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LEITURA SEM PALAVRAS

Lucrécia D’Aléssio Ferrara

Série Princípios

Editora Ática

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Sumário

1. Materiais e procedimentos 5 Comunicação sem palavras 5 Comunicação enquanto prática cultural 6 Imagem e simulacro 7 Código e sintaxe 8 Associações 8 Informação e Semiótica 10 2. O texto não-verbal 13 Leitura e texto não-verbais 13 O texto não-verbal 14 Meios quentes e frios 14 Linguagem sem código 15 O não-verbal e a representação 16 As muitas faces do texto 18 A cidade como espaço privilegiado do não-verbal 19 A imagem da cidade 20 3. A leitura do texto não-verbal 22 As variáveis da leitura não-verbal 22 Sensação e atenção 23 Recepção e memória 24 Verbal e não-verbal 27 Decifrar e decodificar 28 Linguagem e ideologia 29 4. Um método possível 30 Método e estratégia 30 Constantes estratégias 31 Procedimentos des-verbais 34 Ainda o verbal

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5. Lugares 37 E, agora!? 37 Do espaço ao lugar 38 A multidão na praça 40 Do índice ao símbolo, 40; As metamorfoses da praça, 42; A praça como abrigo, 45. A casa como modelo 51 O espaço tem coisas a dizer, 51; O velho e o novo: um pelo outro, 52; A escola no espaço, 53; O espaço coletivo, 56; A escola-modelo, 61. 6. Vocabulário crítico 65 7. Bibliografia comentada 69

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1 Materiais e procedimentos

Comunicação sem palavras A fala e a escrita não são nossos únicos sistemas de comunicação. Telefone, telégrafo, rádio, televisão, imprensa são outros meios de comunicação que marcam a vida moderna e as sociedades industrializadas pelo aparato tecnológico que as caracterizam. Não se trata apenas de comunicação pessoa a pessoa, mas, graças àqueles meios, as cidades, os estados, os países, os hemisférios se comunicam e transformam o universo em uma “aldeia”, na medida em que ampliam a escala das comunicações humanas. A contribuição desses meios técnicos para o exercício da comunicação é, entretanto, uma pálida imagem do que pode ser a comunicação humana, quando dispensa ou supera o apoio da palavra como recurso competente e, sobretudo, exclusivo. Pálida imagem, porque aqueles meios técnicos não podem dispensar um ou mais códigos, ou seja, aqueles sistemas convencionais de signos ou traços distintivos organizados de modo a ser possível a construção e compreensão de uma mensagem. Em outras palavras, é o

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6 código que assegura a comunicação entre um emissor e um receptor. Comunicação enquanto prática cultural Toda prática humana está inserida numa situação mais ampla, na medida em que se instala como elemento interferidor nos sistemas social, econômico e cultural, seja para confirmá-los, seja para alterá-los. Entretanto, o padrão dessa inserção, para ser conhecido, é, necessariamente, representado através de signos, O modo dessa representação revela a ação do sistema socioeconômico-cultural sobre nossos pensamentos, ou seja, como diz Peirce, “não podemos pensar sem signos”1. O modo dessa representação, essa linguagem e sua lógica constitutiva terminam por ser o elemento de comunicação do sistema socioeconômico-cultural: o modo de representação é o significado do próprio sistema. Logo, ao lado do social, do econômico e do cultural, a estrutura informacional constitui um dos elementos básicos de apreensão do real. Entretanto essa estrutura informacional não precisa ser, nem é exclusivamente verbal. O traje usado para cobrir o corpo, o meio de transporte adotado não são de ordem estritamente funcional, ao contrário, dizem, sem palavras, nossas preferências, explicitam nossos gostos. Escolher cores, modelos, tecidos, marcas significa expectativas socioeconômicas, mas sobretudo revela o que queremos

1 Charles Sanders Peirce. (Cambridge/Massachusetts, 10/9/1914; Milford/Pensilvânia, 19/4/1839): lógico, matemático, físico e filósofo norte-americano, uma das mais lúcidas figuras do nosso século; criador da lógica da linguagem, a que deu o nome de Semiótica.

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7 que pensem de nós; aquelas escolhas representam, são signos da auto-imagem que queremos comunicar. Estes signos falam sem palavras, são linguagens não-verbais altamente eficientes no mundo da comunicação humana. Imagem e simulacro Toda representação é uma imagem, um simulacro do mundo a partir de um sistema de signos, ou seja, em última ou em primeira instância, toda representação é gesto que codifica o universo, daí se infere que o objeto mais presente e, ao mesmo tempo, mais exigente de todo processo de comunicação é o próprio universo, o próprio real. Dessa presença decorre sua exigência, porque este objeto não pode ser exaurido, visto que todo processo de comunicação é, se não imperfeito, certamente parcial. Assim, corrigindo, toda codificação é representação parcial do universo, embora conserve sempre, no horizonte da sua expectativa, o desejo de esgotá-lo. É dessa parcialidade e dessa expectativa que brotam o interesse e a pertinência da ação interpretante do receptor: uma ação interpretante sobre o modo de representação de uma linguagem é, necessariamente, uma relação entre a face do objeto realmente representada, a expectativa não exaurida dessa representação e os demais e eventuais modos ou possibilidades de representação. Toda ação interpretante é, pois, uma relação entre uma representação presente e outras representações possíveis, eventuais e virtuais, O resultado dessa relação é o significado de uma linguagem, ou seja, o significado é uma resultante de um modo de representação, é conseqüência e vem embutido no próprio modo de representação: uma íntima e indissociável aliança significante-significado.

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8 Código e sintaxe Se toda codificação é uma representação do universo, decodificar é conhecer o instrumento de codificação, o signo, mais a sintaxe que o identifica e caracteriza seu modo de representar. Todo código se caracteriza por um signo e uma sintaxe específicos; decodificar é conhecer e exibir esse signo e sua sintaxe. Signo e sintaxe são tanto mais lógicos e lineares quanto mais próximos estão da hegemonia expressiva de cada sentido humano, porque cada um deles funciona como elemento abstraidor dos demais, ao mesmo tempo que atua como extensão do homem na sua capacidade de perceber e organizar o mundo. A rigor, toda codificação do universo atua como prolongamento da ação abstraidora dos sentidos e é tanto mais coerente e competente quanto mais fiel à natureza de cada sentido. Em outras palavras, essa é mais uma razão que vem confirmar o fato de que cada código gera signo e sintaxe específicos. A capacidade representativa de uma linguagem é tanto mais segura e exaustiva em relação ao objeto representado quanto mais se apoiar na capacidade perceptiva de cada sentido em particular. Sons, texturas, paladares, cheiros, cores são possibilidades de identificação do universo e são tanto mais seguras quanto mais fiéis à capacidade exclusiva de cada uma daquelas emanações dos sentidos. Associações À competência expressiva de cada sentido em particular, alia-se a capacidade lógica da cultura ocidental e da sintaxe do seu sistema verbal, dominado pela linearidade sujeito-predicado-complemento, suficiente para expressar

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9 um modo de pensar eminentemente hierárquico, diacrônico e expansivo em frases subordinadas. A linearidade de uma frase ensinou-nos que a um sujeito seguem-se um predicado e um complemento de modo tal que, entre os três, há certa espécie de regra ou norma que os faz co-presentes, daí ser o verbal um sistema de linguagem não-isolante. A experiência da cultura ocidental, que nos ensinou a operar e a associar por linearidade, capacitou-nos também a inferir, principalmente por contigüidade, de forma que qualquer elemento de um sistema é capaz de suscitar, despertar, em nossa mente, todo o conjunto de que faz parte: assim um específico sinal de trânsito em relação a todo o código de sinalização viária, por exemplo. É o hábito da associação por contigüidade que orienta toda a cultura ocidental e que dá ao verbal, escrito ou falado, o reconhecimento da competência máxima para a expressão dos nossos pensamentos. Entretanto, no século XVII, quando David Hume 2 tentava catalogar os fenômenos do universo e, entre esses, a capacidade que o homem tem de produzir idéias novas a partir de inferências associativas, chegou a estabelecer dois tipos de associações: a contigüidade, de que falamos, e a similaridade, operação mais complexa que, atuando por comparação, flagra semelhanças e aproximações entre objetos e situações originalmente distantes. Porém a cultura ocidental continuou a privilegiar a associação por contigüidade e o verbal enquanto capacidade expressiva. Ao lado de Hume, Charles Sanders Peirce, ao estudar a produção do conhecimento a partir de inferências associativas, caracterizou que:

2 David Hume (1711-1776), filósofo e historiador escocês, autor do célebre Ensaio sobre o entendimento humano, nasceu em Edimburgo.

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10 1) a associação por similaridade não é uma subclasse da associação por contigüidade, conforme insinuava a Psicologia na sua época; 2) ao lado da associação por contigüidade, há também uma outra patente associativa: a similaridade; 3) contigüidade e similaridade se cruzam e talvez até se confundam, assim como a experiência quotidiana com produções mais complexas da mente humana, como a consciência da linguagem. A associação por similaridade sugere claramente que, ao lado do verbal falado ou escrito, a comunicação humana utiliza outros recursos expressivos que se agrupam ou se compõem com o próprio verbal, mas cuja constituição só pode ser apreendida se superarmos a lógica da associação por contigüidade. Informação e Semiótica Sempre ocupado em entender logicamente e classificar as inferências decorrentes da experiência quotidiana, o mesmo Charles Sanders Peirce catalogou-as em três classes, numericamente compreendidas como fenômenos de primeira, de segunda e de terceira classes, denominados: primeiridade, secundidade e terceiridade 3 . Experiência de primeiridade é aquela de uma qualidade; a de secundidade é proporcionada pela reação a um choque, a um conflito entre ações e hábitos, que ocorrem aqui e agora, e apenas uma vez; se repetida e continuada, passa a ser uma reação com força de lei, e, aí, estamos no domínio da experiência de terceiridade. Ícones, índices e símbolos correspondem aos signos de primeira, de segunda e de terceiridade, respectivamente. 3 Peirce dá a essas classes o nome de categorias cenopitagóricas

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11 Os signos são denominados ícones, índices ou símbolos tendo em vista a relação que mantêm com o objeto que representam: um ícone é sempre o signo de uma qualidade do objeto, e sua representação é sempre possível e não necessária, porém única, intransitiva e intraduzível; um índice é realmente afetado pelo objeto que representa e tem, portanto, com ele uma relação direta; o símbolo liga-se ao objeto que representa com a força de uma convenção, de uma lei, uma associação de idéias obrigatórias. Como se vê, essa classificação esclarece o significado das designações de ícone, índice e símbolo, de modo a rever o uso que o senso comum faz desses vocábulos. Identificar e definir a natureza de um signo, a relação que mantém com o objeto representado, a atuação possível de um interpretante na prática relacional que estabelece entre o modo de representação de um signo e seu objeto, parcial ou totalmente representado, constitui condição imprescindível para que se estabeleçam os padrões característicos de uma linguagem. Ao estudo dessa lógica dá-se o nome de Semiótica. Esse estudo é indispensável para que se possa empreender qualquer investigação sobre a natureza da linguagem amplamente falando, ou seja, linguagem verbal ou não. Semiótica e Teoria da Informação constituem esteios interdependentes no estudo do compromisso que a vertente informacional assume, ao lado do socioeconômico -cultural para a compreensão do real. Para perceber a participação do informacional na constituição do real é não só indispensável lançar mão de juízos e conceitos provenientes da Teoria da Informação e da Semiótica, como também necessário combiná-los. Nestas páginas introdutórias procuramos estabelecer os conceitos que serão operacionalizados na definição do 1

1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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12 que chamamos leitura não-verbal; não pretendemos, obviamente, fazer um “resumo” ou “levantamento” dos conceitos definidores das referidas ciências; antes, procedemos a uma seleção dos aspectos que mais se aproximam ou interessam às perspectivas teóricas e analíticas que atualmente desenvolvemos.

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2 O texto não-verbal

Leitura e texto não-verbais A primeira postura desta investigação está em distinguir duas realidades implicadas no mesmo trabalho, mas necessariamente distintas: o texto e a leitura não-verbais. Ambos são operações, manifestações de linguagem; entretanto o texto é uma linguagem-objeto, aparentemente natural; a leitura é uma metalinguagem, operação inferencial que manifesta o conhecimento do texto não-verbal, e para isso é metodologicamente orientada. O texto não-verbal é uma linguagem; a leitura não-verbal firma-se também como linguagem, na medida em que evidencia o texto através do conhecimento que a partir dele e sobre ele é capaz de produzir, ou seja, é uma linguagem de linguagem. O texto não-verbal é uma experiência quotidiana; a leitura não-verbal é uma inferência sobre essa experiência. Da natureza do texto, a leitura faz brotar suas aspirações e ambições metodológicas, mas dela própria, leitura, depende apreender aquela manifestação quotidiana.

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14 O texto não-verbal Todo código é constituído de signos que criam sua própria sintaxe e maneira de representar; logo, para decodificar qualquer sistema, é necessário identificar o signo e a sintaxe que o constituem e lhe dão realidade. A dificuldade de tal caracterização aponta, paradoxalmente, a primeira e maior dificuldade do texto não-verbal, ao mesmo tempo que é o elemento básico de sua definição. Para superar essa dificuldade, é necessário entender alguns elementos preliminares. Meios quentes e frios Marshall McLuhan, com sua autoridade em comunicação, no seu livro Os meios de comunicação como extensões do homem (São Paulo, Cultrix, 1969, p. 38), observa: Há um princípio básico pelo qual se pode distinguir um meio quente, como o rádio, de um meio frio, como o telefone, ou um meio quente, como o cinema, de um meio frio, como a televisão. Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos e em alta definição [......] Alta definição se refere a um estado de alta saturação de dados [. . .] De outro lado, os meios quentes não deixam muita coisa a ser preenchida ou completada pela audiência. Segue-se naturalmente que um meio quente, como o rádio, e um meio frio, como o telefone, têm efeitos bem diferentes sobre seus usuários. O signo não-verbal é de baixa definição, ou seja, é um meio frio, visto que a informação dele decorrente pode ser rica, porém pouco saturada em relação à precisão dos seus dados; em conseqüência, árdua e diversificada é a tarefa do seu receptor.

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15 Linguagem sem código Se cada código se identifica pelo signo e pela sintaxe que engendra, podemos dizer que o texto não-verbal é uma linguagem sem código; essa é outra das características determinantes do texto não-verbal. A fragmentação sígnica é sua marca estrutural; nele não encontramos um signo, mas signos aglomerados sem convenções: sons, palavras, cores, traços, tamanhos, texturas, cheiros — as emanações dos cinco sentidos, que, via de regra, abstraem-se, surgem, no não-verbal, juntas e simultâneas, porém desintegradas, já que, de imediato, não há convenção, não há sintaxe que as relacione: sua associação está implícita, ou melhor, precisa ser produzida. Essa fragmentação gera uma espécie de opacidade, ou uma neutralidade significativa: a princípio, o texto não-verbal tem seu reconhecimento comprometido, porque seu significado, o elemento básico de todo ato de linguagem, inexiste. O texto não-verbal não exclui o significado, nem poderia fazê-lo sob pena de destruir-se enquanto linguagem. Seu sentido, por força sobretudo da fragmentação que o caracteriza, não surge a priori, mas decorre da sua própria estrutura significante, do próprio modo de produzir-se no e entre os resíduos sígnicos que o compõem. Este significado não está dado, mas pode produzir-se. A variedade sígnica que compõe o não-verbal mescla todos os códigos, de modo que o próprio verbal pode compor o não-verbal, mas não tem sobre ele qualquer força hegemônica e centralizante; ao contrário, a palavra nele se distribui, porém não o determina. Trata-se de um texto feito de resíduos sígnicos, de um lixo de linguagem, e seu nome é, de certa forma, impróprio, porque nele também a palavra surge, porém sem determiná-lo, O nome não-verbal se justifica exatamente porque nele a palavra não apresenta aquela lógica central

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16 que caracteriza o texto verbal. Desvencilhando-se da centralidade lógica e conseqüentes linearidade e contigüidade do sentido, o texto não-verbal tem uma outra lógica, onde o significado não se impõe, mas pode se distinguir sem hierarquia, numa simultaneidade; logo, não há um sentido, mas sentidos que não se impõem, mas que podem ser produzidos. A esta fragmentação dos códigos, variedade e combinação de vários signos dá-se o nome de intersemiotização: linguagem complexa estruturalmente, porém mais eficiente enquanto possibilidade de representação. O não-verbal e a representação Porém onde está e qual é o objeto de representação do texto não-verbal? Se, para iniciar uma resposta e, como fizemos anteriormente, por uma questão prática, tomarmos o verbal como início de nossas reflexões, verificaremos que é possível distinguir: o verbal artístico e o verbal utilizado para a comunicação em geral. No caso do verbal artístico — prosa ou poesia, e mais poesia do que prosa —, verificaremos que a possibilidade de operar visual, gráfica e sonoramente a palavra e a associação entre palavras permite sua exploração enquanto imagem, tornando-a de comunicação difícil, porém rica em possibilidades icônicas. Neste caso, a capacidade expressiva da palavra persiste, porém seu maior interesse está na criação da imagem, da metáfora artística. Excluindo-se esse dado, quando o texto verbal se articula lógica, discursiva e linearmente, em função de um texto argumentativo — crônica, ensaio, artigo —, o objeto desse signo se confunde com o significado da própria palavra:

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17 Uma palavra possui um significado para nós, na medida em que somos capazes de utilizá-la para comunicar nosso conhecimento a outros e na medida em que somos capazes de apreender o conhecimento que os outros procuram comunicar-nos.

(PEIRCE, p. 159-60) Porém esse significado é o mais simples e o de “grau mais baixo”. Outras relações provocadas pelo significado de uma palavra na medida em que é assumida pelo emissor ou, mais ainda, na medida em que é relacionada pelo receptor a outras informações ou mensagens, outros significados mais complexos ou em graus mais sofisticados podem produzir-se. Entretanto esses níveis complexos desenvolvem-se no âmbito do interpretante e não do objeto do signo 1. Ou seja, aquele significado primário do signo verbal estabelece entre ele e seu objeto uma clara distinção, que permite o reconhecimento imediato do objeto do signo: uma outra manifestação da associação por contigüidade e da linearidade lógica que tende a envolver o verbal. Ao contrário, no texto não-verbal, o objeto não se distingue do próprio signo, porque ele, o signo, é extraído do próprio objeto como parte dele; uma relação, por assim dizer, metonímica, se utilizarmos uma designação da retórica verbal. Entretanto só poderemos identificar esse prolongamento do objeto no signo não-verbal, se abandonarmos a associação por contigüidade para adotarmos, como instrumento de inferência, a associação por similaridade.

1 Para Peirce, signo, objeto, interpretante são entidades interdependentes, mas não submissas entre si. Nesta cadeia, os três anéis são irredutíveis um ao outro; a passagem de um para outro não e mecanicamente determinada, mas ocorre em virtude de urna mediação criativa exercida pelo signo.

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18 No não-verbal, signo e objeto estão envolvidos de tal modo que, no texto, o signo chega a ser uma referência do próprio objeto ou seja, um signo indicial 2. Essa associação por similaridade presente no texto não-verbal e que terá conseqüências metodológicas para sua leitura deixa evidente a relação arbitrária e motivada que existe entre o significante e o significado verbal, tal como o apresentou Saussure, através dos seus alunos, no Curso de Lingüística Geral. Se não reconhecermos a arbitrariedade que determina que um signo é necessariamente distinto do seu objeto, precisaremos abrir uma exceção para o texto não-verbal, ou mesmo nem poderemos reconhecê-lo. As muitas faces do texto Mais do que um fragmento, o texto não-verbal, prolongando sua relação metonímica com o objeto, passa a ser referência dele.3 Desse modo, os textos não-verbais não se impõem à observação, mas estão incorporados à realidade e, por assim dizer, incógnitos. Não se concentram no espaço branco da página, espaço característico do verbal escrito, nem no timbre ou ritmo de uma voz, espaço próprio do verbal falado, nem na dimensão ou textura de uma tela, como no signo visual pictórico, nem na melodia ou harmonia que acompanham o signo sonoro; mas são textos que se organizam no espaço tridimensional fechado, privado, como o de uma habitação, ou aberto, público, como

2 “Ao signo apreendido como fragmento extraído do objeto dá-se o nome de índice.” PEIRCE, 1977, p. 47. 3 “Um índice é degenerado se na sua relação com o objeto ele constituir uma referência dele.” PEIRCE, 1977, p. 66.

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19 o de uma cidade. Não se quer dizer com isto que o texto não-verbal é manifestação exclusiva da habitação ou da cidade, mas quer-se chamar a atenção para o caráter fragmentado, imprevisto, múltiplo, diluído daquele texto, análogo àquilo que ocorre na habitação ou na cidade, se as considerarmos enquanto manifestação de linguagem. Comparativamente, a pintura também utiliza signos não-verbais— a cor, a luz, a sombra —, mas, por assim dizer, esses signos são falsamente múltiplos, visto que atingem um mesmo sentido; daí falar-se em signo visual. O não-verbal não é exclusivamente visual ou sonoro, mas é, sobretudo, plurissígnico. Daí o espaço habitado como sua manifestação exemplar. A cidade como espaço privilegiado do não-verbal O texto não-verbal espalha-se em escala macro pela cidade e incorpora as decorrências de todas as suas micro-linguagens: a paisagem, a urbanização, a arquitetura, o desenho industrial ambiental, a comunicação visual, a publicidade, a sinalização viária — incluindo aí o verbal —, a moda, o impacto dos veículos de comunicação de massa nos seus prolongamentos urbanos e ambientais, o rádio, o jornal, a televisão. A cidade dominada pelo pluriespaço como decorrência da necessidade de criar espaços: o espaço horizontal e suas transformações verticais, a disponibilidade para o espaço imprevisível, uma cidade onde todo espaço gera outros, virtuais. A cidade, enquanto texto não-verbal, é uma fonte informacional rica em estímulos criados por uma forma industrial de vida e de percepção. O movimento, a máquina, o automóvel, o trabalho mecanizado e especializado, a

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20 fábrica, o escritório, o salário, o transporte coletivo, o espaço exíguo da habitação, a mulher que trabalha, a dupla jornada de trabalho, a atividade doméstica mecanizada como elementos incorporados à vida urbana e que geram uma forma adequada de percepção: veloz, simultânea, anti- temporal e antilinear, uma forma onde a fragmentação perceptiva é um padrão. Na cidade, o texto verbal liberta-se da sucessão gráfica dos caracteres e adiciona-se aos índices dispersos em quilômetros de ruas, avenidas, edifícios, multidões em locomoção, ruídos, luzes, cor, volume. Os textos não-verbais acompanham nossas andanças pela cidade, produzem-se, completam-se, alteram-se ao ritmo dos nossos passos e, sobretudo, da nossa capacidade de perceber, de registrar essa informação. Ë esse registro que transforma os textos não-verbais em marcos referenciais da cidade; signos da cidade, esses marcos aglutinam objeto e signo urbanos. A imagem da cidade Enquanto texto não-verbal, a cidade deixa de ser vista como espaço abstrato das especulações projetivas, sociológicas ou econômicas para ser apreendida como espetáculo, como imagem. Nesse sentido, a apreensão da cidade como texto não-verbal não só a preenche, como lhe garante um trânsito informacional com seus usuários. Daí os índices referenciais capazes de situar, contextualmente, os lugares, os “pedaços urbanos”. Essa contextualização é outra característica importante do não-verbal urbano porque gera a qualificação do espaço e sua conseqüente identificação social, econômica, cultural: o centro da cidade, a cidade velha, a cidade nova, a cidade alta, a cidade baixa, as zonas sul, norte,

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21 leste, oeste, o comércio varejista e o atacadista, as regiões das diversas classes sociais, os locais comerciais, industriais, burocráticos, o lazer popular e o intelectual. A cidade, enfim, como imagem, como espetáculo. A contextualização é responsável pelo uso dos lugares urbanos: uma outra informação que redesenha a tridimensionalidade espacial dando-lhe uma outra variável, mais dinâmica e significativa, porque capaz de informar mais rapidamente sobre constituintes espaciais não previstos em projetos de urbanização e, no entanto, capazes de produzir e/ou alterar a imagem de uma rua, avenida ou praça. E esse uso que qualifica nossa memória urbana e sedimenta a vida de uma cidade. Alimenta uma tradição, ao mesmo tempo que estimula a dinâmica de sua mudança; os índices referenciais de um uso mantêm-se atualizados e, paradoxalmente, conservam a memória do seu passado. Dizemos paradoxalmente porque o uso mantém o aqui-agora, o instantâneo de um espaço, ao mesmo tempo que gera uma institucionalização, uma memória, um hábito urbano. Desse modo, o uso opera como um grau zero da informação na cidade, ou seja, registra a atualidade referencial de um índice e gera o hábito, a convenção urbana: simultaneamente índice e símbolo. A fala da imagem da cidade.

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3 A leitura cio texto não-verbal

As variáveis da leitura não-verbal A leitura de .um texto não-verbal tem como pontos de referência duas variáveis básicas e, assim, devem ser entendidas, ou seja, da qualidade ou intensidade dessas variáveis decorre o grau ou nível da leitura. Tais variáveis são: 1) o homogêneo não é passível de leitura; 2) toda leitura não-verbal é um complexo ato de recepção 1 A definição e as características da leitura não-verbal devem levar em consideração as duas variáveis acima para que seja possível compreendê-las e verificar em que medida e por que interferem naquele ato de leitura. 1 A leitura de um texto não-verbal re-propõe, em muitos aspectos, a Teoria da Recepção, de raiz alemã, que se desenvolveu com os estudos de Hans Robert Jauss e que, a partir da Teoria Literária e do estudo de textos literários, caracteriza a necessidade de se estabelecer a dimensão histórica da receptividade de uma obra, para que se possa compreender sua matriz produtiva.

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23 Como vimos, o texto não-verbal apresenta-se diluído no quotidiano do espaço urbano, e nada o impõe à nossa observação; o texto não-verbal é mudo porque não agride nossa atenção. O hábito de atuar nos mesmos espaços e ambientes faz com que eles sejam cada vez mais iguais e imperceptíveis. Ora, não se lê o homogêneo. Sensação e atenção Para que seja possível a leitura é necessário tornar heterogêneos os ambientes através de uma operação da mente capaz de provocar um valor, um predicado, um juízo que atraia nossa atenção para fragmentos espaciais específicos e os imponha à nossa percepção, ou seja, que projete uma imagem valorativa desses fragmentos, a fim de que possam valer pelo ambiente como um todo e atuem como um prolongamento, um índice dele. A produção dessas imagens valorativas constitui uma complexa operação da mente receptora acionada, de um lado, pela sensação, de outro, pela atenção. A atenção é um ato indutivo que controla espontaneamente ou cria condições artificiais de controle das sensações provocadas por agressões aos sentidos e decorrentes de fragmentos ambientais, circunstanciais e imprevistos. Esse controle espontâneo ocorre a partir da simples exposição atenta do receptor às agressões ambientais; essa exposição deve estar, obviamente, orientada pela intenção da leitura; o controle artificial ocorre quando criamos situações objetivas de controle, como, por exemplo, a gravação de sons, ruídos, vozes, falas ambientais; a fixação fotográfica ou através de desenho ou vídeo de imagens e movimentos ambientais, ou a combinação, mais refinada, de dois ou mais instrumentos de controle a fim de provocar

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24 situações experimentais ricas em informações; neste caso, a intenção de leitura é claramente colocada e rigorosamente indutiva. De um modo ou de outro, entretanto, o gesto atento corresponde a uma operação controlada. Porém sensação e atenção são condições de leitura, mas não são, ainda, a leitura porque esta impõe a relação das sensações e das imagens fixadas pela atenção para tornar possível, de um lado, a integração do mundo independente dos sentidos, originalmente dispersos, e, de outro, a associação comparativa das emoções. Recepção e memória Integrar sensações e associar percepções dizem respeito àquele complexo ato de recepção de que falamos. Sensações e associações despertam a memória das nossas experiências sensíveis e culturais, individuais e coletivas de modo que toda a nossa vivência passada e conservada na memória seja acionada. Na realidade é necessário despertar aqueles valores ou juízos perceptivos a que já nos referimos, compreender uma interação entre passado e presente, entre as sensações de ontem e de hoje, mais a reflexão sobre elas para compará-las e perceber-lhes os pontos de convergência e/ou divergência. Esta recepção supõe o repertório do receptor e sua atuação reflexiva sobre as próprias experiências ambientais. O resultado organizado dessas operações constitui a leitura, uma metalinguagem que se produz sobre o não-verbal espacial/ambiental e capaz de revelá-lo, produzi-lo enquanto texto não-verbal, O texto é linguagem-objeto sobre o qual se debruça a leitura metalingüística. O texto não-verbal existe no espaço, mas sua revelação depende da produção da sua leitura.

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25 Em resumo, a leitura aciona a descontinuidade sígnica presente no espaço ambiental, a fim de concentrar os signos-índices-traços de significação. Produzir o sentido dessa concentração é a tarefa do receptor, que, então, se transforma em leitor desse texto não-verbal. A leitura é uma tentativa de organização entre convergências e divergências; ler é operar com o heterogêneo e organizar, é saber distinguir, por comparação, o igual e o diferente. A ordem não está no homogêneo, mas no seu oposto. De outro lado, é importante notar que a leitura não-verbal é dominada pelo movimento porque, para concentrar o que se apresenta disperso, é necessário operar com rapidez para não perder informação e para acompanhar o ritmo acelerado da associação de idéias à medida que a atenção se desloca no espaço e sobre ele. Ë possível prever certa disritmia e certa assimetria entre o que é registrado pela atenção e o que o leitor consegue produzir na leitura, daí o caráter relativo e parcial dessa prática, que, de saída, se propõe como provisória; sua verdade tem a mesma duração do movimento que a sustenta. Porém, apesar de falível e momentânea, a leitura tem uma veracidade maior, que a suplanta, pois se trata de uma prática que supõe uma íntima relação com o espaço que nos envolve, suplantando o quotidiano que nos habitua a interagir mecanicamente; por outro lado, a necessidade de organização para a produção de um texto estimula a capacidade associativa por similaridade e revela outra possibilidade de ler e de produzir significados além do hábito de associação por contigüidade a que nos condiciona todo o sistema cultural ocidental. Obviamente, não se trata da substituição de um sistema pelo outro, a contigüidade pela similaridade, mas, ao contrário, de uma operação bem mais complexa, onde os dois processos se mesclam e se completam, de modo a permitir a apreensão de múltiplos processos simultâneos de linguagem.

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26 Verbal e não-verbal Entretanto, por complementação ou por contraste, a análise dos últimos aspectos a respeito das características da leitura não-verbal nos leva a pôr em evidência pontos decorrentes da comparação entre os dois modos de ler e que acabam por se refletir sobre a própria leitura verbal. A leitura verbal apóia-se no domínio da sua competência; ensina-se a ler pela compreensão do encadeamento lógico, coordenado, subordinado ou misto das estruturas frásicas do texto verbal. Aprende-se a ler e desenvolve-se esse aprendizado. A leitura não-verbal é uma maneira peculiar de ler: visão/leitura, espécie de olhar tátil, multissensível, sinestésico. Não se ensina como ler o não-verbal. E mais um desempenho do que competência porque, sendo dinâmico, o não-verbal exige uma leitura, se não desorganizada, pelo menos sem ordem preestabelecida, convencional ou sistematizada. Porém, o não-verbal aprende com o verbal a qualidade da sua competência e o rigor da sua organização. Dadas a provisoriedade e a falibilidade da leitura não-verbal, é óbvio que ela não detém e não produz um saber; tal como na leitura verbal, porém, sem dúvida, ela aciona um processo de conhecimento a partir da experiência e do exercício quotidiano da sua prática: a capacidade associativa e a produção de inferências, conhecimento como interpretação. Decifrar e decodificar A complexidade lógica do texto verbal o faz depósito de sentidos que necessitam ser descobertos para serem conhecidos e assumidos. Nessa perspectiva, a decodificação

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27 no verbal confunde-se com decifração, sem confundir essa atuação com uma adivinhação ingênua ou impressionista; ao contrário, essa decifração é produtiva, participa da construção de sentidos do texto, porém tem seus limites fixados estruturalmente por ele. Em resumo, só é possível ler o que o texto nos faculta — não podemos deixar de reconhecer ao verbal esse poder. Porém, sem volteios semânticos, é possível pensar e distinguir esse decifrar e decodificar: dois objetivos divergentes, se não diversos. Decodificar supõe situar referencialmente o objeto da leitura, identificar seu tempo e espaço; decifrar supõe encontrar um sentido menos escondido do que complexo. Sem dúvida, decodificar supõe uma interpretação, enquanto decifrar supõe uma hermenêutica, que difere da interpretação, porque esta é uma obra do receptor na memória fixada em seu repertório; enquanto aquela é uma arte do emissor, que coloca no texto as chaves-pistas de leitura: decifração, compreensão do texto. Aliás, a própria tradição de estudos de textos, caracteristicamente verbais, como a Bíblia ou antigos textos medievais, deixa claro o sentido da leitura como hermenêutica: decifração de um sentido oculto e/ou metafórico. Essa distinção entre decifrar e decodificar aponta duas outras características: a leitura verbal decifra, descobre um sentido ou sentidos ocultos no texto, dirige-se a um produto fixado e estabelecido, consolida-se como leitura de um produto pela simples razão de que a intenção de comunicação é clara, sua emissão é explícita. Está claro que este sentido fixado, estabelecido pelo autor estará tanto mais comprometido ou prejudicado quanto mais criativo, menos linear e lógico, mais ambíguo for um texto verbal literário, por exemplo. O texto não-verbal não tem um emissor que assume a comunicação de um sentido, é, por assim dizer, um

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28 texto sem autor; a leitura não-verbal, pelo seu caráter de desempenho não desorganizado, mas sem programação previamente estruturada, dirige-se para a produção de um sentido espaço-ambiental, fugaz e falível, porém suficiente para permitir uma interação com o meio que nos envolve, condição para atuarmos sobre ele com mais conseqüência. Linguagem e ideologia Romper o hábito que caracteriza o uso do espaço ambiental particular ou público deve ser condição para uma atuação capaz de rever, de colocar em crise valores e/ou condicionamentos mais ou menos compulsivos, que nos levam a agir redundantemente, numa quase inconsciência dos nossos atos. Essa atuação mais crítica e descondicionada é, indiretamente, uma decorrência da possibilidade de atuação do interpretante, que, ativa e relacionalmente, opera entre o objeto de representação e o signo que o representa. Em outras palavras, todo processo de representação é ideologicamente informado, visto que é sempre parcial e seletiva toda representação do objeto de um signo. O signo não é simplesmente expressivo, mas transmite uma impressão, certo modo de ver o objeto. A manifestação sígnica de uni ambiente sofre o mesmo processo e nos envolve por um uso habitual. Romper essa cadeia é condição de compreender a dimensão representativa do signo e o processo ideológico que o informa. Em outras palavras, trata-se, não de falar ou ler sobre ideologia, mas de interagir com ela e tê-la como objeto de leitura. Como se vê, o objetivo da leitura não-verbal vai muito além da decodificação. Se a leitura verbal tem como objetivo saber o que o texto quer dizer, para a leitura não-verbal a decodificação de um referente ambiental

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29 é início de um processo, condição e não conseqüência. Logo, a leitura entendida como processo de produção de sentido(s) se opõe àquela vista como técnica, uma competência que flagra o significado colocado no texto mais ou menos conscientemente, porém para sempre aprisionado nas redes de ambos, do texto e do emissor. Esta concepção do emissor e do texto como proprietários de um sentido se opõe àquela que entende o receptor participando da concepção do texto e do seu significado, na medida em que sobre eles projeta a cooperação das suas próprias vivências individuais e coletivas, mais a sua capacidade e desempenho na operação consciente da linguagem. Esta revolução nos procedimentos com a linguagem e sua conseqüência ideológico-cultural acompanham-se de realidade análoga no campo da arte quando, na altura de 1910, transforma-se a sua concepção de representação referencial do universo para apreendê-la nas suas conexões estruturais; ou seja, à arte e ao artista moderno já não interessava a mímese da realidade, mas as relações estruturais que nela se desenrolam; emissor e receptor, o artista e seu público passaram a estar alertas para apreender o inesperado, mais insinuado do que realmente explícito, porém capaz de reformular a visão de mundo que os informava. Uma revolução no campo da arte e da comunicação que levou, a primeira, a superar seu limite de obra aurática e única, e, a segunda, a projetar-se, tecnológica e ideologicamente, para encurtar distâncias geográficas e culturais. Transforma-se o universo em uma aldeia onde tudo é arte e informação reprodutível ao alcance de tudo e de todos. Estamos na era da comunicação.

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4 Um método possível

Método e estratégia A incompletude e a falibilidade da leitura não-verbal trazem suas conseqüências para o método adotado nessa prática. Como ler? Como ensinar a ler o não-verbal? Que métodos e técnicas devem ser desenvolvidos? Como respeitar e valorizar a dinâmica do espaço ambiental? Como interagir com ele, o espaço, a fim de produzir um texto não-verbal? Enfim, de que maneira criar um método que não se imponha ao espaço ambiental a ponto de oferecer, no próprio método, os pressupostos a serem desenvolvidos na leitura e à medida que o leitor apreende o espaço e com ele se identifica? Na realidade, pouco há para ensinar enquanto método de leitura não-verbal, ou seja, não há um método fixado e, sobretudo, predeterminado. Logo, por prudência e por fidelidade à natureza do objeto não-verbal lido, não se fala em método, mas em procedimentos metodológicos, isto é, há necessidade de estabelecer esses mecanismos, porém a sua operacionalização depende da natureza e da dinâmica de cada objeto lido.

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31 Quando se fala em método possível, pretende-se salientar três aspectos: 1) há necessidade de se estabelecer um modo de ler; 2) esse modo se refaz ou se completa a cada leitura, visto que o próprio objeto lido sugere, na sua dinâmica, como deve ser visto; 3) é necessário ter presente que o que vemos no objeto lido é resultado de uma operação singular entre o que efetivamente está no objeto e a memória das nossas informações e experiências emocionais e culturais, individuais e coletivas; logo, o resultado da leitura é sempre possível, mas jamais correto ou total; 4) é necessário ousadia nas associações para que se possa flagrar uma idéia nova, uma comparação imprevista, uma hipótese explicativa inusitada. Desse modo, falar em método de leitura não-verbal é, antes, uma atitude didática que pode ser proposta com a cautela que esse objetivo exige: deve-se ensinar a descobrir em outras palavras, todo método pode levar a bom termo o objetivo proposto, porém deve ser revisto a cada passo. Um constante exercício. Mais procedimento(s) metodológico(s) do que método propriamente dito, a proposta é criar uma estratégia que, ao mesmo tempo, oriente a leitura e crie uma forma específica de ler cada texto-objeto. Este protométodo está subdividido em: constantes estratégicas e procedimentos des-verbais. Constantes estratégicas Chama-se contexto espacial ambiental o conjunto de circunstâncias físicas, sociais, econômicas e culturais sub-

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32 jacentes ao uso ambiental, que, por interferência e não determinação dessas variáveis, é múltiplo e diversificado. A história de um ambiente, as mudanças sociais e econômicas que sobre ele incidiram, as características físico-geográficas que o caracterizaram ou que vieram a mudar sua aparência são elementos que precisam ser levantados e levados em consideração na montagem de um plano de leitura não-verbal. Esse levantamento primeiro e operacionalmente básico para a leitura chama-se contextualização. No panorama teórico do formalismo e do futurismo russo, Chklovski definiu a especificidade da obra de arte em geral e da literária em particular como um modo “difícil” de organizar a realidade, que deve levar o receptor a estranhá-la e obrigá-lo a uma reflexão para identificá-la, ou seja, é necessário “re-conhecer” a realidade, conhecê-la outra vez. Esta posição revolucionou, no início deste século, o panorama das artes e trouxe transformações profundas em todas as formas criativas de atuação humana, colocando, para elas, o objetivo de destruir os comportamentos automatizados, a fim de tornar a percepção do universo que nos circunda mais densa e mais sagaz. Assim como não é possível ler o homogêneo, não é possível ler/ver/perceber o que não conseguimos estranhar. Entretanto, o absolutamente novo não é passível de conhecimento, porque esta faculdade inicia seu processo a partir de um elemento anterior, já sedimentado na memória informacional. Apreender esse novo a partir do velho pressupõe um “reconhecimento” do velho e uma “parada” perceptiva diante do novo. Esse descentramento da informação passou para a história das teorias artísticas com o nome de estranhamento. Para a leitura não-verbal, tal procedimento é básico e revelador da realidade que nos envolve e à qual estamos habituados.

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33 O lingüista Roman Jakobson, em artigo famoso intitulado “A dominante” 1, alerta-nos para o fato de que todo texto é organizado a partir de uma dominante, o que lhe garante a coesão estrutural, e hierarquiza os demais constituintes, a partir de sua própria influência sobre eles. A dominante é, como todos os demais elementos do texto, um índice, porém é aquele que “governa, determina e transforma” os demais. Logo, entre os índices-fragmentos de signos que compõem o texto não-verbal é indispensável a identificação da sua dominante. Dadas a assimetria e a dispersão do texto não-verbal não se pode falar que a dominante possa ser identificada mas, ao contrário, ela deve ser eleita entre os índices reconhecidos no texto. Essa eleição é, estrategicamente, fundamental para a leitura, porque dela depende, não só um roteiro, mas, sobretudo, um índice norteador do “por onde começar”. Obviamente, a escolha dessa dominante poderá recair sobre qualquer traço indicial — som, luz, cor, textura, volumes —‘ mas essa eleição é estrutural na leitura, daí seu caráter estratégico. A eleição de uma dominante desperta a atenção para o ambiente espacial, para o texto que nos envolve, porém ela é estratégica e metodologicamente ambiciosa. Em outras palavras, é operacional, porque dela depende a despasteurização do habitual, ou seja, tornar heterogêneo o homogêneo pela ênfase atenta a determinados índices, estimulados pela dominante. Hierarquiza-se a textura indicial e isto nos permite estranhar o ambiente e colocar em crise o hábito de ver, perceber ou usar. A atenção está no cerne dessas constantes estratégicas, porque é orientada por dois elementos, também básicos: a observação e a comparação. 1 Questions de poétique. Paris, Seuil, 1973. p. 145.

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34 A observação é a válvula de onde decorre a contextualização, o estranhamento e a dominante. E dela que depende a interação com o espaço ambiental não-verbal no sentido de produzir uma leitura; é, por assim dizer, uma condição e uma atitude de conhecimento que dirige nosso modo de ver e, principalmente, nosso relacionamento com tudo o que nos envolve. Essa observação, aliada aos demais elementos já vistos, desperta a comparação, a analogia, a capacidade de “combinar as imagens, de fazer coexistir a parte de uma com a parte de outra e de perceber, voluntariamente ou não, a ligação de suas estruturas” 2 A comparação, a associação entre estruturas permite criar/constatar similaridades inusitadas entre os índices, ainda que orientados/ /hierarquizados por uma dominante já de si estruturante. A analogia é, entre os procedimentos estratégicos, o elemento mais diretamente responsável pela integração sensorial capaz de superar, com vantagem informacional, o mundo independente dos sentidos. Os procedimentos des-verbais Esses procedimentos se referem a elementos práticos que auxiliam a atuação das constantes estratégicas anteriores; trata-se mais de técnicas operacionais do que de procedimentos metodológicos propriamente ditos. A contextualização supõe o levantamento da memória ambiental encontrada na documentação de arquivos, bibliotecas, jornais, revistas, fotos antigas — é importante saber como foi determinado ambiente, que usos estimulou, que histórias, que fatos agasalhou. Essa volta ao passado

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2 VALÉRY, Paul. Introduction à la Méthode de Léonard de Vinci. Varieté I, Paris, Gallimard, 1967. p. 215. 35 nada tem de nostálgica ou pitoresca; ao contrário, para se conseguir penetrar mais profundamente na analogia do presente, é necessário buscar propositalmente o passado. Ao lado dessa documentação, também tem sentido buscar fontes visuais ou auditivas; comparar flagrantes fotográficos ou gravações de ontem e de hoje pode ser motivo para a descoberta de similaridades que ajudarão a enxergar a dinâmica presente. Ao lado dessa memória, é necessário proceder a uma informação múltipla através do uso de técnicas que operam intercódigos: as gravações, as fotografias, os vídeos, as montagens visuais de fotos ou slides, os desenhos ou croquis são elementos que devem ser usados para aguçar a observação e estimular a comparação. Essas técnicas permitem captar instantes exemplares, segurar a informação, para que seja possível superar ou controlar o movimento e a dinâmica que faz os ambientes serem passageiros ou mutáveis. Através dessas técnicas processa-se uma dissecação ocular, auditiva, olfativa, tátil necessária num primeiro momento, à comparação e logo após, a uma re-composição daqueles elementos de modo a explicitar as relações estruturais e analógicas que serão exploradas na leitura. Utilizam-se os recursos de todos os códigos para superar o mundo independente dos sentidos e estimular a analogia que nos permite apreender o ambiente que nos envolve e nos ensina a ver mais e melhor. Ainda o verbal Entretanto, e a título de conclusão, cabe ainda uma Palavra sobre o verbal. As constantes estratégicas e os Procedimentos des-verbais são instrumentos metodológicos

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36 da leitura não-verbal, mas não são a garantia da sua produção. Explicando, a leitura não-verbal concretiza-se em um padrão metalingüístico que não dispensa o verbal oral ou escrito. A contextualização, o estranhamento, a eleição de uma dominante, a atenção, a ênfase, a observação, a comparação e a analogia, enfim, as constantes estratégias já vistas, são condições de leitura não-verbal, mas esse produto só se manifesta, só explicita seu desempenho através do verbal, porque sua consistência, sua convicção alicerçam-se numa lógica argumentativa que é característica e distinção da linguagem verbal. O não-verbal opõe-se ao verbal para encontrar seu padrão de diferença, mas só se completa através dele. Por outro lado, se um programa de alfabetização é condição para a libertação cultural de um povo, o comportamento dês-automatizado pela revisão constante de hábitos e crenças é a garantia de sua autodeterminação. Os códigos se comunicam e se explicam mutuamente. Esse é o destino das linguagens.

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5 Lugares

E agora!? Na segunda parte deste trabalho, abandonaremos a exposição teórica e nitidamente argumentativa e a substituiremos por uma montagem: 1) de teoria-prática ou de prática-teórica, de sorte que a argumentação entre em combinação com a leitura e a exemplificação e se iluminem mutuamente; 2) de textos verbais e não-verbais, de modo que ambos forneçam as informações necessárias à interpretação; verbal e não-verbal são, aqui, textos que dialogam; 3) das constantes estratégicas vistas anteriormente, operacionalizando-as na prática, de modo que seja possível ler com flexibilidade os textos ambientais selecionados e, ao mesmo tempo, esclarecer a importância daquelas constantes na prática da leitura. Logo, nas leituras, montaremos um diagrama que deverá permitir resgatar aspectos fundamentais da teoria que possibilitem a percepção dos objetos espaciais propostos para leitura.

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38 Do espaço ao lugar Em Espaço e método (São Paulo, Nobel, 1985, p. 6), Milton Santos 1 afirma que, por força de variáveis localizadas, determinado espaço se concretiza e adquire a especificidade de lugar, ou seja, um espaço se transforma em lugar sob o impacto funcional do meio ecológico (complexos territoriais), das firmas (que produzem bens, serviços e idéias), das instituições (que criam normas, ordens e legitimações), das infra-estruturas (que constituem a expressão material e local do trabalho humano) e dos homens (que correspondem à força de trabalho capaz de modificar um espaço em lugar). Sob o impacto dessas variáveis e, na concepção do geógrafo citado, há, entre espaço e lugar, uma dialética inegável. Utilizaremos o mesmo recurso lexical — espaço e lugar — e a mesma caracterização funcional — uma dialética — para expressar a transformação de um determinado ambiente urbano que, sob o impacto perceptivo do usuário — atenção, observação e comparação —, abandona a homogeneidade que o faz ilegível e se transforma em lugar, ambiente de percepção e leitura, fonte de informação urbana. Por força da escala macro da cidade, a percepção de sua imagem, da transformação de um espaço em lugar supõe, no mínimo, três segmentações: 1) o recorte seletivo de um fragmento de espaço entre espaços; 2) por ser impossível controlar esse espaço no decorrer de sua história, é necessário flagrar imagens instantâneas que funcionem como amostragem de um espaço e sugiram o próprio modo de sua percepção;

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1 Geógrafo brasileiro, atualmente professor da Universidade de São Paulo, é conhecido internacionalmente por seus trabalhos sobre urbanização, notadamente dos países em desenvolvimento. 39 3) do espectador para o usuário urbano há uma evolução; de um para o outro, há menos uma questão de desenho da cidade ou de sua comunicação visual do que uma questão de imagem perceptiva, de um juízo valorativo sobre a cidade; em outras palavras, esse juízo supõe a leitura e a interpretação daquele fragmento urbano selecionado a partir da “dominante” estrutural escolhida para nortear a leitura. A combinação dessas segmentações promove associações, descoberta de convergências e divergências que conferem ao fragmento selecionado um valor que supera seu aspecto exclusivamente físico, visual ou funcional, mesmo que um desses aspectos tenha sido selecionado como a “dominante” acima citada. Por outro lado, é o recorte desse fragmento urbano, combinado com a interpretação das associações por ele sugeridas, que permite que o macro-espaço urbano mostre suas intimidades, suas forças e fraquezas que o transformam em lugar orgânico, dotado de força vital. A transformação de um espaço em lugar, a partir da percepção do usuário, supõe desmascarar a cidade como espaço trivial, quotidianamente igual e exposto aos olhos de todos; na realidade, a percepção urbana evidente na leitura supõe uma interpretação da imagem da cidade que vai além da coleção de fotos de um determinado ambiente. Ao contrário, assim como se transforma um espaço em lugar, também se transforma uma imagem, uma foto em retrato que evidencia as variantes de uma percepção e a interpretação possível de um ambiente urbano; essa operação de inferências não é simples exercício impressionista, mas é resgatada daqueles retratos que, combinados, revelam aquela força vital, aquele organismo de que falamos. Do espaço ao lugar, o processo bilateral entre a cidade e seu usuário.

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40 A multidão na praça

Do índice ao símbolo

Na Idade Média, praça era entendida não só como o marco zero da cidade, mas sobretudo como retrato de sua vida íntima, como seu micro-modelo, centro de operações e decisões; vivê-la era participar da vida urbana; na cidade industrial, a praça de antigas raízes ou não, já apresenta certo descompasso em relação à escala, à dimensão da grande metrópole, porém ainda conserva o mesmo mito, ponto nevrálgico que pretende tornar transparente a vida dos grandes centros. Em São Paulo, a Praça da Sé cumpre esse papel. De marco zero da cidade, como simboliza seu índice central, a praça é um nó de ruas, que a ela convergem ou dela derivam, é uma desembocadura e nada a caracteriza como ponto de estar ou de lazer, salvo para os desalojados que são sua massa urbana característica. Foto: Danilo Pavani

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41 Foto: Danilo Pavani Foto: Depto. Patrimônio Histórico

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42 Implantada em espaço retangular, a Praça fica contida entre ruas e não tem identidade visual que condiga com sua suposta ou real importância funcional: o coração da cidade. A catedral fecha uma de suas entradas, limita firmemente seu espaço, impedindo a visão de sua vizinha Praça João Mendes, e assume um caráter monumental um tanto falso, por suas características góticas de discutível influência de outros exemplares europeus e pelo desequilíbrio entre suas proporções e o espaço que realmente ocupa; descompasso físico que é uma réplica da figuração da igreja em relação a São Paulo: desproporção entre o que gostaria de ser e o que realmente é. A dominante desta leitura da Praça da Sé será o contraste entre sua funcionalidade indicial e a simbólica 2

As metamorfoses da Praça

Adro da Igreja de São Pedro da Pedra (1860), Largo da Sé, onde estacionavam os fiacres (1910), Largo da Sé e passagem obrigatória de bondes (1915), Praça da Sé e a nova Catedral em construção (1933), a Praça da Sé se amplia (1952), em projeto a Superpraça da Sé (1975) — estes os marcos cronológicos de transformação da Praça. Mudanças mais desejadas ou planejadas do que realmente executadas, porque, em síntese, a Praça permanece a mesma. E marcada pelo fluxo diário de pessoas atraídas pela atividade da função econômica, comercial e, sobretudo, viária: o centro é irradiação física, é possibilidade concreta de deslocamentos, mas, exatamente por isso, não permite criar raízes, é ponto obrigatório, porém de passagem.

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2 Em dois trabalhos anteriores lemos a Praça da Sé a partir de duas outras dominantes: a passagem da Praça da Sé para a Superpraça (A estratégia dos signos. São Paulo, Perspectiva, 1980) e a Praça sob a égide da renovação urbana (Rev. Através, n. 1, São Paulo, Martins Fontes, 1983). 43 A Sé como centro irradiador de linhas de ônibus e bondes era mais inóspita à sedimentação de atividades e tipos populares do que hoje, com o metrô ocupando seus subterrâneos, mas deixando livres sua superfície, seus ângulos e reentrâncias: lugares para serem fisicamente descobertos e sentimentalmente apropriados. Realmente, a construção da Superpraça foi uma tentativa de resgatar a Praça na sua qualidade visual, que não foi propriamente perdida, pois se duvida que tenha existido. A descaracterização, quando não a degradação, constitui seu índice marcante. No passado, sua diluição visual impedia o reconhecimento de sua importância funcional enquanto centro irradiador de meios de transporte, que, para ser reconhecida, precisava ser enfaticamente explicada pelo conjunto de abrigos de ônibus dispostos em contigüidade, à semelhança de uma garagem. Foto: Depto. Patrimônio Histórico

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44 Foto: Depto. Patrimônio Histórico Foto: Depto. Patrimânlo f.

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45 Essa descaracterização visual e funcional levou à deterioração urbanística, de modo que, depois da construção do metrô nos seus subterrâneos, impunha-se superar a sua degradação por um desenho imponente e pretensioso que comunicasse a intenção de um visual e de um uso coerentes com sua função oficial: cartão de visita da cidade. Sabe-se que, a essa intenção, o usuário respondeu com um uso paródico, fazendo-a abrigo, não mais de ônibus ou bondes, mas de desalojados por sorte ou profissão, passageiros ou estáveis. A Praça é, em São Paulo, não apenas um micro-modelo da grande metrópole industrial, mas, sobretudo, uma síntese da percepção urbana da população, que, sorrateiramente, rouba, na cidade, seus espaços para, também, viver.

A Praça como abrigo

A Praça enquanto espaço de vida roubado à metrópole industrial não se manifesta apenas pelo uso que dela fazem os desabrigados da Superpraça, mas, em vários momentos de sua história, assim atuou o povo em geral quando, por força da inexistência de outros espaços centrais abertos, a elegeu como o local de suas concentrações. Nesses momentos, a Catedral perde suas pretensões de obra arquitetônica e assume, integralmente, sua função simbólica. Nos momentos de concentração popular, a Praça, antiga ou nova, transforma-se funcionalmente, e essa nova roupagem a torna outra, sem identificação com a primeira: a praça funcional dá lugar à praça simbólica, emblemática. À história das metamorfoses da Praça, soma-se essa outra imagem, a praça simbólica, porém com uma diferença ponderável; ela se individualiza. Na verdade, essa imagem também se altera por força

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46 da natureza ou do motivo da concentração popular: do religioso ao reivindicativo ou ao propriamente político. Em todas as concentrações, a Catedral atua como elemento exponencial da Praça: sua função é, então, agasalhar a multidão quando manifesta a necessidade de crença ou quando expressa a vontade popular. Inverte-se a função da Praça pela mudança de registro do receptor: o usuário é substituído pela multidão, que a usa como ponto onde pode fixar-se, onde se constrói e se justifica como multidão; o usuário passa pela Praça, a multidão está na Praça e, mais, a Praça faz a multidão na medida em que é o espaço físico da concentração; uma espécie de justificação topográfica a partir da inversão do seu significado funcional. O acontecimento, a festa, resgata a Sé como centro de São Paulo; entretanto essa centralidade nada tem a ver com a praça funcional, mas com um ângulo da cidade em seu aspecto emblemático, como uma justificativa social da praça que nunca existiu, mas que corresponde à necessidade popular de um espaço que sirva de amparo para a sua vontade, que agasalhe o eco de suas falas e aspirações. Nessa situação e contexto mudam as referências espaciais, que, ao contrário do que foi dito na parte teórica, já não são marcas que correspondem a vivências individuais ou coletivas zelosamente conservadas na memória repertorial do usuário, mas, aqui, esses índices suscitam vivências coletivas, o eco jamais olvidado de uma antiga necessidade de expressão. Nessa Praça, supera-se qualquer referência funcional anterior, muda-se a função da praça a fim de proporcionar o aparecimento de um espaço que não existe, mas que o povo cria para satisfazer sua necessidade social. Em cada um daqueles tipos de concentração, altera-se a imagem que a catedral comunica, ou seja, em todas elas, lá está ela com suas torres, ogivas e colunas, mas

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47 Foto: Depto. Patrimônio Histórico Foto: Depto. Patrimônio Histórico

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48 Foto: Cúria Metropolitana Foto: lstoÉ

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49 Foto: Agência Estado seu gesto comutativo se transforma criando textos não-verbais diversos. Nas concentrações religiosas, a Catedral abre-se para agasalhar a multidão. Obviamente, a dimensão desse gesto altera-se conforme a multidão a abrigar Na altura de 1910, nas provincianas procissões de Corpus Christi, a antiga igreja da Sé literalmente se abria para receber a mini-multidão; na altura de 1954, quando a cidade, quadricentenária, já suportava uma catedral, ela não mais se abria, mas estendia-se, prolongava-se pela Praça e uma assumia o espaço da outra, deixando-se mutuamente invadir; conseqüentemente, ao alongar-se na Praça, a igreja, simultaneamente, trivializa seus usos e costumes, seu ritual e suas práticas: suas naves estendem-se pelos meandros da Praça, suas imagens santas se projetam nos olhos de cada fiel, seus ritos são os gestos espontâneos de cada mão ao se erguer. Nas concentrações políticas, a procissão é substituída pela passeata ou pela sua expressão mais nobre, o comício.

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50 A Praça como espaço é, agora, o símbolo da força popular ao organizar-se para se fazer ouvir: a voz do povo. O comício é a manifestação intermediária entre a oficial e a espontânea, porque representa a vontade popular não naturalmente expressa, mas organizada: a multidão se concentra para dar força e fazer ecoar uma vontade ou uma verdade indiscutível e, no momento de sua expressão, perene. Agora, a Catedral é substituída pelo palanque que se ergue à sua frente; ela atua, fisicamente, como cenário, como pano de fundo, mas, simbolicamente, dá seu consentimento, sua bênção e adere à multidão. Aqui, a Praça é o espaço dessa adesão, porém não extensivo como nas concentrações religiosas, mas dividido entre o palanque e o resto, entre o espaço dos que detêm a promoção daquela verdade inconteste e o lugar dos seus seguidores; sem dúvida, o comício é o lugar de duas classes hierárquicas e claramente distintas pelo espaço que ocupam na Praça. Na Sé, a concentração popular em todas as suas manifestações concretiza um uso que não é funcionalmente previsto, e que é facilmente comprovado pelas fotos do comício que se desenrolou na Superpraça povoada de canteiros, tipuanas e jatos d’água desagregadores do único espaço contíguo central da cidade. O uso das concentrações populares não é estimulado pela estrutura física ou funcional da praça; ao contrário, sobre sua função viária, projeta-se uma outra, informacional, passageira, sem índices ou rastros, apenas conservada na memória. Enquanto espaço dessa função informacional, a Praça já não tem usos ou usuários habituais ou rotineiros, mas é apenas o espaço que abriga uma linguagem simbólica esporádica, e o seu emissor é a multidão, usuário momentâneo de uma face e de um só desejo, na única praça popular que São Paulo permite. 2

2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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51 A casa como modelo

O espaço tem coisas a dizer

A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo teve (ou tem) duas sedes: a primeira, a partir de 1948, e a segunda, vinte anos depois, a partir de 1969, o prédio definitivo e atual na Cidade Universitária. A velha e a nova FAU. A Vila Penteado, a sede inicial, foi projetada pelo arquiteto Carlos Eckman e construída entre 1902 e 1906. A segunda e definitiva sede foi projetada pelo arquiteto João Vilanova Artigas, e sua inauguração se deu em 1968. Da velha para a nova FAU, do primeiro para o segundo arquiteto, duas concepções de arquitetura. Deste início banal e apenas informativo, queremos extrair as pontas que nos levam a ler a FAU, nem a velha, nem a nova, porém uma pela outra: comparação, território de convergências e divergências. Ë do segundo arquiteto, Vilanova Artigas, uma frase reveladora, porque norteia a leitura e define sua dominante: “Digo aos jovens arquitetos: tenham a sensibilidade de fazer com que seus edifícios tenham alguma coisa a dizer” (aula proferida no concurso para professor-titular da escola, 28 de junho de 1984). Um espaço com fala, um espaço expressivo de filosofias, de ideologias, de programas, de emoções: elementos que contribuem para a solução dos espaços. Na FAU, qual é essa fala? Essa fala é sutil no espaço luminoso da nova FAU: a luz é sua característica espacial e parece tudo conter e tudo explicar: a arquitetura sem vãos, sem espaços reclusos, sem fragmentos, sem apêndices. Essa fala apaga-se nas formas da luz; é necessário digitalizar o espaço, descortinar

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52 seus indicadores para tateá-lo e ouvir, de longe que seja, a sua voz. Quanto mais nítida for essa voz, quanto mais caracterizada e/ou institucionalizada, tanto mais simbólica, coerente e organizada será sua mensagem. Entretanto essa clareza, porque não-verbal, não se manifesta logicamente, mas é apenas apreendida pela leitura; i ri olhar metalingüístico que, na digitalização do espaço, flagra os índices daquela fala. Entretanto ela não se inaugura como nova e exclusiva de cada espaço, mas se manifesta com certa taxa de redundância em múltiplos aspectos, só captável pela comparação entre vários espaços, distantes de imediato, mas posteriormente e, na realidade, quase co-presentes.

O velho e o novo: um pelo outro

Na nova FAU é freqüente antigos professores ou alunos comentarem com saudade aspectos particulares e a vida da escola na antiga sede. Entretanto essa nostalgia não raro se apóia na constatação de uma falta de continuidade de programas, atividades e perspectivas entre as duas escolas. Não se dá atenção às convergências ou divergências entre os dois espaços, mas, ao contrário, ao significado do seu desempenho, a sua ocupação utilitária. Porém, se considerarmos natural a diferença de usos, dado o tempo que medeia entre as duas escolas, parece-me que não há sentido nesta nostalgia. A aproximação entre os dois espaços aponta naturalmente, não para usos semelhantes, mas para explorações espaciais da nova FAU análogas àquelas que ocorreram na antiga Vila Penteado. Não se trata de manter ou continuar programas ou perspectivas, mas de inventar usos sugeridos pelo espaço que lembra o antigo e, portanto, como no passado, está pronto para acolhê-los. Porém esta acolhida não é mecânica, mas precisa ser estimulada pela adequação do uso ao espaço.

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53 Nesta leitura, não hesitamos em aproximar as duas sedes, embora consideremos as diferenças de contexto, de assentamento, de dimensões, de forma ou desenho. Essa aproximação é sugerida pela percepção e pela comparação que revela e desvela o uso do antigo, ao mesmo tempo que ilumina o novo espaço e sua possível utilização. Entre os espaços da velha FAU e da nova não há uma constatação necessária e objetiva, porém a sugestão metafórica de semelhanças que se quer possíveis e tanto mais sedutoras quanto mais repelem vagas impressões de ligeiros sentimentos. A percepção de um espaço urbano e, sobretudo, da comparação entre espaços supõe uma inferência de leitura, porém uma operação sagaz entre índices e marcas realmente encontradas e verificáveis. Neste caso, as inferências são caminhos sugeridos pelos rastros existentes num espaço ou entre espaços próximos ou distantes no tempo. Seria pretensão exagerada afirmar que a FAU nova é um redesenho da outra apreendido na sutileza de um projeto cujas soluções espaciais revestem antigas emoções e propostas educacionais do arquiteto Artigas? A resposta segura a esta questão necessita da investigação arquitetônica, porém não é improvável para uma leitura que aproxime os dois textos. A escola no espaço A velha e a nova FAU nada têm em comum enquanto propostas arquitetônicas. Sob a influência art nouveau, a Vila Penteado erguia-se nos altos de um terreno, rodeada de jardins, junto à Avenida Higienópolis e à Rua Itambé. Foi construída para abrigar a família Penteado.

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54 Foto: Vila Penteado, FAU/USP, 1976 Era uma residência, e seu partido arquitetônico correspondia às suas exigências funcionais. Ali morava uma família numerosa e, mais do que isso, de posses econômicas elevadas e igual prestígio social; ostentava-se e publicava-se dinheiro e poder em múltiplas atividades sociais, esportivas e culturais; a casa correspondia aos seus objetivos: fragmentava-se em quartos, estúdios, salas e salões. A vila cumpriu suas funções por mais de trinta anos; em 1948, transformou-se na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo justifica-se: era um dos exemplares mais rigorosos da art nouveau. A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitária foi projetada para ser uma escola de arquitetura. Espalhada horizontalmente no terreno, é um exemplar de arquitetura moderna, em concreto e vidro.

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55 Foto: Cristiano Mascaro Foto: Samuel O. Moreira

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56 Foto: Cristiano Mascaro Luz abundante, amplos espaços, eliminação de janelas e vãos, estúdios enormes; poucas salas de aula, não mais do que uma concessão: uma escola planejada para um ensino revolucionário numa estrutura arrojada. Da residência à escola, duas propostas arquitetônicas para atender a objetivos e funções diferentes. Nada têm em comum. Porém a Faculdade se implanta, cresce e se sedimenta à sombra de duas obras exemplares: um desafio que exige respostas e é tacitamente assumido.

O espaço coletivo

Da casa à escola há uma distância de propostas, porém um uso que as aproxima enquanto fontes de informação. Isso se define se analisarmos os dois espaços a partir de alguns pontos-chave.

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57 Na Vila Penteado, o saguão era o núcleo central de toda a organização física da casa e simbólica da família: lá era o ponto de reunião dos familiares, das festas e encontros sociais; quando se transformou em escola, era o espaço adequado para exposições e reuniões comemorativas; as escadas e o vestíbulo superior dominavam o saguão e articulavam-se verticalmente com ele, duplicando sua dimensão, sua altura e fazendo-o maior e mais comunicativo: era o espaço coletivo da FAU Maranhão. Na nova FAU, o salão caramelo é uma expansão transformada do saguão art nouveau: mais amplo, iluminado e arejado, incorpora o espaço externo e se transforma numa grande praça no interior da escola; ponto de exposições, de reuniões, de comemorações, espaço de passar, ver e ser visto, canto de relações pessoais e interpessoais — o núcleo do espaço coletivo. Prolongou-se a velha FAU. Foto: Cristiano Mascaro

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58 Foto: Cristiano Mascaro À semelhança do saguão, o caramelo prolonga-se, vertical e horizontalmente, para as rampas, incorporando-as ao espaço coletivo e assumindo seus grafitos, desenhos, cartazes, faixas, objetos, como sua decoração exclusiva. Não seriam esses elementos uma réplica dos florões, pinturas e motivos geométricos da Maranhão? Foto: Cristiano Mascaro

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59 Revoltando-se contra os espaços acanhados, escondidos e, sobretudo fragmentados das salas de aula improvisadas da Maranhão, a FAU nova expõe e expande seus estúdios amplos, enormes, para 150 alunos com suas pranchetas, trabalhando livres, sem janelas, portas ou paredes, pois as que existem não chegam a vedar. Transformou-se a velha FAU. Foto: Cristiano Mascaro Para completar a simetria no espaço coletivo: os ingênuos laguinhos de uma e de outra e, aqui ou ali, os objetos do passado: as velhas mesa e cadeiras da antiga sala de jantar dos Penteado que, agora, compõem a sala da Congregação, as fotos de detalhes art nouveau facilmente identificáveis ou a esguia Faustina — símbolo da velha escola; que, propositalmente ou não, reaparece em pontos e momentos estratégicos como centro de uma

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60 exposição prestigiosa para a escola ou como decoração da própria sala do Diretor. Foto: Cristiano Mascaro Foto: Samuel O. Moreira

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61 Foto: Samuel O. Moreira

A escola-modelo

É possível uma casa ser escola? Ou, é possível uma escola ser casa? Esse é o ponto. A Vila Penteado foi doada à Universidade de São Paulo menos para ser uma escola do que por ser um marco arquitetônico da cidade e, continuando a atuação de vanguarda dos seus proprietários, deveria ser um centro de agitação no campo das artes e das idéias em geral. Efetivamente, esse foi o papel da Faculdade de Arquitetura da Rua Maranhão até transferir-se para a Cidade Universitária, em 1969, vinte anos depois da sua fundação. Durante duas décadas, não deixou de instalar-se e desenvolver-se como escola, mas, na dinâmica da vida cultural da cidade, foi o centro de reunião dos jovens universitários, e o famoso saguão assistiu a debates, reuniões acaloradas entre grupos e facções artísticas ou políticas de colorações diferentes, além de exposições de jovens artistas, depois renomados. O saguão preenchia o vazio da ausência de um centro cultural na cidade.

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62 Na FAU nova, o salão caramelo na sua expansão vertical-horizontal é o centro de convívio da escola e, em momentos de decisão para a vida universitária, é o local para onde afluem professores, alunos e funcionários na realização de agitadas assembléias, na tomada de complicadas e, algumas vezes, confusas decisões. Ê no salão caramelo que se dá a vida cultural e artística da Universidade nas suas expansões urbanas, apesar da existência, hoje, de uma escola de artes. O antigo saguão abrigou a juventude universitária das décadas de 50 e 60, o salão caramelo abriga a juventude dos últimos quinze anos. Esses espaços assumiram e assumem com naturalidade essa função porque talvez para isso tenham sido feitos. Entre as propostas arquitetônicas das duas escolas não há nada em comum, mas a vida de ambas é semelhante. As duas comportam-se mal como espaço para escola: na velha, classes improvisadas, espaços hoje pequenos para a quantidade de alunos, e escuros, com a massa cinzenta dos edifícios que a envolvem; na nova, espaços excessivamente amplos para aulas estabelecem a necessidade de trabalhos individuais ou de pequenos grupos, sua luz é demasiada e seu ruído precisa ser constantemente controlado, não sendo difícil encontrar quem a considere inabitável ou inusável; porém não seria possível identificá-la de outro modo: é uma escola, por isso é sempre nomeada no feminino. Porém que espaços escolares são esses? Como residência que era, o espaço da velha FAU acomodava-se mal como escola; o espaço da nova FAU presta-se mal à rotina escolar. Nos dois casos, salvam-se os espaços de convívio, OS espaços coletivos, mas não são assumidos, naturalmente, como escolares; antes, no quotidiano, podem ser fonte de dispersão, quando não de espaços

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63 perdidos. Mas são os espaços de uso, vitais para a sobrevivência das duas escolas. Foto: Samuel O. Moreira Como já foi visto, ambas são arquitetonicamente diferentes, porém abrigaram e abrigam escolas; apenas solicitam ou sugerem um ensino estruturalmente diferente do rotineiro. Essa sugestão aparece no uso mais real do que funcional no caso da velha FAU, e, na proposta dessa leitura, é uma sugestão funcional e emocionalmente assumida no partido projetivo da nova FAU — pensa-se em uma escola que não deve caber em seus muros, uma estrutura

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64 urbana aberta a tudo e a todos, capaz de desempenhar um papel na vida intelectual e cultural da cidade. Mais uma escola expandindo-se na comunidade do que realizada internamente. Artigas responderia no projeto da nova FAU aos estímulos da sua vivência na Rua Maranhão? Na nova FAU não se despreza o espaço destinado à aula formal; ao contrário, esta atividade cabe e por isso lhe são destinadas salas especiais no andar superior, mais distantes do ruidoso espaço de convívio coletivo; entretanto claramente se insinua que a aula não é a atividade exclusiva de uma escola e ela divide o espaço com os estúdios, apenas quatro, porém tão amplos que parecem ocupar todo o espaço; na realidade, ao lado do salão e das rampas, eles ocupam o coração da escola. Não haverá nessa distribuição espacial uma clara noção das vicissitudes e, sobretudo, da insuficiência do padrão escolar atrelado a disciplinas formalizadas em salas de aula e currículos? A segmentação da estrutura curricular em disciplinas parece opor-se ao espaço, que sugere um aprendizado onde o individual ou o pequeno grupo pode subsistir com vantagem sobre o ensino institucionalizado e solidamente demarcado em horários, disciplinas e avaliações. Neste espaço para uma escola-modelo tudo está preparado para uma formação informal, não-estabelecida, porque constante, não-estruturada, porque organizada em torno de pólos de interesses múltiplos e variados, sem compromissos com objetivos predeterminados, um espaço onde pesquisar é aprender e ensinar ao mesmo tempo, um espaço que é um desafio para o ensino e para como ensinar. No projeto da nova FAU, a Vila Penteado permanece e sugere como fazer um espaço-escola. Será esta a contribuição da arquitetura para a educação: começar a ensinar através das próprias soluções espaciais?

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6 Vocabulário crítico

Analogia: obedecendo ao hábito mental da associação de idéias, desenvolvemos uma faculdade que consiste em associar imagens, combiná-las totalmente ou em partes; numa atuação mais rigorosa descobrimos, pela analogia, a proximidade ou relação entre estruturas de fenômenos ou manifestações originalmente distantes. Código: sistema de sinais ou símbolos que por convenção preestabelecida se destina a transmitir uma mensagem entre um emissor e um receptor, que podem estar representados por homens, máquinas ou ambos. Crença/Hábito: a crença é a indicação mais ou menos segura de se ter estabelecido, em nossa natureza ou em nosso quotidiano, uma tendência capaz de orientar nossos desejos e nossas ações dando-lhes uma configuração de hábito. O binômio crença/hábito se opõe a um outro: crise/dúvida. Dedução, Indução, Abdução: são os nomes que distinguem as três espécies fundamentais e diferentes de raciocínio. A dedução extrai das hipóteses uma teoria ou diagrama representativo, deixando explícitas ou realçando as relações

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66 subjacentes à teoria, sua validade ou freqüência e, sobretudo, extrai da teoria uma conclusão necessária; a dedução “prova que algo deve ser”. A indução consiste em partir de uma teoria, observar ou submeter alguns fenômenos a testes experimentais a fim de verificar se concordam ou não com a teoria; é um raciocínio que supõe experimentação controlada, mostra que “alguma coisa é realmente operativa”. A abdução consiste na capacidade de criar hipóteses explicativas ou explanatórias de fenômenos observados na experiência ou na natureza; são hipóteses possíveis, mas não necessárias e sujeitas a confirmação ou teste a partir da experimentação indutiva e sustentação teórico-dedutiva, ou seja, são hipóteses que sugerem idéias novas, que devem ser elaboradas abstrata ou teoricamente pela dedução e verificadas pela indução; a abdução “simplesmente sugere que alguma coisa pode ser” (Peirce, C. P., 5.172). Dúvida/Crise: a dúvida é um estado desagradável e incômodo contra o qual lutamos; esse esforço é orientado pela investigação, que nos permite superar a crise em que a dúvida nos projeta. Nossas ações são orientadas por hábitos que decorrem de crenças, porém esta regularidade está constantemente operando com dúvidas, que prejudicam o equilíbrio característico da crença; portanto o binômio dúvida/crise tem como antônimo um outro binômio, crença/hábito. Icone/Indice/Símbolo: conforme o modo pelo qual um signo representa um objeto, ele será um: ícone, se representar uma qualidade que é, simplesmente, uma possibilidade do objeto; índice, se representar uma qualidade realmente existente e que caracteriza o objeto; símbolo, se representar uma associação necessária com o objeto e que atua com a força de uma lei.

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67 inferência: é um conhecimento ao qual chegamos a partir da experiência e, sobretudo, com o auxílio da observação e comparação entre elementos que atraem nossa atenção. Metodologia: são modalidades de ação para a solução de problemas em um determinado campo de investigação. Não tem um fim em si própria, mas é ou deve ser apenas um instrumento de ação adaptada a cada objeto de pesquisa ou estudo, sem qualquer intenção de receita ou rotina. Representar: é estar em lugar de, isto é, estar em relação com alguma coisa de modo a poder ser considerado por alguém como se fosse a própria coisa representada. Semiotização/Semiótica: toda representação de um signo em relação ao objeto representado é sempre parcial, pois não esgota todas as faces do mesmo objeto. Assim, semiotização envolve a representação parcial do signo em relação ao objeto, mais a relação interpretante que o intérprete ou receptor estabelece entre aquele modo de representação e o próprio objeto representado. Todo sistema de representação tem, pois, uma lógica que o caracteriza; o estudo científico dessa lógica chama-se Semiótica. Signo/Objeto/Interpretante: são entidades interdependentes, mas não submissas entre si; nesta cadeia, os três elementos são irredutíveis um ao outro porque designam instâncias particulares de um processo de significação que compreende os três elementos simultaneamente. O signo está no lugar do objeto e o representa para alguém; o objeto é representado pelo signo, que transmite sobre ele alguma informação; o interpretante é a relação que o intérprete estabelece entre o objeto e o modo como o signo representa esse objeto; logo, não é possível confundir interpretante e intérprete.

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68 Signo-pensamento: quando pensamos, temos presente à consciência uma imagem, sensação ou representação. Ora, quando pensamos, surgimos como signo que é sempre interpretado por um outro pensamento que lhe é subseqüente. Seja o que for que pensemos, é manifestação da nossa pessoa, é uma representação nossa e nos faz surgir como signos.

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7 B ib1iografia comentada

BAKHTIN, Mikhail (Volochinóv). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1981. Discípulo de Bakhtin, Volochinóv assina a primeira publicação desta obra na Rússia, em 1929. A razão deste fato não está suficientemente esclarecida, porém, hoje, a autoria da obra é atribuída a Bakhtin. À luz do marxismo, desenvolve uma filosofia da linguagem que procura estabelecer a natureza ideológica de todo sistema de representação, notadamente o verbal. —. L’oeuvre de François Rabelais. Paris, Gallimard, 1970. Tese apresentada pelo autor no Instituto de Literatura da Academia das Ciências da URSS, em 1946. Nesse trabalho, a partir da obra de Rabelais, estuda a base cômica da cultura popular que se desenvolve durante a Antiguidade e vai, pouco a pouco, caracterizando-se até distinguir-se da “cultura oficial” na Idade Média. Para parodiar e negar os valores, mitos e crenças da sociedade feudal, o povo reunia-se na praça pública em comemorações de carnaval, que, pelo seu caráter grotesco, opunha-se à festa “oficial” e constituía a máxima expressão do “popular”.

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70 CHKLOVSKI, Victor. Sur la théorie de la prose. Paris, L’age d’Homme, 1973. Sob a influência marcante do formalismo russo, o autor desenvolve a teoria de que a arte opera pela descoberta de procedimentos que levam o receptor a ver a realidade de outro modo, o que supõe um re-conhecimento, isto é, não identificar, porém conhecer outra vez. Este procedimento seria fundamental para a criação daquela obra de percepção “difícil”, porém mais densa, capaz de superar o hábito e a rotina. Eco, Umberto. Lector infabula. Milão, Bompiani, 1979. Partindo do leitor literário, o autor estuda a cooperação indispensável dele, leitor, na construção das narrativas, sobretudo aquelas de caráter intertextual. Muitas das suas hipóteses podem ser desenvolvidas em outros sistemas de linguagem, além do literário. Kopp, Anatole. Ville et révolution. Paris, Anthropos, 1967. Nesta obra são desenvolvidas as principais idéias dos arquitetos e urbanistas russos que, logo após a revolução de 1917, procuraram estudar e criar condições urbanas que permitissem o desenvolvimento social sob outros parâmetros de habitação ou de cidade. Muitas dessas idéias nutriram o desenvolvimento da arquitetura e do urbanismo europeus em geral. Kosik, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. Esta obra teve sua primeira edição em 1926, na Tchecoslováquia, e estuda a rotina das nossas ações impregnadas pela crença em determinados fetiches diários, que transformam nossas reações em repetições de hábitos, que precisam ser desmistificados para que seja possível o conhecimento da realidade e o rompimento dos automatismos.

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71 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1975. (Col. Debates.) Neste livro estuda-se não tanto o desenvolvimento das ciências, mas seu progresso, porque, superando-se o caráter cumulativo do conhecimento científico, apresenta-se a ciência como fruto de um desenvolvimento contraditório e não-previsível, de caráter revolucionário. De certa forma, o autor não opõe conhecimento científico a revolução científica, mostrando como o progresso da ciência resulta de uma crise que questiona as “crenças” estabelecidas em um ramo do conhecimento e, como tais, aceitas e seguidas pela comunidade científica. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, Martins Fontes, [1982]. O livro é o relato de uma pesquisa realizada sob a coordenação do autor no Centro de Estudos Urbanos e Regionais do Instituto Tecnológico de Massachusetts. Estudam-se três cidades norte-americanas, Boston, Jersey City e Los Angeles, a partir do aspecto visual de suas imagens, metodologicamente apreendidas, e como recurso de análise e sugestão do design urbano. Não considera a cidade como uma manifestação de linguagem, mas a imagem da cidade como apenas uma manifestação do seu visual. PEIRCE, Charles Sanders. Collected papers. Cambridge, Harvard University Press, 1931-1958. 8 v. Sob o título geral de Papéis Coligidos, é a obra que reúne importantes trabalhos de Peirce, originalmente publicados em revistas especializadas da sua época. Atualmente, a Indiana University Press (Bloomington) encarrega-se da primeira publicação das obras completas, que têm como título Writings of Charles Sanders Peirce. Até o momento foram lançados quatro volumes. A referência dos textos constantes em Papéis Coligidos é indicada

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72 conforme o original inglês, ou seja, Collected papers (C.P.), mais o número do volume e do parágrafo correspondente ao texto em questão. —. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo, Perspectiva, 1977. —. Semiótica e filosofia. Trad. Octanny Silveira da Mota e Leônidas Hegenberg. São Paulo, Cuitrix, 1972. Os pensadores vol. XXXVI, São Paulo, Abril Cultural, 1974. Trad. de Armando Mora D’Oliveira e Sérgio Pomerangblum. São as três obras que, em português, apresentam traduções de alguns textos de Peirce extraídos dos Collected papers e de interesse para este trabalho. VÁRIOS AUTORES. A literatura e o leitor. Sei, e Trad. de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. Trabalho que reúne alguns textos expressivos da moderna Teoria da Recepção de origem alemã. São textos de Jauss, Stierle, Iser, Gumbrecht. Atualmente, a Teoria da Recepção constitui um importante esforço no sentido de reintroduzir o estudo de questões cruciais da história e da crítica literária a partir do receptor. Embora privilegiem a literatura, estes enfoques podem e devem ser expandidos para o estudo de qualquer manifestação da linguagem. VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; BROWN, Denise Scott. Aprendiendo de Las Vegas. Barcelona, Gustavo Gili, 1978. Estudo do impacto do simbolismo sobre a arquitetura e sua capacidade de interferir na linguagem urbana a ponto de transformá-la. A partir de agudas observações, os autores estudam o caso de Las Vegas e sua arquitetura kitsch. Sem preocupações metodológicas, pelo menos explícitas, a obra é uma “leitura” de alguns aspectos e pontos da cidade.

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