolgica do Posfcio segunda edio dO Capital, o conceito de espelhamento (Widerspiegelung) no est isento de ambigidades, principalmente na vizinhana embaraosa de metforas que descrevem o pensamento como transposio e traduo no

    crebro do que material (K, I, 27) e que anunciam a futura linguagem do materialismo vulgar, que consagrar o positivismo implcito na especulao, j denunciada pelo jovem Marx. O conceito de

    espelhamento foi posteriormente canonizado na tradio marxista por Engels e Lenin para sublinhar o carter materialista da teoria do conhecimento marxista. NO Capital ele s pode ser entendido adequadamente a partir de sua origem na dialtica especulativa hegeliana, e da sua dependncia da

    concepo tradicional de teoria no seu sentido etimolgico de viso. Ele no visa tanto sublinhar o

    aspecto realista da teoria do conhecimento de Marx, na verso trivial de mera cpia de um real, que em

    sua facticidade imediata conteria em si as articulaes e os nexos que o conhecimento nele descobre e

    apenas refletiria, no sentido, portanto, da teoria do reflexo do materialismo vulgar (mera transposio acrtica e pr-crtica de uma posio idealista), mas o aspecto propriamente dialtico do mtodo, que

    expe a lgica objetiva e prpria da coisa sem interferncias subjetivas prvias do analista e externas ao

    movimento do conceito da coisa. Na interpretao marxista ortodoxa da dialtica a partir de Engels, que

    tende a transform-la em mtodo universal, inclusive do conhecimento da natureza, e mesmo na prpria

    estrutura objetiva da realidade concebida como processualidade total, a Umstlpung marxiana

    geralmente interpretada no sentido mais ou menos trivial de que o mtodo dialtico espelha as estruturas

    dialticas do processo objetivo, sem que se saiba exatamente por que o real dialtico, e, muito menos,

    porque o espelhamento seria tal. Um testemunho claro dessa trivializao da dialtica como espalhamento

    nos oferece uma passagem de uma carta de Engels a Schmidt, de 1 de novembro de 1891: ... a inverso da dialtica em Hegel consiste em que ela deve ser o autodesenvolvimento do pensamento e que, portanto, a dialtica dos fatos apenas o seu reexo (AbgIanz), enquanto que a dialtica na nossa cabea , certamente, apenas o espelhamento (Widerspiegelung`) do desenvolvimento factual no mundo da natureza e no mundo histrico-humano que obedece a formas dialticas. Compare uma vez o

    desenvolvimento da mercadoria ao capital em Marx com o do ser essncia em Hegel, e voc ter um

    bom paralelo: aqui o desenvolvimento do concreto, tal como ele resulta dos fatos, l a construo

    abstrata... (Marx-Engels Werke, vol. 38, p. 204). Convm observar que o apenas que fazia sentido no sistema hegeliano quando se tratava em trazer apenas a conscincia o trabalho da prpria razo da coisa (Rechtsphilosophie, 3lA), torna-se o indicador de um realismo ingnuo e pr-kantiano quando referido

    ao mero espelhamento do desenvolvimento factual. O verdadeiro concreto, que era, para Marx, o resultado de sua reconstruo sinttica no pensamento, tende a ser confundido com uma imediatidade

    factual, com o concreto emprico e imediato de Marx, e a dialtica como mtodo parece reduzir-se duplicao de uma dialtica dos fatos sem pensamento, e no caso de Hegel, a uma construo abstrata contraposta positividade dos fatos. Tal reduo da dialtica ao espelhamento s ainda inteligvel no

    quadro de uma ontologia do real, transformado metafisicamente em processualidade universal, que se

    imporia ao pensamento com a positividade de um fato. o resultado nal da dialtica materialista convertida em materialismo dialtico.

  • capitalista a partir do conceito de capital, mas enquanto mtodo, distinto da sua

    reproduo e/ou destruio enquanto sistema real (aspecto propriamente dialtico, e

    tambm crtico, da exposio). O diagnstico histrico do capitalismo enquanto sistema

    total (na sua pretenso) de apropriao da natureza e de dominao social pela lgica de

    valorizao, possibilita uma reconstruo categorial de uma cincia social, a economia

    poltica, que preenche, metodicamente, a exigncia de considerar apenas

    (exclusivarnente e integralmente) o desenvolvimento do conceito de capital, isto , de

    organizar sistematicamente, sem hipteses exteriores a ele, todas as categorias da

    economia politica enquanto determinidades formais econmicas60, do capital e do seu

    movimento de autovalorizao. Esta reconstruo categorial expe as estruturas

    econmicas da reproduo da sociedade capitalista enquanto elas so, em seu contedo,

    constitudas por essas determinidades formais econmicas capitalista. Preenche-se,

    assim, na exposio da estrutura econmica da sociedade capitalista, a exigncia da

    dialtica especulativa hegeliana: assim como as categorias da Cincia da Lgica,

    enquanto formas de pensamento puro, so, simultaneamente, o contedo real do

    pensamento, analogamente as determinidades formais econmicas do capital, expressas

    nas categorias dO Capital, constituem, assintoticamente, na medida do poder do

    capital, sobre a sociedade, o prprio contedo real das relaes sociais de produo. Se

    para Hegel a dialtica especulativa da Cincia da Lgica s possvel quando a

    consumao histrica do esprito permite que a conscincia, atravs do percurso integral

    de todas as formas opositivas na Fenomenologia, se alce ao patamar do pensamento

    puro, no qual o ser-si-mesmo do objeto no se diferencia mas do si-mesmo do pensar

    (Phn., 48; trad. loc.cit., 38), para Marx a dialtica materialista dO Capital torna-se

    historicamente [38] possvel quando o capital tornou-se a potncia econmica da

    sociedade burguesa, que domina tudo, seu ponto de partida e o seu ponto de chegada

    (G, 27; Trad. loc. cit., 122) e quando a apropriao crtica da economia poltica a tiver

    conduzido ao ponto em que suas categorias possam ser desenvolvidas sistematicamente

    a partir de sua lei essencial.

    esta pretenso de dominao total do capital sobre a sociedade e a natureza

    (diacrnica e sincronicamente) que permitiu a Marx ver antecipada na idia hegeliana

    enquanto mtodo absoluto um anlogo especulativo da lei de valorizao e da

    reproduo sistemtica do capital. A idia especulativa como mtodo o movimento do

    60

    konomische Formbestimmtheit.

  • conceito que sabe que ele tudo e que seu movimento se determina e realiza enquanto

    atividade universal absoluta, fora innita pura e simplesmente (WL, II, 486), a que

    nenhum objeto, enquanto exterior e independente da razo, pode resistir. Qualquer coisa

    s pode ser concebida enquanto ela est integralmente submetida ao mtodo (ibid.),

    que , simultaneamente, o mtodo prprio de cada coisa, porque a sua atividade (da

    coisa) conceito (bid.). Analogamente em Marx, o movimento de valorizao e de

    acumulao do capital assume uma espcie de subjetividade absoluta enquanto o valor

    se toma o sujeito englobante de um processo (K, I, l69), a que nenhuma relao pr-

    capitalista pode resistir indefinidamente (se ela resiste, ela integrada, em sua prpria

    exterioridade resistente, s finalidades da reproduo capitalista), e que pretende

    estabelecer uma correspondncia plena entre o conceito de capital e a sua realidade

    efetiva (a formao social capitalista). Esta correspondncia de princpio resultado

    histrico da crescente universalizao do trabalho assalariado e da reduo sistemtica

    do trabalho concreto a trabalho abstrato, concomitantes transformao do capital em

    poder social universal submetido apropriao privada de capitalistas individuais (K,

    III, 274). Ela condio objetiva da reconstruo categorial da economia poltica,

    enquanto teoria do modo de produo capitalista61

    que procede exposio sistemtica

    das formas de reproduo econmicas da sociedade capitalista submetidas ao poder

    subjugador da valorizao e da acumulao do capital. A diferena principal entre a

    fora infinita e irresistvel da idia enquanto mtodo e o poder subjugador do

    capital est em que naquela, cada coisa, como conceito, reconhece a sua atividade mais

    prpria e profunda, o seu si mesmo, enquanto o capital como sujeito e princpio de

    movimento da substncia econmica, o valor, s tem conscincia de si na

    multiplicidade dos seus agentes individuais, nos capitalistas enquanto representantes

    dos capitais individuais, que s reconhecem o movimento de reproduo global do

    capital enquanto ele atende o imperativo da valorizao do capital individual. Embora

    ele tenha a sua finalidade em si mesmo, o capital [39] no se sabe como sujeito, ele

    cego, um sujeito automtico (K, I, l69), cujo poder de dominao no consegue

    estabelecer a plena correspondncia entre a realidade capitalista e o seu conceito62

    .

    61

    Na teoria pressupe-se que as leis do modo de produo capitalista se desenvolvem de maneira pura. Na realidade efetiva existe apenas a aproximao; mas esta aproximao e tanto maior quanto mais

    desenvolvido est o modo de produo capitalista e quanto mais estiver eliminado o seu entrelaamento e

    sua contaminao com restos de situaes econmicas anteriores. (K, III, p. 184). 62

    O mtodo emergiu disso como o conceito que se sabe como absoluto, tanto subjetivo quanto objetivo, e se tem a si mesmo como objeto, por conseguinte, como a pura correspondncia entre o conceito e a sua

    realidade, como uma existncia, que ele mesmo (o conceito). (WL, II, p. 486).

  • Embora, portanto, a teoria dO Capital, conforme postulado metodolgico

    explicado por Marx, s exponha as relaes de produo capitalistas na medida em que

    elas correspondem ao seu conceito63

    , as formaes sociais capitalistas no

    correspondem historicamente de maneira plena ao conceito de capital, porque ele

    mesmo contm uma pretenso de dominao total irrealizvel, uma estrutura de poder

    contraditria: se formalmente o capital pode ser a totalidade da relao entre si mesmo e

    o trabalho assalariado, subjugando-o como momento (o trabalho enquanto capital

    varivel), materialmente ele no pode prescindir da sua oposio sempre renovada ao

    trabalho vivo, j que enquanto trabalho objetivado, morto, o capital no tem outro

    contedo social que no o trabalho. Se na idia hegeliana a realidade se torna adequada

    ao conceito, que se alastra sobre ela e a domina para torn-la correspondente a si, nas

    formaes capitalistas a realidade nunca corresponde plenamente ao conceito de capital,

    porque a sua realizao integral como sujeito automtico da produo, atravs da

    aplicao tecnolgica das cincias naturais e na forma mais prxima de seu conceito,

    como capital fixo, tende a subverter a sua prpria base de valorizao, o tempo de

    trabalho (G, 587, 593). Por isso, se a pretenso de dominao total do capital sobre a

    estrutura econmica da sociedade condio histrica e lgica da dialtica como

    exposio adequada de uma realidade, na medida em que ela corresponde a esse

    conceito, a frustrao essencial e recorrente dessa pretenso , simultaneamente,

    condio da dialtica como crtica, que expe, atravs da reconstruo sistemtica da

    economia poltica, o movimento autodestrutivo da contradio presente nesse poder de

    dominao.

    Respondendo questo sobre a legitimidade de uma dialtica materialista. -

    mais precisamente, sobre a possibilidade de uma exposio dialtica (no sentido preciso

    desses conceitos) da reproduo material de uma sociedade dominada pelo poder do

    capital (a sociedade burguesa), atravs da reconstruo sistemtica da cincia social que

    tem por objeto o movimento econmico dessa sociedade - apontou-se para o

    diagnstico histrico dessa sociedade como condio de possibilidade e de legitimao.

    Mas se a teoria dO Capital enquanto exposio dialtica (e crtica) do movimento

    efetivo do capital atravs da reconstruo categorial da economia poltica como cincia

    tem o princpio de sua legitimao apenas num determinado diagnstico histrico do

    63

    Em tal investigao universal pressupe-se sempre, em princpio, que as relaes efetivas correspondam ao seu conceito ou, o que equivale, que as relaes efetivas s sejam expostas enquanto

    elas exprimem o seu prprio tipo universal. (K, III, p. 152).

  • presente, isto , do modo de produo capitalista como sistema de [40] produo

    dominado pelo trabalho abstrato, poderia objetar-se que a teoria se funda, em ltima

    anlise, dogmaticamente, pelo recurso histria. O que desarma esta objeo que este

    diagnstico se insere, por sua vez, no quadro de uma teoria geral da histria, que O

    Capital esboa, negativamente (encreux), a partir e dentro dos limites do prprio

    diagnstico do presente contido na crtica economia poltica, cujo horizonte a teoria

    da revoluo64

    . Sendo a reconstruo categorial de uma cincia social que analisa a

    estrutura econmica da organizao histrica mais desenvolvida e diferenciada da

    produo (G, 25; trad. loc. cit., 120), a teoria dO Capital desempenha uma funo

    paradigmtica para a compreenso das sociedades pr-capitalistas65

    e contm, nessa

    medida, no seu bojo, uma teoria da histria (o materialismo histrico) que reconstri s

    condies de gnese e aponta as condies de superao do modo de produo

    capitalista a partir do diagnstico do presente implcito na crtica economia poltica. A

    lgica das relaes sociais capitalistas funciona, assim, como um a priori interpretativo

    das sociedades pr-capitalistas e como um fio condutor regressivo da reconstruo

    histrica. A teoria do materialismo histrico enquanto reconstruo lgica do

    desenvolvimento histrico-social, em termos de uma seqncia de modos de produo,

    a partir da questo da gnese histrica do capitalismo na separao entre o trabalho livre

    e as condies objetivas de sua efetivao ornece, por sua vez, o horizonte de

    legitimao do prprio diagnstico histrico. Haveria uma mediao recproca entre

    dialtica enquanto teoria e histria, em que nenhuma seria pressuposto ltimo da outra.

    A legitimao de uma dialtica materialista pelo diagnstico histrico da sociedade

    capitalista que reconhece nas suas estruturas econmicas, enquanto dominadas pela

    abstrao real do valor, anlogos reais de algumas relaes conceituais explicitadas por

    Hegel na Cincia da Lgica se insere, portanto, numa teoria mais ampla, que resulta

    da reconstruo regressiva das condies histricas do surgimento de um sistema de

    produo, que termina por tornar praticamente verdadeiro o realismo ontolgico de

    Hegel, enquanto instrumento de detectao do universal real do trabalho abstrato66

    . A

    exposio dialtica das categorias da economia poltica enquanto formas de

    64

    THEUNISSEN M., Sein und Schein. Die kritische Funktion der Hergelschen Logik, Suhrkamp,

    Frankfut/M., 1978, p. 86-87. 65

    As categorias que exprimem suas relaes (da sociedade burguesa), a compreenso de sua prpria articulao, permitem penetrar na articulao e nas relaes de produo de todas as formas de sociedade

    desaparecidas. (G, p. 25-26; trad. loc.cit., p. 120). 66

    Assim como a universalizao do trabalho assalariado transforma o trabalho, enquanto atividade

    concreta, em atividade indiferente ao trabalhador, tornando praticamente verdadeira a abstrao da categoria trabalho em geral. (G, p. 25; trad. loc.,cit., p. 120).

  • manifestao das relaes sociais dominadas pelo universo real do valor, pode

    coincidir, assim, com o movimento efetivo do capital enquanto abstrao in actu.

    Aqueles que consideram a abstrao do valor como uma mera abstrao esquecem que

    o movimento do capital esta abstrao in actu (K, II, 109). Neste sentido pode-se

    dizer, provocativamente, [41] que a subjetivao do valor como capital e a sua expanso

    histrica e sistemtica tornaram o realismo ontolgico de Hegel um sistema cifrado das

    relaes sociais capitalistas, permitindo a Marx extrair da metafsica do concerto

    hegeliana o caroo racional de uma dialtica materialista. O idealismo de Hegel a

    sociedade burguesa enquanto ontologia.67. Portanto o recurso a um diagnstico

    histrico para legitimar a dialtica dO Capital no a invocao dogmtica de um fato,

    de uma determinada compreenso do presente no quadro de uma teoria da histria, que

    pretende ser apenas a reconstruo lgica das etapas e modos de organizao

    econmico-social que conduziram a este presente, e que tem nele o seu horizonte a

    resoluo revolucionria e no especulativa da contradio real da relao de produo

    burguesa , o seu paradigma de inteligibilidade.

    67

    Reichelt, H., Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei K. Marx, Europische Verlaganstalt,

    Frankfurt/M., 1970, p. 80.