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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO ESCOLA DE MÚSICA DISCURSOS ACADÊMICOS EM MÚSICA: CULTURA E PEDAGOGIA EM PRÁTICAS DE FORMAÇÃO SUPERIOR EDUARDO LUEDY Salvador-Ba 2009

Luedy - Discursos Acadêmicos Em Música- Cultura e Pedagogia Em Práticas de Formação Superior

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Luedy - Discursos Acadêmicos Em Música- Cultura e Pedagogia Em Práticas de Formação Superior

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    ESCOLA DE MSICA

    DISCURSOS ACADMICOS EM MSICA: CULTURA E PEDAGOGIA EM PRTICAS DE FORMAO SUPERIOR

    EDUARDO LUEDY

    Salvador-Ba 2009

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    ESCOLA DE MSICA

    DISCURSOS ACADMICOS EM MSICA: CULTURA E PEDAGOGIA EM PRTICAS DE FORMAO SUPERIOR

    EDUARDO LUEDY

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em msica da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Msica (rea de concentrao Educao Musical)

    Orientador: Prof. Dr. Joel Barbosa

    Salvador-Ba 2009

  • Biblioteca da Escola de Msica - UFBA

    L948 Luedy, Eduardo. Discursos acadmicos em msica : cultura e pedagogia em prticas de formao superior

    / Eduardo Luedy. - 2009. 325f. : il.

    Orientador : Prof. Dr. Joel Lus da Silva Barbosa. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Msica, 2009.

    1. Msica Instruo e estudo. 2. Msica Prtica de ensino. 3. Msica - Cultura - aspectos sociais. I. Barbosa, Joel Lus da Silva. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Msica. III. Ttulo.

    CDD - 780.7

  • Agradecimentos

    Aos colegas da rea de Fundamentos da Educao do Departamento de

    Educao da UEFS, por me assegurarem o direito de me afastar das obrigaes acadmicas

    para poder finalizar este trabalho com maior tranquilidade. Agradeo especialmente aos

    colegas Z Mrio, Miguel Almir e Irlana Jane que assumiram algumas de minhas turmas

    de arte-educao de modo que meu afastamento no causasse prejuzos instituio.

    Mas, tambm da Uefs, agradeo a Antonia Silva, diretora do Departamento de

    Educao que me apoiou em todos os momentos em que precisei de aconselhamento e

    orientao administrativa. A Ana Magda Carvalho, minha amiga antroploga, que me

    ajudou a pensar certas questes relativas diversidade cultural e s culturas indgenas. A

    Lvia Vieira, secretria e amiga de todas as horas. E, especialmente, a Wilson de Jesus, que

    leu comigo boa parte dos manuscritos e teceu crticas e comentrios encorajadores e

    enriquecedores.

    Aos colegas e amigos de ps-graduao da EMUS-UFBA: especialmente a

    Maurlio Rafael e Cssia Virgnia, que sempre acreditaram que tudo isto seria possvel

    tanto fizeram que passei a acreditar tambm. A Flvia Candusso, Marcelino Moreno e Ana

    Margarida pelo companheirismo; a ngelo Castro e Luciano Caroso, amigos-irmos, pelo

    apoio mesmo a distncia; a Ricardo Pamflio, por me lembrar sempre da importncia dos

    rituais de passagem, principalmente quando passamos por eles. Meu agradecimento

    especial a Agostinho, que com sua sagacidade muito me inspirou. A Masa Santos, nossa

    secretria solidria do PPGMUS.

    Mas tambm da EMUS-UFBA, Manuel Veiga, Alda e Jamary Oliveira, Fernando

    Cerqueira, Cristina Tourinho, Agnaldo Ribeiro, Maria da Graa Santos, Paulo Costa Lima,

    ngela Luhning: mestres e mestras, para sempre, professores que contriburam decisiva e

    profundamente para eu ser musicalmente quem sou.

  • vi

    A Joel Barbosa, pela amizade e orientao tranqila o que, no momento

    certo, permitiu que tudo isso pudesse ocorrer. A Diana Santiago e Ricardo Bordini que, na

    condio de coordenadores do PPGMUS da UFBA, cada um a seu tempo, foram

    compreensivos e pacientes com meus descaminhos acadmicos. Ao professor Lucas

    Robatto pelo longo depoimento esclarecedor acerca dos meandros e dos impactos

    institucionais e acadmicos implicados na criao do curso de msica popular.

    Aos meus entrevistados, sujeitos deste estudo, pela generosidade em

    compartilhar comigo seus anseios, suas angstias, suas crticas.

    A Anna Amlia e a Elenita Pinheiro, minhas amigas deleuzianas pela ateno

    com que sempre me escutaram, pelas leituras e comentrios enriquecedores que fizeram de

    partes deste trabalho. A Paquito, porque gostamos dos Beatles e de George Harrison all

    things must pass!

    A Alexandre Castro e J, que ficaram na torcida por mim. A Lia Mara, pelo

    carinho e apoio de sempre, mas tambm por me ensinar a importncia de escutar o outro. A

    meus pais, Luiz Gonzaga Marques e Ansia Luedy, por tudo.

    A minha companheira inseparvel Shirleyne, por todo apoio e pela pacincia

    com que me aturou nos momentos em que estive absorto pelo trabalho e em tantos outros

    em que estive intratvel! A Guga e Gabi por compreenderem, ainda que de modo relutante,

    as horas interminveis sem brincadeiras.

  • Resumo

    O presente trabalho busca investigar o discurso acadmico em msica como

    uma instncia cultural-pedaggica que tanto reflete um determinado regime de verdades,

    sobre educao, msica e cultura, quanto contribui para reific-lo. tomado, pois, como

    um discurso qualificado, que versa, em ltima anlise, acerca do que deve valer como

    cultura e, consequentemente, do que se tem como legtimo de ser ensinado e de constar

    como conhecimento curricular.

    O discurso acadmico em msica, enquanto objeto de estudo, divisado aqui a

    partir de dois pressupostos bsicos e inter-relacionados: o de que este discurso tanto reflete

    quanto age sobre sistemas culturais e seus significados; mas, tambm, o de que estes

    significados se vem confrontados com as recentes questes e demandas sociais, polticas e

    educacionais postas pelo advento da noo de multiculturalismo compreendido tanto

    como um corpo terico, quanto decorrente do reconhecimento da diversidade cultural, um

    fenmeno claramente identificvel nas sociedades ocidentais contemporneas que

    configuram o contexto social mais amplo no qual o discurso acadmico em msica se

    insere mais contemporaneamente.

    Este discurso, apesar de se encontrar manifestado em diversas instncias

    textuais, tais como artigos cientficos, propostas pedaggicas, textos curriculares,

    documentos institucionais e debates educacionais em msica de toda ordem, encontra-se

    divisado aqui, primordialmente, a partir do que professores de uma determinada instituio

    de ensino superior falam acerca de cultura, educao e currculo.

    Referenciais tericos importantes para a problematizao do discurso

    acadmico em msica advm dos Estudos Culturais (Hall 1997; 2003) e do

    multiculturalismo crtico (Canen 2005; Moreira 2001; Costa 2003; McLaren 1997) que,

    sob o impacto das teorizaes ps-modernas e ps-estruturalistas, animadas sobretudo pela

  • viii

    chamada virada lingstica, enfatizam, de um lado, o papel da linguagem e do discurso

    na constituio do social e, de outro, a noo de cultura como uma prtica de significao e

    local privilegiado das polticas de representao.

    Ao lado de tais contribuies tericas, h tambm a noo de pedagogia crtica,

    tal como desenvolvida por autores como Giroux (1997; 1999) e McLaren (2000), que

    tomam as prticas pedaggicas como instncias eminentemente culturais, implicadas em

    mecanismos de regulao moral e social. Ambos os autores buscam explicitar criticamente

    os limites auto-impostos pelos discursos pedaggicos dominantes, que compreendem e

    reificam a cultura a partir de noes conservadoras de conhecimento e/ou definem a

    pedagogia em termos instrumentais.

    O discurso acadmico em msica , pois, localizado nesta compreenso de

    textualidade articulada a formas dominantes de representao, evidentes, por exemplo, na

    seleo de contedos, na maneira de hierarquizar campos de saber, no estabelecimento de

    critrios de admisso para exames vestibulares; mas, principalmente, na maneira de

    afirmar o que conta como conhecimento legtimo em msica.

    A partir de tais consideraes, as seguintes questes norteiam o trabalho de

    investigao: como professores/as de msica lidam com a emergncia da noo de

    diversidade cultural em suas prticas pedaggico-curriculares?; Que respostas tm dado ao

    desafio de encarar a condio multicultural de nossa sociedade?;Que concepes de cultura

    e conhecimento se depreendem dos discursos acadmicos em msica? Mas,

    principalmente: De que modo tais concepes estruturam/condicionam prticas

    pedaggicas e curriculares em msica?

    Assim, trs professores e duas professoras de uma instituio de ensino

    superior de msica a Escola de Msica da UFBA foram tomados como sujeitos da

    presente investigao, compondo um determinado grupo representativo das seguintes sub-

  • ix

    reas de conhecimento a que cada um pertencia: educao musical; prticas interpretativas;

    musicologia; etnomusicologia; composio e anlise. Estes sujeitos foram entrevistados

    acerca de suas prticas pedaggico-curriculares, a partir de um roteiro semi-estruturado, no

    qual se buscou discutir suas assertivas acerca de educao, currculo e cultura, tendo-se

    como eixo de preocupaes acadmicas a temtica mais ampla da diversidade cultural.

    O presente trabalho encontra-se estruturado da seguinte maneira: o primeiro

    captulo Pontos de partida situa o referencial terico adotado e o contexto social e

    educacional mais amplo em que a problemtica deste estudo se insere o advento da

    noo de diversidade cultural e as estratgias adotadas para se buscar responder

    institucionalmente ao reconhecimento desta diversidade como uma condio mesma das

    sociedades ocidentais contemporneas.

    O segundo captulo trata dos procedimentos metodolgicos adotados para a

    escolha do grupo de professores que vieram a compor uma amostra, de certo modo

    representativa, daquilo que, neste trabalho, tomado como o discurso acadmico em

    msica. Busca-se, tambm, justificar a opo por um estudo de natureza qualitativa e de

    cariz etnogrfico, que toma as entrevistas intensivas como principal instrumento de

    investigao, bem como discorrer acerca das possibilidades heursticas da advindas.

    Os dados analisados se encontram representados ao longo do terceiro captulo,

    no qual as respostas obtidas em cada entrevista so discutidas separadamente em sub-

    captulos.

    Por fim, o ltimo captulo traz as consideraes finais e as recomendaes para

    estudos futuros. Nesta parte, ressalta-se que, apesar da heterogeneidade discursiva

    encontrada, uma parte significativa dos enunciados evocados pelos sujeitos decorre de uma

    concepo cultural tradicional-conservadora de cariz modernista que, legitimada pela via

    dos dispositivos institucionais-acadmicos, ainda assume proeminncia por entre o

  • x

    discurso acadmico em msica. Depreendem-se, no entanto, dos atos de fala dos sujeitos,

    criticidades e comprometimento para com as questes educacionais, culturais e sociais que

    lhes assomam. Estas so tomadas enquanto possibilidades dialgicas que, na perspectiva

    terica adotada, podem contribuir para o enriquecimento e aprofundamento dos debates

    acerca de uma formao em msica atenta necessidade de se atentar para diversidade

    cultural e de se problematizar a diferena.

  • Abstract

    The present work seeks to investigate the academic discourse in music as a

    cultural-pedagogic instance that reflects a certain regime of truths on education, music and

    culture, as it contributes to reify notions of culture and education. It is taken, therefore, as a

    qualified speech concerning what should be worth as culture and, consequently, what

    should be legitimate of being taught as curricular musical knowledge.

    The academic discourse in music, as an object of study, is depicted here from

    two basic and interrelated aspects: this discourse reflects and, at the same time, acts upon

    cultural systems and their meanings; but, also, these meanings are confronted with the

    recent matters and social, politics and education demands put by the emergence of the

    multiculturalism understood as much as a theoretical body, as due to the recognition of

    the cultural diversity, a phenomenon clearly identifiable in the contemporary western

    societies. Something that configures the wider social context in which the academic

    discourse in music interferes nowadays.

    This academic discourse, manifested in several textual instances, such as

    scientific papers, pedagogical proposals, curricula, institutional documents and education

    debates in music of every order, is depicted here from the ilocutory acts of teachers of a

    certain higher education institution the School of Music of UFBA concerning culture,

    education and curriculum.

    Important theoretical references for the problematization of the academic

    discourse in music came from the so called Cultural Studies (Hall 1997; 2003) and of the

    critical multiculturalism (Canen 2005; Moreira 2001; Costa 2003; McLaren 1997) that,

    under the impact of the post-modern and post-structuralism theories, emphasizes the

    crucial paper of the language in the constitution of the social and the notion of culture as a

    significance practice and privileged place of the politics of representation.

  • xii

    Along such theoretical contributions, there is also the notion of critical

    pedagogy (Giroux 1997; 1999; and McLaren 2000), that takes the pedagogic practices

    eminently as cultural instances, implicated in mechanisms of moral and social regulation.

    Both authors seek for critically uncover the limits of the dominant discourses in education

    that reify conservative notions of culture and knowledge and that define pedagogy in

    instrumental terms.

    The academic discourse in music is, therefore, located in this understanding of

    the notion of textuality as it encounters itself articulated in dominant forms of

    representation, evident, for instance, in the selection of musical contents, and in the

    establishment of admission criteria for entrance exams to university. All of this affirming

    what counts as legitimate knowledge in music.

    From such considerations about textuality and discourse, the following

    questions orientated the investigation work: how music teachers deal with the emergency

    of the notion of cultural diversity in their pedagogic and curricular practices?; What

    answers have they given to the challenge of facing the condition multicultural of our

    society? Wich concepts of culture and knowledge can be depicted from the academic

    discourses in music? And, above all: How those conceptions structure and determine the

    pedagogical and curricula practices in music education?

    To answer those questions above, five teachers from an institution of higher

    education in music the School of Music of UFBA were taken as subject of the present

    investigation, composing a certain representative group of the following knowledge sub-

    areas in music: music education; interpretative practices; musicology; ethnomusicology;

    composition and analysis. These subjects were interviewed concerning their pedagogic and

    curricula practices trying to discuss their thoughts concerning education, curriculum and

    culture.

  • xiii

    The present work is structured in the following way: the first chapter Starting

    points presents the theoretical references and the social and education wider context in

    wich the problem of this study interferes the emergency of the notion of cultural

    diversity, understood as a condition of the contemporary western societies, but also as the

    strategies developed to deal with it.

    The second chapter deals with the methodological procedures concerning the

    choice of the teachers group that came to compose a sample, in a representative way of

    that that, in this work, is taken as the academic discourse in music. This chapter also seeks

    to justify the option for a qualitative study that takes the interviews as main investigation

    instrument.

    The analyzed data are presented along the third chapter, in which the answers

    obtained in each interview are discussed separately in sub-chapters.

    Finally, the last chapter brings the final considerations and the

    recommendations for future studies. In this part, it is stood out that, in spite of the found

    discursive heterogeneity, a significant part of the statements evoked by the subjects elapses

    a conservative and modern conception of culture that is legitimated by the institutional and

    academics devices. That is something that still assumes prominence amongst the academic

    discourses in music. However, in the ilocutory acts of the subjects we can find criticism

    and compromising to education, cultural, and social matters that face them. These can be

    considered as dialogical possibilities that, in the theoretical perspective adopted here, can

    contribute to the enrichment of the debates concerning the education in music in the wider

    context of cultural diversity.

  • Siglas utilizadas

    BI: Bacharelado Interdisciplinar.

    EMUS-UFBA: Escola de Msica da Universidade Federal da Bahia.

    IES: Instituies de Ensino Superior.

    LEM: Literatura e estruturao musical. Disciplina nuclear do currculo da Escola de Msica da UFBA que trata dos princpios de estruturao horizontal e vertical das alturas musicais, bem como da organizao formal das msicas de tradio europia ocidental.

    PROLICEN: Programa de Formao Inicial para Professores em Exerccio no Ensino Fundamental e no Ensino Mdio (tambm conhecido como Pr-Licenciatura). um programa desenvolvido pelo MEC para professores em exerccio nas sries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Mdio dos sistemas pblicos de ensino que no tenham a habilitao legal (licenciatura), exigida para o exerccio da funo.

    REUNI: De acordo com o site do MEC, o programa Reestruturao e Expanso das Universidades Federais. Tal programa visa ampliar o acesso e a permanncia na educao superior, apresentando-se como uma das aes previstas pelo Plano de Desenvolvimento da Educao PDE, lanado pelo Presidente da Repblica, em 24 de abril de 2007.

    UAB: Universidade Aberta do Brasil.

    UCSAL: Universidade Catlica do Salvador. A qual, ao lado da UFBA possui tambm um curso superior em msica.

    UEFS: Universidade Estadual de Feira de Santana.

    UFRJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • Sumrio Agradecimentos .................................................................................................................. iv Resumo ............................................................................................................................... vii Abstract ............................................................................................................................... xi Siglas utilizadas ................................................................................................................. xiv guisa de introduo ........................................................................................................ 17 Pontos de partida ............................................................................................................... 26

    Situando o problema .................................................................................................................... 29 Currculo, discurso e subjetividade .............................................................................................. 33 O discurso acadmico como objeto de estudo ............................................................................. 34 O discurso como uma prtica ....................................................................................................... 36

    Procedimentos metodolgicos ........................................................................................... 40 Justificando a amostra .................................................................................................................. 40

    A quantidade como questo ................................................................................................................... 41 A amostra ............................................................................................................................................... 43 Situando os professores.......................................................................................................................... 44

    A entrevista e seu processo de construo ................................................................................... 46 Roteiro de entrevista .................................................................................................................... 47

    As implicaes da Lei 11.645 ................................................................................................................ 49 Desafiando a lgica dominante .............................................................................................................. 50 Processos seletivos: o vestibular e a noo de conhecimento em msica .............................................. 51 As declaraes do professor Natalino Dantas ........................................................................................ 52

    Representando os dados ............................................................................................................... 53

    Callado ................................................................................................................................ 54 Questes de diversidade: a Lei 11.645 ........................................................................................ 54 Desafiando a lgica dominante? O currculo como poltica cultural-identitria ......................... 56 Usos do etnocentrismo ................................................................................................................. 58 A diversidade subsumida cultura dominante ............................................................................ 59 Aes afirmativas ........................................................................................................................ 61 Agenda conservadora: o papel dos cursos superiores .................................................................. 65 Vestibular, cnon e hierarquizao de saberes............................................................................. 68 A poltica de seleo: questes de acesso e dfict cultural .......................................................... 72

    O caso do Babalorix ............................................................................................................................. 74 O caso Armandinho ............................................................................................................................... 75 O caso do curso de canto: aceitar o status quo institucional? ................................................................ 80

    Currculo, formao, saberes ....................................................................................................... 83 Sexualidade .................................................................................................................................. 84

    Ceclia ................................................................................................................................. 87 Questes de formao .................................................................................................................. 87 Cariz conservador-etnocntrico ................................................................................................... 89

  • xvi

    Questes de diversidade: a Lei 11.645 ........................................................................................ 94 Desafiando a lgica dominante? Identidades, autoridade e cnone ............................................. 98 Conhecimento acadmico: saberes e identidades sociais .......................................................... 103 O caso Natalino .......................................................................................................................... 109 O caso Armandinho e o conhecimento em msica .................................................................... 112

    Analfabetos musicais ........................................................................................................................... 115 Alfabetizao e letramento .................................................................................................................. 117

    Heitor ................................................................................................................................ 121 Pedagogia e educao superior .................................................................................................. 122 Da dicotomia popular-erudito ilegitimidade do estudo da msica popular ............................. 123 Entre o universalismo e o relativismo cultural: a Lei 11.645 .................................................... 129 Existe uma cultura dominada?: aes afirmativas, mrito e cnon curricular-acadmico ..... 134 Desafiando a lgica dominante: o discurso da teoria como poltica cultural ............................. 138

    Fanny ................................................................................................................................ 141 Desafiando a lgica dominante .................................................................................................. 141 Questes de diversidade: a lei 11.645 ........................................................................................ 145 O perfil do alunado: a esfera popular, o mercado e a formao acadmica ............................... 146 Fanny tergiversa? A diversidade cultural como diferena ......................................................... 150 A problemtica definio do conhecimento em msica ............................................................ 153

    Benedito ............................................................................................................................ 157 Situando o popular ................................................................................................................. 158 Um curso de msica popular: tenses e desafios ....................................................................... 162 Formalismo intra-esttico: o ponto de vista estritamente musical ......................................... 170 Qualquer msica interessante de se olhar!........................................................................... 173 Desafiando a lgica dominante: msica lsbica e gay ............................................................... 174

    Consideraes finais ........................................................................................................ 179 Heterogeneidade e disperso dos sujeitos .................................................................................. 183 Questes para estudos futuros .................................................................................................... 186

    Referncias bibliogrficas ............................................................................................... 190 Anexos: as entrevistas ..................................................................................................... 196

    Heitor, em 23/04/08 ................................................................................................................... 196 Fanny, em 13/05/08 ................................................................................................................... 212 Ceclia, em 02/06/08 .................................................................................................................. 233 Benedito, 16/06/08 ..................................................................................................................... 265 Callado, em 17/06/08 ................................................................................................................. 282

  • guisa de introduo Gostaria de iniciar este trabalho situando-me, eu mesmo, no contexto mais

    amplo de consideraes acerca de msica, cultura e educao. Este um trabalho, afinal de

    contas, cuja motivao central decorre de inquietaes bastante pessoais acerca dos

    processos envolvidos em prticas formativas de uma educao musical institucionalizada.

    Se partirmos do pressuposto de que toda empresa educativa encontra-se,

    sempre e inescapavelmente, animada por intencionalidades subjetivantes no sentido de

    que, atravs de todo ato educativo, seja ele formal ou no-formal, escolar ou no-escolar,

    buscamos influenciar, preparar, incentivar, enfim, moldar determinadas atitudes,

    comportamentos e pr-disposies atravs das quais a estrutura social mais ampla possa,

    assim, se sustentar , ento, no deveramos desvincular nossas experincias, no interior

    das diversas instituies sociais e culturais que buscam nos educar, das dimenses mais

    subjetivas, divisadas por nossos anseios, desejos e valores, tal como se manifestam nas

    itinerncias, dvidas, incertezas, nos tropeos e acertos de nossas trajetrias formativas.

    Por isso, creio que valha a pena comear aqui pelo incio de minhas

    inquietaes acadmicas. Para tanto, tomarei certas reminiscncias acerca de meu

    envolvimento com prticas de educao musical. Para alm de um possvel interesse

    acerca dos fatos aqui narrados, no entanto, ser o eu inscrito na maneira de compreend-

    los e represent-los que, acredito, poder ajudar aos leitores deste trabalho a situar a

    perspectiva de seu autor e a melhor compreender suas motivaes crticas.

    A lembrana que tenho de uma atividade musical mais sistemtica remonta aos

    meus nove ou dez anos. Apesar de que, poca, no tivesse nada daquilo como educao

    musical. Lembro que havia uma professora de violo que dava aulas particulares em sua

    casa, no bairro dos Barris, em Salvador. Meu irmo mais velho e minha irm mais nova

    freqentavam suas aulas, o que nos levava, em meados da dcada de 1970, a conviver

  • 18

    cotidianamente com uma prtica musical popular que era algo muito tpico do cancioneiro

    da poca.

    Meus irmos, uma vez por semana, aps cada aula de violo, voltavam para

    casa, com as letras das canes aprendidas transcritas em seus cadernos. A cada aula, uma

    cano a mais em cada caderno, manuscrita em caneta azul, com o acompanhamento para

    o violo indicado em tinta vermelha, por cima da letra das canes. Ainda lembro do

    prazer que eu tinha ao presenciar meus irmos, assim que chegavam em casa, comearem a

    cantar. A msica saa pela boca e pelas mos deles! Eu achava tudo aquilo fantstico e

    muito tocante ali ocorriam talvez as minhas primeiras experincias estticas, o sentir-se

    tocado pelas artes e pela msica.

    Daquele cancioneiro, a gente escutava desde A praa de Carlos Imperial,

    passando pela banda de Chico Buarque. Alis, Chico era um sucesso: quando meu irmo

    aprendeu Joo e Maria (letra de Chico para a msica de Sivuca, e sucesso na voz de Nara

    Leo, em 1977), a gente ficava em volta dele, escutando-o cantar aquela valsinha. Meu

    irmo s era superado por minha irm quando ela cantava, tambm de Chico, Noite dos

    mascarados.

    Na poca, no nos dvamos conta de que o que vivamos ali era um intenso

    aprendizado musical num determinado mundo de cultura no caso, o mundo divisado pelo

    cancioneiro urbano da poca. E isso era algo que ocorria de maneira muito prxima de

    nossa vida musical cotidiana, numa aprendizagem sistemtica que era, apenas

    aparentemente, informal e descompromissada. Em verdade, havia formalidade naquele

    aprendizado, algo que se dava atravs da seleo de repertrio da professora, mas tambm

    de seu rigor interpretativo (ao indicar com preciso, nos cadernos, o ritmo para cada

    acompanhamento e as harmonizaes), atravs das audies que ela organizava para que

  • 19

    seus alunos e alunas (dentre eles/as, meu irmo e minha irm) pudessem demonstrar para

    seus familiares e amigos o que aprendiam ao longo de um determinado perodo.

    Posteriormente, j adulto, vim a perceber a importncia de tudo aquilo, de

    como a formalidade daquela prtica no prescindia do prazer que tnhamos ao nos envolver

    com ela. Pago aqui, pois, o meu tributo s aulas da professora Candinha, a professora do

    bairro dos Barris, que eu jamais conheci: as lies de violo que jamais tive e as canes

    ficaram marcadas na minha memria, indelevelmente.

    Meu pai tambm tocava violo. Repertrio mais antigo e mais violonstico,

    peas mais elaboradas que davam conta de uma s vez do acompanhamento e da melodia.

    Eu era criana, mas lembro que o que ele tocava me soava incrivelmente bonito e, pelo

    menos para mim, bastante complexo. Ele tocava Abismo de Rosas do repertrio de

    Dilermando Reis, Adelita de Tarrega, e aquela que seria uma de minhas preferidas, com

    ele ao violo, os Sons de carrilhes de Joo Pernambuco.

    Apesar de todas estas experincias, meu aprendizado informal ao violo se deu

    mesmo por conta do advento daquelas revistinhas que traziam canes populares de

    sucesso com as cifras para acompanhamento de violo. A mais conhecida e a mais bem

    editada era a Vigu abreviao para violo e guitarra. Ns a comprvamos assim que ela

    saa nas bancas. L em casa, meu pai, minha irm, meu irmo e, depois, eu, fazamos uso

    dela. Logo aps o perodo das aulas da Candinha, eram com as canes cifradas da Vigu

    que meus irmos se atualizavam e que eu pude comear a me desenvolver solitariamente

    no instrumento.

    Por volta dos meus 13 anos, em 1979, fui encaminhado ao Instituto de Msica

    da Universidade Catlica de Salvador. L, vim a descobrir que para se tocar o chamado

    violo clssico, a gente tinha que segurar o violo de maneira curiosa e um tanto

    esquisita: apoivamos o violo numa perna e, com o auxlio de um pequeno apoio para o

  • 20

    p esquerdo, elevvamos a mesma perna, de modo que o violo repousava sobre ela e

    ficava atravessado diagonalmente o que nos conferia um aspecto muito solene. ramos

    informados de que aquela era a maneira correta, o que significava dizer que se quisssemos

    aprender o violo clssico, teramos de segur-lo daquela forma. Apesar de haver

    estranhado no incio, achei que aquilo parecia muito srio e importante.

    Havia tambm uma apostila para iniciantes que demonstrava como proceder

    para realizar as digitaes da mo direita: pulsao com apoio, pulsao sem apoio; uso do

    polegar, maneiras de arpejar etc. Os primeiros exerccios eram todos feitos com as cordas

    soltas do violo. Nesta fase inicial, nenhuma msica nos era ensinada. Nenhuma msica,

    eu supunha ento, nos seria permitido tocar antes de passarmos por este perodo

    preparatrio. Apesar de tudo aquilo ter me parecido muito srio e sistematizado (ainda que

    pouco ldico, comparativamente ao prazer que obtnhamos quase imediatamente aps as

    aulas de violo de meus irmos), gostava de pensar que eu poderia tocar peas mais

    difceis e sofisticadas. E, tenho de confessar, eu achava que o esforo valeria a pena, afinal

    estava sendo iniciado numa cultura musical de alto prestgio social, algo que me parecia

    profundamente srio, organizado e erudito em seus cdigos e valores.

    Em retrospecto, acho que parte substancial daquele aprendizado exigia de ns,

    iniciantes, um formalismo que retirava do fazer musical muito de sua ludicidade, alm de

    reificar uma noo de cultura como algo dissociado de nossas prticas cotidianas. Acho

    que, naquele momento, estava aprendendo que estudar msica, pelo menos na tradio

    erudita europia, significava ingressar num mundo que praticamente exclua, ou que

    deveria excluir, as prticas e os prazeres cotidianos. No que no houvesse prazer no que

    fazamos (ou uma sensao de realizao mais plena), mas para chegar l teramos sempre

    de passar por um longo perodo de preparao escalas, cadncias, exerccios... Os

    cdigos do violo clssico no se pareciam em nada com os cdigos familiares do violo

  • 21

    popular, a disciplina exigida no permitia transgresso tcnica (leia-se posio das

    mos e do prprio jeito de segurar o instrumento). Alm do mais, seguir as indicaes da

    partitura era um grande imperativo.

    No entanto, importante frisar que eu no desgostava do rigor na verdade, eu

    respeitava aquela disciplina e, como disse antes, a aura de alta cultura me atraa. Mas o fato

    era que sentia que a msica popular que eu tanto gostava no poderia caber ali, a no ser

    em raros momentos furtivos mais descontrados e, por isso mesmo, ilegtimos do ponto de

    vista institucional. Fui aprendendo que havia dois mundos e que um deles o dos

    repertrios e prticas populares poderia desestabilizar e pr em risco o outro.

    Em 1981, ainda antes de terminar o ensino mdio, eu j sabia da existncia dos

    cursos de extenso da EMUS-UFBA, mas a Escola de Msica parecia ser um lugar destinado

    a pessoas muito especiais e talentosas. Havia a fama de que era muito difcil de se passar

    nos testes de seleo para o chamado curso bsico. A gente tinha de saber bem a teoria (na

    verdade, a gramtica bsica de seu sistema de notao) e que, na prova prtica de

    instrumento, se pedia uma leitura primeira vista. Falavam tambm que faramos uma

    prova de percepo, com ditado e solfejo, o que para mim parecia uma coisa reservada a

    profissionais. Tudo parecia muito distante de meus horizontes. E eu me encontrava, alm

    de tudo, muito incerto e inseguro acerca de meu talento para aquela msica a erudita.

    Incentivado por amigos, busquei me preparar para o tal teste de seleo e, para minha

    surpresa e alegria, fui aprovado.

    No entanto, na primeira aula de violo, ao me deparar com uma partitura que

    me parecia complicada demais, e com a exigncia do professor (que me parecia severo e

    rigoroso demais) de prepar-la para a aula seguinte, fui tomado de um pavor to bobo

    quanto inexplicvel e desisti do curso de extenso. Simples assim, no voltei mais l.

  • 22

    Quer dizer, a minha fuga no seria to inexplicvel assim: naquele momento, a

    noo de talento estava no s naturalizada em mim, como uma certa concepo

    conservadora de cultura, uma vez que aquilo que eu vivenciava intensamente enquanto

    cultura popular, em meu cotidiano, no tinha como se equiparar cultura erudita. Penso

    hoje que, naquele momento, ao desistir das aulas no curso de extenso da EMUS-UFBA, eu

    estava aceitando a noo de que o ensino especializado de msica deveria ser reservado

    para poucos, para os verdadeiramente talentosos. As implicaes de tal crena eu s viria a

    compreender e problematizar anos depois.

    Mas o que havia de cultural ou artstico na Educao Bsica, neste perodo?

    Muito pouco, quase nada, a no ser em espaos e locais muito furtivos. Ao chegar ao

    ensino mdio, a coisa ficaria ainda pior. preciso que se diga que chegvamos, ns da

    classe mdia, nesta fase de nossa escolarizao, j bastante assustados com o fantasma do

    vestibular e com toda a presso que se criava em torno disso. Algo que se traduzia na

    noo de que fracassar ali significaria a completa runa daquilo que nossas famlias

    projetavam para nossas vidas. Assim, a idia de seguir uma carreira em msica me parecia

    no apenas descabida (uma vez que, naquela perspectiva de erudio, eu no me julgava

    suficientemente capaz), mas principalmente arriscada. Somado a isso, havia o medo

    burgus que se traduzia nas angustiantes questes: que profisso eu poderia vir a ter

    fazendo um curso de msica? Se no pudesse ter destaque como instrumentista-intrprete,

    solista ou de orquestra, que outra funo poderia desempenhar? Me escapavam, ento,

    outras possibilidades de vir a trabalhar com msica. Me escapava, alis, a prpria noo de

    msica como rea de conhecimento.

    Neste perodo eu ainda cursava o ensino mdio que eu suportava

    estoicamente, querendo acreditar que fazia o que de melhor meus pais esperavam de mim.

    Mas se a escola era a um s tempo tediosa e culturalmente rida havia um territrio no qual

  • 23

    havia diverso, cultura e arte e que passava a se descortinar para adolescentes entediados

    como eu: falo da msica popular e, em particular, do rock and roll. Por voltas de 1983,

    ento com 16 anos, formaria com um grupo de amigos a Banda Flores do Mal.

    Ensaivamos com muita regularidade e com uma seriedade e dedicao que no deixava

    dvidas quanto ao propsito de nos tornar profissionais.

    Em meados de 1985, eu estava buscando fazer algo mais srio, algo que

    justificasse perante meus pais que todo aquele meu envolvimento com msica no era um

    mero passatempo ou atividade diletante. Alm do que, eu mesmo gostaria de estar

    estudando msica de maneira mais sistemtica e formal. Achava acima de tudo que eu

    precisava estudar e me aprimorar.

    Assim, no ano seguinte, em 1986, eu ingressava no Curso de Licenciatura em

    Msica da Universidade Federal da Bahia. No entanto, cedo descobriria que a graduao

    em msica no seria motivo de muitas alegrias. Alis, comparativamente minha vida de

    baixista de rock, minha vida acadmica no Curso de Licenciatura, era mais motivo de

    angstia e ansiedade do que propriamente satisfao.

    Fiquei na instituio, de maneira errtica, por trs anos. Neste perodo, eu j

    aceitava que aquilo que eu fazia como msico prtico, aquilo que tinha uma importncia

    vital para mim, no poderia ser levado muito a srio pela instituio. Afinal, assim eu

    pensava, ali no era lugar para algo to pouco srio como o rock que eu tanto gostava e

    nem para aquelas formas populares ligadas chamada indstria cultural, ao lazer das

    massas e orientadas para o mercado. Nada daquilo era legtimo de ser considerado,

    discutido, aventado como assunto relevante para a formao acadmica.

    Tambm no tinha muita idia do que faria num curso de licenciatura de

    incio, estava mais animado com a possibilidade mesma de poder estudar msica de

    maneira sria e numa instituio que tinha enorme prestgio acadmico. Alm do que, a

  • 24

    Licenciatura em Msica naquela poca, mais do que hoje certamente, era a opo mais

    fcil para ingresso daqueles que no dominavam os cdigos e as prticas cannicas e que,

    portanto, sentiam-se pouco capazes de prestar vestibular para os cursos de instrumento,

    regncia e composio cursos de maior prestgio social, uma vez que requeriam um

    maior domnio de conhecimentos prvios mais especficos. Em verdade, acalentava a idia

    de ir me preparando, me inteirando do cnon acadmico-musical e pedir uma transferncia

    para o curso de Instrumento cujo status me parecia bem mais atraente.

    Em retrospecto, percebo hoje que por mais que aceitasse que aquilo que eu

    fazia no meu cotidiano no deveria ter lugar na instituio, e por mais que buscasse me

    adequar e compreender os cdigos acadmicos da instituio com seus valores, suas

    regras de conduta, seus repertrios, seus saberes legtimos , mais sofria com a minha

    inadequao e com a minha dificuldade para super-la. O que, no final das contas, era

    fonte de muita frustrao: afinal, eu no s admirava como almejava fazer parte da vida

    musical cannica, da Escola de Msica.

    No meio destes tropeos e contratempos, em que buscava me encontrar

    musicalmente na instituio, tentava tambm compreender o que fazer com o meu curso de

    Licenciatura. medida que o tempo passava, o plano de pedir transferncia para o curso

    de instrumento (violo) ia perdendo sentido, at que resolvi, aps o ano letivo de 1989,

    deixar a Escola de Msica.

    Obviamente que esta histria no se encerra aqui. Eu retornaria instituio

    formadora e concluiria a Licenciatura em Msica. Alis, devo dizer, parte dos

    desdobramentos posteriores de minha formao acadmica vieram a culminar na feitura

    deste trabalho. Tudo o que se segue a este prembulo deve ser compreendido, pois, como

    uma tentativa de abordar algumas das minhas inquietaes mais profundas acerca da

    formao acadmica em msica. Deixemos por ora os prolegmenos e vamos s

  • 25

    consideraes mais pontuais acerca do objeto deste estudo o discurso acadmico em

    msica.

  • Pontos de partida Durante muito tempo, um tempo que me pareceu (e que ainda me parece) ter

    durado uma eternidade,1 estive lidando com este grande desafio: como formalizar, como

    transformar em objeto de investigao o teor das discusses acaloradas, por vezes irnicas,

    mal-criadas, at raivosas, que ocorriam numa determinada comunidade acadmica em

    msica? Como tomar os atos ilocutrios que me envolviam to intensamente, fazendo-me

    despender quantidade enorme de tempo e energia, para dar conta do que julgava

    importante de ser dito acerca de cultura, msica e educao? Como poderia transformar em

    dados objetivos tudo aquilo que causava tanto alvoroo e pelo qual me encontrava to

    intensamente envolvido?

    Refiro-me, aqui, a uma troca intensa de e-mails que, em dado momento de

    meus estudos de ps-graduao, se deu numa certa mailing list (um grupo de discusso via

    internet), na qual, eu e outros participantes, professores e alunos de um programa de ps-

    graduao em msica, empreendamos verdadeiras batalhas, lutando pelo significado

    ltimo de nossas crenas sobre cultura e currculo no mbito da formao superior em

    msica.

    Estvamos ali isso em meados do ano de 2004 tratando de assuntos que

    diziam respeito diretamente formao superior em msica e, consequentemente, ao que

    deveria contar como conhecimento legtimo de ser ensinado na rea de msica. Debates

    que se estruturavam ao redor de assuntos to variados quanto a necessidade de

    regulamentao da profisso de msico o que, para alguns, pressupunha a comprovao

    de uma formao acadmica definida em termos estreitos ; ou, em outros debates mais

    1 eternidade, descontado o exagero da metfora, refiro aqui o longo tempo de maturao que levei para

    divisar o presente objeto de minhas preocupaes acadmicas em msica. Algo que, de certo modo, j me inquietava desde o incio de meus encontros com os saberes sistematizados da educao musical institucionalizada, mas que sem dvida assumiram maior proeminncia durante o perodo de minha ps-graduao.

  • 27

    acirrados, que tratavam da pertinncia de se considerar ou no a msica popular como

    assunto de relevo acadmico.

    A partir desta mailing list, passei a me dar conta de que as discusses e

    embates tericos, principalmente pela intensidade com que nos envolvamos, forneciam

    uma amostra significativa da importncia capital que atribuamos a nossos discursos

    tanto por aquilo que eles refletiam enquanto premissas tericas, vises de mundo e

    concepes de cultura, quanto pelos sentidos e significados que faziam circular, evocando

    outros discursos sobre cultura e educao, basicamente atravs dos quais efetivamente

    falvamos e defendamos nossas posies. A partir daqueles debates pude melhor

    compreender nossos atos ilocutrios, seguindo Foucault, como aquilo pelo qual se luta, o

    poder de que queremos nos apoderar (Foucault 1999).

    Seguindo, pois, a perspectiva foucaultiana de discurso, mas tambm, em

    grande medida, aportes tericos ps-modernos particularmente aqueles decorrentes da

    noo de virada lingstica e do ps-estruturalismo passava a compreender aquelas

    instncias discursivas como parte significativa de um conjunto maior de saberes, que

    passei a denominar de discurso acadmico em msica um discurso que tanto reflete um

    determinado regime de verdades, sobre educao, msica, cultura, quanto contribui para

    reific-lo. Sua dimenso cultural e pedaggica residindo no fato de ser este um discurso

    qualificado, que versa, em ltima anlise, acerca do que deve valer como cultura e,

    consequentemente, do que se tem como legtimo de ser ensinado e de constar como

    conhecimento curricular.

    Era preciso interrogar este discurso, era preciso interpel-lo e buscar, tanto

    naquilo que ele afirmava quanto naquilo que ele negava, seus pressupostos

    espistemolgicos subjacentes s suas concepes de cultura e seus pontos de vista sobre

    educao e currculo.

  • 28

    No entanto, ocorria-me, que poderia tratar de instncias discursivas mais

    localizadas, mais prximas a mim, o que me permitiria maiores possibilidades de

    interlocuo. Poderia situar tais instncias discursivas num mesmo lcus, atravs do qual

    estes discursos circulassem de um modo menos disperso, comparativamente ao das

    comunidades que se estruturam a partir dos textos e dos embates que ocorriam nas arenas

    virtuais dos grupos de discusso de internet.

    Me parecia cada vez mais atraente a idia de que o discurso acadmico em

    msica poderia ser capturado a partir do que professores de uma determinada instituio de

    ensino superior de msica teriam a dizer acerca de cultura, educao e currculo. Ou seja,

    para alm dos textos acadmicos, dos artigos cientficos e, tambm claro, dos e-mails

    (por vezes impertinentes e desaforados e, por isso mesmo bastante reveladores) de um

    grupo de discusso. Alis, uma vez que alguns dos professores desta instituio haviam

    participado, junto comigo, daqueles embates tericos via internet, poderia agora no s

    utiliz-los como um pretexto para iniciar nossas conversas, mas, tambm e principalmente,

    para ter a oportunidade de retom-los e situar melhor os nossos posicionamentos. At

    porque, naqueles espaos, no calor das discusses, no af de nossas disputas e da tentativa

    de fazer valer nossos pontos de vista, os argumentos muito frequentemente se auto-

    obliteravam.

    Pois assim foi: dos debates no espao virtual de uma determinada mailing list,

    a partir dos quais pude perceber a importncia substantiva de nossos discursos, s

    entrevistas intensivas com professores de msica de uma determinada instituio de ensino

    superior de msica a Escola de Msica da Universidade Federal da Bahia que, no por

    acaso, era a instituio na qual tinha me graduado (Licenciatura) e feito o meu mestrado

    (tambm na rea de Educao Musical).

  • 29

    Situando o problema Para a delimitao do problema de pesquisa, parto de dois pressupostos bsicos

    e inter-relacionados. Em primeiro lugar, o de que o discurso acadmico em msica

    configura-se como um dispositivo de efeitos culturais e pedaggicos, cujos saberes e

    valores tanto refletem quanto divisam um determinado regime de verdades acerca do que

    deve contar como conhecimento vlido em msica e educao musical, um discurso

    qualificado que opera sobre sistemas culturais e seus significados.

    preciso dizer que a noo de pedagogia, aqui, associada ao discurso

    acadmico em msica, no relativa apenas sub-rea da Educao Musical, mas aos

    processos pedaggicos mais amplos em msica sejam eles advindos da formao

    superior ou da educao bsica. Isto significa que, neste estudo, as implicaes culturais e

    educacionais do discurso acadmico em msica no se referem apenas sub-rea da

    Educao Musical ou s questes que envolvem a Licenciatura em Msica, mas tambm

    formao acadmica em msica de uma maneira geral.

    Mas parto tambm do pressuposto de que os significados divisados pelo

    discurso acadmico em msica se vem confrontados com as recentes questes e demandas

    sociais, polticas e educacionais postas pelo advento da noo de multiculturalismo

    compreendido aqui tanto como um corpo terico, quanto decorrente do reconhecimento de

    um fenmeno claramente identificvel nas sociedades ocidentais contemporneas (Canen e

    Moreira 2001). Alm do que, no momento em que a diversidade cultural no somente

    discutida como tambm incorporada nas polticas educacionais nacionais uma vez que j

    contamos com a recomendao de incorporao desta temtica, na formao de

    professores, em diretrizes e parmetros curriculares nacionais (Brasil 1998; 2004) de se

    perguntar acerca do que isto representa em termos de questionamento da poltica cultural e

    curricular dominante das instituies de ensino superior em msica.

  • 30

    Para Giroux, tais questionamentos, no mbito da formao acadmica superior,

    versam, em ltima anlise, sobre defender, reconstruir ou eliminar um determinado

    cnone (1999, 108), e devem ser compreendidos

    ... dentro de uma extenso mais ampla de consideraes polticas e tericas que recaem diretamente sobre a questo de se a educao das cincias humanas deve ser considerada um privilgio para poucos ou um direito para a grande maioria dos cidados (Giroux 1999, 108).

    Esta uma discusso que se faz necessria, principalmente quando nos damos

    conta de que no mbito acadmico-institucional em msica, tende-se, de uma maneira

    geral, a conceber as prticas pedaggicas como algo dissociado das questes polticas e

    culturais mais amplas da sociedade. De fato, mesmo nas reas de Educao Musical e

    Etnomusicologia reas de saber nas quais as vinculaes entre cultura e sociedade so

    mais evidentes , as implicaes polticas e culturais das questes que envolvem o

    conhecimento, mas tambm a prpria noo de autoridade envolvida no estabelecimento

    do cnon acadmico em msica, no parecem figurar como questes centrais a seus

    campos de investigao.2

    A partir de tais consideraes, busco responder as seguintes questes: como

    professores/as de msica lidam com a emergncia da noo de diversidade cultural em

    suas prticas pedaggico-curriculares?; Que respostas temos dado ao desafio de encarar a

    condio multicultural de nossa sociedade?; Que concepes de cultura e conhecimento se

    depreendem dos discursos acadmicos em msica? Mas, principalmente: De que modo tais

    concepes estruturam/determinam prticas pedaggicas e curriculares em msica?

    2 A este respeito so dignas de nota as consideraes de Travassos (2001) acerca do cnon acadmico de sua

    prpria rea. A autora chama a ateno para a preferncia histrica da etnomusicologia pelos temas que tm a ptina dos mundos folk pr-capitalistas (p.81), e destaca, como exemplo, o desinteresse por parte dos pesquisadores pela realidade musical evanglica que se faz presente na instituio de ensino superior onde leciona. Ao mesmo tempo, discute a poltica cultural posta em ao numa determinada instituio de ensino superior que, ao estabelecer um determinado currculo voltado msica popular, reifica vises conservadoras de cultura.

  • 31

    A razo de situar as discusses no mbito da educao superior justifica-se por

    serem tais instituies instncias importantes de afirmao e legitimao de conhecimento

    e de vises de mundo, locais que produzem uma ordem particular de narrativas, sendo, por

    isto, profundamente polticos e normativos. As consideraes de Giroux, a este respeito

    merecem ser citadas aqui:

    ... a universidade no simplesmente um lugar para se acumular conhecimento disciplinar que possa ser trocado pelo emprego decente e pela mobilidade ascendente. Nem um lugar cujo propsito seja meramente cultivar a vida da mente ou reproduzir o equivalente cultural do Masterpiece Theater. Acredito firmemente que as instituies de educao superior, independente de seu status acadmico, representam lugares que afirmam e legitimam as vises de mundo existentes, produzem novas, e garantem e moldam relaes sociais particulares; simplificando, so locais de regulamentao moral e social. (Giroux 1999, 108).

    A partir da nfase na dimenso poltica da educao, tal como incorporada por

    autores como Giroux (1995; 1997; 1999; 2003) e McLaren (1997; 2000), proponentes

    importantes e profcuos da chamada pedagogia crtica, no h como deixar de reconhecer o

    ensino superior como uma esfera cultural pblica importante,

    ... que cultiva e produz histrias especficas de como viver tica e politicamente, [cujas] instituies reproduzem valores selecionados e abrigam, em suas relaes sociais e prticas de ensino, conceitos especficos em relao a que conhecimento mais valioso, o que significa conhecer algo e como se pode construir representaes de si, de outros e do ambiente social (Giroux 1999, 108).

    No que concerne mais especificamente rea de msica, a relevncia de se

    investigar as representaes, idias e valores que conformam seu campo discursivo

    justifica-se pela seleo que efetiva sobre repertrios e prticas musicais; por ser este um

    lugar onde se cultiva o bom gosto, um espao no qual podemos observar a

    distribuio de valor que permeia as classificaes sociais dos repertrios (Travassos

    2005, 11). Ou seja, um lugar privilegiado de legitimao e instituio do cnon cultural e

    musical.

  • 32

    Busco aqui compreender o discurso acadmico em msica, portanto, como uma

    parte importante da configurao da educao musical institucionalizada no caso, da

    educao musical superior a partir de perspectivas tericas que nos auxiliem a

    desnaturalizar alguns de seus pressupostos epistemolgicos, mas tambm seus efeitos

    culturais, ou seja, de instituio de significados.

    Esta uma dimenso importante e que gostaria de enfatizar neste trabalho:

    desnaturalizar um determinado estatuto de saber significa, como nos recomenda Veiga-

    Neto (2001), entender seu carter contingente, social e histrico e, por isso, pensar em

    outras possibilidades que busquem no s demonstrar como nos tornamos o que somos,

    mas que evidenciem alternativas viveis de se compreender e modificar a realidade social

    que, no caso do presente estudo, refere-se, primordialmente, ao questionamento das

    implicaes culturais e pedaggicas do que se estabelece como o cnon acadmico-

    institucional em msica.

    Por fim, a partir deste estudo, espero poder chamar a ateno para a relevncia

    dos debates acerca dos processos acadmicos de legitimao cultural do conhecimento em

    msica. Afinal, como nos alerta Giroux (1999), esta uma tarefa eminentemente poltica,

    que diz respeito fundamentalmente organizao de formas especficas de representaes,

    valores e identidades:

    As relaes da pedagogia e de poder esto intricadamente ligadas no apenas ao que as pessoas sabem, mas tambm ao modo como vm a saber de uma determinada maneira dentro das restries de formas culturais e sociais especficas (1999, 117) [grifos meus].

    Tomar o discurso acadmico, enquanto instncia cultural e pedaggica

    centralmente envolvida na produo de significados em msica e em educao musical,

    pode ser um bom ponto de partida para isso: ou seja, para interrogar o que se amplia ou se

    limita atravs dele; para que nos questionemos acerca de seus efeitos culturais e

  • 33

    pedaggicos. Enfim, para que possamos interrogar mais criticamente a nossa prpria

    agncia e o sentido de nossas prticas educacionais.

    Currculo, discurso e subjetividade Dentre as instncias discursivas no mbito educacional, o currculo sem

    dvida uma das mais discutidas na literatura crtica e ps-crtica da sociologia da educao.

    Segundo Silva (2003), ainda que um currculo possa exercer pouco ou nenhum efeito

    substantivo no nvel da prtica, enquanto elemento discursivo de uma determinada poltica

    educacional, ou seja, enquanto texto, o currculo um elemento simblico importante, por

    refletir os pontos de vista daqueles que se encontram autorizados a expressar suas

    perspectivas, concepes e premissas culturais e educacionais no texto curricular.

    Uma outra dimenso do texto curricular refere-se, de acordo com Veiga-Neto

    (2002), articulao entre os saberes, selecionados e organizados num currculo, e sua

    efetivao prtica. Algo que se d atravs de processos disciplinares, cujos efeitos de

    significao e subjetivao constituem um importante elemento da poltica educacional.

    Na medida em que ele [o currculo] se estabelece disciplinarmente e na medida em que a sociedade moderna uma sociedade que se torna cada vez mais disciplinar ..., o currculo acaba funcionando tambm como um poderoso dispositivo subjetivante, envolvido na gnese do prprio sujeito moderno (p.171).

    Nesta perspectiva, os mecanismos e processos culturais de subjetivao

    tornam-se um problema pedaggico relevante. Se passarmos a considerar a subjetividade

    no como um atributo essencializado e transcendental, advindo de uma suposta natureza ou

    ontologia humana, mas sim como um construto histrico, socialmente determinado,

    produzido e reproduzido atravs de prticas discursivas (e somente acessvel atravs delas),

    poderemos ento tornar problemticas as formas sociais, histricas e, portanto, culturais

    atravs das quais se criam as condies para que determinadas subjetividades (e no

    outras) prevaleam.

  • 34

    Da a relevncia de se tomar os textos e discursos pedaggicos como instncias

    culturais, centralmente envolvidas em processos de subjetivao. Mas no de modo

    fechado. Se os processos textuais e discursivos so contingentes, haver sempre a

    possibilidade de desconstru-los (e, portanto, de descentrar os sujeitos), algo que pode se

    dar mediante o desvelamento de seus mecanismos e efeitos de subjetivao, para que

    possamos explicitar o que pode ser constrangido ou ampliado atravs deles; e, ao mesmo

    tempo, apontando para outras possibilidades de subjetivao talvez mais resistentes a

    prticas que porventura oprimam ou restrinjam nossa agncia.

    Conceber a subjetividade como um efeito de disputas discursivas,

    inextricavelmente associada a foras sociais e culturais, uma das contribuies

    fundamentais da teorizao ps-moderna e ps-estruturalista para uma perspectiva crtica

    em educao, uma vez que, a partir delas, passamos a compreender que nossas

    subjetividades no decorrem de fenmenos transcendentes, correlatos de atributos

    essenciais e metafsicos oriundos de uma natureza humana comum.

    Enfim, se podemos considerar o currculo como um texto cultural, e como tal

    implicado em prticas de significao, poderemos, ento, assumir como parte do inevitvel

    papel poltico dos educadores buscar desvelar os pressupostos epistemolgicos que o

    informam; e assim, consequentemente, ampliar nossa compreenso acerca de como operam

    seus mecanismos e efeitos de significao, para que possamos nos posicionar criticamente

    em relao a eles, discutindo-os em funo das possibilidades e/ou limitaes sociais que

    apresentam.

    O discurso acadmico como objeto de estudo No entanto, ainda que saibamos da importncia substantiva da poltica cultural

    posta em ao pelas prticas e discursos curriculares, elegemos, aqui, o discurso

    acadmico, tal como proferido pelos docentes de uma determinada instituio de ensino

  • 35

    superior, como objeto privilegiado de investigao. Isto no significa ignorar o currculo,

    mas levar em conta que, se o currculo um poderoso dispositivo subjetivante, seus efeitos

    podem ser tambm encontrados nos discursos docentes que, em ltima anlise, refletem e

    se organizam a partir de uma determinada ordem de saber.

    Alm do mais, a anlise do texto curricular, per se, necessitaria ser

    complementada pela anlise daquilo que o discurso docente manifesta acerca de sua

    prpria prtica pedaggica. Em concordncia com Veiga-Neto,

    Se, por um lado, o currculo que d sustentao epistemolgica s prticas espaciais e temporais que se efetivam continuamente na escola, por outro lado, so as prticas que do materialidade e razo de ser ao currculo (2002, 172) [grifo meu].

    Em outros termos, atravs do discurso docente podemos ter acesso quilo que

    (ainda) no est l, no currculo, quilo que o professor pensa/diz a respeito de sua prpria

    prtica (a despeito das prescries do texto curricular); e o que ele pensa/diz dele, ou seja,

    s maneiras como o currculo compreendido, criticado ou reificado pelos professores.

    Atravs do discurso docente, podemos ter acesso quilo que dinmico e contingente,

    quilo que se faz mais presente no discurso do que propriamente no texto curricular.

    Como afirma Macedo (2006), em educao, certas prticas no so discursos,

    mas os discursos sustentam, orientam e justificam a prtica. Alm do que, o discurso

    constitui, ainda, significativamente, parte da atividade do professor e do aluno (p.104).

    Ainda seguindo Macedo (2006), uma vez que a educao como todo

    processo formativo/cultural de instituio e reproduo de significados edifica-se

    mediante processos de reconstruo mental do real pelos sujeitos nela envolvidos, a

    linguagem configura-se tanto como fonte quanto produto da comunicao. O que reitera a

    relevncia de se tomar os discursos sobre educao e sobre os processos formativos, de

    uma maneira geral, tal como proferidos pelos professores e professoras de uma

    determinada instituio.

  • 36

    O discurso acadmico pode ser tomado, portanto, como uma modalidade de

    comunicao especializada, situada numa determinada ordem ou estatuto de saber (Daz

    1998). O que significa dizer que o discurso docente no resulta de escolhas individuais

    autnomas, mas sim de uma ordem de saber instaurada a partir de foras que definem o

    que conta como conhecimento verdadeiro.

    Dito de outro modo, a ordem dos saberes em msica, seu estatuto e seu

    fundamento epistemolgico so construes sociais e histricas, politicamente

    comprometidas, uma vez que resultam de foras que lutam por valer suas verdades.

    Admitir seu carter contingente tem implicaes importantes para a discusso de seus

    efeitos culturais e pedaggicos: a possibilidade de que esta ordem possa ser criticada e

    contestada, de modo que outras narrativas, experincias e pontos de vista possam vir no

    s a reivindicar a legitimidade de suas perspectivas e interesses, mas tambm a resistir

    imposio das verdades totalizantes do conhecimento universalmente vlido.

    O discurso como uma prtica A questo da correspondncia entre o discurso e a prtica, ou entre discurso e

    realidade, por vezes tomada como um problema a ser considerado. E a ausncia de tais

    articulaes, como uma pendncia a ser discutida com maior seriedade num trabalho de

    investigao que consideraria apenas o discurso dos docentes como objeto de

    investigao. Tal questo costuma ser posta nos seguintes termos: mas no se ir verificar

    a correspondncia (ou falta de) entre o discurso dos docentes e suas prticas concretas?

    H algumas importantes premissas tericas que devem ser considerados aqui e

    que podero nos ajudar a melhor situar a problemtica da relao entre discurso e prtica.

    Ou, pelo menos, a problematiz-la de modo mais adequado em relao perspectiva

    epistemolgica que adoto na presente investigao.

    Ao analisar um discurso mesmo que o documento considerado seja a reproduo de um simples ato de fala individual , no estamos diante da

  • 37

    manifestao de um sujeito ... o sujeito da linguagem no um sujeito em si, idealizado, essencial, origem inarredvel do sentido: ele ao mesmo tempo falante e falado, porque atravs dele outros ditos se dizem (Fischer 2001, 207).

    Ou seja, no so propriamente as coisas que interessam, nesta perspectiva

    apesar de que elas sejam importantes. O que interessa fundamentalmente so os regimes

    de verdade acionados por um determinado campo discursivo e divisados em funo

    daquilo que ele possibilita ou interdita, em funo daquilo que ele permite que se tome

    como conhecimento em msica, em funo dos significados que produz e que so

    acionados a partir dos atos ilocutrios dos sujeitos do presente estudo. O interesse no est,

    portanto, na correspondncia factual entre palavras e coisas, ou entre teoria e prtica. Mas,

    sim, nas regras, nos interditos, nas possibilidades, postas em ao por um determinado

    campo discursivo.

    Segue-se, da, que uma nova concepo de objetividade, uma vez que nesta

    perspectiva epistemolgica, as prticas sociais se constituiriam discursivamente e a prpria

    sociedade entendida como um vasto tecido argumentativo no qual a humanidade constri

    sua prpria realidade (Laclau apud Fischer 2001, 200).

    A realidade objetiva constitui-se, pois, no interior de tramas discursivas, uma

    vez que sero as regularidades de um dado campo enunciativo que divisaro o que

    poderemos tomar como discurso sobre o real. Assim, o discurso dos professores (ou de

    um grupo de professores) de uma determinada instituio de ensino superior pode revelar,

    atravs das regularidades que apresenta, aquilo que constitui o meu objeto de investigao

    e que tomo aqui como uma das possibilidades de representao do que estou

    considerando como o discurso acadmico em msica.

    Contudo, um objeto de investigao no se define, nem pode ser apreendido,

    por intermdio da descrio de sua suposta natureza intrnseca, atravs da qual se revelaria

    a sua verdade. O discurso acadmico em msica revela-se, aqui, atravs das relaes que

  • 38

    estabelece com outras formaes discursivas que podem lhe ser concorrentes, que podem

    rivalizar com suas verdades. Ou seja, o discurso que se busca divisar aqui ser

    apreendido a partir das maneiras como responde a certas questes provenientes das

    demandas contemporneas do multiculturalismo, de certas provocaes epistemolgicas

    oriundas da chamada virada cultural, a partir da maneira como lida com as questes

    contemporneas postas pelo advento da noo de multiculturalismo e diversidade cultural.

    Para tanto, para se pensar a questo fundamental da formao em msica

    questo que remete a consideraes sobre a legitimao acadmica do conhecimento em

    msica e, portanto, aos processos de ensino-aprendizagem e de avaliao deste

    conhecimento faz-se necessrio que o discurso acadmico em msica volte-se sobre si

    mesmo ao ser interrogado acerca de seus pressupostos epistemolgicos fundamentais: o

    que significa conhecer msica? Como se avalia este conhecimento? Que responsabilidades

    e implicaes sociais temos, enquanto instituio pblica de formao superior, ao

    definirmos os projetos pedaggicos e curriculares relativamente sociedade mais ampla e

    ao que definimos como bem comum?

    Mas como ficaramos em relao questo de que um discurso, um ato

    ilocutrio especfico, pode no se referir ou corresponder a aes concretas? E que,

    portanto, um estudo cuja base emprica fosse to somente aquilo que dito por

    determinados sujeitos seria insuficiente enquanto esforo de apreenso da realidade?

    Primeiramente, porque no interessam as coisas, propriamente falando, mas

    os significados atribudos a elas e, mais que isso, aquilo que permite que as coisas sejam

    pensadas de uma determinada maneira (e no de outra). Em segundo lugar, porque, como

    nos diz Foucault: o discurso uma prtica.

    No se pode perder de vista, pois, a enorme e significativa contribuio de

    Foucault para a compreenso da centralidade do discurso: a noo de que a disputa por

  • 39

    significados, a disputa pelo sentido que atribumos s coisas, tudo isto se refere a uma luta

    poltica, ou seja, a uma disputa imersa em relaes de poder, algo que se d no interior de

    formaes discursivas cujos enunciados polemizam entre si.

    A teoria do discurso est intimamente ligada questo da constituio do sujeito social. Se o social significado, os indivduos envolvidos no processo de significao tambm o so e isto resulta em uma considerao fundamental: os sujeitos sociais no so causas, no so origem do discurso, mas so efeitos discursivos (Pinto apud Fischer 2001, 206-207).

    Segundo Fischer (2001), as coisas ditas encontram-se radicalmente

    amarradas s dinmicas de poder e saber de seu tempo. A tarefa que se descortina,

    enquanto possibilidade mesma de transgresso produtiva de um determinado regime de

    verdade, reside, pois, na compreenso das regras deste dado regime para que assim

    possamos apontar para a possibilidade de seu desmonte, por desvelar aquilo que ele

    interdita, aquilo que ele apenas permite que exista enquanto verdade.

    Quando os sujeitos deste estudo se apropriam de um certo discurso acadmico,

    no s falam atravs dele, mas tambm acionam as regras que fixam enunciados acerca do

    que significa conhecimento em msica. Ou seja, os sujeitos, pela posio que ocupam,

    falam atravs de (e, portanto, fazem falar) um determinado discurso qualificado um

    discurso de professores de uma instituio de ensino superior sobre o que conta ou deve

    contar como conhecimento em msica.

  • Procedimentos metodolgicos Justificando a amostra

    No apropriado falar em escolha para se referir ao grupo de professores e

    professoras que participaram do presente estudo. A amostra, aqui, refere-se a um grupo

    heterogneo, composto por professores que, alm do fato de ensinarem msica na mesma

    IES a Escola de Msica da UFBA , e de representarem certas sub-reas de conhecimento

    em msica (educao musical; etnomusicologia/musicologia; composio e anlise;

    prticas interpretativas); terminaram sendo reunidos, em ltima anlise, por terem

    manifestado interesse em participar do presente trabalho de investigao.

    O que estou querendo dizer que a amostra obtida resultou mais de

    intencionalidades mutuamente subjetivas tanto de minha parte quanto da dos professores

    que aceitaram participar do que de procedimentos determinados a priori e idealmente

    baseados em critrios de neutralidade cientfica. O que no significa dizer que no tivesse

    estabelecido certos critrios de escolha e que, portanto, j no tivesse alguns perfis, ou

    algumas categorias em mente, atravs dos quais buscasse compor o grupo de professores

    que participaram deste estudo.

    Para proceder seleo dos professores a serem entrevistados, era importante

    que o grupo formado fosse representativo, tanto quanto possvel, de um determinado

    coletivo mais amplo no caso, aquele formado pelos professores da Escola de Msica da

    UFBA. Assim, pensava em compor um grupo com representantes de cada uma das sub-

    reas de conhecimento em msica educao musical; etnomusicologia e musicologia;

    composio e anlise; prticas interpretativas.

    Algumas dvidas, no entanto, me ocorriam desde o incio da formalizao dos

    procedimentos metodolgicos. A primeira delas que eu tinha que entrevistar alguns

    professores aqueles que tinham protagonizado intensos debates anteriormente comigo,

  • 41

    numa mailing list, acerca de cultura, educao e currculo na rea de msica, debates que

    exerceram enorme impacto sobre mim, a ponto de me fazer modificar radicalmente meu

    projeto inicial de pesquisa o que veio a culminar na realizao do presente estudo.

    A quantidade como questo

    Tal sobre-determinao auto-imposta levava-me a questionar os tais critrios

    de neutralidade e objetividade que supostamente me conduziriam a uma amostragem

    representativa isenta de interesses. Ao contrrio, passava a considerar que uma amostra

    intencional no s me era a melhor, mas talvez nica vivel. Mas restava ainda a questo

    acerca de quantos professores e quantas entrevistas deveria realizar.

    De acordo com Zago (2003), dentre as questes acerca da utilizao de

    entrevistas em estudos que envolvem a relao de atores sociais com processos

    educacionais, uma das que merece especial ateno refere-se quantidade de entrevistas a

    realizar. Para esta autora, quando temos que entrar na lgica das investigaes qualitativas,

    as entrevistas, assim como os demais procedimentos metodolgicos, devem inscrever-se

    em outros modelos de construo do objeto de investigao. Como afirma Zago:

    O nmero a considerar no independente dos propsitos do estudo, de sua problemtica e seus fundamentos. ... o nmero um falso problema porque coloca num mesmo plano entrevistas com status muito diferentes, com objetivos diferentes (Zago 2003, 297).

    Alm do que, ao adotarmos a entrevista em profundidade, em consonncia com

    a delimitao do objeto da investigao e de sua problemtica, no buscamos produzir

    dados quantitativos passveis de generalizao. A representatividade de uma amostra, nesta

    perspectiva metodolgica, no pode encontrar-se desvinculada de uma maneira de pensar e

    de produzir os dados.

    No caso do presente estudo, a representatividade da amostra obtida e a

    possibilidade (ensejada) de que os dados produzidos (e as subseqentes consideraes

  • 42

    analticas) pudessem vir a ser, de algum modo, aplicveis a outros contextos, em situaes

    similares de ensino superior de msica ou inspiradoras de reflexes acerca da discusso

    curricular, na rea de msica, a partir dos tpicos emergentes do multiculturalismo e dos

    Estudos Culturais seriam, inevitavelmente, limitadas. No se espera, portanto, que as

    anlises desenvolvidas e suas concluses possam ser aplicadas indiscriminadamente a

    quaisquer outros contextos educacionais de ensino superior de msica.

    O que no significa dizer que os dados produzidos aqui sejam pouco teis para

    a discusso curricular e pedaggica mais ampla no mbito do ensino superior de msica

    brasileiro. A Escola de Musica da Universidade Federal da Bahia, afinal de contas uma

    instituio representativa por sua prpria relevncia histrica.3

    Assim, a construo do objeto de investigao o discurso acadmico em

    msica em confronto com as emergentes questes da diversidade cultural se, por um

    lado, no o desvincula dos aspectos contingenciais que o demarcam num dado momento

    histrico e poltico a saber, a ampla reforma universitria pela qual passavam diversas

    universidades federais (dentre as quais a UFBA), a adoo do sistema de cotas raciais e a

    criao de um novo curso superior de msica nesta universidade por outro, seria ingnuo

    acreditar que os sujeitos deste estudo encontrar-se-iam em situaes to profundamente

    singulares que os isolariam do contexto mais amplo da formao acadmica de nvel

    superior em msica.

    Afinal, as caractersticas peculiares em que se situam os professores deste

    estudo no podem ser tomadas como aspectos isolados, descontextualizados e

    desvinculados das foras culturais, sociais e polticas que tambm afetam outras prticas

    pedaggicas similares. A compreenso da poltica cultural implicada na anlise do discurso

    3 Uma instituio que existe h mais de cinqenta anos, na qual gravitaram nomes importantes no cenrio

    musical brasileiro, como Hans-Joachim Koellreutter, Ernst Widmer, Walter Smetak; que se notabilizou pelo seu grupo de compositores, na dcada de 1960; uma instituio que oferece cursos de composio, regncia, licenciatura, instrumento e canto, e que conta atualmente com um programa de ps-graduao (mestrado e doutorado).

  • 43

    acadmico em msica, tal como ocorre numa determinada instituio de ensino superior,

    pode, portanto, e a despeito de sua singularidade, auxiliar e informar estudos nesta mesma

    rea ou que tenham como objeto a compreenso dos professores de msica acerca das

    vicissitudes de seu magistrio profissional.

    preciso dizer, contudo, que no se busca repisar qualquer dicotomia entre as

    dimenses quantitativas e qualitativas nas investigaes cientficas. Os dados de natureza

    quantitativa, mesmo num estudo de cariz qualitativo, tm a sua importncia e

    desempenham o seu papel. Neste estudo, eles esto presentes desde a delimitao numrica

    dos sujeitos entrevistados (ainda que no por razes estatsticas) verificao de certas

    regularidades nas respostas s questes do roteiro de entrevistas. Como no poderia deixar

    de ser, h um peso substantivo sempre que nos deparamos com uma regularidade na

    ocorrncia de respostas semelhantes ou que apontam para um mesmo significado. Tal

    dimenso quantitativa , pois, importante mesmo em estudos de natureza qualitativa.

    Mas a constatao de sua importncia no deve nos levar a desprezar o que

    irregular, inconstante, disperso, desviante, singular. Talvez resida a a relevncia de se

    auto-proclamar qualitativo. Ou seja, no para menosprezar os dados de natureza

    quantitativa, mas para se enfatizar a relevncia de aspectos que, em estudos que requerem a

    considerao quantitativa dos dados, seriam muito provavelmente desprezados.

    A amostra

    O presente grupo de professores, portanto, no foi obtido mediante

    procedimentos metodolgicos neutros, imparciais, objetivamente controlados pelo

    investigador. E nem poderia: estava envolvido desde o incio e de maneira intensa com

    alguns dos professores que buscava entrevistar. Estes no s conheciam os meus interesses

    como, em alguns casos, divergiam frontalmente de minhas posies ideolgicas acerca de

    educao e cultura. Habitvamos, alm de tudo, o mesmo espao acadmico-institucional,

  • 44

    no qual havia disputas intensas pelo significado e propsito da formao acadmica em

    msica. E era justamente isso que me interessava discutir com os meus possveis sujeitos

    de pesquisa.

    Esta foi uma amostra intencional, a nica que me fora possvel obter no s

    por duvidar que procedimentos randmicos, no meu caso, pudessem me assegurar uma

    representatividade isenta, como por acreditar que tal representatividade seria sempre

    limitada e parcial, por resultar de um inevitvel recorte implicado numa mtua

    intencionalidade entre pesquisador e sujeitos da investigao.

    Deste modo, trs professores e duas professoras terminaram compondo a

    minha amostra. Mantenho a palavra seleo entre aspas porque, de fato, ela no indica

    aqui o resultado de uma ao unilateral do investigador por entre os membros de uma

    determinada comunidade, como se esta passivamente aceitasse tomar parte do processo

    investigativo. Ao contrrio, a anuncia em participar do estudo foi vital para que pudesse

    manter a transparncia tica de todo o processo investigativo.

    Neste sentido, preciso dizer que as negociaes para que as entrevistas

    ocorressem no se deram sem alguma insistncia com avanos e recuos por parte de

    alguns dos professores que eu buscava tornar sujeitos da investigao. Alguns recusaram-

    se a participar, alegando falta de tempo, outros falta de interesse. Houve ainda aqueles que,

    a despeito de reiterados convites, tergiversaram e terminaram no participando. Em alguns

    casos, no foi possvel conciliar agendas. Enfim, a seleo de uma amostra, aqui, no se

    daria mesmo de modo unilateral, sem negociaes e consentimentos.

    Situando os professores

    Cinco professores terminaram compondo a amostra deste estudo. Nomeio-os

    aqui por pseudnimos. So eles Callado, Fanny, Heitor, Benedito e Ceclia. Professores da

    Escola de Msica da UFBA. Todos ps-graduados e j com um longo histrico no

  • 45

    magistrio superior (o mais novo deles, Callado, j professor da instituio h mais de

    dez anos; o mais antigo, Benedito, h mais de quarenta). Estes professores podem, assim,

    ser situados relativamente s sub-reas de conhecimento a que pertencem:

    Educao Musical Fanny

    Prticas interpretativas Callado

    Musicologia Ceclia

    Etnomusicologia Benedito

    Composio e anlise Heitor

    Esta, no entanto, no uma classificao estanque: alguns dos professores tm

    formao de origem numa determinada sub-rea, mas tm cruzado as quase sempre tnues

    (e muitas vezes arbitrrias) fronteiras que separam estas reas de saber. Por exemplo,

    Fanny graduada em instrumento, pertencendo, pois, sub-rea das prticas

    interpretativas. No entanto, fez mestrado e doutorado na rea de educao musical e tem

    efetivamente se dedicado pedagogia do instrumento.

    Callado, por seu turno, sendo graduado em canto, apesar de ter feito mestrado

    em educao musical, tem se dedicado mais efetivamente rea das prticas

    interpretativas.

    Ceclia, tendo se formado em piano, com especializao em msica antiga,

    ps-graduou-se em etnomusicologia. Tem, no entanto, se dedicado preponderantemente

    tanto como pesquisadora como professora musicologia histrica.

    Benedito, tendo percorrido um caminho semelhante ao de Ceclia, no entanto,

    identifica-se sobremaneira com o campo de pesquisa da etnomusicologia.

    Heitor talvez seja o nico, dentre os demais, a ter permanecido fiel sua rea

    de origem: a composio e anlise.

  • 46

    Estes professores e professoras compreendiam, assim, um grupo representativo

    de um coletivo maior. Seus discursos no so, no entanto, tomados aqui apenas como

    discursos das sub-reas a que pertencem, mas fundamentalmente como discursos de

    professores e professoras trabalhadores culturais ou intelectuais pblicos, na definio de

    Giroux (1999) inarredavelmente envolvidos com questes polticas e sociais, curriculares

    e pedaggicas, que atravessam seus campos de saber.

    A entrevista e seu processo de construo De acordo com Zago (2003), quando temos a entrevista como instrumento

    principal da pesquisa, parte considervel de sua produo bem como do aprendizado que

    adquirimos sobre sua conduo se opera no processo concreto da investigao.

    Para esta autora, no h neutralidade possvel que se possa estabelecer como

    condio a priori de objetividade para o estabelecimento do tipo de entrevista a ser

    realizada: sua escolha decorrer do desenvolvimento da problemtica do estudo a ser

    empreendido, a partir das interrogaes que fazemos acerca de um determinado contexto

    de relaes sociais e das estratgias que elaboramos para buscar respond-las.

    Dentro dessa abordagem o pesquisador se apropria da entrevista no como uma tcnica que transpe mecanicamente para uma situao de coleta de dados, mas como parte integrante da construo sociolgica do objeto de estudo (Zago 2003, 295).

    Alm do mais, nos diz Zago (2003), no contexto mesmo das investigaes

    qualitativas que devemos nos permitir construir suas problemticas. O que significa dizer

    que, ao empregarmos a entrevista compreensiva, como meio privilegiado de investigao,

    devemos buscar elaborar roteiros abertos, flexveis, de modo que nos seja possvel alter-

    los conforme o direcionamento que desejamos dar investigao. E, eu acrescentaria (aps

    ter sofrido um bocado com toda a ansiedade decorrente do receio de que as questes

    elaboradas em meu roteiro no fossem produtivas o suficiente para o que eu pretendia

  • 47

    investigar): deveramos nos permitir tambm aceitar que os rumos inesperados que as

    entrevistas compreensivas por vezes tomam e que nos levem por itinerncias insuspeitadas.

    Roteiro de entrevista

    O roteiro de entrevista foi estruturado em torno de certas temticas relativas

    diversidade cultural, aqui tomada como eixo fundamental atravs do qual as questes

    atinentes educao e fo