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8/16/2019 Maria Pacheco http://slidepdf.com/reader/full/maria-pacheco 1/38  A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA CONTEMPORARY SELF-PORTRAIT PAINTING IN PORTUGAL: A BRIEF OVERVIEW Maria Emília Vaz Pacheco * [email protected] Associado a histórias de fascínio, envolvendo conceitos como mitologia, lenda, simbologia, narcisismo, armação, reivindicações múltiplas, semelhança, realismo, naturalismo, introspeção… o autorretrato é repositório de uma imensa complexi- dade, suscetível de formulações inesgotáveis, na ótica da semântica e da polissemia. Na época medieval, a imagem que de si deixou o pintor remete para o esbatimento da identidade individual, dada a sua inserção em contextos de representações sagradas, ou a sua apresentação como personagem histórica ou mitológica. A autonomia intelectual foi reconhecida durante o Renascimento, sensível à repre- sentação do indivíduo e à valorização do retrato, com base na delidade ao motivo e na singularidade do indivíduo. O autorretrato conquistou a sua independência. Com o Romantismo arma-se o autorretrato introspetivo, a caminho da negação da autoimagem fundamentada na semelhança/parecença, que vai acompanhar as tendências do não gurativismo, as quais aparecem e se desenvolvem no século XX. O autorretrato continua a mediar a busca identitária. Palavras-chave: autorretrato; auto-observação; complexidade; autoconsciência; metáfora; signo. Self-portrait is associated with fascinating stories and involves concepts such as mythology, legend, symbology, narcissism, affirmation, multiple claims, resem- blance, realism, naturalism and self-examination. Self-portrait is a repository of great complexity and is in the origin of copious denition. * ISLA, Santarém, Portugal.

Maria Pacheco

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A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEOEM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICACONTEMPORARY SELF-PORTRAIT PAINTING IN PORTUGAL

A BRIEF OVERVIEW

Maria Emiacutelia Vaz Pacheco

mevazpachecohotmailcom

Associado a histoacuterias de fasciacutenio envolvendo conceitos como mitologia lendasimbologia narcisismo a1047297rmaccedilatildeo reivindicaccedilotildees muacuteltiplas semelhanccedila realismo

naturalismo introspeccedilatildeohellip o autorretrato eacute repositoacuterio de uma imensa complexi-dade suscetiacutevel de formulaccedilotildees inesgotaacuteveis na oacutetica da semacircntica e da polissemiaNa eacutepoca medieval a imagem que de si deixou o pintor remete para o esbatimentoda identidade individual dada a sua inserccedilatildeo em contextos de representaccedilotildeessagradas ou a sua apresentaccedilatildeo como personagem histoacuterica ou mitoloacutegicaA autonomia intelectual foi reconhecida durante o Renascimento sensiacutevel agrave repre-sentaccedilatildeo do indiviacuteduo e agrave valorizaccedilatildeo do retrato com base na 1047297delidade ao motivoe na singularidade do indiviacuteduo O autorretrato conquistou a sua independecircnciaCom o Romantismo a1047297rma-se o autorretrato introspetivo a caminho da negaccedilatildeoda autoimagem fundamentada na semelhanccedilaparecenccedila que vai acompanhar as

tendecircncias do natildeo 1047297gurativismo as quais aparecem e se desenvolvem no seacuteculoXXO autorretrato continua a mediar a busca identitaacuteria

Palavras-chave autorretrato auto-observaccedilatildeo complexidade autoconsciecircnciametaacutefora signo

Self-portrait is associated with fascinating stories and involves concepts such asmythology legend symbology narcissism affi rmation multiple claims resem-blance realism naturalism and self-examination Self-portrait is a repository of

great complexity and is in the origin of copious de1047297nition

ISLA Santareacutem Portugal

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Contrary to previous sacred representations historical images and mythological

characters in Middle Ages the painterrsquos individual identity was less represented inself-portraits Individual valuation and appreciation of portraits raised the intel-lectual autonomy characteristic of Renaissance Self-portrait gained independencethen During Romanticism painters prefered to abandon 1047297gurative process in pic-torial representation Introspective self-portrait aroused and continued to growuntil the twentieth century Currently the self-portrait is still looking for identity

Keywods self-portrait self-examinationcomplexity metaphorsign

I Nas origens do autorretrato lenda mito e histoacuteria

Donner aux mots la vie mysteacuterieuse de lrsquoart Guy de Maupassant (1850-1893)[1]

Uma das formas primordiais do conhecimento intuitivo remonta agraves narra-tivas mitoloacutegicas correspondentes aos alvores das histoacuterias de organizaccedilatildeodos povos primitivos A conceccedilatildeo do mundo trespassa nas descriccedilotildees dosfenoacutemenos da natureza personi1047297cados e animados 1047297xadas em conformi-dade com a imaginaccedilatildeo desses povos da Antiguidade

A transmissatildeo oral de lendas[2] e mitos[3] suscitou a sua modi1047297caccedilatildeo eenriquecimento no decorrer dos seacuteculos incorporando um patrimoacuteniointelectual e civilizacional especiacute1047297co

Deuses heroacuteis e seus descendentes enquanto corpus da heranccedila mito-loacutegica grega que integrou a cultura ocidental satildeo inteacuterpretes desse sentidoaniacutemico e antropomoacuter1047297co que caracteriza o mythos dessa civilizaccedilatildeo Poroposiccedilatildeo caracterizou Platatildeo a logos a argumentaccedilatildeo que com base na razatildeoleva agrave re1047298exatildeo 1047297losoacute1047297ca

1 Maupassant La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire de Octobre 2011 nordm 512 p86

2 Narraccedilatildeo ou tradiccedilatildeo popular cuja temaacutetica mobiliza seres imaginaacuterios ou acontecimentossendo estes dados como histoacutericos ndash quer factos reais mas deformados embelezados e porvezes misturados com o maravilhoso Conforme Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaiseHachette Paris 1989 p 884

3 Narrativa lendaacuteria transmitida pela tradiccedilatildeo que com recurso agrave exploraccedilatildeo de seres lendaacuterios ndash heroacuteis divindades etc ndash fornece uma tentativa de explicaccedilatildeo dos fenoacutemenos naturais e huma-nos Conforme Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris 1989 p 1036

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A faacutebula de Dibutades[4] agrave qual tradicional-

mente eacute atribuiacuteda a origem miacutetica do retratonatildeo deixa de se aproximar do mito de Platatildeosobre a alegoria da caverna sendo este uacuteltimogenericamente aceite como a narrativa pio-neira que sustenta a teoria do conhecimentono ocidente[5]

A projeccedilatildeo enquanto motivo presentenas duas situaccedilotildees mitoloacutegicas correlacionaa representaccedilatildeo artiacutestica e a representaccedilatildeo

cognitiva embora se trate de duas narrativasdiferentes veri1047297ca-se um certo paralelismo deestrateacutegias equacionando a questatildeo da visibili-dade e da representaccedilatildeo destacando-se que nomito de Platatildeo visualidade e cogniccedilatildeo apresen-tam implicaccedilatildeo reciacuteproca

Stoichita interpreta o mito de Platatildeo comoa construccedilatildeo de um cenaacuterio que toca os limitesentre os mundos da aparecircncia e da realidade

vendo nas sombras platoacutenicas o antecedenteda imagem do espelho e no eco o resultado dos sons do fundo da prisatildeo ndashldquoPlatatildeo introduz um elemento auditivo que devolveu os sons (hellip) que vemreforccedilar a ilusatildeo primitiva que eacute de ordem visual (hellip)

A sombra e o eco aparecem em Platatildeo como as primeiras falsas aparecircn-cias (uma oacutetica outra auditiva) do real Assim a sombra precede mesmonos mundos dos logros oacuteticos o re1047298exo do espelho

rata-se nesse estaacutedio do pensamento platoacutenico de uma intenccedilatildeoclara de colocar a sombra nas origens da duplicaccedilatildeo epifenomenal antes

4 Conforme passagem da Histoacuteria Natural de Pliacutenio-o-Velho XXXV 43 reproduzida por VictorI Stoichita in Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve 2000 p 11 e 17 e cita-se ldquoA primeiraobra neste geacutenero foi feita em argila por Dibutades de Sicyone oleiro em Coriacutentia por ocasiatildeode uma ideia de sua lha apaixonada por um jovem homem que ia deixar a cidade esta reteveatraveacutes de linhas os contornos do per l do seu amante na parede agrave luz de uma vela O seu paiaplicou em seguida argila sobre o desenho ao qual deu relevo e fez endurecer ao fogo essaargila com peccedilas de olaria Esse primeiro tipo de plaacutestica foi diz-se conservado em Coriacutentiano templo das Ninfashelliprdquo (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente texto)

Vide tambeacutem Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Atas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-

moacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLUL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)5 Platatildeo Repuacuteblica 514-519 Vide designadamente Victor I Stoichita ob cit p 7 (traduccedilatildeo

da responsabilidade da autora)

Fig 1 ndash Joseph -Benoicirct Suveacutee ndashDibutade ou lOrigine du Dessin

1799

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da imagem do espelho (hellip) para Platatildeo sombras e re1047298exos especulares satildeo

aparecircncias estritamente ligadas soacute sendo diferenciadas pelo seu laquograu declaridade ou de obscuridaderaquo[6]

Outra ideia relacionada com o mito de Platatildeo implicada na abordagemdo autorretrato eacute a mimesis em paralelo com o estrato social do pintor olugar da arte na cidade ideal e a associaccedilatildeo da imagem pintada agrave imagemespecular

(hellip) se tu quiseres agarrar um espelho e expocirc-lo de todos os lados em menosde nada executaraacutes o sol e os astros do ceacuteu em menos de nada a terra em

menos de nada tu proacuteprio e os outros animais e os moacuteveis e as plantas e todosos objetos de que se falava ainda agora[7]

Explicitamente Platatildeo estabelece comparaccedilatildeo entre imagem pintada e ima-gem especular suscitando re1047298exatildeo sobre a fragilidade do mimetismo ndash ldquoAimagem pintada eacute a exemplo do re1047298exo especular pura aparecircncia ( phai-nomenon) desprovida de realidade (aletheia) (hellip) Deste modo assiste-separece-nos agrave inscriccedilatildeo e mesmo ao triunfo do espelho no seio do sistemadas representaccedilotildees epifenomenaisrdquo ndash e a implicaccedilatildeo reciacuteproca entre o re1047298exo

especular e o estatuto da pintura no plano da mimeacutetica ndash ldquoSe na tradiccedilatildeo dePliacutenio a imagem laquocaptaraquo o modelo reduplicando-o (tal a funccedilatildeo maacutegica dasombra) em Platatildeo ela restitui a sua semelhanccedila (tal eacute a funccedilatildeo mimeacuteticado espelho) ao representaacute-loldquo[8]

Dos estudos efetuados por Lacan e porPiaget a chamada fase ou laquoestaacutedio doespelhoraquo (Lacan) correspondente aoperiacuteodo que vai entre os seis meses ndashquando a crianccedila reconhece a proacutepria

imagem no espelho ndash e ateacute cerca dosdezoito meses quando distingue aprojeccedilatildeo da sombra sendo consensualnos nossos dias a possibilidade deinterpretaccedilatildeo do mito de Narciso[9] e da

6 Stoichita ob cit pp 22 a 24 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

7 X Livro Repuacuteblica passagem citada a partir de reproduccedilatildeo de Victor I Stoichita in ob cit pp 24 e 27 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

8 Victor I Stoichita ob cit pp 24 e 27 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

9 A versatildeo mais conhecida eacute a de Oviacutedio nas Metamorfoses que refere que ldquoNARCISO eraum jovem muito belo que desprezava o amor A sua lenda eacute transmitida de modos diferentesconsoante os autores A versatildeo mais conhecida eacute a de Oviacutedio nas Metamorfoses Nela Nar-

Fig2 ndash Cigoli-Narcisse Museu do Louvre

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sua paixatildeo pelo seu proacuteprio re1047298exo na aacutegua no enquadramento da teoria de

Lacan para quem o laquoestaacutedio do espelhoraquo ldquo(hellip) pertence principalmente agraveidenti1047297caccedilatildeo do eu enquanto que a sombra ela diz respeito sobretudo agraveidenti1047297caccedilatildeo do outro Sabendo isso compreende-se por que razatildeo Narcisose apaixonou pela sua imagem especular e natildeo pela da sua sombra E igual-mente se compreende porque em Pliacutenio a projeccedilatildeo amorosa da jovemrapariga tem por objetivo a sombra do outro (do seu amante) Encontramo--nos sem duacutevida perante dois cenaacuterios diferentes pelas suas essecircncia ori-gem e histoacuteria De facto trata-se de duas modalidades opostas (mas que eacutepossiacutevel por vezes colocar em relaccedilatildeo) da conexatildeo agrave imagem e agrave representa-

ccedilatildeo (hellip)Os artistas que nos seacuteculos seguintes ilustraram o mito de Narciso

sublinharam preferencialmente o caraacuteter efeacutemero do re1047298exo especular (hellip)mas evitaram a representaccedilatildeo da laquosombraraquo que em Oviacutedio natildeo era senatildeouma metaacutefora (hellip)

A primeira parte da histoacuteria de Narciso era estaacutetica a segunda eacute dinacirc-mica (hellip) A vista engana e a prova de realidade que deveria ter chegadopelo tocar natildeo se produz Nesse esforccedilo de transgressatildeo descrito por Oviacute-dio ( Metamorfoses) verdadeiro bailado a dois Narciso ainda acredita que

a imagem eacute um outro A pretensatildeo vatilde destinada a transformar a vista emabraccedilo chega ao drama ao momento culminante em que o heroacutei realiza1047297nalmente o laquoestaacutedio do espelhoraquo A imagem (imago) jaacute natildeo o engana ela

jaacute natildeo eacute uma laquosombraraquo ela jaacute natildeo eacute o outro mas ele mesmo laquoIsto sou euraquoIste ego sumrdquo[10]

O mito de Narciso assenta na autocentralizaccedilatildeo da imagem re1047298etidasuscetiacutevel de interpretaccedilotildees turbulentas introduzindo a mobilizaccedilatildeo deconceitos como falaacutecia ilusatildeo simulacro engano conceitos por sua vezpresentes no registo do autorretrato Da transversalidade de leituras dos

ciso eacute o lho do deus do Ceso e da ninfa Liriacuteope Quando nasceu os seus pais consultaramo adivinho Tireacutesias que lhes disse que a crianccedila laquoviveria ateacute ser velho se natildeo olhasse para simesmoraquo Chegado agrave idade adulta Narciso foi objeto da paixatildeo de grande nuacutemero de raparigase de ninfas Mas ele cava insensiacutevel Finalmente a ninfa Eco apaixonou-se por ele mas natildeoconseguiu mais do que as outras Desesperada Eco retirou-se na sua solidatildeo emagreceu e desi mesma em breve natildeo restou mais que uma voz gemente As jovens desprezadas por Narciso

pediram vinganccedila aos ceacuteus Neacutemesis ouviu-as e fez com que num dia de grande calor depois deuma caccedilada Narciso se debruccedilasse sobre uma fonte para se dessedentar Nela viu o seu rostotatildeo belo e imediatamente cou apaixonado A partir de entatildeo torna-se insensiacutevel a tudo o que orodeia debruccedila-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer No Estige procura ainda distinguir os

traccedilos amados No lugar onde morreu brotou uma or agrave qual foi dado o seu nome o narcisordquo ndash Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa 1992 p 322

10 Victor I Stoichita ob cit pp 30 a 34 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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dois mitos de Dibutades e de Narciso

decorre a inscriccedilatildeo da origem do traccedilo(desenho) da pintura (sombramancha)e da proacutepria imagem (imago) na Histoacuteriada Arte

No fresco sobre ldquoA Origem da Pin-turardquo (1569-1573) que Vasari (1511--1574) incorporou na sua ldquoCasa Vasarirdquoem Florenccedila pode-se observar o recursoa sombra plena e de1047297nida

Momentos distintos ndash Dibutades eNarciso ndash visotildees a1047297nal muito proacuteximasretomados nos seacuteculos seguintes comometaacutefora da pintura sempre nas adja-cecircncias do proacuteprio autorretrato

ldquoA batalha de Issosrdquo pintura muraldo 1047297nal do seacuteculo IV aC[11] comemo-rando a vitoacuteria de Alexandre o Grandesobre Dario (rei da Peacutersia) para aleacutem da

rigorosa caracterizaccedilatildeo fiacutesica e psicoloacute-gica de cada uma das personagens ndash incluindo os dois protagonistas ndash ilus-tra a re1047298exatildeo de um rosto no escudo de um dos combatentes cuja imagem

reuacutene fortes probabilidades deser um autorretrato de Apellesretratista o1047297cial preferido deAlexandre[12]

Sendo ldquoA batalha de Issosrdquouma obra-prima que celebra

os feitos e a grandeza da cul-tura heleniacutestica natildeo seraacute difiacutecilaceitar a tese do autorretratodo principal pintor o1047297cial ndashde cujo registo datildeo notiacutecia as

11 Chegou ateacute noacutes uma coacutepia em mosaico dessa pintura mural do nal do seacutec IV aC prove-niente da Casa do Fauno em Pompeia hoje no Museu Nacional de Naacutepoles com a L de 582me Alt de 313m

12 Vide Geoffroy Caillet A la cour des arts orissants in ldquo Le Figaro hors-seacuterierdquo 3657 Octobre2011 pp 79 a 85 Conforme refere Caillet a identicaccedilatildeo do autorretrato de Apelles coloca emquestatildeo a atribuiccedilatildeo tradicional do mosaico grego a Philoxeacutenos de Eritreia

Fig3 ndash Vasari-Narciso1569-1573

Fig4 ndash Batalha de Issos-auto-retrato de Apelles-Finalseacutec IV aC

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99 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

fontes claacutessicas ndash ter funcionado como aditivo que em jeito de assinatura

sublinharia a importacircncia da obra Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos artiacutesticos da autorrepresentaccedilatildeo autoglori1047297caccedilatildeoVirtuosismo

II Autorretrato e autonomia intelectual do pintor

laquoOGNI DIPINORE DIPINGE SEraquo[13]

Segundo alguns historiadores de arte teraacute sido Martin van Heemskerck(1498-1574) quem teraacute ouvido a expressatildeo que se converteria em adaacutegioldquotodo o pintor se pinta a si mesmordquo [14]

Cabeccedila e matildeo intelectualidade e teacutecnica satildeo as duas faces da mesmaldquomoedardquo metaacutefora do autorretrato e por extensatildeo da criaccedilatildeo visual

No diaacutelogo central que se estabelece entre os dois agentes que satildeo opintor e o modelo haacute uma particularidade no caso do autorretrato modeloe executante satildeo um soacute indiviacuteduo haacute uma unidade na dualidade do diaacutelogondash expressatildeonatildeo expressatildeo conscienteinconsciente ndash que ocorre (supos-

tamente de modo honesto) entre si e si proacuteprio permeabilizado pelo sen-tido de si recircs pontos referenciais pois o ldquoeurdquosujeito o ldquomerdquore1047298exivo e otrabalho criativo ou por outras palavras um dos fatores determinantes naautorrepresentaccedilatildeo visual seraacute o modo como o autor concebe e constroacutei asrelaccedilotildees estabelecidas entre as trecircs referecircncias

Se o desenho implica um diaacutelogo entre o artista e a obra enquanto quea pintura eacute o resultado de uma re1047298exatildeo mais aprofundada ateacute que ponto sepode interpretar a autoimagem como ressonacircncia da subjetividade do artistacriador Quais os limites para a dinacircmica da estrateacutegia interpretativa ldquolaquoA

Pintura eacute uma ocupaccedilatildeo mentalraquo ( pittura eacute cosa mentale) escreveu Leonardoda Vinci e Miguel Acircngelo permaneceu igualmente 1047297rme laquonoacutes pintamoscom o nosso ceacuterebro natildeo com as nossas matildeosraquo (si dispinge col ciervello et noncom le mani) (hellip) Vasari sustentou que soacute uma laquomatildeo treinadaraquo podia mediara ideia nascida no intelecto ou como Miguel Acircngelo colocou num famososoneto laquoa matildeo que obedece ao intelectoraquo (la man che ubbidisce allrsquointelletto)ndash por outras palavras a laquomatildeo instruiacutedaraquo (docta manus) que Nicola Pisano

13 Armaccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda a Cosme de Meacutedicis (seacutec XV) eacute citada por FranciscoCalvo Serraller Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Espantildeol Contemporaneo in

El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDAMadrid 1994 p 13

14 Cfr Victor I Stoichita ob cit p 91 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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100 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

tinha reivindicado possuir trecircs seacuteculos antes (hellip) laquoHabbiamo da parlare con

le maniraquo Annibale Carracci eacute suposto ter dito cerca de 1590 (hellip)rdquo[15]A autorretratiacutestica autoacutenoma desenvolve-se no seacuteculo XVI parale-

lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para ascortes principescas altamente competitivas na promoccedilatildeo de uma culturacortesatilde personalizada e digna Nessa medida as autoimagens dos pintoresndash e outros artistas ndash podem ser interpretadas como celebraccedilotildees proacutepriasdas suas vidas pessoais estrateacutegia para ampliar o reconhecimento social daposiccedilatildeo conseguida por meacuterito artiacutestico

Da Antiguidade Claacutessica prolongando-se

durante a medievalidade chegaram ateacute noacutesobras em que a imagem do autor pode serinterpretada como um substituto da assina-tura daquele prevalecendo a associaccedilatildeo daimagem agrave sua autoria sobre a exigecircncia derigor no traccedilado das reais linhas do rostodeste modo se descurando a questatildeo teoacutericada semelhanccedila

Ru1047297llos (c 1150-1200) monge do mos-

teiro de Weissenau e iluminador ceacutelebreautorrepresentou-se pintando-se no inte-rior do R do ldquoSalteacuterio de Genebrardquo (Fig 5)sentado a pintar e ilustrando a cena com osinstrumentos do ofiacutecio e recipientes de coresnecessaacuterias agrave praacutetica pictural odavia apesardo retrato em si mesmo exibir traccedilos realis-tas e algum esmero na execuccedilatildeo natildeo se trataainda de uma identidade individual espe-

ciacute1047297ca de um indiviacuteduo ndash que eacute diferente docaraacuteter geneacuterico sendo este afeto ao geacutenero enatildeo ao indiviacuteduo ndash e como tal natildeo integra aclassi1047297caccedilatildeo de um verdadeiro autorretratoA identidade indica uma referecircncia comum etransversal na representaccedilatildeo ou seja a rela-ccedilatildeo de pertenccedila do indiviacuteduo a um determi-nado corpo social ou congregaccedilatildeo

15 Joanna Woods-Marsden Renaissance Self-Portraiture Yale University Press New Haven ampLondon 1998 p 4

Fig 5 ndash Rufillus de Weissnau Enlu-minure Vitae Sanctorum c 1150-1200

Fig6 ndash Peter Parler Autorretrato C1370-1379 Praga Catedral S Vito

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

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Contrary to previous sacred representations historical images and mythological

characters in Middle Ages the painterrsquos individual identity was less represented inself-portraits Individual valuation and appreciation of portraits raised the intel-lectual autonomy characteristic of Renaissance Self-portrait gained independencethen During Romanticism painters prefered to abandon 1047297gurative process in pic-torial representation Introspective self-portrait aroused and continued to growuntil the twentieth century Currently the self-portrait is still looking for identity

Keywods self-portrait self-examinationcomplexity metaphorsign

I Nas origens do autorretrato lenda mito e histoacuteria

Donner aux mots la vie mysteacuterieuse de lrsquoart Guy de Maupassant (1850-1893)[1]

Uma das formas primordiais do conhecimento intuitivo remonta agraves narra-tivas mitoloacutegicas correspondentes aos alvores das histoacuterias de organizaccedilatildeodos povos primitivos A conceccedilatildeo do mundo trespassa nas descriccedilotildees dosfenoacutemenos da natureza personi1047297cados e animados 1047297xadas em conformi-dade com a imaginaccedilatildeo desses povos da Antiguidade

A transmissatildeo oral de lendas[2] e mitos[3] suscitou a sua modi1047297caccedilatildeo eenriquecimento no decorrer dos seacuteculos incorporando um patrimoacuteniointelectual e civilizacional especiacute1047297co

Deuses heroacuteis e seus descendentes enquanto corpus da heranccedila mito-loacutegica grega que integrou a cultura ocidental satildeo inteacuterpretes desse sentidoaniacutemico e antropomoacuter1047297co que caracteriza o mythos dessa civilizaccedilatildeo Poroposiccedilatildeo caracterizou Platatildeo a logos a argumentaccedilatildeo que com base na razatildeoleva agrave re1047298exatildeo 1047297losoacute1047297ca

1 Maupassant La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire de Octobre 2011 nordm 512 p86

2 Narraccedilatildeo ou tradiccedilatildeo popular cuja temaacutetica mobiliza seres imaginaacuterios ou acontecimentossendo estes dados como histoacutericos ndash quer factos reais mas deformados embelezados e porvezes misturados com o maravilhoso Conforme Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaiseHachette Paris 1989 p 884

3 Narrativa lendaacuteria transmitida pela tradiccedilatildeo que com recurso agrave exploraccedilatildeo de seres lendaacuterios ndash heroacuteis divindades etc ndash fornece uma tentativa de explicaccedilatildeo dos fenoacutemenos naturais e huma-nos Conforme Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris 1989 p 1036

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A faacutebula de Dibutades[4] agrave qual tradicional-

mente eacute atribuiacuteda a origem miacutetica do retratonatildeo deixa de se aproximar do mito de Platatildeosobre a alegoria da caverna sendo este uacuteltimogenericamente aceite como a narrativa pio-neira que sustenta a teoria do conhecimentono ocidente[5]

A projeccedilatildeo enquanto motivo presentenas duas situaccedilotildees mitoloacutegicas correlacionaa representaccedilatildeo artiacutestica e a representaccedilatildeo

cognitiva embora se trate de duas narrativasdiferentes veri1047297ca-se um certo paralelismo deestrateacutegias equacionando a questatildeo da visibili-dade e da representaccedilatildeo destacando-se que nomito de Platatildeo visualidade e cogniccedilatildeo apresen-tam implicaccedilatildeo reciacuteproca

Stoichita interpreta o mito de Platatildeo comoa construccedilatildeo de um cenaacuterio que toca os limitesentre os mundos da aparecircncia e da realidade

vendo nas sombras platoacutenicas o antecedenteda imagem do espelho e no eco o resultado dos sons do fundo da prisatildeo ndashldquoPlatatildeo introduz um elemento auditivo que devolveu os sons (hellip) que vemreforccedilar a ilusatildeo primitiva que eacute de ordem visual (hellip)

A sombra e o eco aparecem em Platatildeo como as primeiras falsas aparecircn-cias (uma oacutetica outra auditiva) do real Assim a sombra precede mesmonos mundos dos logros oacuteticos o re1047298exo do espelho

rata-se nesse estaacutedio do pensamento platoacutenico de uma intenccedilatildeoclara de colocar a sombra nas origens da duplicaccedilatildeo epifenomenal antes

4 Conforme passagem da Histoacuteria Natural de Pliacutenio-o-Velho XXXV 43 reproduzida por VictorI Stoichita in Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve 2000 p 11 e 17 e cita-se ldquoA primeiraobra neste geacutenero foi feita em argila por Dibutades de Sicyone oleiro em Coriacutentia por ocasiatildeode uma ideia de sua lha apaixonada por um jovem homem que ia deixar a cidade esta reteveatraveacutes de linhas os contornos do per l do seu amante na parede agrave luz de uma vela O seu paiaplicou em seguida argila sobre o desenho ao qual deu relevo e fez endurecer ao fogo essaargila com peccedilas de olaria Esse primeiro tipo de plaacutestica foi diz-se conservado em Coriacutentiano templo das Ninfashelliprdquo (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente texto)

Vide tambeacutem Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Atas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-

moacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLUL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)5 Platatildeo Repuacuteblica 514-519 Vide designadamente Victor I Stoichita ob cit p 7 (traduccedilatildeo

da responsabilidade da autora)

Fig 1 ndash Joseph -Benoicirct Suveacutee ndashDibutade ou lOrigine du Dessin

1799

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da imagem do espelho (hellip) para Platatildeo sombras e re1047298exos especulares satildeo

aparecircncias estritamente ligadas soacute sendo diferenciadas pelo seu laquograu declaridade ou de obscuridaderaquo[6]

Outra ideia relacionada com o mito de Platatildeo implicada na abordagemdo autorretrato eacute a mimesis em paralelo com o estrato social do pintor olugar da arte na cidade ideal e a associaccedilatildeo da imagem pintada agrave imagemespecular

(hellip) se tu quiseres agarrar um espelho e expocirc-lo de todos os lados em menosde nada executaraacutes o sol e os astros do ceacuteu em menos de nada a terra em

menos de nada tu proacuteprio e os outros animais e os moacuteveis e as plantas e todosos objetos de que se falava ainda agora[7]

Explicitamente Platatildeo estabelece comparaccedilatildeo entre imagem pintada e ima-gem especular suscitando re1047298exatildeo sobre a fragilidade do mimetismo ndash ldquoAimagem pintada eacute a exemplo do re1047298exo especular pura aparecircncia ( phai-nomenon) desprovida de realidade (aletheia) (hellip) Deste modo assiste-separece-nos agrave inscriccedilatildeo e mesmo ao triunfo do espelho no seio do sistemadas representaccedilotildees epifenomenaisrdquo ndash e a implicaccedilatildeo reciacuteproca entre o re1047298exo

especular e o estatuto da pintura no plano da mimeacutetica ndash ldquoSe na tradiccedilatildeo dePliacutenio a imagem laquocaptaraquo o modelo reduplicando-o (tal a funccedilatildeo maacutegica dasombra) em Platatildeo ela restitui a sua semelhanccedila (tal eacute a funccedilatildeo mimeacuteticado espelho) ao representaacute-loldquo[8]

Dos estudos efetuados por Lacan e porPiaget a chamada fase ou laquoestaacutedio doespelhoraquo (Lacan) correspondente aoperiacuteodo que vai entre os seis meses ndashquando a crianccedila reconhece a proacutepria

imagem no espelho ndash e ateacute cerca dosdezoito meses quando distingue aprojeccedilatildeo da sombra sendo consensualnos nossos dias a possibilidade deinterpretaccedilatildeo do mito de Narciso[9] e da

6 Stoichita ob cit pp 22 a 24 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

7 X Livro Repuacuteblica passagem citada a partir de reproduccedilatildeo de Victor I Stoichita in ob cit pp 24 e 27 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

8 Victor I Stoichita ob cit pp 24 e 27 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

9 A versatildeo mais conhecida eacute a de Oviacutedio nas Metamorfoses que refere que ldquoNARCISO eraum jovem muito belo que desprezava o amor A sua lenda eacute transmitida de modos diferentesconsoante os autores A versatildeo mais conhecida eacute a de Oviacutedio nas Metamorfoses Nela Nar-

Fig2 ndash Cigoli-Narcisse Museu do Louvre

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97 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

sua paixatildeo pelo seu proacuteprio re1047298exo na aacutegua no enquadramento da teoria de

Lacan para quem o laquoestaacutedio do espelhoraquo ldquo(hellip) pertence principalmente agraveidenti1047297caccedilatildeo do eu enquanto que a sombra ela diz respeito sobretudo agraveidenti1047297caccedilatildeo do outro Sabendo isso compreende-se por que razatildeo Narcisose apaixonou pela sua imagem especular e natildeo pela da sua sombra E igual-mente se compreende porque em Pliacutenio a projeccedilatildeo amorosa da jovemrapariga tem por objetivo a sombra do outro (do seu amante) Encontramo--nos sem duacutevida perante dois cenaacuterios diferentes pelas suas essecircncia ori-gem e histoacuteria De facto trata-se de duas modalidades opostas (mas que eacutepossiacutevel por vezes colocar em relaccedilatildeo) da conexatildeo agrave imagem e agrave representa-

ccedilatildeo (hellip)Os artistas que nos seacuteculos seguintes ilustraram o mito de Narciso

sublinharam preferencialmente o caraacuteter efeacutemero do re1047298exo especular (hellip)mas evitaram a representaccedilatildeo da laquosombraraquo que em Oviacutedio natildeo era senatildeouma metaacutefora (hellip)

A primeira parte da histoacuteria de Narciso era estaacutetica a segunda eacute dinacirc-mica (hellip) A vista engana e a prova de realidade que deveria ter chegadopelo tocar natildeo se produz Nesse esforccedilo de transgressatildeo descrito por Oviacute-dio ( Metamorfoses) verdadeiro bailado a dois Narciso ainda acredita que

a imagem eacute um outro A pretensatildeo vatilde destinada a transformar a vista emabraccedilo chega ao drama ao momento culminante em que o heroacutei realiza1047297nalmente o laquoestaacutedio do espelhoraquo A imagem (imago) jaacute natildeo o engana ela

jaacute natildeo eacute uma laquosombraraquo ela jaacute natildeo eacute o outro mas ele mesmo laquoIsto sou euraquoIste ego sumrdquo[10]

O mito de Narciso assenta na autocentralizaccedilatildeo da imagem re1047298etidasuscetiacutevel de interpretaccedilotildees turbulentas introduzindo a mobilizaccedilatildeo deconceitos como falaacutecia ilusatildeo simulacro engano conceitos por sua vezpresentes no registo do autorretrato Da transversalidade de leituras dos

ciso eacute o lho do deus do Ceso e da ninfa Liriacuteope Quando nasceu os seus pais consultaramo adivinho Tireacutesias que lhes disse que a crianccedila laquoviveria ateacute ser velho se natildeo olhasse para simesmoraquo Chegado agrave idade adulta Narciso foi objeto da paixatildeo de grande nuacutemero de raparigase de ninfas Mas ele cava insensiacutevel Finalmente a ninfa Eco apaixonou-se por ele mas natildeoconseguiu mais do que as outras Desesperada Eco retirou-se na sua solidatildeo emagreceu e desi mesma em breve natildeo restou mais que uma voz gemente As jovens desprezadas por Narciso

pediram vinganccedila aos ceacuteus Neacutemesis ouviu-as e fez com que num dia de grande calor depois deuma caccedilada Narciso se debruccedilasse sobre uma fonte para se dessedentar Nela viu o seu rostotatildeo belo e imediatamente cou apaixonado A partir de entatildeo torna-se insensiacutevel a tudo o que orodeia debruccedila-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer No Estige procura ainda distinguir os

traccedilos amados No lugar onde morreu brotou uma or agrave qual foi dado o seu nome o narcisordquo ndash Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa 1992 p 322

10 Victor I Stoichita ob cit pp 30 a 34 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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dois mitos de Dibutades e de Narciso

decorre a inscriccedilatildeo da origem do traccedilo(desenho) da pintura (sombramancha)e da proacutepria imagem (imago) na Histoacuteriada Arte

No fresco sobre ldquoA Origem da Pin-turardquo (1569-1573) que Vasari (1511--1574) incorporou na sua ldquoCasa Vasarirdquoem Florenccedila pode-se observar o recursoa sombra plena e de1047297nida

Momentos distintos ndash Dibutades eNarciso ndash visotildees a1047297nal muito proacuteximasretomados nos seacuteculos seguintes comometaacutefora da pintura sempre nas adja-cecircncias do proacuteprio autorretrato

ldquoA batalha de Issosrdquo pintura muraldo 1047297nal do seacuteculo IV aC[11] comemo-rando a vitoacuteria de Alexandre o Grandesobre Dario (rei da Peacutersia) para aleacutem da

rigorosa caracterizaccedilatildeo fiacutesica e psicoloacute-gica de cada uma das personagens ndash incluindo os dois protagonistas ndash ilus-tra a re1047298exatildeo de um rosto no escudo de um dos combatentes cuja imagem

reuacutene fortes probabilidades deser um autorretrato de Apellesretratista o1047297cial preferido deAlexandre[12]

Sendo ldquoA batalha de Issosrdquouma obra-prima que celebra

os feitos e a grandeza da cul-tura heleniacutestica natildeo seraacute difiacutecilaceitar a tese do autorretratodo principal pintor o1047297cial ndashde cujo registo datildeo notiacutecia as

11 Chegou ateacute noacutes uma coacutepia em mosaico dessa pintura mural do nal do seacutec IV aC prove-niente da Casa do Fauno em Pompeia hoje no Museu Nacional de Naacutepoles com a L de 582me Alt de 313m

12 Vide Geoffroy Caillet A la cour des arts orissants in ldquo Le Figaro hors-seacuterierdquo 3657 Octobre2011 pp 79 a 85 Conforme refere Caillet a identicaccedilatildeo do autorretrato de Apelles coloca emquestatildeo a atribuiccedilatildeo tradicional do mosaico grego a Philoxeacutenos de Eritreia

Fig3 ndash Vasari-Narciso1569-1573

Fig4 ndash Batalha de Issos-auto-retrato de Apelles-Finalseacutec IV aC

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fontes claacutessicas ndash ter funcionado como aditivo que em jeito de assinatura

sublinharia a importacircncia da obra Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos artiacutesticos da autorrepresentaccedilatildeo autoglori1047297caccedilatildeoVirtuosismo

II Autorretrato e autonomia intelectual do pintor

laquoOGNI DIPINORE DIPINGE SEraquo[13]

Segundo alguns historiadores de arte teraacute sido Martin van Heemskerck(1498-1574) quem teraacute ouvido a expressatildeo que se converteria em adaacutegioldquotodo o pintor se pinta a si mesmordquo [14]

Cabeccedila e matildeo intelectualidade e teacutecnica satildeo as duas faces da mesmaldquomoedardquo metaacutefora do autorretrato e por extensatildeo da criaccedilatildeo visual

No diaacutelogo central que se estabelece entre os dois agentes que satildeo opintor e o modelo haacute uma particularidade no caso do autorretrato modeloe executante satildeo um soacute indiviacuteduo haacute uma unidade na dualidade do diaacutelogondash expressatildeonatildeo expressatildeo conscienteinconsciente ndash que ocorre (supos-

tamente de modo honesto) entre si e si proacuteprio permeabilizado pelo sen-tido de si recircs pontos referenciais pois o ldquoeurdquosujeito o ldquomerdquore1047298exivo e otrabalho criativo ou por outras palavras um dos fatores determinantes naautorrepresentaccedilatildeo visual seraacute o modo como o autor concebe e constroacutei asrelaccedilotildees estabelecidas entre as trecircs referecircncias

Se o desenho implica um diaacutelogo entre o artista e a obra enquanto quea pintura eacute o resultado de uma re1047298exatildeo mais aprofundada ateacute que ponto sepode interpretar a autoimagem como ressonacircncia da subjetividade do artistacriador Quais os limites para a dinacircmica da estrateacutegia interpretativa ldquolaquoA

Pintura eacute uma ocupaccedilatildeo mentalraquo ( pittura eacute cosa mentale) escreveu Leonardoda Vinci e Miguel Acircngelo permaneceu igualmente 1047297rme laquonoacutes pintamoscom o nosso ceacuterebro natildeo com as nossas matildeosraquo (si dispinge col ciervello et noncom le mani) (hellip) Vasari sustentou que soacute uma laquomatildeo treinadaraquo podia mediara ideia nascida no intelecto ou como Miguel Acircngelo colocou num famososoneto laquoa matildeo que obedece ao intelectoraquo (la man che ubbidisce allrsquointelletto)ndash por outras palavras a laquomatildeo instruiacutedaraquo (docta manus) que Nicola Pisano

13 Armaccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda a Cosme de Meacutedicis (seacutec XV) eacute citada por FranciscoCalvo Serraller Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Espantildeol Contemporaneo in

El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDAMadrid 1994 p 13

14 Cfr Victor I Stoichita ob cit p 91 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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tinha reivindicado possuir trecircs seacuteculos antes (hellip) laquoHabbiamo da parlare con

le maniraquo Annibale Carracci eacute suposto ter dito cerca de 1590 (hellip)rdquo[15]A autorretratiacutestica autoacutenoma desenvolve-se no seacuteculo XVI parale-

lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para ascortes principescas altamente competitivas na promoccedilatildeo de uma culturacortesatilde personalizada e digna Nessa medida as autoimagens dos pintoresndash e outros artistas ndash podem ser interpretadas como celebraccedilotildees proacutepriasdas suas vidas pessoais estrateacutegia para ampliar o reconhecimento social daposiccedilatildeo conseguida por meacuterito artiacutestico

Da Antiguidade Claacutessica prolongando-se

durante a medievalidade chegaram ateacute noacutesobras em que a imagem do autor pode serinterpretada como um substituto da assina-tura daquele prevalecendo a associaccedilatildeo daimagem agrave sua autoria sobre a exigecircncia derigor no traccedilado das reais linhas do rostodeste modo se descurando a questatildeo teoacutericada semelhanccedila

Ru1047297llos (c 1150-1200) monge do mos-

teiro de Weissenau e iluminador ceacutelebreautorrepresentou-se pintando-se no inte-rior do R do ldquoSalteacuterio de Genebrardquo (Fig 5)sentado a pintar e ilustrando a cena com osinstrumentos do ofiacutecio e recipientes de coresnecessaacuterias agrave praacutetica pictural odavia apesardo retrato em si mesmo exibir traccedilos realis-tas e algum esmero na execuccedilatildeo natildeo se trataainda de uma identidade individual espe-

ciacute1047297ca de um indiviacuteduo ndash que eacute diferente docaraacuteter geneacuterico sendo este afeto ao geacutenero enatildeo ao indiviacuteduo ndash e como tal natildeo integra aclassi1047297caccedilatildeo de um verdadeiro autorretratoA identidade indica uma referecircncia comum etransversal na representaccedilatildeo ou seja a rela-ccedilatildeo de pertenccedila do indiviacuteduo a um determi-nado corpo social ou congregaccedilatildeo

15 Joanna Woods-Marsden Renaissance Self-Portraiture Yale University Press New Haven ampLondon 1998 p 4

Fig 5 ndash Rufillus de Weissnau Enlu-minure Vitae Sanctorum c 1150-1200

Fig6 ndash Peter Parler Autorretrato C1370-1379 Praga Catedral S Vito

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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95 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

A faacutebula de Dibutades[4] agrave qual tradicional-

mente eacute atribuiacuteda a origem miacutetica do retratonatildeo deixa de se aproximar do mito de Platatildeosobre a alegoria da caverna sendo este uacuteltimogenericamente aceite como a narrativa pio-neira que sustenta a teoria do conhecimentono ocidente[5]

A projeccedilatildeo enquanto motivo presentenas duas situaccedilotildees mitoloacutegicas correlacionaa representaccedilatildeo artiacutestica e a representaccedilatildeo

cognitiva embora se trate de duas narrativasdiferentes veri1047297ca-se um certo paralelismo deestrateacutegias equacionando a questatildeo da visibili-dade e da representaccedilatildeo destacando-se que nomito de Platatildeo visualidade e cogniccedilatildeo apresen-tam implicaccedilatildeo reciacuteproca

Stoichita interpreta o mito de Platatildeo comoa construccedilatildeo de um cenaacuterio que toca os limitesentre os mundos da aparecircncia e da realidade

vendo nas sombras platoacutenicas o antecedenteda imagem do espelho e no eco o resultado dos sons do fundo da prisatildeo ndashldquoPlatatildeo introduz um elemento auditivo que devolveu os sons (hellip) que vemreforccedilar a ilusatildeo primitiva que eacute de ordem visual (hellip)

A sombra e o eco aparecem em Platatildeo como as primeiras falsas aparecircn-cias (uma oacutetica outra auditiva) do real Assim a sombra precede mesmonos mundos dos logros oacuteticos o re1047298exo do espelho

rata-se nesse estaacutedio do pensamento platoacutenico de uma intenccedilatildeoclara de colocar a sombra nas origens da duplicaccedilatildeo epifenomenal antes

4 Conforme passagem da Histoacuteria Natural de Pliacutenio-o-Velho XXXV 43 reproduzida por VictorI Stoichita in Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve 2000 p 11 e 17 e cita-se ldquoA primeiraobra neste geacutenero foi feita em argila por Dibutades de Sicyone oleiro em Coriacutentia por ocasiatildeode uma ideia de sua lha apaixonada por um jovem homem que ia deixar a cidade esta reteveatraveacutes de linhas os contornos do per l do seu amante na parede agrave luz de uma vela O seu paiaplicou em seguida argila sobre o desenho ao qual deu relevo e fez endurecer ao fogo essaargila com peccedilas de olaria Esse primeiro tipo de plaacutestica foi diz-se conservado em Coriacutentiano templo das Ninfashelliprdquo (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente texto)

Vide tambeacutem Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Atas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-

moacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLUL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)5 Platatildeo Repuacuteblica 514-519 Vide designadamente Victor I Stoichita ob cit p 7 (traduccedilatildeo

da responsabilidade da autora)

Fig 1 ndash Joseph -Benoicirct Suveacutee ndashDibutade ou lOrigine du Dessin

1799

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96 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

da imagem do espelho (hellip) para Platatildeo sombras e re1047298exos especulares satildeo

aparecircncias estritamente ligadas soacute sendo diferenciadas pelo seu laquograu declaridade ou de obscuridaderaquo[6]

Outra ideia relacionada com o mito de Platatildeo implicada na abordagemdo autorretrato eacute a mimesis em paralelo com o estrato social do pintor olugar da arte na cidade ideal e a associaccedilatildeo da imagem pintada agrave imagemespecular

(hellip) se tu quiseres agarrar um espelho e expocirc-lo de todos os lados em menosde nada executaraacutes o sol e os astros do ceacuteu em menos de nada a terra em

menos de nada tu proacuteprio e os outros animais e os moacuteveis e as plantas e todosos objetos de que se falava ainda agora[7]

Explicitamente Platatildeo estabelece comparaccedilatildeo entre imagem pintada e ima-gem especular suscitando re1047298exatildeo sobre a fragilidade do mimetismo ndash ldquoAimagem pintada eacute a exemplo do re1047298exo especular pura aparecircncia ( phai-nomenon) desprovida de realidade (aletheia) (hellip) Deste modo assiste-separece-nos agrave inscriccedilatildeo e mesmo ao triunfo do espelho no seio do sistemadas representaccedilotildees epifenomenaisrdquo ndash e a implicaccedilatildeo reciacuteproca entre o re1047298exo

especular e o estatuto da pintura no plano da mimeacutetica ndash ldquoSe na tradiccedilatildeo dePliacutenio a imagem laquocaptaraquo o modelo reduplicando-o (tal a funccedilatildeo maacutegica dasombra) em Platatildeo ela restitui a sua semelhanccedila (tal eacute a funccedilatildeo mimeacuteticado espelho) ao representaacute-loldquo[8]

Dos estudos efetuados por Lacan e porPiaget a chamada fase ou laquoestaacutedio doespelhoraquo (Lacan) correspondente aoperiacuteodo que vai entre os seis meses ndashquando a crianccedila reconhece a proacutepria

imagem no espelho ndash e ateacute cerca dosdezoito meses quando distingue aprojeccedilatildeo da sombra sendo consensualnos nossos dias a possibilidade deinterpretaccedilatildeo do mito de Narciso[9] e da

6 Stoichita ob cit pp 22 a 24 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

7 X Livro Repuacuteblica passagem citada a partir de reproduccedilatildeo de Victor I Stoichita in ob cit pp 24 e 27 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

8 Victor I Stoichita ob cit pp 24 e 27 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

9 A versatildeo mais conhecida eacute a de Oviacutedio nas Metamorfoses que refere que ldquoNARCISO eraum jovem muito belo que desprezava o amor A sua lenda eacute transmitida de modos diferentesconsoante os autores A versatildeo mais conhecida eacute a de Oviacutedio nas Metamorfoses Nela Nar-

Fig2 ndash Cigoli-Narcisse Museu do Louvre

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97 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

sua paixatildeo pelo seu proacuteprio re1047298exo na aacutegua no enquadramento da teoria de

Lacan para quem o laquoestaacutedio do espelhoraquo ldquo(hellip) pertence principalmente agraveidenti1047297caccedilatildeo do eu enquanto que a sombra ela diz respeito sobretudo agraveidenti1047297caccedilatildeo do outro Sabendo isso compreende-se por que razatildeo Narcisose apaixonou pela sua imagem especular e natildeo pela da sua sombra E igual-mente se compreende porque em Pliacutenio a projeccedilatildeo amorosa da jovemrapariga tem por objetivo a sombra do outro (do seu amante) Encontramo--nos sem duacutevida perante dois cenaacuterios diferentes pelas suas essecircncia ori-gem e histoacuteria De facto trata-se de duas modalidades opostas (mas que eacutepossiacutevel por vezes colocar em relaccedilatildeo) da conexatildeo agrave imagem e agrave representa-

ccedilatildeo (hellip)Os artistas que nos seacuteculos seguintes ilustraram o mito de Narciso

sublinharam preferencialmente o caraacuteter efeacutemero do re1047298exo especular (hellip)mas evitaram a representaccedilatildeo da laquosombraraquo que em Oviacutedio natildeo era senatildeouma metaacutefora (hellip)

A primeira parte da histoacuteria de Narciso era estaacutetica a segunda eacute dinacirc-mica (hellip) A vista engana e a prova de realidade que deveria ter chegadopelo tocar natildeo se produz Nesse esforccedilo de transgressatildeo descrito por Oviacute-dio ( Metamorfoses) verdadeiro bailado a dois Narciso ainda acredita que

a imagem eacute um outro A pretensatildeo vatilde destinada a transformar a vista emabraccedilo chega ao drama ao momento culminante em que o heroacutei realiza1047297nalmente o laquoestaacutedio do espelhoraquo A imagem (imago) jaacute natildeo o engana ela

jaacute natildeo eacute uma laquosombraraquo ela jaacute natildeo eacute o outro mas ele mesmo laquoIsto sou euraquoIste ego sumrdquo[10]

O mito de Narciso assenta na autocentralizaccedilatildeo da imagem re1047298etidasuscetiacutevel de interpretaccedilotildees turbulentas introduzindo a mobilizaccedilatildeo deconceitos como falaacutecia ilusatildeo simulacro engano conceitos por sua vezpresentes no registo do autorretrato Da transversalidade de leituras dos

ciso eacute o lho do deus do Ceso e da ninfa Liriacuteope Quando nasceu os seus pais consultaramo adivinho Tireacutesias que lhes disse que a crianccedila laquoviveria ateacute ser velho se natildeo olhasse para simesmoraquo Chegado agrave idade adulta Narciso foi objeto da paixatildeo de grande nuacutemero de raparigase de ninfas Mas ele cava insensiacutevel Finalmente a ninfa Eco apaixonou-se por ele mas natildeoconseguiu mais do que as outras Desesperada Eco retirou-se na sua solidatildeo emagreceu e desi mesma em breve natildeo restou mais que uma voz gemente As jovens desprezadas por Narciso

pediram vinganccedila aos ceacuteus Neacutemesis ouviu-as e fez com que num dia de grande calor depois deuma caccedilada Narciso se debruccedilasse sobre uma fonte para se dessedentar Nela viu o seu rostotatildeo belo e imediatamente cou apaixonado A partir de entatildeo torna-se insensiacutevel a tudo o que orodeia debruccedila-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer No Estige procura ainda distinguir os

traccedilos amados No lugar onde morreu brotou uma or agrave qual foi dado o seu nome o narcisordquo ndash Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa 1992 p 322

10 Victor I Stoichita ob cit pp 30 a 34 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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98 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

dois mitos de Dibutades e de Narciso

decorre a inscriccedilatildeo da origem do traccedilo(desenho) da pintura (sombramancha)e da proacutepria imagem (imago) na Histoacuteriada Arte

No fresco sobre ldquoA Origem da Pin-turardquo (1569-1573) que Vasari (1511--1574) incorporou na sua ldquoCasa Vasarirdquoem Florenccedila pode-se observar o recursoa sombra plena e de1047297nida

Momentos distintos ndash Dibutades eNarciso ndash visotildees a1047297nal muito proacuteximasretomados nos seacuteculos seguintes comometaacutefora da pintura sempre nas adja-cecircncias do proacuteprio autorretrato

ldquoA batalha de Issosrdquo pintura muraldo 1047297nal do seacuteculo IV aC[11] comemo-rando a vitoacuteria de Alexandre o Grandesobre Dario (rei da Peacutersia) para aleacutem da

rigorosa caracterizaccedilatildeo fiacutesica e psicoloacute-gica de cada uma das personagens ndash incluindo os dois protagonistas ndash ilus-tra a re1047298exatildeo de um rosto no escudo de um dos combatentes cuja imagem

reuacutene fortes probabilidades deser um autorretrato de Apellesretratista o1047297cial preferido deAlexandre[12]

Sendo ldquoA batalha de Issosrdquouma obra-prima que celebra

os feitos e a grandeza da cul-tura heleniacutestica natildeo seraacute difiacutecilaceitar a tese do autorretratodo principal pintor o1047297cial ndashde cujo registo datildeo notiacutecia as

11 Chegou ateacute noacutes uma coacutepia em mosaico dessa pintura mural do nal do seacutec IV aC prove-niente da Casa do Fauno em Pompeia hoje no Museu Nacional de Naacutepoles com a L de 582me Alt de 313m

12 Vide Geoffroy Caillet A la cour des arts orissants in ldquo Le Figaro hors-seacuterierdquo 3657 Octobre2011 pp 79 a 85 Conforme refere Caillet a identicaccedilatildeo do autorretrato de Apelles coloca emquestatildeo a atribuiccedilatildeo tradicional do mosaico grego a Philoxeacutenos de Eritreia

Fig3 ndash Vasari-Narciso1569-1573

Fig4 ndash Batalha de Issos-auto-retrato de Apelles-Finalseacutec IV aC

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99 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

fontes claacutessicas ndash ter funcionado como aditivo que em jeito de assinatura

sublinharia a importacircncia da obra Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos artiacutesticos da autorrepresentaccedilatildeo autoglori1047297caccedilatildeoVirtuosismo

II Autorretrato e autonomia intelectual do pintor

laquoOGNI DIPINORE DIPINGE SEraquo[13]

Segundo alguns historiadores de arte teraacute sido Martin van Heemskerck(1498-1574) quem teraacute ouvido a expressatildeo que se converteria em adaacutegioldquotodo o pintor se pinta a si mesmordquo [14]

Cabeccedila e matildeo intelectualidade e teacutecnica satildeo as duas faces da mesmaldquomoedardquo metaacutefora do autorretrato e por extensatildeo da criaccedilatildeo visual

No diaacutelogo central que se estabelece entre os dois agentes que satildeo opintor e o modelo haacute uma particularidade no caso do autorretrato modeloe executante satildeo um soacute indiviacuteduo haacute uma unidade na dualidade do diaacutelogondash expressatildeonatildeo expressatildeo conscienteinconsciente ndash que ocorre (supos-

tamente de modo honesto) entre si e si proacuteprio permeabilizado pelo sen-tido de si recircs pontos referenciais pois o ldquoeurdquosujeito o ldquomerdquore1047298exivo e otrabalho criativo ou por outras palavras um dos fatores determinantes naautorrepresentaccedilatildeo visual seraacute o modo como o autor concebe e constroacutei asrelaccedilotildees estabelecidas entre as trecircs referecircncias

Se o desenho implica um diaacutelogo entre o artista e a obra enquanto quea pintura eacute o resultado de uma re1047298exatildeo mais aprofundada ateacute que ponto sepode interpretar a autoimagem como ressonacircncia da subjetividade do artistacriador Quais os limites para a dinacircmica da estrateacutegia interpretativa ldquolaquoA

Pintura eacute uma ocupaccedilatildeo mentalraquo ( pittura eacute cosa mentale) escreveu Leonardoda Vinci e Miguel Acircngelo permaneceu igualmente 1047297rme laquonoacutes pintamoscom o nosso ceacuterebro natildeo com as nossas matildeosraquo (si dispinge col ciervello et noncom le mani) (hellip) Vasari sustentou que soacute uma laquomatildeo treinadaraquo podia mediara ideia nascida no intelecto ou como Miguel Acircngelo colocou num famososoneto laquoa matildeo que obedece ao intelectoraquo (la man che ubbidisce allrsquointelletto)ndash por outras palavras a laquomatildeo instruiacutedaraquo (docta manus) que Nicola Pisano

13 Armaccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda a Cosme de Meacutedicis (seacutec XV) eacute citada por FranciscoCalvo Serraller Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Espantildeol Contemporaneo in

El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDAMadrid 1994 p 13

14 Cfr Victor I Stoichita ob cit p 91 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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100 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

tinha reivindicado possuir trecircs seacuteculos antes (hellip) laquoHabbiamo da parlare con

le maniraquo Annibale Carracci eacute suposto ter dito cerca de 1590 (hellip)rdquo[15]A autorretratiacutestica autoacutenoma desenvolve-se no seacuteculo XVI parale-

lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para ascortes principescas altamente competitivas na promoccedilatildeo de uma culturacortesatilde personalizada e digna Nessa medida as autoimagens dos pintoresndash e outros artistas ndash podem ser interpretadas como celebraccedilotildees proacutepriasdas suas vidas pessoais estrateacutegia para ampliar o reconhecimento social daposiccedilatildeo conseguida por meacuterito artiacutestico

Da Antiguidade Claacutessica prolongando-se

durante a medievalidade chegaram ateacute noacutesobras em que a imagem do autor pode serinterpretada como um substituto da assina-tura daquele prevalecendo a associaccedilatildeo daimagem agrave sua autoria sobre a exigecircncia derigor no traccedilado das reais linhas do rostodeste modo se descurando a questatildeo teoacutericada semelhanccedila

Ru1047297llos (c 1150-1200) monge do mos-

teiro de Weissenau e iluminador ceacutelebreautorrepresentou-se pintando-se no inte-rior do R do ldquoSalteacuterio de Genebrardquo (Fig 5)sentado a pintar e ilustrando a cena com osinstrumentos do ofiacutecio e recipientes de coresnecessaacuterias agrave praacutetica pictural odavia apesardo retrato em si mesmo exibir traccedilos realis-tas e algum esmero na execuccedilatildeo natildeo se trataainda de uma identidade individual espe-

ciacute1047297ca de um indiviacuteduo ndash que eacute diferente docaraacuteter geneacuterico sendo este afeto ao geacutenero enatildeo ao indiviacuteduo ndash e como tal natildeo integra aclassi1047297caccedilatildeo de um verdadeiro autorretratoA identidade indica uma referecircncia comum etransversal na representaccedilatildeo ou seja a rela-ccedilatildeo de pertenccedila do indiviacuteduo a um determi-nado corpo social ou congregaccedilatildeo

15 Joanna Woods-Marsden Renaissance Self-Portraiture Yale University Press New Haven ampLondon 1998 p 4

Fig 5 ndash Rufillus de Weissnau Enlu-minure Vitae Sanctorum c 1150-1200

Fig6 ndash Peter Parler Autorretrato C1370-1379 Praga Catedral S Vito

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

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2011 pp 79 a 85

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96 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

da imagem do espelho (hellip) para Platatildeo sombras e re1047298exos especulares satildeo

aparecircncias estritamente ligadas soacute sendo diferenciadas pelo seu laquograu declaridade ou de obscuridaderaquo[6]

Outra ideia relacionada com o mito de Platatildeo implicada na abordagemdo autorretrato eacute a mimesis em paralelo com o estrato social do pintor olugar da arte na cidade ideal e a associaccedilatildeo da imagem pintada agrave imagemespecular

(hellip) se tu quiseres agarrar um espelho e expocirc-lo de todos os lados em menosde nada executaraacutes o sol e os astros do ceacuteu em menos de nada a terra em

menos de nada tu proacuteprio e os outros animais e os moacuteveis e as plantas e todosos objetos de que se falava ainda agora[7]

Explicitamente Platatildeo estabelece comparaccedilatildeo entre imagem pintada e ima-gem especular suscitando re1047298exatildeo sobre a fragilidade do mimetismo ndash ldquoAimagem pintada eacute a exemplo do re1047298exo especular pura aparecircncia ( phai-nomenon) desprovida de realidade (aletheia) (hellip) Deste modo assiste-separece-nos agrave inscriccedilatildeo e mesmo ao triunfo do espelho no seio do sistemadas representaccedilotildees epifenomenaisrdquo ndash e a implicaccedilatildeo reciacuteproca entre o re1047298exo

especular e o estatuto da pintura no plano da mimeacutetica ndash ldquoSe na tradiccedilatildeo dePliacutenio a imagem laquocaptaraquo o modelo reduplicando-o (tal a funccedilatildeo maacutegica dasombra) em Platatildeo ela restitui a sua semelhanccedila (tal eacute a funccedilatildeo mimeacuteticado espelho) ao representaacute-loldquo[8]

Dos estudos efetuados por Lacan e porPiaget a chamada fase ou laquoestaacutedio doespelhoraquo (Lacan) correspondente aoperiacuteodo que vai entre os seis meses ndashquando a crianccedila reconhece a proacutepria

imagem no espelho ndash e ateacute cerca dosdezoito meses quando distingue aprojeccedilatildeo da sombra sendo consensualnos nossos dias a possibilidade deinterpretaccedilatildeo do mito de Narciso[9] e da

6 Stoichita ob cit pp 22 a 24 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

7 X Livro Repuacuteblica passagem citada a partir de reproduccedilatildeo de Victor I Stoichita in ob cit pp 24 e 27 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

8 Victor I Stoichita ob cit pp 24 e 27 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

9 A versatildeo mais conhecida eacute a de Oviacutedio nas Metamorfoses que refere que ldquoNARCISO eraum jovem muito belo que desprezava o amor A sua lenda eacute transmitida de modos diferentesconsoante os autores A versatildeo mais conhecida eacute a de Oviacutedio nas Metamorfoses Nela Nar-

Fig2 ndash Cigoli-Narcisse Museu do Louvre

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97 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

sua paixatildeo pelo seu proacuteprio re1047298exo na aacutegua no enquadramento da teoria de

Lacan para quem o laquoestaacutedio do espelhoraquo ldquo(hellip) pertence principalmente agraveidenti1047297caccedilatildeo do eu enquanto que a sombra ela diz respeito sobretudo agraveidenti1047297caccedilatildeo do outro Sabendo isso compreende-se por que razatildeo Narcisose apaixonou pela sua imagem especular e natildeo pela da sua sombra E igual-mente se compreende porque em Pliacutenio a projeccedilatildeo amorosa da jovemrapariga tem por objetivo a sombra do outro (do seu amante) Encontramo--nos sem duacutevida perante dois cenaacuterios diferentes pelas suas essecircncia ori-gem e histoacuteria De facto trata-se de duas modalidades opostas (mas que eacutepossiacutevel por vezes colocar em relaccedilatildeo) da conexatildeo agrave imagem e agrave representa-

ccedilatildeo (hellip)Os artistas que nos seacuteculos seguintes ilustraram o mito de Narciso

sublinharam preferencialmente o caraacuteter efeacutemero do re1047298exo especular (hellip)mas evitaram a representaccedilatildeo da laquosombraraquo que em Oviacutedio natildeo era senatildeouma metaacutefora (hellip)

A primeira parte da histoacuteria de Narciso era estaacutetica a segunda eacute dinacirc-mica (hellip) A vista engana e a prova de realidade que deveria ter chegadopelo tocar natildeo se produz Nesse esforccedilo de transgressatildeo descrito por Oviacute-dio ( Metamorfoses) verdadeiro bailado a dois Narciso ainda acredita que

a imagem eacute um outro A pretensatildeo vatilde destinada a transformar a vista emabraccedilo chega ao drama ao momento culminante em que o heroacutei realiza1047297nalmente o laquoestaacutedio do espelhoraquo A imagem (imago) jaacute natildeo o engana ela

jaacute natildeo eacute uma laquosombraraquo ela jaacute natildeo eacute o outro mas ele mesmo laquoIsto sou euraquoIste ego sumrdquo[10]

O mito de Narciso assenta na autocentralizaccedilatildeo da imagem re1047298etidasuscetiacutevel de interpretaccedilotildees turbulentas introduzindo a mobilizaccedilatildeo deconceitos como falaacutecia ilusatildeo simulacro engano conceitos por sua vezpresentes no registo do autorretrato Da transversalidade de leituras dos

ciso eacute o lho do deus do Ceso e da ninfa Liriacuteope Quando nasceu os seus pais consultaramo adivinho Tireacutesias que lhes disse que a crianccedila laquoviveria ateacute ser velho se natildeo olhasse para simesmoraquo Chegado agrave idade adulta Narciso foi objeto da paixatildeo de grande nuacutemero de raparigase de ninfas Mas ele cava insensiacutevel Finalmente a ninfa Eco apaixonou-se por ele mas natildeoconseguiu mais do que as outras Desesperada Eco retirou-se na sua solidatildeo emagreceu e desi mesma em breve natildeo restou mais que uma voz gemente As jovens desprezadas por Narciso

pediram vinganccedila aos ceacuteus Neacutemesis ouviu-as e fez com que num dia de grande calor depois deuma caccedilada Narciso se debruccedilasse sobre uma fonte para se dessedentar Nela viu o seu rostotatildeo belo e imediatamente cou apaixonado A partir de entatildeo torna-se insensiacutevel a tudo o que orodeia debruccedila-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer No Estige procura ainda distinguir os

traccedilos amados No lugar onde morreu brotou uma or agrave qual foi dado o seu nome o narcisordquo ndash Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa 1992 p 322

10 Victor I Stoichita ob cit pp 30 a 34 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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98 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

dois mitos de Dibutades e de Narciso

decorre a inscriccedilatildeo da origem do traccedilo(desenho) da pintura (sombramancha)e da proacutepria imagem (imago) na Histoacuteriada Arte

No fresco sobre ldquoA Origem da Pin-turardquo (1569-1573) que Vasari (1511--1574) incorporou na sua ldquoCasa Vasarirdquoem Florenccedila pode-se observar o recursoa sombra plena e de1047297nida

Momentos distintos ndash Dibutades eNarciso ndash visotildees a1047297nal muito proacuteximasretomados nos seacuteculos seguintes comometaacutefora da pintura sempre nas adja-cecircncias do proacuteprio autorretrato

ldquoA batalha de Issosrdquo pintura muraldo 1047297nal do seacuteculo IV aC[11] comemo-rando a vitoacuteria de Alexandre o Grandesobre Dario (rei da Peacutersia) para aleacutem da

rigorosa caracterizaccedilatildeo fiacutesica e psicoloacute-gica de cada uma das personagens ndash incluindo os dois protagonistas ndash ilus-tra a re1047298exatildeo de um rosto no escudo de um dos combatentes cuja imagem

reuacutene fortes probabilidades deser um autorretrato de Apellesretratista o1047297cial preferido deAlexandre[12]

Sendo ldquoA batalha de Issosrdquouma obra-prima que celebra

os feitos e a grandeza da cul-tura heleniacutestica natildeo seraacute difiacutecilaceitar a tese do autorretratodo principal pintor o1047297cial ndashde cujo registo datildeo notiacutecia as

11 Chegou ateacute noacutes uma coacutepia em mosaico dessa pintura mural do nal do seacutec IV aC prove-niente da Casa do Fauno em Pompeia hoje no Museu Nacional de Naacutepoles com a L de 582me Alt de 313m

12 Vide Geoffroy Caillet A la cour des arts orissants in ldquo Le Figaro hors-seacuterierdquo 3657 Octobre2011 pp 79 a 85 Conforme refere Caillet a identicaccedilatildeo do autorretrato de Apelles coloca emquestatildeo a atribuiccedilatildeo tradicional do mosaico grego a Philoxeacutenos de Eritreia

Fig3 ndash Vasari-Narciso1569-1573

Fig4 ndash Batalha de Issos-auto-retrato de Apelles-Finalseacutec IV aC

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99 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

fontes claacutessicas ndash ter funcionado como aditivo que em jeito de assinatura

sublinharia a importacircncia da obra Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos artiacutesticos da autorrepresentaccedilatildeo autoglori1047297caccedilatildeoVirtuosismo

II Autorretrato e autonomia intelectual do pintor

laquoOGNI DIPINORE DIPINGE SEraquo[13]

Segundo alguns historiadores de arte teraacute sido Martin van Heemskerck(1498-1574) quem teraacute ouvido a expressatildeo que se converteria em adaacutegioldquotodo o pintor se pinta a si mesmordquo [14]

Cabeccedila e matildeo intelectualidade e teacutecnica satildeo as duas faces da mesmaldquomoedardquo metaacutefora do autorretrato e por extensatildeo da criaccedilatildeo visual

No diaacutelogo central que se estabelece entre os dois agentes que satildeo opintor e o modelo haacute uma particularidade no caso do autorretrato modeloe executante satildeo um soacute indiviacuteduo haacute uma unidade na dualidade do diaacutelogondash expressatildeonatildeo expressatildeo conscienteinconsciente ndash que ocorre (supos-

tamente de modo honesto) entre si e si proacuteprio permeabilizado pelo sen-tido de si recircs pontos referenciais pois o ldquoeurdquosujeito o ldquomerdquore1047298exivo e otrabalho criativo ou por outras palavras um dos fatores determinantes naautorrepresentaccedilatildeo visual seraacute o modo como o autor concebe e constroacutei asrelaccedilotildees estabelecidas entre as trecircs referecircncias

Se o desenho implica um diaacutelogo entre o artista e a obra enquanto quea pintura eacute o resultado de uma re1047298exatildeo mais aprofundada ateacute que ponto sepode interpretar a autoimagem como ressonacircncia da subjetividade do artistacriador Quais os limites para a dinacircmica da estrateacutegia interpretativa ldquolaquoA

Pintura eacute uma ocupaccedilatildeo mentalraquo ( pittura eacute cosa mentale) escreveu Leonardoda Vinci e Miguel Acircngelo permaneceu igualmente 1047297rme laquonoacutes pintamoscom o nosso ceacuterebro natildeo com as nossas matildeosraquo (si dispinge col ciervello et noncom le mani) (hellip) Vasari sustentou que soacute uma laquomatildeo treinadaraquo podia mediara ideia nascida no intelecto ou como Miguel Acircngelo colocou num famososoneto laquoa matildeo que obedece ao intelectoraquo (la man che ubbidisce allrsquointelletto)ndash por outras palavras a laquomatildeo instruiacutedaraquo (docta manus) que Nicola Pisano

13 Armaccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda a Cosme de Meacutedicis (seacutec XV) eacute citada por FranciscoCalvo Serraller Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Espantildeol Contemporaneo in

El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDAMadrid 1994 p 13

14 Cfr Victor I Stoichita ob cit p 91 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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100 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

tinha reivindicado possuir trecircs seacuteculos antes (hellip) laquoHabbiamo da parlare con

le maniraquo Annibale Carracci eacute suposto ter dito cerca de 1590 (hellip)rdquo[15]A autorretratiacutestica autoacutenoma desenvolve-se no seacuteculo XVI parale-

lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para ascortes principescas altamente competitivas na promoccedilatildeo de uma culturacortesatilde personalizada e digna Nessa medida as autoimagens dos pintoresndash e outros artistas ndash podem ser interpretadas como celebraccedilotildees proacutepriasdas suas vidas pessoais estrateacutegia para ampliar o reconhecimento social daposiccedilatildeo conseguida por meacuterito artiacutestico

Da Antiguidade Claacutessica prolongando-se

durante a medievalidade chegaram ateacute noacutesobras em que a imagem do autor pode serinterpretada como um substituto da assina-tura daquele prevalecendo a associaccedilatildeo daimagem agrave sua autoria sobre a exigecircncia derigor no traccedilado das reais linhas do rostodeste modo se descurando a questatildeo teoacutericada semelhanccedila

Ru1047297llos (c 1150-1200) monge do mos-

teiro de Weissenau e iluminador ceacutelebreautorrepresentou-se pintando-se no inte-rior do R do ldquoSalteacuterio de Genebrardquo (Fig 5)sentado a pintar e ilustrando a cena com osinstrumentos do ofiacutecio e recipientes de coresnecessaacuterias agrave praacutetica pictural odavia apesardo retrato em si mesmo exibir traccedilos realis-tas e algum esmero na execuccedilatildeo natildeo se trataainda de uma identidade individual espe-

ciacute1047297ca de um indiviacuteduo ndash que eacute diferente docaraacuteter geneacuterico sendo este afeto ao geacutenero enatildeo ao indiviacuteduo ndash e como tal natildeo integra aclassi1047297caccedilatildeo de um verdadeiro autorretratoA identidade indica uma referecircncia comum etransversal na representaccedilatildeo ou seja a rela-ccedilatildeo de pertenccedila do indiviacuteduo a um determi-nado corpo social ou congregaccedilatildeo

15 Joanna Woods-Marsden Renaissance Self-Portraiture Yale University Press New Haven ampLondon 1998 p 4

Fig 5 ndash Rufillus de Weissnau Enlu-minure Vitae Sanctorum c 1150-1200

Fig6 ndash Peter Parler Autorretrato C1370-1379 Praga Catedral S Vito

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

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Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

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Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

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S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

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V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

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97 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

sua paixatildeo pelo seu proacuteprio re1047298exo na aacutegua no enquadramento da teoria de

Lacan para quem o laquoestaacutedio do espelhoraquo ldquo(hellip) pertence principalmente agraveidenti1047297caccedilatildeo do eu enquanto que a sombra ela diz respeito sobretudo agraveidenti1047297caccedilatildeo do outro Sabendo isso compreende-se por que razatildeo Narcisose apaixonou pela sua imagem especular e natildeo pela da sua sombra E igual-mente se compreende porque em Pliacutenio a projeccedilatildeo amorosa da jovemrapariga tem por objetivo a sombra do outro (do seu amante) Encontramo--nos sem duacutevida perante dois cenaacuterios diferentes pelas suas essecircncia ori-gem e histoacuteria De facto trata-se de duas modalidades opostas (mas que eacutepossiacutevel por vezes colocar em relaccedilatildeo) da conexatildeo agrave imagem e agrave representa-

ccedilatildeo (hellip)Os artistas que nos seacuteculos seguintes ilustraram o mito de Narciso

sublinharam preferencialmente o caraacuteter efeacutemero do re1047298exo especular (hellip)mas evitaram a representaccedilatildeo da laquosombraraquo que em Oviacutedio natildeo era senatildeouma metaacutefora (hellip)

A primeira parte da histoacuteria de Narciso era estaacutetica a segunda eacute dinacirc-mica (hellip) A vista engana e a prova de realidade que deveria ter chegadopelo tocar natildeo se produz Nesse esforccedilo de transgressatildeo descrito por Oviacute-dio ( Metamorfoses) verdadeiro bailado a dois Narciso ainda acredita que

a imagem eacute um outro A pretensatildeo vatilde destinada a transformar a vista emabraccedilo chega ao drama ao momento culminante em que o heroacutei realiza1047297nalmente o laquoestaacutedio do espelhoraquo A imagem (imago) jaacute natildeo o engana ela

jaacute natildeo eacute uma laquosombraraquo ela jaacute natildeo eacute o outro mas ele mesmo laquoIsto sou euraquoIste ego sumrdquo[10]

O mito de Narciso assenta na autocentralizaccedilatildeo da imagem re1047298etidasuscetiacutevel de interpretaccedilotildees turbulentas introduzindo a mobilizaccedilatildeo deconceitos como falaacutecia ilusatildeo simulacro engano conceitos por sua vezpresentes no registo do autorretrato Da transversalidade de leituras dos

ciso eacute o lho do deus do Ceso e da ninfa Liriacuteope Quando nasceu os seus pais consultaramo adivinho Tireacutesias que lhes disse que a crianccedila laquoviveria ateacute ser velho se natildeo olhasse para simesmoraquo Chegado agrave idade adulta Narciso foi objeto da paixatildeo de grande nuacutemero de raparigase de ninfas Mas ele cava insensiacutevel Finalmente a ninfa Eco apaixonou-se por ele mas natildeoconseguiu mais do que as outras Desesperada Eco retirou-se na sua solidatildeo emagreceu e desi mesma em breve natildeo restou mais que uma voz gemente As jovens desprezadas por Narciso

pediram vinganccedila aos ceacuteus Neacutemesis ouviu-as e fez com que num dia de grande calor depois deuma caccedilada Narciso se debruccedilasse sobre uma fonte para se dessedentar Nela viu o seu rostotatildeo belo e imediatamente cou apaixonado A partir de entatildeo torna-se insensiacutevel a tudo o que orodeia debruccedila-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer No Estige procura ainda distinguir os

traccedilos amados No lugar onde morreu brotou uma or agrave qual foi dado o seu nome o narcisordquo ndash Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa 1992 p 322

10 Victor I Stoichita ob cit pp 30 a 34 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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98 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

dois mitos de Dibutades e de Narciso

decorre a inscriccedilatildeo da origem do traccedilo(desenho) da pintura (sombramancha)e da proacutepria imagem (imago) na Histoacuteriada Arte

No fresco sobre ldquoA Origem da Pin-turardquo (1569-1573) que Vasari (1511--1574) incorporou na sua ldquoCasa Vasarirdquoem Florenccedila pode-se observar o recursoa sombra plena e de1047297nida

Momentos distintos ndash Dibutades eNarciso ndash visotildees a1047297nal muito proacuteximasretomados nos seacuteculos seguintes comometaacutefora da pintura sempre nas adja-cecircncias do proacuteprio autorretrato

ldquoA batalha de Issosrdquo pintura muraldo 1047297nal do seacuteculo IV aC[11] comemo-rando a vitoacuteria de Alexandre o Grandesobre Dario (rei da Peacutersia) para aleacutem da

rigorosa caracterizaccedilatildeo fiacutesica e psicoloacute-gica de cada uma das personagens ndash incluindo os dois protagonistas ndash ilus-tra a re1047298exatildeo de um rosto no escudo de um dos combatentes cuja imagem

reuacutene fortes probabilidades deser um autorretrato de Apellesretratista o1047297cial preferido deAlexandre[12]

Sendo ldquoA batalha de Issosrdquouma obra-prima que celebra

os feitos e a grandeza da cul-tura heleniacutestica natildeo seraacute difiacutecilaceitar a tese do autorretratodo principal pintor o1047297cial ndashde cujo registo datildeo notiacutecia as

11 Chegou ateacute noacutes uma coacutepia em mosaico dessa pintura mural do nal do seacutec IV aC prove-niente da Casa do Fauno em Pompeia hoje no Museu Nacional de Naacutepoles com a L de 582me Alt de 313m

12 Vide Geoffroy Caillet A la cour des arts orissants in ldquo Le Figaro hors-seacuterierdquo 3657 Octobre2011 pp 79 a 85 Conforme refere Caillet a identicaccedilatildeo do autorretrato de Apelles coloca emquestatildeo a atribuiccedilatildeo tradicional do mosaico grego a Philoxeacutenos de Eritreia

Fig3 ndash Vasari-Narciso1569-1573

Fig4 ndash Batalha de Issos-auto-retrato de Apelles-Finalseacutec IV aC

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99 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

fontes claacutessicas ndash ter funcionado como aditivo que em jeito de assinatura

sublinharia a importacircncia da obra Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos artiacutesticos da autorrepresentaccedilatildeo autoglori1047297caccedilatildeoVirtuosismo

II Autorretrato e autonomia intelectual do pintor

laquoOGNI DIPINORE DIPINGE SEraquo[13]

Segundo alguns historiadores de arte teraacute sido Martin van Heemskerck(1498-1574) quem teraacute ouvido a expressatildeo que se converteria em adaacutegioldquotodo o pintor se pinta a si mesmordquo [14]

Cabeccedila e matildeo intelectualidade e teacutecnica satildeo as duas faces da mesmaldquomoedardquo metaacutefora do autorretrato e por extensatildeo da criaccedilatildeo visual

No diaacutelogo central que se estabelece entre os dois agentes que satildeo opintor e o modelo haacute uma particularidade no caso do autorretrato modeloe executante satildeo um soacute indiviacuteduo haacute uma unidade na dualidade do diaacutelogondash expressatildeonatildeo expressatildeo conscienteinconsciente ndash que ocorre (supos-

tamente de modo honesto) entre si e si proacuteprio permeabilizado pelo sen-tido de si recircs pontos referenciais pois o ldquoeurdquosujeito o ldquomerdquore1047298exivo e otrabalho criativo ou por outras palavras um dos fatores determinantes naautorrepresentaccedilatildeo visual seraacute o modo como o autor concebe e constroacutei asrelaccedilotildees estabelecidas entre as trecircs referecircncias

Se o desenho implica um diaacutelogo entre o artista e a obra enquanto quea pintura eacute o resultado de uma re1047298exatildeo mais aprofundada ateacute que ponto sepode interpretar a autoimagem como ressonacircncia da subjetividade do artistacriador Quais os limites para a dinacircmica da estrateacutegia interpretativa ldquolaquoA

Pintura eacute uma ocupaccedilatildeo mentalraquo ( pittura eacute cosa mentale) escreveu Leonardoda Vinci e Miguel Acircngelo permaneceu igualmente 1047297rme laquonoacutes pintamoscom o nosso ceacuterebro natildeo com as nossas matildeosraquo (si dispinge col ciervello et noncom le mani) (hellip) Vasari sustentou que soacute uma laquomatildeo treinadaraquo podia mediara ideia nascida no intelecto ou como Miguel Acircngelo colocou num famososoneto laquoa matildeo que obedece ao intelectoraquo (la man che ubbidisce allrsquointelletto)ndash por outras palavras a laquomatildeo instruiacutedaraquo (docta manus) que Nicola Pisano

13 Armaccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda a Cosme de Meacutedicis (seacutec XV) eacute citada por FranciscoCalvo Serraller Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Espantildeol Contemporaneo in

El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDAMadrid 1994 p 13

14 Cfr Victor I Stoichita ob cit p 91 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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100 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

tinha reivindicado possuir trecircs seacuteculos antes (hellip) laquoHabbiamo da parlare con

le maniraquo Annibale Carracci eacute suposto ter dito cerca de 1590 (hellip)rdquo[15]A autorretratiacutestica autoacutenoma desenvolve-se no seacuteculo XVI parale-

lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para ascortes principescas altamente competitivas na promoccedilatildeo de uma culturacortesatilde personalizada e digna Nessa medida as autoimagens dos pintoresndash e outros artistas ndash podem ser interpretadas como celebraccedilotildees proacutepriasdas suas vidas pessoais estrateacutegia para ampliar o reconhecimento social daposiccedilatildeo conseguida por meacuterito artiacutestico

Da Antiguidade Claacutessica prolongando-se

durante a medievalidade chegaram ateacute noacutesobras em que a imagem do autor pode serinterpretada como um substituto da assina-tura daquele prevalecendo a associaccedilatildeo daimagem agrave sua autoria sobre a exigecircncia derigor no traccedilado das reais linhas do rostodeste modo se descurando a questatildeo teoacutericada semelhanccedila

Ru1047297llos (c 1150-1200) monge do mos-

teiro de Weissenau e iluminador ceacutelebreautorrepresentou-se pintando-se no inte-rior do R do ldquoSalteacuterio de Genebrardquo (Fig 5)sentado a pintar e ilustrando a cena com osinstrumentos do ofiacutecio e recipientes de coresnecessaacuterias agrave praacutetica pictural odavia apesardo retrato em si mesmo exibir traccedilos realis-tas e algum esmero na execuccedilatildeo natildeo se trataainda de uma identidade individual espe-

ciacute1047297ca de um indiviacuteduo ndash que eacute diferente docaraacuteter geneacuterico sendo este afeto ao geacutenero enatildeo ao indiviacuteduo ndash e como tal natildeo integra aclassi1047297caccedilatildeo de um verdadeiro autorretratoA identidade indica uma referecircncia comum etransversal na representaccedilatildeo ou seja a rela-ccedilatildeo de pertenccedila do indiviacuteduo a um determi-nado corpo social ou congregaccedilatildeo

15 Joanna Woods-Marsden Renaissance Self-Portraiture Yale University Press New Haven ampLondon 1998 p 4

Fig 5 ndash Rufillus de Weissnau Enlu-minure Vitae Sanctorum c 1150-1200

Fig6 ndash Peter Parler Autorretrato C1370-1379 Praga Catedral S Vito

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 6: Maria Pacheco

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98 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

dois mitos de Dibutades e de Narciso

decorre a inscriccedilatildeo da origem do traccedilo(desenho) da pintura (sombramancha)e da proacutepria imagem (imago) na Histoacuteriada Arte

No fresco sobre ldquoA Origem da Pin-turardquo (1569-1573) que Vasari (1511--1574) incorporou na sua ldquoCasa Vasarirdquoem Florenccedila pode-se observar o recursoa sombra plena e de1047297nida

Momentos distintos ndash Dibutades eNarciso ndash visotildees a1047297nal muito proacuteximasretomados nos seacuteculos seguintes comometaacutefora da pintura sempre nas adja-cecircncias do proacuteprio autorretrato

ldquoA batalha de Issosrdquo pintura muraldo 1047297nal do seacuteculo IV aC[11] comemo-rando a vitoacuteria de Alexandre o Grandesobre Dario (rei da Peacutersia) para aleacutem da

rigorosa caracterizaccedilatildeo fiacutesica e psicoloacute-gica de cada uma das personagens ndash incluindo os dois protagonistas ndash ilus-tra a re1047298exatildeo de um rosto no escudo de um dos combatentes cuja imagem

reuacutene fortes probabilidades deser um autorretrato de Apellesretratista o1047297cial preferido deAlexandre[12]

Sendo ldquoA batalha de Issosrdquouma obra-prima que celebra

os feitos e a grandeza da cul-tura heleniacutestica natildeo seraacute difiacutecilaceitar a tese do autorretratodo principal pintor o1047297cial ndashde cujo registo datildeo notiacutecia as

11 Chegou ateacute noacutes uma coacutepia em mosaico dessa pintura mural do nal do seacutec IV aC prove-niente da Casa do Fauno em Pompeia hoje no Museu Nacional de Naacutepoles com a L de 582me Alt de 313m

12 Vide Geoffroy Caillet A la cour des arts orissants in ldquo Le Figaro hors-seacuterierdquo 3657 Octobre2011 pp 79 a 85 Conforme refere Caillet a identicaccedilatildeo do autorretrato de Apelles coloca emquestatildeo a atribuiccedilatildeo tradicional do mosaico grego a Philoxeacutenos de Eritreia

Fig3 ndash Vasari-Narciso1569-1573

Fig4 ndash Batalha de Issos-auto-retrato de Apelles-Finalseacutec IV aC

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99 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

fontes claacutessicas ndash ter funcionado como aditivo que em jeito de assinatura

sublinharia a importacircncia da obra Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos artiacutesticos da autorrepresentaccedilatildeo autoglori1047297caccedilatildeoVirtuosismo

II Autorretrato e autonomia intelectual do pintor

laquoOGNI DIPINORE DIPINGE SEraquo[13]

Segundo alguns historiadores de arte teraacute sido Martin van Heemskerck(1498-1574) quem teraacute ouvido a expressatildeo que se converteria em adaacutegioldquotodo o pintor se pinta a si mesmordquo [14]

Cabeccedila e matildeo intelectualidade e teacutecnica satildeo as duas faces da mesmaldquomoedardquo metaacutefora do autorretrato e por extensatildeo da criaccedilatildeo visual

No diaacutelogo central que se estabelece entre os dois agentes que satildeo opintor e o modelo haacute uma particularidade no caso do autorretrato modeloe executante satildeo um soacute indiviacuteduo haacute uma unidade na dualidade do diaacutelogondash expressatildeonatildeo expressatildeo conscienteinconsciente ndash que ocorre (supos-

tamente de modo honesto) entre si e si proacuteprio permeabilizado pelo sen-tido de si recircs pontos referenciais pois o ldquoeurdquosujeito o ldquomerdquore1047298exivo e otrabalho criativo ou por outras palavras um dos fatores determinantes naautorrepresentaccedilatildeo visual seraacute o modo como o autor concebe e constroacutei asrelaccedilotildees estabelecidas entre as trecircs referecircncias

Se o desenho implica um diaacutelogo entre o artista e a obra enquanto quea pintura eacute o resultado de uma re1047298exatildeo mais aprofundada ateacute que ponto sepode interpretar a autoimagem como ressonacircncia da subjetividade do artistacriador Quais os limites para a dinacircmica da estrateacutegia interpretativa ldquolaquoA

Pintura eacute uma ocupaccedilatildeo mentalraquo ( pittura eacute cosa mentale) escreveu Leonardoda Vinci e Miguel Acircngelo permaneceu igualmente 1047297rme laquonoacutes pintamoscom o nosso ceacuterebro natildeo com as nossas matildeosraquo (si dispinge col ciervello et noncom le mani) (hellip) Vasari sustentou que soacute uma laquomatildeo treinadaraquo podia mediara ideia nascida no intelecto ou como Miguel Acircngelo colocou num famososoneto laquoa matildeo que obedece ao intelectoraquo (la man che ubbidisce allrsquointelletto)ndash por outras palavras a laquomatildeo instruiacutedaraquo (docta manus) que Nicola Pisano

13 Armaccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda a Cosme de Meacutedicis (seacutec XV) eacute citada por FranciscoCalvo Serraller Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Espantildeol Contemporaneo in

El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDAMadrid 1994 p 13

14 Cfr Victor I Stoichita ob cit p 91 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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100 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

tinha reivindicado possuir trecircs seacuteculos antes (hellip) laquoHabbiamo da parlare con

le maniraquo Annibale Carracci eacute suposto ter dito cerca de 1590 (hellip)rdquo[15]A autorretratiacutestica autoacutenoma desenvolve-se no seacuteculo XVI parale-

lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para ascortes principescas altamente competitivas na promoccedilatildeo de uma culturacortesatilde personalizada e digna Nessa medida as autoimagens dos pintoresndash e outros artistas ndash podem ser interpretadas como celebraccedilotildees proacutepriasdas suas vidas pessoais estrateacutegia para ampliar o reconhecimento social daposiccedilatildeo conseguida por meacuterito artiacutestico

Da Antiguidade Claacutessica prolongando-se

durante a medievalidade chegaram ateacute noacutesobras em que a imagem do autor pode serinterpretada como um substituto da assina-tura daquele prevalecendo a associaccedilatildeo daimagem agrave sua autoria sobre a exigecircncia derigor no traccedilado das reais linhas do rostodeste modo se descurando a questatildeo teoacutericada semelhanccedila

Ru1047297llos (c 1150-1200) monge do mos-

teiro de Weissenau e iluminador ceacutelebreautorrepresentou-se pintando-se no inte-rior do R do ldquoSalteacuterio de Genebrardquo (Fig 5)sentado a pintar e ilustrando a cena com osinstrumentos do ofiacutecio e recipientes de coresnecessaacuterias agrave praacutetica pictural odavia apesardo retrato em si mesmo exibir traccedilos realis-tas e algum esmero na execuccedilatildeo natildeo se trataainda de uma identidade individual espe-

ciacute1047297ca de um indiviacuteduo ndash que eacute diferente docaraacuteter geneacuterico sendo este afeto ao geacutenero enatildeo ao indiviacuteduo ndash e como tal natildeo integra aclassi1047297caccedilatildeo de um verdadeiro autorretratoA identidade indica uma referecircncia comum etransversal na representaccedilatildeo ou seja a rela-ccedilatildeo de pertenccedila do indiviacuteduo a um determi-nado corpo social ou congregaccedilatildeo

15 Joanna Woods-Marsden Renaissance Self-Portraiture Yale University Press New Haven ampLondon 1998 p 4

Fig 5 ndash Rufillus de Weissnau Enlu-minure Vitae Sanctorum c 1150-1200

Fig6 ndash Peter Parler Autorretrato C1370-1379 Praga Catedral S Vito

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

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C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

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Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

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V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 7: Maria Pacheco

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99 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

fontes claacutessicas ndash ter funcionado como aditivo que em jeito de assinatura

sublinharia a importacircncia da obra Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos artiacutesticos da autorrepresentaccedilatildeo autoglori1047297caccedilatildeoVirtuosismo

II Autorretrato e autonomia intelectual do pintor

laquoOGNI DIPINORE DIPINGE SEraquo[13]

Segundo alguns historiadores de arte teraacute sido Martin van Heemskerck(1498-1574) quem teraacute ouvido a expressatildeo que se converteria em adaacutegioldquotodo o pintor se pinta a si mesmordquo [14]

Cabeccedila e matildeo intelectualidade e teacutecnica satildeo as duas faces da mesmaldquomoedardquo metaacutefora do autorretrato e por extensatildeo da criaccedilatildeo visual

No diaacutelogo central que se estabelece entre os dois agentes que satildeo opintor e o modelo haacute uma particularidade no caso do autorretrato modeloe executante satildeo um soacute indiviacuteduo haacute uma unidade na dualidade do diaacutelogondash expressatildeonatildeo expressatildeo conscienteinconsciente ndash que ocorre (supos-

tamente de modo honesto) entre si e si proacuteprio permeabilizado pelo sen-tido de si recircs pontos referenciais pois o ldquoeurdquosujeito o ldquomerdquore1047298exivo e otrabalho criativo ou por outras palavras um dos fatores determinantes naautorrepresentaccedilatildeo visual seraacute o modo como o autor concebe e constroacutei asrelaccedilotildees estabelecidas entre as trecircs referecircncias

Se o desenho implica um diaacutelogo entre o artista e a obra enquanto quea pintura eacute o resultado de uma re1047298exatildeo mais aprofundada ateacute que ponto sepode interpretar a autoimagem como ressonacircncia da subjetividade do artistacriador Quais os limites para a dinacircmica da estrateacutegia interpretativa ldquolaquoA

Pintura eacute uma ocupaccedilatildeo mentalraquo ( pittura eacute cosa mentale) escreveu Leonardoda Vinci e Miguel Acircngelo permaneceu igualmente 1047297rme laquonoacutes pintamoscom o nosso ceacuterebro natildeo com as nossas matildeosraquo (si dispinge col ciervello et noncom le mani) (hellip) Vasari sustentou que soacute uma laquomatildeo treinadaraquo podia mediara ideia nascida no intelecto ou como Miguel Acircngelo colocou num famososoneto laquoa matildeo que obedece ao intelectoraquo (la man che ubbidisce allrsquointelletto)ndash por outras palavras a laquomatildeo instruiacutedaraquo (docta manus) que Nicola Pisano

13 Armaccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda a Cosme de Meacutedicis (seacutec XV) eacute citada por FranciscoCalvo Serraller Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Espantildeol Contemporaneo in

El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDAMadrid 1994 p 13

14 Cfr Victor I Stoichita ob cit p 91 (traduccedilatildeo da responsabilidade da autora)

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100 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

tinha reivindicado possuir trecircs seacuteculos antes (hellip) laquoHabbiamo da parlare con

le maniraquo Annibale Carracci eacute suposto ter dito cerca de 1590 (hellip)rdquo[15]A autorretratiacutestica autoacutenoma desenvolve-se no seacuteculo XVI parale-

lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para ascortes principescas altamente competitivas na promoccedilatildeo de uma culturacortesatilde personalizada e digna Nessa medida as autoimagens dos pintoresndash e outros artistas ndash podem ser interpretadas como celebraccedilotildees proacutepriasdas suas vidas pessoais estrateacutegia para ampliar o reconhecimento social daposiccedilatildeo conseguida por meacuterito artiacutestico

Da Antiguidade Claacutessica prolongando-se

durante a medievalidade chegaram ateacute noacutesobras em que a imagem do autor pode serinterpretada como um substituto da assina-tura daquele prevalecendo a associaccedilatildeo daimagem agrave sua autoria sobre a exigecircncia derigor no traccedilado das reais linhas do rostodeste modo se descurando a questatildeo teoacutericada semelhanccedila

Ru1047297llos (c 1150-1200) monge do mos-

teiro de Weissenau e iluminador ceacutelebreautorrepresentou-se pintando-se no inte-rior do R do ldquoSalteacuterio de Genebrardquo (Fig 5)sentado a pintar e ilustrando a cena com osinstrumentos do ofiacutecio e recipientes de coresnecessaacuterias agrave praacutetica pictural odavia apesardo retrato em si mesmo exibir traccedilos realis-tas e algum esmero na execuccedilatildeo natildeo se trataainda de uma identidade individual espe-

ciacute1047297ca de um indiviacuteduo ndash que eacute diferente docaraacuteter geneacuterico sendo este afeto ao geacutenero enatildeo ao indiviacuteduo ndash e como tal natildeo integra aclassi1047297caccedilatildeo de um verdadeiro autorretratoA identidade indica uma referecircncia comum etransversal na representaccedilatildeo ou seja a rela-ccedilatildeo de pertenccedila do indiviacuteduo a um determi-nado corpo social ou congregaccedilatildeo

15 Joanna Woods-Marsden Renaissance Self-Portraiture Yale University Press New Haven ampLondon 1998 p 4

Fig 5 ndash Rufillus de Weissnau Enlu-minure Vitae Sanctorum c 1150-1200

Fig6 ndash Peter Parler Autorretrato C1370-1379 Praga Catedral S Vito

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

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100 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

tinha reivindicado possuir trecircs seacuteculos antes (hellip) laquoHabbiamo da parlare con

le maniraquo Annibale Carracci eacute suposto ter dito cerca de 1590 (hellip)rdquo[15]A autorretratiacutestica autoacutenoma desenvolve-se no seacuteculo XVI parale-

lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para ascortes principescas altamente competitivas na promoccedilatildeo de uma culturacortesatilde personalizada e digna Nessa medida as autoimagens dos pintoresndash e outros artistas ndash podem ser interpretadas como celebraccedilotildees proacutepriasdas suas vidas pessoais estrateacutegia para ampliar o reconhecimento social daposiccedilatildeo conseguida por meacuterito artiacutestico

Da Antiguidade Claacutessica prolongando-se

durante a medievalidade chegaram ateacute noacutesobras em que a imagem do autor pode serinterpretada como um substituto da assina-tura daquele prevalecendo a associaccedilatildeo daimagem agrave sua autoria sobre a exigecircncia derigor no traccedilado das reais linhas do rostodeste modo se descurando a questatildeo teoacutericada semelhanccedila

Ru1047297llos (c 1150-1200) monge do mos-

teiro de Weissenau e iluminador ceacutelebreautorrepresentou-se pintando-se no inte-rior do R do ldquoSalteacuterio de Genebrardquo (Fig 5)sentado a pintar e ilustrando a cena com osinstrumentos do ofiacutecio e recipientes de coresnecessaacuterias agrave praacutetica pictural odavia apesardo retrato em si mesmo exibir traccedilos realis-tas e algum esmero na execuccedilatildeo natildeo se trataainda de uma identidade individual espe-

ciacute1047297ca de um indiviacuteduo ndash que eacute diferente docaraacuteter geneacuterico sendo este afeto ao geacutenero enatildeo ao indiviacuteduo ndash e como tal natildeo integra aclassi1047297caccedilatildeo de um verdadeiro autorretratoA identidade indica uma referecircncia comum etransversal na representaccedilatildeo ou seja a rela-ccedilatildeo de pertenccedila do indiviacuteduo a um determi-nado corpo social ou congregaccedilatildeo

15 Joanna Woods-Marsden Renaissance Self-Portraiture Yale University Press New Haven ampLondon 1998 p 4

Fig 5 ndash Rufillus de Weissnau Enlu-minure Vitae Sanctorum c 1150-1200

Fig6 ndash Peter Parler Autorretrato C1370-1379 Praga Catedral S Vito

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

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Page 9: Maria Pacheco

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101 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Sendo certo que existe algum consenso relativamente agrave emergecircncia

do autorretrato independente no seacuteculo XV na Itaacutelia e na Flandres emesmo considerando que aquela que eacute hoje a mais antiga e mais impor-tante coleccedilatildeo de autorretratos do mundo ndash com cerca de 1650 exemplaresndash teraacute sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617--1675)[16] haacute que reconhecer que jaacute no 1047297nal da Idade Meacutedia a a1047297rmaccedilatildeode uma identidade de partilha e de pertenccedila a um grupo com interessessoacutecio-corporativos em comum se veri1047297cara ndash o escultor da regiatildeo alematildede Souabe (antiga Checoslovaacutequia) Peter Parler (1330-1399) colocou oseu proacuteprio busto no trifoacuterio da Catedral de Praga (c 1370-1379) entre

os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados agrave construccedilatildeo do edi-fiacutecio (Fig 6)

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estrateacutegia semelhante agravede Peter Parler ao esculpir o seu busto em bronze na ldquoPorta do Paraiacutesordquo(1447-1448) do Batisteacuterio de Florenccedila colocando a sua assinaturaimagemagrave margem das cenas historiadas no rebordo da porta atraveacutes da estrateacutegiade inscriccedilatildeo do busto num medalhatildeo retomando a tradiccedilatildeo da estatuaacuteriaantiga ndash que reservava este cariz de representaccedilatildeo aos deuses e depois aosimperadores romanos ndash em associaccedilatildeo com a necessidade de a1047297rmaccedilatildeo da

sua dignidade pro1047297ssionalNestas circunstacircncias interessaraacute agrave abordagem do autorretrato inde-

pendente a identidade que referencia as qualidades caracteriacutesticas indi- viduais ou seja o conjunto de indicadores de caraacuteter particular queremetem para a semelhanccedila com o proacuteprio indiviacuteduo assim propiciandoa identi1047297caccedilatildeo do modelo com o sujeito ao qual estaacute subjacente um ato deintenccedilatildeo no registo da autoimagem consentidamente oferecida agrave visua-lidade

Na autorretratiacutestica renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma

produccedilatildeo em que ldquoOs autorretratos autoacutenomos eram muitos deles traba-lhos acabados dirigidos a uma audiecircncia que ultrapassava o ciacuterculo ime-diato da famiacutelia ou dos companheiros de ofiacuteciordquo[17]

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centroda composiccedilatildeo de ldquoO Cortejo dos Magosrdquo (1459) Florenccedila Capela Palaacutecio

16 ldquo(hellip) que comeccedilou um esforccedilo sistemaacutetico de adquirir e expor retratos dos artistas que criaramas pinturas que os Medici com a sua paixatildeo por colecionarem tinham acumulado nas residecircn-cias dos seus familiaresrdquo ndash Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf zi Collection

GIUNTI Firenzi Musei 2011 (1ordf ediccedilatildeo 2008) p 5 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autorado presente estudo)

17 JWoods-Marsden ob cit p 2 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Lisboa

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Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

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2011 pp 79 a 85

Page 10: Maria Pacheco

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102 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Meacutedici dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome

no gorro vermelho que exibe na cabeccedila Se for considerada a hipoacutetese deter sido dada continuidade agrave heranccedila da Antiguidade a imagem do pintorcolocada no seio da sua proacutepria obra poderaacute ser entendida como um subs-tituto da sua assinatura

O pintor dissimulou a proacutepria imagem entre as muacuteltiplas personagensna dupla condiccedilatildeo de participante1047297gurante e de espectador da cena queintegra trata-se de um autorretrato dissimulado ldquoin assistenzardquo

A estrateacutegia idecircntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510) em ldquoAdo-raccedilatildeo dos Magosrdquo (1475) Galeria Uffi zi Florenccedila integrando a composiccedilatildeo

como um 1047297gurante da assistecircncia dissimulado em evento que mobilizavaum nuacutemero consideraacutevel de participantes O esquema da personagem cor-respondente ao autorretrato dirigindo o olhar para o observador a par doporte majestaacutetico da 1047297gura de corpo inteiro exibindo uma toga de tona-lidade amarelada indiciam a consciecircncia da dignidade da representaccedilatildeo

veiculada pelo pintorAlbrecht Duumlrer (1471-1528) apresenta ao espectador num dos muitos

autorretratos que registou um enfoque nas duas vertentes que contribuiacute-ram para o reconhecimento e emancipaccedilatildeo do estatuto social do pintor e da

proacutepria autorretratiacutestica uma visatildeo intelectual a par da destreza e da habi-lidade manual No ldquoAutorretrato com pelerdquo (1500) Alta Pinacoteca Muni-que Duumlrer entrega-se a um exerciacutecio de periacutecia no escrutiacutenio do rostoconcentrando-se no olhar ndash dirigido para o observador ndash intenso tradutorde uma profundidade espiritual inequiacutevoca

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na ldquoEscola de Atenasrdquo (1510--1511) Palaacutecio do Vaticano Romano papel de ldquoadmonitorerdquonarradorcomentador (que adverte) para a cena apresentada o olhar apela convidaa seguir a conduccedilatildeo proposta dissuade pela sua intensidade a ameaccedila de

qualquer outra via interpretativa rata-se de um exerciacutecio de guia para aleitura do quadro surgindo o pintorartista como testemunho irrefutaacutevelO espectador eacute interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor doespaccedilo pictural onde a histoacuteria se processa convidando-o a entrar nela e aaderir ao enunciado

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

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103 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

III Vivecircncias atraveacutes do autorretratoagrave descoberta de si ou a matildeo como fala

Espelho e intimismo autorretrato metaacute-fora e complexidade como tal estrateacutegiade leitura se aplica ao autorretrato de Fran-cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503--1540) de 1524 intitulado ldquoAutorretratonum Espelho Convexordquo (Fig 7)

Subtileza teacutecnica e efeitos bizarros

contribuem para a qualidade deste autor-retrato onde cada detalhe re1047298etido luzes esombras acentuam a naturalidade da cena(de evidente originalidade na eacutepoca) indi-ciadora de um intelecto complexo e extra-ordinariamente criativo Refere Joanna

Woods-Marsden a propoacutesito desta obra ldquoNo centro do compartimentoe da obra de arte o autorretratista estaacute vestido como um nobre cortesatildeoem pele e cambraia e a sua matildeo transformada em qualquer coisa diluiacuteda

branca e aristocraacutetica estaacute adornada com um anel de ourordquo[18]Seguindo o princiacutepio de que os dois principais centros de interesse

em qualquer retrato satildeo a sua cabeccedila e as matildeos natildeo pode a interpretaccedilatildeocircunscrever-se agrave linearidade a cabeccedila qual metaacutefora do intelecto geradorda conceccedilatildeo e a matildeo que executa que concretiza a ideia do pintor que de simesmo eacute modelo sublinham o exerciacutecio de virtuosismo apresentado

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autoacutenomo italiano pin-tado no interior de um tondo as conotaccedilotildees satildeo ainda potenciadoras deoutros diaacutelogos e interpretaccedilotildees A lembranccedila da tradiccedilatildeo dos autorretratos

contidos em medalhas pela circularidade as formas curvas e esfeacutericas e ociacuterculo tidos como geometricamente de grande perfeiccedilatildeo remetendo paraa formataccedilatildeo e representaccedilatildeo das esferas terrestre e celestial ndash ldquoNa verdadea cabeccedila esfeacuterica de Parmigianino dentro do trabalho laquoesfeacutericoraquo virando--se no interior da sua estrutura circular evoca uma analogia entre macro-cosmo e microcosmo a estrutura do cosmos e a da cabeccedila humana aquicolocada como foco central da composiccedilatildeo e do artefactordquo[19]

Denotando uma profunda autoconsciecircncia relativamente ao estatutoartiacutestico e social do pintor neste autorretrato a matildeo eacute assumida como atri-

18 Ob cit p 133 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

19 Idem ibidem p 137 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presente estudo)

Fig 7 ndash Francesco Mazzola dito O Par-mesiano Autorretrato 1524 Viena

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

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104 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criaccedilatildeo visual (aqui entendida como associaccedilatildeo do

intelectual com o pleno domiacutenio da teacutecnica pictural) a qual se celebra demodo fascinante nesta obra

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratoscujo destino generalizado eram patronos interessados a quem eram envia-dos como ofertas dada a barreira de geacutenero que a impedia de entrar emcompeticcedilatildeo de caraacuteter pro1047297ssional com pintores do sexo masculino pagospara executarem trabalhos acertados

Este ldquoAutorretrato ao Cavalete Pintandoum Painel Devocionalrdquo (1556) (Fig 8)

pode contextualizar-se numa perspetivade autopromoccedilatildeo em que a artista noato de pintar eacute simultaneamente assuntoe objeto autora e modelo segurandocom delicadeza os instrumentos da Pin-tura pincel tento e paleta sobre a prate-leira do cavalete Curiosamente eacute nodecurso da segunda metade deste mesmoseacuteculo XVI que os pintores reivindicam

o seu estatuto pro1047297ssional com recursoagraves ferramentas do seu ofiacutecio

Clara Peeters (1594-1657) autorre-tratou-se col privada cerca de 1610sob o tiacutetulo sugestivo de ldquoVanitasrdquo oua morte como argumento no autorre-

trato A 1047297guraccedilatildeo da natureza-morta segundo o princiacutepio de oposiccedilatildeo entreo sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante e o seu contraacute-rio o sentimento do efeacutemero e transitoacuterio Nesse conjunto de elementos da

natureza que progressivamente se vai degradando se incluem a juventudee a beleza feminina e como tal tais motivos incorporam tambeacutem o temada ldquoVanitasrdquo

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado ldquoAuto-Retrato como Alegoria da Pinturardquo (1638-1639) Royal Collection Lon-dresd 1047297lia-se na reivindicaccedilatildeo do estatuto intelectual da artista enquantopintora ou por outras palavras a personi1047297caccedilatildeo feminina da Pintura ea identi1047297caccedilatildeo direta da artista com a arte a que alude Este autorretratorepresenta um ato de coragem da parte de uma mulher pintora na medida

em que todo o esquema apresentado representa uma subversatildeo dos valo-res artiacutesticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam

Fig 8 ndash Sofonisba Nguissola Autorretratoem vias de pintar uma Virgem com Meni-no 1556

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

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2011 pp 79 a 85

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105 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

para um plano de passividade o trabalho artiacutestico feminino) reunidos na

dupla dimensatildeo intelectual e manual o arco descrito pela cabeccedila e pelasmatildeos articula metaforicamente ambos os domiacutenios subjacentes agrave execuccedilatildeodo trabalho artiacutestico paralelamente com a 1047297gura eneacutergica e vigorosa quedomina a composiccedilatildeo cuja construccedilatildeo enfatiza a a1047297rmaccedilatildeo da criatividadeda pintora O acroacutenimo AGF colocado sob a paleta sublinha a tenacidadedesa1047297adora e a 1047297rmeza da sua atitude num meio artiacutestico adverso

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-duziu cobrindo a sua carreira artiacutestica de mais de quarenta anos Esta obrasob a designaccedilatildeo de ldquoAutorretrato como Apoacutestolo Paulordquo de 1661 Amester-

datildeo representa a delegaccedilatildeo do proacuteprio rosto do artista na personagem doApoacutestolo Paulo podendo suscitar a interrogaccedilatildeo sobre a eventual identi1047297-caccedilatildeo do pintor com uma das 1047297guras mais marcantes do primeiro cristia-nismo Eacute poreacutem pelo poder da expressatildeo surpreendente pela sinceridadeeloquente do semblante e pela teacutecnica que este autorretrato se distinguesendo notoacuterias as carnaccedilotildees e os efeitos da luz e da sombra sobre fundoneutro O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretaccedilatildeo deque Rembrandt natildeo pretendeu personi1047297car a sua eacutepoca antes privilegiandouma grande complexidade afetiva espiritual e humaniacutestica e evidenciando

caracteriacutesticas de profundo intimismo e de forte penetraccedilatildeo psicoloacutegicaSendo certo que esta uacuteltima noccedilatildeo era desconhecida no seacuteculo XVII natildeoseraacute de estranhar a primazia concedida agrave semelhanccedilaparecenccedila para aqual concorria obviamente a execuccedilatildeo manual extremamente cuidada

No beliacutessimo ldquoAutorretratordquo a frac34 que se encontra na Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian (c 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto atraveacutes de uma ima-gem puacuteblica como personagem romacircntica e simultaneamente protagonistada modernidade do tempo em que vivia Eacute uma obra emblemaacutetica con-cebida ainda na tradiccedilatildeo da Renascenccedila mas em que o modelo exibe ves-

tes contemporacircneas assumindo postura de ldquodandyrdquo segurando o chapeacuteuescuro de seda e as luvas de camurccedila em atitude de saudaccedilatildeo ao espectadora quem a sua expressatildeo facial se dirige enfatizada pela teacutecnica de domiacuteniodo espaccedilo pictural atraveacutes do proacuteprio corpo

Sendo a abordagem polisseacutemica da imagem inevitaacutevel a teatralidadesubjacente agrave pose do modelo natildeo deixaraacute de suscitar a metaacutefora da possibi-lidade de associaccedilatildeo da representaccedilatildeo autoconstruiacuteda a um espaccedilo ceacutenicoonde se desenrola o diaacutelogo entre o protagonista e o destinataacuterio especta-dor da accedilatildeo apresentada

No ano imediatamente anterior agrave sua morte o mesmo ano em queentra no sanatoacuterio de Saint-Paul-de-Mausole Saint-Reacutemy-de-Provence

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Lisboa

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

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Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

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Lisboa

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University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 14: Maria Pacheco

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106 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

1889 Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-

tos Museacutee drsquoOrsay Paris cerca de quarenta em menos de cinco anos e maisde vinte nos uacuteltimos dois anos de vida

Um olhar verdadeiro intensamente emocional e 1047297xo em que se adi- vinha uma 1047297rme determinaccedilatildeo e um profundo autoconhecimento satildeocaracteriacutesticas evidenciadas pelo pintor que confessa ao irmatildeo Teacuteo ldquoEuqueria fazer retratos que um seacuteculo depois surgissem agraves pessoas de entatildeocomo apariccedilotildees Portanto eu natildeo procuro fazecirc-lo pela semelhanccedila fotograacute-1047297ca mas pelas nossas expressotildees apaixonadas empregando como meio deexpressatildeo e de exaltaccedilatildeo o caraacuteter da nossa ciecircncia e o gosto moderno da

cor O meu proacuteprio retrato eacute tambeacutem quase assim o azul eacute um azul 1047297no doMidi e o fato eacute em lilaacutes clarordquo[20]

Os olhos que re1047298etem a transparecircncia do sentimento do ldquoeurdquo convertem--se no espelho de projeccedilatildeo do olhar do observador espeacutecie de simbiose queno ato de comoccedilatildeo reconhece a comunhatildeo na dualidade reencontrando afoacutermula ldquoje est un autrerdquohellip

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo deautorrepresentaccedilatildeo acaba a1047297nal por remeter para as inesgotaacuteveis poleacutemi-cas que a produccedilatildeo artiacutestica de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo

ldquoGeacutenio e Loucura - Ningueacutem sabe exatamente de que enfermidade sofriaVan Goghhellip No seacuteculo XIX associava-se com frequecircncia a loucura aogeacutenio criativo e natildeo era raro crer que a intensa sensibilidade de um artistae o aspeto irracional da criaccedilatildeo artiacutestica podiam derivar para alteraccedilotildeesmentais Seguidamente a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram--se desta maneira e deram lugar a muitas especulaccedilotildees sobre a loucurardquo[21]

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881--1973) a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V Praga e outrode 1972Col Privada oacutequio Entre um e outro poderaacute situar-se a trajetoacuteria

da sua vida artiacutestica 1907 eacute o ano de acabamento da pintura emblemaacuteticaldquoLes Demoiselles drsquoAvignonrdquo que marca o nascimento o1047297cial do artista oprimeiro dos dois autorretratos surge pois quando comeccedilou a a1047297rmar asua personalidade pictural e artiacutestica o autorretrato de 1972 teraacute o sidoo uacuteltimo autorretrato de Picasso e uma das uacuteltimas obras que executou

20 Transcrito por Henri Soldani in AAVV Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rem-

brandt agrave Warhol Beaux Arts EacuteditionsTTM Eacuteditions 2009 p 141 (Traduccedilatildeo da responsabili-dade da autora do presente estudo)

21 Cornelia Homburg in Los Tesoros de Vincent Van Gogh traduccedilatildeo em liacutengua espanhola publi-

cada em Barcelona em 2008 por Editors SA Iberlivro - a partir da ediccedilatildeo inglesa de CarltonPublishing Group do mesmo ano - p 47 (Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do presenteestudo)

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

8162019 Maria Pacheco

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

D983141983154983154983145983140983137 Jacques (1999) Meacutemoires drsquoaveugle - Lrsquoautoportrait et autres ruines Reacuteunion

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8162019 Maria Pacheco

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

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Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

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II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 15: Maria Pacheco

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107 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

falecendo no ano seguinte ldquoIn extremisrdquo que longo caminho percorrido

pelo autorretrato entre o rosto-maacutescara (de in1047298uecircncia africana) e o rosto--cracircnio preacute-1047297gurando a morte e o medo do desconhecido E se em 1907quando Picasso tinha 26 anos de idade se pode ainda colocar a questatildeo dasemelhanccedila e as in1047298uecircncias do cubismo em 1972 a autonomia da obra emsi sobrepotildee-se a qualquer referecircncia a uma realidade exterior designada-mente em termos de semelhanccedila

A geometrizaccedilatildeo das formas simpli1047297cadas do rosto de 1907 susten-tando o olhar penetrante e eneacutergico residente na dilataccedilatildeo das pupilas domodelo natildeo deixa de pocircr em causa a noccedilatildeo de semelhanccedila e portanto a

praacutetica da autorrepresentaccedilatildeoNo autorretrato de Picasso pintado a 3 de junho de 1972 os olhos

comeccedilam a sair das oacuterbitas sentimentos de anguacutestia impotecircncia e pavorantecipam a visatildeo da proacutepria morte a qual haveria de acontecer no anoseguinte fechando o ciclo de experiecircncias artiacutesticas protagonizadas pelopintor Inequiacutevoca a sua capacidade de comover o observador testemunhoextraordinariamente humano e intimista de quem sabe que jaacute natildeo se trataapenas de apontar o proacuteprio olhar ao espelho O seu rosto macilento delembranccedila marmoacuterea e olhar petri1047297cado natildeo ilude criador e observador

unem-se numa atitude universal e ancestral de quem sabe que nada maisresta senatildeo a aceitaccedilatildeo da miseraacutevel condiccedilatildeo humana com as suas fragili-dades e limites incontornaacuteveis

IV Para a compreensatildeo do autorretrato em Portugalbreve contextualizaccedilatildeo da sua produccedilatildeo

O primeiro autorretrato (como tal identi1047297cado) de que haacute notiacutecia em Por-tugal estaacute esculpido numa miacutesula ndash de um acircngulo que na Casa do Capiacutetulodo Mosteiro de Stordf Mordf da Vitoacuteria na Batalha serve de suporte ao arran-que das nervuras da aboacutebada ndash representando Mestre Huguet (-1438) quedirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438

A escultura construiacuteda no seacuteculo XV 1047297lia-se na tradiccedilatildeo de a1047297rma-ccedilatildeo de uma identidade de pertenccedila a um grupo pro1047297ssional agrave semelhanccedilada autorrepresentaccedilatildeo de Peter Parler no trifoacuterio da Catedral de Praga (c

1370-1379) Os elementos que identi1047297cam o arquiteto responsaacutevel pelasobras da Batalha (projeto de arquitetura de alccedilada reacutegia) estatildeo bem visiacuteveis

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

Contra-Reforma ndash Caminho 2001 p 157

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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108 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

na 1047297guraccedilatildeo a 1047297gura estaacute de coacutecoras em adaptaccedilatildeo agrave superfiacutecie usa tuacutenica

cintada e chapeacuteu de turbante traccedilado pelo pano pendente conforme vestu-aacuterio do seacuteculo XV exibindo nas matildeos a reacutegua do seu ofiacutecio

A apontada proveniecircncia estrangeira (levantina inglesa irlandesa) deHuguet remete para a in1047298uecircncia exterior e para a permeabilizaccedilatildeo do inter-cacircmbio cultural com uma linguagem artiacutestica proacutexima do dinamismo deoutros centros artiacutesticos europeus sobretudo se for tido em conta o papelda rainha D Filipa de Lencastre na a1047297rmaccedilatildeo da dignidade da Dinastia deAvis bem como a importacircncia da edi1047297caccedilatildeo do Mosteiro na reivindicaccedilatildeoda legitimidade do poder reacutegio

No autorretrato de Huguet estaacute patente que na visibilidade que de siquis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstraccedilatildeo de auto-consciecircncia relativamente agrave sua identidade artiacutestico-pro1047297ssional O sentidoda identidade construiacuteda situa-se nas adjacecircncias da a1047297rmaccedilatildeo individualdo artista e da sua ligaccedilatildeo a uma obra emblemaacutetica referenciada agrave indepen-decircncia de um reino

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se Biblioteca Nacionalde Madrid na uacuteltima imagem de ldquoDe aetatibus mundi imaginesrdquo (fordm 89 R)usada como coacutelofon A autorrepresentaccedilatildeo mostra o artista rodeado pelas trecircs

virtudes teologais Feacute Esperanccedila e Caridade em gesto de oferta do ldquoLivro dasImagens das Idades do Mundordquo agrave fera que representa a Maliacutecia do empo

Imagem emblemaacutetica cuja compreensatildeo passa naturalmente pela mobi-lizaccedilatildeo natildeo soacute da contextualizaccedilatildeo da representaccedilatildeo temaacutetica atributos esigni1047297caccedilatildeo da cena como pela caracterizaccedilatildeo cultural e artiacutestica do proacute-prio autorretratado

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e porque Deuseacute a primeira causa de todas as formas de existecircncia eacute tambeacutem a uacutenica fontede inspiraccedilatildeo artiacutestica ldquoA criaccedilatildeo eacute pintura na idecircntica medida em que

pintura eacute criaccedilatildeo de mundos (hellip) A pintura nasce tambeacutem sob o signo damarca individualrdquo[22]

No espaccedilo de representaccedilatildeo do autorretrato as virtudes da Feacute no Cris-tianismo representado no atributo da cruz a Caridade com a mensagemda generosidade e a Esperanccedila no triunfo dos valores do Antigo protegemda fuacuteria da destruiccedilatildeo evidenciada pela fera Maliacutecia do empo a obra doartista que entre matildeos a segura implorando a proteccedilatildeo do castigo divinocontra a ameaccedila iminente e insensiacutevel dos viacutecios simbolizados no animal

22 Adriana Veriacutessimo Serratildeo Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e XVII in Histoacute-ria do Pensamento Filosoacute co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol II ndash Renascimento e

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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Referecircncias

Livros

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AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

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109 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

contra o engenho e a criaccedilatildeo do artista que no cenaacuterio tradutor da men-

sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-trato Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagemligada agrave obra produzida na dupla qualidade de humanista e de artista

O autorretrato que se segue Museu Gratildeo-Vasco Viseu insere-se noretaacutebulo subordinado ao tema ldquoCristo em Casa de Marta e Mariardquo (c 1535--1540) hoje no Museu de Gratildeo Vasco mas proveniente da capela de StordfMarta do Paccedilo Episcopal de Fontelo encomendado c de 1530 por DomMiguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integrama arquitetura) bispo de Viseu ndash reconhecido humanista que foi embaixador

de Portugal em Roma entre 1515 e 1525 no tempo de Leatildeo X Adriano VIe Clemente VII de quem era amigo proacuteximo ndash e cujo retrato nesta obra foiidenti1047297cado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-lidade sentada agrave mesa com Cristo

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Gratildeo Vasco (c 1475-1541-1542) e Gas-par Vaz (seacutec XVXVI) como responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do retaacutebulo[23]

A temaacutetica da obra indicada no proacuteprio tiacutetulo remete para o texto evan-geacutelico de S Lucas[24] A accedilatildeo centralizada em Cristo passa-se em cenaacuterioostensivamente domeacutestico entre arquiteturas claacutessicas e janelas em trompe

lrsquooeil abrindo signi1047297cativamente a accedilatildeo para o exterior do espaccedilo picturalA linguagem dos gestos supre a das palavras Marta voltada para Cristoestende a matildeo em direccedilatildeo a Maria por sua vez em atitude contemplativa

Emblematicamente disfarccedilada no ambiente religioso e simboacutelico a1047297gura do pintor que nela se autorretrata ndash sendo suposto tratar-se de Gas-par Vaz ndash quis deixar o seu registoassinatura nessa obra ecleacutetica e de enco-menda notaacutevel saiacuteda da o1047297cina de Viseu sob orientaccedilatildeo artiacutestica de GratildeoVasco Identi1047297cado pelo barrete do ofiacutecio de pintor o rosto emergente e oolhar dirigido para a parte central da cena a matildeo bem visiacutevel sobre uma das

colunas insinua-se sem se introduzir na accedilatildeo qual 1047297gura de convite queconduz e orienta o olhar do observador direcionando-o para a 1047297gura deCristo cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristatilde da necessidadeda primazia da palavra de Deus sobre as preocupaccedilotildees terrenas Eacute o admo-nitore lembrando a condiccedilatildeo humana

23 Vide Dalila Rodrigues Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa 2007 p 31

24 Quando caminhava Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu -o nasua casa Tinha uma irmatilde Maria a qual se sentou aos peacutes de Cristo enquanto escutava a Sua

palavra Atarefada com o trabalho Marta perguntou a Jesus se natildeo O preocupava a irmatilde natildeo a

ajudar ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas mas que poucassatildeo necessaacuterias ou melhor uma soacute e que Maria tinha escolhido a melhor parte que natildeo lheseria arrebatada

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Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

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2011 pp 79 a 85

Page 18: Maria Pacheco

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110 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Fernatildeo Gomes (1548-1612) utiliza recurso idecircntico em 1590 ao pintar

o seu autorretrato na ldquoAscensatildeo de Cristordquo Museu de Arte Sacra do Fun-chal dirigindo o olhar para o exterior do espaccedilo de representaccedilatildeo em dire-ccedilatildeo ao olhar do observador A matildeo direita sublinha a intencionalidade defocalizaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo divina enquanto que a sua 1047297sionomia atrai aatenccedilatildeo pela singularidade e individualizaccedilatildeo dos traccedilos distintos da idea-lizaccedilatildeo das outras personagens

Giraldo de Prado ou Giraldo Fernandes do Prado (1535-1592) ldquoEm1590 (hellip) ao tempo pintor de oacuteleo e de fresco caliacutegrafo e cavaleiro-1047297dalgode D eodoacutesio II Duque de Braganccedila pintou os paineacuteis do retaacutebulo da

igreja da Misericoacuterdia de Almada por encomenda de ilustres almadenseso entatildeo provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinhordquo[25]No painel central do extenso retaacutebulo alusivo agrave temaacutetica biacuteblica de invoca-ccedilatildeo mariana pinta o seu autorretrato auto-1047297gurandosse como observadorque embora dentro do espaccedilo pictural se posiciona exteriormente agrave cenaprincipal representada no centro do quadro

A colocaccedilatildeo estrateacutegica do autorretratado a dimensatildeo psicoloacutegicaindividualizada da sua expressatildeo remetem para uma postura de a1047297rmaccedilatildeoequivalendo a presenccedila do autor agrave sua assinatura na obra O discurso do

pintor sensiacutevel agrave graciosidade das duas personagens femininas ndash Virgeme Sta Isabel ndash e ao enquadramento destas num espaccedilo de representaccedilatildeode1047297nido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compotildeem o cenaacuteriosublinha a teatralidade da construccedilatildeo do espaccedilo de representaccedilatildeo que coma sua presenccedila assina

Pedro Nunes (1586-1637) mestre eborense de formaccedilatildeo italiana ndashesteve em Roma entre 1609 e 1614 ndash pertenceu agrave uacuteltima geraccedilatildeo de pintoresmaneiristas cuja atividade se veri1047297ca ainda durante o primeiro terccedilo doseacuteculo XVII quando jaacute emergiam propostas estiliacutesticas mais inovadoras e

consentacircneas com o proto-barroco que se expressava em abordagens natu-ralistas

Refere Vitor Serratildeo ldquoEstamos perante um artista plenamente integradondash dir-se-ia que algo anacronicamente dada a eacutepoca avanccedilada em que laborandash nos programas do maneirismo italianizante no sentido laquointelectualraquo dadistorccedilatildeo dos espaccedilos 1047297delidade agrave idea romanista de ambiguidade e capa-cidade de vibrante coloristardquo[26]

25 Vide Alexandre M Flores e Paula A Freitas Costa ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada 2006 p 83

26 Vitor Serratildeo ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa 1986 p 86

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

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111 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Na espetacularidade cenograacute1047297ca da ldquoDescida da Cruzrdquo Capela do Espo-

ratildeo Seacute Catedral de Eacutevora marcada sobretudo pelos efeitos de desequiliacutebriona relaccedilatildeo dos planos e das 1047297guras pelo cromatismo e pelo caracteriacutesticomodelado sobressai uma cabeccedila coberta com barrete vermelho de faixabranca onde se impotildee um olhar expressivo direcionado para o especta-dor enquanto que o indicador da matildeo direita aponta o destinataacuterio do per-curso de leitura a 1047297gura de Cristo siacutembolo da esperanccedila na vida eternaem contraste com essa visatildeo foi colocado em primeiro plano um conjuntode elementos que remetem para a lembranccedila da morte fiacutesica ndash a caveira eos ossos em cruz

O autorretrato de Pedro Nunes como ldquoadmonitorerdquo assim assinandoaquela que eacute tida como a sua obra-prima protagonizando postura exte-rior ao cenaacuterio religioso e ao tempo da narrativa ndash qual ldquoeu 1047297z esta obrardquondash dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-taacuterio conforme o normativo tridentino ldquoEsta notaacutevel composiccedilatildeo roma-nista derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondimas com interpretaccedilatildeo livre arrojada e assaz original marca o cliacutemax danossa pintura da Contra-Maniera integra aleacutem disso o autorretrato doartista em postura de admonitore e testemunho de liberalidaderdquo[27]

O autorretrato de Antoacutenio de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-seno oacuteleo sobre a ldquoChegada de Sta Inecircs de Assis ao Conventordquo (1696-1697)Conv De Sta Clara Eacutevora ema incidente sobre a iconogra1047297a clarissadesenvolvido num quadro de histoacuteria narra os acontecimentos que rodea-ram a histoacuteria da irmatilde de Sta Clara e apresenta uma cena de grande dina-mismo cenograacute1047297co na qual o artista se pintou como 1047297gura secundaacuteriadisfarccedilado ldquoin assistenzardquo odavia a sua 1047297gura de 1047297sionomia extraordina-riamente individualizada destaca-se na cena e interpela o observador paraquem o olhar do pintor dirige o diaacutelogo ndash testemunhando com tal postura

uma notoacuteria autoconsciecircncia relativamente agrave nobreza do seu ofiacutecio e agrave a1047297r-maccedilatildeo do novo estatuto social e pro1047297ssional dos pintores de arteFeacutelix Machado da Silva Castro e Vasconcelos Marquecircs de Montebello(1595-1662) produziu pelo meado de seiscentos (c 1643) um autorretratoque pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretratoindependente (Fig 9)

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nossopaiacutes no seacuteculo XIX encontra na autoimagem do Marquecircs de Montebellouma evidente antecipaccedilatildeo que curiosamente parte de algueacutem que viveu

27 Vitor Serratildeo in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses Lisboa 1995 p 494

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 20: Maria Pacheco

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112 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior

endo sido detentor de diversas comendas esolares no territoacuterio nacional por via deheranccedila materna escolheu o partido e o ser-

viccedilo de Filipe III de Portugal IV de Espanhade quem foi embaixador em Roma Viveu tam-beacutem em Madrid e em Milatildeo e dedicou-se aoensino da pintura sobretudo de retrato emconsequecircncia de ter visto bens con1047297scados noseu paiacutes por se ter posicionado do lado de

EspanhaImporta sublinhar a questatildeo da novidade

(c de 1643) entre noacutes do autorretrato reivin-dicativo de a1047297rmaccedilatildeo pro1047297ssional quandoa coleccedilatildeo de autorretratos da Galeria Uffi zi

constituiacuteda pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675) continuada pelosobrinho Cosme III Gratildeo Duque da oscana (1642-1723) anda o1047297cial-mente associada agrave data de 1681

A iconogra1047297a escolhida pelo Marquecircs de Montebello que se autorre-

presenta como pintor independente rodeado dos 1047297lhos eacute extremamenteoriginal sem paralelo na pintura portuguesa do tempo Pintado a frac34 semi-

voltado para o espectador de peacute e ao cavalete mostrando os instrumentosdo seu ofiacutecio ndash pinceacuteis e paleta ndash os dois 1047297lhos como modelos as inscri-ccedilotildees identi1047297cando o 1047297lho Francisco a 1047297lha Bernarda e ele proacuteprio ndash ldquoFelix

Machado Marques de Montebellordquo ndash todos os elementos apresentados subli-nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid na espe-cialidade da pintura de retrato As insiacutegnias de 1047297dalgo que exibe no peitoacentuam a pose aristocraacutetica Foi feito conde de Amares depois de 1640

rata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemaacutetico

V A pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugalevoluccedilatildeo e reflexatildeo

Em contexto de retrato coletivo de colegas de pro1047297ssatildeo ndash eacute o primeiroretrato de grupo produzido pela pintura portuguesa enquanto testemunhode cumplicidade de um ideaacuterio[28] ndash Joatildeo Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representaccedilatildeo pictural unindo outra geraccedilatildeo de pintores a geraccedilatildeo naturalista have-ria de ser executada por Columbano em 1885 que nela se autorretrata O quadro foi destinado

Fig 9 ndash Marques de Montebelloc 1643-Auto-Retrato

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 21: Maria Pacheco

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113 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

inseriu a sua 1047297gura no quadro ldquoCinco Artistas em Sintrardquo MNAC pin-

tado em plena natureza em 1855 colocando-se em posiccedilatildeo lateral face aogrupo central como 1047297gura secundaacuteria[29] Um outro pequeno grupo for-mado por camponeses curiosos com a teacutecnica artiacutestica pontua a dimensatildeodo grupo central de 1047297gurantes

Para aleacutem de autorretrato reivindicativo de um estatuto soacutecio--pro1047297sssional a que a ainda recente criaccedilatildeo da Academia de Belas-artes(1836) vinha sublinhar a importacircncia este eacute tambeacutem um autorretrato emdisfarce em que o pintor a1047297rma a pertenccedila a um grupo de artistas esteacuteticae ideologicamente representado e geracionalmente cuacutemplice Nesse sen-

tido o autorretrato apresentado representa tambeacutem um siacutembolo da esteacuteticaromacircntica

De Henrique Pousatildeo (1859-1884) umautorretrato executado em 1878 (Fig 10)aos 19 anos de idade portanto obra da

juventude (embora tenha desaparecidoprematuramente com apenas 25 anos)do ano anterior agrave 1047297nalizaccedilatildeo do curso naAcademia Portuense de Belas-Artes e

tambeacutem anterior agrave sua partida para Pariso que viria a suceder em novembro de1880 onde iniciou estudos nos ldquoateliersrdquode Cabanel e de Yvon tendo-se seguidoRoma em novembro de 1881

A expressividade natural e a since-ridade do olhar aliam-se no registo daauto-observaccedilatildeo sendo percetiacuteveis senti-mentos de subjetividade e de a1047297rmaccedilatildeo

pessoal caracteriacutesticos de uma atituderomacircntica

agrave decoraccedilatildeo da cervejaria Leatildeo de Ouro sendo o uacutenico retrato da geraccedilatildeo naturalista que fre-quentava aquele espaccedilo o qual por sua vez serviu de cenaacuterio agrave representaccedilatildeo

29 Refere Joseacute-Augusto Franccedila Perspetiva artiacutestica da histoacuteria do seacuteculo XIX portuguecircs 1979 pp 22-23 a propoacutesito da composiccedilatildeo desta obra ldquoLaacute estatildeo todos os artistas romacircnticos menosum eacute Anunciaccedilatildeo quem toma o centro da composiccedilatildeo no ato de pintar e por detraacutes estaacuteMetrass olhando envolto numa capa (hellip) Ao fundo eneacutergico e pequenino Viacutetor Bastos quefaraacute o monumento a Camotildees sentado no chatildeo modestamente Joseacute Rodrigues que seraacute omodesto retratista da eacutepoca e o pintor dos pobres olhando meio curvado e algo ansioso o

autor do quadro Cristino o contestataacuterio da sua geraccedilatildeo Quem falta eacute Meneses visconderecente (hellip) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado como noutro quadro severicardquo

Fig 10 ndash Henrique Pousatildeo Autorretrato

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 22: Maria Pacheco

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114 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousatildeo eacute um sinal inequiacutevoco de individualismo da ldquoper-

sonardquo que olha o observador eacute um exerciacutecio de puro virtuosismo natildeo haacute naautorrepresentaccedilatildeo indicadores que remetam para reivindicaccedilatildeo de esta-tuto ou de pro1047297ssatildeo tratando-se da construccedilatildeo de um territoacuterio especial asua identidade usado como recurso teacutecnico assim dando razatildeo ao princiacute-pio de que ldquotodos os pintores se pintamrdquo

O paisagista Silva Porto (1850-1893)executou rariacutessimos retratos de simesmo Identi1047297cado[30] como umautorretrato seu de c de 1879 (Fig

11) de meio-corpo a 1047297gura impotildee--se desde logo pela profundidadetraduzida na expressatildeo facial

A observaccedilatildeo devolvida ao espec-tador exprime um caraacuteter intimistae de grande sensibilidade privile-giando serenidade timidez re1047298exatildeo eseriedade 1879 foi o ano de regressodo pintor do pensionato que ganhou

e lhe facultou a realizaccedilatildeo de estudosem Paris e em Roma Sob a orienta-ccedilatildeo de Cabanel Yvon e Daubigny foiadmitido nos ldquosalonsrdquo de 1876 1878

e 1879[31] e neste uacuteltimo ano teraacute conhecido a futura esposa Adelaide ava-res Pereira que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequecircncia

No busto per1047297lado com a cabeccedila ligeiramente voltada a nota porven-tura mais evidente eacute a ausecircncia de coincidecircncia entre os olhares do autor edo espectador qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou

estaacute contida na projeccedilatildeo do seu olhar concentrado num ponto inde1047297nidolocalizado no espaccedilo de inserccedilatildeo do espectador cuja presenccedila sugestiva-mente se indica atraveacutes da direccedilatildeo do olhar autoral

30 Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CMSantareacutemIPPAR CM Porto Santareacutem 1993 pp 88 e 89

31 Visitou ainda a Inglaterra a Beacutelgica Holanda e Espanha e esteve em Capri a cuja luz e regio-nalismo foi extraordinariamente sensiacutevel Apoacutes o regresso em 1879 e por morte de Tomaacutes daAnunciaccedilatildeo ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa

Foi considerado o maior pintor paisagista portuguecircs de todos os tempos32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 ndash Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 89

e 136

Fig 11 ndash Silva Porto Autorretrato C 1879MNAC

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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Page 23: Maria Pacheco

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115 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

rata-se de uma obra construiacuteda na tradiccedilatildeo do autorretrato como

exerciacutecio de auto-observaccedilatildeo na tradiccedilatildeo do Romantismo e que iraacute encon-trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo

Existem vaacuterias autorrepresentaccedilotildees de Columbano Bordalo Pinheiro(1857-1929) a maioria das quais apresentadas em associaccedilatildeo com a praacuteticada pintura Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela emque se autorrepresentou aos 28 anos em 1885 executada em homenagemagrave geraccedilatildeo naturalista ldquoO Grupo do Leatildeordquo MNAC tela destinada a 1047297gu-rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33] Columbanoocupa de peacute junto ao irmatildeo posiccedilatildeo lateral relativamente agrave centralidade da

obra ndash estrategicamente de1047297nida pelo mestre do naturalismo Silva Portondash o caricaturista por excelecircncia da sociedade portuguesa Rafael BordaloPinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demaisretratados) cuja obra de1047297ne uma apreciaccedilatildeo de rara exatidatildeo relativamenteaos Portugueses Signi1047297cativamente ndash Columbano representa a vertenteerudita do entendimento do seu Paiacutes ndash o autorretratado com o seu aspetointelectual acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas coloca-secomo se estivesse de saiacuteda da cena e dos ideais do paisagismo defendidospelo grupo de artistas cujos princiacutepios esteacuteticos epigonalmente haveriam

de continuar no tempo nas proacuteximas geraccedilotildees Columbano era retratistapintor de interiores e a sua autorrepresentaccedilatildeo sublinha esse distancia-mento Eacute evidente a consciecircncia do ato e do espaccedilo da autorrepresentaccedilatildeoo artista estaacute ciente do papel central que o rosto desempenha na de1047297niccedilatildeoda identidade da ldquopersonardquo

No mesmo ano de 1885 quando pintou o ldquoRetrato de D Joseacute PessanhardquoMNAC ndash erudito e criacutetico de arte que escrevera um artigo sobre o artistandash Columbano inscreveu na representaccedilatildeo a sua autoimagem num espelhoconceptualizado como ldquotrompe lrsquooeilrdquo da composiccedilatildeo assim evidenciando

um notaacutevel exerciacutecio de modernidade pictural no tempo artiacutestico nacionale no contexto da produccedilatildeo da autorretratiacutestica no Paiacutes Emblematicamentea encenaccedilatildeo que integra a autoprojeccedilatildeo sobre um dos instrumentos da pro-1047297ssatildeo do pintor converte-se num espaccedilo de ensaio da metaacutefora sustentadaentre a pintura e a criacutetica A autorrepresentaccedilatildeo ganha uma dimensatildeo maisaprofundada em termos de explicitaccedilatildeo do registo da autoanaacutelise e daauto-observaccedilatildeo sublinhando a ausecircncia de constrangimento face agrave apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado sendo a seguinte a identicaccedilatildeo dos retratados Joseacute Malhoa

Moura Giratildeo Rodrigues Vieira Henrique Pinto Joatildeo Vaz Silva Porto Antoacutenio RamalhoRafael Bordalo Pinheiro Cipriano Martins Alberto de Oliveira Ribeiro Cristino Manuel oCriado e o autor da tela Columbano Cfr Maria Emiacutelia Vaz Pacheco ob cit pp 9697

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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EacuteditionsM Eacuteditions

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Lisboa

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

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Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

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Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

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University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

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2011 pp 79 a 85

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116 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

ciaccedilatildeo do objetomateacuteria que eacute a pintura relativamente ao criacutetico de arte

em conformidade a1047297nal com a intransigecircncia que o caracterizou na sualiberdade artiacutestica

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-deixa (1857-1913) Os estudos realizados em Paris (onde permaneceuentre dezembro de 1880 e abril de 1886 tendo sido disciacutepulo de Alexan-dre Cabanel) re1047298etem-se no academismo que informa a sua paleta A obraMNAC estrutura-se num jogo de sombraluz em tonalidades enegre-cidas conforme o convencionalismo esquemaacutetico dos valores proacuteprios doRomantismo A visatildeo do autorretrato devolve ao espectador uma represen-

taccedilatildeo de meio-corpo frontal qual re1047298exatildeo ldquoeu olho-te a observares-medepois de me ter olhado no espelho a pintar-merdquo Atraveacutes da coincidecircnciade olhares do pintor e do espectador comunica-se o exerciacutecio da auto--observaccedilatildeo seguindo os modelos claacutessicos da autorretratiacutestica generica-mente vigorante em Franccedila na primeira metade do seacuteculo XIX os quaiscontinuavam a informar culturalmente a formaccedilatildeo dos nossos pensionistase bolseiros[34] O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-ferecircncia de grande sinceridade na captaccedilatildeo da individuaccedilatildeo com ecircnfase naperseguiccedilatildeo consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade

e honestidadeEntre os autorretratos pintados por Aureacutelia de Sousa (1866-1922)

assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900 MNSRportanto na viragem do seacuteculo pela modernidade unanimemente reconhe-cida pela criacutetica nacional e internacional[35] Representa uma visatildeo emble-maacutetica da mulher artista na sociedade portuguesa do seu tempo Aindaque as palavras que se seguem natildeo tenham sido dirigidas especi1047297camentea Aureacutelia como satildeo elucidativas designadamente na possibilidade do seuajuste ao autorretrato em questatildeo ldquoEu tenho uma face mas uma face natildeo

eacute o que eu sou Por detraacutes existe uma mente a qual tu natildeo vecircs mas que teobserva Esta face que tu vecircs mas eu natildeo eacute um lsquomediumrsquo que eu possuo paraexpressar alguma coisa do que eu sourdquo [36]

Sobre esta obra disse Joseacute-Augusto Franccedila ldquoFaacutecil seria descrever estacabeccedila severa de cabelos arruivados cortada pelo decote subido de uma

34 O desenvolvimento da produccedilatildeo artiacutestica de Condeixa processou-se entre as duas primeirasgeraccedilotildees naturalistas portuguesas e embora a sua carreira como pintor de Histoacuteria tenha sidoconsiderada por alguma criacutetica como secundaacuteria foi tambeacutem retratista de meacuterito

35 Este autorretrato ganha uma nova projeccedilatildeo desde a sua inclusatildeo na obra 500 Self-Portraits

Phaidon Press Limited London 2007 p 354 (1ordf ediccedilatildeo 2000)36 Julian Bell 500 Self-Portraits ob cit p 5 Traduccedilatildeo da responsabilidade da autora do pre-

sente texto

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

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Lisboa

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na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

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R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

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Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

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Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

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University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

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117 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

blusa azul (hellip) um grande al1047297nete de acircmbar a fechar geometricamente este

elemento da composiccedilatildeo na vertical da risca do penteado do nariz nomeio da boca cerrada (hellip) o vermelho e o azul do que traz vestido (hellip)Somam-se estes elementos do retrato ndash mas 1047297ca de fora aquele que sobre-tudo o faz este olhar azul-claro que 1047297xa inteiramente a composiccedilatildeo Natildeose diz os olhos semicerrados por atenccedilatildeo 1047297tando o espelho invisiacutevel ndash maso olhar ou seja o que neles eacute imaterial (hellip) Que mais profunda solidatildeonuma quinta antiga sobre o Douro de exiacutelio da pintora Natildeo haacute com cer-teza outro autorretrato assim na pintura portuguesa (hellip)rdquo[37]

O tempo de Aureacutelia foi tambeacutem o de Sigmund Freud de Klimt Van

Gogh e Schielle Esteve em Paris entre 1898 e 1902 onde estudou comJean-Paul Laurens e Benjamin Constant tendo viajado e pintado na Bre-tanha e visitado museus em Bruxelas Antueacuterpia Berlim Roma FlorenccedilaVeneza Madrid e Sevilha natildeo sendo de refutar a execuccedilatildeo do autorretratoem Paris

Frontalidade expressatildeo enigmaacutetica do rosto intimismo severidade euma enorme consciecircncia da proacutepria individualidade satildeo caracteriacutesticasde uma modernidade irrefutaacutevel paralelamente com a abertura para solu-ccedilotildees inovadoras que o seacuteculo XX haveria de conhecer na desconstruccedilatildeo do

cubismo na anguacutestia expressionista ou no lirismo abstracionistaDa sua curta vida marcada pela boeacutemia Armando de Basto (1889-

-1923) deixou-nos um autorretrato MNSR executado cerca de 1917 Agrande dimensatildeo do rosto ocupando a quase totalidade do retacircngulo eacute oelemento que desde logo se impotildee na visatildeo da tela Uma observaccedilatildeo maisatenta permite perceber um olhar melancoacutelico centrado no espectador emcuja direccedilatildeo o rosto e o torso se voltam

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ndash os quais enquadram a1047297gura ndash o rosto em tonalidades teacuterreas espelha as marcas de uma vida des-

regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista quer emtermos acadeacutemicos quer pessoais Armando de Basto pintou-se como umhomem e natildeo como pintor endo exercido ampla atividade nos domiacuteniosda caricatura e do desenho humoriacutestico soacute teraacute comeccedilado a pintar cerca de1913 com incidecircncia no retrato ainda no periacuteodo em que esteve em Paris(1910-1914) onde conviveu com Modigliani que lhe pintou o retrato Dequalquer modo a singularidade do autorretrato reside fundamentalmenteno fasciacutenio que se desprende do olhar suscitando o diaacutelogo ndash signi1047297cati-

vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do

37 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses no Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

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Lisboa

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na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

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S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

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LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

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University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

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2011 pp 79 a 85

Page 26: Maria Pacheco

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118 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

artista ndash na tradiccedilatildeo da autorretratiacutestica de Rembrandt e de Henri Fantin-

-Latour relativamente aos valores de tratamento do rosto mas sobretudomarcando a perseguiccedilatildeo de ideais de liberdade e de independecircncia distin-tivos da vivecircncia modernista

Eacute de 1925 o quadro em que Joseacute de Almada Negreiros (1893-1970) seautorretrata inserido num grupo de dois pares CAM da F C G emcenaacuterio neutro muito embora se saiba que a obra fez parte da decoraccedilatildeoda ldquoBrasileirardquo (Chiado Lisboa) e sejam evidentes os indiacutecios de conotaccedilatildeotemaacutetica com o domiacutenio artiacutestico ndash da tela onde Almada colocou o ano derealizaccedilatildeo do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar ao desenho

sobre o qual Joseacute-Augusto Franccedila se interrogou poder tratar-se da carica-tura de Gualdino Gomes ndash ldquo(hellip) se atentarmos no chapeacuteu que lhe caracte-rizava a boeacutemia verrinosa (hellip)rdquo[38] ndash ateacute ao suporte do registo que merece aconcentraccedilatildeo da atenccedilatildeo da maioria dos elementos do grupo mas de quecertamente natildeo teraacute sido aleatoacuteria a exibiccedilatildeo do verso vedando o acesso agravedescodi1047297caccedilatildeo do motivo desenvolvido Almada vira para o campo visualdo espectador o registo que segura com a sua matildeo direita assim cons-truindo um enigma com enfoque essencial na composiccedilatildeo da cena de inte-rior Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na

esfera do conviacutevio social e natildeo como protagonista de um cenaacuterio artiacutesticoainda que natildeo tenha refutado visibilidade na alusatildeo agrave condiccedilatildeo artiacutesticaeacute manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernistaldquona vida airada de Lisboa - 25rdquo[39] sem constrangimentos dela comungandoatraveacutes da apresentaccedilatildeo da frequecircncia dos salotildees de chaacute e cafeacutes caracteriacutes-ticos dos freneacuteticos anos 20 Almada autorrepresentou-se na celebraccedilatildeo dasua contemporaneidade assumindo-se na sua individualidade numa con-

versa suspensa entre os 1047297gurantes em cuja representaccedilatildeo se impotildee a trans- versalidade do olhar como atitude de cumplicidade geracional

Saacutebias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida ldquoAlmada foi sempreautorretrato

De si e de Portugal nas sucessivas modalidades que ele e o Paiacutes foramtomando numa inesperada identidade de propoacutesitos e acerto de tempo(hellip)rdquo[40]

38 Cfr Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa2000 p 50

39 Idem ibidem40 Bernardo Pinto de Almeida in AAVV O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

1994 p 338

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 27: Maria Pacheco

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119 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Em 1929 Joseacute agarro (1902-1931) reali-

zou um duplo autorretrato (Fig 12) quese apresenta como um dos mais originais(natildeo soacute da sua eacutepoca mas seguramenteda produccedilatildeo artiacutestica contemporacircneaportuguesa) produzido dois anos passa-dos sobre a frequecircncia da Escola deBelas-Artes de Lisboa tambeacutem dois anosantes da sua prematura morte e no exatoano em que visitou a Franccedila e teve opor-

tunidade de estudar e se atualizar emParis durante algum tempo

Pertencente agrave 2ordf Geraccedilatildeo Moder-nista em Portugal[41] a obra apresentauma siacutentese de grande expressividade eforccedila ndash com destaque para a atenccedilatildeo aorigor no tratamento das cabeccedilas boca e

olhos ndash resultante da articulaccedilatildeo entre o caracteriacutestico traccedilo 1047297rme (dese-nho) e a distribuiccedilatildeo do cromatismo na mancha da pintura propriamente

dita numa demonstraccedilatildeo de extrema modernidade e manifestaccedilatildeo degrande dignidade pro1047297ssional E foi nesta condiccedilatildeo que agarro quis ser

visto para a posteridade com o entusiasmo contagiante do artista que seautodescobre e se questiona mirando-se no olharespelho do observadora quem atrai ainda atraveacutes das tonalidades do encarnado do laacutepis com quedesenha ferramenta do ofiacutecio que daacute forma agrave ideiacriatividade O efeito desurpresa persiste em grande parte pelo contraste entre teacutecnicas ndash enquantoque a pintura modela o rosto pintado com particular atenccedilatildeo na descri-ccedilatildeo do pormenor o desenho do segundo plano expotildee o rosto per1047297lado

numa construccedilatildeo simeacutetrica de ambos os rostos cujos olhares satildeo dirigidosao espectador assim suscitando o diaacutelogo entre desenho e pintura Ideia eforma interpenetram-se na essecircncia da imagem de inequiacutevoco vigor narci-sista sem equivalente na pintura do autorretrato deste periacuteodo ldquoEacute o simu-lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salotildees dos Independentes em 1930 e 1931 e no breve espaccedilo de tempo em que viveu realizou duas exposiccedilotildees individuais uma em Lisboa eoutra no Porto Revelou forte dinamismo artiacutestico tendo colaborado (embora sujeito agraves respe-tivas encomendas) em publicaccedilotildees como a Ilustraccedilatildeo ou o Magazine Bertrand entre outras

Concorreu aos salotildees da SNBA nos anos de 1927 1928 e 1930 O reconhecimento da suaimportacircncia artiacutestica cou patente na criaccedilatildeo de um preacutemio com o seu nome para as aacutereas dodesenho e da aguarela em 1944 pelo SNI

Fig 12 ndash Joseacute Tagarro Auto-Retra-to1929-MNSR Porto

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120 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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Referecircncias

Livros

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EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

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University Press

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Revistas

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2011 p 86

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2011 pp 79 a 85

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a criatividade artiacutestica (hellip) no impossiacutevel jogo de espelhos em que a autoi-

magem eacute projetada representaccedilatildeo da autorrepresentaccedilatildeo narcisicamentere1047298etida no olhar ndash espelho do espectador paradigma do momento em queo artista como sujeito em representaccedilatildeo se daacute a ver perdido nas ruiacutenasda sua proacutepria visatildeo e mostrando-se como testemunho de uma profundaconsciecircncia da condiccedilatildeo humanardquo[42]

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintadono ano do seu casamento com Arpad Szeacutenegraves em 1930 col privada Parisquando a pintora tinha 22 anos tambeacutem o ano anterior agrave oportunidade deexpor nos Salons drsquoAutomme et Surindeacutependants em Paris[43]

Autorretrato a meio corpo em fundo predominantemente neutro oolhar liacutempido frontal e interrogativo 1047297xo no observador constitui desdeo primeiro momento de contemplaccedilatildeo do espectador o principal foco deatraccedilatildeo Eacute um registo 1047297gurativo de mulher uma construccedilatildeo expressionistareveladora de intensa sensibilidade sem qualquer alusatildeo do modelo agrave praacute-tica artiacutestica ainda que seja possiacutevel antever na plasticidade dos planos enas linhas escuras e acinzentadas a procura de novos valores espaciais A1047297gura feminina emergindo entre os negros ndash do cabelo das sobrancelhasolhos e vestuaacuterio ndash impondo-se na tez clara da pele da qual se destaca o

rubro da boca (com correspondecircncia na peccedila de mobiliaacuterio que se acha agravedireita do observador) ocupa parte signi1047297cativa da tela e de1047297ne-se entrea contenccedilatildeo do enquadramento em espaccedilo interior fechado e a luminosi-dade do claro-escuro envolvente numa siacutentese de evidente simplicidadee de reminiscecircncia de um universo onde impera a solidatildeo Sente-se umaestrateacutegia de introspeccedilatildeo psicoloacutegica tendecircncia jaacute presente em Rembrandte que se a1047297rmou com o Romantismo

Eacute tambeacutem do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de ArturLoureiro (1853-1932) entatildeo com 77 anos MNSR obra executada dois

anos antes da sua morte e onde as soluccedilotildees esteacuteticas apresentadas tecircm comopatamar de referecircncia os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-tor fez a sua aprendizagem e se exercitou

A imagem representa a 1047297gura de um velho homem de peacute cujo corposemiper1047297lado se ampara a uma bengala ndash posicionada no prolongamento

42 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretratoin Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patrimoacutenio eTeoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

43 A pintora partiu para Paris em 1928 acompanhada pela matildee (perdera o pai aos trecircs anos) a mde completar a sua formaccedilatildeo Em 1932 foi aluna de Bissiegravere na Acadeacutemie Ranson Haveria derealizar a sua 1ordf Exposiccedilatildeo Individual em 1933

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

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C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

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Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

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Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

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S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

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II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

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Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 29: Maria Pacheco

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121 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

da trajetoacuteria da diagonal de1047297nida pelo braccedilo direito da 1047297gura ndash segurada

pela mesma matildeo que prende um chapeacuteu negro certamente recolhido porrespeito devido face agrave penetraccedilatildeo em espaccedilo interior No gesto satildeo visiacute-

veis os tons da carnalidade da matildeo igualmente presentes no rosto viradona direccedilatildeo do espectador que enfrenta no cruzamento de olhares Sobreas vestes negras um casaco castanho mel gasto do tempo e do uso com-paginaacutevel com a exposiccedilatildeo da idade traduzida no branco do cabelo e dabarba descuidada O artista escolheu expor-se do ponto de vista humanoauto-descrevendosse em sintonia com a miseacuteria afetiva e a solidatildeo carac-teriacutesticas dessa fase da vida Signi1047297cativamente e com uma enorme cora-

gem e forccedila por detraacutes das lentes os olhos do autorretratado interpelam oobservador a quem eacute oferecida a autoimagemespelho como proposta dere1047298exatildeo intemporal

O autorretrato pintado por Domiacutenguez Aacutelvarez (1906-1942) em 1934intitulado ldquoD Quixoterdquo constitui uma imagem que di1047297cilmente sai do alo-

jamento da memoacuteria em que facilmente se instala nas profundezas dosilecircncio interior especiacute1047297co do espectador atento Eacute uma obra que natildeo temparalelo na pintura do autorretrato contemporacircneo em Portugal A panoacute-plia de sentimentos que gera no ato da sua observaccedilatildeo corresponde sem

contraditoacuterio agrave de1047297niccedilatildeo que Joseacute-Augusto Franccedila registou para autorre-trato ldquoO autorretrato 1047297ta por natureza e fatalidade de processo o espec-tador que o haacute de olhar tanto como a si proacuteprio o pintor se olhou e o quefoi monoacutelogo desejado do artista acaba por se realizar em diaacutelogo Diaacutelogode trecircs poreacutem que trecircs satildeo os seus elementos o pintor que se retrata a suaimagem retratada e a pessoa que a olha como se estivesse a olhar o seuautor Que natildeo estaacute o autorretrato eacute apenas a sua imagem natildeo pintor pin-tado mas o que ele fora dele pintou Mas por isso se diraacute que mais do queapenas a sua imagem o autorretrato estaacute para aleacutem dela e de quem a pin-

tou por a ter pintado ndash ou seja criado em obra de artehellip Natildeo se deixaraacute dedizer que o autorretrato eacute a quintessecircncia da arte pela duplicidade maacutegicada imagem fornecidardquo[44]

O olhar acusatoacuterio e completamente despido de esperanccedila que ende-reccedila ao espectador cumpre-se na perturbaccedilatildeo do vazio na tristeza nacensura e no medo A representaccedilatildeo que de si deixa o pintor remete paraum universo misterioso conturbado e inquietante feito mensageiro damorte a que sombras e negros aludem povoando o cenaacuterio de onde emer-gem o rosto ndash alongado na barba cujo 1047297m natildeo se vislumbra ndash e parte do

44 Joseacute-Augusto Franccedila 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores Lisboa 2000 p 20

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

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LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

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Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

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Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

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S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

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W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 30: Maria Pacheco

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122 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

peito cuja tonalidade parece jaacute ser pressaacutegio do cadaacutever que haveria de ser

dentro de muito poucos anos passados Da expressatildeo pictoacuterica de Aacutelva-rez correspondente aos anos 30 destacou tambeacutem Joseacute-Augusto Franccedila oinsoacutelito ndash ldquoNenhuma referecircncia parisiense nenhuma informaccedilatildeo de Ber-lim nenhum acomodamento modernista e um gosto espanhol que era oupodia ser de mais ningueacutem e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal Umartista isolado passando miseacuterias no Porto sem ares da boeacutemia burguesados de Lisboa ndash um vago sonho provinciano de laquomais aleacutemraquo como divisade impossiacutevel grupo A sua pintura eacute toda assim arredando-se do ensinoda Escola que lhe deu diploma e desemprego em perseguiccedilatildeo de fantasmas

soltos pelas ruas tristes do Barredo manchas negras e informes ou de pai-sagens visionaacuterias de tenebrosos burgos de Espanha lembrados do Greco

Eacute um D Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa pelaindecisatildeo miacutetica que vivemos entre D Sebastiatildeo e D Antoacutenio com a des-graccedila de ambos (hellip) A imagem de Aacutelvarez eacute mais triste que qualquer outra(hellip)rdquo[45]

Aacutelvarez morreu com 42 anos viacutetima de tuberculose e certamente tam-beacutem das suas opccedilotildees esteacuteticas de1047297nidas agrave margem dos padrotildees o1047297ciais [46]O seu autorretrato eacute um paradigma da fragilidade da condiccedilatildeo humana

e do cenaacuterio de instabilidade em que a vida humana se movimenta Pelotraccedilado das linhas obliacutequas em evidente oposiccedilatildeo com a estabilidade ine-rente agrave 1047297gura vertical Aacutelvarez questiona a racionalidade da sua vivecircnciaagoniada pela debilidade fiacutesica e pela injusticcedila da ausecircncia de reconheci-mento que soacute chegaria apoacutes a sua morte Que metaacutefora mais adequada quea construiacuteda pelo pintor sobre si proacuteprio

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012) pintado em 1941 (simplescoincidecircncia ou curiosidade a inversatildeo dos dois uacuteltimos algarismos como ano do seu nascimento) com 27 anos de idade CM Silves lembra o

autorretrato de Aureacutelia de Sousa anterior em cerca de quatro deacutecadassobretudo pelo colorido modernidade e 1047297rmeza da expressatildeo jaacute que a sim-plicidade sedutora e a articulaccedilatildeo com a praacutetica da pintura ndash no recurso agraverepresentaccedilatildeo do reverso de um quadro ndash distanciam Maria Keil da solidatildeode Aureacutelia numa eacutepoca que pouco tinha a ver com o iniacutecio do seacuteculo ape-sar de o tempo ser de guerra e de inseguranccedila

45 Joseacute-Augusto Franccedila ob cit p 72

46 Participou em 1929 nas exposiccedilotildees do grupo + Aleacutem (marcada pela criacutetica ao academismo e ao

ensino naturalista de Marques de Oliveira na ESBA do Porto) foi recusado na IV Exposiccedilatildeode Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposiccedilatildeo individual em vida em1936 no Salatildeo Silva Porto

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

D983141983154983154983145983140983137 Jacques (1999) Meacutemoires drsquoaveugle - Lrsquoautoportrait et autres ruines Reacuteunion

decircs museacutees nationaux Paris (1ordf ediccedilatildeo 1991)

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 31: Maria Pacheco

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123 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Por esse mesmo autorretrato ndash de indiscutiacutevel contributo para a a1047297r-

maccedilatildeo da 2ordf geraccedilatildeo modernista que era a sua ndash recebeu Maria o preacutemioAmadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41 Eacute como pintora que seautorretrata representando-se junto ao reverso de um quadro olhando1047297rmemente o espelhoobservador Um aparente paradoxo estaacute poreacutemsubentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar comopropoacutesito contra a opiniatildeo comum) o qual se pode sintetizar na seguinteinterrogaccedilatildeo como pode um quadro ser representado no seu reversoentrando assim em con1047298ito com a ideia de representaccedilatildeo pictural

Aparente paradoxo visto que a imagem pictoacuterica eacute uma realidade 1047297c-

tiacutecia o quadro eacute uma representaccedilatildeo o seu reverso apresenta o objeto quelhe serve de suporte eacute o negativo da representaccedilatildeo a que alude sugerindo aideia de metaacutefora Poder-se-aacute entatildeo especular que para conhecer o reversodo quadro haacute que ldquodar-lhe a voltardquo Quereria Maria Keil lembrar no seuautorretrato a dialeacutetica da sua meditaccedilatildeo sobre o quadro na dupla quali-dade de imagemrepresentaccedilatildeo e objeto Ou questionar no simulacro daaparecircncia a proacutepria essecircncia do autorretrato

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994) pintado em1951 MNSR com os seus 39 anos constitui uma obra notaacutevel e verda-

deiramente singular em termos plaacutesticos O efeito imediato de surpresaem parte causado pela dimensatildeo da 1047297gura que ocupa a quase totalidade doquadro deriva tambeacutem da consciecircncia esteacutetica manifestada no tratamentoda iluminaccedilatildeo numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidadesnegras e acinzentadas das roupagens dominando a composiccedilatildeo estandoesta estruturada em planos onde o geometrismo impera

Camarinha optou por uma representaccedilatildeo de si como indiviacuteduo cons-truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor daexpressividade do rosto e da proacutepria pintura a aproximaccedilatildeo ao especta-

dor eacute transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidatildeo sentada oolhar baixo e 1047297xo no espelho em interrogaccedilatildeo iroacutenica as matildeos entrelaccediladase pousadas sobre os joelhos em atitude expectante e de intensa vitalidadenarciacutesica[47]

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu cerca de 1958 um autorretrato tri-dimensional que pelo insoacutelito e pela complementaridade justi1047297ca a sua

47 Camarinha pintou este autorretrato no iniacutecio da deacutecada que corresponde agrave dedicaccedilatildeo do artistaagrave tapeccedilaria teacutecnica que renovou em que se distinguiu e foi premiado em 1967 Anteriormenteobtivera o preacutemio ldquoSouza Cardosordquo do SPNSNI em 1936 e um 2ordmpreacutemio na I Exposiccedilatildeo

de Artes Plaacutesticas da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian em 1957 onde o autorretrato esteveexposto tendo sido adquirido no ano seguinte (1958) pelo MNSR por aquisiccedilatildeo ao artistacom o Fundo Joatildeo Chagas

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

8162019 Maria Pacheco

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

D983141983154983154983145983140983137 Jacques (1999) Meacutemoires drsquoaveugle - Lrsquoautoportrait et autres ruines Reacuteunion

decircs museacutees nationaux Paris (1ordf ediccedilatildeo 1991)

8162019 Maria Pacheco

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 32: Maria Pacheco

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124 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto oacuteleo e gouache sobre osso col J P F

Lisboa O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa eacute per-turbador em grande parte ancorado na coragem de exposiccedilatildeo material deuma ruiacutena fiacutesica insinuando a metaacutefora de outra ruiacutena certa e transversalao comum dos mortais e justi1047297cando a re1047298exatildeo de Derrida sobre o autor-retrato ldquoO aspeto central da tese de Derrida reside pois na inevitabili-dade do autorretrato como ruiacutena presente desde o primeiro olhar sobreo modelo (outro) condenado agrave condiccedilatildeo de fragmentaccedilatildeo da re1047298exatildeo daimagem e agrave dependecircncia do envolvimento com o espectador Eacute o simula-cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginaccedilatildeo e fomenta a

criatividade artiacutesticardquo[48]Humor provocatoacuterio alguma crueldade intencionalidade re1047298exiva

atravessam a obra e satildeo pretexto para o autor desmontar a polissemia doautorretrato ndash eacute um olhar inquieto e iroacutenico aquele que Cruzeiro Seixastransferiu para o objeto artiacutestico que alegoricamente alude agraves praacuteticas artiacutes-ticas inerentes agrave humanidade preacute-histoacuterica e marca a tentativa de acertotemporal com as vivecircncias culturais atualizadas com o seu tempo e as pro-postas de criaccedilatildeo artiacutestica vigorantes no exterior de Portugal

O autorretrato natildeo eacute re1047298exo do espelho mas o proacuteprio espelho no qual

o criador se projeta e sobre o qual o espectador re1047298ete ao rever-se no con-dicionamento da sua libertaccedilatildeo e na sua impotecircncia face agrave sujeiccedilatildeo inexo-raacutevel ao tempo

Em 1972 Joseacute Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato CAMda FCG sob a temaacutetica da sua condiccedilatildeo de artista lembrada na represen-taccedilatildeo da matildeo que segura o pincel centrada na parte inferior da composi-ccedilatildeo Quadro dentro do quadro a autoimagem por semelhanccedila impotildee-sepela frontalidade da re1047298exatildeo no espelho e pela subjetividade transmitidano vigor do olhar 1047297xo numa linguagem 1047297gurativa atualizada com a recente

produccedilatildeo artiacutestica europeia frequentada e desenvolvida com o apoio daFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Amesterdatildeo Bruxelas Madrid (ou Paris)no contacto com o Grupo Kwy ou no conviacutevio com artistas inovadorescomo Lourdes Castro Costa Pinheiro Christo etc

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura emer-gindo do cromatismo e da luminosidade vibrante e sendo emoldurado nasaacutereas perifeacutericas cimeiras pelo labirinto de pequenas construccedilotildees geomeacutetri-

48 Maria Emiacutelia Vaz Pacheco Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato inVer a Imagem ldquoAtas do II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte Ciecircncias do Patri-moacutenio e Teoria do Restaurordquo IHA da FLL 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo)

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

D983141983154983154983145983140983137 Jacques (1999) Meacutemoires drsquoaveugle - Lrsquoautoportrait et autres ruines Reacuteunion

decircs museacutees nationaux Paris (1ordf ediccedilatildeo 1991)

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

8162019 Maria Pacheco

httpslidepdfcomreaderfullmaria-pacheco 3838

130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 33: Maria Pacheco

8162019 Maria Pacheco

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125 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

cas numa siacutentese que apela agrave vivecircncia corporal e agrave presenccedila efeacutemera mas

intensa do tempoA autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985 inti-

tulada ldquoPaisagens do Atelierrdquo col do autor eacute portadora de uma profundaautoconsciecircncia da representaccedilatildeo por sua vez geradora de uma comple-xidade inesgotaacutevel sustentada na re1047298exatildeo em torno da existecircncia Autor-representaccedilatildeo integrada no ciclo emblemaacutetico denominado ldquola fenecirctre dema tecircteldquo cabeccedilasede das ideias na con1047298uecircncia do ato expressivo enquantoutopia e erudiccedilatildeo eacute signo de criaccedilatildeo artiacutestica mas tambeacutem poeacutetica preo-cupaccedilatildeo ecleacutetica a justi1047297car a a1047297rmaccedilatildeo do percurso individual de Costa

Pinheiro reconhecidamente europeu A cabeccedilajanela que abre para aimaginaccedilatildeo que rasga as fronteiras impostas pelo espaccedilo e pelo tempoem sugestatildeo do diaacutelogo interior construiacutedo na experiecircncia da invenccedilatildeo deoutro dentro de si mesmo (em negaccedilatildeo do ldquobeco sem saiacutedardquo da emigraccedilatildeo

vivenciada)Exteriormente agrave cabeccedila per1047297lada vazia e colorida de azul ndash a cor tatildeo

caracteriacutestica do pintor ndash o registo do cavalete e do pote com os pinceacuteis ins-trumentos mediadores do ato da pintura enquanto que dentro do quadromas pairando sobre a cabeccedila ndash que se sabe ser a sua pela marca do tambeacutem

caracteriacutestico bigode que o individualiza ndash a informaccedilatildeo ldquola fenecirctre de matecircterdquo precisa o poder da imaginaccedilatildeo natildeo contida nos limites do corpo orgacirc-nico

Pelo contorno se destaca da escuridatildeo a cabeccedila iluminada na cons-truccedilatildeo de uma nova imageacutetica assumida na rutura com a seguranccedila dasubmissatildeo da picturalidade agrave esteacutetica em opccedilatildeo pelo desa1047297o da linguagemmetafoacuterica transparecircncia da abstraccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo das ideias relativa-mente ao sujeito do ato criativo

A autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro eacute siacutentese oacutebvia do movimento

do espiacuterito desde as sensaccedilotildees agraves ideias ldquo(hellip) dialeacutetica aporeacutetica entre oproacuteprio e a representaccedilatildeordquo[49]

Mais que ldquoa janelardquo a autorrepresentaccedilatildeo de Costa Pinheiro re1047298ete oestado de autoconsciecircncia face agrave importacircncia dos sonhos eacute a1047297rmaccedilatildeo dasubjetividade eacute testemunho da libertaccedilatildeo do pintor que atraveacutes da autorre-presentaccedilatildeo se reencontra e supera a ldquopersonardquo no sentido da maacutescara

Num compartimento de interiores ndash mas onde se rasga uma janela dei-xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tonsde azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaccedilar dos paacutessaros ndash e

49 Cfr Winfried Baier O rosto da maacutescara Fundaccedilatildeo das Descobertas Centro Cultural de BeleacutemLisboa 1994 p 352

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

8162019 Maria Pacheco

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

D983141983154983154983145983140983137 Jacques (1999) Meacutemoires drsquoaveugle - Lrsquoautoportrait et autres ruines Reacuteunion

decircs museacutees nationaux Paris (1ordf ediccedilatildeo 1991)

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

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126 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se col da autora enfati-

zando a importacircncia do assunto no proacuteprio tiacutetulo do quadro ndash ldquoAutorretratocom Netosrdquo ndash pintado em 2001-2002 e cuja integraccedilatildeo na primeira agenda(2010) que a ldquoCasa das Histoacuteriasrdquo destina ao puacuteblico apoacutes a inauguraccedilatildeoem 18 de setembro de 2009 adquire aqui particular signi1047297cado

Paraacutebola em torno da famiacutelia e da condiccedilatildeo feminina temas queassume sem dissimulaccedilatildeo mas simultaneamente com referecircncia expliacutecita agravepintura Estrateacutegia desarmante no confronto entre a seriedade do tema dafamiacutelia apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundoda cena e o posicionamento simboacutelico da artista voltada em direccedilatildeo ao

espectador afetivamente protegendo com o braccedilo direito uma neta masusando a proacutepria corporalidade como contraponto ao ldquopesordquo do quadroque atrai o olhar do observador Quadro dentro do quadro ou a linguagemmetafoacuterica da autorre1047298exatildeo centrada entre a lembranccedila das exigecircncias da

vida familiar e o universo imaginaacuterio e tenso proacuteprio da criatividade a quea pintura pendurada alude

A articulaccedilatildeo entre as duas situaccedilotildees da vida da mulher por um ladoe a ligaccedilatildeo entre dois periacuteodos de vivecircncias maturidade e infacircncia (veja-seo registo de brinquedos e dos caracteriacutesticos catildees de Paula Rego) corro-

boram o poder da narraccedilatildeo das histoacuterias que a artista confessa terem tidoimportacircncia decisiva na construccedilatildeo do seu imaginaacuterio e da sua visatildeo

A famiacutelia contextualiza a perspetiva do feminismo como epicentroidentitaacuterio no confronto com a necessidade da criaccedilatildeo artiacutestica ReferePaula Rego ldquoAs minhas pinturas satildeo pinturas feitas por uma artista mulherAs histoacuterias que eu conto satildeo histoacuterias que as mulheres contamrdquo[50]

al visatildeo como estrateacutegia de sobrevivecircncia pessoal estaacute generalizadaentre a criacutetica ldquoNatildeo eacute comum dar agraves mulheres a oportunidade de se reco-nhecerem na pintura muito menos a de verem o seu mundo privado os seus

sonhos no interior das suas cabeccedilas projetados numa escala tatildeo grande etatildeo despudoradamente com tanta profundidade e tanta corrdquo[51]

O autorretrato de Paula Rego retomando a 1047297guraccedilatildeo eacute a1047297nal pretextopara glosar emoccedilotildees e afetos criatividade e identidade

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts Eight British Artists Cross General Talk inFran Lloyd From the Interior Female Perspetives on Figuration Kingdston University Press1997 p 85 Citada por Ana Gabriela Macedo Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Coto-via Lisboa 2010 p 121

51 Germaine Geer Paula Rego in Modern Painters vol 1 nordm 3 outubro de 1988 republicado

em Karen Wright (org) Writers on Artists Nova Iorque Moderna Painters DK Publishers2001 pp 66-71 Transcrito em Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Ediccedilatildeo de RuthRosengarten Fundaccedilatildeo de SerralvesJornal ldquoPuacuteblicordquo Porto 2004 p 161

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

D983141983154983154983145983140983137 Jacques (1999) Meacutemoires drsquoaveugle - Lrsquoautoportrait et autres ruines Reacuteunion

decircs museacutees nationaux Paris (1ordf ediccedilatildeo 1991)

8162019 Maria Pacheco

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

8162019 Maria Pacheco

httpslidepdfcomreaderfullmaria-pacheco 3838

130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 35: Maria Pacheco

8162019 Maria Pacheco

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127 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

Conclusatildeo

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na eacutepoca con-temporacircnea muacuteltiplas satildeo as possibilidades da sua abordagem A proacutepriapalavra autorretrato eacute uma palavra de vocaccedilatildeo polisseacutemica Nela cabe oque eacute especiacute1047297co da criaccedilatildeo humana cultural e visual em associaccedilatildeo como cruzamento entre intelecto e teacutecnica a sede da 1047297cccedilatildeo reside na traduccedilatildeoindividual ndash atraveacutes do registo da autoimagem pictural ndash de uma inten-cionalidade especiacute1047297ca do proacuteprio ldquoeurdquo Ainda que continuem certamente asuscitar amplas discussotildees questotildees como a identidade a intelectualidade

a cultura ou a teacutecnica relativamente agrave abordagem da autorretratiacutestica natildeoseraacute demais lembrar que natildeo eacute aleatoacuterio o facto de o autorretrato introspe-tivo por semelhanccedila que se desenvolve em Portugal no seacuteculo XIX ter pro-longado a sua presenccedila entre noacutes nos anos 70 do seacuteculo XX paralelamentecom algumas manifestaccedilotildees de abertura a outras soluccedilotildees que se forama1047297rmando sobretudo a partir do meado do seacuteculo assinalando a aberturado nosso paiacutes ao exterior (em grande parte com a intervenccedilatildeo dos bolseirosapoiados pelo mecenato da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian) e na sequecircnciada revoluccedilatildeo de 1974 acompanhando as transformaccedilotildees soacutecio-culturais e a

aproximaccedilatildeo mais atualizada e proacutexima do cosmopolitismoEm termos imageacuteticos os traccedilos individualizados que no autorretrato

identi1047297cam a referecircncia da ldquopersonardquoindividualidade iratildeo depois dar lugaragrave sobreposiccedilatildeo do ato criativo em si e o autorretrato transforma-se entatildeoem intencionalidade de gesto de negaccedilatildeo destruiccedilatildeo provocaccedilatildeo secunda-rizando o sujeito da criatividade

As incertezas universais ndash mesmo quando humildemente expostas ndashesbatem a seguranccedila no reconhecimento da visatildeo e da perceccedilatildeo transmitidaspelos sentidos humanos A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se

e confundem-se nos nossos tempos a memoacuteria que assegura a identi1047297ca-ccedilatildeo dos traccedilos 1047297sionoacutemicos perde sentido e a eternidade eacute equivalente doldquohojerdquo e do ldquoagorardquo O autorretrato tende a converter-se em registo do efeacute-mero do transitoacuterio e do vazio acompanhando a eterna busca do sentidoda vida

8162019 Maria Pacheco

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128 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

D983141983154983154983145983140983137 Jacques (1999) Meacutemoires drsquoaveugle - Lrsquoautoportrait et autres ruines Reacuteunion

decircs museacutees nationaux Paris (1ordf ediccedilatildeo 1991)

8162019 Maria Pacheco

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

8162019 Maria Pacheco

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 36: Maria Pacheco

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Referecircncias

Livros

AAVV (983090983088983088983097) Lrsquoautoportrait dans lrsquohistoire de lrsquoart - De Rembrandt agrave Warhol Beaux Arts

EacuteditionsM Eacuteditions

AAVV (983089983097983096983097) Dictionnaire Hachette de la langue franccedilaise Hachette Paris

AAVV (983089983097983097983092) O Rosto da Maacutescara Centro Cultural de Beleacutem Lisboa

B983141983148983148 Julian (2007) 500 Self-Portraits Phaidon Press Limited London

C983144983141983162983162983145 Federica (2011) 100 Self-portraits from the Uffi zi Collection GIUNI Firenzi

Musei (1ordf ediccedilatildeo 2008)

C983151983155983156983137 Paula A Freitas e FLORES Alexandre M (2006) ldquo Misericoacuterdia de Almada - Das

Origens agrave Restauraccedilatildeordquo Sta Cada da Misericoacuterdia de Almada

D983141983154983154983145983140983137 Jacques (1999) Meacutemoires drsquoaveugle - Lrsquoautoportrait et autres ruines Reacuteunion

decircs museacutees nationaux Paris (1ordf ediccedilatildeo 1991)

8162019 Maria Pacheco

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

8162019 Maria Pacheco

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

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129 A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORAcircNEO EM PORTUGAL BREVE PANORAcircMICA

F983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (2000) 100 Quadros Portugueses do Seacuteculo XX Quetzal Editores

LisboaF983154983137983150983271983137 Joseacute-Augusto (1973) Dicionaacuterio da Pintura Universal Vol III Dicionaacuterio da

Pintura Portuguesa Estuacutedios Cor Lisboa

G983154983145983149983137983148 Pierre (1992) Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana Difel Lisboa

H983151983149983138983157983154983143 Cornelia (2008) Los Tesoros de Vincent Van Gogh Editors SA Barcelona

Iberlivro (a partir da ediccedilatildeo inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano)

M983137983139983141983140983151 Ana Gabriela (2010) Paula Rego e o Poder da Visatildeo Ediccedilotildees Cotovia

Lisboa

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (20102011) Da Complexidade da Perceccedilatildeo Artiacutestica A Verdade

na Representaccedilatildeo do Visiacutevel Alguns Contributos para um Pensamento Renovado sobrea Pintura ARIS Instituto de Histoacuteria da Arte da FLL nrs 9 e 10

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (2010) Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do

Autorretrato in Ver a Imagem II Coloacutequio de Doutorandos em Histoacuteria da Arte

Ciecircncias do Patrimoacutenio e Teoria do Restauro IHA da FLL Lisboa 28 e 29 de

maio de 2010 (no prelo)

P983137983139983144983141983139983151 Maria Emiacutelia Vaz (1993) Silva Porto e o Naturalismo em Portugal CM

Santareacutem IPPAR CM Porto Santareacutem

R983151983140983154983145983143983157983141983155 Dalila (2007) Gratildeo Vasco Aletheia Editores Lisboa

R983151983155983141983150983143983137983154983156983141983150 Ruth (2004) Compreender Paula Rego 25 Perspetivas Porto Fundaccedilatildeode Serralvesjornal Puacuteblico

S983141983154983154983137983148983148983141983154 Francisco Calvo (1994) Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte

Espantildeol Contemporaneo in El Autorretrato en Espantildea - De Picasso a nuestros diacuteas

Fundacioacuten Cultural MAPFRE VIDA Madrid

S983141983154983154983267983151 Adriana Veriacutessimo (2001) Ideias Esteacuteticas e doutrinas da arte nos seacutecs XVI e

XVII in Histoacuteria do Pensamento Filosoacute1047297co Portuguecircs Direccedilatildeo de Pedro Calafate vol

II ndash Renascimento e Contra-Reforma ndash Caminho

S983141983154983154983267983151 Viacutetor (1986) ldquoO Maneirismordquo in Histoacuteria da Arte em Portugal Vol VII Alfa

LisboaS983141983154983154983267983151 Viacutetor (1995) A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camotildees

Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses

Lisboa

S983156983151983145983139983144983145983156983137 Victor I (2000) Bregraveve Histoire de lrsquoOmbre Droz Genegraveve

V983145983141983145983154983137 Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima ediccedilatildeo de Livraria Popular de Francisco

Franco Lisboa 1945

W983151983151983140983155-M983137983154983155983140983141983150 Joanna 1998 Renaissance Self-Portraiture New Haven (N J) Yale

University Press

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Revistas

M983137983157983152983137983155983155983137983150983156 Guy de La vie drsquoun paysagiste cit in Le Magazine Litteacuteraire n 512 Octobre

2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85

Page 38: Maria Pacheco

8162019 Maria Pacheco

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130 MARIA EMIacuteLIA VAZ PACHECO

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2011 p 86

C983137983145983157983148983148983141983156 Geofroy Agrave la cour des arts 1047298orissants in Le Figaro hors-seacuterie nordm 3657 Octobre

2011 pp 79 a 85