Limites Do Direito Penal - Ulrich Sieber

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Direito Penal

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  • REVISTA DIREITO GV, SO PAULO4(1) | P. 269-330 | JAN-JUN 2008

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    RESUMOESTE TEXTO CONTM O PROGRAMA DE PESQUISA QUE IR ORIENTAR ASATIVIDADES DO INSTITUTO MAX-PLANCK DE DIREITO PENALESTRANGEIRO E INTERNACIONAL DE FRIBURGO NOS ANOS QUESEGUEM. O PROGRAMA FUNDA-SE NUM DIAGNSTICO ABRANGENTEDOS PRINCIPAIS PROBLEMAS PENAIS ENFRENTADOS PELO DIREITO NO

    MUNDO DE HOJE E, POR ESTA RAZO, ALM DE NORTE PARA UM DOSPRINCIPAIS CENTROS DE PESQUISA EM DIREITO PENAL NO MUNDO, OTEXTO UM MAPA PRECISO DAS MAIS RELEVANTES QUESTES PENAIS

    CONTEMPORNEAS. ELE TEM TRS OBJETIVOS PRINCIPAIS: (A)ANALISAR ALTERAES NOS RISCOS SEGURANA E AS IDIAS SOBRE

    SEGURANA NUMA SOCIEDADE MARCADA PELA GLOBALIZAO E POR

    MUDANAS TCNICAS E ECONMICAS; (B) ANALISAR A CRITICAR ASALTERAES LEGAIS QUE ACOMPANHAM AS MUDANAS MENCIONADAS E

    SUAS CAUSAS, (III) DESENVOLVER NOVAS RESPOSTAS PARA OS DESAFIOSPOSTOS PELA NECESSIDADE DE EFETIVAR AS LEIS. TRS ASSUNTOSMERECEM MAIOR DESTAQUE: O CRIME ORGANIZADO INTERNACIONAL, OTERRORISMO E OS CRIMES COMETIDOS PELA INTERNET.

    PALAVRAS-CHAVEINSTITUTO MAX-PLANCK DE DIREITO PENAL ESTRANGEIRO EINTERNACIONAL; RISCOS DE SEGURANA; GLOBALIZAO ETRANSFORMAO TCNICA, ECONMICA E POLT ICA;DESAFIOS POLTICO-CRIMINAIS; CRIMINALIDADE ORGANIZADA;TERRORISMO; INTERNET

    Ulrich Sieber

    LIMITES DO DIREITO PENALPRINCPIOS E DESAFIOS DO NOVO PROGRAMA DE PESQUISA

    EM DIREITO PENAL NO INSTITUTO MAX-PLANCK DE DIREITO PENAL ESTRANGEIRO E INTERNACIONAL

    ABSTRACTTHIS PAPER DESCRIBES THE RESEARCH PROGRAMIMPLEMENTED BY THE CURRENT DIRECTOR OF THE MAX-PLANCK-INSTITUTE FOR FOREIGN AND INTERNATIONALPENAL LAW, WHICH HAS ITS FOCUS DIRECTED TO THECURRENT CHALLENGES POSED TO PENAL LAW BY

    CONTEMPORARY SOCIAL, ECONOMIC AND POLITICAL CHANGES.THIS PROGRAM HAS THREE GOALS: (I) TO ANALYZE THE REALALTERATIONS TO SECURITY RISKS AND THE IDEAS REGARDING

    SECURITY IN A SOCIETY BRANDED BY GLOBALIZATION AND

    TECHNICAL, ECONOMIC AND POLITICAL CHANGES; (II) TOANALYZE AND CRITICALLY EVALUATE THE LEGAL CHANGES

    THAT ACCOMPANY SAID CHANGES AND THEIR CAUSES; (III)THE DEVELOPMENT OF NEW ANSWERS TO THE CHALLENGES

    POSED TO LAW ENFORCEMENT POLICIES. IN THIS CONTEXT,THE FOLLOWING ASPECTS ARE HIGHLIGHTED: INTERNATIONALORGANIZED CRIMINALITY, TERRORISM AND CRIMESCOMMITTED OVER THE INTERNET.

    KEYWORDSMAX-PLANCK-INSTITUTE FOR FOREIGN AND INTERNATIONALPENAL LAW, SECURITY RISKS, GLOBALIZATION AND TECHNICAL,ECONOMIC AND POLITICAL CHANGES, CHALLENGES TO LAWENFORCEMENT POLICIES, ORGANIZED CRIMINALITY,TERRORISM, INTERNET

    *

    THE LIMITS OF CRIMINAL LAW

    TRADUO Alessandro Hirata REVISO DA TRADUO Vivian C. Schorscher REVISO TCNICA Vivian C. Schorscher, Marta R. A. Machado, Flvia P. Pschel

    ORIGINALMENTE PUBLICADO EM: SIEBER, ULRICH. GRENZEN DES STRAFRECHTS GRUNDLAGEN UND HERAUSFORDERUNGEN DES NEUEN STRAF-RECHTLICHEN FORSCHUNGSPROGRAMMS AM MAX-PLANCK-INSTITUT FR AUSLNDISCHES UND INTERNATIONALES STRAFRECHT, ZEITSCHRIFT FR DIEGESAMTEN STRAFRECHTSWISSENSCHAFTEN, BAND 119 (2007), S. 1-68.

    1. INTRODUOA sucesso na diretoria do Instituto Max-Planck de direito penal estrangeiro e interna-cional de Friburgo, no final de 2003, motivou a concepo de um programa depesquisa projetado a longo prazo na diviso de direito penal do instituto.Tal programa1

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  • apresentado em forma de discurso de posse na comemorao da sucesso do cargoem maro de 2004 dever concentrar os futuros trabalhos nos problemas centraisdo direito penal do futuro, obter sinergia entre os projetos de pesquisas individuaise desenvolver novas abordagens para solues no contexto de uma construo teri-ca de grande alcance.2

    O objeto do novo programa de pesquisa so os desafios atuais do direito penal,derivados de modificaes sociais, econmicas e polticas. Essas modificaes sociaisocorrem em alta velocidade na atual sociedade mundial, de informao e de risco.Elas tm efeitos graves no desenvolvimento da criminalidade, no direito penal e napoltica criminal, podendo como o princpio da preveno, que avana no direitopenal conduzir a uma mudana de paradigmas. Esta mudana faz-se presente pormeio da criao de novas formas de cooperao internacional e do direito penalsupranacional no apenas no direito penal europeu e no direito penal internacional.Mudanas ainda mais graves revelam-se nas aes contra o terrorismo, por meio dadissoluo de categorias polticas e jurdicas clssicas, como a distino entre segu-rana interna e externa, guerra e crime, servios secretos e polcia, polcia e milcia,assim como guerra e paz.3

    Diante do pano de fundo desse desenvolvimento, o novo programa de pesquisado Instituto Max-Planck de direito penal estrangeiro e internacional tem trs obje-tivos de pesquisas, cada qual constituindo a base para o seguinte; so eles: (i) aanlise das modificaes reais dos riscos de segurana e dos pensamentos sobresegurana na sociedade marcada pela globalizao e pela transformao tcnica, eco-nmica e poltica; (ii) a anlise e avaliao crtica das modificaes normativas queacompanham referidas transformaes e suas causas, assim como (iii) o desenvolvi-mento de novas respostas para os relevantes desafios poltico-criminais.

    A orientao do programa de pesquisa para as modificaes sociais e jurdicasexige, para a determinao dos futuros pontos centrais da pesquisa, primeiramen-te, uma anlise da modificao social, seus efeitos sobre a criminalidade, o direitopenal e a poltica criminal, assim como das questes fundamentais dela resultantes.4

    Esta anlise estar no centro das observaes que seguem (2.). Por fim, sero expos-tos os mtodos e projetos de pesquisa com os quais esse programa de pesquisa deverser implementado (3.).

    2. MODIFICAES ATUAIS DA SOCIEDADE, DA CRIMINALIDADE,DO DIREITO PENAL E DA POLTICA CRIMINAL: DOS DESAFIOS CATEGORIAISDO DIREITO PENAL NA SOCIEDADE GLOBAL DE RISCOAs atuais mudanas sociais podem ser descritas de maneira emblemtica com aexpresso sociedade global de risco.5 Por trs desse conceito, esto os desenvolvi-mentos da sociedade mundial, da sociedade de informao e da sociedade de

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  • risco, estreitamente entrelaadas. A partir dessas modificaes, so especialmenterelevantes para o desenvolvimento da criminalidade e para o direito penal duas linhascentrais de desenvolvimento que se fortalecem mutuamente:

    O processo de globalizao proporciona novas oportunidades de execuo decrimes que ultrapassam fronteiras, levando o direito penal a seus limites ter-ritoriais e exigindo novos modelos de um direito penal transnacional eficaz(cf. 2.1).6

    O desenvolvimento da sociedade de informao e da sociedade de risco geranovos riscos e uma criminalidade complexa, que tambm leva o direito penal principalmente no contexto de uma crescente poltica criminal global a seuslimites funcionais na proteo da sociedade e da liberdade do indivduo e ocoloca ante novos desafios categoriais (cf. 2.2).7

    Essas duas linhas de desenvolvimento sero expostas detalhadamente a seguir,sendo analisadas, para cada uma delas, as modificaes do desenvolvimento da crimi-nalidade, a correspondente transformao do direito penal e as novas questes eabordagens de pesquisa resultantes.

    2.1 GLOBALIZAO, CRIMES TRANSNACIONAIS E LIMITES TERRITORIAIS DO DIREITO PENALO processo de globalizao em especial a partir da dcada de 1990 geralmen-te caracterizado pelo avano da comunicao, interao e organizao mundiais.8

    Esse desenvolvimento no acarreta somente, como globalizao econmica, pro-blemas s economias nacionais, mas tambm leva ao desenvolvimento de uma novacriminalidade global, a modificaes do direito penal e a uma crescente polticacriminal global. No centro dessas modificaes e da anlise a seguir est a progres-siva criminalidade transnacional, que tem causas especficas (N. 1), conduz odireito penal clssico nacional aos seus limites territoriais (N. 2) e gera novas ques-tes fundamentais (N. 3).

    2.1.1 Criminalidade transnacionalAs novas possibilidades de execuo transnacional de delitos decorrem das crescen-tes oportunidades de ultrapassagem de fronteiras por pessoas e no intercmbiointernacional de mercadorias, servios e dados na sociedade global. Essas possibili-dades tm causas tcnicas, econmicas e polticas e efeitos correspondentes.

    a) Causas tcnicas: modificaes tcnicas na globalizao possibilitam o uso de redesde dados mundiais para a prtica de delitos. Essas redes e a natureza imaterial dos dadosconduzem a uma comunicao e organizao mundiais, as quais tambm podem ser

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  • utilizadas para execuo de delitos. Elas permitem que, com um computador, se modi-fiquem, em fraes de segundo, dados de um sistema de computadores em um outropas, gerando srias conseqncias. Alm disso, os dados disponveis na internet estopresentes em todo o mundo e podem ser acessados em vrios Estados simultaneamen-te com um simples clique no mouse. Um controle estatal dos fluxos de dados nasfronteiras territoriais de um pas , assim, praticamente impossvel.9 Outras modifica-es tcnicas principalmente nas redes de transportes facilitam, ainda mais, omassivo trfego transfronteirio de pessoas, mercadorias e servios, que, em virtudedessas modificaes, dificulta o controle e incentiva a prtica de crimes transnacionais.

    b) Causas econmicas: as modificaes econmicas decorrentes da globalizaogeram possibilidades adicionais de prtica de delitos transnacionais nos recm-criados mercados mundiais. Assim, por exemplo, a lavagem de dinheiro ocorre emum mercado financeiro mundial, caracterizado por suas rpidas transformaes eque, em sua maior parte, se subtrai ao controle individual dos Estados.10 O enor-me comrcio global de containers, da mesma forma, cada vez mais difcil defiscalizar.11 Em virtude da diviso internacional do trabalho, grupos econmicoscom atuao internacional e ramificaes no interior de numerosos territriosnacionais ampliam as possibilidades de atuao em nvel mundial, tornando suaregulao cada vez mais difcil de ser feita individualmente pelos Estados.12 Asconseqentes possibilidades crescentes de integrao e diviso de trabalho mundialno mbito da economia legal so utilizadas tambm para a prtica de crimes trans-nacionais, o que se mostra particularmente no desenvolvimento de mercadosilegais, especialmente no comrcio internacional de pessoas, no comrcio ilegal dedrogas e armas, na pirataria internacional de produtos e no comrcio internacio-nal de rgos humanos.13

    c) Causas polticas: as modificaes polticas da globalizao geram, alm disso, umenfraquecimento das fronteiras dos Estados em sua funo de barreira s transaestransfronteirias.14 Assim, a deciso sobre o livre trnsito de pessoas, mercadorias eservios na Europa, combinada com as modificaes econmicas da globalizao,gera novas oportunidades de prtica de delitos na recm-criada zona econmicaeuropia15 e para a facilitao de transaes em mercados proibidos, cujo controle mais difcil no mbito das fronteiras intracomunitrias do que antes da abertura dasfronteiras.16 A maior permeabilidade das fronteiras estatais tambm gera conseqn-cias de organizao poltica e de poltica criminal, uma vez que, diante de diferentesrelaes de regulamentao entre os Estados no interior das fronteiras intracomuni-trias, o mesmo fato pode, freqentemente, ser deslocado de forma legal para oordenamento jurdico mais favorvel. Essa questo se mostra principalmente noscasos em que valoraes divergentes ou interesses poltico-econmicos conflitantes

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  • levam a diferentes regulaes nacionais do mesmo fato, a exemplo de pesquisa declulas-tronco ou do aumento de impostos. Alm disso, diferentes relaes de regu-lamentao nas fronteiras externas favorecem a criminalidade em subvenes, denatureza aduaneira e tributria.17

    2.1.2 Limites territoriais do direito penala) Limites da soberania territorial: os efeitos tcnicos, econmicos e polticos da glo-balizao postos acima sobre o desenvolvimento da criminalidade levam o direito penalclssico baseado na soberania territorial , cada vez mais freqentemente, s suasfronteiras nacionais. Esses limites territoriais do direito penal tm como pressupos-to o fato de que o direito penal nacional dificilmente ser aplicado em nvel global,enquanto o reconhecimento da validade de suas decises em territrios estrangeirosexigir demorados procedimentos de cooperao administrativa ou judiciria.18 Porisso, o direito penal apenas poder superar esses novos desafios, na medida em que nose limitar a um campo de aplicao territorial e tornar-se, ele mesmo, global.19

    b) Ampliaes transnacionais: para o resultante desenvolvimento de um direito penalcom eficcia transnacional, h duas abordagens distintas na esfera da atividade legisla-tiva penal, entre os quais se encontram, ainda, numerosas formas mistas.20

    Por um lado, so desenvolvidos modelos de cooperao estatal em assuntospenais, pelos quais so validadas as decises de um sistema de direito penalnacional em um outro sistema de direito penal. Uma abordagem cooperativacomo esta fundamenta tanto a clssica colaborao administrativa e judiciriacomo o novo princpio h alguns anos preferido na Unio Europia dereconhecimento recproco de decises judiciais. Esse novo princpio temcomo base o princpio da confiana mtua e o fundamento de numerosasDecises-Quadro (existentes e planejadas) da UE, especialmente sobre oreconhecimento das penas pecunirias e multas, o mandado de deteno euro-peu e o mandado europeu de obteno de provas.21 Este princpio deve sercomplementado na UE pelo princpio da disponibilidade dos dados existen-tes em outros ordenamentos jurdicos (como dados de registros penais), o queacarretar outras mudanas considerveis na cooperao administrativa e judi-ciria clssica.22

    Por outro lado, desenvolve-se um direito penal supranacional, com o qual oordenamento jurdico-penal abrange um campo de aplicao territorial maiordesde o incio. Esse modelo encontrado esporadicamente no direito sanciona-dor da Comunidade Europia (por exemplo, na formao de cartis e naproteo dos interesses financeiros da Comunidade Europia) e tambm comuma abrangncia mundial no direito penal internacional.23

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  • Entre esses dois modelos existem numerosas formas mistas de unies federativase supranacionais, caracterizadas pela coexistncia de ordenamentos jurdicos, cen-tralizados e descentralizados (como no direito norte-americano) ou pela diferencia-da diviso das atividades legislativa, judicial e executiva entre instituies centraliza-das e descentralizadas.24 Exemplos de modificaes dos modelos-base supracitadosso o modelo suo de competncias federais e dos cantes ou o direito penal inter-nacional, dependente do trabalho conjunto com os Estados nacionais.25

    A anlise aprofundada dessas diversas formas de cooperao estatal em matriapenal, assim como do direito penal supranacional, como diferentes modelos para asuperao dos limites territoriais do direito penal, representa uma das futuras tare-fas centrais da cincia do direito penal em relao aos desafios da globalizao.

    2.1.3 Pesquisas pertinentes:Em direo a uma teoria da integrao internacional do direito penalUm primeiro tpico central do novo programa de pesquisa formado pelo desen-volvimento dos fundamentos tericos e prticos de um direito penal transnacionaleficaz. Para tanto, devem ser respondidas principalmente trs questes centrais: (a)com que modelos e em quais sistemas desenvolve-se atualmente um direito penaltransnacional eficaz e quais outras concepes de integrao do direito penal podemser imaginadas at aqui? (b) Como esses modelos e sistemas podem ser avaliados emrelao s duas funes clssicas do direito penal proteo da sociedade e liberda-de do indivduo? (c) Quais so as condies de aplicao para a execuo dos diversosmodelos e sistemas com vistas a espaos polticos e econmicos concretos?

    a) Modelos e sistemas de integrao do direito penal: os acima descritos modelosfundamentais de um direito penal transnacional eficaz podem ser encontrados, prin-cipalmente, no direito penal europeu, no direito penal internacional, nas NaesUnidas, em outras unies polticas e econmicas, assim como em Estados federati-vos.26 A globalizao e internacionalizao da poltica criminal dela decorrentelevaram, principalmente na ltima dcada, sobreposio de diversos ordenamentosjurdico-penais nacionais, supranacionais e internacionais, que, em parte, contmmodelos diferentes. Isso se evidencia no combate lavagem de dinheiro e ao blo-queio de bens na Alemanha, determinados por meio de regulamentos erecomendaes do legislador alemo, da Unio Europia, das Naes Unidas e daOCDE. A anlise do estado atual do direito precisa, portanto, distinguir modelosindividuais para a coordenao de diversos ordenamentos jurdicos nacionais e o sis-tema jurdico geral. Este, por sua vez, determinado por vrios atores internacionais(no raramente heterogneos) e composto de diversos ordenamentos jurdicos eoutros subsistemas jurdicos, que se influenciam reciprocamente por instrumentos

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  • rgidos ou flexveis. As atividades de diferentes atores nacionais, supranacionaisou internacionais na coordenao internacional do direito penal tm como efeitosistemas com diversos nveis e uma fragmentao do direito, que se torna aindamais complexa por meio de sistemas de controle social e intervenes de atores pri-vados, assim como de public private partnerships.27

    b) Avaliao dos sistemas: a avaliao dos diversos modelos e dos sistemas jurdicosgerais por eles criados leva a numerosos problemas fundamentais. No mbito dosmodelos de solues de cooperao, apresenta-se, principalmente, a questo sobreat que ponto um Estado que procura cooperao jurdica na persecuo de umdeterminado tipo de comportamento deve ser ajudado, se tal tipo de comportamen-to no punvel no Estado solicitado. Aqui ocorre uma coliso entre a aplicaotransnacional efetiva do direito penal e a proteo do cidado contra uma excessivaaplicao extraterritorial de direito estrangeiro.28

    No campo dos modelos de solues supranacionais, por sua vez, trata-seprincipalmente das seguintes questes de direito do Estado: (i) a possibilidade detransferncia de elementos do monoplio nacional da fora para um contextosupranacional; (ii) relacionado a isso, a legitimao democrtica de um direitopenal supra-estatal; (iii) a transparncia de seu surgimento; e (iv) um controle dosrgos executivos responsveis. Referidas questes, entretanto, apresentam-seno somente para um direito penal supranacional, mas tambm em relao a reco-mendaes internacionais vinculantes de direito ou de fato para o direitopenal nacional e para a cooperao entre pases.29 No futuro, elas sero importan-tes no apenas para o direito penal da Unio Europia e para as recomendaes doGrupo de Ao Financeira (Gafi) sobre lavagem de dinheiro, mas, principalmen-te, para o direito penal e de segurana recomendado pelo Conselho de Seguranadas Naes Unidas.

    Problemas de avaliao especficos resultam da acima constatada fragmentaodo direito em diversos ordenamentos jurdicos e complexos normativos, como nonvel dos Estados nacionais, da Unio Europia, das Naes Unidas e da OCDE.Esses sistemas com diversos nveis podem levar a colises de sistemas normativosdiferentes, assim como a contradies de normas ou valoraes.Tais colises encon-tram-se j na cooperao jurdica clssica, quando o dever de direito internacionalpblico de um Estado em relao a outro, no contexto internacional, e a autoriza-o limitada pela constituio, em contexto interno, so contraditrios. Elasaparecem tambm nas regras supranacionais no direito penal europeu, que podemcontradizer o direito nacional (especialmente, o direito constitucional). Entretanto,esses conflitos tornam-se particularmente evidentes em sistemas jurdicos com finsdiversos, como nos casos em que o direito das Naes Unidas (voltado a assegurar apaz) visa impor o congelamento de bens de terroristas em potencial, contradizendo

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  • as garantias processuais nacionais e internacionais (voltadas proteo dos direitoshumanos).30 Uma soluo desses problemas concretos conduz a reflexes funda-mentais sobre teoria do Estado, princpio da democracia, conceito de direito penal elegitimidade do poder de disposio no direito penal. Apenas sobre essa base pode-se desenvolver uma metanorma que, tambm nos casos de colises, determina quaiscondies democrticas, de Estado de Direito e de direitos humanos uma normainternacional (seja de aplicao ou de criao de direito penal) deva preencher parapreceder sobre determinados direitos protetivos nacionais ou regionais.

    c) Determinao das condies para aplicao: para a poltica jurdica, coloca-se,ento, a questo sobre os pressupostos e as condies para aplicao dos diversosmodelos de integrao do direito penal. Nesse contexto, central a perguntasobre a abrangncia da necessria harmonizao do direito penal, tanto no direi-to material quanto no processual: a criao de modelos supranacionais de soluespara reas geogrficas maiores leva a uma completa harmonizao jurdica, que,por sua vez, tem como pressuposto um consenso valorativo entre os ordenamen-tos jurdicos nacionais at agora vigentes. Como esse consenso difcil dealcanar, e modelos supranacionais de solues tambm exigem uma renncia desoberania nacional, tanto a prtica quanto a doutrina privilegiam, freqentemen-te, os modelos de cooperao acima descritos. Entretanto, modelos de cooperaopara o trabalho conjunto de diferentes ordenamentos jurdico-penais tambmpodem funcionar somente com uma certa harmonizao dos ordenamentos jurdi-cos em questo, o que vlido no apenas para a cooperao jurdica clssica, comseu princpio da dupla incriminao, vale tambm como mostra a discussosobre o mandado de deteno europeu para modelos que se fundamentam noreconhecimento recproco de decises, uma vez que estes somente funcionambaseados em confiana mtua. Um mnimo de harmonizao do direito tambm necessrio para todos os outros modelos de entrelaamento de diferentes ordena-mentos jurdico-penais.31

    Um requisito indispensvel para uma tal harmonizao do direito penal odireito penal comparado como instrumento central para a poltica jurdica epara a prtica.32 A comparao do direito penal deve analisar os casos em que nor-mas penais nacionais mostram especificidades especialmente culturais quesejam inerentes s correspondentes sociedades.33 Na medida em que tais especi-ficidades culturais efetivamente existem, apenas pode ser considerada umaaproximao lenta e flexvel dos diversos sistemas jurdicos, com auxlio demodelos de leis penais no-vinculantes.34 No entanto, o reconhecimento e a acei-tao de tais especificidades nacionais, para os modelos de cooperao, implicamquestionar se e quando haver prejuzo aplicao do direito transnacional emface de normas penais especficas, vigentes apenas em Estados isolados, ou se a

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  • aplicao deve ocorrer com base no reconhecimento mtuo de decises, semateno s diferenas jurdicas. A conseqente desistncia da dupla incriminaona cooperao jurdica de especial importncia, uma vez que um direito penaltransnacional eficaz deve servir no somente aplicao do direito penal, mastambm proteo do cidado contra a incidncia de normas penais estrangeiras,com cuja vigncia ele poderia ignorar no lugar do delito. Esse problema de coo-perao entre ordenamentos jurdico-penais diferentes pode aparecer, porexemplo, quando delitos com autores em vrios Estados valorado diferentemen-te pelos diversos ordenamentos jurdico-penais aplicveis, ou quando sopublicados na internet contedos que no so objeto de punio no lugar fsicoonde se encontra o servidor em questo, mas podem ser consultados tambm emum outro Estado, onde so punveis. A discusso decisiva mantida em relao aoreconhecimento mtuo no mandado de deteno europeu e no mandado euro-peu de obteno de provas35 sobre excees materiais para o reconhecimentomtuo (por exemplo, em razo da ordre public europia ou nacional)36 e sobrelimitaes territoriais (por exemplo, na execuo de delitos no prprio territ-rio)37 demonstra a existncia de problemas e questes fundamentaiscomplexas,38 que tm, alis, estreita relao com os limites funcionais do direitopenal, abaixo analisados.

    Com vistas correlao do grau de integrao e de harmonizao, assim comoda eficincia do respectivo modelo de direito penal, deve ser especialmente ana-lisado se os modelos de cooperao supracitados, com seu baixo grau de integraoe harmonizao entre os diversos ordenamentos jurdico-penais, enfraquecem noapenas a efetividade do trabalho conjunto e com isso a funo de proteo dasociedade pelo direito penal , mas tambm as possibilidades de controle, transpa-rncia e consistncia de todo o sistema e, conseqentemente, tambm da proteodos direitos de liberdade dos cidados. Um enfraquecimento dessa natureza pode-ria estar baseado no fato de que, em sistemas jurdicos crescentementefragmentados, com maiores diferenas entre os subsistemas e com mais alta com-plexidade, tambm tende a aumentar a incidncia de violaes de normas, lacunasde regulamentao e dficits de controle.39 No exame dessa hiptese, dever seranalisada a medida em que as fragilidades ntidas em trabalhos conjuntos inter-governamentais europeus e na cooperao jurdica internacional de modelosdescentralizados e pouco harmnicos podem ser compensadas por meio de regula-mentaes especiais.

    d) Conseqncias: as citadas problematizaes criam uma srie de questes funda-mentais complexas, cuja anlise simultnea panormica e sinttica dever gerar umacontribuio para uma abrangente teoria da integrao internacional do direitopenal e de um direito penal transnacional eficaz.40 O assim criado primeiro ponto

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  • central do novo programa de pesquisa no pode, entretanto, limitar-se a uma res-posta terica das questes fundamentais, precisando no caminho do direitocomparado investigar tambm quais experincias foram at agora alcanadas comos diversos modelos e sistemas de um direito penal transnacional eficaz. Faz-senecessria, portanto, uma abordagem emprica e baseada no direito comparado,tanto para a comprovao das diversas hipteses e proposies tericas quanto parao desenvolvimento de resultados capazes de ser utilizados, no tocante s questescentrais futuras da integrao de direito penal europeu e mundial.

    2.2 NOVOS RISCOS, CRIMINALIDADE COMPLEXA E LIMITES FUNCIONAIS DO DIREITO PENALA transposio de fronteiras territoriais apenas um aspecto mesmo que central eespecfico das modificaes da criminalidade na sociedade atual. Um segundoaspecto fundamental para o desenvolvimento da criminalidade na sociedade globalde risco so os novos riscos e a complexidade da delinqncia em modificao.Como conseqncia desse desenvolvimento, o direito penal defronta riscos cada vezmaiores e fatos cada vez mais complexos, seja na definio do comportamento penalrelevante, como tambm no esclarecimento de delitos. Em virtude dessas modifica-es e dos j apresentados problemas da globalizao, para determinados mbitosdelitivos mesmo com ataques cada vez mais intensivos ao direito de liberdade doscidados a atuao do direito penal, freqentemente, limita-se sua funo simb-lica.41 A necessidade de uma preveno reforada e de um novo direito desegurana, propagada pela opinio pblica e pela poltica, parece, na prtica, colocaro direito penal perante a alternativa de ou se adaptar s novas necessidades ou dei-xar as regulamentaes pendentes para ramos concorrentes do direito (como odireito de polcia, o direito do servio secreto ou o direito de guerra). Esse desen-volvimento leva o direito penal aos seus limites funcionais no somente na garantiade proteo sociedade, mas tambm e, especialmente, na sua tarefa de garantia daliberdade do indivduo.42

    2.2.1 Novos riscos da criminalidade complexaOs novos riscos e a complexidade dos delitos na sociedade global de risco tm comocausa assim como a j analisada criminalidade transnacional as mudanas tcni-cas, econmicas e polticas da sociedade atual. Tais modificaes precisam ser maisdetalhadamente estudadas, em razo de seus efeitos sobre a criminalidade e o direi-to penal, caso os problemas resultantes venham a ser conhecidos e solues devamser desenvolvidas. Trata-se aqui, principalmente, de riscos fortalecidos por novasdependncias e vulnerabilidades da sociedade, possibilidades modificadas de come-ter crimes e dificuldades especficas de esclarecimento eles, o que especialmenteclaro no mbito da criminalidade na internet, dos crimes contra a ordem econmica,da criminalidade organizada e do terrorismo.43

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  • a) Causas tcnicas: esses novos riscos da sociedade moderna e das formas de crimi-nalidade complexa geradas por ela baseiam-se, em primeiro lugar, nodesenvolvimento tcnico44, que se mostra, prototipicamente, na crescentedependncia da sociedade moderna de informao dos sistemas de computadores,freqentemente violados, em virtude das lacunas da segurana a eles imanentes eda coligao mundial dos agentes. A dependncia da sociedade moderna de infor-mao em relao a tais sistemas resultado da importncia central que, hoje, atecnologia da informao adquiriu para o funcionamento de economia, sociedadee Estado: sistemas de computadores assumem, como infra-estrutura tcnica, noapenas a conduo do fluxo de dinheiro, o arquivamento dos mais importantessegredos de negcios e empresas e a conduo da produo de fbricas. Eles tam-bm so empregados em infra-estruturas centrais, como a vigilncia area, adistribuio de energia eltrica, o tratamento de informaes pela polcia e milita-res e em grandes setores do sistema de sade.45 Os novos riscos tcnicos nessescampos implicam dificuldades no esclarecimento dos respectivos delitos e, emparte, tambm no cometimento mssico de delitos.46 Assim, na corrida com osagentes criminosos, a persecuo penal no somente sofre a presso da adaptaono sentido tcnico, mas tambm alcana, do ponto de vista quantitativo, os limitesda sua capacidade.

    Paralelamente, tambm resultam do moderno desenvolvimento tcnico novosperigos de energia nuclear, qumica, biotecnologia, assim como de instalaes tc-nicas com potencial lesivo sobre o homem e o meio ambiente.47 Entre estes seencontram no apenas riscos de uma proliferao de armas de destruio em massaentre terroristas,48 mas tambm do possvel abuso de produtos de dual-use e tc-nicas correspondentes. A transferncia de agentes patognicos animais para aspessoas, a rplica biotecnolgica de genes de vrus e bactrias (tambm de exter-minados), as possibilidades de alterao desses agentes patognicos por intermdioda tecnologia, assim como a publicao das necessrias seqncias de genes emrevistas renomadas podem, no futuro, aumentar os riscos do terrorismo por meiodo abuso dos produtos de dual-use.49 Esses novos riscos poderiam aumentar sen-sivelmente se potenciais terroristas estivessem infiltrados em laboratrios depesquisa adequados ou se eles se ocupassem intensivamente com o abuso da bio-tcnica, como o fazem atualmente com a tcnica de armas e explosivos.50 Essesriscos tcnicos so, em muitos casos, impossveis de ser limitados pelo local,tempo e nmero de atingidos.51 Ao menos desde os ataques da seita japonesa Aume do envio de cartas com Antrax nos EUA, cenrios correspondentes tambm sem-pre tm lugar cativo nas estratgias de diferentes servios de inteligncia. Odesenvolvimento tcnico leva, com isso, no apenas a novos riscos, mas tambm anovas necessidades de segurana da sociedade e modifica tambm sua percepodos riscos e da criminalidade.52

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  • b) Causas econmicas: riscos adicionais resultam de modificaes econmicas. Nonvel geral da economia, so importantes, primeiramente, os efeitos negativos daglobalizao para determinados grupos de pessoas, assim como uma melhor visibili-dade dos diferentes nveis de prosperidade e das diferenas sociais. Essesdesenvolvimentos causam violncia crescente e movimentos migratrios no lado dosperdedores.53 O controle da imigrao ilegal e os efeitos gerados tornam-se, assim,um problema central das sociedades desenvolvidas.54

    De outro lado, surgem grupos econmicos e fundos nacionais e multinacionais,que tm disposio considerveis meios financeiros e poder tambm poltico.55

    Abusos desse poder manifestam-se em corrupo, falsidades contbeis, crimes con-tra o meio ambiente e numerosas outras formas de crimes econmicos.56 Os riscosda resultantes se mostram, por exemplo, nos mercados financeiros globais, cujoabuso pode ter grandes efeitos na economia como um todo.57 No entanto, o incre-mento e o tamanho de grupos econmicos multinacionais no tm apenas abusosfinanceiros como efeito, mas tambm uma transferncia de poder do setor pblicopara o privado, fortalecendo-se mediante a privatizao de diversas funes pblicas.Isso se evidencia na privatizao de setores de segurana, na criao e atuao deempresas militares e de segurana, principalmente em relao aos conflitos armadose aos failed states.58 Para o direito penal, a forma de organizao dos grupos econ-micos principalmente multinacionais leva a problemas especficos deesclarecimento e de aplicao, que ainda podem ser aumentados por estratgiasempresariais criminosas.59 Os problemas de controle do Estado que a isso corres-pondem so motivos importantes para a punibilidade da empresa, para o aumento dedeveres de participao de particulares na investigao criminal, assim como para acrescente demanda por conceitos de auto-regulao.60

    Aumentos de riscos resultam tambm das condies organizacionais econmi-cas modificadas, encontradas nas estruturas organizacionais de grupos criminosos:a melhoria do desempenho, o crescimento do poder e a periculosidade incrementa-da dos grupos criminosos organizados em virtude da diviso do trabalho,especializao e dinmica do trabalho em grupo, no so fenmenos novos em cri-mes de bando e na criminalidade organizada.61 As diversas formas de ao conjuntade criminosos em grupos estruturados hierarquicamente, redes livres ou clulasfrouxamente organizadas, podem se utilizar, de forma muito mais eficaz, das tcni-cas de comunicao mundiais, da globalizao de mercados e da abertura defronteiras.62 Mesmo a mobilizao de um grande nmero de pessoas torna-se con-sideravelmente mais fcil com os meios de comunicao modernos principalmente em redes informalmente ligadas entre si e, por isso, so estruturasde solidariedade de difcil apreenso,63 como mostra o emprego da internet parapropaganda terrorista ou divulgao de contedos racistas ou enaltecedores de vio-lncia.64 A conseqente melhoria do desempenho na formao de grupos e na

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  • especializao tem efeitos nos campos dos crimes econmicos, da criminalidadeorganizada e em outras formas de criminalidade complexa.

    c) Causas polticas: novos riscos conseqentes a modificaes polticas manifes-tam-se claramente no terrorismo motivado poltica, etnica ou religiosamente.Especialmente autores motivados pela religio entregam sua prpria vida ativida-de, pela qual, freqentemente, no so mais influenciveis pelo direito penal. Elesso organizados flexivelmente, em hierarquias rasas, redes de contato frouxas eclulas independentes, de difcil infiltrao. Utilizam com sucesso a infra-estrutu-ra tcnica e as fontes dos seus oponentes para comunicao tcnica, recrutamento,formao, fund raising e a sua utilizao como arma. Atos terroristas so dificilmen-te reconhecidos com antecedncia; sua grande periculosidade se manifesta namaioria das vezes apenas pouco antes da realizao e, por isso, so raramente evi-tados. As aes no resultam apenas em grandes danos fsicos, mas objetivam, pormeio das mensagens e imagens divulgadas, efeitos psquicos e fins polticos muitomais extensos: a violncia terrorista espalha ansiedade e medo, que fortalecidospela mdia visam atacar sensivelmente o conjunto econmico e poltico das socie-dades modernas para torn-las suscetveis a chantagens polticas. Com isso, oterrorismo busca, em um confronto assimtrico, quase blico, primariamenteobjetivos polticos (como a retirada de Estados ocidentais de determinados terri-trios ou a desestabilizao de governos moderados). Alm disso, ataquesterroristas pretendem provocar reaes estatais e sociais que destruam os valoresde liberdade das democracias ocidentais e conduzam novos simpatizantes e comba-tentes ao terrorismo.65

    O terrorismo moderno fortalece, assim, um desenvolvimento que j se tornouclaro em determinados pases por meio da criminalidade organizada: na sociedadede risco moderna, a criminalidade pode levar a riscos polticos e, desse modo, auma ameaa contra o Estado. Para a criminalidade organizada, isso se mostra noapenas nos pases em que autores organizados ou empresas corrompem os agentesestatais. Tambm surgem riscos polticos, quando por exemplo, na AmricaLatina traficantes de drogas concorrentes ou outros grupos de criminosos, rela-cionados a war lords locais e paramilitares, colocam em xeque o monoplio estatalda fora, quando freqentemente h uma ligao entre terrorismo e criminalidadeorganizada.66 Um desenvolvimento similar existe em pases principalmente,africanos na explorao violenta de recursos naturais do solo por meio deempresas criminosas e lderes de conflitos armados locais.67 Os riscos polticoscriados dessa forma adquirem importncia quando um pas torna-se, por causadeles, um risco de segurana global, o que pode se dar em decorrncia de falhas nasua funo local de proteo, seja de fato (como failed state) ou normativamente(como Estado de no-direito) e, assim, transforme-se, mundialmente, em crime

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  • havens (ou safe harbours) para grupos organizados de criminosos (por exemplo, naantiga Iugoslvia) ou para terroristas (como no Imen ou na Somlia).68

    Esses novos riscos polticos do terrorismo e da criminalidade organizada mani-festam-se, em parte, tambm em confrontos violentos maiores e em novas guerras.No se trata mais, aqui, das conhecidas guerras entre Estados territoriais, mas, sim,de confrontos assimtricos entre Estados territoriais e redes organizadas freqen-temente, internacionais.69 Os novos confrontos blicos com estruturas de redesinternacionais relativizam, por isso, as distines clssicas de segurana interna eexterna para os Estados territoriais, assim como de crime e guerra. As novas guer-ras, portanto, no raramente, so conduzidas como na Bsnia, Afeganisto ePaquisto pela polcia, militares, servios secretos, comandos especiais e forasinternacionais de interveno. Depois dos ataques de 11.09.2001, a Otan e asNaes Unidas constataram, nessa medida, tambm a situao de defesa. Em vista dogrande espectro dos diferentes ataques terroristas, no entanto, colocam-se difceisquestes sobre os limites entre o direito penal e o direito de guerra, sobre a diferen-ciao entre Estado de emergncia interno e defesa externa e, tambm, sobre aabrangncia do direito de legtima defesa do art. 51 do estatuto da ONU.70

    A confuso entre segurana interna e externa, assim como entre crime e guer-ra, juntamente da crescente necessidade de defesa contra o perigo e de preveno,coloca, assim, os sistemas jurdicos atuais diante de novos desafios categoriais, emque os clssicos campos jurdicos do direito penal, do direito de polcia e emalguns pases tambm do direito de guerra criam um novo direito de seguran-a.71 O desenvolvimento de riscos polticos intimamente relacionados questo da globalizao fortalece tambm a necessidade da incluso de questesde direito internacional pblico para a legitimao de intervenes da comunida-de internacional com fins de efetivao da segurana internacional, segundo oEstatuto da ONU.72

    Acrescem-se, ainda, outras modificaes de carter poltico, relacionadas globalizao, mas ultrapassam os problemas j analisados, de imposio de umapersecuo penal transnacional. A crescente atuao de desenvolvimentos globaisem fatos tpicos locais e a cada vez maior mobilidade causam contradies nasmedidas valorativas sociais e nas normas estatais. Isso se apresenta no apenas emdeterminados campos, de crimes na internet (por exemplo, no direito penal de pro-teo de dados ou em contedos enaltecedores da violncia), em que as legislaesespeciais nacionais permanecem amplamente sem efeito no cyberspace global.73 Omesmo fenmeno apresenta-se tambm, por exemplo, na pesquisa mdica interna-cional, em que limites claros entre comportamentos permitidos e proibidos nopodem mais ser determinados ou impostos em razo dos diversos regulamentosinternacionais.74 Essa evoluo alberga um grande potencial de conflitos, o que setorna visvel no campo global da internet e na televiso mundial por satlite (em

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  • virtude da convergncia de meios de comunicao), quando so divulgados porno-grafia, contedos de risco para adolescentes, declaraes ofensivas honra,propagandas de bebidas alcolicas ou caricaturas contra religio. Surgem tensesquando, sob o teto da Unio Europia, diversos ordenamentos jurdicos devemcooperar estreitamente entre si, sendo, por exemplo, o suborno quase totalmenteafastado em alguns ordenamentos e, em outros, aceito como parte do sistemasocial. Conflitos parecidos de diferentes expectativas normativas surgem tambmcomo conseqncia das migraes mundiais, da resultante sociedade heterognea,e os conflitos decorrentes dos respectivos modos de vida e valores diversos, reuni-dos em um pequeno local. Exemplos para esse clash of cultures so assassinatos pelahonra, vinganas de sangue ou novas dimenses da violncia na Europa.75 As dife-rentes valoraes de tipos de comportamento e os conflitos da resultantes pormeio da internet, migrao e outros fatores transferem, assim, os antigos proble-mas internacionais sobre o dissenso de valores globais para o nvel local, o quealberga riscos adicionais de escalao da violncia.

    d) Conseqncias: os novos riscos so freqentemente acompanhados de maiorcomplexidade dos tipos de delito, que se baseiam no apenas em causas tcnicas oueconmicas, mas tambm em estruturas de autoria especiais, maior nmero devtimas ou grande abrangncia geogrfica da execuo do crime. Com esses novosriscos globais e com as complexas formas de criminalidade e seus problemas paraa persecuo, tambm ocorre, segundo vrios autores, um enfraquecimento doEstado nacional.76 Entretanto, tal anlise permanece em aberto, de modo que acooperao internacional de Estados na sociedade global de risco possa confron-tar efetivamente esse desenvolvimento com medidas tcnicas de vigilncia, com orecm-criado direito de segurana e seus componentes de direito de polcia,penal e militar, com novas redes internacionais, assim como com os da criadosaparatos de poder, e como isso levar a uma transferncia individual de poder dosetor pblico para o privado.77

    No contexto desse desenvolvimento, so relegados ao Estado e cooperaoestatal sempre novas tarefas e poderes na obteno de segurana,78 o que tem efei-tos sobre o direito penal e os clssicos bens tutelados pelo direito penal, de modoespecialmente grave, uma vez que na objetivada realizao de segurana passampara o primeiro plano a garantia de preveno e um novo direito de segurana, ana-lisados a seguir.

    2.2.2 Limites funcionais do direito penalA anlise anterior dos riscos modificados torna claros os motivos pelos quais o direi-to penal, na sua reao com os citados desafios, no raro encontra seus limitesfuncionais e procura novas respostas. Entretanto, a reao estatal e da sociedade aos

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  • novos desafios mais complexa do que os motivos e alternativas de direito penal doinimigo e direito penal de cidado, discutidos atualmente no apenas no tocante assuas causas, mas tambm em relao s possveis solues.79 Para os novos desafiosda sociedade global de risco, encontram-se, assim, na poltica criminal duas respos-tas diferentes, com diversas facetas: A proposta de soluo prevalecente principalmente em Estados onde o terro-

    rismo torna-se visvel objetiva uma ampliao e desfronteirizao do direitopenal, assim como sua burla por meio de outras disciplinas de um novo direitode segurana (infra a).

    A segunda proposta de soluo compe-se do desenvolvimento de medidas alter-nativas (fora do direito penal e, especialmente, tambm fora do direito) depreveno criminal (infra b).

    a) Desfronteirizao do direito penal e novo direito de segurana: a proposta desoluo de um alargamento do direito penal para alm de seus limites atuais genericamente caracterizada por meio de uma aparelhagem mais forte do direitopenal em relao preveno e segurana, alm da conseqente atuao j na faseanterior execuo do crime e da suspeita do fato.80 Nesse contexto, trata-se nascategorias do sistema alemo de classificao de diversos ordenamentos jurdicosde (aa) antecipao da punibilidade no direito material; (bb) ampliao de concei-tos preventivos de observao, a reduo de garantias e a criao de competnciasespeciais no direito processual penal; (cc) fortalecimento dos deveres de colabora-o de particulares na fase anterior e fora do processo penal; (dd) a criao de taskforces interinstitucionais e internacionais em uma nova arquitetura de segurana;alm da (ee) dissoluo de categorias jurdicas clssicas e da criao de um novodireito de segurana. A combinao desses desenvolvimentos fica evidente na codi-ficao americana da war on terror (infra ff.).

    aa) No direito material, as antecipaes da criminalidade se mostram, porexemplo, na reao aos riscos de estruturas de autoria de crimes complexos e, espe-cialmente, na apreenso de execuo de crimes com diviso de tarefas, por gruposorganizados de criminosos, redes e clulas: legislador e jurisprudncia reagem mun-dialmente no tocante criminalidade organizada e ao terrorismo com a criaode delitos de organizao (especialmente, o apoio a criminosos e organizaes terro-ristas), tipos penais de conspirao (conspiracy), figuras especiais de imputao (comojoint criminal enterprise, vicarious liability e strict liability), assim como outras antecipa-es da punibilidade.81 Tambm no campo da criminalidade econmica (e tambmdos crimes contra o meio ambiente) e no da criminalidade organizada, torna-se claroum correspondente desenvolvimento de direito material para os novos bens jurdi-cos supra-individuais, delitos de perigo abstrato e delitos de posse.82 A ligao dessestipos penais de antecipao com os paradigmas de preveno acima analisados fica

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  • evidente nas discusses no Ministrio da Justia sobre a criminalizao antecipada do 129a StGB:83 a atualmente discutida criminalizao da participao em uma for-mao terrorista permitiria, a fim de evitar eventuais ataques terroristas contrapessoas e potenciais suicidas, agir j antecipadamente (por exemplo, na sua voltapara a Alemanha) com os meios do direito penal, especialmente de modo preventi-vo.84 A antecipao da proteo de direito penal freqentemente completada pormeio de um aumento das penas cominadas.85

    bb) Os riscos aumentados, assim como as dificuldades de esclarecimento e com-provao da nova criminalidade complexa, tm efeitos notveis no direitoprocessual. Tambm aqui se encontram fortalecidas, primeiramente, medidas deefeito preventivo na fase antecedente suspeita do crime,86 em especial medidas devigilncia e de interveno tcnico-informativas secretas, que investigam conversas,telefonemas, dados de computadores, locais de estada e contas de cidados, unindovrios dados sobre eles.87 De tais medidas interventivas podem-se desenvolver futu-ramente novos sistemas globais de vigilncia de suspeitos ou pessoas perigosas,88

    fundamentado em perfis de risco. O conceito de preveno para a persecuopenal,89 relacionado a tais medidas, descreve nitidamente a conseqente misturaentre preveno e represso. Assim, fortalece-se a tendncia de uma utilizao pre-ventiva imediata do direito penal, que j era clara anteriormente, nos motivos parapriso preventiva, assim como na expanso das medidas de segurana e, especialmen-te, com a medida de segurana aps cumprimento de pena.90

    Alm disso, ocorre uma reduo das garantias e formas de proteo no direitoprocessual penal. Em diversos ordenamentos jurdicos estrangeiros, isso significanovas possibilidades para priso policial mais longa de pessoas suspeitas (que, namaioria dos casos, tambm serve a objetivos preventivos)91 ou de facilitaes de pro-vas (que freqentemente levam a uma ampliao do direito penal material).92 NaAlemanha, a relevante discusso sobre os limites jurdicos do combate preventivo doterrorismo pela aplicao de tortura e pelo abatimento de avies seqestrados93

    esclarece quanto os novos riscos colocam limites tradicionais do direito penal emxeque. Dificuldades relativas ao esclarecimento e violaes mssicas de normas,alis, levam ainda renncia a uma imposio coerente das normas em favor deestratgias consensuais, como em acordos processuais ou medidas de resoluo alter-nativas.94 Os problemas de uma tal desformalizao se evidenciam nos EUA quando,em casos isolados, um acordo para o encerramento de um processo feito com aindicao das autoridades persecutrias referente a um possvel envio do processopenal para a tutela/competncia militar para enemy combatants.95

    Alm disso, ordenamentos jurdicos isolados criam competncias especiais (viade regra regionais) para a perseguio e julgamento de determinados mbitos deliti-vos (por exemplo, para a criminalidade econmica, a criminalidade organizada, oterrorismo ou a criminalidade complexa),96 assim como, em parte, medidas especiais

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  • de investigaes tambm podem ser utilizadas para delitos comuns,97 em virtude declusulas amplas de aplicao ou dos catlogos de tipos penais. Nesse contexto, tam-bm so consideradas medidas especiais exclusivas para determinados grupos deagentes, cujo comportamento generalizado como uma ruptura permanente com asociedade, o que pode ser denominado de forma emblemtica com a expresso direi-to penal inimigo.98 Caso essa expresso no somente descreva criticamente os atuaisdesenvolvimentos, mas tambm seja formulada como recomendao de atuao, issotorna os perigos de uma desfronteirizao do direito penal especialmente claros.

    cc) Modificaes fundamentais adicionais no sistema de coordenadas do direitopenal e extrapenal como reao a dificuldades estatais de esclarecimento se mos-tram nos deveres de colaborao de particulares para o controle, tambm na faseantecedente e externamente persecuo penal. Trata-se tanto da utilizao deconhecimentos tcnicos especficos (como em esclarecer o mbito complexo da tec-nologia de computadores99) quanto da criao, divulgao e avaliao de bases dedados privadas para fins de preveno e precauo para a persecuo penal, o que explcito no s no combate lavagem de dinheiro100 e no controle das negociaesde ttulos e valores mobilirios101, mas tambm na rea da vigilncia das telecomu-nicaes, com obrigaes de criao de possibilidades tcnicas de vigilncia e deconservao de dados.102 A correspondente privatizao da persecuo penal (ou desua precauo) e da garantia de segurana103 , em parte, tambm relacionada coma penetrao em relacionamentos de confiana privados (por exemplo, na inclusode advogados no combate lavagem de dinheiro).104 O desejo de utilizao de ban-cos de dados privados para a garantia de segurana aumentar ainda mais no futuro,especialmente para o targeting de suspeitos de terrorismo. Atualmente, existem fer-ramentas de software com as quais possvel, em pouco tempo, compor detalhadosperfis de personalidades a partir de fontes e bancos de dados pblicos. As grandesquantidades de dados pessoais nas mos de empreendimentos particulares, assimcomo a correspondente cobia dos responsveis privados e pblicos pela segurana,no futuro levaro a uma nova dimenso da proteo de dados e participao de par-ticulares na garantia da segurana em muitos pases.

    dd) Para a otimizao das investigaes, as at agora separadas competnciasdas autoridades de segurana, assim como os at agora distribudos conhecimentose as limitadas possibilidades de consultas a bancos de dados separados, so cada vezmais unificados por meio de grupos de trabalhos com representantes de diferentesreas de investigao de direito penal e extrapenal. Na Alemanha, as correspon-dentes task forces interdisciplinares no contexto de uma nova arquitetura dasegurana e de um princpio geral de combate trabalham conjuntamente (repre-sentantes da procuradoria-geral da repblica, polcia, alfndega, autoridades paraestrangeiros, servio secreto e entidades militares), utilizando, ainda, conhecimen-tos de entes privados responsveis pelo combate lavagem de dinheiro. Nesse

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  • trabalho conjunto e nos arquivos antiterror, que sustentam tal trabalho, desapa-rece ainda mais a diferena central para o direito de segurana alemo entrepreveno e represso.105 Tambm internacionalmente as redes transnacionais decriminosos so enfrentadas cada vez mais com as task forces multifuncionais e asredes estatais internacionais.106

    Essa nova arquitetura de segurana, com suas novas estruturas e instituiesflexveis, , freqentemente, caracterizada por pouca transparncia e falta de con-trole. Dficits de controle ocorrem geralmente quando o trabalho conjunto e ascompetncias de interveno so predeterminados em nveis supranacionais eregulados por meio de cooperao intergovernamental dos Poderes Executivos,uma vez que aqui, comparativamente ao nvel nacional, h maior dficit de demo-cracia e transparncia. A importncia ftica de manuais de polcia e de coletneasde best practices reforada quando so tomados como base do acquis perante os pa-ses em processo de adeso Unio Europia. A fragmentao dos grmiosinternacionais que tratam de questes de segurana e a criao conseqente denovas formas de coordenao como o procedimento de peer-review da OCDE, doConselho da Europa, da Comunidade Europia ou da ONU107 fortalecem a faltade clareza e transparncia do trabalho conjunto entre governos. Isso vale especial-mente para a cooperao dos executivos em redes flexveis e maleveis. Oscorrespondentes problemas de controle e de legitimao nos chamados sistemascom diversos nveis108 tornam-se claros na perseguio internacional ao terroris-mo, quando amplas competncias do Executivo so reclamadas e exercidas freqentemente tambm em mbito extraterritorial , especialmente para a deten-o de suspeitos, para o congelamento de seu patrimnio, para a escuta detelecomunicaes e para o acesso aos dados da Society of Worldwide InterbankFinancial Telecommunication (Swift).109 Aqui, abundam problemas dos limites ter-ritoriais e funcionais do direito penal.

    ee) No curso desse desenvolvimento, as categorias jurdicas clssicas diluem-sejuntamente das funes de proteo por elas garantidas: a necessidade de prevenoe investigao de pessoas suspeitas ou perigosas relativiza, em grande parte, adiferenciao entre reao de direito penal e a defesa policial contra perigo, concei-to central para o direito penal continental europeu, especialmente quando aobteno de informaes no mbito da criminalidade organizada e do terrorismo noparte de uma suspeita de crime, mas, sim, de um risco de segurana em parte abs-trato. Aqui, a orientao preventiva tem como efeito que novas medidas deinterveno contra o terrorismo sejam reguladas no apenas no direito processualpenal, mas, tambm, pelo direito policial e pelo direito do servio secreto.110

    Assim, a segurana tambm buscada pelo direito administrativo geral, por exem-plo, com o direito de comrcio exterior, de telecomunicaes e de imigrao. Umavez que estrangeiros sejam freqentemente considerados perigosos e, ademais, seja

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  • possvel instituir medidas especiais no direito de imigrao e de permanncia, nota-se em diversos ordenamentos jurdicos o desenvolvimento de um sistema jurdicodual, diferenciando cidados nacionais e estrangeiros, possibilitando aos ltimos,alm da tradicional extradio, em parte, privao de liberdade sem acusao, renn-cia presuno de inocncia, assim como um ethnic profiling.111 Assim, os direitosdo estranho so circunscritos no apenas pelo direito de guerra, mas j no direitonacional interno.

    A j apresentada dissoluo das distines entre segurana interna e externa eentre crime e guerra nas novas guerras assimtricas dos Estados territoriais contraas redes internacionais leva Estados isolados na luta contra o terrorismo aoemprego de medidas de direito de guerra. O direito de guerra amplia sensivelmen-te as medidas de interveno do Estado.112 A discusso sobre a aplicao de direitointernacional de guerra contra terroristas113 at agora travada principalmente nosEUA e em Israel tambm alcanou, no incio de 2007, o direito alemo: uma pro-posta de lei do Ministro de Assuntos Interiores alemo pretende possibilitar oabatimento de aeronaves seqestradas por terroristas tido como inconstitucionalpela corte constitucional em sua deciso sobre a lei de segurana da aviao , combase no direito internacional de guerra, por meio da nova redao do art. 87 a par-grafo 2 GG, que permite o emprego das foras armadas para um caso comparvel situao de defesa.114

    Essa dissoluo das distines polticas e jurdicas entre segurana interna eexterna, crime e guerra, preveno e represso, polcia e servio secreto e polcia eexrcito115 produz, ao todo, um novo direito de segurana complexo e de vriascamadas, que objetiva principalmente evitar perigos e que, no direito penal clssico,tem um certo papel limitado. A conseqente transferncia de tarefas para outrosramos do direito, fora do direito penal, gera o perigo (no direito de polcia, mas tam-bm no direito do servio secreto, de estrangeiros e de guerra) de que esses novosramos do direito no possam garantir um nvel de proteo comparvel ao do direi-to penal, o que no vale apenas para as exigncias de direito material da preciso dostipos penais e para a garantia do princpio da culpa no direito penal, que abrangemmais do que a mera garantia do princpio geral constitucional de proporcionalida-de.116 Perigo semelhante existe tambm no tocante ao limiar de interveno e aoponto de referncia da suspeita do crime (que, no direito de polcia, substitudopor um perigo), aos deveres de participao dos atingidos (por exemplo, no direitotributrio), s questes de nus da prova, ao juiz natural e demais medidas de prote-o, ao deslocamento de competncias do Judicirio para o Executivo ou participao do Parlamento no desenvolvimento das respectivas regulamenta-es.117 Paralelamente, existe o risco j mencionado de, alm do deslocamento parafora do direito penal, com o tempo, tambm se modificarem as bases de proteointrnsecas ao direito penal.

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  • ff) Essa alterao das coordenadas no controle da criminalidade e na contenode perigos se mostra com particular nitidez vista do exemplo das medidas norte-americanas contra o terrorismo. O novo conceito desenvolvido pelo governonorte-americano de war on terror serve no apenas para fins retricos de mobili-zao de todas as foras (como utilizado em uma guerra contra a pobreza), esim para a legitimao de intervenes jurdicas que no seriam possveis em umasituao fora da guerra em respeito aos princpios clssicos do law enforcement.118

    As pretensas competncias do direito de guerra e outras competncias impostasnesse contexto so interpretadas pelo Executivo de modo extremamente amplo ejuridicamente discutvel. Por isso, a war on terror americana comprova de formaimpressionante que as destacadas modificaes isoladas do sistema, no caso de umacombinao, podem levar a graves limitaes dos direitos de liberdade clssicos,mesmo em Estados com longa tradio na proteo dos valores da liberdade. Portal motivo, as peas fundamentais desse desenvolvimento e sua possvel interaodevem ser apresentadas, brevemente, em um contexto geral, com base no exem-plo norte-americano.

    Com o conceito norte-americano de war on terror, so institudas, primeira-mente, competncias de direito de guerra que ultrapassam largamente as medidaspermitidas em direito penal ou direito de polcia: o direito de guerra permite diferentemente do direito processual penal ou do direito de polcia a morte decombatentes ativos em casos especficos e, assim, eventualmente, tambm a deterroristas.119 Alm disso, combatentes suspeitos de terrorismo podem semqualquer prova de um fato penal concreto ser mantidos presos por todo otempo de durao dos conflitos. O ponto de partida terico para a justificativa deuma guerra a tese do governo dos EUA de que o Taleban e a Al Qaeda declara-ram guerra aos EUA e esto em situao blica permanente com estes. Noentanto, tal abordagem ampliada para alm do conflito territorialmente limita-do com o Taleban no Afeganisto para toda forma de terrorismo internacional,120

    de modo que, na opinio do governo norte-americano, terroristas potenciaispodem ser atacados no mundo todo e ser mantidos presos ao longo de toda adurao da war on terror.121

    O novo instrumental de interveno assim completado com um segundo con-junto de atribuies especiais, que tambm se baseiam no conceito de guerra. Naopinio do governo, por causa da guerra duradoura contra o terrorismo internacio-nal, o presidente pode se apoiar nos seus war powers constitucionais e estabelecer,como commander in chief, amplos regulamentos executivos que, em tempos de paz,seriam exclusividade do Legislativo.122 Com essas presidential orders, pretensos terro-ristas foram declarados enemy combatants, permitiu-se o interrogatrio de cidados nosEUA por meio da National Security Agency sem autorizao judicial e criaram-se tri-bunais militares especiais para os processos penais contra supostos terroristas.123

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  • O novo instrumentrio de interveno, caracterizado pelo direito de guerra, tam-bm deve justificar, como direito especial externo ao law enforcement clssico, adesconstruo de garantias processuais e a criao de procedimentos segundo a neces-sidade, o que vale principalmente para modificaes nas normas relativas a provasperante as Federal Rules of Evidence, as Federal Rules of Criminal Procedure e o Uniform Codeof Military Justice (UCMJ).124 Paralelamente introduo de procedimentos sigilosos(in camera-Verfahren) e utilizao de hearsay evidence, o uso dos depoimentos obtidosdeve depender, em parte, apenas de questes de confiabilidade (reliability) das infor-maes, mesmo no caso de emprego de mtodos de tortura.125 Originalmente, esseprincpio deveria at possibilitar que os suspeitos de terrorismo identificados comoenemy combatants fossem privados de qualquer possibilidade de acesso a um tribunalordinrio.Assim, a reviso das acusaes individuais contra os detentos ocorria exclu-sivamente perante tribunais militares, os chamados Combatant Status Review Tribunals(CSRT). Nesse nterim, a Suprema Corte permitiu o acesso dos presos emGuantnamo aos tribunais civis norte-americanos.126 Entretanto, foi dado novoimpulso revogao desse processo com o Detainee Treatment Act e o MilitaryCommissions Act de 2006, garantindo-se a competncia dos tribunais militares.127

    A atribuio categrica da luta contra o terror aos militares possibilita, enfim,tambm a deteno de pessoas suspeitas em outras prises que no as civis. A deten-o em instituies militares permite ao governo norte-americano manter presosestrangeiros longe do territrio estadunidense e, assim, segundo seu entendimento,evitar a incidncia do campo de proteo material dos direitos dos cidados contidosna constituio americana.128 Mediante uma forma de interpretao especfica deobrigaes de direito internacional, foi negada pelos EUA at mesmo a aplicao denormas humanitrias internacionais.129 No entanto, desde a deciso da SupremaCorte americana no caso Hamdan, deve ser observado, no mnimo, o art. 3, comums quatro Convenes de Genebra.130 Nesse momento, entretanto, mostra-se tam-bm que uma grande parte desse modo de agir condicionada ou possibilitada pormeio de especificidades da doutrina constitucional dos EUA.131

    Incluindo-se o mais novo relatrio do relator especial do Conselho da Europa,Dick Marty, assim como um conjunto de relatrios da mdia, ento, deveria existirainda um outro nvel, em que medidas tomadas na guerra contra o terror seriamclassificadas como contrrias a compromissos nacionais e deveres internacionais.Entre tais medidas, destacam-se as extraordinary renditions da CIA, que envolvem acaptura de suspeitos de terrorismo e sua conseqente deteno e interrogatrio forados EUA e sem o devido processo legal.132 Alm disso, incluem-se aqui os mtodosagressivos e desumanos de interrogatrio por parte dos membros da CIA e dasForas Armadas.133

    As medidas tomadas nos EUA depois dos ataques de 11.09.2001 vo muitoalm das medidas continentais europias e tornam-se ntidas as atuais mudanas dos

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  • limites funcionais do direito penal. A anlise de at que ponto as novas medidas deinterveno e o novo direito de segurana ignoram os limites clssicos da proteodos direitos civis; e at onde so de fato eficazes e quais os seus efeitos indesejadostambm so freqentemente negligenciados pela poltica europia e em outrasregies em vista das novas ameaas. O mesmo se aplica busca por medidas alter-nativas de controle social que intervenham de modo menos intenso e s quais,futuramente, se dever recorrer com ainda mais freqncia, em vista dos novos ris-cos. Elas sero analisadas a seguir.

    b) Conceitos alternativos: as respostas aos novos riscos dos crimes complexos podemser dadas no apenas com uma desfronteirizao do direto penal, mas tambm coma citada segunda estratgia de soluo de um desenvolvimento de medidas extrape-nais alternativas para a preveno criminal e o controle social informal e,especialmente, tambm extrajurdicas.Tais medidas abrangem um amplo espectro depossibilidades.134 Em um primeiro grupo de medidas de proteo alternativas deefeito pr-ativo, tem-se a proteo da prpria vtima em potencial por meio da tc-nica (como no campo do Cybercrime),135 o controle procedimental preventivo (porexemplo, no direito mdico),136 as regras processuais de direito administrativo(como em medidas de combate corrupo),137 a eliminao de problemas sociais(por exemplo, causas de terrorismo)138 e de outras causas crimingenas (em espe-cial, no campo dos crimes em subvenes)139 e na chamada preveno de estrutura(a exemplo do crime organizado).140

    Um segundo grupo de medidas engloba sistemas de controle alternativos.Aqui se encontram no apenas por contravenes e de direito administrativo e pre-tenses de indenizao de direito civil (tambm sob a forma de indenizaesmltiplas), mas tambm por estratgias de soluo diferenciadas (mediao, acordoentre criminoso e vtima ou comisses de verdade no campo de crimes contra aspessoas),141 assim como a auto-regulao e co-regulao de Estado e particulares(destaque para o campo da internet e da imprensa).142 Nesse ltimo campo, regula-mentos norte-americanos e italianos para a observao de programas de Complianceno clculo de penas para sanes a empresas apresentam modelos de soluo espe-ciais, que estimulam medidas de preveno privadas ou medidas de auto-regulaocom sanes de direito penal ou privilgios.143 Codes of ethics e codes of conducts doscientistas devem evitar paralelamente s j existentes regulamentaes legais ,principalmente as j citadas possibilidades de abuso de produtos de dual-use de riscono campo das life sciences144 ainda mais amplo , combater a tentao de compor-tamentos no-ticos na pesquisa.

    Com a aplicao desses princpios de controle alternativos ou complementares possvel ultrapassar, com freqncia, no apenas os limites funcionais, bem comoos limites territoriais do direito penal clssico, uma vez que medidas de preveno

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  • privadas de empresas e associaes, por exemplo, no esbarram nos mesmos limi-tes nacionais que o direito penal. Isso se torna evidente quando empresas de atuaointernacional se obrigam, por meio da autovinculao, ao bloqueio de contedos ile-gais na internet.145 Observando-se como caracterstica da globalizao a supracitadaperda de poder do Estado e o incio do domnio supranacional dos funcionrios daeconomia mundial,146 uma transio reforada para a incluso de medidas (tam-bm) no-estatais no controle social uma possibilidade de soluo natural, quepode adquirir cada vez mais importncia no futuro. No campo internacional, taismedidas de atores privados e formas mistas de private public partnerships tornam osmencionados sistemas com diversos nveis ainda mais complexos e complicados. Afragmentao do direito desenvolve-se, assim, para uma fragmentao mais amplados sistemas de controle sociais.147

    Os conceitos de controle alternativos e, principalmente, particulares oferecemno apenas novas chances, mas tambm, em parte, abrigam riscos jurdicos e polti-cos.Tais riscos esto principalmente na desestatizao do controle da criminalidade,assim como na correlacionada perda de garantias processuais penais, do controlejurdico do Estado e da legitimao democrtica das intervenes em direitos funda-mentais, o que se mostra, por exemplo, quando as supracitadas vinculaes prpriasdos provedores de internet levam proibio de contedos ilegais por medo de san-es, acarretando uma censura privada ampla e descontrolada.148 Isso tambm ntido quando federaes esportivas internacionais impem graves sanes pordoping que, segundo critrios jurdico-penais, so instrumentos de strict liability eviolam a presuno de inocncia.149 As questes relativas aos limites da privatizaodo direito penal foram, entretanto, pouco esclarecidas at agora. Nesse esclareci-mento, deve ser analisada criticamente a crescente no-diferenciao entre sociedadee Estado, principalmente no mbito da filosofia do direito.150 A conseqente equi-parao entre sociedade e Estado enfraquece o potencial estatal de mediar eneutralizar conflitos sociais, levando a que a parte mais fraca (ou seja, o acusado) noseja mais protegida pelo Estado, como at agora o .

    2.2.3 Pesquisas pertinentes:para uma teoria dos limites funcionais do direito penalEm virtude do desenvolvimento aqui analisado, um segundo ponto central do novoprograma de pesquisa do Instituto Max-Planck de direito penal estrangeiro e interna-cional de Friburgo constitui a investigao dos fundamentos prticos e tericos paraos limites funcionais do direito penal. Na busca pelas peas fundamentais para cons-truir uma teoria dos limites funcionais do direito penal, trata-se principalmente detrs questionamentos centrais: (a) at que ponto ocorrem alteraes nos limites fun-cionais do direito penal em ordenamentos jurdicos diferentes e at onde taisalteraes so justificadas por novas ameaas ou quais outras causas as fundamentam?

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  • (b) Em que medida as modificaes dos limites funcionais do direito penal melhoramde fato a segurana na sociedade, o quanto ameaam a liberdade dos cidados e quaisprincpios e diferenciaes podem ser desenvolvidos para uma poltica criminal futu-ra? (c) Quais medidas alternativas ou complementares (extrapenais) estodisponveis para a diminuio de riscos, quais efeitos tm tais medidas sobre a segu-rana da sociedade e sobre a liberdade dos cidados e quais princpios ediferenciaes so, assim, relevantes para uma poltica criminal futura?

    a) Modificaes e suas causas: a busca pelas causas das modificaes de direitopenal acima analisadas no toma em considerao apenas a dimenso ftica esque-matizada dos novos riscos. Devem ser pesquisados tambm outros possveismotivos para a atual desfronteirizao do direito penal; por exemplo, uma crescen-te necessidade de segurana na sociedade de risco,151 uma modificao do medodo crime,152 a perda de valores na sociedade global, o relacionado clamor portolerncia zero, uma reao irracional a riscos de rara ocorrncia, mas com gran-de nmero de casos de morte,153 uma possvel aplicao contraproducente dodireito penal, por meio de governos nacionais e instituies supranacionais para(re)conquistar a confiana e eleitores, assim como uma dramatizao dos perigospor meio da imprensa, associaes de proteo vtima ou entes isolados respon-sveis pela segurana.154 Nesse contexto, tambm relevante a questo sobre atque ponto novos riscos especficos levam apenas a autorizaes especiais de inter-veno em relao a estes riscos ou se so tomados como ponto de partida para umendurecimento penal geral.

    b) Efetividade e garantias jurdicas: as questes sobre os efeitos das novas mudanasdo direito penal atingem, alm da praticabilidade e da intensidade de interveno dasnovas regras, especialmente os limites que os objetivos clssicos do direito penal,assim como a dignidade humana, o princpio da culpa, o princpio do estado de direi-to, o princpio da separao de poderes e o princpio da democracia (este, entretanto,questionado supranacionalmente) podem ser contrapostos a uma desfronteirizao dodireito penal,155 o que vale, por exemplo, para utilizao de novas medidas de inves-tigao baseadas na tecnologia da informao, para a modificao de consideraes dedireito processual penal no tocante aos novos riscos, para alterao do direito penalpara a preveno, para a relao entre direito penal e direito de polcia e para a inclu-so de particulares no controle da criminalidade.

    Em virtude da transferncia de matrias reguladas pelo direito penal para odireito (administrativo) da polcia, da alfndega, do servio secreto e das repartiespblicas para estrangeiros, assim como (em alguns pases) dos militares, interessamprincipalmente tambm os fundamentos dogmticos do novo e abrangente direito desegurana e a anlise das garantias vigentes do Estado de Direito.156

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  • No caso e na medida em que a anlise emprica da atual situao de ameaa jus-tifique um fortalecimento dos poderes preventivos estatais, coloca-se no casoconcreto a pergunta, se medidas preventivas necessrias no deveriam, na verdade,ser reguladas em uma nova via do direito de segurana, no direito de polcia, nodireito dos servios de notcias, no direito administrativo em geral ou no direitopenal.Tal problemtica torna-se mais clara com o questionamento, sobre se e comoagir contra uma pessoa que vai a um local de formao de terroristas, retorna deum local de formao de terroristas ou que por outros motivos suspeita de ser umterrorista suicida ou de ser perigosa, sem que ela tenha, entretanto, cometidoum crime. O direito americano acima descrito demonstra as possibilidades e osperigos do novo direito de guerra, que pretende manter presos os inimigos portempo indeterminado.157 O direito francs, por sua vez, prolongou a possvel dura-o da deteno policial geral do direito penal em vrios momentos com destaquepara a criminalidade organizada e o terrorismo para quatro ou seis dias e, parale-lamente com o objetivo de obter confisses , enfraqueceu as garantias do Estadode Direito para suspeitas qualificadas de crime e para os prazos para a apresentaodo preso ao juiz e a comunicao ao advogado.158 O direito ingls, com o seurecm-criado Control Orders, mostra, por seu lado, as opes e riscos de um sistemaunificado de direito penal e policial, que estabelece amplos poderes de salvaguardada polcia e dos tribunais, prevendo processos formalizados para a derrogao dedireitos humanos, segundo o art. 15 da Conveno Europia dos Direitos doHomem (EMRK).159 Por seu turno, o direito alemo prev poderes preventivospoliciais para uma deteno bastante limitada de pessoas perigosas (como os tor-cedores hooligans do futebol), aplicvel apenas em casos bem especficos.160 Noentanto, o Ministrio da Justia alemo est considerando, atualmente, uma soluojurdico-penal para essa problemtica: a ampliao do 129a StGB, o que poderiapossibilitar tambm uma ao preventiva contra determinados suspeitos de terro-rismo, por meio de novos tipos penais no momento anterior ao crime (como aconcluso de formao para o terrorismo em um correspondente local de treino),juntamente de poderes de interveno processuais penais j existentes (especial-mente 112 Abs. 3 StPO). O potencial de manipulao de uma antecipao dapunibilidade excessivamente ampla, motivada preventivamente pelo legislador, e omotivo de deteno por perigo de reincidncia para delitos especiais atualmente jvigente ( 112a StPO) tornam ntido, todavia, problemas e perigos de uma talmudana do sistema.161 Isso reforado quando pontos de aplicao de medidasso tipos penais antecipados e parcialmente indeterminados, como o 129a StGB,que atualmente possibilita considerveis intervenes processuais com objetivospreventivos.162 Uma vez que se sustenta que o caso de formao em um local detreinamento para terroristas constitui determinado interesse de preveno, coloca-se ainda, no plano ftico, a complicada questo: qual bem jurdico ferido pelo fato

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  • incriminado e se uma correspondente antecipao da proteo do direito penalpode ser justificada.163 O exemplo da estadia em um local de treinamento terroris-ta indica, assim, que o direito penal alemo vigente, no tocante s clssicasatividades de represso e de proteo aos bens jurdicos, assim como seu princpioda culpa, sob o ponto de vista sistemtico, no a princpio o local ideal para fixarobjetivos puramente preventivos.

    Com isso, entretanto, permanece aberta a questo, se uma ligao de medidaspreventivas de interferncia intensa ainda necessitada de melhor definio como direito penal, com sua vinculao a tipos penais ligados a fatos concretos, seuspoderes de investigao e controle por um ministrio pblico independente, pelojuiz natural e suas outras garantias para a proteo dos direitos de liberdade, no mais adequado do que um direito policial clssico, que remonta a um conceito deperigo pouco preciso, limitado apenas pelo princpio da proporcionalidade e do juiznatural. Para alm desse ponto, coloca-se a pergunta sobre uma exportao degarantias do direito penal para o direito policial ou outros ramos do direito desegurana. O instituto da medida de segurana aps o cumprimento da pena mos-tra, com seus exigentes pressupostos, que tambm medidas exclusivamentepreventivas contra pessoas perigosas podem ser reguladas com ligao s garantiaspenais, em uma via prpria.164 Embora na priso preventiva e em outras medidasde segurana haja renncia ao princpio da culpa, a cumulao da vinculao quali-ficada ao tipo penal, das garantias de direito processual e das decises judiciaisprognsticas, no tocante a um perigo futuro, devem garantir melhor base de prote-o do que as medidas preventivas de direito policial (entretanto, de menorintensidade de intruso) podem alcanar.

    O papel da preveno no contexto do direito penal, assim como o papel do direi-to penal e de suas garantias no contexto do direito geral de segurana, aindanecessitam ser esclarecidos em diversos pontos.165 O mesmo se aplica tambm distino entre o direito penal e o direito de guerra, que na Alemanha pressupe umataque atual e ilegal questionvel no caso de ataques a redes terroristas (interna-cionais) de um inimigo externo armado, assim como para a interpretao dodireito legtima defesa do art. 51 do estatuto da ONU.166 A questo sobre a neces-sidade e o tipo de medidas preventivas no tocante aos riscos acima analisados e ospontos de vista dogmticos e problemas de limitao mencionados comprovam,novamente, que o desenvolvimento jurdico de fato de formas de criminalidade com-plexas desafia o direito penal clssico nos seus fundamentos, e que os limites dodireito penal pertencem s questes de pesquisa fundamentais no futuro. A perma-nente discusso sobre modificaes cruciais do direito penal torna claro, para almdisso, o quo importante uma anlise dos novos riscos, que possa ser comprovadaempiricamente, das necessidades de proteo da resultantes e das diversas formas decontrole que possam ser utilizadas.

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  • c) Alternativas e suas avaliaes: uma teoria dos limites do direito penal abrange, assim,alm da limitao do mesmo em relao a outros conceitos do direito de segurana, aquesto sobre as formas categoriais alternativas para reao a comportamentos desvia-dos, sejam elas formais ou informais, o que gera outros questionamentos fundamentaisconcernentes relao entre e o direcionamento de comportamentos por meio dodireito penal e outras estratgias formais e informais de controle social, assim comoem relao privatizao do direito de segurana.As atuais pesquisas principalmen-te sobre a criminalidade organizada mostram que medidas de preveno pr-ativas eextrajurdicas (como para a eliminao de causas de mercados ilegais da criminalidadeorganizada) podem ser no apenas muito mais efetivas do que medidas de direitopenal, policial ou mesmo militares, mas tambm so freqentemente menos agressivasem relao aos direitos de liberdade do indivduo do que poderes de coao jurdi-cos.167 Por essa razo, a anlise de tais medidas deve receber mais ateno do que vemocorrendo at ento.

    2.3 CONSEQNCIAS E PONTOS CENTRAIS DA PESQUISAO panorama da exposio feita at aqui mostra que os problemas na limitao ter-ritorial e funcional do direito penal apresentam causas comuns ou parecidas. Essesproblemas baseiam-se em uma mudana tcnica, econmica e poltica da socieda-de, que ocorre em um contexto global. Tal mudana compreende no apenascriminalidade, riscos e a sua compreenso. Ela modifica tambm o sistema de refe-rncia do direito pblico e terico-jurdico fundamental do direito penal. Nasociedade (mundial de risco), aparece, no lugar do relacionamento nacional bipolarentre cidado e Estado (existente em um ordenamento jurdico fechado, organi-zado hierarquicamente, com um nico soberano e um direito penal claramentedefinido), diversos atores nacionais, supranacionais e internacionais, pblicos e pri-vados, em complexos sistemas com diversos nveis e formas jurdicas e sociaisdiversas de controle social, com diversos subsistemas jurdicos, uma proteo deliberdades civis diversamente composta e com complexas relaes de trocas. Essamudana da sociedade, da criminalidade e do sistema de referncia de direito penaldesafia o direito penal clssico baseado no territrio estatal e represso catego-rialmente e gera modificaes fundamentais, especialmente no tocante aos seuslimites territoriais e funcionais.

    As respostas s questes da pesquisa sobre os limites territoriais e funcionais dodireito penal precisam, por isso, recorrer aos fundamentos criminolgicos, terico-jurdicos, de direito pblico e de direito penal, caso pretendam desenvolvermodelos esclarecedores sobre as funes e limites do direito penal na sociedade glo-bal de risco, assim como respostas aos novos desafios. Conceitos tericoscorrespondentes podem, ento, na pesquisa voltada para a aplicao prtica, promo-ver uma poltica criminal que no apenas mais efetiva que a atual poltica, mas

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  • tambm fornece, tendo como base os direitos humanos vigentes universalmente,uma melhor proteo dos direitos de liberdade e a preservao de princpios de teo-ria do direito. As reaes legais aos ataques de Nova Iorque, em 2001, e de Londres,em 2005, concebidas com presso de prazo e de aes polticas nos EUA e naInglaterra, mostram que tais questionamentos no podem ser respondidos apenaspor polticos em discusses emotivas, aps a ocorrncia de crimes espetaculares, masprecisam, sim, ser estudados previamente pela cincia do direito.

    O nmero e a complexidade de questionamentos, entretanto, no permitemuma resposta imediata ou teorias simples. Assim, necessrio refletir as abordagensmetodolgicas para responder s questes aqui colocadas e, especialmente, desenvol-ver mtodos de pesquisa correspondentes ao presente programa.

    3. MTODOS DE PESQUISA E COORDENAO DE PESQUISAAs questes fundamentais citadas e a sua ligao em uma abrangente proposta teri-ca sobre os limites territoriais e funcionais do direito penal na sociedade global derisco colocam, no tocante a mtodos de pesquisa, principalmente, trs tarefas.Primeiramente, devem ser determinados os mtodos gerais de pesquisa para respos-tas s questes individuais aqui lanadas (3.1). Em seguida, deve-se tratar da questode como o Instituto Max-Planck para direito penal estrangeiro e internacional deFriburgo deve coordenar as diversas pesquisas isoladas realizadas, em forma de pro-jetos gerais, projetos individuais e teses, em relao aos complexos questionamentosj apresentados (3.2). A mdio e longo prazos, a realizao do programa de pesqui-sa exige ainda uma correspondente formao e incluso de jovens cientistas (3.3).

    3.1 MTODOS GERAIS DE PESQUISAOs mtodos gerais para responder s questes aqui levantadas so determinados,sobretudo, por meio de diversos questionamentos empricos, normativos e jurdico-polticos do novo programa de pesquisa.

    3.1.1 Tcnicas de pesquisa empricas nas cincias sociaisPara anlise da formas de delito relevantes, da efetividade de medidas de direitopenal, dos motivos para determinadas reaes de atores polticos e de outros ques-tionamentos criminolgicos do programa de pesquisa so necessrias,inicialmente, as tcnicas de pesquisa emprica das cincias sociais.168 Estes so osmtodos de trabalho centrais do grupo de pesquisa de criminologia do Instituto,com o qual deve-se trabalhar conjuntamente em congruncia com o objetivo dofundador do instituto Hans-Heinrich Jescheck, pela ligao do Direito penal e cri-minologia sob o mesmo teto (Strafrecht und Kriminologie unter einem Dach).169

    Nesse contexto, devem ser desenvolvidos ainda mais os mtodos que fornecem

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  • informaes sobre as reaes da populao e dos atores polticos a novos riscos desegurana.170 Alm disso, tambm os mtodos de avaliao de conceitos de polti-ca criminal adquirem importncia central.171

    3.1.2 Dogmtica de direito penal e cincia universal do direito penalA dogmtica do direito constitui o requisito para a anlise de questionamentos nor-mativos. Para o presente programa de pesquisa, por exemplo, ela tem importnciaquando as categorias e os subsistemas do direito de segurana (penal e extrapenal) emdesenvolvimento tm de ser determinados172. No direito penal nacional clssico(especialmente alemo), a dogmtica de direito penal c