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Y \ \ JLu. A Agonia cia Idade Média Dez anos de estudos dedicados à Idade Médio, dez anos à Revolução; resta-nos, para unir esse grande conjunto, situar, entre essas duas histórias, a da Renascença e a da era moderna. Este volume é a /tewwawçíVí-propriamente dita; o seguinte, a ser publicado, chamar-se-á Reforma. Estes títulos nos dispensam numerá-los na série total. Geralmente, suprimimos as citações de livros impressos que todo o mundo tem a seu alcance. Não citaremos senão os manuscritos. Tendo marcado o ponto de partida e o objetivo em duas longas histórias, caminharemos a passos tanto mais seguros e mais rápidos no espaço intermediário. Não poderíamos retornar da Revolução à Renascença sem revermos nossos trabalhos sobre a (7) N. do T.: P.ste icxto constitui <i Introdução ao "Scculo XVI" cia História da França. i í t i 81 n* h > te h

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Agonia cia Idade Média

Dez anos de estudos dedicados à Idade Médio, dez anos à Revolução; resta-nos, para unir esse grande conjunto, situar, entre essas duas histórias, a da Renascença e a da era moderna.

Este volume é a /tewwawçíVí-propriamente dita; o seguinte, a ser publicado, chamar-se-á Reforma. Estes títulos nos dispensam numerá-los na série total.

Geralmente, suprimimos as citações de livros impressos que todo o mundo tem a seu alcance. Não citaremos senão os manuscritos.

Tendo marcado o ponto de partida e o objetivo em duas longas histórias, caminharemos a passos tanto mais seguros e mais rápidos no espaço intermediário.

Não poder íamos re tornar da Revolução à Renascença sem revermos nossos trabalhos sobre a

( 7 ) N. do T.: P.ste icxto constitui <i Introdução ao "Scculo XVI" cia História da França.

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Idade Média, sem conhecermos e apreciarmos as publicações realizadas desde sua conclusão.

Elas em nada modificaram o que escrevemos sobre os séculos XIV e XV (tomos III, IV, V, VI, VII e VIII). Os dez anos transcorridos desde essa época em nada abalaram este trabalho, o primeiro em que os textos impressos foram controlados pelos documentos manuscritos.

Quanto a nossas origens, o primeiro volume a p r e s e n t a sua his tór ia , que. ou t ras pesquisas comple ta ram, mas pouco a l terando. Tal como assentamos a base dessa construção, nossos estimáveis concorrentes a adotaram, e sobre ela construíram com confiança.

É à Idade Média propriamente dita (volumes II e III, do ano 1000 ao ano 1300) que se reportam, de um modo geral, as numerosas publicações de textos inéditos feitas nesse intervalo. Elas muito nos esclareceram sobre os costumes desses tempos, sobre a arte gótica etc. Não podemos tomar a liberdade de apagar nada do que está escrito. Preferimos apresentar, na introdução que se vai ler, o pensamento mais exato que emana dos textos. O que escrevemos naquele momento é tão verdadeiro quanto o ideal que a Idade Média se deu. E o que mostramos aqui é sua realidade revelada por ela mesma.

O resultado, no fim das contas, pouco difere. Naquele momento (em 1833), quando o entusiasmo pela arte da Idade Média tornou-nos menos severos para com esse sistema em geral, declaramos, nocntanto. que.seu princípio estava sujeitoiLJei universal de toda vida; cjiie gle deveria passarT como todos nós, hãinens, povos,e religiões, pela útil purificação da morfe7Morrêr e um mal

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tão grande? Graças à morte, renascemos no que tivemos de melhor.

Este livro, de resto, não foi escrito para afligir os moribundos. É um apelo às forças vivas.

A da Antiguidade se deveu, penso eu, ao fato d e que ela acreditou que o homem faz seu próprio destino (fabrum sucie quemque esse fortunae). Esta nossa época, ao contrário, trabalhada pelas grandes forças coletivas por ela criada, acredita que o indivíduo é muito fraco contra elas. Naquele tempo, acreditaram no homem; nós acreditamos no indivíduo.

Daí resulta esta coisa lastimável: nossos progressos voltam-se contra nós. A própria enormidade de nossa obra, à medida que a elevamos, nos faz decair e nos desencoraja. Diante dessa pirâmide, encontramo-nos imperceptíveis, não nos vemos mais a nós mesmos. E quem a construiu, senão nós?

A indústria que criamos ontem já nos parece nosso estorvo, nossa fatalidade. A história, que não é senãfl ja-conhecimento da vida, devia vivificar-nos; ao coaílário, elanòs enfraqueceu, fazendo-nos acreditar qug j i lmnpo é tudo, e a vontade, pouca coisa.

Evocamos a história, e ei-la por toda parte; estamos sitiados, sufocados, esmagados por ela; caminhamos curvados sob essa bagagem, não respiramos mais, não inventamos mais. O passado mata o porvir. De onde vem que a arte está morta, exceto em raras exceções? E que a história a matou.

Em nome da própria história, em nome da vida, protestamos. A história nada tem a ver com esse amontoado de pedras. A história é a da alma e do

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pensamento original, da iniciativa fecunda, do heroísmo, heroísmo de ação, heroísmo de criação.

Ela ensina que uma alma pesa infinitamente mais que um reino, um império, um sistema de Estados, às vezes mais do que a espécie humana.

Com que direito? Com o direito de Lutero, que, com um não dito ao Papa, à Igreja, ao Império, arrebata a metade da Europa.

Com o direito de Cristóvão Colombo, que desmente Roma e os séculos, os concílios, a tradição.

Com o direito de Copérnico, que, contra os doutos e os povos, desprezando ao mesmo tempo o instinto e a ciência, os próprios sentidos e o testemunho dos olhos, subordinou a observação à Razão, e sozinho venceu a humanidade.

E a sólida pedra na qual se assenta o século XVI.

Paris, 15 de janeiro de 1855.

Sentido e Alcance da Renascença

A agradável palavra Renascença não evoca aos amigos do belo senão o advento de uma nova arte e o livre desenvolvimento da fantasia. Para o_erudito. é a renovação dos estudos da Antiguidade; para osjegistas^ o dia que começa a brilhar sobre o dissonante caos de nossos velhos costumes.

É tudo? Através das fumaças de uma teologia belicosa, o Orlando, os arabescos de Rafael, as ondinas de Jean Goujon divertem o capricho do mundo. Três espíritos muito diferentes, o artista, o padre e o cético, concordariam de muito boa vontade em acreditar que tal é o resultado definitivo desse grande século. O Que sais-je? de Montaigne é tudo o que Pascal via; e Bossuet, nesse pensamento, escreveu suas Variations.

Assim, esse colossal esforço de uma revolução, tão complexa, tão vasta, tão laboriosa, só teria gerado o nada. Uma vontade tão imensa teria permanecido sem resultado. O que há de mais desencorajador para o pensamento humano?

Esses espíritos demasiado preconce i tuosos esqueceram somente duas coisas — pequenas, d e fato —, que pertencem mais do que todos os seus predecessores a essa época: a descoberta do mundo, a cies^)berta_dojTq mem.

O século XVI, em sua grande e legítima extensão, vai de Colombo a Copérnico, de Copérnico a Galileu, da descoberta da terra à jescober ta do céu.

O homem se encontrou nesse século consigo mesmo. Enquanto Vesale e Servet revelaram-lhe a vida, por Lutero e por Calvino, por Dumoulin e Cujas, por

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Rabelais, Montaigne, Shakespeare, Cervantes, ele apreendeu em seu mistério moral. Perscrutou as bases profundas de sua natureza. Começou a fundar-se na Justiça e na Razão. Os céticos ajudaram a fé, e o mais audacioso de todos pôde escrever no pórtico de seu Templo da Vontade: "Entrai, que aqui seja fundada a fé profunda".

Profunda, com efeito, é a base em que se apóia a nova fé, quando a Antiguidade reencontrada se reconhece idêntica de coração à era moderna, quando o Oriente entrevisto estende a mão ao nosso Ocidente e quando, no espaço e no tempo, começa a feliz reconciliação dos membros da família humana.

A Era da Renascença

O estado estranho e monstruoso, prodigiosamente artificial, que foi o da Idade Média, tem como único argumento a seu favor sua extrema duração, sua resistência obstinada ao retorno da natureza.

Mas não é natural, indagar-se-á, uma coisa que, abalada, estirpada, retorna sempre? O feudalismo, vejam como ele se prende à terra. Ele parece morrer no século XIII, para então reflorescer no século XIV. Ainda no sáciikLXVI, a Liga nos refaz uma sombra dele, a,que a/nobreza dará continuidade até a Revolução. E OjÇlêrg é- bem pior. Nenhum golpe adianta, nenhum ataque é capaz de dobrá-lo. Surpreendido pelo tempo, pela crítica e pelo progresso das idéias, sempre renasce de baixo por força da educação e dos hábitos. Assim perdura a Idade Média, ainda mais difícil de matar por já estar morta há muito tempo. Para ser morto, é preciso estar vivo.

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Quantas vezes ela expirou! Ela expirava desde o século XII, quando a poesia

laica opôs à legenda trinta epopéias; quando Abelardo, fundando as escolas de Paris, arriscou o primeiro ensaio de crítica e bom senso.

Expirou no século XIII, quando um ousado misticismo, suplantando a própria crítica, declara que ao Evangelho histórico sucede o Evangelho eterno, e o Espírito Santo a Jesus.

Expirou no século XIV, quando um le igo, ' apropriando-se dos três mundos, encerra-os em sua comédia humana, transfigura e fecha o reino da visão.

E, definitivamente, a Idade Média agoniza nos séculos XV e XVI, quando a imprensa, a Antiguidade, a América, o Oriente, o verdadeiro sistema do mundo, essas luzes fulminantes convergem seus raios sobre ela.

O que concluir dessa duração? Toda grande instituição, todo sistema, uma vez reinando e mesclado à vida do mundo, perdura, resiste, leva muito tempo para morrer. O paganismo se enfraquecia desde o tempo de Cícero e ainda se arrasta no tempo de Juliano e além de Teodósio.

O escrivão data a morte do dia em que o serviço funerário enterra o corpo. Já o historiador data-a d o dia

\ em^qiie o velho perde a atividade produtiva. ^ Entrai numa biblioteca, pedi a(Actci sanctorum ^ e

Mabillon, a grande coleção que recebeu ao longo dos séculos, camada por camada, o aluvião sucessivo da invenção popular, a história desses milhares de santos que, conforme a época e as nuances infantis do fervor bárbaro, deram a cada região" o Deus do lugar, o Cristo local. Tudo acaba no século XVII; o livro se fecha; essa

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f ecunda ef lorescência que parecia inesgotável extingue-se subitamente.

"Os jesuítas continuaram", dir-se-á; "Abundam os santos na coletânea dos bolandistas".

Outros santos, os santos do combate, excêntricos e polêmicos, cujo violento misticismo, que vem socorrer Jesus, apavora-o e mete-lhe medo. Ele recuou diante do delírio de São Francisco, verdadeira bacante do amorile^ Deus;; e a Virgem recuou diante de seu cavaleiro, o espanhol São Domingos, que, por ela, erguia as fogueiras, organizava a Inquisição, começava aqui as chamas eternas.

Essas veementes figuras contrastam, a ponto de fazer estremecer, com as velhas figuras beneditinas. Nessa freqüência dos gestos, nesse furor de palavras, na voluptuosidade da expresssão transtornada, estas, olhando para o céu, têm algo do que amaldiçoam, algo do inferno e da heresia.

Abri os concílios e encontrareis a mesma alteração da legenda. Os antigos concílios são, geralmente, de instituição, de legislação. Os que se seguem, a partir do grande Concílio de Latrão, são ameaças e terror, ferozes penalidades. Eles organizam uma polícia. O terrorismo entra na Igreja, e a fecundidade se retira. Seus últimos esforços apresentam como característica o fato de que, ao lhe dar vitórias, criam-lhe novos perigos. São Bernardo, seu defensor vitorioso contra Abelardo, proporciona-lhe um triunfo aparente sobre a razão e a crítica. Por qual força? Pelo misticismo que, desde o fim do século, cria as formidáveis profecias de Joaquim de Fiore, o ensinamento de João de Parma, o doutor do Evangelho eterno.

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A arte, até então eclesiástica, sob o controle dos padres- pedreiros, torna-se laica; ela passa às mãos dos pedreiros-livres2, servidores casados da Igreja, cujas Humildes colônias, postas sob sua proteção, constroem, mesmo em formas independentes, esses edifícios grandiosos, onde o peito do homem encontra finalmente a respiração, com a vaguidão do sonho e a liberdade dos suspiros.

É tudo? Não. Da criação do gótico, que ainda então só sustenta o templo com um laborioso aparato de esteios e contrafortes, a Renascença caminha para a criação da arquitetura racional e matemática, que se apóia sobre si mesma e cujo primeiro exemplo é dado por Brunelleschi. com a igreja de Santa Maria de Florença.

A arte acaba, e a arte recomeça; não há interrupção. Menos vivaz é a escolástica. Ela morre para não mais renascer. Oçkham a termina recolocando-a no ponto em que Abelardo a deixara; sua suprema e última vitória é a de retornar a seu berço.

O que dizer da Idade Média científica? Ela só existe por meio de seus inimigos, por meio dos árabes e dos judeus. O resto é pior do que o nada; é um vergonhoso recuo. A matemática, séria no século XII, torna-se uma vã astrologia, o comércio dos quadrados mágicos. A química, ainda sensata em Roger Bacon, torna-se uma louca alquimia, um delírio. A feitiçaria adensou no século

2 N. do 11: Francs-maçons. Não se trata, c claro, dos adeptos da moderna maçonaria (que aparece no século XVIII), mas dos membros das corporações medievais dos pedreiros, ditos livres (francos) por nSo estarem submetidos à jurisdição dos bispos da Igreja e poderem, assim, prestar seus serviços em quaisquer grandes obras, notadamente as catedrais.

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XV suas fantásticas trevas. O dia se põe horrivelmente. E não se deve crer que renasce com a imprensa; esta age lentamente, como provaremos; essa grande e imparcial força ajudou, de início, todos os partidos, tanto os inimigos da luz como seus amigos.

Digamos claramente algo que ainda não foi dito o suficiente. A Revolução Francesa encontrou suas fórmulas prontas, escritas pela filosofia. A revolução do século XVI, chegada mais de cem anos após a morte da filosofia de então, encontrou uma morte incrível, um nada, e começou do nada.

Ela foi o heróico ímpeto de uma imensa vontade. Gerações por demais confiantes nas forças coletivas

que fazem a grandeza do século XIX, vinde ver a fonte viva onde a espécie humana se revigora, a fonte da alma, que sente ser, sozinha, maior do que o mundo e não espera do vizinho o falso socorro de sua salvação.

O século XVI é um herói.

A Organização da Ordem e o Enfraquecimento do Indivíduo do Século XII ao Século XV

E m i n e n t e s h i s t o r i a d o r e s d e s c r e v e r a m perfeitamente como o governo eclesiástico e laico se organiza ou termina nesses quatro séculos; como se constituem a ordem e a paz pública.

No entanto, eles deixaram na sombra o movimento retrógrado que então se consuma na religião, na literatura: a debilitação do caráter e das forças vivas da alma.

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Dos trinta poemas épicos do século XII, imitados por toda a Europa, até a mediocridade do Romance da Rosa, até as tristes graças de Villon, que passo retrógrado!

Os autores da história literária, especialmente Fauriel, disseram muito bem: "O século XII é uma aurora. O século XIV é um poente". E, ai, que dizer do século XV?

O fato é que os historiadores políticos lhe deram mais valor. A imensa multiplicação das emancipações, o aumento e a riqueza da burguesia, a facilidade crescente de ascender de uma classe a outra, tudo isso devia, segundo parece, produzir um resultado moral, fortalecer o vigor da alma, desenvolver, pelo sentido inteiramente novo da dignidade, o Deus nela presente, torná-la criadora e dar-lhe inspiração.

A liberdade civil, que se dissemina nesse momento, não apresenta, todavia, efeito visível. OjTomem, de coisa que era, torna-se pessoa, torna-se homem. E o que ele ganha com isso? Se ganha algo, não parece! Ele se esgota e se torna estéril.

O que aconteceu, durante esse tempo, no mundo superior do qual ele sofre as influências?

A Igreja tornou-se uma monarquia, um governo armado de uma polícia terrível, a mais forte que já houve. A monarquia, por sua vez, tornou-se uma espécie de Igreja, construída sobre o declínio dos feudos, como o papado sobre a decadência do episcopado, uma Igreja que tem seus concílios laicos, seu pontificado de jurisprudência.

Dois governos pela graça de Deus, duas espécies de deuses mortais, cuja infalibilidade implica o caráter

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divino. A comunidade de seus devotos sente neles uma encarnação. A lei viva, a sabedoria da carne, num indivíduo enfermo, um Deus num nada, é o novo culto desse mundo.

O monárquico altar dos dois ídolos se constrói sobre a ruína do que a Idade Média tinha podido experimentar em termos de governos coletivos, sobre í{ruína] dos concílios, das comunas e dos municípios, das~grandes federações, ligas lombardas, dietas do Império, estados-gerais da França. Tudo isso está_enterrado no

_j>é£ula.Xy. A encarnação sob suas duas formas (papa e rei) venceu em toda parte. O misticismo ocupou tudo. Que lugar à razão? Nenhum.

A operação que Orígenes praticou em si, dizem, é aquela que o espírito humano sofreu nesse período, até o momento em que a natureza, a vida produtiva, que nunca sé pode extinguir, despertou e se revoltou, no século XVI, com uma energia selvagem.

Guizot imagina que perdemos alguma coisa com a queda das comunas. Nada menos que a alma — o orgulho pessoal, o espírito das fortes resistências, a fé em si, que fez a comuna do século XII mais forte que Frederico Barba-Roxa, ç que desapareceu de modo tão perfeito na burguesia do século XV.

Augus t in T h i e r r y , a d m i r a n d o a r e f o r m a administrativa que a Paris dos_cabocheanos3 tentou em 1413, vê nela um progresso sobre a revolução de Mareei, que a antecede de sessenta anos. Ele não parece notar esse enorme declínio do espírito público, de tal forma diminuído, que acredita poder melhorar a administração

t l 0 ' -Farçfloparisienseque,sobCarlosVI,tinhaporchefeCaboche, que se declarou a favor dos Bourguignons contra os Armagnacs.

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sem mudar o quadro político que a estreita e a sufoca. Que séria reforma sob a oscilação de um governo caprichosamente vitalício, entre a imprudência de João e a loucura de Carlos VI? O século XIV ainda sente onde está o mal e procura encontrar o remédio. O século XV já não sonha sequer com isso.

Essa imbecilidade do pobre Fredegário, que, no começo de sua crônica, se reconhece meio idiota, parece ressurgir em tais obras monumentais do século XV; e não sei se algum dos monges merovíngios alcançou a mediocridade das rimas de Molinet.

Nobres Origens da Idade Média — Decadência no Século XIII

A tirania da Idade Média principiou pela^ibeixiade. Nada começa senão por ela. É por volta do século X, nesse momento obscuro, de cuja grandeza os imensos resultados muito disseram, quando Eudes defendia Paris, quando Roberto, o Forte, foi morto, quando Allan Barbetorte rechaçou os normandos para o mar; é nesse momento que, sem dúvida alguma, começaram asv

canções de Rolando. Essas canções, já antigas sob Guilherme, o Conquistador, em 1066, não são, como se acreditava, obra da pesada época feudal, q u e s ó l h ^ d e u uma forma diluída. Tais coisas não datam de um tempo de servidão, mas de uma época viva, ainda livre, a época da defesa, a época que resistiu, construiu os abrigos de resistência e_sa 1 vou a Europa[ da Jnyasão„nor.manda, húngara esarracena.

Não se inquiria, então, da_nobreza, nesses grandes perigos. Aquele que se havja aventurado a erguer um

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forte em regiões devastadas ou na embocadura de um rio não perguntava a origem dos bravos que vinham em sua defesa. As raças, as diferenças entre gauleses, francos ou romanos, que nos fazem criar tantos sistemas, eram-lhe indiferentes. Qual era a associação? De todas as formas: em certas regiões, de adoção mútua, que é a forma mais antiga; em outras, de homenagem recíproca (por exemplo, no Franco-Condado). Mesmo a enfeudação--era, sob certo aspecto, um contrato em termos de igualdade. O que havia de mais raro era o homem (o homem de combate). Nada significava ter uma torre; era preciso colocar homens nela. O homem da torre chamava o passante, o fugitivo, e lhe dizia: "Fica e defendamo-nos juntos. Partirás quando quiseres, e eu te ajudarei a partir; conduzir-te-ei se preciso for etc. (Ver as fórmulas primitivas em meu Origines du Droit.) Assim, confio a ti, a partir de agora, estíTpõnteTêste passo, meu portão, meu lar, minha vida, eu mesmo, minha mulher e meus filhos". Ao que o outro respondia: "E eu, eu me entrego a vós, à vida e à morte, além..." Eles se abraçavam e comiam à mesma mesa. Esse vínculo era o mais forte; todos os outros vinham depois. "Eu daria duas imperatrizes", diz Frederico Barba-Roxa, "por um cavaleiro igual a ti."

Assim eram os antigos contratos. Como a liberdade é fecunda! Eis que as pedras tornam-se homens; os filhos se multiplicam em grande número; os povos formigam na terra. E não é só o número que cresce, mas o coração aumenta, a vida forte e a inspiração. Não se quer somente fazer grandes coisas, deseja-se também dizê-las. O guerreiro canta suas guerras. É o que ainda diz expressamente o cronista: "Os bravos cantavam". Não esperai fazer-me crer que o menestrel mercenário que

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canta no século XII, que o capelão doméstico que escreve no século XIII sejam os autores de semelhantes cantos. Na mais antiga canção que nos resta, a sublime Canção de Rolando, ainda qiie_a tenhamos apenas e m

^smTforma tFúdãl,ouço a voz forte do.poyQ_£_o_£rave acento dos heróis."

Disse longamente em meus cursos, e o direi melhor mais tarde, como pereceu_£LSÍsteina das liberdades na Idade Média, por que interpretação fatal e pérfida, por que encadeamento de equívocos as palavras vassalo (ou valente), seivus (servidor? Ou servo?) etc. tornaram-se as fórmulas mágicas que encantaram o homem livre e ligaram-no à terra. O equívoco, o esquecimento, a ignorância, tenebrosas e perigosas vias que permitiram a essas palavras funestas passarem de um sentido ao outro. Disse as resistências desesperadas da propriedade livre, o combate mortal dos alódios sitiados e sufocados no grande mar feudal, o furor do homem que se deita livre e se levanta servo, fica sabendo que não é mais homem, que é pedra, gleba, animal. Lede a terrível história do preboste de Bruges, a história do homem de Hainaut, que, na irrisão das cortes feudais, ouve que sua terra não é mais livre, e cai fulminado de furor, corta sua veia, deixando jorrar seu sangue ainda livre.

A nobre Canção de Rolando é anterior, sentimo-la em toda parte, nessa época infeliz. A penetrante crítica do editor esclareceu que ela é anterior às cruzadas, anterior à época dos poemas compostos nos castelos para o entretenimento do barão. O caráter desses poemas, tais como Les Quatres Fils Aymon, é o ódio à realeza e ao governo central; focalizam todo o interesse no vassalo revoltado. Carlos Magno, nesse poema, é um parvo; é o joguete de um feiticeiro. Triste majestade que

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dorme em seu trono, a cabeça coroada com um esfregão, e desperta, ante o riso da Corte, para ver em sua mão uma tocha apagada, em vez da espada imperial.

São essas coisas encontradas em pleno feudalismo durante o sono da realeza. Ao contrário, no século X, no grande combate contra os bárbaros, lamenta-se, admira-se e abençoa-se a antiga unidade imperial. Nada entre o imperador e o povo..OsJRolando, os OJivier não estão absolutamente separados deste^sãDJão^>oir|ente õ povo armado. È é isso que faz a grandeza surpreendente desse poema, mesmo sob essa forma relativamente moderna, que talvez seja de 1100.

É preciso notar o enorme declínio que ocorre entre essa época e o tempo de São Luís. Em um século ou um século e meio, parecem ter passado mil anos. Um dos serviços mais essenciais prestados à crítica foi ter indicado essa passagem. O editor de Rolando o fez de uma maneira admirável, anotando com extrema fineza e uma surpreendente veia crítica e de bom senso os estranhos rejuvenescimentos impostos ao poema, de manuscrito em manuscrito. O primeiro é parente de Homero; o último, da Henriade4.

Entretanto, curto é o intervalo entre os séculos XII e XIII. Já nessa época, o tempo de São Luís, os re juvenescedores do velho poema são letrados

, modernos que poderiam muito bem viver no século de Luís XV.

OsécuJo XIL é . um. séculoJiteránc^Poder-se-ia acreditar que, por essa razão, um sentimento de sobriedade elegante lhe fizesse abreviar o detalhe e

4 N. cio T.: Im Henri m le — Poema épico em dez canios, de Voltaire, do qual I lenrique IV, rei de França, é o herói.

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condensar as idéias. Mas é exatamente o contrário. O parco pensamenU)_éjsufuçado sob as rimas acumuladas. A expansãõ~imoderada, a exibição de palavras, a amplificação, denota em toda parte o colégio. No século XII, os poemas eram curtos e cantados; eram cantos, canções, como diz seu título. No século XIII, não se pensa mais nos ouvidos, mas sobretudo nos olhos. Escreve-se para a sala de leitura. A retórica floresce; uma retórica prolixa, inesgotável, que, de dois ou três mi! versos que o poema original possuía, passa a vinte ou trinta mil. Como se surpreender com isso? Esses autores são capelães, escribas, sentados na torre de um castelo, ou, então, menestréis que já. se tornam comerciantes, uma espécie de livreiros que vendem os versos em quantidade e os manuscritos a peso.

Inútil dizer que essas pessoas não compreendem mais nada da forte e devota época cujas obras diluem. Elas são mais estranhas do que nós à vida dos tempos heróicos. Não têm nem o tempo nem o gosto de conhecer e estudar esses costumes de uma época vizinha, mas completamente esquecida. Tomam sem dificuldade nomes de lugares por nomes de homens etc. etc.

Estranha ilusão! A auréola de São Luís é suficiente para iluminar de santidade a França de então e lança sobre esse tempo, já moderno, um falso reflexo da Idade Média.

Eu disse a que ponto o mundo se tinha esquecido. Esquecido naturalmente, por si mesmo e pelo tempo, pe la n e g l i g ê n c i a ? Oh, não! J a m a i s se d i rá verdadeiramente o penetrante ferimento que partiu o coração do homem por volta de 1200, que lhe rompeu sua tradição, quebrantou sua personalidade e o separou tão bem de si mesmo que, se conseguimos encontrar-lhe

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alguma imagem do que ele foi, por mais que a mire, ele indaga: "Quem é esse homem?"

Das Abdicações Sucessivas cia Independência Humana, do Século XII ao Século XV

"A escravidão", diz a Antiguidade em sua simplicidade trágica, "é uma forma de morte." Eis uma posição clara, que em nada se presta ao equívoco ou à zombaria; o escravo não é absolutamente um ser ridículo, nem desprezível; é a vítima do destino, que perdeu seus deuses e sua cidade, que não existe mais como cidadão. Ele está morto, mas pode permanecer grande e se chamar escravo Epicteto.

A servidão é um estado absurdo e contraditório. Eis um cmtão, umã alma redimida por todo o sangue de um Deus, uma alma igual a toda ajma, que suporta do mesmo modo aqui na temFuma escravidão real da qual só o nome mudou — melhor dizendo, que vive em um estado profundamente anticristão, ao mesmo tempo responsável e irresponsável, que o subjuga, o associa aos pecados do senhor, e o conduz direto a partilhar sua danação.

Ele é livre? Não é? Ele é livre, pois tem uma família garantida pelo sacramento. E não é: sua mulher, na realidade, não é sua, assim como a mulher de um escravo antigo também não é. Seus filhos são seus filhos? Sim e não. Existe certa aldeia onde a raça inteira reproduz ainda hoje os traços dos antigos senhores (falo dos Mirabeau).

O servo, nem livre nem não-livre, é um ser bastardo^ suspeito, nascido para o sarcasmo.

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Eís^é^jij:haga daJdade.MàJia. É que nela todos zombam de todos. Tudo é confuso, nada é claro; tudo pode parecer ridículo. As formas bastardas abundam, e do mais alto ao mais baixo. A criação tardia que fecha a Idade Média, cfburguês^riistojje homem inferior das cidades e de pretenso pequeno nobre, com.mãQsjJe camponês, espáduas de ferreiro, é jJiante do homem da ÇQitgjQjjue o

Ride, portanto, bons tempos alegres de outrora; ride, cômicos natais; ride, divertidos fabliaiix; diverti-vos com a vossa vergonha!

A alegria de Aristófanes não é vil; ela ainda eleva. Quando, diante do povo soberano, o povo juiz, que todos os dias condena à morte, o intrépido satírico encena o Povo Simplório, do qual seus favoritos zombam, isso é ousado e grande. A farsa da Idade Média, ao contrário, entristece; eu não vejo mais que três chistes: a forca, a fustigarão e o corno; mas este, corno à força, é muito infeliz para fazer rir.

Eu ia esquecendo o objeto principal das irrisões desses tempos: a pouca independência e liberdade que restam. Os francos-alódios são, entre nós, o eterno g race jo . Os feudos do sol, reivindicando uma independência antiga como o sol e clara como a luz, são a distração da Alemanha. Essa tocante reivindicação da liberdade antiga é a derrisão dos escravos. Divertida senhoria que não tem vassalo nem. suserano,.. nada abaixo, nada acima! E uma anomalia, um monstro. Não se sabe que nome dar a essa coisa r idícula; denominam-na realeza. Quem não riu do rei de Yvetotl Essa estranha, ^[Liberdade, desconhecida em um mundo servil, é e s tup idamen te zombada , h u m i l h a d a ,

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conspurcada; colocam-lhe uma coroa de papel com um cetro de bambu.

Da mesma forma que, antes, o homem livre, cruelmente perseguido, foi forçado a reivindicar, a entregar-se, ele e sua terra, ao senhor, padre ou barão, igualmente, a cidade livre, a comuna, só nasce no século XI para se entregar no século XIII, colocar-se nas mãos do senhor rei.

Em seu nascimento, época de força, de grandeza e de atividade, as comunas da França meridional começaram o movimento do mundo; as da Itália, Alemanha, Países Baixos seguiram-se, criando de uma só vez todas as artes, todas as formas de civilização que a Europa terá até o século XYL.

Entretanto, a terrível ruína de nossa região Sul, que desmoronou nas chamas, sob a,tocha dos papas e dos reis, instruiu bastante nossas comunas dõ^Norte. Acreditava-se poder resústjr__à_.c)pressão loca 1 de um senhor das cercanias. Q senhor universal^ distante, misterioso, o rei, que aparece no século XIII, armado com o duplo poderio do Estado e da Igreja, há alguém louco o bastante para querer lutar contra ele? O coração não se havia enfraquecido nas lutas feudais. Todavia, aqui ele se enfraquece; as pessoas se_a'pavoram, começam a se_olhaj„eQl cada cidade com_de&£pafiança. Há os homens da cidade, mas também há os homens do

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reü A primeira discussão, é certo que esses últimos, contra os magistrados do lugar "que oprimem o pobre povo", vão chamar o senhor distante, e ninguém se oporá. As cidades italianas invocam o potentado estrangeiro, o capitão estrangeiro; as cidades francesas chamam um potentado superior, o preboste ou juiz do rei. Em suas mãos, ajoelhados, eles entregam a comuna,

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a eleição, o governo de si por si mesmo, todos os seus direitos de comandar seu próprio destino. A espada da justiça passa às mãos de um homem estranho aos É costumes e que não conhece a justiça local. A velha voz j | da cidade, o sino do atalaia, desce de sua torre. A cidade # entra no silêncio e, se o sino ainda toca, é o sino f | monástico, que dobra em proveito dos senhores, do § senhor rei, do senhor padre. Que diz ele? Humilhai-vos, I obedecei, dormi, crianças. Sob sua monotonia pesada, a 1 alma, ensurdecida por um mesmo som, embota-se de -J| tédio e enfastia-se; sente náusea de si mesma.

Os que dominam nessa comuna tornada uma cidade 1 muda, obscuro lugarejo de província, são, sem dúvida H alguma, os homens do rei, a gente da justiça real e das È finanças reais, o senhor lugar-tenente do bailio, do i senescal etc. Eis os galos desse terreiro, os que andam de J | cabeça erguida e que ocupam a posição de destaque, nas |f ruelas lamacentas. Tudo se fará a seu exemplo. Qual é o |„ espírito, quais são os costumes dessa burguesia? Tímidos, honestos, respondem nossos modernos historiadores. Desavergonhados e desenf reados , respondem as velhas histórias e as obras jurídicas. Consultem uma destas, cem vezes mais rica e mais fecunda que todas as nossas gazetas dos tribunais: refiro-me aos trezentos registros do Trésor des Chartes', especialmente as cartas de perdão. Encontrareis nelas os costumes que os fabliaux indicavam e os Villon, os Basselin, os Régnier e até sob Luís XIV, as curiosas memórias de Fléchier. Esses ingênuos arquivos da burguesia no-la mostram sem camisa, sem pudor e pelas

Q N. do T.: Arquivo da coroa da França, hoje integrado aos Arquivos Nacionais.

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costas. Neles se vê toda a baixeza de uma sociedade baseada na imitação fiel de Pathelin, de Grippeminaud, do procurador, do magistrado, que à noite consome com as moças as especiarias da manhã e os lucros da forca. Enquanto isso, a senhora presidenta ou conselheira, a eleita, que não pode admitir senão os homens de espada, abre a porta dos fundos para seu amante de penacho, a quem ela paga e que, pela manhã, conta sua noite a todos os passantes.

Que reparação a esse aviltamento dos costumes e do caráter? Uma justiça imparcial, talvez, porque emana do centro? Mas esse juiz, esse homem do rei, envolvido, dominado pela súcia local, pronuncia no tribunal as sentenças convenientes. E o que desejais que esse magistrado galanteador recuse às deusas das belas ruelas, por quem, esta manhã, entre duas sentenças de morte, ele rimava madrigais? Toda justiça local, pelas mulheres ou pelo dinheiro, pelo cofre ou pela alcova, golpeará, do alto e mais pesado, em nome da realeza.

A triste luz se faz nos séculos XIV e XV. A. centralização, que, sem dúvida^eyerá-Ser^i iLi l i íVa força e a salvação da França, prowca^provisoriamente sua ruína.

Ela está centralizada para tornar a desordemj^eral, centralizada para fazer todos girarem na yertifiemiig uni iüuco, para universalizar o desastre^eajgajiairrota, para ser prisioneira com João,, i d i g t ^ o m X a ^

E à realeza, mesmo hábil e ousada, Luís XI não çoderá remediar, como tampouco Mareei o conseguiu. A primeira tentativa de reforma, tudo a abandona; assim como o tribuno ficou só, só permanece o rei (em 1464). Por quê? Pela mesma causa. Faltaram homens a um e a

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outro. Tinha-se miseravelmente esmagado o caráter, abatido a força moral, arruinado a energia. Quando o rei desejou ser um rei, viu-se o rei do vazio.

Assim, essa longa abdicação em proveito da realeza tinha como único resultado tornar impotente a ela mesma.

Por quais circuitos infinitamente longos, tortuosos, obscuros, devíamos, desse deserto de homens, retornar à nova vida que recomeçaria um mundo? Ninguém podia prevê-lo. E, enquanto se aguardava, os melhores, os mais o r g u l h o s o s d e s e n c o r a j a v a m - s e . D o r e i n o da mediocridade, jovens e vigorosos espíritos voltavam a se lançar sobre o impossível, a nobre, a heróica, a irrealizável Antiguidade. O célebre amigo de Montaigne, La Boétie, magistrado, homem do rei, escreveu o Contra Um. Violento, doloroso livrinho que, no geral, apaga toda a Idade Média, despreza-a, ou melhor, esquece-a, dizendo em substância a expressão de Saint-Just: "O mundo está vazio desde os romanos".

Da Criação do Povo dos Tolos

A Antiguidade, com o escravo e com o senhor, teve o estúpido e o insensato. A Idade Média monástica teve um mundo de idiotas. Mas o tolo é uma criação essencialmente moderna, nascida das escolas do vazio e da presunção escolástica; ele floresceu, multiplicou-se nas classes tão numerosas, onde a vaidade pretensiosa se infla de palavras e se alimenta de vento.

A academia, o toro^ a literatura, o íiovemo parlamentar proporcionaram a esse grande _poyo notáveis prògréssòs.'""Mas7 se quisermos assinalar seu

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venerável berço, tanto a história como a lógica só podem atribuir as glórias de seu nascimento a uma época essencialmente verbal, à época que adorou as palavras, que impôs ao espirito o culto das entidades vazias, das abstrações realizadas, que partiu do princípio de que toda idéia (a mais bizarra, a mais arbitrária) tem necessariamente um objeto correspondente na natureza, impondo ao Criador a estranha condição de criar realidades para dar corpo e fundamento a todas as idéias dos loucos.

"Toda palavra corresponde a uma idéia, e toda idéia é um ser. Assim, a gramática é a lógica, e a lógica é a ciência. Para que estudar a natureza, para que observar, se informar? É preciso ver o mundo em seu pensamento vão; veremos a verdade, o real, no espelho da fantasia."

Essa doutrina bastou à humanidade durante trezentos ou quatrocentos anos. Com que resultado? Vimo-lo quando o último escolástico, Qckham, novo Sansão, fez estremecer as colunas do templo e tudo desabou com um só golpe. Onde estavam as ruínas? Procurou-se em vão. Nenhuma idéia havia restado. O que o último escolástico professava era retornar ao primeiro, ao ponto de partida do bom senso, ao ensinamento de Abelardo, ou seja, reconhecer que se tinham perdido três séculos.

Era grande a dificuldade. Se não se havia criado uma filosofia, havia-se criado um povo, uma nova raça, que não tinha nenhuma vontade de terminar. Tantas escolas, tantas cátedras, tantos doutores, tantas tolices! Ah! Suprimir tudo isso, que golpe na autoridade! Onde encontrar uma criação mais sólida e mais maciça, uma muralha mais espessa para interceptar os raios do dia?

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Proibir a filosofia, o raciocínio, teria sido estimulá-los ainda mais; porém, colocar a filosofia em um pequeno círculo legal no qual, sem avançar, ela poderia girar eternamente; permitir raciocinar um pouco e, até certo ponto, autorizando a razão apenas a combater a razão, era mais hábil e mais sábio. Tinha-se encontrado uma vacina para essa doença perigosa que se chama bom senso.

No momento em que Abelardo arriscou a pequena afirmação que diz que idéias não eram seres, que as abstrações que se chamavam de universais não eram realidades, masconcepções do espírito, toda a escola fez 1

o sinal da cruz, horrorizada. A insurreição regular começou contra a razão. Abelardo pediu perdão por ela, como fará mais tarde Galileu. Entretanto, ele advertiu seus ineptos adversários de que, mergulhando imprudentemente nesse realismo, que pensavam ser mais ortodoxo, eles marchavam direto para um abismo onde sua ortodoxia, seu dogma arruinar-se-iam sem remédio. Do fundo do século XII, ele já mostrou Spinoza.

Estando a razão proibida, restava, talvezvajntuição. O espírito, ao qual_proibia-se de andar t pfls-sç a voar. Apoitul-íTélías"f()rças do amor e na segunda visão que permitem ao gênio alcançar a verdade longínqua e antecipar o porvir. Os místicos, pelos quais o Papa havia sufocado Abelardo, vieram, em sua perfeita inocência, oferecer-lhe a revelação da era do livre Espírito, em que o Papa devia desaparecer com a Igreja envelhecida; uma nova Igreja ia nascer, Igreja de luz, de liberdade, de amor. Roma, apavorada, percebeu tudo o que tinha a t emer desses terríveis amigos que d e s e j a v a m rejuvenescê-la, mas colocando-a dissolvida no caldeirão

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de Medéia. Ó perigo não era maior do lado dos racionais. Como retornar a estes? Como condenar os místicos? Se a Igreja não sustenta a arbitrariedade do misticismo, ela entra na fé do jurisconsulto, oposta à do teólogo. A Igreja legista e racional é o contrário da Igreja, um efeito sem causa, um nada.

Imaginou-se um pobre expediente. Da mesma forma que, após Abelardo, se tinham tolerado semi-racionais que podiam arrazoar um pouco, permitiram-se semimísticos que podiam delirar um pouco, extasiar-se até certo ponto, ser loucos, mas com método. É a segunda classe dos tolos.

Estes foram verdadeiramente admiráveis. Os outros iam de modo desastrado, com peias nas pernas, tristes quadrúpedes que, contudo, andavam um pouco. Entretanto, os místicos racionais eram animais alados; apresentavam o surpreendente espetáculo de aves de capoeira que abrem, por momentos, pequenas asas, atadas, amarradas, os olhos vendados, saltando no ar a um pé de altura e recaindo sobre o nariz, retomando incessantemente o impulso para tentar de novo seu vôo de pequenos gansos no galinheiro ortodoxo e no terreiro natal.

As coisas estavam assim por volta de 1200. A escola florescia, a querela estava animada entre essas duas classes, entre os tolos metódicos e os tolos entusiastas, quando os judeus pregaram-lhes uma peça ao trazer-lhes da Espanha o que se tinha tanto desejado: a obra de Aristóteles. Abelardo tivera apenas alguns pequenos tratados. Toda a biblioteca filosófica do século XII era composta de cinco ou seis volumes. Eis, porém, a massa imensa da enciclopédia antiga e de todos os seus comentadores, o bastante para carregar quatro camelos.

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Pode-se adivinhar com que furor de avidez glutônica nossa gente agarrou esse alimento, devorou-o, sem prestar atenção ao fato de que se tratava de um falso Aristóteles, mutilado, falsificado, deturpado, do grego ao árabe, do árabe ao latim, estropiado por Avicena, desfigurado, até chegar a dizer o contrário de seu pensamento, pelo panteísta Averróis e pelos cabalistas judeus.

Eis um curiososo espetáculo. Essa gente que, na cruzada, nas guerras dos mouros da Espanha, no extermínio dos hereges da França meridional, na violenta perseguição aos judeus, crê colocar o fio do gládio entre si e os infiéis, essa mesma gente os admite e os suporta no coração de sua teologia, os ensina em suas escolas, quase sempre, é verdade, dissimulando seu nome. O eclético á rabe Avicena impõe suas classificações e bom número de suas idéias ao ecletismo cristão de Alberto, o Grande, e de Santo Tomás. "Avicena", diz claramente Brucker em sua grande história, "foi o rei da escola árabe e cristã." Influência pouco ortodoxa. O falso Aristóteles do Oriente, com seu peripatetismo, mescla o germe spinozista de Davi, o judeu, de Averróis e de Alkindi.

Agradeçamos ao último historiador da filosofia, Hauréau, este firme e corajoso crítico que rompeu a barreira, dizendo claramente o que mesmo nossos amigos, por um respeito filial pelos doutores da Idade Média, abstiveram-se de dizer. Ele estabeleceu^~.°)que eles se enganaram com freqüência, atribUmco as Aristóteles as opiniões de seus glosadores árabes;v2/^ que, amiúde, enganaram os outros, substituindo Aristóteles pelos que chamam de peripatéticos e dissimilando sob este nome os árabes, muito fiéis ao

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peripatetismo,CL? que, em seu desejo apaixonado de conciliar Aristóteles, que eles conheciam mal, e Platão, do qual nada conheciam, com a doutrina ortodoxa, às vezes fazem esses mestres dizerem o contrário do que disseram. Para só citar um exemplo: Alberto, o Grande, Santo Tomás e Duns Scot concordam em atribuir a Aristóteles uma definição da causa que não está em absoluto em seus escritos, nem poderia estar, pois é justamente oposta ao espírito de suas doutrinas.

Essa tentativa de fazer um Aristóteles ortodoxo, um paganismo cristão, misturando a essa base falsa um pouco de doutrina árabe, travestida com o manto grego e com o capuz dominicano, resultou, qualquer que tenha sido a destreza desses grandes doutores, num ensinamento híbrido, três vezes falso. Sua louvável intenção de reconciliar o mundo no seio de uma mesma doutrina, seu surpreendente vigor de abstração e sutileza nem por isso deixaram de produzir monstros de incoerência. A extrema pulverização das questões que parece esclarecer e, na verdade, obscurece confunde a visão e a torna trêmula; fica-se confuso, mas nem um p o u c o convenc ido , pe lo con t r á r io , che io de desconfiança; mil razões e nenhuma evidência; mil olhos ao mesmo tempo para ver melhor, todos embaçados e estrábicos.

O mulo não se procria. Essa escola permaneceu estéril. Em vão, depois de Santo Tomás, ela teve uma nova audácia que, por um momento, acreditou-se ser criadora. Um jovem cérebro hibérnico, o mais notável debatedor que possa ter existido, Duns Scot. lançou a escolástica nos campos da fantasia. Santo Tomás, nas coisas mais excêntricas, por exemplo, nas pesquisas sobre a psicologia dos anjos, esforça-se em conservar

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ainda um pouco de razão e bom senso. Mas o intrépido irlandês abandonou toda terra firme, seguro de que toda coisa pensada e que possa existir classifica-se legitimamente nas entidades da substância. Ele navega por países desconhecidos, por nuvens repletas de seres estranhos; ele é familiar a todos os monstros, cavalga bravamente a quimera, o hircocervo e o bucentauro.

Se o sonho equivale ao ser e a palavra equivale à coisa, toda combinação de palavras é uma combinação de coisas e de realidades. Encadear palavras é conhecer. Esse encadeamento, previsto, traçado em um sistema de fórmulas, nos proporciona a máquina de pensar. Única e extraordinária receita para falar sem julgamento das coisas que não conhecemos. Pensar mecanicamente, pensar sem pensar! Cartada de gênio! E que profundidade! Os tolos franziram a testa de espanto e admiração. Raimundo Lúlio venceu Duns Scot, como Scot venceu Santo Tomás.

Tudo isso é bonito em si, porém mais bonito ainda para a educação e para os hábitos intelectuais. Como deformação da inteligência, como uinástica especial para fazer corcundas, mancos, ranhos, não se encontrará nada parecido. Há inclusive esse milagre segundo o qual defeitos inconciliáveis eram, todavia, conciliados nesse ensinamento único. Ele era leve de insignificância, de futilidade, contudo, era pesado, sobrecarregado pelos textos. Excêntr ico e quimérico, não o b s t a n t e arrastava-se no chão por sua lenta, minuciosa, fatigante dedução.

Procedia-se prudentemente. Tu só te porias a caminho com um mestre, um doutor, um guia, que vigiasse, respondesse a ti. Esse mestre era um manuscrito, mais ou menos falsificado, péssima tradução

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latina de uma versão árabe ruim. Dupla obscuridade, e já completa ausência de crítica, hábito de confusão.

Esse obscu ran t i smo se intensif icava pelo comentário da escola. O estudante lá adquiria uma preciosa faculdade, a de se contentar com palavras vãs. Pois, se, no entanto, ele se obstinava a conservar algum tirocínio, a discussão vencia-o. Felizes efeitos de concorrência, de emulação, de vaidade! Postos frente a frente, esporas aguçadas, esses jovens galos adquiriam aí um coração heróico para argumentar até a morte, embaralhar as questões, estupeficar os ouvintes, e entorpecer a si mesmos na vertigem de sua própria esgrima. A ulória era cliielar seis horas, dez horas, sem recuar, e ainda encontrar palavras. .Competições sublimes, Tniríficas batalhas cjue só a noite podia terminar. Juízes e combatentes, todos3 í ' lHjHívãm cheios *3ê l idm}raçíur^^unesmos, . inf lados , . va?ja$- e quase idiotas.

Para trás os combates de Homero! A guerra dos ratos e das rãs, a Secchia rapila, deve aqui ceder o passo. Desde o século XII, a lama da rua du Fouarre, o riacho da rua Saint-Jacques viram as facções dos cornificianos e dos niilistas se enfrentrarem. O jogo grave destes consistia em calcular rapidamente, sem errar, quantas negações são necessárias para fazer uma afirmação. Duas negações afirmam, três negam, quatro afirmam de novo etc. etc. Os cornificianos (ou fazedores de argumentos extravagantes) discutiam problemas de extrema importância, por exemplo: "O porco que se leva ao mercado é retido pelo porqueiro ou pela corda?" Conhece-se o asno de Buridan; entre dois móbiles iguais, dois desejos iguais, duas medidas de aveia, que fará o pobre Bmneau (é o nome escolástico do asno)? A escola

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garantia que ele ficaria imóvel e, portanto, morreria de fome.

Cabeças alimentadas por tais pensamentos, sem nenhum estudo dos fatos, perfeitamente preservadas das luzes da experiência, cresciam de modo surpreendente, infladas de vento e vazio. Eram vistas majestosas na capa outrora negra e sempre enlameada dos Capetos, ribombando em sua escura sobrancelha e seus grandes olhos ameaçadores trovoadas de silogismos.

Respeitáveis estudantes que discutiam quinze, vinte anos, sem ter jamais o desgosto de ceder à evidência!

Valentes atletas da parvoíce e seus campeões' eméritos, certos de não terem rival e de estarem acima de todos os homens, doutamente, logicamente tolos!

Os sistemas podiam passar; mas a estupidez é imortal. Quando todos os fantasmas da escolástica" desapareceram, soprados por Ockham, a escolástica subsistiu, como instituição ginásfrcãTímutável escola do Nada.

Dois historiadores ilustres honraram seu túmulo. Hutten, com uma pena original, escreveu as efusões tocantes da padralhada ignara e da Asneira.JRabelais, com uma elevada fórmula, resume a Estupidez sábia ê o gênio da escola, apresentando a terrível questão: "Pergunta-se se a Quimera, zumbindo no vazio, não poderia devorar as segundas intenções? Questão debatida a fundo durante doze ou quinze semanas no concílio etc".

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Proscrição cia Natureza

Tinham-se muito habilmente, parece, fechado e calafetado as frestas por onde teria podido passar a luz. Coisa engenhosa, em vez de fazerem-se cegos que tivessem o furor de enxergar, tinham-se feito míopes, pássaros da noite que não gostavam absolutamente de ver, aos quais se dizia audaciosamente: "Olhai, tendes olhos".

Foram igualmente desencora jadas as duas potências, a razão e a desrazão, a lógica e a profecia, de modo que o espírito humano, a quem se proibia seu procedimento regular, não tinha mais sequer o recurso daquelas heróicas loucuras pelas quais ele atinge de um salto o que se lhe proíbe de tocar. Entre a marcha e o vôo, igualmente proibidos, permissão de rastejarsobre o ventre: a autoridade satisfeita instituía corridas_ao campanário para a lagarta e para a lesma je—lhes propunha prêmios.

Tudo isso é posterior ao Conheça-te de Abelardo e a o Evangelho Eterno, igualmente sufocados; é a florescente época do Lombardo, em que seu manual de tolices teve duzentos comentadores. Mas observai! O espírito humano tem tal fundo de revolta e perversidade inerente que, excluído do estudo da alma e das liberdades do mundo interior, começou a olhar dissimuladamente para o lado da natureza. Não mais livre raciocínio, não mais acordo; não mais poesia, em boa hora. Mas, se ao menos se observasse!... Será, então, uma grande heresia recolher as ervas dos campos, assistir ao homem enfermo, tirar dos simples a vida dada por Deus e que pode reparar a nossa?

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Presta atenção, meu filho, presta atenção. Não há, com efeito, heresia mais monstruosa. Ah! E justamente por isso que os judeus e os árabes são amaldiçoados por Deus. Miseráveis! Eles não puderam compreender que a doença é um dom, uma advertência do Céu, um leve purgatório desse mundo em dedução dos suplícios do outro. Deus também, por punição, multiplicou ao redor deles todas as tentações da terra. Verdadeiros paraísos do diabo, a liueria de Valência e a vega de Granada cumularam num ponto todos os tesouros dos três mundos: Europa, Africa e Ásia. Seda, arroz, açafrão, cana-de-açúcar, tamareira, bananeira, mirra, gengibre, damasco e algodão, sua tirânica indústria violentou os climas, perturbou a obra de Deus. Esses bárbaros, que inventaram a pólvora, o papel e a bússola, tiveram a temeridade de erigir observatórios para vigiar de mais perto o céu, espionar as estrelas; que digo eu? Eles as fazem descer por meio de um vidro convexo, obrigando-as a depositar sua imagem no fundo de uma luneta obscura, confessar todos os seus movimentos, humilhar sob os olhos do homem esses lumes triunfantes que a Escritura e os padres haviam sabiamente fixado no cristal imóvel dos céus.

Em resumo, osjnfiéis, renovando o pecado de Adão, recomeçaram__a comer os frutos da árvore da ciência. Eles procurararrTFsâfvaçao, nao no milagre, mTis níTjiaUireza; nãojna legenda do Filho^mas na criação do Pai.

Compreendei esse mundo e compreendereis a Idade Média. Reparai que, durante quinze séculos, Deus Pai, Deus Criador, não teve um templo e sequer um altar. Sua imagem, até o século XII, está absolutamente ausente (Didron, História de Deus, aprovada pelo

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Arcebispo de Paris). No século XIII, ele se arrisca a aparecer ao lado do Filho. Mas permanece sempre inferior. Quem ousou fazer-lhe realizar a oferenda, fazer-lhe celebrar uma missa? Ele permanece com sua longa barba, esquecido e solitário. A multidão está alhures. Suportam-no; o Filho e a Virgem, donos da casa, não o expulsam da Igreja. J á . é muito. Que ele se considere feliz por não se lhe guardar rancor. Róis, enfim, ele foi judeu. E quem sabe se e s s^eoyá Aüutxíiçiue^não o Alá da Meca? Árabes e judeus sustentam que eles são fiéis de Deus Pai e que, em recompensa, ele lhes verte dons de sua criação.

Criação, produção, indústria de Deus, indústria do homem, todas elas palavras de sentido pouco favorável e mal sonante na Idade Média. A força geradora, ingenuamente colocada no altar pelas antigas religiões, causa escândalo nesta, pálida e lívida religiosa diante de quem mal se ousa falar da maternidade, Se a mãe está no altar, é çomo virgem. A iruiejião_éjcQãe; o filho não é filho. "O que há de comum entre vós e eu?" O pai é pai? Não; pai de criação, nada mais. Os natais da Idade Média, implacável pela modesta e sofredora imagem de José, fazem dele sua zombaria.

O Ormuzd criador da Pérsia, o fecundo Jeová dos judeus, o heróico Júpiter da Grécia, são todos deuses com espessas barbas, .{imantes ardentes dajialuiÊZíLou promotores enérgicos das atividades do homem. O doce e melancólico Deus da Idade Média é imberbe, e permanece assim nos verdadeiros séculos cristãos. Os monumentos quase nunca o representaram com barba até a rude época feudal. A barba geradora! Para quê? Para anunciar o fim do mundo que se aproxima? De que serve engendrar para morrer em seguida? Toda

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atividade produtiva deve cessar. "Olhai os lírios, eles não sabem fiar e estão mais bem vestidos que vós." Assim termina o trabalho. "A César o que é de César." Toda pátria termina no Império. "Nem grego, nem romano, nem bárbaro." O Império desmorona, surge o bárbaro. São Paulo mesmo, negando ousadamente a lei Júlia, mal tolera o casamento; a família também acaba, e da maneira mais fria, os esposos se separam de comum acordo, ele,' monge, ela, religiosa, bons amigos, gerfeitamciite-unidos.na idéia da separação.

Eis a verdadeira tradição. Se a Ordem de São Bento cultiva por um momento a terra, na penúria que se segue à invasão, é uma concessão forçada à inércia legítima. Tudo logo retorna ao seu repouso.

Como a cadeia dos tempos iria continuar? A eterna sucessão do mundo, em que, como nas festas de Atenas, "todos se passam a tocha da vida" {et quasi cúrrenles vitae lampada tradunt), porventura não tinha acabado? Não acabara esse sublime coro?' Os deuses da beleza, quebrantados, encontravam-se mergulhados na terra. Os manuscritos queimados, perdidos. Constantinopla, ela própria, sob o isauriano iconoclasta, fazia às musas a mesma guerra que Gregório, o Grande. Vira-se o dia em que a humanidade arruinada, pobre viúva, teve seu último patrimônio reduzido a uma frase de Porfírio na tradução de Boécio! A ocasião era boa para renunciar a toda ciência, para abraçar de uma vez por todas a imbecilidade. Pascal não teria por que pronunciar sua expressão edificante: "Embrutecei-vos".

Aqui vem a grande fórmula, que nunca se deixa de dizer: "Felizmente os monges lá estavam, religiosos conservadores da Antiguidade, seus salvadores. Escritores infatigáveis, esses bons beneditinos copiavam,

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multiplicavam os livros". E eis justamente onde estava o mal. Quisessem os céusj ju ta i iU]^^ nãg tivessem sabido 1er nem escrever! Mas eles tiveram a fúria de escrever e raspar os escritos. Sem^eles, o furor dos bárbaros^ dos devutos^,níu).aeria^tidQ^££rt^7C"faUjí paciência dos monges foi d~e Pmar4.n3aisSo^MftjCLdas cem-bibiiütíxas-da.Espan4wp e de todas as fogueiras da Inquisição. Os conventos onde eram vísítadõsHsônTFantT^êriérâçtto os manuscritos palimpsestos (quer dizer, raspados e recopiados) foram aqueles onde se realizaram aquelas idiotas noites de São Bartolomeu das obras-primas da Antiguidade.

"Encont rando-me em Monte Cassino, pedi humildemente o favor de visitar a famosa biblioteca. Um monge me disse secamente: 'Subi, a porta está aberta'. Não havia nem porta nem chave. A erva crescia na janela; os livros repousavam nos bancos em uma espessa poeira. Abri muitos livros antigos, mas nenhum completo; em alguns faltavam cadernos; noutros, tinham-se cortado folhas com o intuito de aproveitar as margens brancas. Desci com lágrimas nos olhos e perguntei o porquê dessa mutilação bárbara. Um monge me disse que seus irmãos, para ganhar quatro ou cinco vinténs, arrancavam, raspavam um caderno e vendiam às crianças pequenos salmos, e às mulheres, pequenas letras (sem dúvida talismãs)." Assim é o relato ingênuo de Benvenuto d'Imola.

Próximo desses conservadores admiráveis dos manuscritos, havia uma escola árabe de medicina, a velha escola de Salerno, obstinadamente protegida pelos reis que queriam viver e davam valor às ciências que podiam conservar a vida. Um mouro da África ; a se crer na legenda, intrépido viajante pelos países da Ásia, de lá

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trouxera, traduzido, Hipócrates e Galeno, primeiro tesouro dessa escola.Todavia, os árabes não se limitavam a essa blasfêmia de ler a antiga medicina pagã. Determinados pelos encorajamentos do príncipe dos ímpios, o imperador Frederico II, tomaram essa atitude intrépida, esse sacrilégio sublime de abrir a morte para ler a vida; eles assassinaram, coisa horrível, um cadáver que nada sentia; mataram uma coisa para salvai homens^ Seu protetor, pensador ousado, poeta encantador e péssimo crente, passava por tal celerado que se acreditou poder atribuir-lhe o livro dos Três Impostores, que nunca foi escrito. O que é certo é que esse grande príncipe, uma das vozes da humanidade por quem a Europa retomou seu diálogo fraternal com a Ásia, interrogou os doutores muçulmanos e fez esta pergunta que teria podido quebrar a espada das cruzadas: "Que idéia tendes.de Deus?"

Por Salerno, por Montpellier, pelos árabes e pelos judeus, pelos italianos, seus discípulos, realizava-se uma gloriosajressurrjelção do Deus da natureza. Enterrado, não três dias, mas mil ou mil e duzentos anos, ele tinha, contudo, varado com sua cabeça a pedra do túmulo. Retornava vencedor, imenso, as mãos cheias de frutos e flores, o Amor consolador do mundo. Os mouros tinham descoberto esses poderosos elixires da vida, que a Terra, de seu seio profundo, por intermédio dos simples, envia ao homem, seu filho, e que são, talvez, sua vida maternal. A ternura desse Deus mãe, que não se sabe como denominar, explodia, extravasava por ele. Vendo-o fraco, vacilante, sem poder ir a ela, a grande mãe, a poderosa ama-de-leite, se precipitava para segurá-lo em seus braços. O que o homem podia lhe retribuir? Um

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grande coração, uma sublime e imensa vontade. Surgiu um herói: Roger Bacon (1214-1294).

Aluno de Oxford e de Paris, tendo esgotado inicialmente a vazia teologia da época, aprendeu hebreu, grego e árabe, resolvendo as velhas questões com esta simplicidade corajosa: "Só é cristão aquele que lê a Escritura".

Tendo centralizado com muito custo a ciência da época, tudo o que se podia ter de escritos árabes e gregos, ele trilhava o caminho dos árabes e avançava vigorosamente ao seio da natureza. Denunciado, como de costume, pelos monges, seus confrades, que acreditavam ser ele mágico, enviou ao Papa como justificação seu colossal Opus majus, provando-se assim infinitamente mais culpado do que se havia acreditado. "A magia não é nada", dizia ele. "Bem", disse a Igreja, "mas por quê?" Ele acrescentava: "Porque o espírito humano tudo pode servindo-se da natureza".

Assustadora asserção que suprimia a magia, mas derrubava a magia sagrada e deixava como único milagre a onipotência do homem.

Se ao menos ele tivesse enviado apenas um livro! Mas juntou a este um livro vivo um homem improvisado por ele, denunciando-se, assim, como o mais rápido, o mais terrível educador que já existira. "Vede bem", dizia ele ao papa, "esse rapaz que leva meu livro se chama João de Paris; ele aprendeu em um ano o que me custou quarenta."

Fulminante rapidez da educação do bom senso! Poder estranho de extrair, com a centelha elétrica, a ciência preexistente no cérebro do homem e dela fazer brotar a Minerva armada!

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Os monges tinham dito muito bem que esse perigoso Bacon forjava uma cabeça implacável que devia proferir oráculos.

O Papa que recebeu essa mensagem ficou estupefato e não ousou tocar no mágico. Seu sucessor prendeu-o. Quão judiciosamente! Seu livro, cheio de fulgores formidáveis, preparava para um novo mundo a força e a verdade.

A força, a igualdade das forças, a pólvora e a artilharia são nele ensinadas; a América indicada, predita, e foi por essa indicação que Cristóvão Colombo partiu. O telescópio, conhecido pelos árabes, é aqui pela primeira vez entrevisto por um cristão. A elevada lei das ciências e do homem, a perfectibilidade indefinida são lidas no Opus majus quinhentos anos antes de Condorcet. Que é feito do tipo imutável da Imitação e do Consummatum est'?

Teriam-no queimado certamente. Mas adveio-lhe exatamente o que aconteceu mais tarde a seu colega Arnaldo de Vilanova, o inventor da aguardente. O Papa persegue-o como Papa, poupa-o como médico. Bacon escreveu um livro sobre os meios de evitar as enfermidades da velhice. E se esse ímpio tivesse a arte de eternizar a vida do homem? Enquanto o Papa rumina essa pergunta e essa dúvida, Bacon, que tem 80 anos, escapa morrendo e rouba de seus inimigos a felicidade de o verem retratar-se como Galileu.

Eis a perplexidade da autoridade dessa época. O homem do espírito é abalado pelos temores do corpo, o desejo de viver, de salvar a carne.

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Os Papas aprovam a medicina, cercam-se de médicos judeus, mas proíbe^umaiomúi^JLipi í i i i ica^ meios da medicina.

Os observadores sentem-se desencorajados. O estudo dos fatos é muito perigoso. Usam-se os livros como abrigos, adaptam-se velhos textos para apoiar a ciência frívola, bizarra, de imaginação. O campo da verdade se esteriliza; nenhuma descoberta no século XIV.

Em contrapartida, o errojéjjeçundo. O bando dos homens er radi i^ lõs tFgareFts e dos patifes, astrólogos e alquimistas, vai se multiplicando. Os matemáticos sérios no século XII, do tempo de Fibonacci e da escola de Pisa, são feiticeiros no século XIV, fazedores de quadrados mágicos. Carlos Magno tinha um relógio que ganhara do califa; mas São Luís, que retorna do Oriente, não tem nenhum e mede suas noites pela duração de uma vela. A química, fecunda entre os árabes da Espanha e ainda prudente com Roger Bacon, torna-se a arte de perder Quro, de enterrá-lo no cadinho pãnTdêlê^jãrãTrTíimaça. O recuo que observávamos em filosofia, em literatura, se dá mais magnífico ainda e mais triunfante nas ciências. Copérnico, Harvey, Galileu são adiados por trezentos anos. Uma nova porta sólida fecha a passagem ao progresso, porta espessa, porta maciça, a criação de um mundo de falastrões que tagarelam sobre a natureza sem jamais se ocupar dela.

Boa jgg i ãode reforço para.o. imensa^xéidto_dos imbecis.

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Profecia cia Renascença — Evangelho Eterno — Impotência cie Dante

A Renascença se tinha apresentado ao século XII como a sibila a esse antigo rei de Roma, com as mãos repletas de porvir, carregadas de livros do destino. Ele hesita; de cinco volumes, ela queima dois, e por três pede o mesmo preço que por cinco. Ele hesita; mais dois volumes desaparecem nas chamas. Ele lhe toma o que resta e compra-o a qualquer preço.

É assim que a Renascença, em seu primeiro impulso, ofereceu inicialmente ao homem os caminhos rápidos e diretos da iniciação moderna, de modo que os racionais e mesmo os místicos dessa primeira época fazem-se compreender por nós bem melhor que todos os seus sucessores. Depois, tendo esse momento solene passado e sido perdido, os caminhos da Renascença tornam-se oblíquos, incertos; ela só se encaminha ao seu objetivo por circuitos imensos, bem mais que isso, às cegas, por impasses onde ela se choca. O espírito humano desgarrado, cansado desses rodeios infinitos, senta-se várias vezes nas pedras do caminho e aí, como uma criança que chora, não quer mais escutar ninguém, nem caminhar, nem avançar, a não ser, talvez, recuando, dando passos atrás que duplicarão sua fadiga e o afastarão do objetivo.

Recordemos o ponto de partida, o primeiro crítico, o primeiro profeta, o autor de Conheça-te a li mesmo e a revelação do Evangelho eterno.

Quando Abelardo, proscrito da escola da montanha, proscrito~de"seu próprio asilo, a abadia de Saint-Denis, foi se esconder no deserto, lá erigiu o novo

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altar do Paracleto, do Espírito Santo, do Espírito da ciência e do amor. Semelhante luz não se pode ocultar. As escolas o seguiram com toda a sua gente, acamparam ao redor dele, construíram cabanas, do modo que puderam. Construiu-se no deserto uma cidade à ciência, à l iberdade._Es.se mundo indigente de alunos encontrou-se rico em um momento para construir o novo templo que Heloísa devia guardar. Sua abadia de Paracleto, fundada pela esmola do povo, foi a primeira e a última igreja erguida ao Espírito Santo.

O Espírito Santo, miseravelmente esquecido ou pobremente representado sob uma figura bestial, fora restabelecido por Abelardo em seu direito por aquela célebre estátua em que as três pessoas da Trindade aparecem na sua igualdade, todas as três sob aparências humanas. Estranha trindade até então, na qual não apareciam nem o Pai nem o Espírito Santo!

E ele ensinou que o Espírito era idêntico ao ajnor, que o Filho era não o amor, como dizia a Idade Média, mas a inteligência e a palavra. Doutrina antiga, conforme às origens platônicas do cristianismo. Doutrina de grande alcance moderno, que abria a interpretação, desejava salvar a antiga fé trazendo-lhe o progresso, de modo que ela fosse se ampliando à medida do novo mundo.

Sabe-se com que furor selvagem essa voz foi abafada por aqueles que queriam perecer. Todos os sistemas de interpretação audaciosa, destrutiva, aparecem desde então no século XII.

€>s vaiüensesj libertando o Evangelho do espaço e do tempo, ensinam que ele se renova todos os dias, que a e n c a r n a ç ã o de Deus no homem recomeça

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incessantemente e que ela é sua paixão. Portanto, o Evangelho não data mais de tal ano de Tibério; é de todos os anos e de todos os tempos, fora do tempo; ele é o Evangelho et em o.

Temível simplificação, que apareceu como a morte do cristianismo. A maioria estremeceu e fechou os olhos diante dessa luz ardente. Mas ela brilhava inexorável, e de dentro para fora, do próprio âmago de seu espírito.

Havia em Calábria um simples, o porteiro de um convento, chamadoQõãqliiÜíl Num dia em que ele s o n h a v a no j a r d i m , uma f igu ra de h o m e m maravilhosamente bela lhe aparece com um cálice na mão, que lhe coloca nos lábios. Joaquim, discretamente, bebe uma gota: "Eh! pobre homem", diz o desconhecido, "se tu tivesses bebido tudo, terias bebido todo o porvir!"

Todavia, tendo tomado só uma gota, menos iluminado que «tormentado, assustado com os abismas qiLeieJ)bmii.nJlQi;xÍtíÍaojym Joaquim abandonou seu país e procurou no túmulo de Cristo a pacificação de suas tentações.

Em seu retorno, diz seu discípulo, parou na Sicília em um convento ao pé do Etna; lá foi tomado por tão estranho pensamento, que teve por três dias uma espécie de agonia, sem pulso, sem voz e como morto.

Que havia ele sonhado? Só se soube muito tempo depois, quando se decidiu mandar escrever alguma coisa sobre o fato: "Encontrava-me a seus pés, escrevi, e dois outros comigo; ele ditava noite e dia; seu rosto estava pálido como a folha seca dos bosques".

Essa única gota d'água, bebida no amor e na simplicidade na taça do porvir, é um mar, ireis vê-lo.

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Coisa surpreendente! O cristianismo nascente parecia ter compreendido a si mesmo como uma simples época do mundo, uma de suas formas históricas.

ffbrtulianq disse no segundo século: "Tudo amadurece e a Justiça também; em seu berço ela foi apenas natureza e temor a Deus. A lei e os problemas foram sua infância; o Evangelho, sua juventude; o EsgfnJoSanto lhe dará sua maturidade".

O homem do ano 1200 sabe mais que isso. Ele sabe que o Espírito Santo.é_o livre espírito, a era da ciências

"Há ou três épocas ou três categorias de pessoas entre os fiéis. Os primeiros foram chamados ao trabalho do cumprimento daJLfii; os segundos, ao trabalho da Paixão; os últimos, que procedem de uns e de outros, foram eleitos para a Liberdade da contemplação. É o que atesta a Escritunfquando diz: Onde está o Espírito do Senhor, está a liberdade. O Pai impôs o trabalho da Lei, que é o temor e a servidão; o Filho, o trabalho da Disciplina, que é a sabedoria; o Espírito Santo oferece a Liberdade, que é o amoL A segunda era, sob o Evangelho, foi, é livre, em comparação àquela que precedeu, mas não em relação à que virá.

"Ao povo judeu foi confiado o texto do Antigo Testamento; ao povo romano, o texto do Novo; aos homens espirituais foi reservada a inteligência espiritual que procede de um e de outro."

O mistério do reino de Deus apareceu, de início, como em uma noite profunda, depois veio despontar como a aurora; um dia brilhará em seu pleno meio-dia; porque, em cada era do mundo, ii ciência cresce e se, torna múltipla. Está escrito: "Muitos passarão, e a ciência irá se multiplicando".

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"A primeira era é uma era de escravos; a segunda, de homens livres; a terceira, de amigos. A primeria era, de velhos; a segunda, de homens; a tercería, de crianças. À primeira, as urtigas; à segunda, as rosas; à última, os lírios." (Concordia, pp. 9, 20, 96, 112)

Eis o que Tertuliano não viu, e que é grande, verdadeiramente inspirado pelo Espírito, pela luz dos corações. O antigo doutor conduzia a fé da infância à idade madura; e Joaquim a demonstra tornando-se jovem de idade em idade; para fruto da maturidade, para império da sabedoria, ele nos promete a infância. Oh! sublime palavra: a santa infância heróica do coração; é por ela, com efeito, que toda vida recomeça!

Reinado do livre espírito, era de ciência e de infância ao mesmo tempo! Doutrina comovente que embarca a espécie humana nessa nave de amigos onde Dante teria desejado vogar para sempre, onde nós mesmos pedimos a Deus para navegar de mundo em mundo!

Esse grande ensinamento era o princípio da Renascença. Circulou desde então como um Evangelho eterno. Muitos o ensinaram nas chamas. E João de Parma, no mosteiro dos Franciscanos, professou ousadamente: Quod doctrina Joachimi excellit doctrinam Christi.

O Evangelho Heróico—João e Joana — Impotentes Esforços

A primeira palavra da Renascença estava dita, e a mais forte. Todas as suas tentativas ulteriores, mesmo aquelas do século XVI, são relativamente retrógradas. A

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originalidade de gênio e de invenção, a grandeza dos caracteres em nada alterarão isso até o século XVIII. A porta foi aberta e se fechou. Tudo o que se tentará agora, para se libertar da Idade Média, faz-se lentamente, com muito esforço e pouco sucesso. Por quê? E que esses esforços se fazem no próprio contexto do sistema do qual se deseja sair. Deseja-se, não se deseja. Sai-se dele e não se sai. Joaquim de Fiore, ele próprio, desculpa-se, repele para bem longe a idéia do Evangelho eterno. A quem ele oferece seu livro? Ao próprio Papa que ele aniquilou. Dante, que, cem anos depois, tirou o lacre dos três mundos e humanizou a Idade Média pela força do seu coração, a destrói em um sentido, mas em outro a consagra , dando- lhe , por seu gênio, um novo encantamento. Mesmo Lutero, no século XVI, em seu ímpeto heróico, "em seu desprezo magnífico por Roma e por Satã", acreditais que ele vai demolir o passado totalmente? Absolutamente, ele deseja um passado mais antigo a que pretende retornar por São Paulo.

Espetáculo extraordinário, estranho, no qual é preciso se deter. Nessas épocas de ferro e chumbo, de 1300 a 1500, a Providência prodigaliza os milagres, e é em vão. Ela agita a humanidade e não a despertaJFerreus urgel somnus. Deus não sabe mais o que pensar de sua criação.

Vede vós mesmos. Em 1300, a obra mais inspirada, mais calculada da espécie humana, esse mortal esforço de ciência e de paixão concentrada, a Divina Comédia passa e não tem nenhuma influência. Florença, que nesse momento sucede em toda a parte aos judeus, no banco e na agiotagem, tem outra coisa a fazer. A Itália, antidantesca, só lê o DecameroiL O grande poema

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teológico é restituído a Santo Tomás, à escola e à Igreja, às prédicas do domingo.

Petrarca^ bem mais popular, fracassa em seu edificante esforço de exumar a Antiguidade. Convoca os mestres gregos, mas estes não têm discípulos. Sombra errante de um mundo destruído, ele mesmo vai se juntar a seus mortos, sem poder reavivar seu culto. E encontrado sobre um Homero que ele beijava e não podia ler.

Os verdadeiros restauradores de Roma, zeladores do antigo Império, eram nossosJegistas, segundo parece, esse Guilherme Nogaret, que trouxe a Bonifácio VIII o fole de Filipe, o Belo. O direito do sajuspopuli, a testado contra os Papas, o é errfbreve contra os reis. Os Mareei e os Artevelde crêem fundar a República com base na burguesia. Esta se furta e se apaga, se avilta, e tudo desmorona.

Nascida apenas ontem do povo, ela o vê com espanto em sua primeira aparição. A revolução de Paris não quer ter nada em comum com a revolta camponesa. Ela estremece com ela, sente-lhe horror. Esse Lázaro ressuscitado é de tal forma desfigurado que tudo foge à sua aproximação: Será ainda um homem? Duvida-se e evita-se ter compaixão por ele.

E, no entanto, nesse momento, começava uma revolução, obscura, porém grande e santa, prelúdio de unidade fraternal. , 0 gênio de cada nação, que está sobretudo^ em sua língua, revelava, por t ímidas tp.qtntiv^ P.SSP. mistp.riolde unidade: Pálrial

A Itália começava a falar o mesmo idioma; aos dialetos apagados sucedia a língua do si. A França

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desenvolvia a sua com Froissard, seu adorável narrador. Esperando que Lutero desse seu Verbo à Alemanha, um humilde, um herói, um profeta, João Huss, havia formulado o da Boêmia, evocado o espírito eslavo, criado sua pátria e sua língua.

Pátria! Palavra santa! Porque, ao escrever-te, a vista tem de se tyi^var e nq plhos se obscurecer? E i u a longa-e tlágitüJiyilQJdaaiJiufo£ante lembrança de tanta glória, de tantas quedas que pesa em demasia sobre nosso co'Facão?"JQu então .teu ponto. dç_partida, a Paixão dolorosa que começa tua Encarnarão, g_história dessa mulher em quem aparecestes e qu e,. con tada ceiiLvezev cem veze "renova as lágrimas?

O mundo, saturado de lendas e falsos milagres, viu o verdadeiro e o real, um milagre indubitável, e não o sentiu.

Que lenda, no entanto, que fábula se sustenta diante dessa história? Das trinta mil encarnações do Oriente, dos deuses mortais do Ocidente, heróis, sábios ou mártires, quem ousará lutar aqui?

Pensai bem nisso. Aqui, não é um doutor, um sábio experimentado pela vida e seguro de suas doutrinas. Não é absolutamente um martírio passivo, rejeitado, aceito. E um martírio ativo, desejado, premeditado, uma morte perseverante de ferimento em ferimento, sem que o ferro jamais desencoraje até a horrenda fogueira.

O Evangelho monástico, renovado então pelo livro da Imitação, nos diz: "Abandonai esse mundo cruel". O Evangelho heróico (um livro? não, uma alma) nos diz: "Sa!yai.esse mundo, combatei e morrei por ele".

E quem é esse revelador, esse surpreendente mártir que prega com seu sangue através das espadas? É essa

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moça que fiava ontem perto de sua mãe, uma filha dos campos, ignorante, uma criança. Mas sua força é seu coração, e em seu coração está sua luz. E[aj:ohre » pátria com seuseiocle mulher ecom sjjajmcantadora piedade-Haverá uma pátria. Só ela disse e sentiu.csla-expr-e.ssão: "O sangue da França!" A França nascerá dessa lágrima.

E, fundada a pátria, ela desaparece sobre a fogueira, em sua sublime ignorância que confunde os doutores, a autoridade da voz interior, o direito da consciência.

O mundo vai cair de joelhos? Acreditais nisso? Vai erigir-lhe um altar? Desiludi-vos. Quando a fogueira é acesa, quando a antiga, lenda, que todos têm à boca, reaparece, real, ampliada, ninguém a reconhece, ninguém presta atenção a ela. E somos nós, críticos modernos, que encontramos tão tarde a santa relíquia, para assõciá-lã às nossas, aos grandes mortos da .1 ' n 11, , i, __ - .,. -i i-,...._,. ' - - • - O - • - 1 -• j w wiim i '

liberdade. O geração infeliz! Era desesperada que vive sem

ver! E, então, o excesso de males, o torpor das misérias, a fome, a voz do ventre, que tapou vosso ouvido, vedou vossos olhos e vosso espírito? Não, mesmo antes desses males um pesado prosaísmo, uma letargia de chumbo tinham invadido o século, digamos melhor, um nada! Mestres invejosos do povo, seus pretensos educadores não haviam formado senão um povo de sombras. A esterilidade, tão pregada, obtivera enorme sucesso. A Idade Média, ao partir, deixava atrás de. m-r) df.se.rtQ-

Quem ficava para escutar Dante? Ninguém. E para c o m p r e e n d e r Ockham, quando ele r o m p e u a escolástica? Ninguém. Tudo foi aniquilado. Quão menos homens restavam para escutar Jqanajdj&rc, o Evangelho, hçjQÍCü..do povo, a profecia viva da Revolução?

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Havia-se feito mais que o vazio, mais que o deserto e a morte. Pois algo vivia, a discórdia, o germe do divórcio fatal, do qual experimentamos sempre os frutos, e que é a infelicidade permanente desse povo: duas Franças em uma, dois povos pouco amigos, de cultura diversa e contrária. Nos piores séculos da Idade Média, quando todos, povo e barões, cantavam as mesmas canções, o Dies irae e a canção de Rolando, havia, é verdade, duras diferenças sociais, mas alguma unidade de espírito. Por volta do século XII, como as classes superiores desejassem canções próprias, uma literatura refinada, o clero tomou conta do povo e sobre o povo se deitou, encarregando-se dele sozinho. Desgraça a quem nele tivesse tocado!_Como esse protetor o nutriu? De latim, que.ele não mais compreende, de abstrações bizantinas, quej\ristóteles não teria compreendido. Entretanto, em cima, cx^granclêsTnõbres ou ricos prosseguiam, cada vez mais sutis; em baixo, abatido, abandonado, permanecia o poyo- A distância cresceu sempre, a malevolência também. Nenhuma palavra de língua comum, nenhuma canção verdadeiramente popular. A música, que tudo liga na Alemanha, é aqui nula. O século XVI não aproximou de modo algum os dois povos, e o faustoso

j é ç u j o _ X V ^ Que camponês conhece Molière? É o que ele conhece? Absolutamente nada!

A Arquitetura Racional e Matemática — A Ruína do Gótico

O primeiro golpe sentido, popular, da Renascença, deveria ocorrer na arte, e isso por duas razões.

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A via teológica parecia decididamente fechada. Os reformadores da Igreja, os padres do Concílio de Constança, um Gérson, queimaram vivo o fervoroso cristão cuja fé diferia muito pouco da fé deles! Por uma dissidência externa, os partidários de João Huss foram condenados ao anátema, como o tinham sido igualmente aqueles que derrubavam o edifício inteiro do cristianismo. Um povo foi entregue à espada e toda a terra conclamada a seu extermínio. Exemplo inaudito, terrível, das ferocidades do medo. Gérson, a quem se atribuía a Imitação de Jesus, não teria molhado suas mãos no sangue do justo se não tivesse acreditado fazer dele um cimento para restaurar essa ruína desmoronante da Igreja, essa abóboda rachada que ele suava em sustentar e que desabava sobre ele.

Era por vias indiretas que se podia acelerar o fim da Idade Média, desse terrível moribundo que não podia morrer nem viver e se tornava mais cruel ao aproximar-se de sua hora finai. A via da ciência estava obstruída desde á perseguição de Roger Bacon e de Arnaldo de Vilanova. Entretanto, a arte era menos vigiada. Os tiranos sentiam pouco os laços profundos, íntimos, existentes entre as diversas liberdades do espírito humano, a oportunidade que a arte livre podia proporcionar à libertação literária e filosófica.

Observem que, se o velho sistema ainda fazia boa figura, era na arte: ele a reivindicava como sua, como sua obra e seu fruto. Quando um sistema religioso apodera-se de todas as coisas, cada energia produtora das atividades do homem parece inspirada por esse sistema, e fazem-se-lhe honrarias por isso. Entretanto, Giotto, o grande pintor, ainda que permanecendo na esfera dos temas sagrados, mostrara, por um golpe

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inesperado de audácia, o quanto, na realidade, estava livre da velha inspiração. Ele abandonara os tipos consagrados, as insípidas e inexpressivas figuras da Idade Média, para pintar o que via, ardentes rostos italianos, belas e vivas madonas, que cercou com auréola e colocou ousadamente no altar. Profunda mudança que renovaria a tradição, sobretudo quando, do interior do Norte, o poderoso Van Eyck, abandonando a deslavada cor a ovo, faz a vida brilhar nessa ardente pintura que fez a outra empalidecer e a despachou, sombra fastidiosa, a dormir perto da escolástica.

Entretanto, esse não era o combate decisivo da arte. O coração da arte cristã, sua poesia, sua pretensão de a p a g a r as épocas passadas , encont rava-se na arquitetura. A ogiva árabe e persa (dos séculos VIII e IX) t inha sido a d o t a d a no século XII pelos pedreiros-livres, combinada com gênio em monumentos sublimes. Essa revolução laica, que arrancou a arquitetura das mãos dos padres, mesmo assim era o seu orgulho. A Igreja imaginava-se invencível. A quem constatasse sua lógica ou colocasse em dúvida sua legenda, ela respondia mostrando aquela legenda de pedra, o milagre subsistente daquelas abóbadas improváveis. Dizia: "Vede e crede".

A tradição misteriosa dos pedreiros góticos parecia existir no século XIV, principalmente ao longo do Reno. Ela chegara tarde por lá, mas fizera escola. Lá, erguia o monumento de ambição infinita em que muitos quiseram ver o tipo definitivo da arte, a inacabável Catedral de Colônia. A própria Itália não parecia contestar a primazia das corporações de pedreiros de Colônia e de Estrasburgo. Ela lhes rendia preito e homenagem, e o

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duque Jean Galéas não acreditou, segundo dizem, poder fechar, sem o concurso deles, as abóbadas de Milão.

Esse Papado dos pedreiros-livres, essa infalibilidade que os constituía numa espécie de Igreja de arte, cliente da Igreja teológica, encontrou seu incrédulo, seu cético, num firme espírito italiano. O florentino Brunelleschi, calculista implacável, observou com um olhar severo essas construções extravagantes, contestou sua solidez e construiu contra a frágil ortodoxia deles a durável heresia que agora é a fé da arte.

O gótico causava sensação, fazia ostentação de cálculos e números. O sacrossanto número três, o mis ter ioso número sete eram cu idadosamen te reproduzidos, eles mesmos ou em seus múltiplos, em cada parte dessas igrejas. "Observem bem", dizia-se, "estas 7 portas e estas 7 arcadas, esta extensão de 16 vezes 9 (o 9 é ele mesmo 3 vezes 3); estas torres têm 204 pés, isto é, 17 vezes 12, ainda um múltiplo de 3 etc. Construída sobre 3 e sobre 7, esta igreja é muito sólida." Por que razão, então, ao redor da igreja essa grande quantidade de arcobotantes, esses enormes contrafortes, essa eterna andaimada que parece ter sido esquecida pelo pedreiro? Retirai-os; deixai as abóbadas se sustentarem por si mesmas! Todo esse edifício, visto de perto, comunica ao espectador um sentimento de fadiga. Ele confessa, ainda novo, sua caducidade precoce. Inquietamo-nos, somos tentados, ao vê-lo buscar tantos sustentáculos, a levar nossas mãos a ele para sustentá-lo.

O que ele deixa do lado de fora, sob a ação destrutiva das chuvas, dos invernos? Os sustentáculos responsáveis por sua solidez. Dir-se-ia um fraco inseto mostrando, arrastando um cortejo de frágeis membros, que, feridos, o farão cair. Uma construção robusta

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abrigaria, cobriria seus arrimos, garantias de sua duração. Esta, que deixa ao acaso esses órgãos essenciais, é naturalmente enferma. Ela exige que se mantenha a seu redor uma multidão de médicos; não denomino de outro modo as vilas de pedreiros que vejo es tabe lec idos ao pé desses edifícios, vivendo, engordando com essa obra, eles e seus numerosos filhos, restauradores hereditários dessa frágil existência tão bem refeita peça por peça que, ao cabo de duzentos ou trezentos anos, talvez não subsista sequer uma pedra da construção primitiva.

Se há um monumento romano ao lado, o contraste é grande. Em sua altiva solidão, ele observa com desdém a eterna restauração de seu frágil vizinho, e esse formigueiro humano que o faz viver e que vive dele. Construído há dois mil anos pela mão das legiões, ele permanece invencível aos invernos, não necessitando da ajuda humana mais do que necessitam os Alpes ou os Pireneus.

Esse contraste foi percebido pelo calculista italiano. Era, diz seu biógrafo, um homem de uma vontade terrível, que começara por aprender todas as artes em proveito da arte central que encontra na matemática sua harmonia e sua duração. Possuía a alma de Dante, sua universalidade de espírito, porém dominada e guiada por uma outra Beatriz: a divina melodia do número e do ritmo visível.

Por ela, escapou vencedor de todas as tentações, especialmente da escultura, cujo fascínio viril o reteve de início. Perspectiva, mecânica, artes diversas do e n g e n h e i r o , eis a e s t r a d a pela qual seguiu empreendendo sempre a busca dessa Urânia que imita

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na Terra a regularidade do céu e a eternidade das construções de Deus.

Jamais houve uma época menos favorável a essas nobres tendências. A Itália entrava num profundo prosaísmo: a materialidade viva dos tiranos, dos bandos mercenários, a mediocridade burguesa dos homens de finanças e de dinheiro. Começava no banco de Florença uma religião que tinha no ouro sua presença real e na letra de câmbio sua eucaristia. O advento dos Médicis inaugurava-se por estas palavras: "Quatro alnas de tecido bastam para fazer um homem de bem".

Brunelleschi vende uma pequena gleba e parte para Roma com seu amigo, o escultor Donatello. Viagem perigosa naqueles tempos. A campanha romana já era terrivelmente selvagem, infestada de bandidos, de soldados dos Colonna, dos Orsini. A cada dia, nesse deserto, o homem se perdia, o búfalo selvagem se tornava o rei da solidão. Ela continuava em Roma. As ruas eram repletas de capim, entre os velhos monumentos tornados fortalezas, desfigurados e améados. Não eram a Roma dos Papas, mas de Piranesi, essas ruínas grandiosas e estranhas que o tempo, "esse mestre em beleza", sabiamente acumulou em sua aparente negligência, sufocando-as de sombras e plantas, que as ornam e as destroem. Estátuas não eram vistas; elas ainda dormiam sob o solo; todavia, restavam i m e n s a s t e r m a s , onze t emplos , quase t o d o s desaparecidos hoje, alicerces profundos, esgotos monumentais, por onde teriam podido passar os triunfos dos Césares, todas as sombrias maravilhas de Roma soileranea.

Petrarca havia designado a Roma esquecida à religião do mundo; Brunelleschi a reencontrou, a

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recompôs em espírito. O que não deixou escrito essa corajosa peregrinação! Quase tudo estava soterrado. Ao se escavar em profundidade, encontrava-se a cumeeira de um templo de pé. Para chegar a essa estranha Roma, era preciso seguir as cabras nas mais perigosas cornijas, ou, tocha à mão, penetrar nos desvios obscuros dos abismos desconhecidos.

O Cristóvão Colombo desse mundo não era um desenhista para se contentar com a forma. Ele fez o mais profundo estudo do tipo dos materiais, da qualidade dos cimentos, do peso das diferentes pedras, da arte que as ligava entre si. Aprendeu com os romanos todos os seus segredos e, além disso, o segredo de superá-los. Ainda são pessoas tímidas que dão bases enormemente largas e além da necessidade a seus monumentos (vede a ponte do Gard, o circo de Arles). A ambição titânica de Brunelleschi, sua fé no cálculo fizeram-no crer que ele colocaria sobre fundações menos largas primeiramente as enormes abóbadas dos Tarquínios e, por cima, elevaria o Panteão a trezentos pés de altura.

Brunelleschi retornou e pediu para terminar a Catedral de Florença, cujo arquiteto morrera após ter somente posto as fundações no solo. Fundações octogonais e de um plano particular que complicava a questão. Nesse caso difícil, o gênio não era tudo. Ainda era preciso uma dose infinita de habilidade e perícia para conquistar esses burgueses de Florença, banqueiros, negociantes, que nada conheciam, acreditavam comprender tudo e não deixavam de ouvir os ignorantes, os invejosos. Brunelleschi precisou de uma diplomacia mais refinada do que a que teria sido necessária para resolver todos os assuntos da Europa.

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Seu golpe de mestre foi dizer que era preciso previamente que fizessem vir de todos os lugares os grandes arquitetos, sobretudo os mestres alemães, que não teriam deixado de opor-se a ele, se ele próprio não os tivesse chamado. Queria vê-los todos juntos e vencê-los de uma só vez. Convocados, foi-lhes necessário confessar a insuficiência de seus meios, a incerteza de sua arte. Tinham o gênio das formas, dos efeitos e do p i t o r e s c o na a r q u i t e t u r a , de modo algum o conhecimento dos meios científicos de construção. Tinham, até então, agido às cegas, fortalecendo as sustentações externas, segundo o peso dos muros. A criança mantinha-se de pé, mas sob a condição de estar/ segura pelas mãos paternas. Foi bem mais tarde que calcularam, somente no século XV. Não subsiste nenhum cálculo deles que seja anterior a esse congressso de arquitetura de Florença, realizado em 1420.

Lá, acuados e intimados a não se servirem de seus sustentáculos exteriores, nada souberam propor, senão um meio grosseiro: o suporte interior de um gigantesco pilar sobre o qual se apoiaria o domo. Tal era essa ar te sem arte da qual tanto se gabavam.

Não só eles empregavam todos os tipos de esteios visíveis, mas, conforme mostrou-me o arquiteto atual de uma de nossas catedrais, no próprio ornamento as partes mais salientes eram sustentadas por grampos de ferro cuidadosamente ocultados. Inútil dizer que esse ferro logo oxidava e que era necessária uma contínua reparação, um vaivém de pedras que se sucediam, sem que por isso se tornassem mais sólidas.

Tratava-se de fazer, pela primeira vez, uma construção duradoura que se sustentasse por si mesma e sem auxílios externos.

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O grande artista explicou seu plano. Todavia, ninguém quis compreender. Os juízes puseram-se inicialmente do lado dos impotentes. Todos riram. Conveio-se que ele era louco. Disseram-no; o povo acreditou, e dizia vendo-o passar: "E esse louco do Brunelleschi"?

Entretanto, como os outros nada propusessem, consentiram que ele. retornasse: "Pois bem! Mostra-nos teu modelo". Eles o teriam sem dúvida copiado. A esses maliciosos ignorantes, Brunelleschi replicou com um argumento digno deles: tirou um ovo de seu bolso. "Eis o modelo", disse, "coloquem-no em pé..." E, como ninguém conseguisse, ele o quebra e o faz manter-se de pé. Todos exclamam: "Nada era mais simples!" — "Quanta audácia!"

Eu g o s t a r i a de p o d e r c o n t a r t u d o . É, simultaneamente, o heroísmo e a arte, a obra e o martírio do gênio. Ele venceu, mas com a condição de suportar como auxiliar um escultor que entravava tudo. Mil outras dificuldades lhe sobrevieram. Seus operários o abandonaram. Formou novos. Ensinou a todos seus ofícios: aos pedreiros a construir, aos serralheiros a forjar etc. Teria fracassado cem vezes, se não tivese sido apoiado nos mínimos detalhes por essa surpreendente universalidade que adquirira de boa hora e subordinara ao grande objetivo.

Sem madei ramento , nem contraforte , nem arcobotante, sem auxílio de sustentação exterior, ergueu-se a colossal igreja, simplesmente, naturalmente, como um homem forte levanta-se de sua cama pela manhã, sem recorrer à bengala ou à muleta. E, para grande espanto de todos, o poderoso calculista colocou-lhe ousadamente sobre a cabeça seu pesado

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chapéu de mármore, a lanterna, rindo dos temores alheios e dizendo: "Essa mesma massa acrescenta solidez".

Eis fundada, portanto, a forte pedra da Renascença, a permanente objeção à arte capenga da Idade Média, primeira tentativa, porém triunfante, de uma construção séria que se apóia em si mesma, no cálculo e na autoridade da razão.

A arte e a razão reconciliadas, eis a Renascença, a união do belo e do verdadeiro.

Profundas religiões da alma! "Onde desejais ser enterrado?", perguntava-se a

Michelangelo, que acabava de construir São Pedro. "Num lugar de onde poderei contemplar eternamente a obra de Brunelleschi."

ímpetos e Recaída — Da Vinci — A Imprensa — A Bíblia

O heroísmo enciclopédico que quer abranger todas as coisas parece ser o gênio de Florença sob Brunelleschi. Antes, tudo era dividido; havia pintores, ourives, escultores, arquitetos. A arte é, por algum tempo, geral, mesclada e unida a todas as artes. Isso dura meio século, até da Vinci, gênio verdadeiramente universal de toda arte e de toda ciência. Michelangelo, que já não é um erudito, unirá ao menos as artes do desenho: será escultor, pintor, arquiteto; mas Rafael e os outros grandes mestres do século XVI se concentrarão numa só arte.

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O que mais surpreende no movimento do século XV é que a obra que provoca a admiração, o estupor universais, a de Brunelleschi, tem pouca influência, é pouco imitada. Diante dessa vitória da Renascença, o gótico agonizante se revigora; faz seu último esforço; aprende a calcular e ergue a flecha da catedral de Estrasburgo. Fatigado desde esse momento, afunda na impenitência; longe de pensar em se corrigir, torna-se ainda mais frágil, cercando-se cada vez mais de todas as artes menores do ornamento, delicadezas do cinzelador, do bordador, frisos, rendas. A graciosa igreja de Brou, vacilante desde o começo, pede inicialmente reparações; São Pedro mesma, obra sublime do maior discípulo de Brunelleschi, recordará as formas do mestre, mas não seu gênio robusto. Esse domo admirável será fraudado, sustentado pelo lado de fora: ele não se sustenta por si meSmo.

A pintura tem suas recaídas. Ao grande Van Eyck, ao enégico criador e gerador, ao homem sucede uma mulher, Memling, que pinta ao luar, e que tão bem se exprimiu no asilo de Bruges, onde o vemos com barrete de doente.

Assim Flandres decaiu. A Itália decairia? Se devêssemos supor que o ímpeto da Renascença estava decididamente dado, datá-lo-íamos de quando, em meados do século, apareceu o grande italiano, o homem completo, equilibrado, todo-poderoso em todas as coisas, que resumia todo o passado, antecipava o futuro, que, para além da universalidade florentina, teve a do Norte, que unia as artes químicas e mecânicas às do desenho. Entende-se que estou falando de Leonardo da Vinci.

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" A n a t o m i s t a , q u í m i c o , mús ico , g e ó l o g o , matemático, improvisador, poeta, engenheiro, físico, havendo inventado a máquina a vapor, o morteiro, o termômetro, o barómetro, precedeu Cuvier na ciência dos fósseis, Geoffroy Saint-Hilaire na teoria da unidade, ele se lembra de que é pintor e quer aplicar à arte humana o desenho do criador da unidade das organizações." (Quinet, Rév. d'Iialie)

A Idade Média mantivera-se numa trêmula timidez diante da natureza. Ela só soubera amaldiçoar, exorcizar a grande fada. Esse da Vinci, filho do amor e, ele próprio, o mais belo dos homens, sente que também é a natureza; não tem medo disso. Toda natureza é como sua, amada por ele. Seu ponto de partida assustou. Tendo uma gente do campo lhe.trazido uma espécie de escudo de madeira para nele inserir ornamentos, da Vinci devolve-o ornado de um mundo de animais repugnantes, terríveis, combinado a um monstro sublime que atraía e causava medo. Mesma audácia em suas Ledas, onde a união das duas naturezas é marcada intrepidamente, tal como a ciência moderna a descobriu em nossos dias, e toda a criação se redescobre parente do homem.

Entrem no Museu do Louvre, na grande galeria; à esquerda encontra-se ò mundo antigo, o novo à direita. De um lado, as declinantes imagens do frade Angélico de Fiesole, que permaneceram aos pés da Virgem da Idade Média; seus olhares enfermos e moribundos parecem, entretanto, procurar, desejar. Diante desse velho misticismo, brilha nas pinturas de da Vinci o gênio da Renascença, em sua mais rude inquietude, em seu m a i s a g u d o e s t í m u l o . E n t r e essas c o i s a s contemporâneas, há mais de mil anos.

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Baco, São João e a Gioconda dirigem seus olhares para nós; ficamos fascinados e perturbados; um infinito age sobre nós por um estranho magnetismo. Arte, natureza, futuro, gênio de mistério e de descoberta, mestre das profundezas do mundo, do abismo desconhecido das eras, falai o que quereis de mim? Essa tela atrai-me, chama-me, invade-me, absorve-me; dirijo-me a ela contra a minha vontade, como o pássaro que vai à serpente.

Baco ou São João, não importa, é a mesma personagem em dois momentos diferentes. "Observai o jovem Baco no meio dessa paisagem dos primeiros dias. Que silêncio! Que curiosidade! Ele espreita na solidão o primeiro germe das coisas, o sussurro da natureza nascente; escuta sob o antro dos ciclopes os murmúrios inebriantes dos deuses.

"Mesma curiosidade do bem e do mal em seu São João precursor: um olhar fascinante que traz, ele mesmo, a luz e zomba da obscuridade dos tempos e das coisas; a infinita avidez do espírito novo que busca a ciência e exclama: Encontrei-a!" (Quinet) É o momento da revelação do verdadeiro numa inteligência desenvolvida, a exaltação da descoberta, com uma leve ironia para com a velha época, filha caduca. Ironia tão legítima que tornareis a vê-la vitoriosa, decididamente rainha do mundo, nos diálogos voltairianos de Galileu.

Só há uma coisa a dizer: estes são deuses, mas enfermos. Não estamos na vitória. Galileu ainda está longe. O Baco e o São João, esses rudes profetas do novo espírito, sofrem com isso, são consumidos por isso. Podemos vê-lo em seus olhares. Um deserto os separa desse dia, com cem miragens incertas. Urna estranha ilha de Alcino se encontra nos olhos da G ioconda, gracioso e

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sorridente fantasma. Dir-se-ia que ela está atenta às delicadas narrativas de Boccaccio. Cuidado. O próprio da Vinci, o grande mestre da ilusão, caiu em sua armadilha; por longos anos permaneceu lá, sem jamais poder sair desse labirinto móvel, fluido e mutável, que ele pintou no fundo do perigoso quadro.

Ninguém foi mais admirado do que Leonardo da Vinci. Ninguém foi menos seguido. Esse surpreendente mágico, irmão italiano de Fausto, surpreendeu e apavorou. Não foi encorajado nem por Florença nem por Roma. Milão imitou suas pinturas, fracamente, de longe. Foi tudo. Ele permaneceu só, como profeta das ciências, como o ousado criador que, diante da natureza, engendra e dispõe como ela, restitui-lhe vida por vida, mundo por mundo, a desafia. Tomai os agradáveis arabescos do Vaticano, fracas representações da natureza animal, colocai-os ao lado do combate em que da Vinci faz afrontarem-se seus fogosos corcéis que se mordem, esses guerreiros bárbaros vestidos de armaduras monstruosas, de escamas de serpentes, de escorpiões, e vereis onde está a ciência. Rafael continuava a copiar o cavalo de Marco Aurélio, quando, fazia tantos anos, da Vinci já pintara o cavalo com a sábia energia de Rubens e a especialidade de Géricault.

Voltemos ao século XV. Esses ímpetos seguidos de quedas, esses esforços de Bmnelleschi, de Van Eyck, após os quais há uma recaída, revelam claramente uma coisa: sua grande solidão. Os mil artistas de Florença, os trezentos pintores de Bruges não impedem que os grandes inovadores em pintura, em arquitetura morram sem filhos legítimos e esperem muito tempo sua posteridade. Os próprios Gutenberg e Colombo (como veremos), após uma penosa odisséia de esforços, de

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pesquisas, de tentativas abortadas, não encontram de modo algum, uma vez o objetivo alcançado, os resultados imediatos que suas surpreendentes descobertas deviam fazer esperar. Permanece, evidentemente, um abismo entre esses cinco ou seis homens, os heróis da vontade, e a multidão miseravelmente entravada t atrasada, que não se pode elevar da Idade Média gótica e da mediocridade do século XV.

A imprensa, imenso benefício que vai centuplicar para o homem os meios da liberdade, serve inicialmente, cumpre dizê-lo, para propagar as obras que, fazia trezentos anos, mais eficazmente entravavam a Renascença. Ela multiplica ao infinito as escolásticas e as místicas. Se imprime Tácito, inunda as bibliotecas de Duns Scot e Santo Tomás; publica, eterniza os cem glosadores do Lombardo, que estavam entregues à poeira. Submersas pelos livros bárbaros da Idade Média, que ao mesmo tempo é exumada, as escolas sofrem uma deplorável recrudescência de absurdos teológicos.

Pouco ou nada em língua vulgar. Os livros antigos são publicados com uma extrema lentidão. Quarenta ou cinqüenta anos após a invenção é que ousam imprimir Homero, Tácito, Aristóteles. Platão fica para o século seguinte. Se se publica a Antiguidade, publica-se e republica-se de um modo bem diferente a Idade Média, principalmente seus livros de aula, as sumas, os compêndios, todo o ensino de tolice, manuais de confessores e de casos de consciência; dez Nyder contra uma Ilíada-, para um Virgílio, vinte Fichet.

A imprensa , é verdade , tinha pres tado à humanidade o imenso serviço de colocar em suas mãos o livro ao qual desde há muito ela obedecia, sem conhecê-lo. As inumeráveis Bíblias latinas sucederam as

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traduções, dezessete só em alemão! A dificuldade estava, portanto, na enormidade desse livro, na variedade das obras que reúne. A humanidade estava encantada por ter seu Deus escrito, surpresa e apavorada de lhe encontrar cem rostos. O primeiro atributo de Deus, a unidade, a imutabilidade, parecia em contradição com essa diversidade infinita, mutável. Ter-se-ia desejado um símbolo, teve-se uma enciclopédia. Ter-se-ia desejado um modelo simples, aplicável, que se pudesse imitar. O espírito do tempo era inquieto, mas não revolucionário. Os audaciosos da Idade Média que rogaram a Cristo que abdicasse estavam extremamente longe. O século XV, ao inventar, só teria desejado imitar. Mas os modelos bíblicos pouco relacionados com os do Evangelho complicaram a questão. Davi tentava mais do que Jesus.

Desse cafarnaum imenso da Bíblia, de tantas doutrinas contrárias (por exemplo, pró e contra o pecado original), sairia um princípio vencedor que faria esquecer os outros, os dominaria por algum tempo? Havia bem pouco indício. Johann Wessel, grande e sábio predicador que lia a Bíblia em hebreu, pregou em todos os lugares ao longo do Reno a doutrina que Lutero disseminaria mais tarde com esse sucesso maravilhoso. Ainda não chegara o momento, Deu-se-lhe pouca atenção. Diante de um objeto demasiadamente múltiplo, o primeiro efeito era de vertigem. O espírito humano, aturdido, perplexo, em vez de escolher, permanecia imóvel e não escolhia nada.