MOSAICOS DE SABERES: mídia, educação e circularidade de saberes

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A partir da primeira metade do século XIX, houve uma aceleração nas formas de circulação de saberes, bem como a pluralização de dispositivos de acesso aos mesmos. No século XX, o fenômeno culminou na revolução digital quetem perpassado as tecnologias e os meios de comunicação na contemporaneidade, a despeito da insuficiência teórica para compreender o objeto em questão. Tendo em vista essas considerações, o presente artigo tem por objetivo analisar algumas das relações entre a cultura midiática e a educação, buscando transcender certas posturas reducionistas que consideram a mídia em sua dimensão apocalíptica, segundo o semioticista italiano Umberto Eco, rejeitando-a em suas possíveis dimensões pedagógicas.

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    MOSAICOS DE SABERES: mdia, educao e circularidade de saberes

    Richard Gonalves Andr

    Resumo: A partir da primeira metade do sculo XIX, houve uma acelerao nas formas de circulao de saberes, bem como a pluralizao de dispositivos de acesso aos mesmos. No sculo XX, o fenmeno culminou na revoluo digital que tem perpassado as tecnologias e os meios de comunicao na contemporaneidade, a despeito da insuficincia terica para compreender o objeto em questo. Tendo em vista essas consideraes, o presente artigo tem por objetivo analisar algumas das relaes entre a cultura miditica e a educao, buscando transcender certas posturas reducionistas que consideram a mdia em sua dimenso apocalptica, segundo o semioticista italiano Umberto Eco, rejeitando-a em suas possveis dimenses pedaggicas. Como resultado, sugere-se que, independentemente desses reducionismos, os saberes miditicos desempenham papis educativos ainda que suas finalidades no sejam necessariamente pedaggicas, como indicam as culturas reconstrudas fora dos espaos escolares. Isso demanda por uma apropriao reflexiva da mdia pelo campo educacional. Palavras-chave: Mdia. Educao. Circularidade. Saberes.

    [...] A escola acredita estar educando, quando o que, na verdade, est fazendo castrar culturalmente essas crianas. [...] Uma escola incapaz de assumir essa criatividade, e menos ainda de potenci-la, incapaz de diferenciar entre as lgicas do oral e do escrito, que impe apenas uma lgica, destruindo, talvez para sempre, toda a possibilidade de que na vida desses garotos e garotas haja criatividade. [...] (Jess Martn-Barbero)

    1. Prlogo

    A partir da primeira metade do sculo XIX, surgiram novas formas de

    produo e circulao de saberes. A fotografia, cujos primeiros dispositivos foram

    criados na dcada de 1840, permitiu que imagens fossem reproduzidas para alm

    da pea nica que caracterizava a pintura, alm de ser criada em tempos cada vez

    menores quando comparada s produes dos pintores (BENJAMIN, 2000). No

    dizer do socilogo alemo Walter Benjamin (1994), a obra de arte entraria na era da

    reprodutibilidade tcnica, o que levaria a prpria noo de arte a ser repensada de

    forma profunda. No decorrer do sculo XX, o processo de midiatizao da cultura

    seria desenvolvido. O rdio passou a transcender certas fronteiras espaciais,

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    levando as transmisses sonoras ao seio dos lares, como propagandas, notcias e

    radionovelas, no tendo sido coincidncia seus usos polticos no perodo

    (LENHARO, 1986). Posteriormente, a televiso tambm levou as imagens em

    movimento concebidas pelo cinema para as casas, transcendendo o carter esttico

    das fotografias e criando uma noo de temporalidade fluda da narrativa visual

    (MACHADO, 1984), no obstante a existncia de cortes de cenas e edies.

    No bojo dessas transformaes, a revoluo digital a partir da dcada de

    1980 levou as noes de reprodutibilidade e acessibilidade aos extremos, abarcando

    no apenas mdias como a fotografia, o rdio e a televiso, mas envolvendo outros

    dispositivos como os computadores e a Internet de forma articulada e flexvel,

    permitindo o fenmeno denominado transmdia. A notcia, por exemplo, de uma

    catstrofe natural passou a ser divulgada mundialmente em poucos segundos,

    tornando a informao que sairia no dia seguinte nos jornais impressos defasada.

    Ao mesmo tempo, o acesso aos dados pode ser feito em dispositivos como laptops,

    tablets e celulares, permitindo, alm disso, a consulta de links que levam a outras

    informaes correlacionadas, constituindo um saber complexo e intrincado em redes

    no apenas de hardwares, mas, acima de tudo, de saberes. A circulao foi

    maximizada, tambm, pelo feedback possibilitado ao usurio que no somente

    recebe os dados, mas interage com os mesmos por intermdio de comentrios,

    imagens e compartilhamentos em espaos virtuais como as redes sociais.

    Paralelamente a esses saberes difusos, velozes e interativos, a escola

    permanece fundamentada num modelo tradicional de conhecimento que pouco

    responde aos problemas e questes do mundo contemporneo1. Em primeiro lugar,

    a fonte de saber legitimada nas instituies escolares continua sendo a linguagem

    verbal (MARTN-BARBERO, 2008), abarcando principalmente a escrita e a

    oralidade, rejeitando ou marginalizando outras matrizes lingusticas como a imagem

    e o som (SANTAELLA, 2005). Em segundo lugar, baseado no paradigma cientfico

    cartesiano-newtoniano, o ensino, malgrado as tentativas recorrentemente frustradas

    de inter e transdisciplinaridades, permanece reducionista e, portanto, fracionado em

    disciplinas que no se comunicam entre si e, tampouco, com os dilemas que

    transcendem os muros escolares. Por fim, corolrio da afirmao anterior, a

    1 Compreende-se, no presente artigo, principalmente a escola brasileira contempornea, embora algumas das implicaes aqui discutidas possam ser, com a devida cautela, aplicadas a outras situaes.

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    educao tem sido cognitivista e racionalista, alada na mxima cartesiana penso,

    logo existo, relegando a afetividade e a emoo a segundo plano (PINA, 2012). No

    obstante todas as transformaes nas formas de produo e circulao de saberes,

    a escola pouco mudou em seus fundamentos desde o sculo XIX.

    Tendo em vista essas questes, este artigo tem por objetivo analisar as

    relaes entre a mdia e a educao, demonstrando que o desenvolvimento

    miditico nos dois ltimos sculos tem permitido uma circularidade de saberes que,

    mesmo no sendo fundamentados nas instituies escolares, possuem carter

    educacional ainda que no tenham o objetivo de s-lo (SILVA, 2009). Sugere-se que

    a mdia, considerada de forma reducionista por certos pais, professores e mesmo

    especialistas como a fonte das mazelas sociais e do fracasso do ensino, pode ser

    apropriada de forma reflexiva pela escola, pensando numa educao para e com as

    mdias, como indicam tericos da educomunicao como Monica Fantin e Gilka

    Girardello (2009). vlido ressaltar que o presente texto sintetiza as reflexes

    parciais da pesquisa institucional Mosaicos de Saberes: Interfaces Entre

    Comunicao, Linguagens e Educao, desenvolvida na Universidade Estadual de

    Maring entre 2011 e 20122.

    2. Saberes em rede

    A revoluo digital maximizou os dois pilares bsicos sobre os quais as

    mdias comearam a se desenvolver desde o advento da fotografia: a

    reprodutibilidade e a acessibilidade. Em relao ao primeiro elemento, preciso

    ressaltar as transformaes no tocante ao suporte fsico que permite a veiculao

    das linguagens. Nos sculos XIX e XX, a imagem fotogrfica dependia,

    basicamente, da existncia de um negativo e de uma cpia positiva geralmente

    impressa em papel. Esta, por sua vez, poderia estampar a publicidade de revistas,

    fotos de primeira pgina em jornais ou, de forma mais familiar, adornar porta retratos

    e lbuns de infncia. Com a fotografia digital, embora o suporte tradicional no tenha

    desaparecido, a imagem passa a ser constituda por uma srie de cdigos

    matemticos articulados (lembrando que a palavra digital vem de dgito, em

    2 Agradeo s prolficas discusses realizadas com Ana Cristina Teodoro da Silva, amiga e colega de pesquisa, e com meus alunos e orientandos, especialmente Adrily da Silva Santos, ao longo do perodo em que estive vinculado como professor Universidade Estadual de Maring (UEM).

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    francs numrique) que podem ser decodificados por dispositivos que contenham

    softwares adequados, como celulares, tablets, computadores, videogames, porta

    retratos digitais, entre outras possibilidades (SANTAELLA; NTH, 2008). O mesmo

    parece estar acontecendo com as msicas (do vinil ao mp3), os filmes (das fitas

    cassete aos avi) e jogos eletrnicos (dos cartuchos aos arquivos). A digitalizao

    das informaes permite que a reprodutibilidade seja levada aos extremos, j que

    um nico vdeo, por exemplo, pode ser visto no computador, copiado num pendrive

    ou armazenado nas nuvens3, multiplicado ad infinitum e consumido por milhares de

    usurios rpida e concomitantemente, o que afeta tambm o segundo elemento do

    pilar, a acessibilidade. Havendo dispositivos tcnicos e conhecimento para

    manuse-los, o acesso se torna mais rpido que nunca. Por isso, a imprensa,

    embora no tenha abandonado o formato celulide, foi obrigada a repensar suas

    formas de divulgao, disponibilizando certas informaes tambm por meio de

    arquivos digitais.

    Os dispositivos ligados era digital, alm de maximizarem a reprodutibilidade

    e a acessibilidade, permitem algo que, embora existente nas mdias analgicas,

    possua carter limitado: a possibilidade de interao, agora em tempo real, o que

    caracteriza a chamada Web 2.0 (SILVA, 2012). Como ser discutido adiante, os

    usurios no permanecem passivos em relao s mltiplas linguagens miditicas,

    na medida em que constroem leituras subjetivas acerca das mesmas, ainda que

    historicamente situadas. Entretanto, dispositivos em era analgica como a televiso

    e o rdio apenas de forma limitada permitiam o retorno por parte de telespectadores

    e ouvintes, que difcil e demoradamente encontravam eco entre os produtores. Os

    dispositivos digitais, por outro lado, permitem que esse feedback seja realizado de

    forma fcil e rpida. A ocupao, por exemplo, das polcias brasileiras em relao ao

    Complexo do Alemo no Rio de Janeiro em 2011 no foi apenas divulgada pelos

    rgos oficiais de imprensa, como tambm por intermdio de blogs de moradores

    que compartilhavam suas interpretaes do fenmeno, utilizando, tambm, as redes

    sociais como o Twitter e o Facebook para isso. vlido lembrar que tais

    mecanismos permitem tambm o comentrio de outros usurios, gerando uma

    retroalimentao de informaes de modo instantneo. Outro exemplo so os 3 O armazenamento nas nuvens permite que seja feito o upoload dos arquivos automaticamente, de forma que possa ser baixado em outro dispositivo com acesso Internet, dispensando, portanto, suportes fsicos como os pendrives. Enquanto escrevo este artigo, o arquivo est armazenado nas nuvens. Se perd-lo em meu computador, posso baix-lo em outro.

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    gamers, que no mais se entretm com os jogos eletrnicos de forma solitria em

    casa, mas tambm jogam com outros usurios, amigos ou annimos, em escala

    global.

    Portanto, embora a revoluo digital tenha maximizado os pilares bsicos da

    cultura midiatizada, isto , a reprodutibilidade e a acessibilidade, tambm abriu

    novas veredas comunicacionais como a possibilidade de feedback de modo fcil e

    instantneo. Alm disso, a natureza das mdias digitais, bem como a relao

    desenvolvida entre elas e seus usurios, parece ter carter distinto quando

    comparada quelas existentes em era analgica. No coincidncia que autores

    como Lucia Santaella e Winfried Nth (2008) caracterizem os dispositivos e produtos

    digitais no interior de um novo modelo comunicacional denominado paradigma ps-

    fotogrfico, no qual, entre outras caractersticas, inexistiria a noo de

    referencialidade entre o objeto da representao e a linguagem em si, tratando-se,

    antes, de uma auto-referencialidade. De qualquer forma, a discusso foge aos

    objetivos do presente artigo, embora se perceba que os referenciais epistemolgicos

    clssicos, no obstante ofeream pistas para pensar a revoluo digital, so

    insuficientes para possibilitar sua compreenso de forma minimamente adequada. O

    fenmeno ainda historicamente recente e permite, por ora, apenas uma avaliao

    intuitiva, malgrado o esforo de autores como Antonio Fatorelli (2006), que aborda a

    questo da fotografia digital.

    Um dos traos fundamentais da era digital, elemento ironicamente lacunar na

    cultura escolar contempornea, o carter no compartimentalizado das mdias. De

    certa forma, tudo est conectado: como afirmado, na Internet h uma multiplicidade

    de links que permitem a confluncia de informaes, permitindo que o usurio

    aprofunde determinados conhecimentos e, portanto, navegue na rede. Esse o

    caso, por exemplo, das wikis (SILVA FILHO, 2009) como a Wikipdia, a enciclopdia

    virtual alimentada continuamente pelos internautas. Alm disso, no se trata apenas

    da conexo entre dados, mas tambm de dispositivos. Celulares, tablets, laptops,

    desktops, videogames, cmeras fotogrficas, Ipads, Ipods, filmadoras, entre outros

    instrumentos, permitem que imagens, msicas, vdeos, jogos eletrnicos, textos e

    outras linguagens se cruzem na malha do ciberespao. Durante a era analgica,

    essas estruturas lingusticas haviam comeado a confluir, como era o caso do

    cinema, mas havia uma srie de obstculos tecnolgicos que dificultavam o

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    processo. Com a revoluo digital, a sobreposio e, mais que isso, a fuso

    lingustica tornou-se possvel. Como afirmam Santaella e Nth (2008, p. 69), [...] o

    cdigo hegemnico deste sculo no est nem na imagem, nem na palavra oral ou

    escrita, mas nas suas interfaces, sobreposies e intercursos [...].

    Por isso, insuficiente tentar compreender o fenmeno miditico

    contemporneo a partir do paradigma cientfico newtoniano-cartesiano que,

    fundamentado no reducionismo em partes no comunicantes (CAPRA, 2002), no

    concebe os cortes transversais que perpassam os diferentes tipos de saberes e

    linguagens. Por outro lado, a teoria da complexidade4 apresentada pelo

    antroplogo francs Edgar Morin (1979), ainda que no permita compreender em

    sua totalidade as mdias contemporneas, oferecem um repertrio para comear a

    pens-las justamente em sua complexidade ao invs de reduzi-las a uma caricatura

    simplificadora. No coincidncia que a prpria noo de complexidade, segundo

    Morin, tenha como base a ciberntica e a teoria da informao, construdas a partir

    de partes conectadas que formam um sistema mais ou menos auto-organizado, no

    obstante certo nvel de desorganizao seja essencial para sua organizao, numa

    relao tensa entre organizao e desorganizao, ordem e caos. Como afirma o

    antroplogo norte-americano Clifford Geertz (2008, p. 32),

    [...] precisamos procurar relaes sistemticas entre fenmenos diversos, no identidades substantivas entre fenmenos similares. E para consegui-lo com bom resultado precisamos substituir a concepo estratigrfica das relaes entre os vrios aspectos da existncia humana por uma sinttica, isto , na qual os fatores biolgicos, psicolgicos, sociolgicos e culturais possam ser tratados como variveis dentro dos sistemas unitrios de anlise. [...]

    Portanto, como afirma Martn-Barbero (2008), os saberes que so produzidos

    e circulam nas mdias demandam por um modelo de conhecimento de carter lgico

    simblico que, transcendendo a perspectiva reducionista fundamentada no

    paradigma newtoniano-cartesiano, compreenda a cultura miditico como algo

    integrado e complexo. A metfora para esse tipo de conhecimento seria justamente

    a rede, a teia ou mesmo os neurnios, compostos por fios que se entrecruzam num

    4 A rigor, a complexidade no pode ser codificada numa teoria, pelo menos em termos clssicos, j que isso pressuporia um conjunto articulado de conceitos que permitiriam compreender as estruturas de determinados fenmenos. Agradeo, nessa questo, s consideraes de Jos Aparecido Celorio.

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    sistema de informaes que circulam de praticamente todas as direes, sem

    hierarquias determinadas. Diante do quadro comunicacional que comeou a se

    desenvolver desde o sculo XIX, pode-se afirmar que o eixo sobre o qual se

    fundamentou a noo de autoridade do saber, a linguagem verbal, sobretudo escrita,

    foi descentralizada (MARTN-BARBERO, 2008). Isso no quer dizer, numa

    perspectiva apocalptica, que o verbo perdeu importncia e que o livro, por exemplo,

    inclusive em sua materialidade fsica, apresente tendncia a desaparecer diante de

    outras matrizes lingusticas e de diferentes dispositivos de leitura como os tablets.

    Mesmo em face dos desenvolvimentos tecnolgicos nos ltimos trinta anos, o

    mercado editorial baseado no papel permanece crescendo, abarcando tambm o

    pblico infanto-juvenil que, teoricamente, do ponto de vista saudosista, estaria

    perdendo o gosto pela leitura e pela escrita, o que pode ser problematizado de

    diferentes formas, embora no constitua objeto do presente artigo. Atualmente, a

    linguagem verbal no perdeu importncia, mas encontra-se lado a lado a outras

    matrizes lingusticas como a imagem e o som, que no devem ser consideradas

    formas secundrias ou ilustrativas de expresso, mas, justamente, mecanismos

    comunicacionais to importantes quanto a palavra e que, como Santaella e Nth

    (2008) sugerem, encontram-se entrelaadas de forma indissocivel nas mdias

    contemporneas.

    Isso possui trs implicaes importantes, atinadas por tericos como Martn-

    Barbero (2008). Em primeiro lugar, possvel construir conhecimentos no apenas a

    partir da palavra falada ou escrita, mas tambm de outras matrizes lingusticas,

    mesmo aquelas no legitimadas pela tradio. O indivduo pode aprender, por

    exemplo, por intermdio de jogos eletrnicos, filmes, programas televisivos, msicas,

    softwares, entre outras possibilidades, que no precisam ser necessariamente

    educativos para que o processo gere aprendizagem. No se discute aqui a

    qualidade do que foi aprendido, mas o aprendizado propriamente dito. Como

    ressalta Ana Cristina Teodoro da Silva (2009, p. 13),

    [...] um filme pode ter sido produzido como entretenimento. Foi assistido, ocorreu alguma comunicao. Caso o leitor do filme tenha exercido reflexo ao conectar suas experincias com as narrativas do filme, ocorreu aprendizado. Ou seja, processos educativos nem sempre so intencionais. [...]

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    A aprendizagem demanda reflexo, como indica a autora. De qualquer forma, ele

    no se d de forma exclusiva por intermdio da linguagem verbal.

    A segunda implicao que o saber pode ser construdo fora dos espaos

    legitimados pela tradio. Antes de chegar escola, o aluno carrega uma bagagem

    de experincias e elementos culturais muitas vezes ignorados pelos profissionais da

    educao. Isso no surgiu com o fenmeno miditico, uma vez que mesmo as

    vivncias aparentemente mais banais constituem fonte de aprendizado. O socilogo

    e educador brasileiro Paulo Freire j havia demonstrado como os saberes de

    cortadores de cana poderiam ser cooptados como ferramentas intelectuais para sua

    alfabetizao. O que distinto na atualidade que, com a articulao da rede

    miditica, informaes disponveis sobretudo em formato livresco passaram a diluir-

    se em meio s diferentes mdias, que tm se tornado cada vez mais acessveis.

    Mais que nunca, o postulado de Freire (2000) segundo o qual o professor no pode

    considerar-se o nico sujeito pedaggico importante, porquanto os alunos

    cheguem sala de aula imbudos de um saber que no pode ser subestimado, o

    que no diminui a importncia do docente no processo de (re)construo do

    conhecimento.

    A terceira implicao, corolrio da anterior, que os tempos legitimados pela

    tradio para a aprendizagem devem ser repensados. No h mais, como talvez a

    rigor nunca tenha havido, a distino entre o tempo de aprender, voltado para o

    perodo em que o aluno se encontraria cercado pelas quatro paredes da sala de

    aula, e o tempo de entretenimento. O indivduo pode construir conhecimentos

    enquanto joga games, ouve msicas ou trabalha no computador, mesmo que no

    tenha conscincia do processo. A afirmao, tal como a anterior, tambm no

    nova: os tericos da educao, como Jean Piaget e Lev Vygotsky, a partir de

    diferentes perspectivas epistemolgicas, j haviam demonstrado como as mltiplas

    formas de brincadeiras desenvolvidas pelas crianas desde tenra idade seriam

    tambm educacionais (GUARIDO, 2012). Entretanto, atualmente as mdias permitem

    que os tempos mais ou menos delimitados da vida se confundam, no reservando o

    aprendizado apenas mdia de quatro horas em que o sujeito permanece sentado

    nos bancos escolares. No coincidncia que hoje as pessoas se surpreendam

    com as crianas e os adolescentes, classificados como gerao Y, que,

    teoricamente, saberiam naturalmente operar as novas mdias. preciso considerar

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    que esses indivduos encontram-se imersos nas tecnologias digitais desde o

    nascimento, fazendo delas seu meio ambiente comunicativo. Alm disso, pode-se

    afirmar que o tempo da aprendizagem fora dos espaos pedaggicos no mais

    linear, dotado de comeo, meio e fim, mas descontnuo e, portanto, repleto de

    rupturas, o que apresenta uma semelhana com a desconstruo das narrativas

    clssicas que tem ocorrido em gneros como a literatura e o cinema, o que foge, no

    entanto, aos limites da presente reflexo.

    3. Saberes em gavetas

    Paralelamente a esse universo miditico que tem diludo as fronteiras

    espaciais e temporais, a escola contempornea permanece, ironicamente,

    fundamentada num modelo tradicional que apresenta mudanas lentas que se

    inserem numa mdia ou longa durao. Ou seja, o ritmo de transformao das

    mdias e das instituies escolares apresenta descompassos significativos. Uma das

    mais cidas denncias sobre a insuficincia escolar vem, ironicamente, das histrias

    em quadrinhos (HQ). As tiras da personagem Mafalda, concebida pelo quadrinista

    argentino Joaqun Salvador Lavado (1993), mais conhecido como Quino, tm como

    objeto de humor justamente a educao. Mafalda uma criana precoce que aborda

    de forma crtica as questes de seu tempo, inclusive ridicularizando a torpeza das

    instituies de ensino que se encontravam desconectadas dos problemas sociais,

    polticos, econmicos, ecolgicos e culturais existentes na poca. Mesmo hoje as

    tiras protagonizadas pela personagem causam riso entre leitores brasileiros, o que,

    apesar de sugerir a riqueza da obra, no deixa de causar certo desconforto crtico,

    na medida em que as histrias foram criadas na dcada de 1960 e finalizadas pelo

    autor nos anos 1970, conjuntura em que a sociedade argentina encontrava-se

    marcada pelo estado militar. Esse riso sintoma de que, no obstante os

    aproximadamente quarenta anos desde o fim da produo de Mafalda e apesar das

    diferenas entre o Brasil e a Argentina, os leitores brasileiros identificam de alguma

    forma elementos educacionais que pouco mudaram ao longo do tempo,

    permanecendo, portanto, risveis. Caso contrrio, no haveria riso, mas

    estranhamento.

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    Em contraposio complexidade das mdias, a escola contempornea

    permanece calcada no paradigma newtoniano-cartesiano, tendo como fundamento,

    entre outras questes, o chamado reducionismo cientfico (CAPRA, 2012; KCHE,

    1997). Sua fragilidade constitui a compreenso dos fenmenos como dotados de

    partes, desde as mais simples s complexas, que no se comunicam entre si de

    forma transversal. O primeiro sintoma disso nas instituies atuais de ensino refere-

    se dicotomia entre razo, por um lado, e os aspectos afetivo-emocionais, por

    outro. Valoriza-se demasiadamente a dimenso cognitiva dos alunos,

    marginalizando o universo afetivo e emocional (MARTN-BARBERO, 2008) que, a

    rigor, constituem um todo complexo na estrutura dos indivduos. Essa educao

    cerebrista manifesta-se, por exemplo, na valorizao de disciplinas que demandam

    pelo raciocnio lgico, como a matemtica, marginalizando matrias de carter

    subjetivo como artes e msica periferia do conhecimento escolar. No casual

    que os clssicos testes de QI fossem realizados a partir de critrios baseados na

    inteligncia lgica, desconsiderando outras formas e estruturas de pensamento

    como as inteligncias emocional e motora. De forma tradicional, o importante nas

    escolas que os alunos saibam ler, escrever e contar. Por esse motivo, geralmente,

    as disciplinas que reprovam so portugus e matemtica, constituindo as demais

    algo secundrio quando comparadas s primeiras. Mesmo as escolas mais

    teoricamente inovadoras que adotam matrias como msica oferecem-nas no contra

    turno, voltado para atividades de carter recreativo, e prescindindo de profissionais

    com o mnimo de especializao para ministr-las (MOREIRA, 2012).

    Corolrio da questo anterior, a escola permanece fundamentando a

    autoridade do saber na palavra falada e, principalmente, escrita (MARTN-

    BARBERO, 2008). Embora as linguagens de naturezas sonora, visual e corporal

    tenham sido cooptadas, elas ocupam lugares e tempos marginais na disposio do

    conhecimento escolar em termos de grade curricular, peso e tempo dedicado s

    disciplinas. Isso sintoma no apenas de uma sociedade estruturada a partir de

    uma lgica reducionista, como tambm de uma concepo logocntrica do saber

    que no responde mais aos dilemas da contemporaneidade. No Ocidente, o advento

    da escrita foi considerado ruptura que marca o fim da pr-histria, que no havia

    deixado vestgios escritos (apenas imagens e artefatos da cultura material), e o

    incio da histria propriamente dita que teria adentrado nas malhas sgnicas do verbo

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    (ver crtica noo em MONIOT, 1995). O livro passou a ser considerado a fonte por

    excelncia do conhecimento, ou pelo menos daquele concebido como verdadeiro.

    Por isso, do ponto de vista de historiadores ligados Escola Metdica (BOURD;

    MARTIN, 1983) e ao historicismo alemo (REIS, 1995) nos sculos XIX e XIX, os

    nicos registros dotados de autoridade verdadeira seriam os documentos escritos,

    principalmente oficiais. Nesse contexto cultural, a escola erigiu o livro, especialmente

    os manuais didticos, como fontes do saber legtimo. Linguagens visuais e sonoras

    so utilizadas apenas marginal e insuficientemente, ilustrando o conhecimento

    construdo por intermdio da palavra ou apenas tapando o buraco de fins de ano

    letivo, quando o professor passa filmes, geralmente desconectados de qualquer

    finalidade pedaggica, porque no h mais nada para dar (como se o aluno

    apenas recebesse conhecimento, como critica Freire [2000]). Esse logocentrismo

    escolar, como afirmado, insuficiente para compreender a pluralizao lingustica

    que perpassa a sociedade desde o sculo XIX, lembrando que no se trata mais de

    mdias diversas, mas de mdias convergentes que no permitem ao usurio o

    domnio somente de uma forma de linguagem, mas de seus cruzamentos

    complexos.

    Alm do cognitivismo e do logocentrismo, as diferentes disciplinas escolares

    tm se mostrado incapazes de comunicar-se entre si, no sendo criados

    mecanismos para que as questes sejam discutidas de fato transversalmente.

    Apenas pontualmente objetos como a ecologia e a sexualidade tm sido alvo de

    preocupaes inter, multi e transdisciplinares, inclusive de forma insuficiente e

    ineficiente, quando, em essncia, a prpria estrutura das instituies de ensino, bem

    como o paradigma cientfico sobre o qual se fundamentam, deveriam ser

    repensados a partir da lgica da complexidade. Apesar do quadro em questo,

    documentos como os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN, BRASIL, 1998), no

    obstante as crticas realizadas sobre os mesmos (ver, por exemplo, SOARES, 2002),

    tm chamado a ateno para a necessidade de transcender o modelo reducionista

    do conhecimento escolar, atinando para os cortes transversais que perpassam as

    diferentes abordagens. Porm, essas propostas esbarram diante de instituies de

    ensino estruturadas ao longo de sculos a partir de um arqutipo reducionista,

    fragmentrio e no comunicante. Se a metfora para o saber miditico a rede,

    como visto, a imagem para o conhecimento escolar permanece sendo a cmoda,

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    dividida em vrias gavetas... fechadas. Isso no responsabilidade apenas da

    escola, tratando-se, antes, de um trao que marca um paradigma cientfico que

    apresenta sinais de crise desde, pelo menos, o incio do sculo XX (SANTOS,

    1988). De qualquer modo, ela no pode ser considerada apenas foco refletor das

    estruturas sociais e culturais, como queria a noo althusseriana de aparelho

    ideolgico de Estado, mas tambm instrumento de mudana. Da a necessidade de

    comear a pensar em quebrar a camada solidificada de um modelo de saber

    inorgnico e inoperante.

    As gavetas que representam as disciplinas escolares refletem (ou seriam

    refletidas? O jogo de espelhos talvez seja complexo) a prpria estrutura fsica das

    escolas, cuja disposio panptica foi analisada pelo filsofo francs Michel Foucault

    (1987) ao abordar os dispositivos prisionais. A clula das instituies de ensino a

    sala de aula, em cuja frente encontra-se o professor, s vezes elevado por meio

    de um pequeno tablado, delimitando espacial e hierarquicamente as relaes de

    saber poder, dimenses articuladas segundo o prprio Foucault (1979). Os alunos

    encontram-se divididos em fileiras que no devem comunicar-se, embora seja

    considerado insulto quando os indivduos acabam conversando. As aulas so

    divididas, em geral, por sinais sonoros que, alm disso, indicam o toque de entrada,

    recreio e sada em horrios determinados. As salas, por sua vez, so discriminadas

    por sries. A escola em si envolta por muros, semelhantes s cidades medievais, e

    portes fechados por meio dos quais difcil entrar e sair, exceto nos momentos

    determinados. H ptios para recreao e alimentao, bem como quadras

    poliesportivas reservadas s atividades fsicas. Os discentes devem trajar uniformes

    que, alm de discriminar os insiders dos outisders, buscam camuflar sua

    sexualidade. No se deve usar bon, segundo uma noo de etiqueta existente h

    sessenta anos, e nem mascar chiclete, o que tornaria a aprendizagem mais lenta.

    No obstante as mudanas superficiais, geralmente com pinturas de muro mais

    alegres quando comparadas s cores acinzentadas de vinte anos atrs, a

    constituio arquitetnica escolar aparenta ter se transformado pouco ao longo das

    dcadas. Com o perdo das adjetivaes, incrvel como as instituies de ensino

    se parecem com os crceres circunscritos por Foucault. Talvez mais que uma

    questo de aparncia, trata-se do compartilhamento de uma mesma estrutura de

    organizao espacial, voltada para o agrupamento, a discriminao, a vigilncia e

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    todo o sistema de recompensas e punies tpico das escolas contemporneas.

    Essas caractersticas levam ciso, fsica e intelectual, do domnio escolar em

    relao ao mundo real. Como reza o ditado, o que acontece em Las Vegas fica em

    Las Vegas. Parafraseando, o que se aprende na escola fica na escola.

    Portanto, a escola tem apresentado traos reducionistas, sustentando

    dualismos entre a cognio e o afeto, a palavra e as outras linguagens, as

    disciplinas que no se comunicam e, entre outras questes, a prpria estrutura fsica

    das instituies de ensino que so marcadas por espaos e tempos disciplinares de

    natureza panptica. Diante desse quadro, a mdia constitui o outro que sublinha a

    imagem da insuficincia e da ineficcia escolar, na medida em que, contrariamente

    s caractersticas citadas, seria complexa do ponto de vista lingustico, cortada

    transversalmente por uma rede de informaes que no dependem dos rigores de

    um dispositivo panptico praticamente anacrnico. Isso no quer dizer que as mdias

    no apresentem problemas, como a questo do consumismo, mas o fato que, de

    forma geral, a escola e os educadores tm assumido duas posies diante do

    fenmeno miditico. Em primeiro lugar, as mdias tm sido rejeitadas como fonte de

    subverso do conhecimento escolar e das prprias regras de sociabilidade, sendo

    responsveis, por exemplo, pelo desinteresse dos alunos e pelos comportamentos

    violentos, desconsiderando uma srie de outras variveis que poderiam lanar

    algumas luzes sobre os dilemas que afligem a educao. A mdia tornou-se o bode

    expiatrio simplista para a explicao das mazelas da sociedade contempornea,

    sendo alienadora e massificadora (ver, nesse sentido, NEGRO; SESTITO, 2009;

    TERUYA, 2005), defendendo ideologicamente os interesses do capital, concebido

    de forma abstrata e, portanto, sem nome e forma definidos. Segundo essa tica, ela

    converteu-se em entidade autoconsciente que agiria em nome do capital

    independentemente de grupos humanos que a produzem, circulam e consomem. Ela

    e o capitalismo seriam leviats, utilizando a metfora de Thomas Hobbes, que

    pairariam sobre as cabeas dos homens independentemente da prpria histria.

    Outra posio, de certa forma relacionada anterior, seria a cooptao das

    mdias para fins pedaggicos diante das rpidas transformaes comunicacionais

    nos ltimos dois sculos. Os prprios Parmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,

    1998) tm apontado para a necessidade de utilizar as novas tecnologias nas

    escolas, seja como instrumento pedaggico ou mesmo objetos de anlise. O Estado

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    do Paran, por exemplo, implantou nas escolas pblicas h alguns anos a chamada

    TV Pendrive, permitindo, teoricamente, o uso de recursos audiovisuais de forma

    simples e rpida. Todavia, na prtica, os educadores tm lanado mo de maneira

    tmida ou ilustrativa desses recursos em sala de aula. Em parte, talvez, devido

    prpria desconfiana em relao s mdias, como discutido. Por outro lado, os

    cursos de licenciatura tm investido pouco na capacitao (trata-se, antes, da

    formao de competncias) para lidar com essas mdias. No curso de Pedagogia da

    prpria Universidade Estadual de Maring, somente para citar um exemplo, embora

    haja duas disciplinas voltadas para a discusso do universo comunicacional e

    miditico, elas ocupam posio perifrica na grade curricular, possuindo pouca

    carga horria, sendo semipresenciais (exigindo a presena dos professores em sala

    de aula apenas no primeiro e ltimo encontro) e praticamente desconectadas das

    outras disciplinas (afinal, o reducionismo disciplinar tambm envolve os cursos de

    ensino superior). Dessa forma, no obstante a integrao desigual dos recursos e

    das discusses miditicas no ensino, a saliva, o giz, o livro didtico e os contedos

    programticos tradicionais continuam sendo os mtodos e os objetos de reflexo

    privilegiados no contexto escolar.

    4. A rejeio da mdia

    Como visto, de forma geral, a escola na atualidade rejeita a mdia,

    compreendendo-a como fonte de subverso da ordem social e do conhecimento

    legitimado pela tradio, ou dela apropria-se de maneira tmida e insuficiente.

    Entretanto, a rejeio ao universo miditico transcende os espaos fsicos,

    institucionais e intelectuais escolares, na medida em que suas implicaes

    encontram-se ancoradas em teorias sociolgicas que, a despeito das crticas

    realizadas, ainda possuem peso na contemporaneidade. Embora a perspectiva no

    possa ser circunscrita apenas a uma linhagem terica, alguns intelectuais ligados

    chamada Escola de Frankfurt, como Benjamin (2000) e Theodor Adorno (1986),

    desempenharam papel significativo na crtica s mdias. Segundo eles, a

    possibilidade de reprodutibilidade tcnica transformaria o estatuto da obra de arte a

    partir do sculo XIX. At ento, o artefato artstico seria pea nica, dotada

    intimamente do valor afetivo e econmico atribudo pelo artista, sendo vista apenas

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    em lugares e tempos circunscritos, como nas galerias dos museus ou nos acervos

    privados. O desenvolvimento tcnico e tecnolgico que levou ao potencial de

    reprodutibilidade, por outro lado, problematizou a questo da pea nica. Na

    segunda metade do sculo XIX, os cartes de visita, criados e popularizados pelo

    fotgrafo francs Eugne Disdri (FABRIS, 2004), permitiram que a fotografia fosse

    amplamente reproduzida, pelo menos segundo os padres de poca, por intermdio

    de cpias que eram distribudas pelo fotografado. A arte teria perdido sua aura de

    unicidade, utilizando o conceito de Benjamin, adentrando nas malhas industriais que

    teria abarcado tambm a cultura, constituindo, portanto, a prpria indstria cultural.

    Ao invs de conceber obras com potencial reflexivo, essa indstria simplificaria e

    padronizaria as ideias por meio de pastiches culturais destitudos de verve crtica e

    transformadora, criando objetos de consumo alienadores voltados para as massas

    desinteressadas no engajamento poltico e social.

    As mdias passaram a ser vistas como instrumentos de controle social ou

    dispositivos de deturpao das regras de sociabilidade, porquanto fossem capazes

    de determinar comportamentos de seres alienados aos mecanismos de dominao

    da sociedade capitalista. Isto , tornaram-se bodes expiatrios para a explicao das

    mazelas sociais, ignorando outras variveis importantes. Em 1954, o psicanalista

    alemo radicado nos Estados Unidos Fredric Wertham publicou o livro intitulado

    Seduo dos Inocentes, no qual criticava as histrias em quadrinhos como os

    motivos para a delinquncia juvenil de seu tempo. Segundo ele, as HQ do Super

    Homem, por exemplo, poderiam levar as crianas a jogarem-se das janelas

    pensando que tambm seriam capazes de voar. Os quadrinhos do Batman, por sua

    vez, incentivariam o homossexualismo ao representar o sonho de um casal de

    homossexuais, teoricamente Batman e Robin, vivendo sob o mesmo teto

    (VERGUEIRO, 2009), o que teria fortes implicaes na conservadora sociedade

    norte-americana dos anos cinquenta. As ideias de Wertham, bem como a indignao

    da sociedade civil em relao aos supostos malefcios dessa tipologia de literatura

    infanto-juvenil, levaram constituio nos EUA de um cdigo de tica censurando

    certas questes na produo de novas histrias em quadrinhos, inspirao seguida

    em diversos outros pases, como o Brasil. Na verso brasileira do cdigo, h itens

    ressaltando [...] evitar que as histrias em quadrinhos [...] influenciem

    perniciosamente a juventude ou dem motivo a exageros da imaginao da infncia

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    Koan: Revista de Educao e Complexidade, n. 1, jan. 2013. ISSN: 2317-5656

    e da juventude [...] ou, mais sordidamente, [...] A meno dos defeitos fsicos e das

    deformidades dever ser evitada [...] (CDIGO DE TICA DOS QUADRINHOS

    apud VERGUEIRO, 2009, p. 14 e 15).

    Mais recentemente, os novos bodes expiatrios miditicos so os jogos

    eletrnicos, uma vez que mesmo as histrias em quadrinhos teriam passado pela

    sublimao da indstria cultural e tornaram-se obras de arte segundo o pblico,

    como se nunca tivessem sido obras de arte. No dia 16 de dezembro de 2012, Adam

    Lanza, de 20 anos, entrou numa escola na cidade norte-americana de Newtown e

    assassinou vinte e seis pessoas, na maioria crianas, com uma arma de fogo, o que

    se tornou recorrente nos Estados Unidos e tem comeado a aparecer mesmo em

    outros pases, como o Brasil, como ocorreu numa escola carioca em 2011.

    Retornando ao caso de Lanza, aps a chacina, o peridico ingls The Sun

    estampou na primeira pgina o rosto do adolescente com o ttulo em letras garrafais:

    Killers Call of Duty obsession (A obsesso assassina de Call of Duty), atinando

    para o gosto do jovem pela franquia de jogos Call of Duty, game de guerra em

    primeira pessoa produzido pela Activision para vrias plataformas como Playstation

    3 e Xbox 360. Seguindo o esprito intelectual de Wertham, o jogo foi culpado pelo

    comportamento homicida de Lanza (OUTER SPACE, 2012), no obstante o

    psiclogo Chris Ferguson (apud OUTER SPACE, 2012, s.p.), numa entrevista rede

    de televiso norte-americana ABC, tenha afirmado que

    Se estamos falando srio sobre reduzir esses tipos de violncia em nossa sociedade, a violncia dos jogos ou outras mdias com violncia so, claramente, a direo errada para se focar. O uso de jogos de videogame no um fator comum entre os autores de homicdios em massa. Alguns foram jogadores, outros no.

    No obstante a riqueza do argumento de Ferguson, a viso segundo a qual os jogos

    eletrnicos incitam delinquncia, tais como as histrias em quadrinhos de acordo

    com Wertham, forte na contemporaneidade. Contudo, essa perspectiva

    reducionista sobre os games tem marginalizado outras variveis como a presena

    ou a ausncia da famlia na educao dos indivduos, o bullying e o assdio moral

    (comum nas escolas norte-americanas), os problemas sociais e econmicos, entre

    outras questes (SANTOS, 2012). No dizer de Martn-Barbero (2008, p. 245 e 246)

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    [...] os adolescentes solitrios ou anti-sociais no so efeito da internet [e dos jogos eletrnicos], mas de uma sociedade no solidria e competitiva, individualista e emergente, que eles assimilam a partir de sua experincia familiar e escolar. O que os torna no solidrios no a internet, mas uma escola que os coloca mais para competir do que para conviver ou inovar. [...]

    De qualquer forma, historicamente falando, a rejeio de linguagens como as

    histrias em quadrinhos e os jogos eletrnicos apresentam mais ou menos o mesmo

    padro que o ataque realizado sobre mdias atualmente consideradas clssicas e

    elevadas condio de arte. Dificilmente algum negaria a qualidade artstica das

    imagens produzidas pelo fotgrafo francs Henri Cartier-Bresson, mas, no sculo

    XIX, a fotografia, [...] a diablica arte dos franceses [...] (BENJAMIN, 1992, p. 116),

    foi considerada obra de mau gosto que subverteria as artes do esprito como a

    pintura, segundo crticos como o literato francs Charles Baudelaire (BENJAMIN,

    1992; MANGUEL, 2001). Os filmes de diretores como Akira Kurosawa e

    Michelangelo Antonioni so peas da stima arte, mas os filmes, entre outras artes

    visuais, foram atacados como [...] manifestaes vulgares de uma sensibilidade

    popular irracional e alienada que deveria ser censurada, controlada e civilizada [...],

    como ressalta Zuleika de Paula Bueno (2009, p. 62). Portanto, as fronteiras entre

    mdia e arte, a partir do sculo XIX e no decorrer dos seguintes, tiveram de ser

    flexibilizadas frente s questes de um mundo em transformao.

    5. A integrao da mdia

    Os limites das teorias apocalpticas sobre as mdias, como atina Eco (1993),

    principalmente aquelas propaladas por intelectuais frankfurtianos como Benjamin e,

    especialmente, Adorno, fundamentam-se em dois elementos articulados: a

    determinao comportamental e a noo de pblico como massa. Sobre a primeira

    questo, elas pressupem que as linguagens veiculadas pelos dispositivos

    miditicos seriam capazes de determinar as condutas dos indivduos, como os

    supostos delinquentes juvenis de Wertham e os homicidas viciados em jogos

    eletrnicos. Contudo, a afirmao sem problematizaes dessa relao determinista

    recai no mesmo equvoco cometido pelos psiclogos behavoristas clssicos que

    compreendiam que, diante de determinados estmulos, haveria respostas

    padronizadas que poderiam ser estendidas coletivamente. Embora esses postulados

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    da psicologia comportamental tenham sido rejeitados pelos pesquisadores da

    educao, parece que, em relao ao fenmeno miditico, o raciocnio continuaria

    vlido. Todavia, preciso recordar que, no obstante as mensagens miditicas

    constituam estmulos, tais como quaisquer outros presentes no ambiente, nas

    relaes sociais e culturais, entre outras possibilidades, elas no seriam capazes de

    determinar atitudes de forma mecnica.

    Proposies tericas variadas, como aquelas relacionadas semitica norte-

    americana e nova histria cultural, tm chamado a ateno para as variveis

    relacionadas recepo e apropriao. O historiador francs Roger Chartier

    (PCORA, 2001) tem utilizado o conceito de apropriao, que remete s formas

    como os sujeitos histricos selecionam elementos de repertrios de representao,

    isto , sistemas culturais, ressignificam-nos e constroem leituras diferenciadas, ainda

    que matizadas pelos traos presentes no contexto histrico de produo. Em linha

    terica diversa, o semioticista norte-americano Charles Peirce afirma que o

    interpretante fundamental na relao tridica que envolve o signo, o referente e o

    prprio interpretante, que pode construir novas leituras e, portanto, signos a partir

    dos signos, numa semiose potencialmente infinita (SANTAELLA; NTH, 2008;

    SILVA, 2009 e, tambm, os textos sobre semitica disponveis no presente nmero

    da revista Koan).

    A despeito da variedade terica (seria possvel falar, ainda, dos estudos

    culturais e da noo de recepo discutida na Lingustica), o que h em comum

    que o leitor, em sentido lato, no pode ser mais reduzido a um depsito de

    informaes, no sendo a etapa final do processo comunicativo, devendo, antes, ser

    concebido como sujeito ativo, com o perdo da redundncia, competente para

    (re)criar sentidos, desempenhando o papel de elo que permite o concatenao da

    cadeia discursiva num paradigma comunicacional que pode ser denominado

    orquestral (SILVA, 2009). Por outro lado, o termo massa utilizado por intelectuais

    frankfurtianos como Adorno remete a uma coletividade incompetente para pensar

    autnoma e criticamente, tornando-se alienada para compreender sua prpria

    situao no universo social, poltico e econmico, consumindo produtos culturais

    padronizados e destitudos de contedo reflexivo. Entretanto, como sugere Eco

    (1993) ao abordar as histrias em quadrinhos, as possibilidades interpretativas so

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    imprevisveis, mesmo se tratando de um meio de comunicao fundamentado na

    reprodutibilidade tcnica, o que transcende a massificao da recepo.

    Enquanto professor na Universidade Estadual de Maring, orientei duas

    pesquisas sobre as apropriaes dos desenhos animados (ROCHA, 2012) e dos

    jogos eletrnicos (SANTOS, 2012) por crianas em idade escolar. Aplicando

    entrevistas semi-estruturadas para amostras do pblico em questo, as

    pesquisadoras demonstraram que os indivduos no desempenham posturas

    passivas diante das animaes e dos games, apropriando ativamente, como

    sujeitos, os contedos dessas linguagens, que poderiam ou no ser convertidos em

    repertrio para as brincadeiras cotidianas. Foi sugerido que a violncia na televiso

    ou nos jogos no necessariamente determinaria os comportamentos infantis ou

    levariam as crianas a pararem de brincar, problematizando a noo saudosista

    segundo a qual a infncia das geraes anteriores teria se perdido diante da atual,

    perpassada pela tecnologia e por novas prticas (perspectiva defendida por

    pesquisadores da educao como POSTMAN, 1999). Ironicamente, as

    pesquisadoras constataram que a mediao dos pais, responsveis e professores

    em relao ao que as crianas assistem ou jogam inexistente ou insuficiente. As

    crianas tm assistido, por exemplo, programaes adultas at altas horas da noite

    sem quaisquer intervenes por parte dos pais (ROCHA, 2012). Alm do contedo

    livre, a despeito das classificaes etrias relacionadas a programas televisivos e

    jogos eletrnicos (neste caso, ver ENTERTAINMENT SOFTWARE RATING BOARD,

    2012, ou Quadro de Classificao para Softwares de Entretenimento), no h

    discusso sobre as questes apresentadas pelos mesmos, exceto com os colegas e

    os amigos de escola ou brincadeiras. Isto , invertendo o raciocnio aplicado pelos

    apocalpticos miditicos, no estariam as crianas alienadas pela mdia, mas sim os

    responsveis que no teriam conscincia, ou no querem t-la, sobre o que seus

    filhos esto vendo, ouvindo ou jogando. Essa percepo introduz diferentes

    variveis sobre os problemas inerentes ao pblico infanto-juvenil, como a falta ou a

    insuficincia da mediao miditica pelos pais, professores e demais responsveis,

    no obstante a mdia em si seja a culpada, como discutido, pelos dilemas

    educacionais e sociais do mundo contemporneo.

    No entanto, a mediao miditica tem sido discutida por pesquisadores

    (SILVA, 2012; FANTIN; GIRARDELLO, 2009, entre outros) ligados ao campo da

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    educomunicao, tambm denominada mdia educao (embora haja sutilezas de

    significados nas denominaes), que tem aproximado as reas da Educao e da

    Comunicao, apropriando-se de conceitos da ltima para a reflexo sobre objetos

    educacionais relacionados aos fenmenos miditicos. Ao invs de rejeit-los como

    fonte de subverso do conhecimento escolar e das regras de sociabilidade ou de

    incorpor-los de forma tmida e insuficiente, os educomunicadores propem integr-

    los ao universo educacional a partir de duas formas diferentes, mas correlacionadas,

    uma vez que, gostando ou no, a mdia educa e faz parte da vida dos educandos,

    dentro ou fora da escola.

    Em primeiro lugar, preciso educar com as mdias, utilizando as tecnologias

    da informao e da comunicao (TIC) como tcnicas e metodologias para o

    desenvolvimento do conhecimento escolar. Da a utilizao de recursos informticos,

    filmes, animaes, histrias em quadrinhos, msicas, fotografias, pinturas, entre

    outras possibilidades, para a prtica pedaggica. Isso demanda, por um lado, pela

    presena de dispositivos que permitam a reproduo dessas linguagens no interior

    dos espaos escolares, o que nem sempre se verifica em razo da situao de

    sucateamento das escolas brasileiras. Mesmo assim, trabalhar midiaticamente no

    quer dizer apenas possuir computadores e datashows de ponta disposio em

    cada sala de aula, mas tambm utilizar mdias tradicionais como os jornais e as

    revistas, por exemplo, para reconstruir o conhecimento histrico por intermdio de

    fontes jornalsticas. Dessa forma, o livro didtico, embora importante, no precisa ser

    o nico recurso pedaggico mo dos docentes. De qualquer modo, para uma

    educao com as mdias, alm da relativa presena das tecnologias informativas,

    preciso que os professores adquiram competncias para utilizar tcnica e

    metodologicamente das mesmas, o que nem sempre englobado, como visto, pelos

    cursos de licenciatura. Isso tambm no quer dizer necessariamente usar softwares

    como o Photoshop e o Premiere, programas de edio de imagens e vdeos que

    demandam certo conhecimento especfico (malgrado parte significativa dos

    profissionais da educao, inclusive superior, no saibam mesmo estruturar slides

    simples no Power Point), mas tambm dispor de saberes necessrios para a

    interpretao de imagens transcendendo a noo de ilustrao, cujo maior exemplo,

    como citado, passar filmes nos finais de ano para tapar buracos das aulas. Ou

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    seja, trata-se de competncias para saber lidar com linguagens que vo alm do

    escrito e do oral.

    A segunda proposio da educomunicao, que pode ou no estar ligada

    anterior, a educao para as mdias. Elas no seriam, nesse caso, tcnicas ou

    metodologias para o ensino, porm objetos para a reflexo educacional. No se

    deve recair no equvoco de considerar a mdia apologeticamente, o que

    representaria o extremo inverso da perspectiva dos apocalpticos miditicos,

    demandando pelo distanciamento crtico que, na medida do possvel, necessrio

    ao esprito investigativo, mesmo que a objetividade a rigor seja impossvel. As

    mdias educam de fato, embora as formas educativas possam ser eventualmente

    problematizadas. A questo que certas empresas que produzem filmes,

    animaes ou jogos eletrnicos no possuem, e nem precisam possuir, finalidades

    pedaggicas para existir, malgrado possuam implicaes educacionais. Parte delas

    produz exclusivamente para alimentar o mercado e mant-lo funcionando, criando

    mecanismos para estimular o consumismo, o que no dever ser ignorado. A

    publicidade, como ressalta Luiz Hermegenildo Fabiano (2009), constri narrativas

    associando o produto que se deseja vender a imagens perpassadas de erotismo, em

    sentido no necessariamente sexual, mesmo no havendo quaisquer ligaes

    naturais entre ambos. A utilizao de certos veculos de comunicao, como o rdio,

    no passou despercebida do ponto de vista poltico. Durante as dcadas de 1930 e

    1940, a estrutura poltica encabeada por Getlio Vargas lanou mo do rdio como

    instrumento para levar a voz do ento presidente aos lares brasileiros,

    transcendendo barreiras de espao e tempo num pas ainda fragmentado

    territorialmente (LENHARO, 1986). Hoje, a Central Brasileira de Notcias (CBN),

    talvez a principal rdio informativa do pas, pertence justamente ao Sistema Globo

    de Rdio, que integra as Organizaes Globo, empresa que engloba tanto

    transmisses radiofnicas quanto televisivas no Brasil. Em 2009, o fenmeno, que

    possui extenso mundial, levou, na Argentina, chamada popularmente lei de

    imprensa, que limita s empresas a concentrao dos meios de comunicao

    audiovisual, obrigando o Clarn, o grupo de telecomunicaes argentino mais

    influente, a iniciar o processo de venda de licenas de transmisso (BAGIO, 2012).

    Questes como essas no podem e no devem ser ignoradas pela escola,

    necessitando de apropriao crtica pela educao para as mdias. Entretanto, como

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    afirmado, preciso cautela ao analisar o fenmeno miditico de forma distanciada,

    no o reduzindo ao modelo apocalptico estril, tampouco apologia inocente.

    preciso ter em vista, em primeiro lugar, que a mdia no uma entidade

    desumanizada e autnoma a servio de outra entidade desumanizada e autnoma

    denominada capital. Pelo contrrio, ambos so mecanismos multifacetados

    instrumentalizados de diferentes formas por seres humanos com intenes distintas,

    situados, por sua vez, de determinadas formas no jogo social, poltico, econmico,

    cultural e ambiental. Uma revista pode desempenhar o papel de direita poltica,

    distorcendo de forma mais ou menos ideolgica a ao dos opositores governistas.

    Por outro lado, um blog pode representar as atividades de uma organizao no

    governamental denunciando os problemas ecolgicos. Tratam-se de formas

    diferenciadas de engajamento, ambas utilizando dos recursos miditicos mo para

    comunicar seus interesses, mas no redutveis, justamente, viso desumanizada e

    autnoma da mdia servio do capital. Segundo o literato japons Eiji Yoshikawa

    (1999), uma espada em si no pode ser considerada violenta, no devendo ser,

    portanto, temida. o homem que a segura quem o faz... ou no.

    6. Eplogo

    Diante do que foi visto, nota-se que existe um contraste ainda significativo

    entre a mdia e a escola. Transcendendo o paradigma cientfico newtoniano-

    cartesiano, o universo miditico articulado por intermdio de uma rede que permite

    s diferentes partes cruzarem-se entre si de forma transversal por meio de links que

    se assemelham a uma rede neural, na qual no se pode identificar o incio ou o fim,

    apenas uma estrutura complexa de circulao das informaes. Embora a revoluo

    digital possa ser pensada, em parte, por meio dos pilares bsicos que sustentam as

    mdias desde o sculo XIX, isto , a reprodutibilidade e a acessibilidade, h

    elementos distintos como a interatividade, tornando o usurio competente para

    interagir prontamente com a estrutura informativa, passando condio de co-autor

    desse universo de dados. No apenas se apropria, mas tambm constri, reconstri

    e aprende. Por isso, os referenciais tericos disponveis ainda so insuficientes para

    compreender o mundo digital em todas as suas implicaes.

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    De forma inversamente proporcional, a escola permanece fundamentada nos

    pilares que sustentam o paradigma cientfico tradicional. Ela dualista e

    reducionista, separando a razo, o eixo sobre o qual a cincia erigiu sua perspectiva

    de conhecimento, dos aspectos afetivo-emocionais, banidos pelas portas dos fundos

    da epistemologia moderna. Os saberes escolares, alm disso, fecham-se sobre

    disciplinas incapazes de comunicar-se entre si de modo eficaz, sendo, portanto,

    incompetentes para pensar os problemas contemporneos que, essencialmente, so

    baseados na complexidade. O modelo logocntrico continua valorizando a palavra,

    falada e escrita, como nica fonte legtima do saber, ignorando ou apropriando

    insuficientemente as outras linguagens que lanam razes em matrizes visuais e

    sonoras e que, atualmente, cruzam-se numa cadeia de signos. Por fim, as

    instituies de ensino continuam mais parecidas com os crceres analisados por

    Foucault, institudos a partir de dispositivos panpticos, e mais distanciadas de

    locais de produo de conhecimentos complexos e capazes de responder

    minimamente aos dilemas da contemporaneidade.

    Essa escola tem rejeitado a mdia como o outro que, justamente, define sua

    prpria identidade. As mdias seriam as responsveis pela subverso do

    conhecimento escolar, bem como pela degenerao das regras de sociabilidade, na

    medida em que determinariam condutas inversas em relao aos ideais de civilidade

    construdos desde a modernidade. Teorias apocalpticas sobre o fenmeno

    miditico, como a noo adorniana de indstria cultural, sedimentaram essa

    perspectiva: os quadrinhos gerariam delinquncia e os jogos eletrnicos produziriam

    sociopatas, ignorando outras variveis como a carncia afetiva dos indivduos, a

    competitividade e o individualismo que se tornaram valores legtimos na

    contemporaneidade. Por outro lado, a utilizao dos recursos miditicos ainda tem

    sido tmida nas escolas, geralmente realizada de forma ilustrativa e com o intuito de

    preencher lacunas deixadas pelo conhecimento oral ou escrito.

    As perspectivas apocalpticas sobre a mdia mostram-se insustentveis diante

    de certas discusses tericas que, em detrimento do modelo determinista da

    indstria cultural, sugerem a possibilidade dos usurios apropriarem-se

    seletivamente dos contedos miditicos, reconstruindo significaes num processo

    semitico retroalimentativo, como sugerem autores como Peirce. Por isso,

    necessrio que a escola (re)aproprie-se das mdias sob uma tica que no caia no

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    criticismo vazio dos apocalpticos ou, por outro lado, em sua apologia inocente.

    Campos como a educomunicao tm aberto veredas para repens-las, atinando

    para a necessidade da educao com as mdias, utilizando-as como tcnicas e

    mtodos para o desenvolvimento pedaggico, e da educao para as mdias,

    concebendo-as como objeto para a discusso pedaggica. De qualquer forma, no

    obstante o modelo de reprodutibilidade e acessibilidade possua atualmente dois

    sculos, o desenvolvimento das tecnologias e dos meios de comunicao nas

    ltimas dcadas demanda por novas reflexes que, talvez, apenas possam ser

    intudas no atual estado da arte. Cabe, portanto, abrir novos caminhos nas veredas

    complexas desses saberes em rede.

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