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APRESENTAÇÃO Este módulo faz parte da coleção intitulada MATERIAL MODULAR, destinada às três séries do Ensino Médio e produzida para atender às necessidades das diferentes rea- lidades brasileiras. Por meio dessa coleção, o professor pode escolher a sequência que melhor se encaixa à organização curricular de sua escola. A metodologia de trabalho dos Modulares auxilia os alunos na construção de argumen- tações; possibilita o diálogo com outras áreas de conhecimento; desenvolve as capaci- dades de raciocínio, de resolução de problemas e de comunicação, bem como o espírito crítico e a criatividade. Trabalha, também, com diferentes gêneros textuais (poemas, histórias em quadrinhos, obras de arte, gráficos, tabelas, reportagens, etc.), a fim de dinamizar o processo educativo, assim como aborda temas contemporâneos com o ob- jetivo de subsidiar e ampliar a compreensão dos assuntos mais debatidos na atualidade. As atividades propostas priorizam a análise, a avaliação e o posicionamento perante situações sistematizadas, assim como aplicam conhecimentos relativos aos conteúdos privilegiados nas unidades de trabalho. Além disso, é apresentada uma diversidade de questões relacionadas ao ENEM e aos vestibulares das principais universidades de cada região brasileira. Desejamos a você, aluno, com a utilização deste material, a aquisição de autonomia intelectual e a você, professor, sucesso nas escolhas pedagógicas para possibilitar o aprofundamento do conhecimento de forma prazerosa e eficaz. Gerente Editorial Modernismo – Terceira Fase

Modernismo – Terceira Faseprepapp.positivoon.com.br/assets/Modular/LEITURA...SUMÁRIO Unidade 1: Literatura da terceira fase do Modernismo no Brasil A nova capital 5 O regime democrático

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APRESENTAÇÃO

Este módulo faz parte da coleção intitulada MATERIAL MODULAR, destinada às três

séries do Ensino Médio e produzida para atender às necessidades das diferentes rea-

lidades brasileiras. Por meio dessa coleção, o professor pode escolher a sequência que

melhor se encaixa à organização curricular de sua escola.

A metodologia de trabalho dos Modulares auxilia os alunos na construção de argumen-

tações; possibilita o diálogo com outras áreas de conhecimento; desenvolve as capaci-

dades de raciocínio, de resolução de problemas e de comunicação, bem como o espírito

crítico e a criatividade. Trabalha, também, com diferentes gêneros textuais (poemas,

histórias em quadrinhos, obras de arte, gráficos, tabelas, reportagens, etc.), a fim de

dinamizar o processo educativo, assim como aborda temas contemporâneos com o ob-

jetivo de subsidiar e ampliar a compreensão dos assuntos mais debatidos na atualidade.

As atividades propostas priorizam a análise, a avaliação e o posicionamento perante

situações sistematizadas, assim como aplicam conhecimentos relativos aos conteúdos

privilegiados nas unidades de trabalho. Além disso, é apresentada uma diversidade de

questões relacionadas ao ENEM e aos vestibulares das principais universidades de cada

região brasileira.

Desejamos a você, aluno, com a utilização deste material, a aquisição de autonomia

intelectual e a você, professor, sucesso nas escolhas pedagógicas para possibilitar o

aprofundamento do conhecimento de forma prazerosa e eficaz.

Gerente Editorial

Modernismo – Terceira Fase

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2014

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© Editora Positivo Ltda., 2013Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio, sem autorização da Editora.

Todos os direitos reservados à Editora Positivo Ltda.

Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)

(Maria Teresa A. Gonzati / CRB 9-1584 / Curitiba, PR, Brasil)

Neste livro, você encontra ícones com códigos de acesso aos conteúdos digitais. Veja o exemplo:

Acesse o Portal e digite o código na Pesquisa Escolar.

@LIT030Autores e obras

da literatura

brasileira

@LIT030

D541 Dias, Nathalia Saliba.Ensino médio : modular : literatura : modernismo, terceira fase / Nathalia Saliba

Dias, Sergio Augusto Kalil. – Curitiba : Positivo, 2013. : il.

ISBN 978-85-385-7083-7 (livro do aluno)

ISBN 978-85-385-7084-4 (livro do professor)

1. Literatura. Ensino médio – Currículos. I. Kalil, Sergio Augusto. II. Título.

CDU 373.33

SUMÁRIO

Unidade 1: Literatura da terceira fase do Modernismo no Brasil

A nova capital 5

O regime democrático e o desenvolvimento do Brasil 6

A construção de Brasília 6

O sertão universal: poesia-prosa em João Cabral

e Guimarães Rosa 7

Unidade 2: A produção mais intimista da Geração de 45

Clarice Lispector 40

Nelson Rodrigues 45

O sertão é o mundo.

João Guimarães Rosa

Literatura da terceira fase do Modernismo no Brasil

1

4 Modernismo – Terceira Fase

Imagens da construção de Brasília, a capital erguida no centro do ermo e árido coração do país

À Brasília de Oscar NiemeyerEis casas-grandes de engenho,horizontais, escancaradas,onde se existe em extensão e a alma todoaberta se espraia.

Não se sabe é se o arquiteto as quis símbolos ou ginástica:símbolos do que chamou Vinicius*“imensos limites da pátria”

ou ginástica, para ensinarquem for viver naquelas salasum deixar-se, um deixar viverde alma arejada, não fanática.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 399.

*Alusão ao poeta Vinicius de Moraes.

As margens da alegria

ESTA É A ESTÓRIA. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda no escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A Mãe e o Pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A Tia e o Tio tomavam conta dele, justinhamente. Sorria-se saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da Companhia, especial, de quatro lugares. [...]

IIEnquanto mal vacilava a manhã. A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semiermo,

no chapadão; a mágica monotonia, os diluídos ares. [...]

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 389.

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Brasília é uma estrela espatifada.LISPECTOR, Clarice. In: HERMUCHE, W. Abstrata, Brasília, concreta. São Paulo: Medialecom, 2003. p. 22.

A nova capital

Ensino Médio | Modular 5

LITERATURA BRASILEIRA

O regime democrático e o

desenvolvimento do Brasil

O término da Segunda Guerra Mundial desencadeou o fim de alguns regimes autoritários. No Brasil, a ditadura do Estado Novo, comandada por Getúlio Vargas, foi encerrada em 1945 e substituída por um regime democrático consolidado na Constituição Federal de 1946.

Embora derrotado na pretensão de manter o poder, Vargas pôde presenciar, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, a continuidade de seu projeto político desenvolvimentista para o Brasil.

Eleito presidente com 55% dos votos, Dutra criou o plano SALTE, sigla cujas iniciais representavam planejamento na área da saúde (S), alimentação (AL), transporte (T) e energia (E). Embora sem êxito absoluto, o plano dava indícios da constante tentativa de fazer o país se tornar uma potência econômica.

Foi no governo seguinte, com a eleição de Juscelino Kubitschek (JK) em 1955 e a implementação do programa de metas, que o Brasil conseguiu, enfim, vivenciar um surto desenvolvimentista.

A política econômica de JK, definida no programa de metas do governo federal, contemplava seis grandes grupos: a energia, o transporte, a alimentação, a indústria de base, a educação e a chamada metassíntese, por simbolizar a totalidade do programa desenvolvimentista, ou seja, a construção da nova capital, Brasília.

Para consolidar esse programa, JK estabeleceu uma política econômica que, nos dizeres do historiador Boris Fausto, “tratava de combinar o Estado, a empresa privada nacional e o capital estrangeiro para promover o desenvolvimento, com ênfase na industrialização”. Essa política permitiu que as empresas estrangeiras trouxessem não só capital, mas também tecnologia para a indústria nacional.

A construção de Brasília e o consequente deslocamento da Capital Federal, do Rio de Janeiro para o Planalto Central, permitiu integração maior entre as diversas regiões do Brasil.

Juscelino sintetizava sua proposta de desenvolvimento com o slogan “Cinquenta anos de progresso em cinco anos de governo”.

A construção de Brasília

JK: metas para o desenvolvimento

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Você acabou de ler trechos de obras de três grandes expoentes da Terceira Geração Mo-dernista. Todos exploram um tema comum, direta ou indiretamente: a construção de Brasília.

Em sua opinião, por que esse tema interessava aos intelectuais da época de modo especial? O que representava Brasília? Seria apenas uma nova cidade de arquitetura peculiar?

O arrojado projeto arquitetônico fez com que a construção da cidade de Brasília se tornasse o principal símbolo do processo de modernização e industrialização do Brasil.

As obras de construção da nova capital duraram três anos, e seu projeto foi elaborado pelos arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Sua inauguração foi feita pelo presidente JK em 21 de abril de 1960, dia em que se comemora o Descobrimento do Brasil. A construção de Brasília pelo presidente Juscelino foi a consolidação de um discurso desenvolvimentista que iria caracterizar as metas e os hábitos do Brasil dos anos 1950 e 1960 do século XX. O projeto de uma Capital Federal, no centro do país, construída do nada, planejada em cada detalhe – e não criada pela vivência das sociedades como as demais cidades – era sem dúvida muito arrojado. Concretizado, esse ambicioso plano de JK simbolizou a mudança que o Brasil vivenciaria na década de 1950: a conquista do interior pelo urbano e pelo moderno.

Por sua arquitetura, Brasília é considerada patrimônio da humanidade.

Modernismo – Terceira Fase6

Nesta unidade, você vai estudar os autores e as obras literárias mais significativos da terceira fase do Modernismo brasileiro. Trata-se de um momento em que a produção artística nacional estava em compasso com ideais desenvolvimentistas instaurados em nossa política e, por isso, buscou-se continuar a explorar, não mais apenas sob a perspectiva social – carac-terística dos escritores da segunda fase do Modernismo –, o que era nacional, peculiar, típico e inerente ao povo brasileiro. Artistas e intelectuais da terceira fase concentraram-se nas questões humanas universais, vivenciadas tanto pelo homem do interior como pelo habitante das grandes urbes.

Para um grupo de literatos, as paisagens interioranas do sertão brasileiro, por exemplo, constituíram motivo poético, surgiram elevadas a palco de questões filosóficas universais,

ou foram abordadas sob uma visão cosmopolita, que passa a explorá-las ao lado de tantas outras paisagens e povos do mundo, em igualdade, como parte do grande tecido cultural global. Para esse grupo, o interior do país começou a ser lido como uma parte do mundo, ou mesmo uma metáfora deste, e compreendido como um elemento da grande civilização brasileira, que desbravava seu caminho definitivo para a modernidade. Integraram esse grupo João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa.

Na terceira fase, houve autores focados nas profundezas psicológicas dos indivíduos, ocultas sob as dinâmicas im-postas pela sociedade, em seus inocentes hábitos e práticas cotidianas. Representam esse grupo, realizando sondagens psicológicas de diversos modos e em diferentes graus, Clarice Lispector e Nelson Rodrigues.

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Esses dados históricos são importantes para se compreender a produção literária que é elaborada a partir da década de 1940 e é designada, no âmbito dos estudos literários, Terceira Geração Modernista.

O sertão universal: poesia-prosa

em João Cabral e Guimarães Rosa

Nas histórias e hábitos, nas paisagens, nas belezas e dificuldades dos habitantes das regiões ermas, longínquas, apartadas das grandes cidades, está uma das principais matérias literárias tanto de João Cabral como de Guimarães Rosa. Porém, nenhum desses escritores deve ser tratado como meramente regional. Sua literatura não apenas descreve ou denuncia a condição do sertanejo, do jagunço marginalizado ou do traba-lhador (cassaco) dos engenhos, mas, sim, atua sobre a natureza poética, filosófica dessa condição. Soma-se a isso uma alta dose de referências a elementos da cultura mundial: poetas, filósofos e artistas plásticos têm suas ideias integradas ao fazer literário desses dois escritores, que conheceram o sertão e rodaram o mundo.

Simultaneamente, os problemas enfrentados e as reflexões feitas pelos personagens ganham uma conotação universal. O regionalismo da literatura brasileira da década de 1930, que tinha por caracterís-tica mostrar os problemas locais, primordialmente da Região Nordeste, é superado. Os grandes temas universais como o amor, a guerra, a religião, a miséria humana, o bem e o mal passam a ser tratados sob uma perspectiva mais filosófica. Além disso, o contato com a literatura de James Joyce, Mallarmé e Paul Valéry faz com que nossos escritores sintam-se à vontade para experimentações formais.

João Cabral de Melo NetoJoão Cabral de Melo Neto nasceu na cidade do Recife, em 9 de janeiro de 1920, e faleceu aos 79

anos, no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro. Membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 1968, foi poeta de ampla projeção e reconhecimento. Acumulou prêmios de notório valor tanto no

Brasil como no exterior, entre eles, o Prêmio José de Anchieta de poesia, do IV Centenário de São Paulo (1954); o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (1955); o Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro; o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, o Prêmio da União Brasileira de Escritores pelo livro Crime na Calle Relator (1988), e o Neustadt International Prize, considerado um dos prêmios indicativos do autor para a disputa do Nobel de Literatura.

Ensino Médio | Modular 7

LITERATURA BRASILEIRA

A primeira infância do poeta foi marcada pela vivência dos modos e hábitos do interior. Cabral criou-se, até os 10 anos, nos engenhos de sua família, abastada e tradicional nas genealogias pernambucanas. Esses primeiros anos plantaram no menino a consciência da divisão social, que colocava diariamente em confronto a realidade do trabalhador rural nor-destino e a dos iminentes senhores de engenho e políticos. Mais tarde, sua literatura se entregou a explorar esse universo.

Leia um poema que utiliza como matéria os conhecimentos e reflexões de Cabral sobre esse período:

Estátua em homenagem a João Cabral no centro de Recife, sua cidade Natal

Menino de três engenhos

O Engenho PoçoLembro do poço? Não me lembro?Que lembro do primeiro Engenho?

Não vejo onde começariam a lembrança e as fotografias.

Rio? Um nome: o Tapacurá,rio entre pedras, a assoviar,

e um dia quase me afogou:Lembro? ou alguém me contou?

[...]

PacovalFoi pouco tempo, mas é o Engenhode que porém melhor me lembro.

Era Engenho dos mais humildesda vizinhança onde ele assiste.

A moita do Engenho, já morta(existia, ou é só na memória?)

[...]

Dois IrmãosEm Dois Irmãos era outra a fala;aquele era um engenho de sala.

Mesmo sendo de fogo mortoseu cerimonial já era outro.

Já se acordava de sapato, Não como em Pacoval, descalço.

A casa-grande, de fato grande,se não histórica C.G. grande,

tinha em si certa qualidadeambígua de campo e de cidade.

[...]

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 457-458.

Com base na leitura do poema anterior, responda: Trata-se de composição poética que se limita a recontar a infância do poeta? O “eu lírico” apresenta alguma temática ou discussão paralela a esse tema?

Quando sua família retornou à capital, Recife, João Cabral inseriu-se em uma rotina mais urbana. Ingressou no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Maristas, onde permaneceu até concluir o curso secundário. Jovem, Cabral passou a frequentar o Café Lafayette, que naquela época (final da década de 1930) era o ponto de encontro dos intelectuais em Recife. Em contato com a poesia de seu primo, Manuel Bandeira, Cabral deflagrou um processo de reflexão literária que marcaria sua poética definiti-vamente. O primeiro contato com a poesia moderna fez do então leitor de cordel e de poetas românticos e parnasianos um jovem capaz de pensar novas questões para seu tempo e seu próprio fazer literário.

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Modernismo – Terceira Fase8

Literatura de cordelJoão Cabral teria sido um ávido leitor da literatura de cordel, uma manifestação literária muito

comum no interior nordestino ainda na atualidade. Conta-se que, ainda menino, Cabral lia livros de cordel para os empregados de sua família.

Particularmente interessante nessas obras editadas em um processo bastante artesanal, são as xilogravuras, de cenas narradas no livro, que ilustram as obras e as fazem interessantes até mesmo para os leitores “que não sabem ler”.Livro de cor-

del: opúsculo em prosa ou ver-

so, usualmente pertencente aos gêneros literários de

ficção (contos, autos, vidas

romanceadas de santos ou de outras pessoas famosas), des-tinado à leitura popular. É ven-

dido pelas ruas, apresentando-se pendurado num barbante esten-

dido ao longo de uma parede ou banca de feira,

daí seu nome. O seu conteúdo de caráter popular

e fabuloso, o seu baixo preço e seu modesto aspecto gráfico o tornam aces-

sível.

FARIA, Maria Isabel; PERICÃO, Maria da Graça. Dicionário do livro: da escrita ao livro eletrônico. São Paulo: Edusp,

2008.

Exemplares de literatura de cordel em exposição

BORGES, José Francisco. Sem preconceito. sd. 1 xilogravura, p&b, 19 cm x 22 cm. Coleção particular.

BORGES, José Francisco. Mudança de sertanejo. 1 xilogravura. Brasil.

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Um dos poetas significativos na literatura de cordel atual é Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré, nascido na cidade de Assaré, no Ceará, em 1909. O apelido “patativa” provém de uma ave, típica no território nordestino, cujo canto é muito apreciado por sua beleza, assim como os poemas de Antônio. Agricultor de profissão, o poeta, ainda menino, frequentou a escola somente por quatro meses. Mas, desde então, vem “lidando com as letras”, como ele mesmo afirmou. Na infância, já atuava como versejador em festas. Ainda adolescente, após ter comprado uma viola, começou a atuar também como compositor, cantor e improvisador. Patativa compôs uma poética extremamente

vinculada à tradição oral de seu povo. Seu primeiro livro, Inspiração nordestina, foi publicado em 1956, quando o poeta já era reconhecido pelo grande público. Em 1979, partiu para a gravação

de uma série de discos, iniciada com o LP Poemas e canções. O poeta faleceu em sua cidade natal, em 2002.

Suas composições incorporam sempre as rotinas e a linguagem do povo de sua região. Dotada de uma visão de mundo “cabocla”, sua poética exalta as práticas do sertão e, não raro, apresenta-se nostálgica e desapontada diante da modernização e urbanização.

O poeta Patativa do Assaré

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Capa de um exemplar de literatura de cordel

Ensino Médio | Modular 9

LITERATURA BRASILEIRA

Conheça um pouco do estilo desse poeta lendo o poema a seguir.

O vaqueiroEu venho dêrne menino,Dêrne munto pequenino,Cumprindo o belo destinoQue me deu Nosso Senhô.Eu nasci pra sê vaquêro, Sou o mais feliz brasilêro,Eu não invejo dinhêro,Nem diproma de dotô.

Sei que o dotô tem riquêza,É tratado com fineza,Faz figura de grandeza,Tem carta e tem anelão,Tem casa branca jeitosaE ôtas coisa preciosa;Mas não goza o quanto gozaUm vaquêro do sertão.

Da minha vida eu me orgúio,Levo a Jurema no embrúioGosto de ver o barúioDe barbatão a corrê,Pedra nos casco rolando,Gaios de pau estralando,E o vaquêro atrás gritando,Sem o perigo temê.

Criei-me neste serviço,Gosto deste reboliço,Boi pra mim não tem feitiço,Mandinga nem catimbó.Meu cavalo Capuêro,Corredô, forte e ligêro,Nunca respeita barsêroDe unha de gato ou cipó.

Tenho na vida um tesôroQue vale mais de que ôro:O meu liforme de côro,Pernêra, chapéu, gibão.Sou vaquêro destemido,Dos fazendêro querido,

O meu grito é conhecidoNos campo do meu sertão.

O pulo do meu cavaloNunca me causou abalo;Eu nunca sofri um galo,pois eu sei me desviá.Travesso a grossa chapada,Desço a medonha quebrada,Na mais doida disparada,Na pega do marruá.

Se o bicho brabo se acoa,Não corro nem fico à tôa:Comigo ninguém caçoa,Não corro sem vê de quê.É mêrmo por desaforoQue eu dou de chapéu de côroNa testa de quarqué tôroQue não qué me obedecê.

Não dou carrêra perdida,Conheço bem esta lida,Eu vivo gozando a vidaCheio de satisfação.Já tou tão acostumadoQue trabaio e não me enfado,Faço com gosto os mandadoDas fia do meu patrão.

Vivo do currá pro mato,Sou correto e munto izato,Por farta de zelo e tratoNunca um bezerro morreu.Se arguém me vê trabaiando,A bezerrama curando,Dá pra ficá maginandoQue o dono do gado é eu.

Eu não invejo riquezaNem posição, nem grandeza,Nem a vida de fineza

Do povo da capitá.Pra minha vida sê belaSó basta não fartá nelaBom cavalo, boa selaE gado pr’eu campeá.

Somente uma coisa iziste,Que ainda que teja tristeMeu coração não resisteE pula de animação.É uma viola magoada,Bem chorosa e apaxonada,Acompanhando a toadaDum cantadô do sertão.

Tenho sagrado direitoDe ficá bem satisfeitoVendo a viola no peitoDe quem toca e canta bem.Dessas coisa sou herdêro,Que o meu pai era vaquêro,Foi um fino violêroE era cantadô tombém.

Eu não sei tocá viola,Mas seu toque me consola,Verso de minha cacholaNem que eu peleje não sai,Nunca cantei um repenteMas vivo munto contente,Pois herdei perfeitamenteUm dos dote de meu pai.

O dote de sê vaquêro,Resorvido marruêro,Querido dos fazendêroDo sertão do Ceará.Não perciso maió gozo,Sou sertanejo ditoso,O meu aboio sodoso Faz quem tem amô chorá.

ASSARÉ, Patativa do. O vaqueiro. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/anton05.html>. Acesso em: 1 mar. 2012.

10 Modernismo – Terceira Fase

Destaque do poema dois momentos que revelem a legítima linguagem oral do interior nordestino, empregada por Patativa do Assaré em seus poemas.

Além de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes estão entre os nomes da literatura nacional que influenciaram o jovem Cabral. Com Drummond, teria aprendido a valorizar o processo construtivo do poema, a empregar o vocabulário banal, popular, na poesia e a dar um tom de prosa à produção poética. Já Mendes o teria influenciado a dar prevalência à imagem sobre a mensagem, tanto que a plasticidade e a exploração imagética se tornaram marcas permanentes de sua poesia. Das leituras estrangeiras, que foram variadas, João Cabral também absorveu muito. Ao longo de sua obra, podem-se notar, inclusive, poemas dedicados a outros poetas e literatos ou, ainda, tê-los como o tema da poesia em si. Paul Valéry teve, entre esses influenciadores e homenageados, um lugar de destaque.

As paisagens e os hábitos interioranos, o aprendizado proveniente de uma rígida educação formal, assim como o gosto pelo cenário artístico e intelectual, experienciados na infância e na adolescência por João Cabral, foram revertidos em conhecimentos que marcaram de forma única a temática e a linguagem de sua prática literária. Do mesmo modo, é um constituinte da poética cabralina o núcleo temático que aborda aspectos das culturas e paisagens com que o poeta tomou contato. Ao partir para o Rio de Janeiro, o poeta abriu seus horizontes para os conhecimentos da vida nas grandes cidades. No Rio, em 1942, publicou o seu primeiro livro de poemas, Pedra do sono.

Três anos depois, inscreveu-se no concurso para a carreira diplomática. Aprovado e já enquadrado em suas funções no Itamaraty, foi designado para trabalhar em diversos países. Dessa forma, João Cabral tomou contato com ambientes culturais e personalidades artísticas que lhe foram bastante importantes e acabaram por influenciar sua poética, ora como motivo, ora como modelo. Muitos de seus poemas têm como tema as paisagens, os elementos e hábitos “estrangeiros”, notavelmente da Espanha.

Em 1987, João Cabral de Melo Neto voltou a residir no Rio de Janeiro. Em 1990, aposentou-se como embaixador. Começou, então, a sentir os efeitos da doença e da idade que avançava. Acometido pela cegueira e com a saúde bastante comprometida, veio a falecer em 1999.

João Cabral e as paisagens

Baobá: árvore comum nas paisagens áridas do continente africano

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O quadro Café, de Candido Portinari, pintor que costumava retratar per-sonagens com uma estrutura física robusta, pernas e bra-ços grossos

PORTINARI, Candido. Café. 1935. 1 óleo sobre tela, color.,130 cm x 195 cm. Museu Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro.

Ensino Médio | Modular 11

LITERATURA BRASILEIRA

João Cabral de Melo Neto, em sua poética, dava extrema atenção e importância à imagem. Muitos de seus poemas valorizam a formação imagética antes mesmo da mensagem em si. Como o poema anterior corrobora essa afirmação?

Características gerais da poética de João Cabral Um dos mais marcantes interesses de João Cabral era afastar de seus versos qualquer forma de senti-

mentalismo. Ele lutava vivamente para “purificar” a poesia, dar-lhe uma sintaxe e um vocabulário único e característico, capaz de alçar o verso a uma condição de autonomia e plenitude como obra. Inúmeros são seus poemas que refletirão exatamente esse esforço, essa busca extremamente racional e planejada com que compunha sua literatura. A imagem de pureza também se revelará em algumas escolhas temáticas e imagéticas recorrentes do poeta: o mineral, a luz, o sol, o deserto e a aridez são referências constantes em sua obra, sempre surgindo com a ideia do causticamente limpo, da exatidão, da medida. O trabalho de João Cabral é marcado pelo rigor formal, porém não ao modo parnasiano. Sua preocupação é, antes, que forma, imagem e som, perfeitamente alinhados, façam dos conjuntos de palavras em seus poemas construtos intelectuais e artísticos irretocáveis. Em alguns poemas, encontram-se imagens surrealistas, desvios propositais à sintaxe tradicional, enfim, desafios às concepções tradicionais e formalizadas de mundo e linguagem. Além disso, João Cabral rompe definitivamente com o conceito de que a poesia é fruto da inspiração. Ele cria uma poética extremamente racionalizada.

Como, para ele, a razão é a base do fazer poético, passa a escrever diversos poemas sobre o pró-prio ofício de escrever. Assim, um dos principais temas da poesia é a própria poesia, caracterizando a metalinguagem.

Finalmente, no terceiro momento, concentra os dois períodos anteriores, unidos por temas nacionais. Sua linguagem se entrega à sintaxe precisa, salpicada da vivência nordestina.

O baobá no Senegal

É a grande árvore maternal,de corpulência de matrona,de dar sombra embora incapaz(pois o ano todo vai sem folhas):pela bacia de matriarcapelas portinarianas coxas,

pela umidade que sugere sua carnadura (aliás seca e oca),vem dela um convite de abraço,vem dela a efusão calorosaque vem das criadoras de raça e das senzalas sem história.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 563.

Modernismo – Terceira Fase12

Poética de João Cabral

1. (UFV – MG) Leia atentamente o poema abaixo, de João Cabral de Melo Neto:

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;para aprender da pedra, frequentá-la;captar sua voz inenfática, impessoal(pela de dicção ela começa as aulas).A lição de moral, sua resistência friaao que flui e a fluir, a ser maleada;a de poética, sua carnadura concreta;a de economia, seu adensar-se se compacta:lições de pedra (de fora para dentro,cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão(de dentro para fora, e pré-didática).No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse não ensinaria nada;lá não se aprende a pedra: lá a pedra,uma pedra de nascença, entranha a alma.

MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 21.

Assinale a alternativa que não traduz uma leitu-ra possível do poema acima:

a) O poeta apreende da pedra a própria vivên-cia na vida agreste do Sertão: de austerida-de, resistência silenciosa e sempre capaz de dar lições de vida e de poesia.

b) Os versos metalinguísticos revelam a própria poética cabralina: concreta, impessoal, con-cisa, embora profundamente social.

c) Ao partir do pressuposto de que a pedra é muda e, portanto, não ensina nada, o poeta suscita uma reflexão sobre a situação educa-cional precária no Nordeste.

d) O “eu lírico” também apreende da pedra os próprios versos enxutos, num esforço de dis-secação de quaisquer sentimentalismos.

e) No poema, de intensa economia verbal, a pedra faz-se metáfora da paisagem do Ser-tão, que “entranha a alma” e espelha o fazer poético do autor pernambucano.

2. (UFV – MG) Leia com atenção as seguintes afir-mações a respeito da obra A educação pela pe-dra, de João Cabral de Melo Neto:

I. Neste livro, o engenheiro-poeta extrai dos mo-tivos nordestinos e espanhóis a matéria bruta para a construção dos versos pautados pela discursividade lógica da sintaxe, despoetiza-ção e antimusicalidade – recursos intensamen-te utilizados na literatura contemporânea.

II. A temática, principalmente centrada em motivos nordestinos, é utilizada pelo autor como imitação do romance social dos anos 30; daí a proposta de aprendizagem de uma poesia mais engajada e popular, em linguagem menos complexa.

III. No livro, como em grande parte da poesia da modernidade, são constantes os poemas metalinguísticos, expressivos da tentativa do poeta de apreender seu próprio proces-so de construção poética, e extrair lições da realidade – sua e da própria linguagem.

É correto apenas o que se afirma em:

a) I.

b) I e II.

c) I e III.

d) II.

e) III.

aversão ao sentimentalismo racionalidade valorização do conteúdo imagético aridez mineral

metalinguagem preocupação formal sintaxe rigorosa Nordeste

Ensino Médio | Modular 13

LITERATURA BRASILEIRA

João Cabral e a metalinguagem

Dedicado a uma radical particularização da sua linguagem poética, ao mesmo tempo que defensor da necessidade de planejar, projetar, tratar o poema como uma obra calculada, João Cabral não só dedicou sua vida à reflexão sobre o fazer poético, mas consolidou suas ideias sobre poesia e linguagem em uma vasta série de poemas. A metalinguagem é, pois, tão constante em sua obra, como tema e preocupação, que pode ser considerada uma de suas características mais marcantes.

Leia o trecho de um poema que é praticamente uma explicação sobre o modo de esse poeta con-ceber e realizar poesia.

Psicologia da composição ISaio de meu poemacomo quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-seque o sol da atençãocristalizou; alguma palavraque desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma conchadessas (ou pássaro) lembre, côncava, corpo do gestoextinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisavazia, que despi.

IIEsta folha brancame proscreve* o sonhome incita ao versonítido e preciso.

Eu me refugio nesta praia puraonde nada existeem que a noite pouse.[...]

* Proscreve = expulsa

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 93.

Nem toda produção metalinguística de Cabral, porém, aborda aspectos da linguagem e do fazer poético de forma objetiva, não metafórica. Confira o poema a seguir:

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:ele precisará sempre de outros galos.De um que apanhe esse grito que elee o lance a outro; de um outro galoque apanhe o grito que um galo antese o lance a outro; e de outros galosque com muitos outros galos se cruzemos fios de sol de seus gritos de galo,para que a manhã, desde uma teia tênue,se vá tecendo, entre todos os galos.

II

E se encorpando em tela, entre todos,se erguendo tenda, onde entrem todos,se entretendendo para todos, no toldo(a manhã) que plana livre de armação.A manhã, toldo de um tecido tão aéreoque, tecido, se eleva por si: luz balão.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 345.

1. Em sua opinião, por que o título do poema é “Psicologia da composição”?

2. Que características do fazer poético o “eu lírico” do poema anterior aponta e valoriza?

3. Identifique, no texto, dois exemplos de metalinguagem.

Modernismo – Terceira Fase14

O poema “Tecendo a manhã” é, na realidade, uma obra metalinguística, ou seja, é um poema que fala do fazer poético, embora, em um primeiro momento, fale de galos cujos cantos fazem o alvorecer. Com base nessa informação, responda:

1. Metaforicamente, quem os galos representariam então?

2. E o que seriam os gritos desses galos?

3. Como se pode interpretar o primeiro verso nessa perspectiva? (“Um galo sozinho não tece uma ma-nhã”)

4. A parte II do poema fala exatamente da realização poética, discursiva. Quais as características que o “eu lírico”, nesse trecho, atribui a essa elaboração poético-discursiva? Interprete os seguintes versos:

“E se encorpando em tela, entre todos,

Se erguendo tenda, onde entrem todos,

[...]

(a manhã) que plana livre de armação.”

O que isso nos diz sobre sua concepção do fazer poético-dicursivo?

Releia os seguintes trechos do poema “Tecendo a manhã”:

“De um que apanhe esse grito que elee o lance a outro; de um outro galoque apanhe o grito que um galo antese o lance a outro; e de outros galos”

Os poetas podem transgredir as normas linguísticas, da morfologia e da sintaxe, por exemplo. Do mesmo modo, podem, em nome dos efeitos estéticos da poesia, montar palavras e frases que se desviam da norma- -padrão. Sabendo disso, discuta com o professor e os colegas:

João Cabral teria, no trecho anterior, utilizado algum recurso desse tipo?

LITERATURA BRASILEIRA

15Ensino Médio | Modular

Em outros de seus poemas metalinguísticos, João Cabral de Melo Neto reconta o mito de um herói, Anfion. Leia a seguir:

Fábula de Anfion

[...]2. O acaso

Encontro com o acaso

No deserto, entre osesqueletos do antigovocabulário, Anfion,

no deserto, cinzae areia como um lençol, há dez dias

da última ervaque ainda o tentouacompanhar, Anfion,

no deserto, mais, nocastiço linho domeio-dia, Anfion,

agora que levadode todo canto, em silêncio, silêncio

desperto e ativo comouma lâmina, deparao acaso, Anfion.

[...]

Tebas se fazDiz a mitologia(arejadas salas, denítidos enigmaspovoadas, mariscosou simples nozescuja noite guardadaà luz e ao ar livrepersiste, sem se dissolver)diz, do aéreo parto daquele milagre:

Quando a flauta soouum tempo se desdobrou

do tempo, como uma caixade dentro de outra caixa.

3. Anfion em TebasAnfion busca

em Tebas o deserto perdido

Entre Tebas, entrea injusta sintaxeque fundou, Anfion,

entre Tebas, entremãos frutíferas, entrea copada folhagem

de gestos, no verãoque, único, lhe restae cujas rodas

quisera fixarnas, ainda possíveis,secas planícies

da alma, Anfion,ante Tebas, como a um tecido que

buscasse adivinharpelo avesso, procurao deserto, Anfion.

[...]

Lamento diantede sua obra

“Esta cidade, Tebas,não a quisera assimde tijolos plantada,

que a terra e a floraprocuram reavera sua origem menor:

como já distinguironde começa a hera, a argila, ou a terra acaba?

Desejei longamenteliso muro e branco,puro sol em si

como qualquer laranja;leve laje sonheilargada no espaço.

Onde a cidade volante, a nuvemcivil sonhada?”

Anfion e a flauta“Uma flauta: comodominá-la, cavalosolto, que é louco?

Como antecipara árvore de somde tal semente?

daquele grão de ventorecebido no açudea flauta cana ainda?

Uma flauta: como preversuas modulações, cavalo solto e louco?

Como traçar suas ondasantecipadamente, como faz, no tempo, o mar?

A flauta, eu a jogueiaos peixes surdos--mudos do mar.”

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 89-92.

16 Modernismo – Terceira Fase

Linguagens construindo cidades

Na mitologia greco-latina, Anfion era irmão de Zeto. Ambos eram filhos do mais poderoso dos deuses, Zeus, e de uma mortal, Antíope. Essa origem parcialmente divina lhes rendia raros atributos. Zeto possuía força e habilidades práticas descomunais. Talentos que empregava nos trabalhos braçais e na agricultura. Já Anfion detinha o poder de dominar, com sua música, todas as coisas, animadas ou não. Os irmãos viviam disputando para descobrir quais eram as habilidades mais valorosas: as

práticas ou as artísticas e intelectuais. Um dos mais notáveis empregos de seus poderes especiais teria sido exatamente a construção das muralhas da ci-dade de Tebas. Conta o mito que Anfion e seu irmão Zeto decidiram construir e delimitar essa cidade. Enquanto Zeto carregava pedras nas costas e usava sua extrema habilidade e força física para alinhá--las e organizá-las, Anfion edificava tudo apenas com o toque de um instrumento musical, guiando as pedras com o poder sobrenatural de sua arte. Ao longo da tradição ocidental, muitos foram os artistas que recontaram essa história em suas obras. Porém, os instrumentos atribuídos a Anfion na realização de tal tarefa variam: para alguns, ele tocava uma flauta; para outros, uma lira.

TIEPOLO, Giovanni Battista. A força da eloquência: Anfion erguendo as muralhas de Tebas com sua lira. 1724. 1 afresco. Palazzo Sandi-Porto, Veneza.

1. Volte a analisar a versão pictórica de Tiepolo para o mito de Anfion construindo Tebas. Observe o título da obra. Por que o pintor teria chamado esse afresco de A força da eloquência?

2. Tiepolo, ao dar esse nome à sua pintura, está transmitindo uma mensagem. Qual é ela?

1. O que representa a música de Anfion no poema de Cabral?

2. Se a música de Anfion representa a linguagem instrumental do poeta, então o que representa a construção de Tebas?

3. Releia atentamente a última parte do poema em que Anfion se lamenta pela sua obra. Que caracte-rísticas de sua criação o deixam insatisfeito?

4. É possível interpretar os elementos de insatisfação de Anfion metalinguisticamente. Como?

5. Ainda em uma interpretação metalinguística do poema, como se pode entender a relação de Anfion com sua flauta?

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Ensino Médio | Modular 17

LITERATURA BRASILEIRA

João Cabral e as artes plásticas

A poesia de João Cabral é permeada de referências à arte. Seus poemas mencionam escritores, arquitetos, pintores. Sem dúvida, a arte faz parte da temática do poeta. Em específico, as alusões à pintura aliam dois dos interesses do poeta: a arte pictórica em si e o gosto pela construção imagética.

MONDRIAN, Piet. Composição com vermelho, amarelo, azul e preto. 1921. 1 óleo sobre tela, color., 59,5 cm x 59,5 cm. Haags Gemeetemuseum, Haia.

MONDRIAN, Piet. Quadro 2 com amarelo, preto, vermelho e cinzento. 1922. 1 óleo sobre tela, color., 55,6 cm x 53,4 cm. Fundação Solomon R. Guggenheim. Museu Solomon R. Guggenheim, Nova Iorque.

Leia este poema de João Cabral, cuja temática é a pintura de Piet Mondrian:

No centenário de Mondrian[...]

Quando a alma dispersaem todas as mil coisasdo enredado e prolixodo mundo à sua volta,

ou quando se dissolvenas modorras da música,no invertebrado vago,sem ossos, de água em fuga,

ou quando se empantananum alcalino demaisque adorme o ácido vivoque rói porém que faz,

ou quando a alma borrachatem os músculos lassose é incapaz de molaspara atirar-se ao faço:

então, só essa pinturade que foste capaz,de que excluíste até o nada, por demais,

e onde só conservasteo léxico concisode teus perfis quadradosa fio, e também fios,

pois que, por bem cortados,ficam cortantes aindae herdam a agudezados fios que os confinam,

então, só essa pinturade cores em voz alta,cores em linha reta,despidas, cores brasa,

só tua pintura clara,de clara construção,desse construir clarofeito a partir do não,

pintura em que ensinastea moral pela vista(deixando o pulso mansodar mais tensão à vida),

só essa pintura pode, com sua explosão fria, incitar a alma murcha,de indiferença ou acídia,

e lançar ao fazera alma de mãos caídas, e ao fazer-se, fazendo,coisas que a desafiam.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 378-379.

Modernismo – Terceira Fase18

Mondrian consagrou-se como pintor moderno devido ao estilo que aplicou à fase mais madura de sua produção. Empregando a simplicidade e a pureza como princípios essenciais de sua arte, o pintor criou uma série de obras que utilizaram as linhas ortogonais, os ângulos retos, fundo branco com linhas negras e cores vibrantes, sobretudo as primárias. Com isso, visava chegar à abstração pura, a uma pintura que não apenas refletisse elementos do mundo, mas fosse, em si, um construto intelectual que levasse o observador e o artista a transcenderem os limites da compreensão cotidiana da arte, da razão, do humano.

É possível traçar um paralelo entre a poética de João Cabral e as qualidades da obra de Mondrian pontuadas no poema anterior? Levante alguns exemplos:

João Cabral e a engenharia

Cabral nutriu, ao longo de sua carreira literária, apreço especial pela imagem do engenheiro. As ideias de racionalidade, cálculo, precisão, construção milimetricamente projetada, clara, envol-

vidas no trabalho do arquiteto, do engenheiro, foram traduzidas para sua poética. Nas palavras do próprio poeta:

“Quem mais influência exerceu sobre mim, teoricamente, foi o arquiteto Le Corbusier. Por muitos anos, ele significou para mim lucidez, claridade, construtivismo. Em resumo: o predomínio da inteligência sobre o instinto.”

MELO NETO, João Cabral de. [Entrevista à revista Veja]. In: BARBOSA, João Alexandre. A lição de Cabral. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998.

Le Corbusier: arquitetura influenciando a poesia de Cabral

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me & Life Pictures

LITERATURA BRASILEIRA

19Ensino Médio | Modular

O engenheiro

A luz, o sol, o ar livreenvolvem o sonho do engenheiro.O engenheiro sonha coisas claras:superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;o desenho, o projeto, o número:o engenheiro pensa o mundo justo,mundo que nenhum véu encobre.

(em certas tardes nós subíamosao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro.)

A água, o vento, a claridadede um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifícioCrescendo de suas forças simples.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 69-70.

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As obras de Le Corbusier eram, inicialmente, como a “máquina de morar”, como era conhecida a Villa Savoye

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Capela de Notre Dame du Haut, robusta e fechada, projetada pelo arquiteto Le Corbusier: um modelo das obras da fase mais madura de sua carreira e inspiração para João Cabral no poema “Fábula de um arquiteto”

Fábula de um arquitetoA arquitetura como construir portas,de abrir; ou como construir o aberto;construir, não como ilhar e prender,nem construir como fechar secretos;construir portas abertas, em portas;casas exclusivamente portas e teto.

O arquiteto: o que abre para o homem(tudo se sanearia desde casas abertas)portas por-onde, jamais portas-contra;por onde, livres: ar luz razão certa.

Até que, tantos livres o amedrontando,renegou dar a viver no claro e aberto.Onde vãos de abrir, ele foi amurandoopacos de fechar; onde vidro, concreto;até refechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 345-346.

20 Modernismo – Terceira Fase

No poema “Fábula de um arquiteto”, João Cabral fala de algumas qualidades da arquitetura, ao passo que explora duas fases criativas do arquiteto Le Corbusier: a primeira marcada por construções racionais e abertas, a segunda pontuada por obras mais orgânicas, protetivas. Essas qualidades podem ser aplicadas, inclusive, à visão da arte como um todo, manifesta pelo poeta. Nesse sentido, como se podem interpretar as seguintes passagens?

a) “Construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e teto.”

b) “Até que, tantos livres o amedrontando, renegou dar a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, ele foi amurando opacos de fechar; onde vidro, concreto; até refechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto.”

João Cabral e o NordesteCom igual inventividade e racionalidade com que tratava das paisagens internacionais, das artes e da

linguagem como temas, João Cabral abordou o Nordeste. As temáticas regionais são caras ao poeta em todos os momentos de sua obra: das paisagens aos hábitos, da vegetação à história, todos os aspectos do Nordeste brasileiro interessaram a Cabral, que via nessa terra e em seu povo a agudez cortante das lâminas, a pureza cáustica do mineral, do árido, do solar que, como temas, tanto o encantaram.

Confira essas características no poema a seguir:

A escola de facas

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Cortador de cana-de-açúcar trabalhando em canavial

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Coqueirais e canaviais: elementos emblemáticos da paisagem nordestina, nativa ou transformada pelo homem

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Mar

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O alísio ao chegar ao Nordestebaixa em coqueirais, canaviais;cursando as folhas laminadas,se afia em peixeiras, punhais.Por isso, sobrevoada a Mata,suas mãos, antes fêmeas, redondas,

ganham a fome e o dente da facacom que sobrevoa outras zonas.

O coqueiro e a cana lhe ensinam, sem pedra mó, mas faca a faca,como voar o Agreste e o Sertão:mão cortante e desembainhada.

Alísio: vento que percorre as

regiões tropi-cais durante o

ano inteiro.Pedra mó:

pedra de moer, de moinho.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 429.

Ensino Médio | Modular 21

LITERATURA BRASILEIRA

Morte e vida severina: “auto de Natal pernambucano”Talvez o poema mais conhecido de João Cabral, “Morte e vida severina”, explora a condição dos

habitantes das zonas rurais do Sertão Nordestino, passando pelas dificuldades e desigualdades sociais vividas por esses indivíduos, castigados pela aridez do clima, pela falta de saúde, pelas extenuantes condições de trabalho. Ao mesmo tempo, Cabral revela crenças, hábitos e cultura desses habitantes. Quanto à forma, vale destacar que esse é um poema dramático, um texto para teatro, escrito em versos. Tal caráter estrutural fica claro já no subtítulo do poema: autos são pequenas peças teatrais de estrutura dramática relativamente simplificada.

“Morte e vida severina” conta a vida de Severino, um retirante que resolve abandonar as agruras do Sertão e partir em busca de melhores condições de vida no litoral. Seu caminho, não demarcado por estradas ou vias, é guiado pelo Rio Capibaribe. Seguindo seu curso, Severino che-garia a Recife. A aridez do Sertão, porém, mais uma vez castiga o retirante, que vê o Capibaribe secar e se perde. Depois de muito vagar e sofrer, Severino chega a Recife e adentra a cidade pelos mangues de sua periferia, uma região tão empobrecida e miserável como aquela de onde partira.

Acreditando que pobreza e morte seriam tudo o que encontraria ali, e que toda sua peregri-nação fora vã, resolve, então, suicidar-se. Porém, outro personagem, mestre Zé Carpina, vendo o desalento de Severino, resolve levá-lo para uma celebração. Uma criança acabara de nascer em uma das simples casinhas da região. Severino vai até a casa onde a família comemora o nascimento (o Natal) do bebê. Ali, deixa-se envolver pelo clima de esperança representado pela nova vida. Decide, então, viver.

Leia, agora, o trecho inicial do poema de João Cabral de Melo Neto:

– O meu nome é Severino,como não tenho outro de pia.Como há muitos Severinos,que é santo de romaria,deram então de me chamarSeverino de Maria;como há muitos Severinoscom mães chamadas Maria,fiquei sendo o da Mariado finado Zacarias.Mas isso ainda diz pouco:há muitos na freguesia,por causa de um coronelque se chamou Zacariase que foi o mais antigosenhor desta sesmaria.Como então dizer quem falaora a Vossas Senhorias?Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias,lá da serra da Costela,limites da Paraíba.Mas isso ainda diz pouco:se ao menos mais cinco haviacom nome de Severinofilhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,já finados, Zacarias, vivendo na mesma serramagra e ossuda em que eu vivia.Somos muitos Severinosiguais em tudo na vida:na mesma cabeça grandeque a custo é que se equilibra,no mesmo ventre crescidosobre as mesmas pernas finase iguais também porque o sangueque usamos tem pouca tinta.E se somos Severinosiguais em tudo na vida,morremos de morte igual,mesma morte severina:que é a morte de que se morrede velhice antes dos trinta,de emboscada antes dos vinte,de fome um pouco por dia(de fraqueza e de doençaé que a morte severinaataca em qualquer idade,e até gente não nascida).[...]

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 171-172.

O retirante explica ao leitor quem é e a que vai

Análise da

obra Morte e vida severina@LIT947

Modernismo – Terceira Fase22

1. Pela leitura do trecho do poema anterior, podem ser percebidos muitos dos problemas de Severino. Aponte alguns deles.

2. Além das expostas, há ainda uma condição que ele deixa transparecer ao falar de seu nome. Qual é ela?

3. Severino é um nome próprio, mas, no poema, João Cabral o emprega como um adjetivo, falando em “morte severina”, “vida severina”. Como se pode interpretar esse fato? Como isso se relaciona com o título do poema?

4. Quantas sílabas métricas possui cada verso do poema?

5. Por que o poeta utilizou a redondilha maior para compor esse poema?

Em 1977, o poema dramático “Morte e vida severina” foi adaptado para o cinema, em um filme homônimo, com roteiro e direção de Zelito Viana.

No filme, o trecho de apresentação de Severino é fielmente declamado por esse personagem. A adaptação para o cinema, no entanto, não é a maior responsável pela popularidade dessa obra de João Cabral. Ela foi difundida e passou a ser mais conhecida após sua adaptação para a televisão, em 1981, dirigida por Walter Avancini. Os versos foram extraídos do auto de João Cabral, e as músicas foram compostas por Chico Buarque especialmente para essa produção.

Um dos trechos mais consagrados desse teatro musical é o interpretado pela atriz Tânia Alves, conhecido como “Funeral de um lavrador”.

Leia o trecho do poema que foi musicado:

Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério

Ancho: largo, amplo.

Capa do filme Morte e vida severina

– Essa cova em que estás, com palmos medida,é a conta menorque tiraste em vida.– É de bom tamanho, nem largo nem fundo,é a parte que te cabedeste latifúndio.– Não é cova grande, é cova medida,é a terra que querias ver dividida.– É uma cova grande,

para teu pouco defunto,mas estarás mais anchoque estavas no mundo.– É uma cova grandepara teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo.– É uma cova grande para tua carne pouca,mas a terra dada não se abre a boca.[...]

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 183-184.

Ensino Médio | Modular 23

LITERATURA BRASILEIRA

A Constituição Federal promulgada em 1998 assegura o direito de propriedade, mas também defende que ela deve exercer uma função social. Na história da propriedade rural brasileira, um dos maiores problemas é a exis-tência de latifúndios, enormes extensões de terra subaproveitadas que são mantidas nas mãos de poucos homens.

Para refletir a respeito desse tema, veja o que diz o início do artigo 184 da Constituição:

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização [...]

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 29 fev. 2012.

Apesar do que determina o texto constitucional, muitos latifúndios ainda persistem. A ausência de reforma agrária é, em muito, responsável pelas dificuldades vividas pelos indivíduos reais que inspiraram a criação do Severino de João Cabral. Considerando isso, discuta com o professor e os colegas como o poeta retrata a presença dos latifúndios no território nordestino.

1. No trecho anterior do poema “Morte e vida severina”, pode-se perceber um contraste en-tre o que o personagem desejava em vida e as condições em que ele foi sepultado. O que tal contraste permite depreender sobre as condi-ções de existência dos trabalhadores severinos, como esse que foi enterrado?

2. (FUVEST – SP) É correto afirmar que, em “Mor-te e vida severina”:a) a alternância das falas de ricos e de pobres,

em contraste, imprime à dinâmica geral do poema o ritmo da luta de classes;

b) a visão do mar aberto, quando Severino fi-nalmente chega ao Recife, representa para o retirante a primeira afirmação da vida con-tra a morte;

c) o caráter de afirmação da vida, apesar de toda a miséria, comprova-se pela ausência da ideia de suicídio;

d) as falas finais do retirante, após o nascimen-to de seu filho, configuram o “momento afirmativo”, por excelência, do poema;

e) a viagem do retirante, que atravessa am-bientes menos e mais hostis, mostra-lhe que a miséria é a mesma, apesar dessas varia-ções do meio físico.

3. (FUVEST – SP) É correto afirmar que no poe-ma dramático “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto:a) a sucessão de frustrações vividas por Severino

faz dele um exemplo típico de herói moder-no, cuja tragicidade se expressa na rejeição à cultura a que pertence;

b) a cena inicial e a final dialogam de modo a indicar que, no retorno à terra de ori-gem, o retirante estará munido das convic-ções religiosas que adquiriu com o mestre Carpina;

c) o destino que as ciganas preveem para o recém-nascido é o mesmo que Severino já cumprira ao longo de sua vida, marcada pela seca, pela falta de trabalho e pela reti-rada;

d) o poeta buscou exprimir um aspecto da vida nordestina no estilo dos autos medievais, valendo-se da retórica e da moralidade reli-giosa que os caracterizam;

e) o “auto de natal” acaba por definir-se não exatamente num sentido religioso, mas enquanto reconhecimento da força afir-mativa e renovadora que está na própria natureza.

Modernismo – Terceira Fase24

4. (PUC-Campinas) A leitura integral de “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto, permite a correta compreensão do título desse “auto de natal pernambucano”:a) tal como nos evangelhos, o nascimento do

filho de Seu José anuncia um novo tempo, no qual a experiência do sacrifício represen-ta a graça da vida eterna para tantos “seve-rinos”;

b) invertendo a ordem dos dois fatos capitais da vida humana, mostra-nos o poeta que, na condição “severina”, a morte é a única e ver-dadeira libertação;

c) o poeta dramatiza a trajetória de Severino, usando o seu nome como adjetivo para qua-lificar a sublimação religiosa que consola os migrantes nordestinos;

d) Severino, em sua migração, penitencia-se de suas faltas e encontra o sentido da vida na confissão final que faz a Seu José, mestre Carpina;

e) o poema narra as muitas experiências da morte, testemunhadas pelos migrantes, mas culmina com a cena de um nascimento, sig-no resistente da vida nas mais ingratas con-dições.

5. (ITA) Na obra Quaderna (1960), João Cabral de Melo Neto incluiu um conjunto de textos, inti-tulado “Poemas da cabra”, cujo tema é o pa-pel desse animal no universo social e cultural nordestino. Um desses poemas é reproduzido aqui:

Um núcleo de cabra é visível por debaixo de muitas coisas. Com a natureza da cabra Outras aprendem sua crosta. Um núcleo de cabra é visível em certos atributos roucos que têm as coisas obrigadas a fazer de seu corpo couro. A fazer de seu couro sola. a armar-se em couraças, escamas:como se dá com certas coisas e muitas condições humanas. Os jumentos são animais que muito aprenderam da cabra. O nordestino, convivendo-a, fez-se de sua mesma casta.

Acerca desse poema, não se pode afirmar que:

a) [...] o poeta vê a cabra como um animal forte e que influencia outros seres que vivem em condições adversas.

b) [...] aquilo que a cabra parece ensinar aos demais seres é a resignação e a paciência diante da adversidade.

c) [...] a cabra oferece uma espécie de modelo comportamental para aqueles que precisam ser fortes para enfrentar uma vida dura.

d) [...] a cabra é um animal resistente ao meio hostil em que vive, assim como outros ani-mais também o são, como o jumento.

e) [...] há no poema uma aproximação entre a cabra e o homem nordestino, pois ambos são fortes e resistentes.

Guimarães RosaJoão Guimarães Rosa, contista, novelista, romancista e

diplomata, nasceu em Cordisburgo, MG, em 1908. Filho de um dono de armazém, desde pequeno ouvia as aventuras dos vaqueiros que paravam na loja de seu pai para comprar mantimentos. Formado em 1930 pela Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, atuou como médi-co, por concurso, da Força Pública do Estado de Minas Gerais. Sua função primordial era percorrer o

Acervo Iconographia

João Guimarães Rosa

Casa onde nasceu e viveu Guimarães Rosa, na cidade de Cordisburgo, MG. Hoje, é sede de um museu destinado ao autor

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Guimarães Rosa:

biografia, obras,

cronologia e estilo

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Ensino Médio | Modular 25

LITERATURA BRASILEIRA

interior de Minas atendendo pacientes nos lugares mais remotos. No ano de 1934, Rosa tornou-se diplomata e atuou como cônsul em Hamburgo, na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial. Durante esse período, ajudou diversos judeus a fugirem dos nazistas. Em 1951, voltou ao Brasil, onde passou a residir até a sua morte, em 1967, que ocorreu três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras.

Como escritor, Guimarães Rosa tornou-se conhecido do grande público com o livro de contos Sagarana, no ano de 1946.

Com a publicação do romance Grande sertão: veredas, em 1956, o autor se consagrou. Considerado um dos mais importantes textos da literatura em língua portuguesa, Guimarães Rosa fez uso de material de origem regional

(linguagem, história e cultura) para uma interpretação mítica da realidade. Por meio de símbolos e mitos de validade universal, a experiência humana é recriada mediante uma revolução formal e estilística.

No plano da linguagem, o escritor faz constante uso da fala popular e regional, além de criar neolo-gismos e utilizar arcaísmos. Conhecedor profundo de diversas línguas estrangeiras, Guimarães mesclou a língua portuguesa a criações verbais diversas, que tiveram, com certeza, origem em outros idiomas.

Rosa e as histórias de jagunços: Grande sertão: veredas

Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1964. p. 18.

No romance Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa apresenta, de maneira bastante clara, a chegada da civilização e das regras impostas pela lei à região interiorana de Minas Gerais. Esse movimento de interiorização jurídica e política vivida pelos personagens no romance é reflexo do próprio deslocamento político da Capital Federal do litoral para o interior do país e da tentativa de levar para o interior a civilização entendida aqui como o direito à educação, à saúde, à segurança, conforme ditava a Constituição de 1946.

Nessa obra, o narrador Riobaldo, um jagunço, conta suas aventuras pelo sertão a um interlocutor que está de passagem por sua fazenda. A história, que é narrada por três dias consecutivos, não segue uma linearidade cronoló-gica. Ora o narrador fala do presente, ora do passado, tornando a leitura um verdadeiro desafio intelectual.

Ordenando a cronologia dos episódios, Riobaldo fala da sua infância e principalmente do fato de que, após a morte de sua mãe, foi levado para a fazenda de seu padrinho, que na verdade era seu pai. Certo dia, aos estudos, acaba por aceitar o convite para integrar o bando de jagunços comandados por Zé Bebelo. Esse grupo representa as forças do Estado que se moderniza e que está em conflito com os grupos locais contrários às intervenções políticas do governo e que são comandados por Joca Ramiro.

Com o passar do tempo, Riobaldo muda de lado e passa a integrar as tropas do grande chefe de jagunços Joca Ramiro. Nessa época, Riobaldo conhece Reinaldo, que tem o nome verdadeiro de Diadorim. Eles acabam por se tornar grandes amigos durante as andanças pelo Sertão.

Riobaldo passa a contar como as tropas de Zé Bebelo foram derrotadas e seu chefe aprisionado. Ao invés de ser imediatamente executado, Zé Bebelo pede um julgamento para os seus atos.

Os combatentes se reúnem, então, para julgá-lo. Hermógenes, vinculado ao grupo de Joca Ramiro, quer que o inimigo seja morto. Porém, Joca Ramiro, em sua sentença, diz que Bebelo deve ser expulso do Sertão, não devendo nunca mais retornar.

Capa do livro Sagarana

Capa da primeira edição de Grande sertão: veredas (1956)

Análise da

obra Sagarana@LIT499

Modernismo – Terceira Fase26

A paz parece perdurar. Entretanto, Joca Ramiro é traído e assassinado por Hermógenes. Diante disso, Zé Bebelo resolve retornar ao Sertão para vingar a morte do homem que havia salvado a sua vida.

Já envelhecido, Bebelo não consegue guiar os homens pelo Sertão, e Riobaldo, ao perceber a incapacidade do novo chefe, assume o comando. Para conseguir capturar Hermógenes, Riobaldo vai a um local chamado Veredas Mortas e faz um suposto pacto com o diabo, objetivando conseguir força. A partir daí, ele e seus homens perseguem o grupo de Hermógenes pelo sertão norte de Minas Gerais e sul da Bahia e terminam por vencê-los.

Infelizmente, durante a batalha, Diadorim morre baleado. Riobaldo descobre, então, em um momento de extrema comoção, que o amigo de combate, por quem nutria um afeto especial, era, na verdade, uma mulher, filha do célebre líder de jagunços Joca Ramiro.

Tempos depois, Riobaldo recebe a notícia da morte de seu padrinho, herda duas fazendas e se casa com Otacília, antigo amor de sua vida.

Enquanto conta a história, Riobaldo faz diversas reflexões sobre a vida e a existência de Deus e do diabo. Na verdade, já envelhecido, teme pela sua alma.

Leia os momentos iniciais de Grande sertão: veredas:

– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, carão de cão: determinaram era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. [...] Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.

Do demo? Na gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num Aristides – o que existe no buritizal primeiro desta minha mão direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-de--Santa-Rita – todo mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando: – “Eu já vou! Eu já vou!...” – que é o capiroto, o que-diga... E um Jisé Simpilício – quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpilício se empresa em vias de completar de rico. [...] Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava... porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado? Há-de, não me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há, quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes, será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns três meses... Então? Que-Diga? Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma com as presenças!

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Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. Sei que é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos. [...] O senhor não é como eu? Não acreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Gois. [...] Pois não sim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão. [...]

Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. [...] Viver é negócio muito perigoso...

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem ou é o homem arrui-nado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho...

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p. 9-11.

(UNIFESP) Leia o texto a seguir e responda às questões:

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o ho-mem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor apro-va? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter uma aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo ne-nhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é o ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho... (Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.)

1. A fala expressa no texto é de Riobaldo. De acordo com o narrador, o diabo:

a) vive preferencialmente nas crianças, livre e fazendo as suas traquinagens;

b) é capaz de entrar no corpo humano e to-mar posse dele, vivendo aí e perturbando a vida do homem;

c) só existe na mente das pessoas que nele acreditam, perturbando-as mesmo sem existir concretamente;

d) não existe como entidade autônoma, an-tes reflete os piores estados emocionais do ser humano;

e) é uma condição humana e não está rela-cionado com as coisas da natureza.

Modernismo – Terceira Fase28

2. O personagem Riobaldo dialoga com alguém que chama de senhor. Embora a fala dessa personagem não apareça, é possível recupe-rar, pela fala do narrador, os momentos em que seu interlocutor se manifesta verbalmen-te. Isso pode ser comprovado pelo trecho:

a) O senhor aprova?

b) Nenhum! – é o que digo.

c) Não? Lhe agradeço!

d) Tem diabo nenhum.

e) Até: nas crianças – eu digo.

3. O texto de Guimarães Rosa mostra uma forma peculiar de escrita, denunciada pelos recursos

linguísticos empregados pelo escritor. Entre as características do texto, está:

a) o emprego da linguagem culta, na voz do narrador, e o da linguagem regional, na voz da personagem;

b) a recriação da fala regional no vocabulário, na sintaxe e na melodia da frase;

c) o emprego da linguagem regional predo-minantemente no campo do vocabulário;

d) a apresentação da língua do Sertão fiel à fala do sertanejo;

e) o uso da linguagem culta, sem regionalis-mos, mas com novas construções sintáticas e rítmicas.

Grande sertão: veredas também teve uma versão para o cinema. Trata-se de um filme de 1964, dirigido por Renato Geraldo Santos Pereira. Assim como “Morte e vida severina”, também consta na lista das obras de literatura brasileira adaptadas para TV. Em 1985, foi ao ar a minissérie homônima, baseada no romance de Guimarães Rosa. Foram 25 capítulos, dirigidos por Walter Avancini, contando versões das histórias e dramas dos jagunços do grande Sertão.

A cena em que Riobaldo contempla o corpo morto de Diadorim levou, na época, milhares de bra-sileiros à comoção extrema.

(IBMEC – RJ) Utilize o texto a seguir para responder ao teste:

Amor e morte“Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela

rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair.Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça,

consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia.Não me mostrou de propósito o corpo. E disse…Diadorim – nu de tudo. E ela disse:– ‘A Deus dada. Pobrezinha…’E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu

não contei ao senhor – e mercê peço: – mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube… Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa.

A coice d’arma, de coronha…Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto

tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores.

Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero.

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável; abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca.

Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata… Cabelos que, no só ser, haviam de dar para abaixo da cintura… E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:

– ‘Meu amor!…’Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder

não presenciar o mundo.A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor

peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de

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coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa--senhora. Só faltou – ah! – a pedra-de-ametista, tanto trazida…O Quipes veio, com as velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. Como tinham ido abrir a cova, cristãmente. Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: – ‘Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba … ’ Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços decididos choravam… Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão. Ela tinha amor em mim. E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 530-531.

A que verdade Riobaldo, o narrador, se refere?

a) Ao fato de que Diadorim andava disfarçada porque não correspondia ao sentimento que Riobaldo nutria por ela.

b) Ao fato de tanto terem lutado e, mesmo as-sim, perderem a luta pela posse e domínio das terras do lugar.

c) Ao misticismo que acompanhava Diadorim. Tanto é que se fez enterrar com escapulário, rosário e pedra de ametista.

d) Ao iminente fim do bando a partir da morte de Diadorim que era comandante da tropa.

e) Ao fato de que ele se sentia totalmente atraí-do por Diadorim, mesmo antes de saber que ela era mulher.

Cultura popularÉ comum encontrar opiniões defendendo a importância do

conhecimento acadêmico, formal, fundamentado por teorias e demonstrações científicas. Raro, porém, é se deparar com discursos em defesa do patrimônio cultural popular. Muitas pessoas desco-nhecem o grande valor dos conhecimentos passados de maneira informal, de geração para geração. Há mesmo quem considere o conjunto dos saberes populares como menos digno de interesse ou de estudo. As manifestações do folclore e da sabedoria do povo, verificáveis nas canções, histórias, danças, ou até mesmo em al-guns hábitos cotidianos e falares regionais e sociais são, contudo, elementos de extrema importância para compreender a cultura de um país como um todo. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) empenha-se na defesa das tradições e preservação desse tipo de patrimônio. Atualmente, são admitidos como patrimônio cultural e tombados como tal comidas típicas (como o acarajé), modos de fazer (como o método de produção das canoas de tronco), manifestações folclóricas e falares regionais.

Autores consagrados como Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto perceberam isso. Apesar de sua elevada formação acadêmica, ambos voltaram-se para a cultura popular e incorporaram a linguagem, os hábitos e as práticas das populações do interior do Sertão brasileiro em suas obras, e não se portaram apenas como intelectuais, que retratam pragmaticamente a realidade, mas como artistas que captaram a essência da cultura popular e ressaltaram sua universalidade e importância.

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30 Modernismo – Terceira Fase

Primeiras, terceiras e outras histórias: Rosa contistaAlém de romancista, Guimarães Rosa foi exímio contista. Ele publicou três livros de contos:

Sagarana, em 1946, Primeiras estórias, em 1962, e Tutameia, em 1967. O livro Corpo de baile, de 1956, posteriormente dividido em três partes, é um livro de novelas, gênero intermediário entre o conto e o romance.

Os livros de Guimarães Rosa foram ilustrados pelos artistas plásticos Poty Lazzarotto e Luis Jardin. As ilustrações foram feitas sob a orientação do escritor que atribuía a elas forte simbolismo. Os desenhos integravam com o texto a ideia de livro como obra de arte.

Capa do livro Primeiras estórias

Poty LazzarottoNapoleon Potyguara Lazzarotto (Curitiba – PR

1924 – idem 1998). Gravador, desenhista, ilustrador, muralista e professor. [...] Organiza, ao longo da década de 1950, cursos sobre gravura em Curitiba, Salvador e Recife. Desde os anos 1960 tem destaque como muralista, com diversas obras em edifícios públicos e particulares no país e no exterior. Tem relevante atuação como ilustrador de obras literárias como as de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha e Dalton Trevisan, entre outros. [...]

Poty possui uma extensa obra gráfica, tendo realizado inicialmente diversas histórias em quadrinhos e ilustrado livros de diversos autores nacionais e estrangeiros. Grande propagador da gravura, atuou como professor em diversas cidades brasileiras. A ele se deve uma das primeiras apropriações artísticas conhecidas da litografia: pedras litográficas previamente usadas na impressão de rótulos industriais são retrabalhadas pelo artista, que mantém traços das gravações anteriores [...]. Seus murais, vitrais e painéis apresentam ampla relação com a sua atividade de gravador, principalmente pela aproximação à visualidade da xilogravura. [...]

ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Lazzarotto, Poty (1924-1998). Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=3077>. Acesso em: 1 mar. 2012.

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Em Primeiras estórias, personagens deslocados, afastados do pensamento imposto pelos padrões usuais de racionalidade, vivem fatos pitorescos e banais sempre repletos de uma reflexão ou um encantamento diante das coisas. São crianças, loucos, desajustados, marginalizados que provocam pequenas revelações e são atingidos por elas, ao longo dos contos do livro.

Leia um dos mais importantes contos do livro Primeiras estórias:

A terceira margem do rioNosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino,

pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

LITERATURA BRASILEIRA

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Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: – “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: – “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas – passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda – descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado dela, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitando, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor,

Modernismo – Terceira Fase32

sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos – sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável.

Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus de árvore descendo – de espanto do esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pelos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: – “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que não era certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei – na vagação, no rio no ermo – sem dar razão do seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice – esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei,

Ensino Médio | Modular 33

LITERATURA BRASILEIRA

1. A terceira margem de um rio seria um lugar tangível, material, existente de fato?

2. Ao longo do texto, levanta-se alguma finalidade prática, imediata, para o pai ter se isolado em meio a um rio corrente, sem nunca mais se comunicar com nenhuma das margens? Diante disso, o que se pode dizer de suas motivações?

3. De acordo com a sua interpretação, por que o conto se chama “A terceira margem do rio”?

1. Qual é a imagem que o narrador tem de seu pai? Como foi obtida essa imagem?

2. O texto deixa explícito o motivo pelo qual o pai construiu a canoa e passou a viver nela, em meio ao rio? Justifique sua resposta.

3. Depois de anos observando o pai na canoa em meio ao rio, o narrador toma uma atitude que, fi-nalmente, restabelece uma conexão entre o pai e uma das margens materiais do rio. O que ele faz?

4. Após esse ocorrido, qual é a imagem que o fi-lho passa a fazer de si? Por quê?

umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: – “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordando. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro – o rio.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.

34 Modernismo – Terceira Fase

Os músicos brasileiros Caetano Veloso e Milton Nascimento compuseram a letra e a melodia de uma música ins-pirada no conto de Guimarães Rosa “A terceira margem do rio”.

Conheça a letra dessa música.

A terceira margem do rio

NASCIMENTO, Milton; VELOSO, Caetano. A terceira margem do rio. In: Circuladô vivo. Rio de Janeiro: Universal Music, 1992. 2 CD, digital, estéreo.

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Caetano Veloso e Milton Nascimento

1. (IELUSC) Texto para a próxima questão:

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-ge-rais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, ter-ras altas, demais do Urucúia. Toleima. [...] Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar, dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde crimino-so vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. (Guimarães Rosa)

O texto é um fragmento de Grande sertão: veredas (1956), único romance de Guimarães Rosa. Sobre esta grandiosa obra, assinale a alternativa correta:

a) trata-se de uma história em que o autor fala da vida dos cangaceiros, “os errantes sem eira nem beira”, que sofriam com o calor das ma-tas amazônicas;

b) é uma história apresentada como um imen-so monólogo em que Riobaldo, ex-jagunço do norte de Minas e agora pacato fazendeiro, conta os casos que viveu a um compadre;

c) conta a saga de Severino, um retirante que atravessa o sertão de Pernambuco em busca de uma vida mais digna;

d) narra a história de amor entre Gabriela e Nacib, tendo os traços exóticos da região de Ilhéus como cenário;

e) valendo-se do realismo fantástico em sua segunda parte, traz, como personagens cen-trais, mortos que ressuscitam para denunciar a corrupção dos vivos.

(UEL – PR) As questões 2 e 3 referem-se à passagem transcrita do conto “Famigerado” (Primeiras estó-rias, 1962), de João Guimarães Rosa (1908-1967).

Oco de pau que diz:Eu sou madeira, beiraBoa, dá vau, triztrizRisca certeiraMeio a meio o rio riSilencioso, sérioNosso pai não diz, diz:Risca terceiraÁgua da palavraÁgua calada, puraÁgua da palavraÁgua de rosa duraProa da palavraDuro silêncio, nosso paiMargem da palavraEntre as escuras duasMargens da palavraClareira, luz maduraRosa da palavraPuro silêncio, nosso pai

Meio a meio o rio riPor entre as árvores da vidaO rio riu, riPor sob a risca da canoaO rio riu, riO que ninguém jamais olvidaOuvi, ouvi, ouviA voz das águasAsa da palavraAsa parada agoraCasa da palavraOnde o silêncio moraBrasa da palavraA hora clara, nosso paiHora da palavraQuando não se diz nadaFora da palavraQuando mais dentro afloraTora da palavraRio, pau enorme, nosso pai

Ensino Médio | Modular 35

LITERATURA BRASILEIRA

[...]

Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgera-do... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas--gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí ou-tro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a pa-lavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

– “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...”

Se sério, se era. Transiu-se-me.

“Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o legítimo – o livro que aprende as palavras... É gente pra informação tor-ta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

Famigerado? “Sim senhor...” – e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, in-timativo – apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. – Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

“Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...”

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...

“Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoá-vel? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”

Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expres-sões neutras, de outros usos...

“Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”

Famigerado? Bem. É: “importante”, que me-rece louvor, respeito...

Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?”

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

Olhe: eu, como o Sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famige-rado – bem famigerado, o mais que pudesse!...

“Ah, bem!...” – soltou, exultante.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 14. ed. Rio de Ja-neiro: Nova Fronteira, 1985. p. 15-16.

2. De acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o adjetivo “famigerado” sig-nifica “que tem fama; muito notável; célebre; famoso; famígero”. Acontece que, tendo sido utilizado inúmeras vezes associado à palavra malfeitor, “famigerado malfeitor”, acabou por adquirir o significado negativo do substantivo ao qual esteve reiteradamente ligado. Daí resultou uma segunda acepção: “mal afamado, perver-so”. O segundo significado é resultante de des-vio em relação ao significado primeiro.

Com base nessa elucidação, na passagem do conto rosiano transcrita e no conto como um todo, considere as afirmativas a seguir.

I. Damázio, o jagunço, procura o médico no ar-raial para esclarecimento a respeito da palavra “famigerado” porque acha que foi ofendido pelo moço do Governo que assim o denominou.

II. A resposta oferecida pelo médico à questão levantada pelo jagunço não foi motivada pelo medo de possível violência por parte do jagunço, mas antes pelo seu conhecimento da língua portuguesa restrito aos registros da norma culta.

III. Damázio só foi procurar pelo médico no ar-raial porque no sertão, embora existam di-cionários disponíveis, “o legítimo – o livro que aprende as palavras”, não há quem pos-sa resolver questões desta espécie.

IV. Quando questionado pelo jagunço, o médi-co, para evitar maiores problemas, oferece- -lhe o primeiro significado da palavra, en-gambelando, desta forma, o homem do ser-tão e evitando possível violência.

Estão corretas apenas as afirmativas:a) I e II. b) I e IV.c) III e IV. d) I, II e III.e) II, III e IV.

Modernismo – Terceira Fase36

3. As palavras de Damázio são registradas de ma-neira condizente com sua origem sertaneja. Assim, lê-se, no texto, entre muitas outras ex-pressões similares, “pra mor de lhe preguntar a pregunta”. Tal fato revela:

a) preconceito do autor com relação ao sertane-jo iletrado, marginalizando-o através da fiel transcrição de sua fala em desacordo com a norma linguística vigente e incompreensível para o homem culto da cidade;

b) descaso do autor para com o registro da fala do homem do Sertão, somando-se, desta for-ma, à política brasileira dominante em 1962, quando seu livro foi escrito, que pouco se ateve à problemática desses seres marginali-zados;

c) consciência política do autor que, através do registro da fala arcaica de seus sertanejos, ob-jetiva trazer à tona problemas concernentes à marginalidade e à subserviência experimenta-das por esses homens incapazes de ostentar alguma forma de poder;

d) vínculo da obra rosiana com obras regionalis-tas brasileiras que a antecederam, nas quais há o registro concomitante de duas falas mui-to diferentes entre si, a do sertanejo e a do ho-mem da cidade, como é o caso, por exemplo, de São Bernardo, de Graciliano Ramos;

e) conhecimento, por parte do autor, da existên-cia de um outro ser, ainda que também brasi-leiro, distinto daquele que se faz presente na cidade. Sua especificidade registra-se de dife-rentes maneiras, inclusive na maneira como fala.

4. (PUC – Rio)

Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito de-pois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras ve-redas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra pre-ta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos. Quando completara sete, havia saído dali, pela primeira vez: o tio Terêz levou-o a cavalo, à frente da sela, para ser crismado no Sucurijú, por onde o bispo passa-va. Da viagem, que durou dias, ele guardara atur-didas lembranças, embaraçadas em sua cabecinha.

De uma, nunca pôde se esquecer: alguém, que já estivera no Mutúm, tinha dito: – “É um

lugar bonito, entre morro e morro, com mui-ta pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...” Mas sua mãe, que era linda e com cabelos pretos e compridos, se doía de tristeza de ter de viver ali. Queixava-se, principalmente nos demorados meses chuvosos, quando carregava o tempo, tudo tão sozinho, tão escuro, o ar ali era mais escuro; ou, mesmo na estiagem, qualquer dia, de tardinha, na hora do sol entrar. – “Oê, ah, o triste recanto...” – ela exclamava. Mesmo assim, enquanto esteve fora, só com o tio Terêz, Miguilim padeceu tan-ta saudade, de todos e de tudo, que às vezes nem conseguia chorar, e ficava sufocado. E foi descobriu, por si, que, umedecendo as ventas com um tico de cuspe, aquela aflição um pou-co aliviava. Daí, pedia ao tio Terêz que molhas-se para ele o lenço; e tio Terêz, quando davam com um riacho, um minadouro ou um poço de grota, sem se apear do cavalo abaixava o copo de chifre, na ponta de uma correntinha, e subia um punhado d’água. Mas quase sempre eram secos os caminhos, nas chapadas, então tio Terêz tinha uma cabacinha que vinha cheia, essa dava para quatro sedes; uma cabacinha entrela-çada com cipós, que era tão formosa. – “É para beber, Miguilim...” – tio Terêz dizia, caçoando. Mas Miguilim ria também e preferia não beber a sua parte, deixava-a para empapar o lenço e refrescar o nariz, na hora do arrocho. Gostava do tio Terêz, irmão de seu pai. Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado – que o Mutúm era lugar bonito... A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a ideia de poder trazê-lo desse jeito de cór, como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas. Tão grave, grande, que nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e, assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe, estre-mecido, aquela revelação.

Vocabulário:Covão: baixada estreita e profundaMinadouro: nascente de um córrego

Identifique o foco narrativo do texto de Guimarães Rosa. Em seguida, indique três recur-sos linguísticos empregados pelo narrador, nos fragmentos acima, para aproximar-se do univer-so infantil.

Ensino Médio | Modular 37

LITERATURA BRASILEIRA

A produção mais intimista da Geração de 45

2

Os dois trechos a seguir pertencem a momentos diferentes da produção literária nacional. Analise-os e compare-os:

“O engenho e a casa de farinha repletos de flagelados. Era a população das margens do rio, arrasada, morta de fome, se não fossem o bacalhau e a farinha seca da fazenda. Conversavam sobre os incidentes da enchente, achando graça até nas peripécias de salvamento. João de Umbelino mentia à vontade, contando pabulagens que ninguém assistira. Gente esfarrapada com meninos amarelos e chorões, com mulheres de peitos murchos e homem que ninguém dava nada por eles – mas uma gente com quem podia se contar na certa para o trabalho mais duro e dedicação mais canina.”

REGO, José Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 31.

“[...] meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo – “era assim que ela beijava” – naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos – todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor, na dor e na saudade, essa imagem única que havia partido para sempre?”

CARDOSO, Lúcio. A crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 19.

1. Qual é o tema abordado em cada um dos trechos?

2. Em qual dos dois trechos a linguagem é mais objetiva e em qual é mais subjetiva?

3. Um dos fragmentos apresenta uma preocupação social. Qual deles? A qual período você acha que esse fragmento pertence?

38 Modernismo – Terceira Fase

Como já vimos, a produção da década de 1930 se ca-racterizou por um engajamento profundo nas questões sociais, pela denúncia das mazelas, pelo enfoque do homem pobre e oprimido e das regiões mais esquecidas do país. Era a vez do sertanejo, do retirante, do excluído aparecer e reclamar por uma situação melhor de vida.

No período seguinte, essa conquista já tinha sido alcançada, as pessoas já estavam cientes do que acon-tecia no Nordeste, os autores já eram lidos e bem recebidos por um bom público. Nesse cenário, a preo- cupação dos artistas mudou de foco, era necessário produzir uma literatura de maior qualidade, que não se prendesse somente ao descritivo e aos fatos sociais. Era o momento de rever o que acontecia com o homem e o seu mundo interior, criar mais espaço para extravasar os seus sentimentos, principalmente depois do fim da Segunda Guerra Mundial e da sensação de desolação e desorientação.

Na Geração de 45, a tendência intimista da litera-tura ganha forte representação, especialmente com Clarice Lispector e Nelson Rodrigues.

Os autores desse período desenvolveram algumas propostas da Geração de 30, em especial a estética desenvolvida por Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Lúcio Cardoso e Cornélio Pena, aprofundando o mer-gulho no universo interior.

Surgiu, então, uma literatura de sondagem psico-lógica e introspectiva. O regionalismo e a denúncia social, quando abordados, eram vistos por uma ótica interna e pessoal. O regional era abordado como um tema universal, os sentimentos do homem e o que ele sentia passou a ser mais importante do que o fato, que aparece, assim como as descrições, em segundo plano, sempre filtrados pela subjetividade do indivíduo imerso no mundo.

Do ponto de vista formal, a Geração de 45 aban-donou o tom exagerado e irônico da Primeira Geração Modernista e trabalhou com textos mais sérios e ela-borados, valendo-se de um trabalho formal, que lembra aquele desenvolvido pelos parnasianos e simbolistas.

Andrew Wyeth é um dos pintores mais famosos dos EUA, do século XX, e ficou conhecido por retratar a solidão do homem moderno

WYETH, Andrew. O mundo de Cristina. 1948. 1 têmpera no painel, color., 81,28 cm x 121,92 cm. Museu de Arte Moderna, Nova Iorque.

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PORTINARI, Candido. Retirantes. 1944. 1 óleo sobre tela, color., 190 cm x 180 cm. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo.

Contexto histórico

da Geração de 45

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Ensino Médio | Modular 39

LITERATURA BRASILEIRA

Clarice Lispector

Clarice Lispector (1920-1977) nasceu na Ucrânia sob o nome de Haia Pinkhasovna Lispector, mas logo que a família mudou para o Brasil, quando ela tinha 2 meses, passou a se chamar Clarice.

Vieram para o Brasil por causa da Guerra Civil Russa (1918-1921), fugindo da perseguição contra os judeus.

Mudaram-se inicialmente para Maceió, onde par-te da família já estava, depois foram para Recife e, posteriormente, instalaram-se no Rio de Janeiro. Lá, a escritora completou os estudos e entrou para a Facul-dade de Direito.

Aos 19 anos, publicou seu primeiro conto, “Triunfo”, na Revista Pan, o qual foi muito bem recebido pela crítica. No mesmo ano, chamou atenção de Lorival Fontes, chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda, com o conto “Jimmy e eu”, sendo convidada para trabalhar na Agência Nacional.

Em 1943, formou-se no curso de Direito e se casou com um colega de faculdade, Maury Gurgel Valente, que viria a se tornar um diplomata. Nesse mesmo ano, publicou seu romance de estreia Perto do coração selvagem, marcado pela sua tendência intimista.

Por conta do trabalho do marido, Clarice Lispector morou em diferentes lugares: Itália, Inglaterra, Suíça e Estados Unidos.

Em 1959, separou-se do marido e mudou-se difinitivamente para o Rio de Janeiro, onde passou a colaborar para diversos jornais. Em 1964, publicou seu livro mais conhecido A paixão segundo G.H.

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Lispector:

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O trabalho de Clarice Lispector está ligado à corrente filosófica conhecida como Existencialismo. Para esse movimento, o indivíduo está no centro das experiências do mundo, pois é por meio do indivíduo que o mundo ganha sentido. Os acontecimentos por si sós não têm significado, a forma como os homens os interpretam e os significam é que elimina o absurdo, a ansiedade, o tédio e o desespero do mundo.

Os principais representantes desse pensamento fo-ram Søren Aabye Kierkegaard, Jean-Paul Sartre e sua esposa, Simone de Beauvoir.

Esses filósofos, frequentemente, colocavam ques-tões como: O que somos? O que nos move? Para onde vamos?, porque tinham consciência aguda da solidão e do abandono.

Esses mesmos tópicos aparecerão, posteriormente, nos livros de Clarice Lispector.

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Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir

40 Modernismo – Terceira Fase

Conheça um pouco mais sobre Clarice Lispector (CL) lendo a transcrição da última entrevista que ela concedeu, a Julio Lerner (JL), antes de morrer:

[...]JL: É mais fácil você se comunicar com adulto ou com a criança? CL: Quando eu me comunico com criança, [longa pausa] é fácil, porque sou muito maternal.

Quando eu comunico com adulto, na verdade, estou comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil.

JL: O adulto é sempre solitário? CL: O adulto é triste e solitário. JL: E a criança?CL: A criança tem a fantasia, né... solta. JL: A partir de qual momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai se transformando em

triste e solitário? CL: [longa pausa] Isso é segredo. [Pausa] Desculpa, eu não vou responder. [pausa] A qualquer

momento na vida, basta um choque um pouco inesperado e isso acontece. Mas eu não sou solitária não, tenho muitos amigos. E só estou triste hoje porque estou muito cansada, de modo geral sou alegre.

[...]JL: Por que continuar escrevendo, Clarice?CL: E eu sei!? Por que no fundo a gente não está querendo alterar as coisas, a gente está querendo

desabrochar de um modo ou de outro. JL: No seu entender, qual é o papel do escritor brasileiro hoje em dia? CL: O de falar o menos possível.

A MAGIA DA POESIA. Entrevista com Clarice Lispector na TV Cultura em 1977. Disponível em: <http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/entrevista-com-clarice-lispector-na-tv-cultura-em-1977/>. Acesso em: 27 fev. 2012.

A hora da estrelaEste é o último livro publicado por Clarice Lispector. Nele, a autora conta a história de Macabéa, uma

alagoana que se muda para o Rio de Janeiro, abordando as dificuldades que a personagem enfrenta por ser imigrante, pobre, feia e ignorante. Paralelo a esse enredo, há a voz do narrador Rodrigo S. M., que conta sobre seu processo de escrita e sobre a personagem.

Há uma tensão entre esses enredos paralelos. De um lado, a vida de Macabéa; de outro, a vida interior do narrador, que relata todo o processo de criação do livro. Essas duas figuras, ainda que pareçam distantes, fundem-se para a construção do livro.

“Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um ruflar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. Não há dúvida de que ela é uma pessoa física. E adianto um fato: trata-se de uma moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha. Vergonha por pudor ou por ser feia? Pergunto-me também como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos? É que de repente o figurativo me fascinou: crio a ação humana e estremeço.”

A trama da obra é simples, o romance se destaca pela sondagem interna do próprio narrador e de Macabéa, por meio do fluxo de consciência e do monológo interior.

Ensino Médio | Modular 41

LITERATURA BRASILEIRA

Macabéa é uma moça pobre que migra para o Rio de Janeiro onde trabalha sem sucesso como datilógrafa. É hostilizada por muitos e ignorada por outros. Vive sem grandes questionamentos, aceitando o pouco que a vida lhe oferece. Arranja um namorado, Olímpico, que a abandona para ficar com a colega de trabalho, Glória. Olímpico acreditava que o pai de Glória, açougueiro, poderia ajudá-lo a melhorar de vida. Macabéa descobre que está com tuberculose e não conta a ninguém, mas muito abalada resolve consultar uma cartomante, que lhe diz que encontrará um homem loiro e estrangeiro e com ele se casará.

Ao sair da consulta, é atropelada por uma Mercedes-Benz amarelo e se consagra pela primeira e única vez na vida. O instante de sua morte é a hora da estrela, quando todos se voltam para ela e a enxergam pela primeira vez.

Influenciados por autores estrangeiros, como Virginia Woolf e James Joyce, os escritores da vertente intimista se valem de técnicas modernas de apresentação da subjetividade e do incons-ciente como:

monólogo interior: como um discurso pronunciado por um só ator, o monólogo interior é um recurso literário que procura reproduzir o pensamento dos personagens de forma livre;

fluxo de consciência: também um recurso literário, tem por objetivo a reprodução do pensa-mento, porém, neste, as relações de nexo, pontuação e paragrafação são mais livres do que no monólogo interior, pois a personagem está dando vazão aos seus pensamentos como eles surgem em sua cabeça, sem qualquer ordenação;

metalinguagem: não se trata, necessariamente, de um recurso para apresentação da subje-tividade do personagem, mas aparece comumente nas obras de caráter intimista, pois traz o processo de escrita para o plano da enunciação, isto é, o narrador aborda a escrita como um tema do livro.

“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.

Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas

acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. [...]

Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos.

Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa da originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio “gran finale”, seguido de silêncio e chuva caindo.”

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. p. 25-26.

1. O trecho anterior abre a obra A hora da estrela. Com base na leitura desse trecho, é possível di-zer sobre o que trata o livro?

2. Pode-se dizer que o narrador conhece bem a protagonista do romance? Justifique sua res-posta com um trecho do fragmento.

Análise da

obra A hora da estrela@LIT522

Modernismo – Terceira Fase42

3. Nessa passagem, o narrador fala mais sobre a personagem ou sobre si mesmo? Explique a es-colha feita por ele com base nas informações a respeito da Geração de 45 e do romance inti-mista.

4. A autora se vale de um recurso muito comum nesse período literário. Assinale-o.

a) Personificação, uma vez que o narrador atri-bui características humanas a seres inanima-dos.

b) Metalinguagem, porque fala sobre o próprio processo de escrita do romance.

c) Ambiguidade, já que o narrador parece falar de um assunto, mas, na verdade, está tra-tando de outro.

d) Hipérbole, uma vez que o narrador exagera as informações, distorcendo-as.

e) Ironia, pois o narrador, na verdade, pensa exatamente o contrário daquilo que escreve.

O fragmento a seguir refere-se à questão 5:

“Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão – os maus antecedentes de que falei. Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febre ruins no sertão de Alagoas, lá onde o diabo perdera as botas. Muito depois fora para Maceió com a tia beata, única parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudo no alto da cabeça porque o cocuruto de uma cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. Dava-lhe sempre com os nós na cabeça de ossos fracos por

falta de cálcio. Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual – a tia que não se casara por nojo – é que também considerava seu dever evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem. Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro vir a ser vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato de vir a ser mulher não parecia pertencer a sua vocação. A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol.”

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. p. 43.

5. Nesse trecho, observamos elementos típicos da Geração de 30 e outros próprios da Geração de 45. Aponte-os.

6. Em diversos momentos, pode ser identificada a intromissão do narrador, que apresenta o seu ponto de vista sobre a história. Assinale os tre-chos em que isso acontece:

( ) “Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão – os maus antecedentes de que falei.”

( ) “Com dois anos de idade lhe haviam morri-do os pais de febre ruins no sertão de Ala-goas, lá onde o diabo perdera as botas.”

( ) “Dava-lhe sempre com os nós na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio.”

( ) “A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol.”

Felicidade clandestinaClarice Lispector se destacou também pela produção de contos. Inicialmente publicados em

revistas e depois compilados em livro, têm como temas a infância, a adolescência e a família, sempre caracterizados por uma visão psicológica e subjetiva dos eventos.

São 13 contos praticamente sem ações externas, em que os eventos banais do cotidiano são vistos pela ótica do monólogo interior e do fluxo de consciência. O estilo é poético, mas não dentro dos padrões tradicionais e, sim, segundo os ditames da pós-modernidade, em que o lírico aparece com a sondagem interior, por meio de frases curtas e de impacto, ou ainda na inconsistência do tempo e do espaço. Muitas vezes, as frases não fazem sentido ou os adjetivos parecem deslocados. Esses são recursos para demonstrar a angústia e os anseios internos dos personagens.

A epifania surge como um elemento central, pois é quando os personagens se libertam das amarras sociais e dos acontecimentos e se voltam para si mesmos, como uma revelação pessoal.

Epifania: pode ser

entendida, no sentido reli-

gioso, como a aparição ou a manifestação

de algum ser divino,

ou ainda, do ponto de vista

psicológico e filosófico,

pode ser per-cebida como a compreensão

súbita de algo.

Ensino Médio | Modular 43

LITERATURA BRASILEIRA

Uma galinhaEra uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para

ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou – o tempo de a cozinheira dar um grito – e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os

olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

– Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu

filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

– Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!– Eu também! jurou a menina com ardor.

A mãe, cansada, deu de ombros.Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio,

jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga – e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

LISPECTOR, Clarice. Uma galinha. In: Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 43-46.

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Tepidez: condição ou es-tado de tépido; de pouca força ou intensidade.

Parturiente: que está pres-tes a dar à luz,

ou deu à luz, recentemente.

Modernismo – Terceira Fase44

1. A personagem de Macabéa, em A hora da es-trela, e a galinha do conto anterior, possuem elementos em comum. Qual é a semelhança entre elas?

2. (ENEM) O conto de Clarice Lispector, publicado na obra Laços de família, pode ser considerado como uma alegoria que busca estabelecer uma crítica em que se percebe:

a) a saída de um estado de passividade e a to-mada de consciência que leva a uma atua-ção/reação;

b) a representação de um estado passivo mar-cado pela não reação frente a uma situação problemática;

c) um elogio da necessidade de repreensão de atitudes consideradas incorretas, metáfora da fuga;

d) a presença de antagonistas no meio social que impossibilitam a sobrevivência de outros seres;

e) a valorização do mundo animal e a necessi-dade de rever os padrões de consumo que caracterizam a sociedade.

3. (ENEM) Pode-se considerar em relação ao con-to “Uma galinha”, de Clarice Lispector, um movimento de ida e volta, de saída à rua e de reclusão, da experiência de liberdade e de au-todescoberta, seguida de nova alienação. Essa representação permite ao leitor inferir que uma das características centrais da poética de Lispector é:

a) o caráter realista materializado na expressão de cenas do cotidiano;

b) a expressão intimista e reflexiva que beira ao existencialismo;

c) a expressão poética politicamente engajada;

d) o caráter regionalista que compõe o quadro de costumes;

e) a expressão em forma de fábula, como reto-mada do romantismo.

Nelson Rodrigues

Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980) nasceu em Pernambuco, mas mudou-se para o Rio de Janeiro em 1916, onde se estabeleceu e morreu.

Com apenas 13 anos, começou a trabalhar no jornal de seu pai, A manhã, na seção policial. Nesse período, conviveu com muitos casos de violência e crimes passionais, que acabaram influenciando toda a sua produção como escritor.

Passou a trabalhar com crônicas esportivas para o Jornal dos sports, comentando, em especial, futebol, uma de suas maiores paixões, que também foi tema de seus livros.

Seu pai fundou um novo jornal chamado Crítica, que foi um sucesso de público. Porém, uma tragédia em 1929 alterou profundamente a vida da família. Depois de noticiar a separação

do casal Sylvia Serafim e João Thibau Jr., a mulher, indignada com a exposição de seu nome na capa do jornal, foi até a redação do jornal e atirou no irmão de Nelson Rodrigues, Roberto,

que veio a falecer dias depois. Esse crime desestruturou a família e marcou profundamente a produção de Nelson.

Na década de 1930, o escritor e jornalista passou a escrever para o jornal O globo e criou a sua primeira peça teatral, Mulher sem pecado. Pouco tempo depois, estreou Vestido de noiva, seu maior sucesso até hoje, que foi encenado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro com grande aceitação por parte do público.

Essa peça retrata a cidade do Rio de Janeiro, incorporando gírias próprias da época e inovações técnicas de cenário. Tornou-se o marco do teatro moderno brasileiro.

Edito

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ens/Antonio Andrade

LITERATURA BRASILEIRA

45Ensino Médio | Modular

Na década de 1950, escreveu A vida como ela é..., uma série de histórias curtas, que foram adap-tadas, anos depois, para a televisão e trouxeram uma análise psicológica crítica da sociedade e seus distúrbios de comportamento.

Nelson Rodrigues morreu com 68 anos de complicações gástricas e cardíacas.

Observe a primeira página de um jornal popular e responda ao que se pede:

Essas manchetes trazem o universo temático em que Nelson Rodrigues trabalhou e que, poste-riormente, fizeram parte do enredo de seus livros. Com base nisso, o que se pode esperar dos contos e peças desse autor?

TRIBUNA, Curitiba, 9 mar. 2012.

Modernismo – Terceira Fase46

A vida como ela é...Esse livro de Nelson Rodrigues traz uma coletânea de contos que têm, como tema central, a vida cotidiana do Rio de

Janeiro. Não se trata, porém, de eventos comuns, pois aborda, na verdade, os aspectos mais grotescos e recônditos da alma humana, como desejos obscuros, casos de assassinato e o que, normalmente, é escondido da sociedade.

Leia o seguinte conto e conheça mais sobre a obra de Nelson Rodrigues.

Feia demaisQuando chegou em casa e as irmãs o esperavam com

a pergunta sôfrega:– Você está namorando aquela pequena?– Estou.Houve um espanto indignado:– Não é possível, não pode ser!– Por quê?E todas, num coro feroz:– Porque é um bucho horroroso! Arranja uma pequena

melhor, mais interessante, bonitinha!O rapaz empalideceu, ressentido com a grosseria

dos comentários. E teve uma atitude muito bonita e viril. Primeiro chamou todo mundo de “espírito de porco”.

Em seguida, anunciou:– Pois fiquem sabendo que eu vou me casar com esse

bucho! Té logo!Virou as costas e foi jogar sinuca no boteco da esquina.

a pequenaMãe e filhas se entreolharam, assustadas. Uma das

pequenas suspirou: “O caso é sério.” Houve, em derredor, a aprovação: “Seríssimo.” E a mãe, que gostava muito daquele filho, fez um voto de abstenção, usando da seguinte alegoria:

– Amarra-se o burro à vontade do dono. Ele quer casar, não quer?

Admitiram: “Parece.” Ela concluiu:– Pois que case e seja feliz.Havia, porém, a esperança ou o desejo de que, com o

tempo, o Herivelto se convencesse da fealdade da menina. Mas que esperança! Estava realmente apaixonado, disposto a se casar de qualquer maneira e no mais breve prazo. Um dia, a mãe, que se caracterizava por um senso comum tremendo, chamou-o: “Vem cá, meu filho. Vamos conversar direitinho.” Herivelto atendeu; fez, porém, a ressalva solene, quase ameaçadora: “Converso, minha mãe, desde que a senhora não fale mal de Fulana.” A outra admitiu, mais do que depressa: “Evidente! Eu até gosto da menina.” Pigarreou e prosseguiu:

– Você quer casar, não quer?– Quero.Veio, então, a pergunta à queima-roupa:– Mas com quê, meu filho? Casar com a roupa do corpo

não é possível. E você, aqui pra nós, não ganha o suficiente. O rapaz ergueu-se. Ficou andando de um lado para outro, com as duas mãos nos bolsos. E, de repente, estacando, definiu-se:

– Minha mãe, sabe qual é a minha opinião? É a seguinte:

o que decide na vida é o peito. Vou me casar no peito!De noite, com a pequena, contou o episódio. Interpelou-a:

“Topas morar num quarto comigo?” Era um momento crucial. Jacira, porém, foi magnífica. Respondeu à altura:

– Com você, meu filho, eu topo tudo!

feia como a necessidadeA verdade é que, num clima de paixão, tanto o rapaz,

como a pequena, estariam dispostos a morrer de fome. Herivelto teve o trabalho de burilar uma frase a propósito dos matrimônios pobres: “O casamento”, dizia ele, “é uma questão de amor e não de boia.” Em vão o advertiam: “Olha que vais dar com os burros n’água.” Replicava, otimista: “Paciência.” Um dia, após um namoro agradabilíssimo, casaram-se. Quando Jacira entrou na igreja, de braço com o padrinho, estava, segundo testemunhas visuais, “um pavor”. Houve quem perguntasse: “Essa menina tem dinheiro?” Não, não tinha. E ninguém compreendia como um rapaz bem apanhado, como o Herivelto, a tivesse escolhido, entre todas. A família do noivo se agarrava, com unhas e dentes, ao seguinte e melancólico consolo: “Não é bonita, mas tem bom coração.”

Só no sétimo ou oitavo dia de lua de mel é que Herivelto começou a desconfiar da verdade. Jacira estava diante do espelho espremendo espinhas. E fazia isso com um deleite, uma volúpia extraordinária. Em silêncio ou, por outra, assoviando, o rapaz contemplava a mulher. Sem querer, sem sentir, estava fazendo um julgamento físico de Jacira. Esta ainda se virou e fez o comentário:

– Ih, meu filho! Estou com uma pele infame!

as outrasA partir de então, quando estava em casa, ele não

fazia outra coisa senão espiar, espreitar a fealdade de esposa. Uma coisa o espantava e amargurava: “Eu estava cego, completamente cego!” Olhava agora Jacira e se saturava de sua falta de graça e de feminilidade. Por outro lado, começava a experimentar uma irritação doentia e contínua. Um dia, em que Jacira estava particularmente desinteressante, fez uma pergunta perversa:

– Será que uma mulher feia não desconfia de própria fealdade?

A outra não percebeu a sugestão. Coçando a cabeça com um grampo, ria:

– Que nada! Pergunta a um bucho se ele é bucho, pergunta?

Durante dois ou três segundos, quase Herivelto a interpela: “E tu?” Conteve-se, porém. Mas sua ilusão se extinguira até o último vestígio. Sabia, agora, que sua mulher, a mulher com quem se casara para sempre,

Ensino Médio | Modular 47

LITERATURA BRASILEIRA

era feia, excepcionalmente feia, feia de uma maneira constrangedora, intolerável. Começou a ter resistências com Jacira, uma espécie de alergia, de incompatibilidade física tremenda. Precisava desabafar com alguém. Correu à própria mãe:

– Mamãe, eu estava bêbado, completamente bêbado, quando casei!

Fora de si, apertando a cabeça entre as mãos, gemia: “Feia demais!” E repetia: “Demais.” Certos deveres ou hábitos de marido já o enfureciam. Por exemplo: ao sair para o trabalho e ao voltar acostumara-se a beijar a mulher na boca. E se, agora, simulava um engano, uma distração, e roçava os lábios na face de Jacira, esta fazia a reclamação amorosa: “Na boca, meu filho, na boca!” Ele se crispava. Esse beijo na boca se transformou, com o tempo, numa fobia. Por outro lado, na rua, no ônibus, ficava fazendo confrontos entre as transeuntes e Jacira. Se encontrava uma mais jeitosa, delirava: “Isso é que é corpo!” Ou, então: “Que rabinho!” E se estivesse com um amigo, cutucava: “Olha que espetáculo!”

a amante O pior de tudo é que Jacira tinha um temperamento

carinhosíssimo. Gostava de dar e receber carinho. De noite, quando Herivelto chegava, ela vinha sentar-se no seu colo e se derramava em dengues: “Tu gostas da tua gatinha, gostas?” Exasperado, e fazendo um esforço para se conter, rosnava: “Sossega. Há hora pra tudo. Vamos jantar.” E se iam a um cinema, Jacira voltava de lá impossível:

– Eu não acho a Lana Turner nada essas coisas. Vulgar. De fato, a pobre pequena era exigentíssima, sempre vendo defeitos nas outras mulheres. A Barbara Stanwick parecia-lhe “tão sem graça”. Herivelto caiu das nuvens, estacou, furioso: “Barbara Stanwick sem graça?! Você bebeu?” Teve vontade de fuzilar a esposa com a pergunta: “Se ela é sem graça, você o que é?” Mas a situação matrimonial tornara-se insolúvel. Era, agora, dominado por uma obsessão. Dizia para si mesmo: “Tenho que arranjar uma cara.” Arranjou uma, com efeito, que trabalhava numa casa de modas. Era uma fulana alta, que na opinião de muitos, lembrava um cavalo de corrida. De uma maneira ou de outra, o fato é que Herivelto se apaixonou. Uma vez, de longe, a fulana viu Jacira. Ao primeiro ensejo, fez, para Herivelto, o comentário:

– Bem feinha tua mulher, hein?Ele esbravejou: “Um bucho horroroso!” A fealdade

da mulher o humilhava.E o interessante é que Jacira não desconfiava de nada,

não percebia que era abominada pelo esposo.

o infielAté que aconteceu o inevitável. Uma noite, Herivelto

chegou em casa, bêbado. E pior do que isso: com

manchas de batom no pescoço, no lenço, etc. Ela, então, que jamais admitira a hipótese de uma infidelidade, virou uma autêntica leoa. Avançou para o marido, de dedo em riste; esganiçava-se: “Que é isso? Que negócio é esse?” Bambo em cima das pernas, o marido teve uma sinceridade de ébrio:

– Tenho uma amante... Tenho uma amante...A princípio, ela não compreendeu. Repetiu, no seu

assombro: “Uma amante!” Mas já o rapaz rolava na cama, ficava de bruços, resmungando coisas ininteligíveis no seu idioma de bêbado. Ela, subitamente feroz, o revirou; segurava-o pela gola do paletó, sacudia-o e gritava: “Eu também vou te trair, ouvistes?” De manhã, quando Herivelto acordou, ela, que não dormira, repetiu:

– Vou fazer o que você me fez. Por essa luz que me alumia!

tragédiaNão teve pressa. Durante 48 horas, debateu-se em

dúvidas medonhas. Trair era ou devia ser facílimo; restava, porém, a pergunta: “Com quem?” Passou em revista todos os amigos e conhecidos. Ia excluindo um por um, através de um processo eliminatório. Acabou se fixando num amigo do marido, um tal de Mascarenhas. Telefonou-lhe, sem dizer quem era. E o outro, ouvindo uma voz feminina, inflamou--se. Queria um encontro imediato, num lugar assim, assim. Ela foi bastante feminina para adiar a entrevista. Depois de uns 15 dias de telefone, Jacira submeteu-se. O outro marcou hora e deu o endereço de um apartamento que mantinha para tais aventuras. Duas horas depois, ela estava lá, apertando o botão da campainha. O próprio abre e Jacira invade o apartamento. Ele parece atônito, não compreende. Jacira percebe nos seus lábios uma expressão de descontentamento quase cruel. Espera uma palavra, uma iniciativa. E como ele não faz, nem diz nada, o interpela: “Então?” O fulano balbucia:

– Desculpe, mas não é possível... Sinto muito... Desculpe...

Pela primeira vez, Jacira sente parcialmente a verdade. Foge dali, como uma criminosa. Em casa, no quarto, coloca-se diante do espelho grande. Revia--se, de corpo inteiro. Compreende tudo. Compreende porque fora quase escorraçada. Coincidiu que, nessa noite, bêbado outra vez, o marido a ultrajasse com a palavra: “Bucho! Bucho!” Teve ódio, um ódio inumano, indiscriminado, contra si mesma, contra o marido, contra o mundo. Esperou que Herivelto mergulhasse no sono de embriagado. Então, já serena, derramou álcool em cima dele e riscou o fósforo. Por entre chamas, ele se revirava, se contorcia, como se tivesse cócegas. Fugiu, uivando, perseguido pelas labaredas. Vizinhos atiraram baldes d’água em cima dele. Herivelto morreu, porém, ali mesmo nu e negro.

RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é... O homem fiel e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-138.

Modernismo – Terceira Fase48

1. O conto de Nelson Rodrigues retrata a vida de pessoas ilustres ou pessoas comuns?

2. O que ocorre de interessante entre eles, então, para que seja abordado no conto?

3. O evento desse conto poderia ser uma manchete de algum jornal popular. Como seria essa man-chete? Escreva a chamada e a notícia em poucas linhas.

Os textos de Nelson Rodrigues sofreram muitas adaptações para a televisão e o cinema, sendo um grande sucesso de público. Os contos de A vida como ela é... foram adaptados para uma série de televisão, que apresentava ao público os textos de Nelson Rodrigues, um por dia, em versões integrais e encenadas por famosos artistas nacionais.

As mais famosas são A dama da lotação, O padrinho, Sem caráter, Bonitinha, mas ordinária, etc.

Atrizes Norma Bengell e Camila Amado na peça Vestido de noiva

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Grupo teatral Tapa em peça de Nelson Rodrigues

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Vestido de noivaO estilo de Nelson Rodrigues é o realista, porém com

forte análise psicológica e intimista. Ele segue a tradição de Machado de Assis e Eça de Queirós ao fazer uma crítica severa à sociedade urbana e seus costumes, em especial ao casamento, porém se diferencia ao aprofundar as questões existenciais, abordando temas como violência e sexo por um viés introspectivo.

Focava especialmente a sociedade carioca, criando um gênero que ficou conhecido como “tragédia carioca”. A peça Vestido de noiva constitui exemplo desse gênero.

As peças de Nelson Rodrigues retomam o modelo grego de tragédia, porém o atualizam para um contexto mais atual.

As tragédias gregas são uma modalidade de teatro que se caracteriza pelo tratamento sério a algum assunto relevante, que envolve personagens heroicos, como reis, rainhas e até deuses. Há sempre um conflito entre o herói e alguma ins-tância maior, como os deuses, ou seu destino, etc.

Normalmente, essas peças têm um final “triste” e levam à catarse (purificação, purgação) do público ao apresentarem o sofrimento dos personagens em cena.

As tramas de Nelson Rodrigues se voltam para a cena familiar com frequência, como é o caso dessa peça.

O texto conta a história de Alaíde, jovem de 25 anos, e do triângulo amoroso vivido dentro da própria família. Alaíde rouba o namorado da irmã, Lúcia, e acaba se casando com ele. Lúcia, para se vingar, mantém um caso com um ex-namorado e eles decidem tramar um complô para enlouquecer e matar Alaíde.

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No início da peça, a protagonista sai de casa atordoada e é atropelada por um caminhão. Começa, então, um período de agonia e degradação para a personagem, que se lembra dos eventos familiares, do seu casamento, da relação com a irmã e a mãe. Inicia também um período de alucinação, em que Alaíde sonha em encontrar madame Clessi, uma

Ensino Médio | Modular 49

LITERATURA BRASILEIRA

prostituta do século passado, em ter aventuras amorosas e ser desejada por vários homens.

Em paralelo, no plano da realidade, os jornalistas apu-ram o atropelamento, agindo de forma desumana e bus-cando apenas um furo jornalístico. Ao final, Alaíde morre na mesa de operação, atordoada.

A peça é dividida em três atos e o cenário em três planos, apresentando aspectos diferentes do enredo:

realidade – neste plano aparece o atropelamento de Alaíde e a sua ida ao hospital, quando a personagem começa a delirar e a lembrar do passado, o que introduz os planos seguintes;

alucinação – quando Alaíde delira e entra em contato com os seus desejos mais escondidos; aparece, então, a sua vontade de ter uma vida mais cheia de aventura e de fugir do casamento. Assim, surge outra personagem, madame Clessi, dona de um bordel no século XX, que habitava o imaginário de Alaíde;

memória – é o plano em que Alaíde se lembra do seu casamento e do fato de ter roubado o namorado, Pedro, de sua irmã, Lúcia. A culpa aparece como um elemento--chave, embaralhando o plano da alucinação e memória.

O uso do cenário dividido em três planos é inovador para o período, bem como o mergulho nos aspectos pessoais da protagonista. O uso dessas novas técnicas fez com que Nelson Rodrigues inaugurasse o teatro moderno no Brasil.

Lembre-se de que os textos dramáticos (teatrais), diferentes da prosa de romance ou dos contos, não pos-suem narrador. As falas dos personagens são apresen-tadas diretamente para o leitor, em discurso direto. Há, ainda, as rubricas, que são as indicações que o autor faz sobre o cenário, o tempo, a vestimenta ou o comporta-mento dos personagens em cena.

PRIMEIRO ATO (Cenário – Dividido em três planos: primeiro plano: alucinação; segundo plano: memória; terceira plano: realidade.

Quatro arcos no plano da memória; duas escadas laterais. Trevas)

MICROFONE – Buzina de automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio.

personagem

VOZ DE ALAÍDE – (microfone) – Clessi, Clessi...

(Luz em resistência no plano da alucinação. Três mesas, três mulheres escandalosamente pintadas, com vestidos berrantes e compridos. Decotes. Duas delas dançam ao som de uma vitrola invisível, dando uma vaga sugestão lésbica. Alaíde, uma jovem senhora, vestida com sobriedade e bom gosto, aparece no centro da cena. Vestido cinzento e uma bolsa vermelha).

rubrica

ALAÍDE (nervosa) – Quero falar com madame Clessi! Ela está?

fala do personagem

(Fala à 1ª. mulher que, numa das três mesas, faz “paciência”. A mulher não responde.)

rubrica

ALAÍDE (com angústia) – Madame Clessi está – pode-me dizer?

ALAÍDE (com ar ingênuo) – Não responde! (Com doçura) Não quer responder?

(Silêncio da outra.)

ALAÍDE (hesitante) – Então perguntarei (pausa) àquela ali.

(Corre para as mulheres que dançam)

ALAÍDE – Desculpe. Madame Clessi. Ela está?

(2ª. mulher também não responde.)

ALAÍDE (sempre doce) – Ah! Também não responde.

(Hesita. Olha para cada uma das mulheres. Passa um homem, empregado da casa, camisa de malandro. Carrega uma vassoura de borracha e um pano de chão. O mesmo cavalheiro aparece em toda a peça, com roupas e personalidades diferentes. Alaíde corre para ele.)

ALAÍDE (amável) – Podia-me dizer se madame...

(O homem apressa o passo e desaparece.)

ALAÍDE (num desapontamento infantil) – Fugiu de mim! (no meio da cena, dirigindo-se a todas, meio agressiva)

Modernismo – Terceira Fase50

Eu não quero nada demais. Só saber se madame Clessi está!

[...]

(Música cortada. Ilumina-se o plano da realidade. Quatro telefones em cena, falando ao mesmo tempo. Excitação)

PIMENTA – É o Diário?REDATOR – É. PIMENTA – Aqui é o Pimenta. CARIOCA-REPÓRTER – É A Noite?PIMENTA – Um automóvel acaba de pegar uma

mulher. REDATOR D’NOITE – O que é que há?PIMENTA – Aqui na Glória, perto do relógio.

CARIOCA-REPÓRTER – Uma senhora foi atro-pelada. REDATOR DO DIÁRIO – Na Glória, perto do

relógio?REDATOR D’NOITE – Onde?CARIOCA-REPÓRTER – Na Glória. PIMENTA – A assistência já levou. CARIOCA-REPÓRTER – Mais ou menos no relógio.

Atravessou na frente do bonde. REDATOR D’NOITE – Relógio. PIMENTA – O chofer fugiu. REDATOR DO DIÁRIO – O.K.CARIOCA-REPÓRTER – O chofer meteu o pé. PIMENTA – Bonita, bem vestida. REDATOR D’NOITE – Morreu?REDATOR D’NOITE – Ainda não. Mas vai. [...]

RODRIGUES, Nelson. Vestido de noiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. p. 9-12.

1. Os textos de Nelson Rodrigues se caracteri-zam pelo realismo de seus temas, mas tam-bém pela abordagem psicológica. Em quais elementos do texto você observa essa aborda-gem?

2. No plano do real, os repórteres conversam. Qual é o objetivo dessa cena?

3. Sobre a personagem de Alaíde, a protagonis-ta, é correto afirmar que:

a) se trata de uma mulher tranquila, cujos dramas não passam da vida doméstica co-mum;

b) é uma mulher atordoada com os seus dese-jos e a vida que leva, procurando meios de escape;

c) como Macabéa, não vivencia os problemas, apenas continua vivendo apaticamente;

d) não se conforma com os fatos da vida e busca tomar novas decisões para si mesma;

e) está satisfeita com a vida que leva e vive tran-quilamente a vida familiar com o marido.

4. Escolha um grupo de alunos e faça uma leitu-ra dramática do trecho em questão. Lembre--se de atender às rubricas, mas ler somente as falas em discurso direto.

O teatro se profissionalizou muito após a sua modernização. Não só os atores e a direção são pessoas es-pecializadas, mas há também profissionais para o trabalho com a montagem do cenário, o seu planejamento, a iluminação, o som, o figurino, etc.

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Ensino Médio | Modular 51

LITERATURA BRASILEIRA

O cenógrafo – pode ser um arquiteto, um artista plástico ou o próprio diretor. Seu trabalho começa estudando a peça como um todo. Deve considerar o número, o tamanho e os tipos de cenários necessários. A partir desse momento, o cenógrafo desenha os primeiros esboços.

A iluminação – desempenha um papel muito importante na criação da atmosfera cênica. Muitas vezes, a iluminação de um espetáculo é concebida pelo próprio diretor ou pelo cenógrafo.

Os figurinos – são desenvolvidos, normalmente, por alguém formado em moda ou designer. Têm as mesmas funções básicas dos cenários. Ajudam na compreensão cênica por parte do público e expressam a atmosfera dominante da peça e das várias cenas. Os figurinos ajudam, ainda, a identificar a época, o local em que se passa a ação e a determinar ambientes específicos, como o campo.

(PUC Minas – MG)

Até tu, Brutus?!

Sim, foi este o modo como eu quis anunciar que – que Macabéa morreu. Vencera o Príncipe das Tre-vas. Enfim a coroação.

Qual foi a verdade de minha Maca? Basta des-cobrir a verdade que ela logo já não é mais: passou o momento. Pergunto: o que é? Resposta: não é.

Mas que não se lamentem os mortos: eles sabem o que fazem. Eu estive na terra dos mor-tos e depois do terror tão negro ressurgi em perdão. Sou inocente! Não me consumam! Não sou vendável! Ai de mim, todo na perdição e é como se a grande culpa fosse minha. Quero que me lavem as mãos e os pés e depois – depois que os untem com óleos santos de tanto perfu-me. Ah que vontade de alegria. Estou agora me esforçando para rir em grande gargalhada. Mas não sei por que não rio. A morte é um encontro consigo. Deitada, morta, era tão grande como um cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso. Macabéa me matou.

Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Desculpai--me esta morte. É que não pude evitá-la, a gente aceita tudo porque já beijou a parede. Mas eis que de repente sinto o meu último esgar de revolta e uivo: o morticínio dos pombos!!! Viver é luxo.

Pronto, passou.

Morta, os sinos badalavam mas sem que seus bronzes lhes dessem som. Agora entendo esta história.

Ela é a iminência que há nos sinos que quase- -quase badalam.

A grandeza de cada um.

Silêncio.

Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande.

O silêncio é tal que nem o pensamento pensa.

O final foi bastante grandiloquente para a vossa necessidade? Morrendo ela virou ar. Ar enérgico? Não sei. Morreu em um instante. O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc. etc. etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.

Eu vos pergunto:

– Qual é o peso da luz?

E agora – agora só me resta acender um ci-garro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lem-brei que a gente morre. Mas – mas eu também?!

Não esquecer que por enquanto é tempo de morango.

Sim.

A hora da estrela, Clarice Lispector

1. Todos os trechos a seguir são exemplos de mo-mentos em que o leitor é explicitamente convo-cado ou tomado pelo narrador, exceto:

Modernismo – Terceira Fase52

a) Qual foi a verdade de minha Maca?

b) Não me consumam!

c) Ar enérgico?

d) Mas – mas eu também?

2. Sobre o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, a afirmativa incorreta é:

a) a voz narrativa usa de ironia para satirizar a literatura tradicional;

b) o narrador Rodrigo S. M. faz frequentes refle-xões metalinguísticas;

c) a invisibilidade social é bastante abordada no livro, principalmente através da personagem Macabéa;

d) a protagonista é Macabéa, uma nordestina, in-gênua, que consegue ascender socialmente gra-ças a uma grande oportunidade de trabalho.

3. Leia os trechos a seguir:

I. Até tu, Brutus?

II. Quero que me lavem as mãos e os pés e de-pois – depois que os untem com óleos santos de tanto perfume.

III. Desculpai-me esta morte.

Há exemplo de referência intertextual em:

a) apenas I;

b) apenas II;

c) I e II;

d) II e III.

4. (UFMS) A propósito de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, assinale a(s) alternativa(s) correta(s).

(01) A angústia das personagens decorre da de-cadência econômica e social da família.

(02) Os acontecimentos da peça parecem ba-nais, mas na verdade o que está em jogo são questões de vida e morte.

(04) O cenário rompe com o padrão tradicional, instituindo três planos, para representar de-lírios, lembranças e fatos reais.

(08) Os conflitos decorrem da luta pelo poder empresarial, figurada como disputa amoro-sa de duas irmãs pelo mesmo homem.

(16) Nos momentos de clímax, figuras poéticas como metáforas, assonâncias, ritmo, alite-rações e rimas internas constroem poemas em prosa.

5. (UCS – RS)

Aprofundamento das horas

Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções a problemas porque nessas situações faço tudo para que as horas passem – e escrever, pelo contrário, aprofunda e alarga o tempo. Se bem que ultimamente, por necessida-de grande, aprendi um jeito de me ocupar escre-vendo, exatamente para ver se as horas passam.

Considerando o fragmento acima, é correto di-zer que a autora

a) escreve para superar a ansiedade, resolver os problemas da vida e não ver o tempo passar.

b) costuma encurtar o tempo de espera para so-lucionar algum problema escrevendo de modo profundo e prolongado.

c) não costuma escrever quando está em situações complicadas, porque a escrita parece prolon-gar o tempo e o melhor, nessas ocasiões, é en-curtá-lo.

d) emprega o tempo de escrita para fugir dos problemas do cotidiano e viver estados de se-renidade.

e) não escreve quando está preocupada, porque esse estado se reflete na escrita, prejudicando sua qualidade.

6. (UCS – RS) Associado ao fim da Segunda Guerra Mundial, o surgimento do Pós-Modernismo pa-rece ter sido desencadeado pela crise de valores que vigoraram a partir do início do século XX. Os conceitos de classe social, de ideologia, de arte e de Estado começaram a ruir, afetados pelas duas guerras mundiais. O Pós-Modernismo nasceu da ruptura com algumas certezas e definições que sustentavam conceitos do campo social, político, econômico e estético.

ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela. Literatura brasi-leira: tempo, leitores e leituras. São Paulo: Moderna, 2005. p. 595 – Texto adaptado.

Quanto ao Pós-Modernismo, assinale a alterna-tiva incorreta.

a) A exploração da linguagem favorece novas ex-periências, que rompem com a estrutura tra-dicional da narrativa, ao mesmo tempo que permitem um mergulho na mais funda intimi-dade do ser humano.

b) As fronteiras entre ideologias de direita e de esquerda, bem e mal, certo e errado, beleza

Ensino Médio | Modular 53

LITERATURA BRASILEIRA

e feiura tornaram-se pouco nítidas; entretanto, insensíveis a esse tipo de contexto, os artistas permaneceram presos aos modelos modernos.

c) Produziu-se uma arte marcada pela diversida-de, multiplicando-se os modos de expressão da realidade, ao se explorarem diferentes te-mas e linhas de experimentação.

d) Os temas desenvolvidos pela ficção em prosa incorporaram elementos do cotidiano urbano contemporâneo, como a violência, objeto de muitos textos de Rubem Fonseca.

e) A consciência crítica da realidade política e social do país pode ser identificada nas obras de poetas como João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar.

7. (UFAC) Observe o fragmento abaixo de um conto de Clarice Lispector:

“Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circun-voluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tron-co da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assas-sinato era profundo. E a morte não era o que pen-sávamos. Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram per-corridos por parasitas folhudos, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entre-ga – era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fasci-nante. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.

Quando Ana pensou que havia crianças e ho-mens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à gar-ganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalha-das na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxa-me de insetos, enviados pela vida mais fina do mun-do. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adi-vinhava que sentia o seu cheio adocicado... O jardim era tão bonito que ela teve medo do inferno.”

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 25.

Em “[...] o mundo era tão rico que apodrecia.”, a antítese revela uma extraordinária capacidade de percepção da personagem porque:

a) torna a personagem incapaz de futuramente compreender fora das imagens figuradas;

b) deduz aquele universo a uma compreensão pobre da sua própria dinâmica de funciona-mento;

c) induz a um equívoco em relação ao real valor dos fenômenos percebidos;

d) subentende a limitação da herança do uni-verso doméstico da personagem que não descola de qualquer possível compreensão fora dele;

e) revela a necessidade de compreensão total do movimento das coisas que naquele momento só possa ser captado por meio de uma ima-gem figurada.

(FURG – RS)

Texto I

Autorretrato

Provinciano que nunca soubeEscolher bem uma gravata;Pernambucano a quem repugnaA faca do pernambucano;Poeta ruim que na arte da prosaEnvelheceu na infância da arte,E até mesmo escrevendo crônicasFicou cronista de província;Arquiteto falhado, músicoFalhado (engoliu um diaUm piano, mas o tecladoFicou de fora); sem família,Religião ou filosofia;Mal tendo a inquietação de espíritoQue vem do sobrenatural,E em matéria de profissãoUm tísico profissional.

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1983.

Texto II

Felicidade clandestina (excerto)

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos ex-cessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos

Modernismo – Terceira Fase54

achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histó-rias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho ba-rato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra borda-díssima palavras como “data natalícia” e “saudade”. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imper-doavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabe-los livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Clarice Lispector. Felicidade clandestina: contos. Rio de Ja-neiro: Rocco, 1998.

8. Nos textos I e II, os autores utilizam a descrição para:

a) explorar os aspectos físicos e comportamen-tais, traços que permitem justificar a atitude irônica do “eu lírico” no texto 1 e sádica da personagem descrita no texto 2;

b) de forma realista, retratar exatamente os as-pectos físicos dos sujeitos a fim de associar suas atitudes às características físicas que lhes são típicas;

c) apresentar o estado de espírito dos sujeitos descritos: no poema, a tristeza do “eu lírico”; no conto, a alegria da narradora;

d) enumerar um grande número de detalhes e assi-nalar os traços mais singulares dos sujeitos, sem se importar com a exatidão e a relevância de tais detalhes para a compreensão dos textos;

e) apresentar um julgamento moral de sujeitos que, limitados por suas características físicas e psicológicas, ficam imobilizados diante das dificuldades enfrentadas.

9. Considere as afirmativas a seguir.

I. No poema “Autorretrato”, como em boa par-te de sua obra, Manuel Bandeira apresenta uma visão bem-humorada dos sofrimentos e descontentamentos do ser humano diante de suas limitações.

II. Clarice Lispector escreveu contos e roman-ces que discutem a relevância do contexto social para os personagens de suas narra-tivas, com uma perspectiva politicamente engajada.

III. Escritores brasileiros do século XX, Clarice Lispector e Manuel Bandeira se aproximam pela tendência negativista, apresentando sempre o homem por seus hábitos e caracte-rísticas mais condenáveis.

IV. Manuel Bandeira é considerado um autor da Primeira Geração Modernista, enquanto Clarice Lispector filia-se à terceira geração de autores do Modernismo brasileiro.

Estão corretas:

a) apenas I e II;

b) apenas II, III e IV;

c) apenas I e IV;

d) apenas I, III e IV;

e) apenas II e III.

10. (ITA – SP) No romance A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, o narrador faz muitas obser-vações acerca de Macabéa, tais como:

I. Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha.

II. Ela não pensava em Deus. Deus não pensava nela.

III. Vejo a nordestina se olhando no espelho e – um ruflar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos.

IV. [...] ela era um acaso. [...] Pensando bem: quem não é um acaso na vida?

Tais frases nos permitem dizer que Macabéa pro-voca no narrador

a) um forte sentimento de piedade, provocado pela condição miserável em que ela vive.

b) um desejo imenso de acolhê-la em sua casa, ou de ajudá-la de alguma forma.

c) uma revolta diante do drama dos migrantes nor-destinos no Sudeste, simbolizado por Macabéa.

d) sentimentos que ele mesmo não sabe definir, mas que têm a ver com a condição humana.

e) uma necessidade de escrever para tentar en-tendê-la, pois ele se identifica com ela.

Ensino Médio | Modular 55

LITERATURA BRASILEIRA

11. (UNIOSTE – PR) Em relação à obra A hora da estrela, de Clarice Lispector, é incorreto afirmar que:

a) Rodrigo S. M. é um narrador onisciente que conta a história de Macabéa, personagem protagonista;

b) o narrador homem Rodrigo S. M. tece refle-xões sobre a posição que o escritor ocupa na sociedade;

c) a obra demonstra o sofrimento de uma mu-lher solitária que, enfim, conhece a felicidade no Rio de Janeiro;

d) a obra se caracteriza por apresentar uma son-dagem psicológica, intimista e evidencia os complexos mecanismos psicológicos;

e) Clarice Lispector funde em um trabalho de metalinguagem o narrador Rodrigo S. M. com a sua personagem protagonista.

(UPE)

SELMINHA (com surda irritação) – Primeiro, responde. Preciso saber. O jornal botou que você beijou.

ARANDIR – Pensa em nós.

SELMINHA – Com outra mulher. Eu sou tua mulher. Você beijou na...

ARANDIR (sôfrego) – Eu te contei, propria-mente, eu não. Escuta. Quando eu me abaixei, o rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão por trás da minha cabeça, assim. E puxou. E, na agonia, ele me beijou.

SELMINHA – Na boca?

ARANDIR – Já respondi.

SELMINHA (recuando) – E por que é que você, ontem!

ARANDIR – Selminha.

SELMINHA (chorando) – Não foi assim que você me contou. Discuti com meu pai. Jurei que você não me escondia nada!

ARANDIR – Era alguém! Escuta! Alguém que esta-va morrendo, Selminha. Querida, olha! (Arandir agarra a mulher, procura beijá-la. Selminha foge com o rosto) Um beijo.

SELMINHA (debatendo-se) – Não!

RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993. p. 970-971.

12. O texto é um fragmento da obra O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues. Considerando a estrutura

formal e a composição do enredo, analise as pro-posições a seguir:

(0-0) O texto é literário e pertence ao gênero dra-mático, no qual as personagens agem sem o intermédio da figura do narrador.

(1-1) O autor definiu seu texto como “Tragédia ca-rioca em três atos”. De fato, trata-se do ani-quilamento da personagem central, Arandir, no contexto da classe média baixa carioca.

(2-2) A peça critica a forma como a mídia sensa-cionalista manipula os fatos para alcançar efeitos espetaculares, independentemente do que isso poderá acarretar às pessoas envolvi-das com esses fatos.

(3-3) O homossexualismo é um tema que atravessa o enredo, uma vez que o protagonista é ho-mossexual e, por isso, discriminado.

(4-4) A peça revela uma imagem simpática da po-lícia carioca, que se apresenta sempre dispos-ta a investigar o que poderá ser classificado como delito.

13. Considerando noções da teoria da “variação lin-guística” e tomando como base de análise o texto, avalie a consistência dos seguintes comentários:

I. O texto se insere numa situação da oralida-de informal. Nesse contexto, são comuns os usos de uma norma menos tensa e menos rígida do ponto de vista gramatical.

II. Em: “Eu sou tua mulher. Você beijou na...”, po-de-se constatar diferentes formas de tratamen-to do interlocutor, o que empresta à interação um efeito de imprecisão e ambiguidade.

III. No texto, aparecem frases inacabadas. Esse fato costuma ocorrer na conversação coloquial. O esperado é que, por elementos do contexto, os vazios sejam adequadamente preenchidos.

IV. Como se pode ver pelo texto, são comuns, do ponto de vista gramatical, usos incorretos, o que põe em risco a identidade da língua, que, assim, vai pouco a pouco se degradando.

V. O texto evidencia que os usos da língua se ajustam às condições da situação em que ocorrem. De fato, a total uniformidade de seus padrões lexicais e gramaticais.

As afirmações que podem ser consideradas cor-retas estão presentes apenas nos itens:

a) I, II e III; b) I, III e IV; c) II e III; d) I, II, III e V; e) I, III e V.

Modernismo – Terceira Fase56