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N º. 16 – maio / junho / julho / agosto de 2007 – Salvador – Bahia – Brasil LIBERDADE DE EXPRESSÃO, PLURALISMO E O PAPEL PROMOCIONAL DO ESTADO Daniel Sarmento Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UERJ. Visiting Scholar da Yale Law School (2006). Procurador Regional da República. Sumário: 1. Introdução; 2. Liberdade de Expressão e o Estado Ativista no Direito Comparado; a) Estados Unidos: Ascensão e Queda da Fairness Doctrine e Primazia da Teoria Libertária da 1ª Emenda; b) Alemanha: A Dimensão Objetiva da Liberdade de Expressão e os Deveres do Estado; c) França: O Pluralismo dos Meios de Comunicação como Valor Constitucional; 3. O Ativismo Estatal e os Valores da Liberdade de Expressão; a) Liberdade de Expressão, Democracia e o Papel do Estado; b) Liberdade de Expressão, Autonomia Individual e o Estado Ativista; 4. A Liberdade de Expressão e o Papel Promocional do Estado na Constituição de 88; 5. Conclusão. 1. Introdução A visão tradicional sobre a liberdade de expressão 1 é a de um direito negativo, que se esgota num dever de abstenção do Estado. De acordo com ela, a liberdade de expressão 1 No presente estudo, trataremos da liberdade de expressão como gênero, ou “direito-mãe” – para empregar as palavras de Jonatas E.M. Machado (Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 370-372) – de forma a abranger todas as liberdades comunicativas que lhe são correlatas, como liberdade de imprensa, liberdade de manifestação do pensamento, direito à informação, etc. Não ignoramos, todavia, as distinções relevantes entre estas diversas liberdades, nem as suas repercussões sobre os respectivos regimes jurídicos. Sobre estas distinções no sistema constitucional brasileiro, veja-se Edilsom Farias. Liberdade de Expressão: Teoria e Proteção Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 52-57.

Liberdade de Express o Pluralismo e o Papel Promocional Do Estado

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Liberdade de Expressão, pluripartidarismo.

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  • N . 16 maio / junho / julho / agosto de 2007 Salvador Bahia Brasil

    LIBERDADE DE EXPRESSO, PLURALISMO

    E O PAPEL PROMOCIONAL DO ESTADO

    Daniel Sarmento

    Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Mestre e Doutor em Direito

    Constitucional pela UERJ. Visiting Scholar da Yale Law School (2006). Procurador Regional

    da Repblica.

    Sumrio: 1. Introduo; 2. Liberdade de Expresso e o Estado Ativista no Direito Comparado; a) Estados Unidos: Ascenso e Queda da Fairness Doctrine e Primazia da Teoria Libertria da 1 Emenda; b) Alemanha: A Dimenso Objetiva da Liberdade de Expresso e os Deveres do Estado; c) Frana: O Pluralismo dos Meios de Comunicao como Valor Constitucional; 3. O Ativismo Estatal e os Valores da Liberdade de Expresso; a) Liberdade de Expresso, Democracia e o Papel do Estado; b) Liberdade de Expresso, Autonomia Individual e o Estado Ativista; 4. A Liberdade de Expresso e o Papel Promocional do Estado na Constituio de 88; 5. Concluso.

    1. Introduo

    A viso tradicional sobre a liberdade de expresso1 a de um direito negativo, que se

    esgota num dever de absteno do Estado. De acordo com ela, a liberdade de expresso

    1 No presente estudo, trataremos da liberdade de expresso como gnero, ou direito-me para empregar as palavras de Jonatas E.M. Machado (Liberdade de Expresso: Dimenses Constitucionais da Esfera Pblica no Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 370-372) de forma a abranger todas as liberdades comunicativas que lhe so correlatas, como liberdade de imprensa, liberdade de manifestao do pensamento, direito informao, etc. No ignoramos, todavia, as distines relevantes entre estas diversas liberdades, nem as suas repercusses sobre os respectivos regimes jurdicos. Sobre estas distines no sistema constitucional brasileiro, veja-se Edilsom Farias. Liberdade de Expresso: Teoria e Proteo Constitucional. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 52-57.

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    constitui uma limitao para os poderes pblicos, erigida para que eles no tenham como

    impedir nem coibir a manifestao de quaisquer opinies ou idias.

    O propsito central do presente estudo mostrar que tal concepo no incorreta,

    mas incompleta. Embora a dimenso preponderante da liberdade de expresso seja realmente

    negativa, a garantia deste direito, sobretudo no quadro de uma sociedade profundamente

    desigual, tambm reclama aes positivas do Estado, visando a assegurar a todos a

    possibilidade real do seu exerccio e o enriquecimento do debate pblico2. claro que o

    Estado deve ser limitado nesta esfera, para refrear os impulsos naturais dos governantes de

    cercear a difuso de opinies ou informaes que contrariem os seus prprios interesses, ou

    de silenciar aqueles que defendam idias impopulares. Mas o que se almeja sustentar neste

    artigo que o regime do laissez-faire no suficiente para permitir a todos a efetiva fruio

    desta to importante liberdade, e produz como conseqncias prticas o reforo do poder dos

    ricos na esfera comunicativa, o empobrecimento dos debates pblicos e a manuteno de uma

    estrutura social desigualitria e opressiva.

    Sem embargo, no deve haver espao para inocncia no tratamento desta questo, pois

    muita coisa importante est em jogo. No h como ignorar os riscos de intervenes estatais

    que possam resultar no em pluralizao do debate pblico, mas em censura disfarada ou

    favorecimento aos pontos de vista preferidos pelos governantes. Contudo, estes riscos de

    abusos que sempre existem onde quer que o poder esteja envolvido no so razes

    suficientes para que se adote um modelo de completo absentesmo estatal, descartando-se

    liminarmente quaisquer iniciativas voltadas efetiva democratizao do espao comunicativo.

    Deve-se, isto sim, pensar e desenvolver mecanismos para minimiz-los.

    No Brasil, este tema reveste-se de uma relevncia extraordinria. Por um lado, no h

    como negar os enormes avanos que obtivemos no campo da liberdade de expresso aps a

    redemocratizao do pas e a promulgao da Constituio de 88. No h mais censura

    pblica, a imprensa exerce sem maiores temores o seu papel de fiscalizao dos governos e os

    artistas produzem as suas obras com liberdade. So vitrias importantssimas que no devem 2 Thomas I. Emerson, na obra mais clssica sobre liberdade de expresso nos Estados Unidos, tambm defendeu esta posio. Nas suas palavras, o Estado tem tambm um papel afirmativo a desempenhar na manuteno da liberdade de expresso na sociedade moderna. Ele deve proteger pessoas e grupos que tentem exercitar este direito de interferncias privadas e no governamentais, seja atravs da fora, seja por outros mtodos. Ele deve tambm adotar medidas positivas para promover e encorajar a liberdade de expresso, seja fornecendo os meios, eliminando distores na mdia ou tornando as informaes acessveis (The System of Freedom of Expression. New York: Random House, 1970, p. 04)

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    ser desmerecidas3. No obstante, os meios de comunicao de massa, cujo poder nas

    sociedades contemporneas nem precisa ser enfatizado, permanecem fortemente

    oligopolizados, em que pese a expressa vedao constitucional (art. 220, 5, CF), o que gera

    evidentes distores no funcionamento da nossa democracia4. Ademais, os pobres e excludos

    em geral continuam sem voz na esfera pblica.

    Tal situao, flagrantemente contrria aos valores da nossa Constituio, no ser

    corrigida pelo mercado. O seu combate, pelo contrrio, reclama atuaes estatais positivas

    que, obviamente, enfrentaro resistncia da parte daqueles que se beneficiam com o status

    quo. Neste estudo, pretendemos oferecer alguns argumentos em favor da adoo pelo Estado

    de uma postura mais ativista no campo comunicativo, voltada no para a represso de idias e

    pontos de vista enjeitados pelos governantes ou pela maioria o que seria absolutamente

    incompatvel com os princpios mais caros a um Estado Democrtico de Direito , mas para a

    efetiva pluralizao do espao pblico, ou, para usar o expressivo lema do movimento

    nacional das rdios comunitrias, para dar voz a quem no tem voz.

    Assim, num primeiro momento, dedicaremos algumas pginas a um estudo do Direito

    Comparado, analisando como outras democracias constitucionais avanadas Estados

    Unidos, Alemanha e Frana vm enfrentando a mesma questo. Em seguida, discutiremos

    as relaes entre esta viso ativista da liberdade de expresso com os principais valores que

    fundamentam a proteo deste direito: democracia e autonomia individual. Passaremos, logo

    aps, ao estudo do tema no mbito do Direito Constitucional positivo brasileiro. Nosso

    objetivo neste item ser o de demonstrar como a Carta de 88, interpretada com os olhos

    voltados para a realidade emprica do pas, requer esta leitura no abstentesta das nossas

    liberdades comunicativas.

    2. Liberdade de Expresso e o Estado Ativista no Direito Comparado

    a) Estados Unidos: Ascenso e Queda da Fairness Doctrine e Primazia da Teoria

    Libertria da 1 Emenda

    3 Cf. Lus Roberto Barroso. Liberdade de Expresso, Censura e Controle da Programao de Televiso na Constituio de 1988. In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, pp. 341-387. 4 No mesmo sentido, veja-se Fbio Konder Comparato. A Democratizao dos Meios de Comunicao de Massa. In: Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (Orgs.). Direito Constitucional: Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides. So Paulo: Malheiros, 2001, pp. 149-166.

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    Embora a garantia da liberdade de expresso no Direito Constitucional norte-

    americano exista desde a edio da 1 Emenda, em 1791, foi s no comeo do sculo XX,

    depois do final da 1 Guerra Mundial, que este direito comeou a ser efetivamente protegido

    pelo Judicirio daquele pas5. Aps um incio titubeante, a jurisprudncia constitucional

    americana foi expandindo e fortalecendo a proteo do free speech, que hoje certamente o

    mais valorizado e protegido direito fundamental no sistema jurdico dos Estados Unidos6,

    sendo considerado uma liberdade preferencial7, qual se atribuiu um peso superior na

    ponderao com outros direitos, como privacidade8, reputao9 e igualdade10.

    5 Cf. Geoffrey R. Stone et al. The First Amendment. New York: Aspen Publishers, 2003, pp. 03-18; e Daniel Farber. The First Amendment. 2nd ed., New York: The Foundation Press, 2003, pp. 08-13. 6 Cf. Edward J. Eberle. Dignity and Liberty: Constitutional Visions in Germany and the United States. Westport: Praeger, 2002, p. 190; e David A. Strauss. Freedom of Speech and the Common-Law Constitution. In: Lee C. Bollinger & Geoffrey R. Stone. Eternally Vigilant: Free Speech in the Modern Era. Chicago: Chicago University Press, 2002, p. 33. 7 Sobre a teoria das liberdades preferenciais no Direito norte-americano, veja-se Laurence H. Tribe. American Constitutional Law. 2nd ed., New York: The Foundation Press, 1988, pp. 769-784. 8 Embora a jurisprudncia norte-americana tenha afirmado, desde o julgamento do caso Griswold vs. Connecticut, ocorrido em 1965, a existncia de um direito fundamental implcito privacidade, situado nas zonas de penumbra do Bill of Rights, e expandido corajosamente as fronteiras deste direito para abarcar at a liberdade da mulher de praticar o aborto (Roe vs. Wade), ela tende a atribuir um peso muito superior liberdade de expresso em casos de colises. Para ilustrar esta afirmao, basta mencionar que, segundo a jurisprudncia da Suprema Corte, a imprensa tem o direito de divulgar o nome de vtimas de estupro (Landmark Communications Inc. vs. Virginia 435 U.S. 829 (1978)) e de expor ao pblico o contedo de conversas telefnicas de particulares gravadas ilicitamente, sem autorizao judicial (Bartnicki vs. Vopper 121 S. Ct. 1753 (2001)). Veja-se, a propsito, Paul Gewirtz. Free Speech and Privacy. In: Supreme Court Review, 2001, pp. 139-184. 9 No importante caso New York Times vs. Sullivan (376 U.S. 254 (1964)), ficou assentado no Direito Constitucional norte-americano que, mesmo diante de afirmaes falsas que atinjam as suas reputaes, as autoridades pblicas s podem obter indenizaes por danos se lograrem demonstrar que o responsvel agiu com dolo real (actual malice) ou eventual (reckless disregard of whether it was false or not). E, posteriormente, este mesmo standard foi estendido para indivduos que, embora no sendo autoridades pblicas, tenham uma posio pblica de proeminncia, como tcnicos de time de futebol americano (Curtis Publishing Co. vs. Butts- 388 U.S. 130 (1967)) e advogados em casos rumorosos (Gertz vs. Robert Welch Inc. 418 U.S. 323 (1974)). Veja-se, a propsito, Harry Kalven Jr. A Worthy Tradition: Freedom of Speech in America. New York: Harper e Row Publishers, 1988, pp. 60-74; e Daniel A. Farber. Op. cit., pp. 79-102. 10 A jurisprudncia norte-americana firme no sentido de que as manifestaes mais abusivas de racismo so protegidas pela liberdade de expresso. Neste sentido, veja-se as decises proferidas nos casos Brandemburg vs. Ohio (395 U.S. 444), em que se afirmou a liberdade de expresso de membros da Ku Klux Klan de defenderem as suas idias racistas, Collin vs. Smith (578 F.2d 1197), em que se decidiu que neo-nazistas tinham o direito de realizar uma marcha, portando susticas, em vilarejo com forte presena de populao judaica, e R.A.V. vs. City of Richmond (505 U.S. 377), em que se anulou a condenao de jovens que haviam queimado uma cruz no quintal de famlia de afrodescendentes. Sobre o debate em torno do tratamento do hate speech nos Estados Unidos, veja-se David Richards. Free Speech and the Politics of Identity. New York: Oxford University Press, 1999; Henry Louis Gates Jr. et al. Speaking of Hate, Speaking of Sex: Hate Speech, Civil Rights and Civil Liberties. New York: New York University Press, 1994; Lee C. Bolinger. The Tolerant Society: Freedom of Speech and Extemist Speech in America. New York: Oxford University Press, 1986; e Mari J. Matsuda et al.

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    De forma muito esquemtica, pode-se dizer que h no debate constitucional norte-

    americano duas grandes linhas ou tradies em relao ao papel do Estado em matria de

    liberdade de expresso11. Uma libertria, que v o Estado como o grande adversrio deste

    direito, e tem como ideal regulativo o modelo do mercado de idias, em que agentes

    privados comunicar-se-iam uns com os outros livremente, sem qualquer interferncia estatal.

    Esta corrente parte da premissa de que, ainda que o mercado possa ter as suas falhas, elas so

    preferveis interveno do Estado, cuja atuao sempre tenderia a desfavorecer as idias que

    fossem prejudiciais aos governantes ou contrrias s preferncias das maiorias12. A outra

    linha a ativista13, que aceita e s vezes at reclama a interveno estatal na esfera

    comunicativa, visando a suprir e corrigir os desvios e as falhas mercadolgicas, a fim de

    assegurar as condies para um debate pblico mais plural, do qual tambm possam participar

    aqueles que, por falta de dinheiro ou poder, no conseguiriam se fazer ouvir num sistema

    baseado exclusivamente no mercado14. O seu ideal regulativo a democracia deliberativa.

    De um modo geral, a tradio libertria tem quase sempre prevalecido na trajetria

    histrica da 1 Emenda e ela que hoje impera no Direito Constitucional norte-americano. No

    entanto, em alguns momentos, a viso ativista teve as suas vitrias, e a mais expressiva delas

    foi a chamada fairness doctrine15, empregada at meados da dcada de 80 do sculo passado.

    Words that Wound: Critical Race Theory, Assaultive Speech and the First Amendment. Boulder: Westview Press, 1993. 11 Cf. Cass Sunstein. Democracy and the Problem of Free Speech. New York: The Free Press, 1993, pp. 17-51. 12 Veja-se, na linha libertria, Robert Post. Meiklejohns Mistake: Individual Autonomy and the Reform of Public Discourse. In: Constitutional Domains. Cambridge: Harvard University Press, 1995, pp. 268-285; e Frederick Schauer. Free Speech: A Philosophical Enquiry. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, pp. 113-130. 13 Owen Fiss, em A Ironia da Liberdade de Expresso. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mrio da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 28-31, e Gustavo Binenbojm, em Meios de Comunicao de Massa, Pluralismo e Democracia Deliberativa: As Liberdades de Expresso e de Imprensa nos Estados Unidos e no Brasil. In: http://www.mundojuridico.adv.br, acessado em 23 de abril de 2006, pp. 03-04, referiram-se posio no debate norte-americano que aqui chamamos de ativista, como democrtica. Preferimos o rtulo ativista para designar esta corrente que aceita intervenes estatais visando a fortalecer o debate pblico, uma vez que h adeptos da teoria oposta a libertria , como Robert Post, que sustentam que ela est exatamente a servio da democracia. Portanto, parece-nos que o antagonismo entre as posies melhor retratado quando se rotula as respectivas correntes como libertria e ativista, e no como libertria e democrtica. 14 Confira-se, na linha ativista, Cass Sunstein, Op. cit.; e Owen Fiss. A Ironia da Liberdade de Expresso. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mrio da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 15 Veja-se, a propsito, T. Barton Carter et al. The First Amendment and the Fifth State: Regulation of Electronic Mass Media. New York: Foundation Press, 2003, pp. 194-218; Eric Barendt. Broadcasting Law. New York: Oxford Univesity Press, 1993, pp. 157-165; Jerome A. Barron. What Does the Fairness Controversy Really Mean?. In: Hasting Communications and Entertainment Law Journal, n. 12, 1989, pp. 205-244; Roland F. L. Hall. The Fairness Doctrine and the First Amendment: Phoenix Rising. In: Mercer Law Review, n. 45, 1994, pp. 705-771; e, no Brasil, Gustavo Binenbojm, Op. cit.

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    A fairness doctrine foi criada pela FCC (Federal Communications Comission)

    agncia reguladora norte-americana dedicada rea de comunicaes eletrnicas e consistia

    numa srie de medidas que visavam a assegurar que as rdios e televises destinassem uma

    boa parte da sua programao cobertura de questes de interesse pblico, e que, nesta

    cobertura, oferecessem oportunidade para apresentao de pontos de vistas diversificados e

    conflitantes, visando, com isso, a proporcionar ao pblico o acesso a verses e opinies

    variadas sobre temas relevantes para a coletividade.

    Embora a preocupao com a diversificao dos pontos de vista das emissoras de

    rdio remontasse ao final da dcada de 20, a primeira explicitao da fairness doctrine s

    ocorreu em 1949, num relatrio pblico da FCC. E, em 1959, o Congresso introduziu uma

    emenda ao pargrafo 315 da Lei de Comunicaes norte-americana que, aparentemente,

    abraou esta doutrina, e que mencionava as obrigaes impostas s emissoras de operarem

    visando o interesse pblico e de assegurarem razovel oportunidade para a discusso de

    pontos de vista conflitantes em questes de importncia pblica16.

    Com base na fairness doctrine, a FCC exercia fiscalizao sobre as rdios e televises,

    e podia impor s emissoras uma cobertura mais eqitativa em relao a temas de interesse

    pblico, obrigando-as a veicularem os pontos de vista relevantes em cada debate, quando se

    evidenciasse a sua parcialidade. Ela tambm tinha como determinar que as emissoras

    noticiassem questes importantes de interesse da coletividade, que elas tivessem omitido de

    suas programaes muito embora este aspecto da doutrina tenha sido pouqussimo aplicado

    pela agncia17. A fairness doctrine permitiu ainda que a FCC institusse uma espcie de

    direito de resposta em favor de pessoas atacadas no curso de discusses relacionadas a

    questes de interesse pblico18.

    16 Destaque-se, contudo, que a jurisprudncia americana acabou entendendo que a referida norma no impunha a adoo da fairness doctrine FCC, mas apenas autorizava a sua aplicao. Por isso, de acordo com o seu entendimento, a FCC teria poderes para revogar esta doutrina livremente, o que acabou acontecendo, como se ver logo em seguida. Cf. Jerome Barron, Op. cit., pp. 210-221. 17 Na verdade, s uma nica vez a FCC determinou que uma emissora inclusse na sua programao a cobertura de um tema de interesse coletivo que ela havia omitido. H um consenso de que este aspecto da fairness doctrine era completamente negligenciado na prtica. Cf. T. Barton Carter et al. Op. cit., pp. 199-200. 18 Note-se que no se tratava de reconhecimento de um amplo direito de resposta, tal como o previsto na Constituio e na legislao brasileira, j que s cabia quando os ataques ocorressem no curso de discusses sobre temas de interesse pblico. Isto se explica porque a rationale do instituto no era a defesa da honra e reputao do indivduo atacado, mas o direito do pblico de ter acesso a diversos pontos de vista sobre questes de interesse coletivo.

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    Em 1969, a Suprema Corte norte-americana foi chamada a pronunciar-se sobre a

    constitucionalidade da fairness doctrine no julgamento do caso Red Lion Broadcasting Co. vs.

    Federal Communications Comission19. Alegara-se, no caso, que a doutrina em questo

    violaria a 1 Emenda, por restringir o direito das emissoras de veicularem em suas

    programaes aquilo que desejassem. A Suprema Corte, em deciso proferida por

    unanimidade e redigida pelo Justice White, rechaou o argumento. Segundo a Corte, a

    escassez das ondas eletromagnticas utilizadas pelo rdio e pela televiso legitimava a

    conduta da FCC de exigir que as emissoras licenciadas veiculassem nas suas programaes

    pontos de vista divergentes dos seus. As emissoras, segundo o Tribunal, atuavam como

    agentes fiducirios da sociedade em geral, e, por isso, mais relevante do que a sua liberdade

    era o direito do pblico de ter amplo acesso a informaes e a posies variadas sobre temas

    controvertidos. Nas palavras da Corte,

    No podemos dizer que seja inconsistente com o objetivo da 1 Emenda de gerar um pblico bem informado e capaz de conduzir seus prprios assuntos, exigir das emissoras que permitam respostas a ataques pessoais ocorridos no curso da discusso de temas controvertidos, ou impor a elas que assegurem aos opositores das medidas que endossarem a chance de se comunicar com o pblico. No fosse assim, os titulares das emissoras e uns poucos proprietrios de redes de comunicao teriam o poder ilimitado de s disponibilizar tempo a quem pagasse mais, ou a comunicar apenas as suas prprias vises sobre temas de interesse pblico, pessoas e candidatos, e a permitir que fossem ao ar apenas aquelas pessoas com cujas idias concordassem. No h na 1 Emenda um santurio para o privilgio ilimitado da censura privada, operando num meio que no acessvel a todos.20

    Sem embargo, uma das crticas freqentes que se endereava fairness doctrine era a

    de que ela seria ineficiente e at contraproducente para o fim a que se destinava, de promoo

    de um debate pblico plural e robusto21. Os opositores desta poltica pblica afirmavam que,

    na prtica, a sua aplicao levava as emissoras a evitarem polmicas, para no incorrerem na

    obrigao de assegurar tempo para exposio de todos os pontos de vista relevantes, nem

    tampouco no nus decorrente do exerccio dos direitos de resposta pelos supostos ofendidos.

    19 395 U.S. 367 (1969). 20 Traduo livre. 21 Cf. Thomas G. Krattenmaker. The Fairness Doctrine Today: A Constitutional Curiosity and an Impossible Dream. In: Duke Law Journal, 1985, pp. 151-177.

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    O resultado, segundo estes crticos, seria uma cobertura andina e sem sal dos temas de

    interesse coletivo, e o esfriamento (chilling effect), ao invs do robustecimento do espao

    pblico.

    Ademais, outro argumento invocado contra a fairness doctrine era o de que a sua

    fiscalizao e implementao competiam a um rgo do Estado, composto por pessoas que

    tambm tinham a sua agenda e os seus interesses polticos, e no por hipotticos guardies

    platnicos neutros em relao aos conflitos deflagrados no espao comunicativo. Por isso,

    diziam os crticos, seria prefervel confiar na mo invisvel do mercado do que na conduta de

    agentes do Estado para regulao do contedo das programaes de rdio e televiso22.

    Vale registrar que deciso da Suprema Corte posterior a Red Lion circunscreveu a sua

    rationale a casos relacionados s emissoras de rdio e televiso, negando a sua aplicao

    imprensa escrita e outras formas de comunicao. Assim, em Miami Herald Publishing Co.

    vs. Tornillo23, julgado em 1974, o Tribunal, por unanimidade, invalidou uma lei do Estado da

    Flrida que institura o direito de resposta em favor de candidatos a cargos pblicos que

    fossem atacados pela imprensa escrita, por consider-la incompatvel com a liberdade de

    expresso. Para a Corte americana, a norma em questo interferia na liberdade do editor do

    jornal de publicar o que quisesse. Ademais, ela afirmou que a aplicao da referida regra

    levaria os jornais a evitarem controvrsias, o que diminuiria o vigor do debate pblico. Ficou

    claro aps este julgamento que existiam dois regimes constitucionais diversos para os meios

    de comunicao nos Estados Unidos: um mais refratrio a qualquer interferncia estatal, para

    a imprensa escrita, e outro mais tolerante em relao a estas ingerncias, aplicvel s rdios e

    televises24.

    O fato que a partir do comeo da dcada de 80, com a posse de Ronald Reagan na

    Presidncia da Repblica e a ascenso ao poder da ideologia neoliberal, avessa regulao

    estatal do setor privado, surge uma forte tendncia ao abandono da fairness doctrine. Neste

    novo contexto, a prpria FCC publica, em 1985, um relatrio intitulado Fairness Report, em

    que afirma que a doutrina no mais se justificava. No relatrio, a agncia norte-americana

    22 Cf. Robert Post, Op. cit. 23 418 U.S. 241 (1974). 24 Cf. Daniel A. Farber. The First Amendment. 2nd ed., New York: The Foundation Press, 2003, p. 224. Para uma defesa deste tratamento diferenciado, veja-se Lee C. Bollinger. Freedom of the Press and Public Access: Toward a Theory of Parcial Regulation. In: Eric Barendt. Media Law. New York: New York University Press, 1993, pp. 109-150.

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    sustentava que, com a ampliao do nmero de rdios e televises, o mercado ter-se-ia

    convertido num meio de promoo da diversidade na esfera pblica muito superior ao

    intervencionismo estatal. A aplicao da doutrina, segundo a FCC, estaria restringindo

    desnecessariamente a liberdade de expresso das emissoras e gerando como efeito prtico a

    inibio da cobertura de questes controvertidas. Isto porque, para a Comisso, as rdios e

    televises estariam evitando a abordagem de temas polmicos nas suas programaes, alm

    do tempo mnimo imposto, para no se sujeitarem obrigao de conferir cobertura razovel

    a todos os pontos de vista relevantes25.

    Apesar desta concluso, a FCC no revogou imediatamente a fairness doctrine, por

    entender que lhe faltavam poderes para tanto26. Contudo, depois que uma deciso judicial

    proferida no ano de 198727 afirmou que a doutrina em questo no tinha sido imposta pelo

    legislador, e que, portanto, poderia ser administrativamente revista, a agncia resolveu

    invalid-la, por consider-la inconstitucional e contrria ao interesse pblico. Esta sua deciso

    administrativa foi impugnada judicialmente, mas a Justia Federal norte-americana a

    manteve28.

    O Congresso norte-americano, inconformado com o fim da fairness doctrine, tentou

    ressuscit-la atravs de um projeto de lei, mas este acabou sendo vetado pelo Presidente

    Reagan, sob o argumento de que ele afrontaria a 1 Emenda. E embora a Suprema Corte

    nunca tenha chegado a reexaminar o precedente firmado no caso Red Lion, h comentadores

    que afirmam que se ela o tivesse feito, provavelmente teria concordado com a tese da

    inconstitucionalidade da fairness doctrine, tendo em vista no s a adoo por ela, a partir de

    meados da dcada de 70, de uma orientao cada vez mais libertria sobre a liberdade de

    expresso, como tambm pelas mudanas tecnolgicas no setor da radiodifuso, que teriam

    corrodo as bases empricas do argumento da escassez das ondas eletromagnticas disponveis

    para as emissoras de rdio e televiso29.

    Por outro lado, vale destacar que mesmo no perodo em que a fairness doctrine

    vigorou, nunca se entendeu nos Estados Unidos que grupos ou entidades com pontos de vista 25 Cf. T. Barton Carter et al. Op. cit., pp. 207-209. 26 O entendimento da agncia era o de que a fairness doctrine estava prevista em lei o j citado pargrafo 315 da Lei de Comunicaes e que ela no tinha o poder de revogar a lei, nem de deixar de aplic-la em razo de inconstitucionalidade. Cf. Jerome Barron, Op. cit., pp. 710-711. 27 Meredith Corp. vs. Federal Communications Comission (809 F. 2d 863 D.C. Cir. 1987). 28 Syracuse Peace Council vs. Federal Communications Commission (867 F.2d 654 D.C. Cir. 1989). 29 Cf. Owen Fiss. A Ironia da Liberdade de Expresso, Op. cit., p. 112.

  • 10

    relevantes sobre temas de interesse pblico tivessem qualquer direito de acesso mdia

    eletrnica30. Isto ficou muito claro na deciso do caso CBS vs. Democratic National

    Comitee31, julgado em 1973, em que a Suprema Corte se manifestou no sentido de que no

    haveria qualquer violao liberdade de expresso do Comit Nacional do Partido Democrata

    e de uma organizao pacifista, pelo fato da rede de televiso CBS ter se recusado, com a

    complacncia da FCC, a veicular matria paga em que tais entidades criticavam a Guerra do

    Vietnam. A Corte, por 7 votos a 2, negou a existncia de direito de acesso s rdios e

    televises, entendendo que deveria ser protegida no caso a discricionariedade editorial da

    emissora, garantida pela 1 Emenda.

    Neste mesmo julgamento, o Tribunal norte-americano afirmou que embora o Estado

    pudesse, atravs da FCC, atuar positivamente no sentido de robustecer e pluralizar o debate

    pblico no mbito do rdio e da televiso, ele no estava constitucionalmente obrigado a agir

    desta forma. Assim, a idia de uma dimenso positiva da liberdade de expresso, relacionada

    ao dever do Estado de agir a servio da democracia e do pluralismo, foi rechaada pela

    deciso, que preferiu manter-se fiel viso mais convencional, que concebe esta liberdade

    exclusivamente como um direito de defesa contra os poderes pblicos32.

    Esta viso libertria da Corte americana chegou ao paroxismo no julgamento do caso

    Buckley vs. Valeo33, decidido em 1976, no qual ela declarou inconstitucional uma lei federal

    que estabelecera valores mximos para gastos em campanhas eleitorais pelos candidatos. Para

    o Tribunal, limitar os gastos de campanha implicaria em restringir a liberdade de expresso

    dos candidatos, cerceando o seu poder de comunicar-se com o pblico. Confrontada com o

    argumento de que a norma em questo objetivava promover a igualdade, tornando o poder

    econmico menos relevante para o resultado das eleies, a Suprema Corte respondeu que o

    conceito de que o Estado possa restringir a expresso de alguns elementos da sociedade

    visando a promover relativamente a voz de outros absolutamente estranho 1 Emenda34.

    Parece at desnecessrio frisar que esta concepo verdadeiramente plutocrtica da

    liberdade de expresso tem efeitos perversos sobre o processo democrtico, favorecendo

    30 Cf. John E. Nowak & Ronald D. Rotunda. Constitutional Law. 5th ed., St. Paul: West Publishing Co., 1995, pp. 1030-1032. 31 412 U.S. 94 (1973). 32 Cf. Owen Fiss. Op. cit., p. 113. 33 424 U.S. 1 (1976). 34 Traduo livre.

  • 11

    invariavelmente os ricos e poderosos e a sua agenda conservadora, em detrimento dos grupos

    excludos35. Este cenrio jurisprudencial levou juristas norte-americanos mais sensveis aos

    reclamos da democracia e da igualdade a sugerirem um New Deal for Speech nos Estados

    Unidos36, ou a apontarem a completa inadequao da filosofia norte-americana sobre a

    liberdade de expresso s condies do mundo moderno37.

    Enfim, apesar da persistncia de intenso debate no campo acadmico, hoje impera no

    Direito Constitucional dos Estados Unidos uma viso radicalmente libertria sobre a 1

    Emenda38, que, como bem observou Jerome Barron, perpetra o paradoxo de se preocupar

    tanto com a liberdade de expresso, e de mostrar, ao mesmo tempo, uma cabal indiferena em

    relao s reais oportunidades das pessoas de se exprimirem39. Na nossa opinio, esta

    hegemonia pode em parte ser debitada a alguns traos mais gerais da cultura jurdica norte-

    americana, como o profundo individualismo, a tendncia priorizao da liberdade negativa

    em relao igualdade, a permanente desconfiana diante do Estado, tido como inimigo

    mortal dos direitos humanos, aliada a uma viso otimista sobre o funcionamento da sociedade

    civil e do mercado, que se abstrai do efeito opressivo e silenciador que pode ser produzido por

    estruturas sociais desigualitrias40.

    b) Alemanha: A Dimenso Objetiva da Liberdade de Expresso e os Deveres do

    Estado

    35 Esta deciso mereceu crtica at do grande filsofo liberal John Rawls, que normalmente no se envolvia em discusses estritamente jurdicas (Political Liberalism. Cambridge: Harvard University Press, 1993, pp. 362-363). 36 Cass Sunstein. The Partial Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1993, pp. 197-231. 37 Owen Fiss. Free Speech and Social Structure. In: Eric Barendt (Ed.). Media Law. Op. Cit., pp. 219-239. 38 verdade, contudo, que a preocupao com a democracia e o pluralismo no desaparecerem completamente da jurisprudncia americana sobre a 1 Emenda. No caso Turner Broadcasting System Inc. vs. Federal Communications Commission (512 U.S. 622 (1994)), por exemplo, esta tendncia se manifestou, quando o Tribunal considerou constitucional, por 5 votos a 4, uma lei federal que obrigava as operadoras de TV a cabo a transmitirem os sinais de canais locais, sob o argumento de que se trataria de medida necessria para manuteno do pluralismo na mdia eletrnica. Para discusso deste caso, veja-se Geoffrey R. Stone et al. The First Amendment. New York: Aspen Publishers, 2nd ed., 2003, pp. 509-519. 39 Jerome Barron. Access to the Press: A New First Amendment Right. In: Harvard Law Review, n. 80, 1967, p. 1641. 40 Esta viso se expressa, por exemplo, na doutrina da State Action, vigente no Direito Constitucional americano, segundo a qual a Constituio e os direitos fundamentais aplicam-se apenas ao Estado e no s relaes privadas. Sobre a doutrina em questo, veja-se Laurence H. Tribe. American Constitutional Law. 2nd ed., Mineola: The Foundation Press, 1988, pp. 1688-1720; Juan Mara Bilbao Ubillos. Los Derechos Fundamentales en la Frontera entre lo Publico y lo Privado. Madrid: McGraw-Hill, 1997; e Daniel Sarmento. Direito Fundamentais e Relaes Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 226-238.

  • 12

    A concepo existente no Direito Constitucional alemo sobre a liberdade de

    expresso difere substancialmente daquela predominante nos Estados Unidos41. De fato,

    embora na Alemanha esta liberdade tambm seja extremamente valorizada, j tendo sido

    rotulada, na deciso do famoso caso Lth42, como a mais imediata manifestao da

    personalidade humana em sociedade, um dos mais nobres dentre todos os direitos

    humanos, e a base de todas as outras liberdades, a compreenso sobre o seu significado,

    e sobre o papel do Estado diante dela, sensivelmente diferente da norte-americana. Pode-se

    dizer, de forma muito resumida, que a liberdade de expresso na Alemanha no tida apenas

    como um direito individual daqueles que se exprimem, mas tambm como um valor objetivo

    da ordem jurdica democrtica, cujas garantia e promoo muitas vezes requerem aes

    estatais positivas43.

    A idia bsica a de que a liberdade de expresso desempenha um duplo papel: por

    um lado, ela constitui um direito subjetivo individual, vital para a dignidade humana, mas, por

    outro, ela tambm um instrumento para a livre formao da opinio pblica e para o

    intercmbio de idias entre os cidados, to necessrios ao funcionamento de um regime

    democrtico. Esta primeira dimenso individual da liberdade da expresso tende a

    preponderar em casos envolvendo direitos de cidados comuns, artistas, escritores, etc.,

    enquanto a segunda dimenso institucional e objetiva mais enfatizada em questes relativas

    imprensa em geral44.

    claro que perpassa o Direito Constitucional alemo a tradicional e justificada

    preocupao com a tendncia do Estado de restringir o discurso e a difuso de informaes e

    idias que contrariem os interesses dos governantes ou incomodem as sensibilidades das

    maiorias. Por isso, pode-se dizer que, tambm na Alemanha, a liberdade de expresso , antes

    de tudo, um direito fundamental de defesa contra o Estado.

    41 Cf. Peter E. Quint. Free Speech and Private Law in German Constitutional Theory. In: Maryland Law Review, n. 48, 1989, p. 251. 42 7 BVerfGE 198. Excertos da deciso traduzida para o ingls podem ser encontrados em Donald P. Kommers. The Constitutional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany. 2nd ed., Durham: Duke University Press, 1997, pp. 361-367; e em Norman Dorsen et al. Comparative Constitutionalism: Cases and Materials. St. Paul: West Group, 2003, pp. 824-829. 43 Cf. Konrad Hesse. Elementos de Direito Constitucional da Repblica Federal da Alemanha. Trad. Lus Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 302. 44 Cf. Edward J. Eberle. Dignity and Liberty: Constitutional Visions in Germany and in the United States. Westport: Praeger, 2002, pp. 197-200.

  • 13

    Sem embargo, talvez a grande contribuio da dogmtica germnica para o

    enriquecimento da liberdade de expresso tenha sido o reconhecimento da dimenso objetiva

    deste direito, e da sua aptido de gerar tambm obrigaes positivas para os poderes pblicos.

    A idia de dimenso objetiva dos direitos fundamentais45, desenvolvida no Direito

    Constitucional alemo a partir do julgamento do caso Lth, parte da premissa de que, alm de

    direitos subjetivos, os direitos fundamentais encarnam os valores mais relevantes da

    comunidade, que devem irradiar-se pelo ordenamento jurdico, condicionando e inspirando a

    interpretao e a aplicao de todo o Direito. Segundo esta concepo, os direitos

    fundamentais no s limitam, mas tambm devem impulsionar e orientar a ao de todos os

    poderes do Estado. Sob esta nova perspectiva, os poderes pblicos tm no apenas o dever de

    absterem-se de violar estes direitos, mas tambm a obrigao de promov-los concretamente,

    e de garanti-los diante de ameaas decorrentes da ao de particulares e de grupos privados.

    Esta construo terica revelou-se extremamente importante na jurisprudncia sobre a

    liberdade de expresso. Ela foi empregada, por exemplo, no caso Blinkfer46 para proteger a

    liberdade de um peridico semanal com este nome, de pequena circulao e orientao

    ideolgica comunista, contra presses econmicas exercidas por um jornal mais poderoso o

    Springer , que ameaara interromper a sua distribuio para os jornaleiros que vendessem o

    semanrio. O caso, para o Tribunal alemo, envolvia uma ponderao entre a liberdade de

    expresso do jornal, de promover o boicote, e a do peridico comunista, de continuar

    difundindo as suas idias. Considerando as circunstncias do caso, especialmente o fato de

    que o Springer estava se valendo no de argumentos, mas do seu poder econmico para

    silenciar idias a que se opunha, a Corte alem decidiu o caso de forma favorvel ao

    Blinkfer. Embora se tratasse de um litgio privado envolvendo a aplicao de normas do

    Cdigo Civil, o Tribunal germnico afirmou que as regras infraconstitucionais pertinentes

    45 No teremos aqui como desenvolver o tema da dimenso objetiva, que extremamente complexo e cheio de nuances. Pedimos vnia ao leitor para remet-lo a outro texto de nossa autoria: Dimenso Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria. In: Jos Adrcio Leite Sampaio (Org.). Direitos Fundamentais e Jurisdio Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, pp. 251-314. Sobre a dimenso objetiva na Alemanha, veja-se Dieter Grimm. Human Rights and Judicial Review in Germany. In: David M. Beatty (Ed.). Human Rights and Judicial Review: A Comparative Perspective. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 1994, pp. 267-295; Robert Alexy. Teora de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales. Trad. Ernesto Garzn Valds, 2002, pp. 507-510; e David Capitant. Les Effets Juridiques des Droits Fondamentaux em Allemagne. Paris: L.G.D.J., 2001, pp. 181-203. 46 25 BVerfGE 256 (1969).

  • 14

    tinham de ser interpretadas no sentido da promoo da liberdade de expresso, que, no caso,

    pendia para a proteo de Blinkfer. Na deciso, a Corte afirmou:

    A liberdade para o debate intelectual um pressuposto indispensvel para o funcionamento de uma democracia porque ela que garante a discusso pblica de questes de interesse pblico e dimenso poltica. Quando o exerccio de presso econmica gera graves desvantagens para aqueles afetados por ela, e ele destina-se a impedir a disseminao de opinies e notcias, que constitucionalmente garantida, ele viola a igualdade de oportunidades no processo de formao da opinio pblica. Este exerccio tambm contraria o sentido e a natureza do direito fundamental liberdade de expresso, que concebido como uma garantia da disputa intelectual na formao da opinio pblica.47

    Mas foi em controvrsias a propsito do regime jurdico das televises que esta

    jurisprudncia ativista se revelou com maior nitidez. Com efeito, desde o incio da dcada de

    60, a Corte Constitucional alem tem proferido diversas decises enfatizando o dever do

    Estado de agir no sentido de assegurar o pluralismo comunicativo no campo da mdia

    eletrnica, que no pode depender exclusivamente das foras do mercado48. Estas decises

    desempenharam um papel central na definio do tratamento dado naquele pas s rdios e

    televises.

    Cumpre destacar, a propsito, que at o incio da dcada de 60, as emissoras de

    televiso na Alemanha eram pblicas e controladas pelos Estados49, embora independentes

    em relao aos respectivos governos, sendo geridas por comisses plurais, compostas por

    pessoas representativas dos mais variados setores da sociedade, que decidiam sobre a sua

    programao50. No final da dcada de 50, foi aprovada uma lei instituindo uma emissora

    federal de televiso, que no previa mecanismos similares de garantia de pluralismo e

    independncia em relao ao governo na gesto da entidade. Esta lei foi questionada na Corte

    47 Traduo livre de excerto em verso inglesa do julgamento, obtida em Donald Kommers. Op. cit., pp. 373-374. 48 Veja-se, em detalhe, em Peter Humphreys. The Goal of Pluralism and the Ownership Rules for Private Broadcasting in Germany: Re-Regulation or De-Regulation?. In: Cardozo Arts and Entertainment Law Journal, n. 16, 1998, pp. 527-555. 49 A opo por atribuir aos Estados e no Unio os servios de rdio e televiso resultou da vontade de descentralizar o controle destes meios de comunicao, para minimizar riscos de abuso como os ocorridos durante o nazismo, em que a mdia foi posta a servio daquela terrvel ideologia oficial. Cf. Eric Barendt. Broadcasting Law, Op. cit., p. 19. 50 Cf. Michel Rossinelli. La Libert de la Radio-Telvision em Droit Compare. Paris: ditions Publisud, 1991, pp. 53-54.

  • 15

    Constitucional tanto por razes concernentes ao federalismo que no nos interessam aqui

    como por violao liberdade de expresso. Ao proferir seu julgamento, no caso que ficou

    conhecido como Televiso I51, o Tribunal enfatizou inicialmente o papel central que a

    televiso desempenha na formao da opinio pblica. Em seguida, destacou que por razes

    tcnicas ligadas escassez das ondas eletromagnticas, bem como em face do elevado custo

    de explorao, o nmero de emissoras de televiso era muito reduzido. Por isso, para

    assegurar os objetivos da liberdade de expresso, seria necessrio garantir o pluralismo

    interno nas emissoras de televiso, o que a lei em questo no fizera. De acordo com o

    Tribunal,

    ... o art. 5 da Constituio impe que este moderno instrumento de formao de opinio no fique merc nem do Estado nem de qualquer grupo social. Por isso, as emissoras devem ser organizadas de forma que permita que todos os interesses dignos de considerao exeram influncia sobre os seus rgos de gesto e que possam estar representados na programao em geral. Elas devem ser organizadas de maneira que diretrizes vinculantes assegurem que os programas contenham um mnimo de equilbrio, objetividade e respeito recproco. S uma lei pode garantir que estes princpios organizacionais e diretrizes sejam efetivamente aplicados. Assim, o art. 5 impe que esta lei seja editada.52

    Outra deciso importante do Tribunal alemo nesta rea foi o caso Televiso III53,

    julgado em 1981, em que se discutiu a constitucionalidade de uma lei do Estado de Saarland

    que, pela primeira vez na Alemanha, admitira a explorao da mdia eletrnica por emissoras

    privadas. Entendeu-se, naquele julgamento, que a abertura da radiodifuso para entidades

    comerciais privadas no violava a Constituio alem, desde que fossem previstos

    mecanismos que obrigassem as emissoras a manter o pluralismo nas suas programaes,

    visando a proporcionar ao pblico um amplo acesso a informaes e pontos de vista

    diversificados. A Corte enfatizou na deciso, mais uma vez, os deveres positivos do Estado de

    estabelecer mecanismos organizacionais, substantivos e procedimentais assecuratrios do

    pluralismo no espao comunicativo, e de zelar pela sua observncia.

    51 12 BverfGE 205 (1961). 52 Traduo livre de excerto do julgamento em verso na lngua inglesa disponvel em Donald Kommers, Op. cit., pp. 404-407. 53 57 BVerfGE 295 (1981).

  • 16

    Em 1986, a Corte germnica proferiu outra deciso relevante sobre radiodifuso, no

    caso Televiso IV54, no qual se discutiu a constitucionalidade de legislao editada pelo

    Estado da Baixa Saxnia, que afrouxara as exigncias de pluralismo interno na gesto das

    emissoras privadas de rdio e televiso. Considerando a existncia de uma quantidade cada

    vez maior de estaes, propiciada pelos avanos tecnolgicos, bem como a continuidade do

    funcionamento das emissoras pblicas, plenamente submetidas s regras relacionadas ao

    pluralismo interno, o Tribunal alemo considerou constitucional a medida, passando a

    privilegiar na sua anlise a questo do pluralismo externo. O essencial, segundo a Corte, seria

    que o Estado velasse para que o sistema de radiodifuso como um todo mantivesse o seu

    compromisso com o pluralismo, a fim de que os cidados tivessem o maior acesso possvel a

    vises variadas sobre temas de interesse pblico.

    No sistema germnico, cada Estado mantm uma agncia reguladora independente

    para zelar pelo pluralismo na mdia eletrnica, com responsabilidade pela emisso e

    renovao das licenas e pela fiscalizao da programao das emissoras55.

    Outras decises da Corte Constitucional sobre a questo poderiam ser aqui citadas,

    mas o mais importante que se retenha a viso geral de que, na Alemanha, entende-se que a

    liberdade de expresso no s um direito subjetivo a servio do seu titular, mas tambm um

    valor, diretamente associado democracia, que deve ser promovido ativamente pelo Estado,

    sobre o qual pesam as obrigaes constitucionais positivas de garantir o exerccio deste direito

    em face de ameaas exercidas por particulares, bem como de zelar pelo pluralismo na esfera

    comunicativa.

    c) Frana: O Pluralismo dos Meios de Comunicao como Valor Constitucional

    A Constituio francesa de 1958 no consagrou expressamente a liberdade de

    expresso. No obstante, em seu prembulo, ela fez referncia Declarao dos Direitos do

    Homem e do Cidado de 1789, que a proclamou em seu art. 11. Assim, desde 1971, o

    Conselho Constitucional francs tem entendido que as normas integrantes da referida

    Declarao so parte integrante do bloco de constitucionalidade (bloc de constitutionalit)

    54 73 BVerfGE 118 (1986). 55 Cf. Peter Humphrey. Op. cit., p. 533.

  • 17

    francs56, podendo fundamentar o controle preventivo de constitucionalidade exercido por

    aquele rgo57. Com base nesta construo, o Conselho Constitucional tem proferido algumas

    decises importantes em relao liberdade de imprensa e aos meios de comunicao de

    massa.

    verdade, contudo, que o nvel de proteo dispensado na Frana liberdade de

    expresso inferior ao proporcionado na Alemanha, e mais ainda ao existente nos Estados

    Unidos. De um modo geral, no Direito francs h uma tendncia priorizao da tutela de

    interesses conflitantes com a liberdade de expresso, como a ordem pblica, o direito honra

    e privacidade58. Sem embargo, a doutrina comparatista tem enfatizado a relevante

    contribuio da jurisprudncia constitucional francesa para a liberdade de expresso, no

    reconhecimento da importncia da proteo e promoo do pluralismo nos meios de

    comunicao59.

    Com efeito, j na sua primeira deciso sobre liberdade de expresso, proferida em

    1982, em caso a propsito da constitucionalidade da lei de audiovisual francesa, o Conselho

    Constitucional afirmou ser papel do legislador conciliar o exerccio da liberdade de

    expresso, tal como resulta do art. 11 da Declarao dos Direitos do Homem, com, de um

    lado, os limites tcnicos inerentes aos meios de comunicao audiovisual e, de outro lado, os

    objetivos de valor constitucional que so a salvaguarda da ordem pblica, o respeito

    liberdade de terceiros e a preservao do carter pluralista das correntes de expresso

    56 Em 1971 o Conselho Constitucional proferiu a deciso n. 71-44 DC, que at hoje considerada a mais importante da sua histria, na qual afirmou que poderia exercer o controle de constitucionalidade das leis tomando como parmetro no s os preceitos do texto constitucional francs, mas tambm aqueles referidos na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789, no Prembulo da Constituio de 1946 e nos princpios fundamentais reconhecidos pelas leis da Repblica. Esta deciso conferiu uma importncia muito maior atividade do Conselho Constitucional, sobretudo no que toca proteo de direitos fundamentais. Veja-se, a propsito, o comentrio da deciso em Louis Favoreau et Lic Philip. Ls Grandes Dcisions du Conseil Constitutionnel. 10e ed., Paris: Dalloz, 1999, pp. 255-271. 57 Na Frana, no h controle a posteriori de constitucionalidade das leis, mas apenas controle preventivo, monopolizado pelo Conselho Constitucional, que pode ser provocado por iniciativa do Presidente da Repblica, Primeiro-Ministro, Presidente da Assemblia Nacional, Presidente do Senado ou por sessenta deputados ou sessenta senadores. Sobre o funcionamento do controle de constitucionalidade na Frana, veja-se George Burdeau, Francis Hamom et Michel Troper. Droit Constitutiionnel. 25e d., Paris: L.G.D.J., 1997, pp. 688-708. 58 Veja-se, a propsito, Patrick Wachsmann. La Libert DExpression. In: Rmy Cabrillac et al. Liberts et Droits Fondamentaux. 10e ed., Paris: Dalloz, 2004, pp. 361-388. Neste texto, o autor, em tom crtico, fornece exemplos de restries que no seriam aceitas em outros pases com proteo mais firme da liberdade de expresso, como a proibio pelo Judicirio da publicao de livro que criticava o fato do falecido Presidente Franois Miterrand ter escondido do pblico o seu cncer durante o exerccio do seu mandato, sob a alegao de que ofenderia a imagem do finado tema cujo debate envolvia inquestionvel interesse pblico. 59 Cf. Eric Barendt. Freedom of Speech. 2nd ed., Oxford: Oxford University Press, 2005, pp. 67-69.

  • 18

    sociocultural, que estes meios de comunicao, pela sua influncia considervel, podem

    atingir60. Neste julgamento, o Conselho julgou vlidas as exigncias estabelecidas naquela

    lei, entre as quais a submisso das televises privadas a um regime de concesso de servio

    pblico61.

    Em 1984, outra deciso extremamente importante foi proferida pelo Conselho

    Constitucional no mesmo tom. Tratava-se de argio de inconstitucionalidade de lei que

    reformulara o regime jurdico da imprensa escrita, e que, dentre outras medidas, institura

    limites para a propriedade ou controle de jornais e revistas, visando a evitar uma concentrao

    excessiva de poder comunicativo, e estabelecera regras sobre a transparncia, para o pblico,

    dos meios de financiamento destes veculos, para permitir que os leitores tivessem como

    avaliar os eventuais interesses econmicos subjacentes a cada publicao. O Conselho

    manteve estas medidas, embora tenha derrubado outros aspectos perifricos da lei, e, em

    longa deciso para os padres franceses, proclamou que a livre comunicao de

    pensamentos e opinies, garantida pelo art. 11 da Declarao dos Direitos do Homem e do

    Cidado de 1789 no seria efetiva se o pblico ao qual se dirigem os peridicos no tivesse

    sua disposio um nmero suficiente de publicaes de tendncias e caractersticas

    diferentes, porque, em definitivo, o objetivo a ser realizado proporcionar aos leitores, que

    so os principais destinatrios da liberdade proclamada no art. 11 da Declarao de 1789, a

    possibilidade de exercerem o seu direito de escolha62.

    Percebe-se no Direito Constitucional francs o predomnio da viso de que o principal

    titular da liberdade de expresso o pblico, e no aquele que se exprime. Em outras palavras

    a preocupao central na Frana com os interesses dos receptores e no com aqueles dos

    emissores das mensagens, sobretudo quando estes pertencem mdia institucional. E, a partir

    desta compreenso, a jurisprudncia reconhece a legitimidade e at a necessidade da atuao

    do Estado na rea comunicativa, destinada correo das falhas do mercado e efetiva

    60 Dcision n 82-141 du 27 juillet 1982, obtida no site http://www.conseil-constitutionnel.fr, acessado em 29 de abril de 2006. Texto livremente traduzido. 61 mister observar que, at ento, a televiso na Frana estava submetida a um regime de monoplio pblico. Cf. Michel Rossinelli, La Libert de la Radio-Telvision en Droit Compar, Op. cit., pp. 96-104. 62 Excertos da deciso e um alentado comentrio a seu propsito encontram-se em Louis Favoreau et Lic Philip. Ls Grandes Dcisions du Conseil Constitutionnel, Op. cit., pp. 599-623.

  • 19

    promoo do pluralismo, de modo a propiciar ao pblico o mais amplo acesso a informaes

    e pontos de vista diferentes63.

    Esta posio se evidencia, por exemplo, nas decises64 n. 86-210, de 29 de julho de

    1986, e n. 86.217, de 18 de setembro do mesmo ano, que decretaram a inconstitucionalidade

    de mudanas legislativas que tinham atenuado o rigor de normas anteriores voltadas contra a

    concentrao de mercado, respectivamente, na mdia impressa e nas rdios e televises, sob o

    argumento de que, atravs das mencionadas inovaes, o legislador no teria protegido de

    forma suficiente o pluralismo nos meios de comunicao.

    Destaque-se, finalmente, que na Frana existe uma agncia reguladora para televises

    e rdios o CSA (Conseil Superior de LAudiovisuel) dentre cujas atribuies est a de

    zelar pelo pluralismo nestes meios de comunicao, e que detm competncia para fixar

    standards sobre as programaes e para impor sanes no caso do seu descumprimento65.

    3. O Ativismo Estatal e os Valores da Liberdade de Expresso

    Aps a apresentao deste breve panorama comparativo, passaremos a examinar como

    a postura ativista do Estado se relaciona com os dois principais valores que nutrem o princpio

    da liberdade de expresso: garantia da democracia e proteo da liberdade individual66. Nosso

    propsito, neste item, ser o de demonstrar que a correta compreenso destes valores no s

    63 Cf. Idem, ibidem, pp. 609-611; e Jean Rivero. Les Liberts Publiques. Tome 2. 6e ed., Paris: PUF, 1997, pp. 216-217. 64 Ambas as decises foram obtidas no stio http://www.conseil-constitutionnel.fr, acessado em 29 de abril de 2006. 65 Cf. Michel Rossinelli, Op. cit., pp. 112-115; e Eric Barendt. Broadcasting Law, Op. cit., pp. 96-120. 66 H um intenso debate, sobretudo no cenrio norte-americano, sobre qual seria o objetivo mais importante da liberdade de expresso: proteo da autonomia individual (cf. Ronald Dworkin. Why Speech Must be Free?. In: Freedoms Law: The Moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996, pp. 195-213; Edwin Baker. Scope of the First Amendment Freedom of Speech. In: UCLA Law Review, n. 25, 1978, pp. 964-1040; Martin H. Redish. The Value of Free Speech. University of Pennsylvania Law Review, n. 130, pp. 591-629; e Thomas Scanlon. A theory of Freedom of Expression. In: Ronald Dworkin (Ed.). The Philosophy of Law. Oxford: Oxford Univesity Press, 1977, pp. 153-171), ou promoo da democracia (cf. Alexander Meiklejohn. Political Freedom. Westport: Greenwood Press, 1960; Owen Fiss. A Ironia da Liberdade de Expresso, Op. Cit.; Cass Sunstein. Democracy and the Problem of Free Speech, Op. cit.; e Robert Bork. Neutral Principles and Some First Amendment Problems. In: Indiana Law Journal, n. 47, 1971, pp. 20-28).

    Como ficar claro ao longo do texto, na nossa opinio estes dois objetivos so igualmente importantes, e, desde que corretamente compreendidos, reforam-se mutuamente, em que pese a eventual possibilidade de tenses. Veja-se, na mesma linha, Carlos Santiago Nino. Fundamentos de Derecho Constitucional. Buenos Aires: Editoreal Astrea, 2002, pp. 262-263; e Laurence H. Tribe. American Constitutional Law, Op. cit., pp. 785-789.

  • 20

    compatvel, como, mais que isto, reclama uma postura no abstentesta do Estado, sobretudo

    no quadro de uma sociedade extremamente desigual como a brasileira, em que o poder

    comunicativo est concentrado em pouqussimas mos.

    a) Liberdade de Expresso, Democracia e o Papel do Estado

    Democracia muito mais do que governo das maiorias67. O iderio democrtico

    norteia-se pela busca do autogoverno popular, no qual os cidados podem participar com

    igualdade e liberdade da formao da vontade do Estado68. Esta participao se d no apenas

    atravs do exerccio do direito de voto, como tambm pela atuao na esfera pblica, em

    mltiplos fruns e espaos que pressionam e fiscalizam a ao dos governantes69. Mas, para

    que ela seja consciente e efetiva, as pessoas devem ter amplo acesso a informaes e pontos

    de vista diversificados sobre temas de interesse pblico, a fim de que possam formar

    livremente as suas prprias convices. Ademais, elas devem ter tambm assegurada a

    possibilidade de tentarem influenciar, com as suas opinies, o pensamento dos seus

    concidados.

    Por isso, a liberdade de expresso to importante em qualquer regime que se

    pretenda democrtico70. a sua garantia que possibilita que a vontade coletiva seja formada

    atravs do confronto livre de idias, em que todos os grupos e cidados tenham a

    possibilidade de participar, seja para exprimir seus pontos de vista, seja para ouvir os expostos

    por seus pares. E a sua projeo institucional a liberdade de imprensa71 que confere

    maior transparncia ao funcionamento do Estado, permitindo o controle dos governantes

    pelos governados.

    67 Cf. Norberto Bobbio. Teoria Geral da Poltica. Trad. Daniela Beccacia Versiani. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2000, pp. 428-454. 68 Cf. Robert Dahl. Sobre a Democracia. Trad. Beatriz Sidou. Braslia: Ed. UnB, 2001, pp. 49-55. 69 Sobre a importncia da participao direta do cidado para dinamizao da democracia, veja-se Paulo Bonavides. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. So Paulo: Malheiros, 2001. 70 Cf. Jnatas E.M. Machado. Liberdade de Expresso: Dimenses Constitucionais da Esfera Pblica no Sistema Social, Op. cit., pp. 255-268. 71 Utiliza-se aqui e ao longo de todo o texto a palavra imprensa na sua acepo ampla, para abarcar todos os veculos de comunicao e no apenas os impressos.

  • 21

    Esta ligao ntima entre liberdade de expresso e democracia estreita-se ainda mais

    quando se adota um modelo deliberativo de democracia72. No modelo normativo da

    democracia deliberativa, as decises pblicas no devem ser o resultado do confronto entre

    indivduos e grupos antagnicos, cada um perseguindo os seus prprios interesses particulares

    ou corporativos, mas sim o fruto de um dilogo, voltado para o entendimento, entre cidados

    que se reconhecem como livres e iguais, e que buscam uma soluo para o seu desacordo que

    atenda ao bem comum, e que possa ser racionalmente aceita por todos73. A democracia

    deliberativa enfatiza o papel do debate pblico para o equacionamento das divergncias,

    partindo da premissa de que os seus partcipes, como seres racionais, devem ser capazes de

    rever as posies que tinham originalmente, convencidos pelos argumentos ouvidos ao longo

    da discusso. No se afirma que este processo realmente ocorra em qualquer sociedade

    humana atual. Na verdade, como descrio da realidade, talvez seja mais acurado o modelo

    elitista de democracia74, que a caracteriza como um sistema poltico em que grupos diferentes

    da elite disputam de tempos em tempos o apoio de massas relativamente alienadas, para

    depois governarem sozinhos no interregno. Sem embargo, a democracia deliberativa no

    pretende ser uma descrio da realidade, mas uma idia regulativa, que deve ser considerada

    no desenho das instituies pblicas e no aperfeioamento das prticas sociais.

    Ora, uma democracia baseada no dilogo tem de incorporar uma proteo robusta

    liberdade de expresso75, pois, para ela, a comunicao livre entre os cidados o que confere

    legitimidade ordem jurdica76. E, mas que isso, uma concepo como esta tem

    necessariamente de envolver um forte compromisso com a promoo da igualdade

    comunicativa entre os partcipes deste dilogo, para que todos realmente possam falar e ser 72 Sobre a democracia deliberativa, veja-se Jrgen Habermas. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, v. II. Trad. Flvio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro, 1997, pp. 09-56; James Bohman & Willian Rehg (Ed.). Deliberative Democracy. Cambridge: The MIT Press, 1997; Seyla Benhabib. Democracy and Difference. Princeton: Princeton University Press, 1996; Carlos Santiago Nino. La Constitucin de la Democracia Deliberativa. Barcelona: Gedisa, 2003; e Cludio Pereira de Souza Neto. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 73 Cf. Cludio Pereira de Souza Neto, Op. cit., pp. 79-85. 74 Cf. Joseph Schumpeter. Socialismo, Capitalismo e Democracia. Trad. Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961; e Richard A. Posner. Law, Pragmatism and Democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, pp. 97-212. 75 Cf. Simone Chambers & Anne Costain (Ed.). Deliberation, Democracy and the Media. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2000; e Paulo Murilo Calazans. A Liberdade de Expresso como a Expresso da Liberdade. In: Jos Ribas Vieira (Org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 76 Cf. Seyla Benhabib. Toward a Deliberative Model of Democratic Legitimacy. In: Seyla Benhabib (Ed.). Op. cit., p. 69.

  • 22

    ouvidos, e no haja constrangimentos nas suas interaes discursivas seno os decorrentes da

    fora persuasiva dos melhores argumentos.

    O bom funcionamento da democracia liga-se, portanto, existncia de um debate

    pblico dinmico e plural, que no esteja submetido ao controle nem do Estado, nem do poder

    econmico ou poltico privado. O controle pelo Estado perigosssimo, dada a tendncia de

    que as autoridades competentes tentem abafar as crticas ao governo e a privilegiar a difuso

    dos pontos de vista e informaes que lhes sejam favorveis77. Esta tendncia soma-se

    inclinao, tambm natural, de patrulha daquelas idias consideradas erradas ou ofensivas

    pela maioria da populao, o que periga amputar uma das dimenses mais importantes da

    liberdade de expresso: a proteo do direito ao dissenso. E a garantia desse direito de

    divergir, de ir contra a corrente, de dizer que o rei est nu, como no conto de Andersen, que

    possibilita que a democracia prospere e que a sociedade avance78.

    Mas se o debate pblico no pode ficar merc do Estado, confiar exclusivamente na

    mo invisvel do mercado tambm no parece uma boa alternativa, sobretudo se o mercado

    comunicativo for to concentrado como o brasileiro, e to associado ao poder econmico.

    Neste ponto, cumpre no esquecer que ficaram para trs os tempos da democracia

    ateniense, em que qualquer cidado tinha, de fato, como tentar influenciar as deliberaes

    pblicas, bastando pedir a palavra na gora para tentar convencer seus pares com a fora dos

    seus argumentos79. Nos dias atuais, no basta voz e uma boa idia para ser ouvido. O

    indivduo que subir num caixote em uma praa para expor ao pblico as suas opinies sobre

    algum tema controvertido, por mais interessantes que elas sejam, ser, com quase toda

    certeza, ignorado solenemente pelos transeuntes.

    Na sociedade de massas, houve uma mudana estrutural na esfera pblica80. Hoje, a

    opinio pblica resulta cada vez menos do embate de idias entre cidados bem informados,

    sendo cada vez mais definida pelos veculos de comunicao de massa. O sujeito real da

    77 Para Frederick Schauer, a justificada desconfiana em relao capacidade do Estado de agir com neutralidade e iseno na esfera comunicativa seria a principal razo para conferir-se uma proteo reforada liberdade de expresso (Free Speech: A Philosophical Enquiry, Op. cit., p. 86). 78 Cf. Cass Sunstein. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2003. 79 Saliente-se, porm, que o modelo de democracia grego estava muito longe de ser verdadeiramente democrtico, na medida em que exclua completamente da esfera pblica mulheres, escravos e estrangeiros. Veja-se, a propsito, Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguilar. 8 ed., Lisboa: Livraria Clssica, 1954, pp. 154-175. 80 Cf. Jrgen Habermas. The Structural Transformation of the Public Sphere. Trad. Thomas Burger. Cambridge: The MIT Press, 1991, pp. 181-235.

  • 23

    democracia contempornea no , infelizmente, o cidado participativo, mas o consumidor

    aptico, que, no intervalo entre a novela e o filme enlatado, assiste no jornal da TV s notcias

    sobre o ltimo escndalo poltico. Neste contexto, a mdia assumiu um enorme poder na

    fixao das agendas de discusso social, na seleo e apresentao dos pontos de vista que

    sero ouvidos sobre estes temas, e na prpria realizao das escolhas por cada indivduo81. A

    opinio pblica, dizem os mais cticos, a opinio publicada. E a imprensa tornou-se o quarto

    poder.

    Desnecessrio enfatizar que so necessrios vultuosos recursos econmicos para a

    criao e a manuteno de veculos de comunicao, sobretudo os audiovisuais, que so os

    que maior influncia exercem. Obviamente, a imensa maioria da populao no dispe destes

    recursos. H, portanto, uma escassez intrnseca no mbito da comunicao social, ligada ao

    fato de que pouqussimos na sociedade tero as condies econmicas necessrias para se

    engajarem nesta atividade. Este dado da realidade nada tem a ver com uma outra escassez a

    das ondas eletromagnticas utilizadas pelas televises e rdios. Esta ltima est sendo

    progressivamente superada com o advento e a popularizao de novas tecnologias que usam

    plataformas diferentes, como a TV a cabo, mas a escassez decorrente da limitao e da m-

    distribuio dos recursos econmicos na sociedade no est82. Ela, infelizmente, tem razes

    muito mais perenes.

    Assim, um dos fundamentos do combate concentrao no controle dos meios de

    comunicao de massa exatamente o reconhecimento deste tremendo poder que tem a mdia

    no mundo contemporneo. Se extremamente perigoso permitir que governantes eleitos pela

    maioria controlem os debates na esfera pblica, o mesmo pode ser dito em relao a

    poderosas entidades privadas, que, por certo, tm tambm os seus interesses econmicos,

    polticos e sociais, e fatalmente manifestaro a mesma tendncia a distorcer e manipular as

    81 Cf. Gerard Leclerc. A Sociedade de Comunicao: Uma abordagem sociolgica e crtica. Trad. Sylvie Canape. Lisboa: Instituto Piaget, 1999; e Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo. Liberdade de Expresso Direito na Sociedade da Informao: Mdia, Globalizao e Regulao. So Paulo: Ed. Pillares, 2005, pp. 63-71. 82 Sem embargo, seria desonestidade intelectual no reconhecer que a popularizao da Internet tem dado uma contribuio importante para a pluralizao do discurso pblico. Como infinitamente mais barato manter um site na Internet do que um jornal, uma rdio ou emissora de TV, tornou-se mais fcil a difuso de idias. Todavia, ainda no possvel comparar a influncia da Internet com a da televiso, por exemplo, na formao da opinio pblica, sobretudo num pas como o Brasil, em que a imensa maioria da populao no possui computador, mas no h domiclio, por mais humilde que seja, sem o seu aparelho de televiso. Sobre a relao entre a difuso da Internet e a liberdade de expresso, veja-se Cass Sunstein. Republic.com. Cambridge: Harvard University Press, 2001.

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    discusses no af de favorec-los83. Vale a pena rememorar um exemplo da histria recente

    do pas para ilustrar o nosso ponto: a eleio do ex-Presidente Collor, em 1989. Collor

    concorria com Lula na poca o sapo barbudo da esquerda brasileira, temido pelos

    empresrios e pela elite econmica e Lula, por todas as pesquisas de opinio, tinha grande

    vantagem sobre o seu adversrio a poucos dias do pleito eleitoral. O Jornal Nacional, da Rede

    Globo de Televiso, que apoiava ostensivamente Fernando Collor, colocou no ar uma edio

    absolutamente parcial do debate final entre os candidatos, que s mostrava os melhores

    momentos de Collor e os piores de Lula. Resultado: espantosa virada de ltima hora. A Rede

    Globo, que tinha o monoplio de fato da televiso no pas que em boa parte ainda mantm

    praticamente elegeu o Presidente da Repblica!

    evidente que quanto mais diversificado e policntrico for o mercado comunicativo,

    menor ser o poder individual dos titulares de cada veculo, reduzindo-se significativamente

    as chances de abusos to graves. O clebre mote de Montesquieu, de que o poder freia o

    poder, tambm vale para a mdia.

    Sem embargo, o combate concentrao de poder comunicativo ou, para usar

    expresso mais tcnica, a exigncia do pluralismo externo dos meios de comunicao de

    massa , pode no ser suficiente para a promoo de um debate pblico robusto, em que os

    pobres e excludos tambm tenham como expressar os seus pontos de vista e defender os seus

    prprios interesses.

    Isto porque, num sistema em que os meios de comunicao so explorados por

    particulares com objetivo de lucro, uma srie de fatores converge para a fragilizao do

    pluralismo dos debates sociais e para o abafamento da voz dos mais pobres84. Os meios de

    comunicao audiovisual, por exemplo, na busca da maximizao da sua audincia, tendem a

    privilegiar o puro entretenimento, dando reduzido espao discusso de temas de interesse

    pblico. Por outro lado, pontos de vista no convencionais costumam ser evitados pela mdia,

    porque podem espantar anunciantes e patrocinadores. Ademais, em temas que envolvem

    questionamentos ao status quo econmico-social, a grande imprensa tende naturalmente a

    inclinar-se para o lado mais conservador, seja para proteger os interesses dos seus titulares

    como integrantes da elite, seja para evitar indisposies com os anunciantes que sustentam o

    83 Veja-se, neste sentido, a crtica radical de Noam Chomsky. Media Control. 2nd ed., New York: Seven Stories Press, 2002. 84 Cf. Owen Fiss. Free Speech and Social Structure. In: Iowa Law Review, n. 71, 1986, pp. 1405-1425.

  • 25

    seu funcionamento. E os indivduos e grupos quem no tm poder econmico ou poltico

    enfrentam obstculos praticamente insuperveis para divulgao das suas idias e pontos de

    vista85.

    Portanto, a imposio do pluralismo externo na comunicao social, com a instaurao

    da competio entre diversos veculos comerciais privados, embora extremamente relevante,

    nem sempre d conta da soluo destas patologias. A guerra pela audincia nas televises, por

    exemplo, pode at agravar o problema da escassa ateno conferida a temas de interesse

    pblico, criando um crculo vicioso de alienao e baixaria na programao86. A verdade

    que num sistema de comunicao pautado apenas pelas regras do mercado, todos os veculos

    tendero a priorizar a maximizao da sua audincia e a atrao de publicidade e patrocnio

    objetivos que nem sempre se acomodam bem com a misso democrtica da imprensa.

    Com estas afirmaes, no se est dizendo que a mdia comercial privada

    necessariamente corrompida. bvio que existem profissionais e veculos srios, cientes do

    seu papel para o funcionamento de uma democracia, e atentos em relao aos imperativos

    deontolgicos da sua atividade. Tambm no se questiona que, apesar das suas falhas, um

    sistema de comunicao social desregulado e baseado exclusivamente no mercado talvez seja

    menos ruim do que outro em que a mdia se submeta a um completo controle estatal. Mas ser

    que no h outra alternativa; um caminho do meio entre Cila e Cribdes, que possa emancipar

    a liberdade de comunicao tanto do controle estatal, como dos interesses privados

    subjacentes ao mercado?

    Esta questo tem provocado respostas muito divergentes. Como vimos no item

    anterior, nos Estados Unidos h uma averso muito maior interveno do Estado que vise a

    pluralizar e fortalecer o debate pblico do que na Alemanha e na Frana. O tema, por outro

    lado, reveste-se de uma dimenso ideolgica evidente. De um modo geral, a direita mais

    refratria a esta interveno estatal do que a esquerda, que, por sua vez, mostra uma maior

    desconfiana em relao ao potencial democratizador do mercado.

    Na nossa opinio, a interveno estatal visando a democratizar a esfera comunicativa

    indispensvel. Mais que uma faculdade, ela deve ser concebida como um verdadeiro dever do

    Estado, sobretudo em sociedades desiguais como a brasileira, em que os meios de

    85 Cf. Stephen L. Carter. Technology, Democracy, and the Manipulation of Consent. In: Eric Barendt (Ed.). Media Law. New York: New York University Press, 1993, pp. 151-177. 86 Cf. Pierre Bourdieu. Sur La Tlvision. Paris: Liber, 1996.

  • 26

    comunicao social se encontram excessivamente concentrados nas mos de uma pequena

    elite, e o mercado no proporciona aos pobres qualquer acesso real mdia. Esta interveno

    no opera contra, mais a favor da liberdade de expresso, que no deve, portanto, ser

    concebida como um mero direito negativo a uma absteno estatal.

    Sem embargo, preciso redobrada cautela para que esta interveno estatal no se

    torne um instrumento de censura ou de favorecimento aos pontos de vista preferidos pelos

    governantes. O papel do Estado no deve ser o de rbitro no mercado de idias ele no tem

    nenhuma iseno para isto , mas o de promotor do pluralismo na esfera pblica.

    b) Liberdade de Expresso, Autonomia Individual e o Estado Ativista

    A autonomia individual outro valor fundamental que justifica a proteo reforada

    conferida liberdade de expresso. A premissa bsica a de que a capacidade do ser humano

    de interagir comunicativamente com o seu semelhante constitui uma necessidade

    absolutamente vital. Por isso, o direito de cada um de expressar suas idias e opinies e de

    ouvir aquelas expostas pelos outros representa uma dimenso essencial da dignidade humana.

    Privar o indivduo destas faculdades comprometer a sua capacidade de realizar-se e de

    desenvolver-se como pessoa humana87. Trata-se, portanto, de uma das mais graves violaes

    autonomia individual que se pode conceber, uma vez que a nossa capacidade de comunicao

    com o outro certamente um dos aspectos mais essenciais da nossa prpria humanidade88.

    Alguns autores associam a preocupao com a autonomia individual em matria de

    liberdade de expresso viso libertria sobre este direito, que refratria a qualquer

    interveno estatal na seara comunicativa89. Esta viso decorre, na nossa opinio, de uma

    idia muito empobrecida sobre a autonomia comunicativa, que a circunscreve figura do

    87 Cf. Thomas Scanlon. A Theory of Freedom of Expression. In: Ronald Dworkin (Ed.). The Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 1977, pp. 153-172; Martin Redish. The Value of Free Speech. In: University of Pennsilvania Law Review, n. 130, 1982, pp. 591-629; e Thomas I. Emerson. The System of Freedom of Speech. New York: Vintage Books, 1970, p. 06. 88 Cf. Edilsom Farias. Liberdade de Expresso e Comunicao. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 66-67. 89 Um exemplo claro deste engano fornecido pelo magistrio de Owen Fiss um defensor da teoria de que o nico fundamento da liberdade de expresso seria a promoo do autogoverno coletivo. Para Fiss, a nfase na autonomia individual em matria de liberdade de expresso redundaria numa proteo focada exclusivamente nos emissores da comunicao e resumir-se-ia a uma limitao ao poder do Estado. Cf. Owen Fiss. A Ironia da Liberdade de Expresso, Op. cit., pp. 27-31.

  • 27

    emissor do discurso, ignorando completamente a autonomia do receptor. Ademais, ela

    equipara autonomia simples ausncia de constrangimentos impostos pelo Estado ao

    individual, concebendo-a como uma mera liberdade negativa, no sentido atribudo por

    Isaiah Berlin90, abstraindo-se de outros obstculos que podem impedir o exerccio da

    liberdade de expresso. Porm, se compreendermos corretamente a idia de autonomia

    individual na esfera comunicativa como algo ao mesmo tempo (a) relacionado a todos os

    partcipes dos dilogos sociais, e (b) associado real capacidade de cada um de se comunicar,

    veremos que ela no s compatvel, como, mais que isto, at reclama uma postura no

    absentesta dos poderes pblicos.

    Em relao autonomia individual dos receptores, a idia essencial a de que deve ser

    reconhecida a cada ser humano a capacidade de decidir o que vai ouvir, ler, ver ou aprender.

    Assim, no lcito nem ao Estado nem a nenhuma outra fora social, impedir que cidados

    entrem em contato com idias, obras e pontos de vista, por consider-los errados ou perigosos.

    Trata-se de assumir uma viso no-paternalista, que parte da premissa de que o ser humano

    adulto dotado de razo e discernimento, sendo capaz de avaliar autonomamente o valor das

    manifestaes com que se depara, e de discernir o certo do errado para formar as suas prprias

    convices. Como ressaltou Ronald Dworkin, o Estado insulta seus cidados e nega a eles a

    sua responsabilidade moral, quando decreta que no se pode confiar neles para ouvir

    opinies que possam persuadi-los a adotar convices perigosas ou ofensivas.91.

    Na verdade, esta garantia da autonomia para o receptor das informaes liga-se

    concepo de que quanto mais se assegura a cada um o acesso a opinies e informaes

    diferentes, mais se lhe d a chance de realizar escolhas reais na vida, ao invs de

    simplesmente percorrer com automatismo os caminhos pr-definidos pela sociedade. Por isso,

    o pluralismo de idias e informaes no importante apenas para que o cidado atue de

    forma consciente na esfera pblica, no autogoverno da sua comunidade poltica. Ele

    igualmente relevante para que o indivduo possa traar os seus planos de vida e realizar

    autonomamente as suas escolhas existenciais na esfera privada. Portanto, a atuao positiva 90 Liberdade negativa, para Berlin, a ausncia de impedimentos para a ao humana e liberdade positiva a real possibilidade de agir. O filsofo liberal defendeu uma concepo negativa da liberdade, manifestando o temor de que a promoo da liberdade positiva pudesse servir de instrumento para o arbtrio estatal e aniquilao da autonomia individual. Veja-se, a propsito, Isaiah Berlin. Dois Conceitos de Liberdade. In: Estudos sobre a Humanidade. Trad. Rosaura Eichenberg. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2002, pp. 226-272. 91 Ronald Dworkin. Why Speech Must be Free. In: Freedoms Law: The Moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 200.

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    do Estado que vise a promover o pluralismo no mbito comunicativo plenamente

    compatvel com o objetivo de promoo da autonomia individual.

    Mas no s. Essa afirmao aplica-se no apenas autonomia dos receptores do

    discurso, mas tambm autonomia dos seus emissores. Isto porque, se partirmos da premissa

    de que a expresso das prprias idias e sentimentos to importante para o indivduo,

    constituindo-se num dos aspectos mais centrais da proteo da dignidade humana, torna-se

    necessrio assegurar a possibilidade real de exerccio deste direito. Ocorre que numa

    sociedade desigual como a brasileira, em que os meios de comunicao so explorados por

    entidades privadas visando o lucro, as maiores barreiras existentes para o exerccio da

    liberdade de expresso no provm do Estado, mas da prpria estrutura social. Neste

    contexto, se o Estado quiser levar a srio a liberdade de expresso o que ele obrigado a

    fazer, por imperativo constitucional a inrcia no basta. Cumpre-lhe, ao contrrio, agir

    positivamente para, na medida do possvel, remover aquelas barreiras, buscando assegurar a

    todos uma possibilidade no meramente fictcia, mas real, de se exprimirem. Em outras

    palavras, a liberdade de expresso no pode ser privilgio da pequena elite que possui os

    jornais, emissoras de rdio e de televiso, ou que tem os recursos para adquirir o tempo ou o

    espao nestes veculos necessrios para a exposio das suas idias. Ela deve valer para todos.

    E sem a interveno do Estado, ela nunca valer para todos.

    Esta concepo de que a autonomia real dos indivduos de carne e osso depende de

    atuaes positivas do Estado no privilgio da liberdade de expresso. Pelo contrrio, trata-

    se de um fenmeno mais amplo, reconhecido no plano da filosofia poltica92, da economia93, e

    da prpria dogmtica dos direitos fundamentais94. Hoje, superou-se a concepo liberal-

    92 Veja-se John Rawls. Liberalismo Poltico. Trad. Sergio Ren Manero Baez. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1995, pp. 299-305; Charles Taylor. Whats Wrong with Negative Liberty. In: Alan Ryan (Ed.). The Idea of Freedom. New York: Oxford University Press, 1979, pp. 175-193; Jeremy Waldron. Homelessness and the Issue of Freedom. In: Robert Goodin & Philip Pettit. Contemporary Political Philosophy: An Anthology. Oxford: Blackwell Publishers, 1997, pp. 446-462. 93 Cf. Amartya Sen. Desenvolvimento como Liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 135-172. 94 Cf. Dieter Grimm The Protective Function of the State. In: Georg Nolte (Ed.). European and American Constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2005, pp. 137-155; Jos Carlos Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998, pp. 161-169; e Ingo Wolfgang Sarlet. A Eficcia dos Direitos Fundamentais. 5 ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 211-217.

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    burguesa dos direitos fundamentais, que os tinha como meros limites atuao do Estado95.

    Reconhece-se que mesmo os direitos individuais clssicos, como a liberdade de expresso,

    dependem da atuao do Estado, tanto para proteg-los de ameaas provenientes de terceiros,

    como para assegurar os pressupostos materiais que tornem faticamente possvel o seu

    exerccio. No fosse assim, tais direitos tornar-se-iam promessas vs para os mais fracos,

    numa sociedade marcada por relaes sociais to assimtricas e opressivas. O seu papel

    emancipatrio seria esvaziado e eles acabariam prestando-se funo inglria de

    instrumentos de legitimao do status quo.

    Enfim, a autonomia individual um valor essencial no regime da liberdade de

    expresso. Este valor, corretamente compreendido, aponta no para uma leitura absentesta da

    liberdade comunicativa, mas para o reconhecimento da necessidade de interveno estatal que

    vise a pluralizar as vozes na arena pblica e a assegurar a possibilidade real de expresso aos

    integrantes das camadas subordinadas da sociedade.

    4. A Liberdade de Expresso e o Papel Promocional do Estado na Constituio de 88

    No faltam na Constituio de 88 preceitos protegendo a liberdade de expresso.

    Temos, no art. 5, a liberdade de manifestao do pensamento (inciso IV), a liberdade de

    expresso de atividade intelectual, artstica, cientfica e de comunicao (inciso IX), e o

    direito ao acesso informao e a garantia do sigilo da fonte (inciso XIV). No bastasse, o

    constituinte ainda consagrou em um captulo especfico do texto magno a comunicao

    social, em que repetiu a garantia da liberdade da manifestao do pensamento, da criao, da

    expresso e da informao (art. 220, caput), proibiu a edio de leis contendo embarao

    liberdade de informao jornalstica (art. 220, 1), e ainda vedou qualquer censura poltica,

    ideolgica e artstica (art. 220, 2).

    Esta insistncia no foi gratuita. Por um lado, ela representou uma reao contra os

    abusos perpetrados pelo regime militar, cuja repetio o constituinte quis a todo custo evitar.

    E, por outro, ela demonstra a enorme importncia atribuda a este direito fundamental no

    sistema constitucional brasileiro.

    95 Cf. Daniel Sarmento. Direitos Fundamentais e Relaes Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 17-67.

  • 30

    De todo modo, para compreender o modelo constitucional brasileiro sobre liberdade

    de expresso, parece til relacion-lo com a concepo geral sobre direitos fundamentais

    subjacente Carta de 8896. E no preciso muito esforo para notar que esta concepo

    tudo, menos libertria. Muito pelo contrrio, ela parte da premissa de que as violaes aos

    direitos fundamentais no so produzidas apenas pela ao do Estado, mas decorrem muitas

    vezes da sua inrcia. A idia bsica a de que, numa sociedade injusta e desigual, amarrar o

    Estado e confiar na mo invisvel do mercado no uma boa soluo para garantia do respeito

    dignidade humana dos mais fracos. Por isso, no sistema constitucional brasileiro, entende-se

    que o Estado tem obrigaes positivas mesmo em relao aos direitos individuais clssicos,

    que no podem mais ser concebidos como simples direitos de defesa em face dos poderes

    pblicos. Assim, dever do Estado no s se abster de violar estes direitos, como tambm

    agir positivamente, seja para proteg-los diante de ameaas representadas pela ao de

    terceiros, seja para assegurar as condies materiais mnimas necessrias viabilizao do seu

    exerccio pelos mais pobres.

    Na verdade, o compromisso maior da Carta de 88 no com a manuteno do status

    quo, mas com a mudana em direo construo de uma sociedade mais justa, livre e

    igualitria. Isto se percebe facilmente, por exemplo, na leitura dos objetivos fundamentais da

    Repblica, enunciados no art. 3 do texto magno, que devem servir de guia na interpretao

    dos demais preceitos da Constituio. O constituinte partiu da inquestionvel premissa

    emprica infelizmente inalterada desde 1988 de que a estrutura social brasileira injusta e

    opressiva em relao aos pobres e integrantes de grupos desfavorecidos, e decidiu que este

    estado de coisas deveria ser energicamente combatido pelo Estado. Este claro compromisso

    com a transformao social tem de ser levado em considerao na interpretao e aplicao

    dos preceitos da Lei Maior, e tambm, como no poderia deixar d