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>> O Cemitério de Boliqueime, tal como define o famoso teórico NORBERG-SCHULZ no livro que escreveu sobre “genius loci – para uma fenomenologia na Arquitetura” interpreta o espírito do local e surpreende, pela forma racional, como o autor interpretou o génio do lugar. Texto e fotografia: Nuno Ladeiro 58 | Não há lugares sem um Génio A arquitetura espiritual de Luís Guerreiro 1

MID nº88 Não há lugares sem um Génio

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O Cemitério de Boliqueime, tal como define o famoso teórico NORBERG-SCHULZ no livro que escreveu sobre “genius loci – para uma fenomenologia na Arquitetura” interpreta o espírito do local e surpreende, pela forma racional, como o autor interpretou o génio do lugar. Texto e fotografia: Nuno Ladeiro

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O Cemitério de Boliqueime, tal como define o famoso teórico

NORBERG-SCHULZ no livro que escreveu sobre “genius

loci – para uma fenomenologia na Arquitetura” interpreta o

espírito do local e surpreende, pela forma racional, como o

autor interpretou o génio do lugar.

Texto e fotografia: Nuno Ladeiro

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Não há lugares sem um GénioA arquitetura espiritual de Luís Guerreiro

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Não há lugares sem um Génio | arquitectura |

Para Luís Guerreiro, autor do projeto de arquitetura, deve haver sempre na primeira

atitude de um projetista, uma aproximação ao lugar e um entendimento do espírito

desse lugar, do conjunto de características socioculturais, arquitetónicas, de

linguagem, de hábitos, que caracterizam, o ambiente, e a cidade. Os cemitérios

europeus são muitas vezes uma continuidade das cidades, tanto pela sua estrutura

de organização como pelas barreiras que criam. Em Boliqueime, Luís Guerreiro,

pensou desde o primeiro momento, num cemitério aberto à paisagem. Tanto pela

topografia do terreno, como pela necessidade de quebrar as barreiras que tantas

vezes delimitam estes espaços de culto.

Um cemitério desempenha um papel fundamental e para o autor deve ser sempre

universal. Por vezes existe algum conservadorismo que condiciona a atitude do

arquiteto. O poder político acaba por ser sempre a maior barreira, porque as

pessoas, os utilizadores que visitam os seus entes queridos adaptam-se e aqui em

particular, já elogiam a forma como o projeto foi conduzido mesmo antes de estar

inaugurado.

1. Portão de ingresso ao Cemitério.

2. Plataforma superior composta

pelos jazigos.

3. Os acessos à zona inferior

são garantidos por rampa,

escada e elevadores elétricos

de maneira a garantir uma

perfeita mobilidade por toda a

zona de intervenção, a todos os

cidadãos.

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Para Luís Guerreiro, o cemitério de Boliqueime é uma malha orgânica em colisão

com a reticula matemática dos ossários que olham o mar. Esta estrutura de ossos,

uma espécie de cidade de ossos, constituída por uma arquitetura fragmentada

é um sinal de morte e ao mesmo tempo, uma estrutura de abandono de todos

os acessórios associados à vida. Esta nova casa poderá tornar-se numa caixa ou

uma espécie de esqueleto que transforma a forma pura que o tempo reduziu ao

essencial. Para o autor, houve uma deliberada intenção de criar uma estrutura

funerária, proposta como garantia de sobrevivência dos defuntos na memória

coletiva que estabelece os limites entre vida e morte, uma abordagem à vida e à

morte.

O piso inferior do cemitério é composto por um somatório de fragmentos que

formam uma analogia indireta às catacumbas que eram os locais que serviam

de cemitério subterrâneo aos primeiros aderentes do cristianismo, para quem a

fé se baseava na esperança da vida eterna após a morte. De acordo com estudos

realizados pelo autor, as catacumbas começaram por ser exploradas e estudadas

por António Bosio (1575-1629) e desenvolvidas por Juan Bautista de Rossi (1822-

1894), considerado o fundador, pai da arqueologia cristã e responsável pela

exploração das catacumbas de S. Calixto. As catacumbas são formadas por

quilómetros de galerias labirínticas que albergam nichos retangulares chamados

lóculos (com capacidade para albergar um único cadáver) que eram fechados com

placas de mármore em que se pintava uma inscrição ou o nome do defunto com

o símbolo do Cristianismo. As catacumbas eram iluminadas com lamparinas de

azeite ou através de lucernas que garantiam uma iluminação zenital natural. Com

frequência se criavam redomas com perfumes de maneira a invocar determinadas

células escritas do Evangelho.

No nível superior do Cemitério existe uma vista semiesferoidal numa base

conceptual de neutralidade imposta pelas superfícies de vidro transparente da

capela, dos espelhados dos jazigos e das foscas cabeceiras iluminadas e fossilizadas

artificialmente por rostos que desenterram memórias de vida. Esta é claramente

4 4

5

4. O nível inferior é composto

por um corredor de "tumbas" em

analogia às catacumbas.

5. Instalação sanitária.

6. A plataforma de ligação ao

antigo cemitério é composta

por zona de ossários, zona de

enterramentos estruturados por

quatro talhões, zona de jazigos

e capela, limitados a Sul por um

espelho de água efémero.

7. A capela é composta por

paredes de vidro e integra uma

zona para colocação da urna que

dará apoio à realização da ceri-

mónia de despedida e também

permitirá o seu transporte para

a zona inferior, para que o corpo

possa ser tratado ou depositado

nos gavetões.

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uma ideia transcendental do tratamento barroco com o dinamismo,

os contrastes mais fortes, dramaticidade, exuberância e realismo,

a manifestar uma tensão entre o gosto pela materialidade opulenta

e as demandas de uma vida espiritual. Para o autor, a cobertura

da Capela, desempenha um papel fundamental. A superfície em

betão branco armado com a forma de um paraboloide hiperbólico

que aponta o céu Nascente e cobre a capela, denúncia uma espiral

em baixo relevo que segundo o autor “deforma-se em direção a

Nascente como se morrêssemos e depois fossemos lentamente

re-encarnados na ótica da filosofia médio oriental e Cristã, em que

existe um novo mundo para além deste”.

Os jazigos são revestidos com aço inox altamente polido para

produzir a reflexão regular dos raios luminosos e das imagens dos

objetos que pontilham a envolvente. Para o autor “esta reprodução

é emitida em direto obrigando, por parte de quem por lá circula,

a entender que é parte contaminada da morte que lá habita a

convergir em uníssono para o infinito global da Eternidade”.

A peça de arte de Christian Boltanski chamada o “Relicário” de

1990 que para Luís Guerreiro representa um resgatar da memória

na ótica de compreender o presente e vacinar o futuro, inspirou

a composição formal dos ossários, e em particular as frentes

dos gavetões. Citando o autor “nesta peça encontramos um nó

de fumegantes, enevoadas e cadavéricas fotografias a preto e

branco extraídas de um retrato de 1939, no qual foram fixadas as

imagens de um grupo de crianças judias, na altura em que estavam

a festejar a vida de Ester, que salvou os judeus da destruição em

473 A.C., durante a ocupação Persa. Instalada na penumbra a peça

é iluminada por pequenas lâmpadas incandescentes que geram

ténues focos de luz. Envolvidas por gavetas materializadas com

latas de bolachas metálicas invocando urnas que suportam um

arquivo comovente operado pelos sentimentos de perda e pelos

remorsos: Um memorial ao holocausto nazi”.

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6

7

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Perfil existente

16.00

13.00

9.00

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CORTE D

ALÇADO

PLANTA À COTA 14.00

Perfil existente

Planta à cota 14.00

D

E

F

D

E

F

A B C

A B C

Legenda:

- Espelho de água;

1- Vazio;

2- Jazigo;

3- Capela;

1 1 1 1

2 2 2 2

3

4

5 5

55

6

7

0 1 5 10 15

4- Elevador;

5- Talhão sepulturas;

6- Ossários;

7- Pré-existência;

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5 5

5

6

1 1 1 1 3

4222 2

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FICHA TÉCNICA

Localização: Boliqueime

Novembro de 2006

Promotor: Câmara Municipal de Loulé

(Eng. Custódio Guerreiro e Arqº. Paisagista Paulo Viegas)

Arquitectura: Arqº Luís Marcos Guerreiro

Colaboradores: Arqª Vera Moreno Vidal, Arqª Carla Simões e Claudia Couto.

Electricidade: Eng. Pina Ribeiro

Especialidade: Eng. Isabel Viegas (Progótica)

Medidor Orçamentista: Carlos Silvestre

Topografia: José Filhó e Rui Mendonça

Fiscalização: Eng. Silvério Guerreiro e Carlos Paulino.

Construtora: ACA

Director de Obra: Eng. André Lourenço

Área de implantação num terreno com cerca de 3985m2

Edificado de apoio ocupa 220m2

A visita ao Cemitério de Boliqueime de um ponto de vista meramente

formal é como revisitar algumas obras famosas de Mies Van Der

Rohe, como a Farnsworth House ou o mesmo pavilhão de Barcelona

com os seus pilares cruciformes. A máxima Less is More (Menos

é Mais), preceito do minimalismo e God is in the Details (Deus

está nos detalhes) marcou este pioneiro da arquitetura moderna

com os seus aforismos e expressou-se nos materiais, como o aço

e vidro que agregaram conceções de elegância e cosmopolitismo.

O cemitério de Boliqueime é também cosmopolita e demonstra

que uma cidade, um lugar, podem ser universais por diferentes

razões.

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9

8. Vista sobre os jazigos e

talhão de sepulturas.

9. O edifício de apoio é

composto por dois corpos

arquitetónicos unidos por

uma praceta interior de

distribuição do fluxo inferior

cemitério: o corpo poente, é

composto por uma área de

depósito de resíduos.