Klauss Vianna Estudos Para Uma Dramaturgia (Neide Neves)

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ESTUDOS PARA UMA DRAMATURGIA CORPORA

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Klauss ViannaEstudos para uma Dramaturgia Corporal

KLAUSS VIANNA: ESTUDOS PARA UMA DRAMAIITUGIA CORPORAL Neide Neves Capa: aeroestdio Preparao Composio: Coordenao de originais: Jaci Dantas de Almeida Dany Editora Ltda. editorial: Danilo A. Q Morales Reviso: Maria de Lourdes

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida expressa da autora e do editor.

ou duplicada

sem a autorizao

2008 by AutoraDireitos para esta edio

CORTEZ EDITORA Rua Monte Alegre, 1074 - Perdizes 05014-001 - So Paulo-SP

TIl!.: (11) 3864-0111

Fax: (11) 3864-4290

e-mail: [email protected] www.cortezeditora.com.br Impresso no Brasil - agosto de 2008

Agradecimentos

A Klauss, mestre, pelo legado. A Rainer, professor, pelas aulas de cada dia e por acreditar. A Angel, mestra e amiga, pelo incentivo incondicional. A Christine Greiner, orientadora, pela dedicao e carinho.

A Helena Katz, por me receber de braos abertos e pela leitura generosa do trabalho. A todos os professores, por alargar meus horizontes.

Comisso de Pesquisa do Conselho de Ensino e Pesquisa CEPE - da PUC/SP, pelas horas-pesquisa Mestrado, concedidas durante maior dedicao escrita da dissertao tou neste livro. A Cleide Marins, pela leitura carinhosa, conversas. A Humberto Tavolaro Neto, companheiro de jornada, pelo competente e pelas de Capacitao Docente de mestrado que resulo ano de 2004, me possibilitando

amor, pela pacincia e apoio constantes. A Eduardo, Henrique e Camila, filhos queridos "empresta-

dos", por partilharem

sua alegria e o computador. e por acreditar.

A Julieta Calazans, amiga, pelo entusiasmo

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s colegas na Tcnica Beth Bastos, Jussara Miller, Luzia Carion, Marins Calori, Zlia Monteiro pela torcida e por acreditarem e ajudarem a manter viva a pesquisa de Klauss Vianna. Aos meus alunos de sempre, pela sua contribuio para o meu aprendizado. A todos aqueles que foram tocados pela tcnica e continuam a lev-la para a vida e para os palcos. queles que direta ou indiretamente contriburam para que este estudo chegasse at aqui.

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Sumrio

ApresentaoA ngel Vianna 11

PrefcioHelena Katz .......................................................

13 17 21 35 35 38 44 53 57 57 64 67 72

Introduo............................................................................... Um pouco da vida de K1auss Vianna Captulo I - Conscincia corporal e movimento............... 1. A proposta..................................................................... 2. Uma leitura do pensamento de K1auss Vianna

3. Prtica e questes - uma hiptese 4. Uma releitura Captulo 11 - Estabilidade e instabilidade 1. Dinmica do crebro e do movimento........................ 2. A emergncia da novidade...........................................

3. A TNGS: os processos seletivos dos padres............... 4. Memria como assentamento de mudanas

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Captulo IH - A emergncia 1. Consciente

da informao

77 77 83 91 95 101 107 111 111 III

e inconsciente

2. Ateno e tempo presente 3. Ateno e novidade 4. A inteno do movimento Concluso................................................................................ Bibliografia.............................................................................. Videografia Hemerografia Pesquisa na internet..........................................................

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Apresentao

Nuvens sempre me encantaram, um sonho transformador

pela cor, pela forma, pelo

volume - densas, leves, formando linhas, imagens ... tudo como como o movimento.

Neide Neves se mantm firme em suas convices e com um trabalho constante de conscincia trumento fundamental turar, construir conscincia e elaborao didtica desse insque tomamos poderemos O trabalho a indique o corpo. No fcil idealizar, estru-

e fazer ter vida til. Do momento

do nosso corpo e das suas imperfeies precisa do movimento.

utilizar melhor as suas possibilidades, gastando o mnimo de energia e tendo uma representao com as articulaes despertar vidualidade da sensibilidade e a capacidade resulta em sensao de extremo desafogo. O corporal promove a integrao, de transformar e ser transformado.

Corpos pensantes

livres para imaginar e criar a si prprio na rela-

o com o outro e com o mundo. Este livro resultado da dissertao de mestrado e, antes, da parceria de Neide e Rainer que por anos se dedicaram estruturao didtica dessa tcnica, mente pesquisados imprimindo marcas ao trabalho dos Vianna. Neide prope uma relao entre os conceitos exaustivapor KIauss Vianna desde a dcada de 50 do corpo e da criasuas descobertas no campo do funcionamento

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o de movimentos - e os recentes estudos do neurologista Gerald Edelman. Uma traduo entre diferentes campos do saber (corpo pelo vis da dana e da neurologia) que analisa as compatibilidades de pensamentos desses dois pesquisadores. As nuvens sempre me encantaram. Neide sempre me encantou; recriando com repercusso nos campos educacionais e artsticos uma prtica em contnua transformao. Rio de Janeiro, 8 de maio de 2008.A ngel ViannaProfessora, coregrafa, pesquisadora de dana e diretora da Faculdade Angel Vianna, notrio saber como Doutora em Dana pela Universidade Federal da Bahia, UFBA.

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Prefcio

Nas pesquisas que vm surgindo em torno de Klauss Vianna, a dissertao de Mestrado que Neide Neves defendeu na PUC-SP, e que agora, felizmente, se transforma em livro, ocupa um lugar especial. Tem, entre as suas qualidades, a de sinalizar para o papel do ps-graduao brasileiro na construo da dana como uma rea de conhecimento. Ao fazer com que seus 20 anos de atividades prticas encontrassem a bibliografia trabalhada por sua orientadora, Profa. Dra. Christine Greiner, Neide pde fundamentar cientificamente o que to bem j conhecia: os ensinamentos de Klauss Vianna. esse trnsito desejvel e necessrio entre dana e universidade que irriga os dois setores com o melhor de cada um. A articulao prtica-teoria que construiu tem o mrito de tratar do "como" daquilo que j conhecia profissionalmente. Tbmando o cuidado de avisar que no buscou explicar o discurso de Klauss porque ele no estava preocupado em desenvolver uma teoria, Neide Neves consolidou seus argumentos sobretudo com os escritos do neurocientista Gerald Edelman, Prmio Nobel de 1972 em Fisiologia da Medicina. Usa a sua descrio do funcionamento do crebro (a TNGS - a Teoria da Seleo do Grupo Neuronal) para entender a Tcnica Klauss Vianna como um mtodo de educao somtica.

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A TNGS de Edelman nos explica que alguns padres so reforados pela experincia, enquanto outros so eliminados, em um processo de seleo que lembra a evoluo. No toa, a TNGS tambm conhecida por Darwinismo Neural. Com ela, conseguimos compreender sem um homnculo como o crebro reconhece objetos do mundo atuando como um fantasma a relatar o que se conexes entre grupos neuronais as impresses e a coerncia, a consistncia

observa e sem precisar herdar um catlogo de padres. Edelman prope que so as reentrantes em diferentes a continuidade do crebro. Neide Neves prope que lia nfase dada por Edelman aos aspectos dinmicos da morfologia cerebral como geradores da mente ajuda a esclarecer o pensamento de KIauss sobre o movimento". com ela que trabalha dois eixos que identifica como fundamentais na prtica de KIauss: liaquesto da coexistncia, no corpo, de estabilidades emergncia movimento". Sua pesquisa colabora tambm para esclarecer temas que indispensveis a quem faz e se interessa por dana. Quando traz Antonio Damasio para dialogar com Gerald Edelman, permite que velhos modos de falar sobre imagem mental possam ser colocados na lata de lixo da histria. Um timo exemplo dessa faxina epistemolgica est tambm na sua apresentao das relaes entre a intencionalidade para KIauss. A pesquisa partiu das hipteses de que as instrues nam como ignio para o movimento, o dos padres posturais e de movimento, estimulam funcioda qual Edelman fala o conceito de inteno e a instabilidades e a questo da construo e da da informao a partir das conexes que resultam no partes do crebro que coordenam da experincia. A reentrncia

dos diferentes sentidos e promovem mo bsico da recategorizao,

constitui o mecanisde atuao

o processo fundamental

so eficazes na flexibilizaa percep-

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o dos diferentes movimento

estados

corporais

e a disponibilidade expressivo.

para o

novo, e podem promover no movimento

o acesso a novas conexes E chegou con-

neurais que resultam

cluso de que um trabalho corporal que tenha como objetivo construir um corpo disponvel fatores fundamentais; movimento, e o espao (ambiente). Completando o rico conjunto de reflexes que elaborou, em para o movimento (percepo), deve incluir quatro os meios (sensao, o terreno

imagem mental, conceito), o tempo (ateno/pesena)

um texto claro e consciso, Neide Neves ainda agrega uma breve biografia de Klauss Vianna que ajuda o leitor que no teve o privilgio de conviver com esse mestre, que foi um vulco transformador de todas as paisagens por onde passou, a ter um instrumento para situar um pouco da sua grandeza. A importncia da distribuio para a sociedade, agora na for-

ma de livro, de uma dissertao veu, deve ser celebrada solidar a pesquisa

como a que Neide Neves escre-

como mais um dos marcos que iro con-

em dana no nosso pas.

Helena KatzDoutora em Comunicao e Semitica, Professora do Curso de Comunicao das Artes do Corpo da PUc-sp e crtica de dana deO Estado de S. Paulo.

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IntroduoCheguei PUC-SPtrazendo muitos anos de experincia e encantamento com a tcnica desenvolvida por Klauss Vianna. Esse trabalho envolve a necessidade de disponibilidade para o autoconhecimento e para a mudana e a compreenso de que nada no corpo se faz da noite para o dia, neste ritmo que a vida, hoje, parece querer impor a tudo. O tempo do corpo outro. Muito mais prximo dos longos perodos que levam os nossos hbitos de movimento para se implementarem e para as transformaes se tornarem possveis. o tempo da evoluo em nvel individual. Thmbm foi grande o encantamento ao ver que as perguntas que andavam me incomodando e exigindo respostas poderiam ser pesquisadas com a ajuda de estudiosos contemporneos do crebro humano, do comportamento, da cultura, das artes. E aumentou quando me deparei com estudos de Gerald Edelman. Sua viso do todo corpo-mente combina perfeitamente com a maneira como Klauss via o corpo e a expresso. Edelman aponta para o carter dinmico e criativo do funcionamento cerebral, que, na estreita relao com os outros sistemas corporais, promove a emergncia das propriedades mentais e a possibilidade de respos-

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tas corporais adequadas, criativas aos estmulos presentes, prio corpo e do mundo, desenvolvidas O estudo da memria

do pr-

durante a experincia. de mudanas indiv-

como assentamento

como prope Edelman - mostra como somos criativos por constituio e como nossa permanncia duos e espcie dependem nos permitam no mundo adaptativas nos reconhecer, e evoluo enquanto tanto da estabilizao de padres que que surgem as respostas

e ao mundo que nos cerca, quanto e promover

da flexibilidade para lidar com as novas informaes e no prprio necessrias. exatamente organismo

Klauss pesquisava des e instabilidades sem a emergncia padres individuais o de movimentos. dualidades

esta relao entre estabilidaque possibilitasdos cria-

no corpo. Buscava instrues de postura e movimento Interessava-se

do novo, a flexibilizao e transformao necessrias pelo afloramento

das indivi-

e da diversidade na expresso atravs do movimento. consciente, fruto da ateno, acionaindependentecoladas no modo de funcionamento e comunicao,

Sabia que neste movimento, do por ignies especficas, corporal, emergem mente da vontade. Exatamente

informaes

a est o diferencial

no trabalho

proposto

por

Klauss. Nele, a forma e a expresso no caminham mas entrelaam-se, compreendido

em paralelo, O corpo,

numa rede de relaes dinmicas. a matria-prima

como um sistema, organizado no seu funcionamenda pesquisa na As ignies utilizadas so pinadas na propriocepo,

to, em relao com o ambiente, para a criao de movimentos.

na morfologia, na fisiologia, na percepo, todo. Muitos profissionais

mecnica corporal, com a certeza de que desta forma aciona-se o

esto, hoje, trilhando este caminho aberque pensei, quando busquei que usamos na prti-

to por Klauss. E neles tambm

explicaes cientficas para procedimentos

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ca, com tantos bons resultados. bom - para dizer o mnimo -, saber que aquilo em que acreditamos no apenas uma metfora potica, fruto da imaginao de um grande artista e professor. Mas, sim, uma linda e forte intuio, aliada a muita pesquisa, sobre uma realidade que ele no teve tempo de ver explicada nos livros.

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Um pouco da vida de Klauss Vianna"No decore passos, aprenda um caminho"Klauss Vianna

Nascido em 12 de agosto de 1928, em Belo Horizonte, Klauss foi criana solitria e observadora, principalmente do movimento executado pelo corpo das pessoas, como conta em seu livro. Gostava de ler, e seu primeiro interesse nas artes cnicas foi o teatro. Atuava nas peas escolares e escrevia seus prprios textos. Na Belo Horizonte dos anos 1940, as opes para um rapazinho que se interessava por arte no eram muitas. Mas, aps uma temporada do Bal da Juventude, dirigido por Igor Schwezoff, fIxou-se, na cidade, Carlos Leite, integrante dessa companhia e solista do Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ele criou a primeira escola de dana clssica de Belo Horizonte, no prdio da UNE - Unio Nacional dos Estudantes. Com esse professor, Klauss iniciou sua formao, em 1944. Danou no Bal Minas Gerais, tambm criado por Carlos Leite, com bailarinos como Dcio Otero, Sigrid Hermany e Maria Angela Abras (Angel Vianna), com quem viria a se casar e ter um fIlho, Rainer Vianna, que tambm se tornaria danarino, coregrafo e professor.

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Nesta poca, freqentava Artes. Acontecia movimento vimento, -

o atelier do pintor e amigo Alberto

da Veiga Guignard, ento diretor da recm criada Escola de Belasde posar para o artista e, nestas ocasies, aprono prprio corpo, a inteno anterior ao do corpo anterior sensrio-motora execuo do mo intencionalidade Nesta com de Castro, Yara veitava para pesquisar,

- a preparao ou seja, a resposta

idia que continuaria

desenvolvendo

no seu trabalho.

poca, teve contato Thpinamb o movimento bre a dana. Seu interesse culturas, prenncio

com artistas

como Amilcar

e Maria Helena Andrs, que muito contriburam modernista de criao era incentivada, aprendeu

em Minas. Segundo ele, neste ambiente muito so-

onde a liberdade

pelas artes plsticas sempre se manteve, nas pinturas os msculos

"Dese es-

cobre Rafael, Da Vinci, Modigliani, observando, as articulaes,

e o apoio dos corpos, num

do que seria sua prpria tcnica" (Thvares, 2002, p. 15). dcada, danava com Angel pelo interior dinheiro de

Ainda nessa der estudar

Minas Gerais a coreografia seguiu concretizar o mundo.

"Apache" e juntava

para po-

em So Paulo, com Maria Olenewa, em 1948. Com a mestra,

sonho que con-

dizia ter aprendido

no s a tcnica, mas a refletir sobre a arte e a relao desta com Por ocasio da morte de sua me, voltou a residir em Belo Horizonte. Em 1952, escreveu Horizonte, seu primeiro ensaio, publicado que pretendia na revista fazer na

na capital de Minas, "Pela criao de um Bal Brasilei-

ro", em que lana as bases da renovao

dana e cria o conceito do "movimento-idia". "O que eu quero conseguir de uma concepo o virtuosismo fundamental o que chamo de movimentoe realizao se faa a partir este movimen2002, p. 128). e criadora. No basta a tcnica ou

idia, isto , um bal cuja construo

como soluo. preciso preencher

to de uma idia criadora" (Vianna, apud Alvarenga,

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Nesse mesmo ensaio coloca sua inteno de aplicar esse conceito dana brasileira: A grandeza morrer "... procurar brasileiras urgentemente uma adaptano prprio nosso bal sentido o do bal s caractersticas de cultura, tradio e vida.

do bal russo se deve a esta participao isto com urgncia,

vver da Rssia. Se no fizermos taes para uma elite acadmica artstico e cultural".

antes mesmo de nascer, ou ento se reduzir a represene balofa, sem qualquer prpria,

Segundo K1auss, faltava expresso vimentao que partisse

sentido dana, e numa modo prexpressiva

no Brasil. "Este sentido, buscou-o em suas temticas de uma necessidade prio argumento, ou seja, o movimento

que surge como expresso procurando moderna. aliar a linExemplos

de uma idia" (Alvarenga, 2002, p. 131). Iniciou suas experincias guagem clssica a elementos desses trabalhos coreogrficas da linguagem

so "Rond Capriccioso" e "Ciranda", de 1953.

"... torna-se patente o talento criador de K1auss Vianna. Sua coreografia excelente impe-se-nos pela inovao, coisa to rara no ballet"l (Fonseca, apud Alvarenga, 2002, p. 126). Como integrante inusitados do Bal de Minas Gerais, durante uma viano

gem de Carlos Leite Europa, em 1955, Klauss montou trabalhos para homenage-lo. Eram "Cobra grande", baseado poema "Cobra Norato", de Raul Bopp, "Desfile de modas", e a primeira verso de uma coreografia que marcaria poca na cidade, "O caso do vestido", tambm em homenagem foi destacado a Carlos Leite. O evento como: de bal com e contra um pelo jornal Dirio de Minas, com manchetes

"Pela primeira vez, em Belo Horizonte, um espetculo coreografia moderna"; idealistas"; "Reao contra a falta de originalidade

"Arrojada iniciativa de um grupo de jovens

1. Artigo da reprter Ione Fonseca, na revista Horizonte, s/n., 1953.

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panorama

desolador, Minas segue o exemplo de So Paulo". Com iniciou sua carreira profissional.

essas coreografias,

Em 1955, foi lanada a revista literria Complemento, por Silviano Santiago, Theotnio dos Santos Junior, Ary Xavier, Ezequiel Neves e Heitor Martins. Esta revista deu origem ao ttulo de "Gerao Complemento", queles que participaram do movimento renovador que impulsionou as artes mineiras, no final dos anos 50 e incio dos 60, marcando esta fase de grande efervescncia das idias, em Belo Horizonte. O movimento era composto por profissionais das reas de pintura, como Augusto Degois, Wilma Martins e Frederico de Morais; msica, como Isaac Karabtchevsk; cinema, como Maurcio Gomes Leite e Flvio Pinto Vieira; teatro, como Carlos Kroeber, Jonas Bloch e Joo Marschner; dana, como Dcio Otero, K1auss e Angel Vianna; literatura, como Ivan Angelo, Affonso Romano, Pierre Santos e Thresinha Alves Pereira; e muitos outros. Destas diferentes reas, vinham vrios estmulos, que compunham uma maneira de pensar e criar que procurava uma expresso individual fundada numa modernidade e com esprito vanguardista. no pensamento Neste movimento, brasilidade, encontravam-se ideais de liberdade, individualidade, de K1auss. que se podem reconhecer

Na dana o destaque na poca foi K1aussVianna, um gnio inovador que at hoje continua fazendo coisas importantes. E neste perodo tirou quase tudo do nada, pois no havia feito cursos no exterior, tinha poucas oportunidades de assistir acontecimentos de vanguarda mas tinha, e tem ainda, uma criatividade indescritvel (entrevista da ex-bailarina Lcia Helena Monteiro Machado - Duda Machado -, sobre a "Gerao Complemento", concedida ao jornal Estado de Minas, em 10 de julho de 1988). A partir de 1958, com a criao da escola e do seu grupo amador, o Bal K1auss Vianna, e juntamente pde aprofundar suas pesquisas com Angel Vianna, K1auss e pedaggicas. coreogrficas

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Atravs da escola, e posteriormente com a criao, pelo casal, do Bal KIaussVianna (BKV) o bal moderno em Belo Horizonte en, contrar seu primeiro norte, lanando as bases de toda uma grande construo (Alvarenga,2002, p. 118). Na sua busca por uma linguagem brasileira de dana, Klauss procurou romper com o bal clssico nos seus moldes europeus e com a utilizao do folcore como expresso de uma dana brasileira. Utiliza, ento, a tcnica clssica e a cultura nacional como fontes de inspirao, ressignificando-as. Nessa fase mineira, Klauss realiza muitas coreografias, dentre as quais podemos destacar algumas em que as suas propostas de renovao so mais evidentes. Thmas literrios nacionais sero a tnica nessa fase. "O caso do vestido", danado utilizando a dinmica das palavras do poema homnimo de Carlos Drummond de Andrade, narrado pelo coro de alunos do Thatro Experimental, como uma orquestra de vozes, em 1959; "Arabela,a donzela e o mito", sobre o romance ''Amanuense Belmiro", de Cyro dos Anjos, danado ao som de roncos do motor de um automvel, barulhos de uma mquina de escrever, afinao de um violino e batidas de pandeiro, em 1959; "Aface lvida", sobre poema homnino de Henriqueta Lisboa, com msica de Ernesto Schrman, interpretada em vocalise por Maria Lcia Godoy, na qual foi pesquisada a gestualidade do homem mineiro, em 1960. No 10 Encontro Nacional de Escolas de Dana, em Curitiba, organizado por Pascoal Carlos Magno, em 1962, o Bal Klauss Vianna participou apresentando uma aula aberta de bal e o espetculo "Marlia de Dirceu", "ltima coreografia de vulto para o gru-

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po - antes da sua dissoluo - e um ponto de slida sustentao da proposta (Alvarenga, do artista para a criao de um ballet brasileiro" 2002, p. 151).

Thnto a aula - antecedida por uma parte sonora, e que j incorporara, no aquecimento, elementos de yoga com ps descalos quanto a coreografia - que trazia uma diagonal inteira com o simples deslocamento de uma santa, andando como se estivesse num andor - causaram furor no evento (Thvares, 2002, p. 22). Neste encontro, KIauss conheceu Rolf Gelewsky,2 ento direFederal da Bahia, que o

tor da Escola de Dana da Universidade

convidou a fundar o setor de bal clssico naquela faculdade. KIauss e Angel trabalharam cultura baiana o sensibilizou, conheceu boas qualidades, nuou seus estudos de anatomia do, da faculdade de Odontologia, no movimento. sentimentos em Salvador de 1962 a 1964. A na qual retrabalho corporal. L, contino s a denomicom

assim como a capoeira,

enquanto

com o professor Antnio Brochaque trabalhava

nao dos ossos, mas tambm sua funo e, como a dos msculos, E, ainda, relacionava a posio do esqueleto e dos ossos emoo.

'Tambm na Bahia, por ocasio de uma greve na universidade, KIauss despertou do artista na realidade para a importncia da insero consciente que o cerca. "Minha noo de arte e de disso-

dana mudou muito a partir da: no s danar, preciso toda uma relao com o mundo nossa volta. [...] impossvel ciar vida de sala de aula" (Vianna, 1990, p. 31). No final de 1964, a famlia mudou-se para o Rio de Janeiro,

onde KIauss comeou dando aulas de bal. Em 1966, integrou-se

2. Bailarino alemo, discpulo de Mary Wigman (1886-1973), aluna e assistente de Rudolf Laban (1879-1958).

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ao grupo de professores lados do Rio de Janeiro, pode desenvolver

da escola dirigida por Thtiana Leskowa. A onde escolheu dar aulas para crianas e

partir de 1968 e por 6 anos, lecionou na Escola Municipal de Baia fase ldica da sua tcnica.

Um perodo de intenso trabalho em teatro iniciou-se, em 1968/ com o convite para fazer a coreografia da montagem /IApera dos trs vintns", de Bertolt Brecht e Kurt Weill, com direo de Jos Renato e atores como Du1cina de Moraes, Manlia Pera, Oswaldo Loureiro e Jos Wi1ker. Sempre contou com a ajuda de Angel, que demonstrava borao atores. importante ressaltar como a assimilao de Klauss Vianna pelo

fisicamente

suas sugestes

e que colaborou na elade trabalho com os

dos princpios

de sua metodologia

teatro carioca ocorreu num momento oportuno, de transio entre a primazia da palavra, outrora consagrada como o elemento mais importante da comunicao teatral, e as novas propostas de interpretao e encenao que se propagaram a partir da dcada de 1960/ com nfase sobre a linguagem gestual, o que contribuiu para o advento de uma funo - o preparador corporal - diferente do coregrafo tradicional, pois oferecia subsdios ao ator, revelandolhe seu prprio corpo e instrumentalizando-o para interpretar as novas concepes do teatro (Thvares, 2002). Esta fase de muitas montagens de preparao em teatro avanou pelos anos do seu trabalho

1970 e 1980 e foi marcada pelo desenvolvimento

corporal de atores. Algumas destas peas so: com direo

/IRada Viva", de Chico Buarque de Hollanda, vero, Heleno Prestes e outros, em 1968;

de Jos Celso Martinez Corra e, como atores, Marieta Se-

"Navalha na carne", de Plnio Marcos, com direo de Fauzi Arap e Tnia Carrero, como atriz, em 1968;

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"Jardim das cerejeiras", de Anton Tchekhov, com direo de Ivan de Albuquerque e atuao de Rubens Corra, Nildo Parente e outros, em 1968; "Oarquiteto e o Imperador da Assria", de Fernando Arrabal, com direo de Ivan de Albuquerque, atuao de Rubens Corra e Jos Wilker. Por esta montagem, K1aussrecebeu o prmio de melhor coregrafo na categoria Teatro, pela APCA - Associao Paulista de Crticos Teatrais, em 1970; "Hoje dia de Rock", de Jos Vicente, dirigida por Rubens Corra, com atuao de Rubens Corra, Ivan de Albuquerque, o prprio K1auss e outros, 1972. "O exerccio", de Lewis John Carlino, direo geral Klauss, com Marlia Pra e Gracindo Jnior. Esta pea teve colocada entre as cinco melhores do ano e por K1auss recebeu a indicao para o Prmio Mambembe Melhor Diretor de Teatro, em 1977; de esela de

"Mo na luva", de Oduvaldo Vianna Filho, com direo de Aderbal Freire Filho e Marco Nanini e Juliana Carneiro como atores, em 1984. Segundo Tavares (2002), "O exerccio" foi um marco na poca, tanto para os atores quanto para o pblico e a crtica. possvel analisar como a trajetria percorrida por Klauss Vianna junto montagem de "O exerccio" partiu de um trabalho sobre o

corpo do ator, quer fortalecendo-o, quer sensibilizando-o ludicamente. Em seguida trabalhou sobre a projeo deste corpo no espao e na relao entre os atores, por meio de exerccios diversos, alm da relao dos corpos em cena com os da platia. Foi to significativo, que se apoderou da prpria linguagem do espetculo, imprimindo um enfoque total sobre os atores, que dispensou os tradicionais aparatos cnicos, aproximando-o da esttica de um "tea-

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tro pobre" de Grotowski, que figuraria hoje no "teatro essencial" de Denise Stoklos CTavares,2002).

Ao todo, foram aproximadamente 25 peas, dando incio profisso de preparador corporal, no Rio de Janeiro, nos moldes propostos por K.lauss, o que diferia do papel do coregrafo, pois buscava instrumentalizar o corpo do ator para as necessidades de um teatro que comeava a rejeitar a supremacia do texto, valorizando a atuao e a expressividade corporal. K.lausstrabalhou nas montagens e em oficinas, em parceria com profissionais como os diretores Paulo Afonso Grisoli, Luis Carlos Ripper, Ivan de Albuquerque, Srgio Brito, a fonoaudiloga Glorinha Beuttenmller, a musicista Ceclia Conde e a professora e tambm preparadora corporal Angel Vianna. Fundou com Angel e a professora de bal Threza D'Aquino, em 1975, o Centro de Pesquisa Corporal, Arte e Educao, conhecido na poca como "o corredor cultural do Rio de Janeiro". Este centro, na dcada de 1980, passou a se chamar Espao Novo e a abrigar um curso tcnico de formao em dana reconhecido pelo MEC; hoje denominado Escola Angel Vianna, onde foi recentemente inaugurada a Faculdade Angel Vianna. Entre 1974 e 75, K.laussparticipou do festival de dana e teatro de Connecticut, nos Estados Unidos, com uma bolsa oferecida pela Adida Cultural americana em Belo Horizonte; no Rio, desenvolveu a pesquisa intitulada "O gestual do homem carioca", patrocinada pela Funarte, com o grupo Thatro do Movimento, fundado por ele e Angel. Em 1975, tornou-se diretor da Escola de Thatro Martins Pena, onde pde pr em prtica tudo o que estava elaborando sobre uma abordagem didtica das artes cnicas. Em 1978, saiu da Escola de Teatro Martins Pena e passou a dirigir o Inearte - Instituto Estadual das Escolas de Arte do Rio

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de Janeiro, at 1980, quando se mudou para So Paulo e iniciou dando aulas em estdios de dana, como a academia de LaIa Deheinzelin, as escolas de Ruth Rachou e Rene Gumiel, e a STEPS - Espao de Dana. Dirigiu a Escola Municipal de Bailados, da Prefeitura de So Paulo, de 1981a 1982. Props mudanas na didtica da instituio, introduzindo aulas de dana moderna com as professoras Ruth Rachou e Clia Gouveia. Iniciou a realizao de espetculos com os alunos e abriu a escola para a comunidade, com a criao de uma turma noturna. Atuou, ainda, em 1982, como membro do Conselho Estadual de Dana da Secretaria de Cultura do Estado de So Paulo. Fez a preparao corporal para a pea musical "Clara crocodilo", com o grupo de LaIa Deheinzelin e o msico Arrigo Barnab, apresentada em 1981. De 1982 a 1984, assumiu o cargo de Diretor Artstico do Bal do Teatro Municipal de So Paulo - Bal da Cidade, onde criou o Grupo Experimental de Dana Moderna, formado por bailarinos sem formao acadmica, mas com forte pesquisa, como Denilto Gomes, Ismael Ivo, Joo Maurcio, Maz Crescenti, Mara Borba, Snia Mota e Suzana Yamauchi. Em sua gesto, foram montados os espetculos "Valsa das vinte veias", de J. C. Violla; "Certas mulheres" (remontagem), de Mara Borba, Snia Mota e Suzana Yamauchi; "Bolero", de Lia Robatto; "A dama das camlias", de Jos Possi Neto. Introduziu aulas de interpretao teatral e instigou a leitura e o dilogo, buscando propiciar o desenvolvimento de um posicionamento crtico nos bailarinos. Recebeu o prmio da APCA, como Diretor Artstico do melhor espetculo do ano, por "Bolero". Dentre outros prmios e indicaes, Vianna foi agraciado com o Personalidade Artstica do Ano de 1960, em Belo Horizonte; com a Meno Honrosa da Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro,

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pelo seu trabalho em teatro, em 1977; com a Comenda "Ordem ao Mrito Artstico", pelo Colegium Artium da Fundao Clvis Salgado, em Belo Horizonte, no ano de 1983. E em 1972, tornou-se o nico profissional da rea de corpo a receber o prmio Moliere concedido por um jri nacional selecionado pela Air France categoria "Especial", pela totalidade de seu trabalho. Em 1986, foi convidado a ministrar aulas no curso de psgraduao em dana na Universidade Federal da Bahia - UFBA, onde deu incio documentao de sua pesquisa, com apoio do CNPq e da CAPES. Recebendo uma ajuda por um curto perodo pelo Inacen Instituto Nacional de Artes Cnicas, do Ministrio da Cultura, em 1985 iniciou a pesquisa "Inteno dos gestos", que resultou no espetculo "D-D",apresentado em 1987, em So Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, com os bailarinos Zlia Monteiro, Duda Costilhes e Izabel Costa, o msico e ator Joo de Bru, o pianista Nahim Marun, o Grupo de Percusso do Instituto de Artes do Planalto, o Coral do Estado de So Paulo, sob a regncia de John Boudler, e com a direo musical de Carlos Kater. Para a montagem, obtive verba das Secretarias Estaduais de Cultura de So Paulo e Minas Gerais. Recebeu o prmio "Melhor Pesquisa em Dana", concedido pela primeira vez pela APCA e os bailarinos Zlia e Duda receberam o prmio "Revelao" de 1987.Certamente dcadas um pioneiro, custa do autodidatismo, a essncia h algumas e expressiviprpria dos a preparao

KIauss Vianna vem investigando

dade dos movimentos,

em sintonia com a gestualidade

bailarinos. Sua atuao didtica reconhecida corporal de atores. O espetculo go escrito por Ana Francisca Paulo, em 16 de novembro

tanto na dana quanto marca a transpoem aula. [...] (artiO Estado de S.

no teatro onde, a partir da dcada de 60/ introduziu D-D, portanto, sio para o palco de um trabalho desenvolvido de 1987).

Ponzio, para o jornal

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Lanou, em 1990/ seu nico livro, A dana, no qual trabalhou em colaborao com o jornalista Marco Antnio de Carvalho, graas a uma bolsa de estudos da Fundao Vitae, de So Paulo. Em 1992, participou da criao da Escola KJauss Vianna, iniciativa de seu filho Rainer Vianna, com a nora Neide Neves e alguns alunos. A escola funcionava Neves, no Rio de Janeiro, Angel Vianna. A inteno como uma filial do Espao posteriormente, Escola Novo, criado em 1983, por Angel Vianna, Rainer Vianna e Neide denominada, era habilitar bailarinos e professores

na Tcnica KJauss Vianna, num curso de formao com durao de trs anos. No mesmo ano, Klauss faleceu, em So Paulo, no dia 12 de abril. Klauss Vianna foi uma das pessoas mais importantes no cenrio da dana no Brasil. Ele levou muito conhecimento para o Bal do Teatro Municipal de So Paulo. Seu trabalho de conscientizao do corpo, entrando pela dana contempornea, foi muito importante para todos ns, bailarinos. uma perda lamentvel para a gerao mais nova, que fica sem poder usufruir dos seus conhecimentos, embora tenha sido maravilhosa a colaborao deixada por ele atravs do livro A Dana (Ana Botafogo, primeira bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em entrevista ao jornal O Globo, em 14 de abril de 1992). [...) Para ns da dana contempornea ele foi um grande pai, um verdadeiro mestre ao comear todo aquele movimento" (Marina Martins, diretora da Cia. Atores Bailarinos, do Rio de Janeiro, em entrevista ao jornal O Globo, em 14 de abril de 1992). Estou chocado. A dana no Brasil est muito castigada e, com a sua morte, so pelo menos 20 anos perdidos de avano. uma perda irrecupervel. Ele era um grande intelectual, muitos anos na frente da maioria. Com sua idia de trabalho corporal, Klauss se transformou no maior expoente da dana no Brasil (Tbni Nardine, diretor do Grupo Bandana, em entrevista ao jornal O Globo, em 14 de abril de 1992).

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[...) voc me perguntou que memria eu tenho do KIauss. Eu diria que de um mestre, essa sensao de sabedoria, pois o que ele propunha ou dizia, a gente via como resultava. E de fato era um saber que ele tinha e que sabia nos passar. Ele dizia "faa assim", e a gente sentia. Ento essa idia de mestre, de sbio [...] uma pessoa que tem um conhecimento, que da sua especialidade e por extenso da vida, eu associo muito ao KIauss Vianna (entrevista concedida por Aderbal Freire Filho, diretor de teatro, a Joana Ribeiro Thvares, 1211212001). No pretendi, aqui, esgotar a biografia de Klauss. Este um e urgente, mas que, dado sua amdesde o incio, mostra uma bussublinhando a neno mundo que o cerca e nas Centrando sua pesquisa na consfundamental

trabalho que se faz necessrio ressaltassem cessidade questes

plitude, e no caberia neste livro. Mas procurei fazer escolhas que como seu percurso, ca da identidade do corpo e de sua expresso, do intrprete

de insero

que lhe so contemporneas.

profundamente nominamos

no corpo, teve importncia

truo, a partir dos corpos que passaram "artes do corpo".

por ele, do que hoje de-

Da vontade de pesquisar dou nas questes quietudes corporais Chegou ao intrprete-criador e certezas, um corpo cujo ambiente

o gestual brasileiro,

Klauss aprofunao universal. inTrabalhou

que ligam o individual

atual, que fala de suas prprias e vice-versa.

falando do mundo

externo no apenas Minas ou o Brasil, contemporneas.

mas o mundo e as questes

3S

Capitulo Um

Conscincia corporal e movimento"O Homem uno em sua expresso: no o esprito que se inquieta nem o corpo que se contrai - a pessoa inteira que se exprime"Klauss Vianna

1. A propostaEsta pesquisa prope repensar, luz de algumas vertentes da cincia contempornea, alguns tpicos desenvolvidos no trabalho do pesquisador do movimento humano Klauss Vianna. Bailarino, coregrafo, preparador e diretor corporal de atores, filsofo da dana - como brincava - e, sobretudo, pesquisador e professor, Klauss desenvolveu um trabalho de movimento que atualmente conhecido como Tcnica Klauss Vianna. Atuou desde os anos 1940, quando iniciou sua carreira no bal clssico.

1. KIauss Vianna em A Dana (2005, p. 150).

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Seu trabalho foi muito conhecido e valorizado nos anos 1970 e 80. Marcou fortemente o trabalho de muitos atores e bailarinos, como Marlia Pra, Marco Nanini, Zlia Monteiro, Duda Costi1les, Mariana Muniz, Carlos Martins e Ana 'Terra, entre muitos outros. Foi, junto com Angel Vianna, sua esposa, o introdutor da Ilpreparao corporal do ator", no Brasil. Angel Vianna, professora, bailarina, coregrafa e preparadora corporal de atores, foi companheira de KIauss desde os anos de formao com o professor Carlos Leite, em Belo Horizonte. Juntos criaram o Bal KIauss Vianna, no qual, deram incio pesquisa e montaram as primeiras coreografias. Estudaram e ensinaram juntos. Na atualidade, Angel dirige uma escola que abriga um curso profissionalizante em dana e recuperao motora e a Faculdade de Dana Angel Vianna, no Rio de Janeiro. Dezesseis anos aps a morte de KIauss, podemos ver traos de sua obra em evoluo. Muitos intrpretes nas reas de dana e teatro tm no corpo as instrues assimiladas em anos de trabalho com KIauss. Estes e outros mesclam em seu trabalho de criao e nas experincias educacionais alguns dos conceitos aprendidos. Outros ainda continuam a pesquisar e a aprofundar estes mesmos conceitos. Monografias, artigos e dissertaes (e.g.; Santos 1994,Queiroz 2001,Pedroso 2000,Alvarenga 2002,Thvares 2002, Neves 2003, Braz 2004, Miller 2005) tm sido escritos sobre esse pesquisador, que desenvolveu um trabalho amparado em corpos brasileiros e suas questes especficas, e pesquisas tm sido feitas sobre sua experincia com a dana clssica e seus estudos de anatomia e cinesiologia. 1bda a discusso retomada, atualmente, em torno de seu trabalho tem uma razo. KIauss foi, como pessoa e como profissional, um instigador de mudanas. Acreditava no desenvolvimento de cada um, com disciplina e liberdade. Relacionava o desenvolvimento pessoal ao profissional. Deixou-nos um material muito rico,

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muito bem aceito, mas com pouca conceituao terica e, portanto, com potencial para ser aprofundado e desenvolvido. Essas sementes germinam por toda parte onde ele tocou as pessoas. Depois de 23 anos de trabalho com essa tcnica, a partir do caminho aberto por Klauss, sinto necessidade do mergulho em busca de rever algumas questes fundamentais da prtica e seguir adiante. Rever, repensar a partir de novas informaes, encontrar explicaes para o que nasceu de muito estudo e da intuio e encontrar caminhos para a investigao a partir das recontextualizaes decorrentes dos novos estudos do corpo. Minha formao corporal foi construda na tcnica de Klauss, com seu filho Rainer Vianna e tambm com Angel. Com Klauss estudei em cursos breves e, informalmente, em casa. Fiz assistncia em workshops que ministrou, nos ltimos anos de sua vida. Quando conheci esse trabalho, vinha de outras breves experincias com dana. Senti que ali estava algo que sempre havia buscado, que me dava parmetros claros, mas no rgidos, para lidar com meu corpo e me expressar. Compreendi que a dana estava no modo como meu corpo organizava as informaes no fluxo com o ambiente e no em passos aos quais deveria me adaptar. Desde 1983, trabalho com a tcnica de Klauss em cursos para bailarinos, atores e profissionais de outras reas, em preparao corporal de atores e como bailarina. Com Rainer, desenvolvi a estruturao didtica da tcnica, na segunda metade da dcada de 1980 e incio de 90. Aps o falecimento de Klauss e de Rainer, segui meu trabalho sozinha e, hoje, tendo retomado contato com pessoas envolvidas com a tcnica (Beth Bastos, Duda Costilles, Joo de Bru, Jussara Miller, Luzia Carion Braz, Marins Calori, Valria Cano Bravi, Zlia Monteiro, entre outros), sinto a fora que ela tem em ns e para ns e concluo que, se acreditamos tanto neste trabalho, fundamental que cuidemos de seu desenvolvimento.

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Este estudo uma das contribuies que posso dar nesse sentido. Pois, ao longo do tempo, algumas questes foram se colocando e exigindo respostas como condio de continuidade e aprofundamento da prtica.

2. Uma leitura do pensamento de Klauss ViannaK1aussera veemente ao defender o que fazia como um "trabalho aberto", a ser desenvolvido no corpo daqueles que o levavam para a vida e para a arte. No pretendia criar uma tcnica fechada.2 Se dizia "parteiro" das possibilidades do aluno. Aquele que propicia, d ferramentas para que o outro desenvolva algo cujas possibilidades j traz em si. Parece que ele intua que manter o trabalho aberto o que permitiria a permanncia das suas idias. De certa maneira, o que acontece. No h um modelo K1aussVianna, uma esttica determinada a priori, mas h corpos pensantes descobrindo sempre mais, a partir dos princpios desenvolvidos por ele. O movimento desses corpos, apesar de mostrar uma unidade tcnica, guarda a sua individualidade. "O que importa lanar as sementes no corpo de cada um, abrir espao na mente e nos msculos. E esperar que as respostas surjam. Ou no" (Vianna, 1990: 131). No seu trabalho, a percepo, a prontido ou conscincia enquanto awareness3 (estado de alerta) do corpo e de seus movimentos vista como condio fundamental para a expresso.

2. Klauss era arisco ao termo "tcnica", talvez porque o interpretasse como sinnimo de "vocabulrio fechado", com regras rgidas e fIxas. 3. Awareness: palavra inglesa que signifIca conscincia enquanto prontido. Diferentemente de conciousness, a experincia fsica, que lida com contedos diretamente acessveis; um estgio indispensvel ao corpo para lidar

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liAli

inconscincia que gera a mediocridade" (Vianna, 2005, p. 35).

tenho que estar com os sentidos alertas. Seno minha dana se torna pura ginstica" (Vianna, 2005, p. 36).

Buscava movimentos com as caractersticas do novo, pleno de vida. Expresso de cada corpo, num determinado momento; dos recursos e da histria deste corpo e no a repetio ou execuo desatenta, que ele identificava como forma desprovida de verdade e vida. Devido a essa busca, chegou a utilizar a improvisao em cena, nos ltimos anos de sua vida.Quando uma tcnica artstica no tem um sentido utilitrio, se no me amadurece nem me faz crescer, (...) se no facilita meu caminho em direo ao autoconhecimento - ento no fao arte, mas apenas um arremedo de arte. (...) Conheo apenas a forma,' que fria, esttica e repetitiva e nunca me aventuro na grande viagem do movimento, que vida e sempre tenta nos tirar do ciclo neurtico da repetio (Vianna, 2005, p. 72). ... a forma que, quando preconcebida, morta, esttica, acomodada e impede o aprendizado, o aperfeioamento e a criao de novos gestos (Vianna, 2005, p. 105).

Ao longo do tempo, Klauss desenvolveu instrues para o desbloqueio das tenses musculares e articulares, que permitem colocar o corpo-mente em um estado de maior disponibilidade para o uso dos recursos de cada indivduo. Ao mesmo tempo, as

com a informao. A conciousness o saber da awareness. Sobre a questo da conscincia em KIauss Vianna, ler a Dissertao de Mestrado de Cllia Queiroz, Cartilha Desarrumada, 2001. 4. KIauss reconhecia dois tipos de forma: aquela preconcebida, esttica, repetitiva, que o oposto do movimento, que vivo; e aquela que fruto do autoconhecimento e dos espaos internos, que viva, expressiva, que o prprio movimento.

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instrues Os recursos

trabalhadas

para o desbloqueio

tambm

so utilizadas

para provocar e servir de caminho para a criao de movimentos. tcnicos no esto em funo de uma determinada esttica, mas a servio da expresso de cada corpo. Alguns princpios sobre os quais esto baseadas as instrues podem ser enunciados desta maneira: e autodomnio so necessrios para a

Autoconhecimento

expresso pelo movimento. Sem ateno no h possibilidade expresso. preciso buscar musculaturas, estmulos que gerem conflitos e novas de autoconhecimento e

para acessar o novo.

Das oposies nasce o movimento. e sensvel.

A repetio deve ser consciente A dana est dentro de cada um.

O que importa no decorar passos, formas, mas aprender caminhos para a criao de movimentos.

Dana vida. de trabalho:

A seguir, os tpicos fundamentais

Apoios - os apoios do corpo na sua relao com a gravidade. Estes apoios acontecem no cho, nos objetos sobre os quais o corpo se apia e, ainda, no prprio corpo. Podem ser passivos - com o corpo ou parte dele pesando, cedendo sobre algo ou sobre parte do prprio corpo - ou ativos, direcionados, figurao momento, sustentao usando intencionalmente o peso do corpo direcionado para uma superficie qualquer de apoio. A conou mapa dos apoios de um corpo, num dado reflete a distribuio deste corpo. do peso e do esforo na

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'Itansferncia de apoios - quando nos movemos, estamos sempre mudando a configurao dos apoios do nosso corpo. Nessa tcnica, h a busca de permitir ao corpo conduzir as transferncias de apoio, sem planejamento antecipado das mesmas, a partir de apoios ativos e de acordo com a organizao da musculatura de um corpo, num determinado momento. Isso gera uma qualidade especfica de movimento e permite a descoberta de novos caminhos internos, novos desenhos do movimento no espao. Resistncia e oposio - podemos nos relacionar com os apoios de maneiras diferentes. Se nos abandonamos gravidade, podemos perceber o peso do corpo. Se direcionamos os apoios a favor da gravidade, afundando-os, "empurrando" o solo, somos direcionados para cima. Em todas as direes que "empurramos", geramos uma reao em sentido oposto - terceira lei do Movimento de Newton ou Lei de ao e reaos, que transmite o movimento pela estrutura ssea e muscular. Usando a resistncia que o solo oferece ou que criamos com a musculatura na relao com o espao, geramos vetores opostos que equilibram o corpo e acionam movimento. Direcionamentos sseos - a posio de cada osso determina o trabalho da musculatura e vice-versa, e afeta todo

5. Este princpio fundamental da Mecnica diz que, na natureza, no h ao isolada de um corpo sobre outro, mas ao entre corpos, denominada interao. Isaac Newton formulou a hiptese, confirmada por inmeras experincias, de que as foras que constituem um par ao-reao apresentam a mesma intensidade. Desta forma podemos enunciar: se um corpo A aplica uma fora sobre outro corpo B, B aplica sobre A uma fora de mesma intensidade, de mesma direo e em sentido contrrio. Isso verificvel na atrao magntica assim como na atrao gravitacional. Nenhum corpo se movimenta aplicando fora a si mesmo. Precisa aplicar fora em um outro corpo, e se movimenta graas reao dessa fora.

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o corpo, j que este um sistema dinmico. Quando esta posio no adequada ao bom funcionamento dos msculos, acontecem desarmonias no tnus6 muscular, com tenso excessiva de alguns msculos e pouco trabalho de outros. Redirecionando os ossos posio adequada, colocamos outros ou mais msculos em ao para economizar esforo na sustentao do alinhamento corporal e no movimento. Cada direcionamento sseo aciona msculos diferentes e pode provocar diferentes movimentos. Espao articular - estes espaos internos so conseqncia da oposio de foras que sustentam, equilibram e movem o corpo e que, aliadas a determinadas direes sseas, geram uma maior amplitude de movimento articular. Inteno e contra-inteno - a inteno d clareza ao movimento. Pode conferir-lhe uma leitura de significado ou apenas uma direo definida no espao. O conceito de contra-inteno est baseado no de oposio e no funcionamento dos msculos, envolvendo foras e sentidos opostos. 1bdo movimento tem nele uma inteno e uma contra-inteno, em graus diferentes. As musculaturas agonista e antagonista trabalham em sinergia e sua ao envolve oposies. Se nos valermos desse fato e usarmos resistncia ao nos movermos, damos sustentao e projeo ao movimento, alm de ressaltarmos a inteno que emerge nele.

6. "Tnus muscular uma estado de tenso permanente dos msculos, que depende da elasticidade e das condies trficas locais, bem como das conexes nervosas envolvidas" ('Thvares,apud Miller, 2005, p. 75).

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As instrues usadas para a implementao dos contedos dos tpicos de trabalho, entre outras coisas: favorecem o desbloqueio das tenses limitadoras do movimento; abrem os espaos internos, articulares e entre ossos e msculos; colocam mais msculos em trabalho; acionam msculos e intenes; so responsveis pelas intenes e pelas contra-intenes dos movimentos; so estmulos para a criao de movimentos. KIauss usava os termos "expresso"e "inteno" do movimento, algumas vezes, buscando o mesmo que, hoje, se denomina "informao", que emerge em um movimento. Considerando que o corpo um texto que estamos capacitados a ler, ele est sempre expressando algo, informando. Outras vezes, trabalhava a inteno tecnicamente, a partir do direcionamento dos ossos, de vetores de fora, de oposies. O resultado era um movimento bem delineado, "limpo", o que tambm abria espao para a emergncia da informao. importante compreender que, nos dois casos, estrutura e sentido esto relacionados intimamente. KIauss relutou em sistematizar o seu trabalho. Gostava de afirmar que todo aquele que estudasse com ele transformaria o trabalho de acordo com sua experincia, colocando a sua individualidade em prtica. Tinha razo. No h como acontecer de outra maneira. Mas isso no impede que o trabalho se sustente pela sua coerncia, pela eficcia e pela pertinncia do seu pensamento e de sua prtica, ainda nos dias de hoje.

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Mas, deixava claro tambm, como diz em entrevista organizada pela pesquisadora Cssia Navas, no vdeo "Memria presente", produzido pela Prefeitura de So Paulo (1992), que ele era o criador e, como tal, deixava para os que vinham depois a preocupao com essa sistematizao. Iniciativa que foi tomada, por seu filho Rainer e por mim, na dcada de 1980.

3. Prtica e questes - uma hipteseA Tcnica Klauss Vianna aplicada na formao de atores e bailarinos e tambm pode ser usada por pessoas interessadas apenas em desenvolver maior conscincia de seus movimentos, dissolver tenses, usufruir de maior conforto e sade corporal e recuperar o prazer de se mover. Estes diferentes pblicos tm algumas necessidades comuns e outras especficas de sua prpria realidade. Na busca de suprir essas necessidades, foram surgindo algumas questes. Essa tcnica sempre pareceu oferecer instrumentos para lidar com elas. fcil perceber o quanto, apesar de ter sido desenvolvida num passado recente, aponta para muitas colocaes de uma viso de mundo e de corpo absolutamente contemporneas. Por isso, parece possvel descobrir as relaes existentes entre o pensamento de KIauss, algumas vezes predominantemente intuitivo (como sugere o seu prprio discurso), com as teorias mais novas sobre estas questes que se colocam. Ao encontrar as supostas relaes haver um enriquecimento da prtica e, provavelmente, uma complexificao da prpria tcnica. Quando se trabalha com a expresso do corpo humano, depara-se sempre com a dificuldade de lidar com padres posturais e de movimento limitadores, desenvolvidos ao longo da vida. O que vemos, freqentemente, so corpos em que movimento e inteno se encontram dissociados. "O uso contnuo dos objetos e dos

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limites na nossa vida cotidiana impedem te" (Vianna, 2005, p. 96). Desenvolvemos uma maneira

qualquer

observao

e

qualquer trabalho muscular, que se torna mecnico e inconscien-

prpria de ser, de nos relacioTais habilidades so de e das nossas experincias. de um padro pesexperincias sens-

narmos com o mundo e de nos movermos. fruto da nossa predisposio Acontece de modo inevitvel nosso aparato biolgico soal de movimento, rio-motoras que nos distingue DNA+ experincia, e cognitivas. gentica

porque parece ser da natureza

o desenvolvimento Em princpio,

que envolve diferentes dos outros seres humanos. impressos

apenas esse padro o a nossa marca, Somos nun-

na nossa expresso no mundo. Isso

no deve ser confundido seres flexveis, plsticos, ca termina; novas possibilidades. cada experincia, imagens mentais, ra diferente.

com a noo de corpo-produto. mveis. Nosso desenvolvimento apenas

cada momento/movimento

o incio de

Nunca um movimento externos)

igual a outro; a motor, cognitivo, de manei-

todos os fatores (sensorial, estmulos

se combinam

Por que, ento, ao menos em um nvel macroscpico vao, os corpos parecem

de obser-

no se mover assim? O que vemos, a ter esquecido sua plasticidade e

maior parte do tempo, uma repetio de padres, de gestos sociais, em corpos que parecem integridade. A singularidade de cada corpo , muitas vezes, pouco de movimentos. Muitas

evidente, quando se trata da investigao

respostas corporais se estabilizam de tal maneira que, mesmo no condizendo com o momento presente, continuam forma de estabelecer O neurocientista mecanismo a relao com o ambiente. Antnio Damsio (2000, p. 49) descreve um como uma a se impor como

mental em que "usamos parte da mente

tela para impedir outra parte de perceber o que se passa em outro lugar. (...) usamos nossa mente para ocultar uma parte de nosso

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ser de outra parte de nosso ser". E o que oculto com mais eficcia o corpo. Para ele, o carter vago e difcil de ser definido das emoes e dos sentimentos , provavelmente, conseqncia desse fato. em objea realidade. uma indicao do quanto as imagens mentais baseadas tos e eventos no pertencentesli..

ao corpo mascaram

dificil termos conscincia da existncia fisica, estarmos pre-

sentes: vivemos muito em relao ao passado, ou nos sonhos em relao ao futuro, mas somos incapazes de viver o momento presente a nvel fisico" (Vianna, 2005, p. 136). Damsio usa a expresso "distrao adaptativa" para justificar este mecanismo. concentrar Na maioria dos casos, talvez seja mais vantajoso proos recursos da mente nas imagens que descrevem em nossos estados interiores.

blemas do mundo externo ou nas opes para sua soluo, em vez de concentr-los

"No entanto, esse desvio de perspectiva em relao ao que est disponvel em nossa mente tem seu custo. Tende a impedir a percepo da possvel origem e natureza do que denominamos seU" (Damsio, 2000, p. 50). Esse mecanismo, bm uma limitao ao velar a percepo do corpo, provoca tamna quantidade e na qualidade das respostas de e, conseqentemente, a recorrncia

motoras s circunstncias

frmulas j testadas e estabilizadas. Na busca da alterao desses padres limitantes o de sua possibilidade cobrir caminhos te, necessitam para o que se costuma chamar e da ampliade expresso, os artistas tm tentado desde movimento

natural, interior, orgnico, integrado ... This rtulos, evidentemende ajustes. Como falar em natural, como algo prede informaes do ambiente? Ou servado do fluxo inestancvel

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de um interior isolado do exterior? Onde este interior estaria localizado, como se manteria ileso? nata-se de encontrar a chave para dar ignio explorao de uma plasticidade que j faz parte da nossa estrutura de seres humanos. Ela est fundamentada na maneira como se interrelacionam os sistemas do corpo via redes neuronais de conexo, inclusive o sistema sensrio-motor. A comunicao se faz em todos os sentidos. Um exemplo da possibilidade dessas conexes o seguinte exercci07: executar alguns movimentos propostos pelo professor, trabalhando as qualidades de expanso e concentrao; cheirar uma flor; voltar a executar os mesmos movimentos, usando a sensao e a percepo dos movimentos internos; cheirar um limo; executar os movimentos novamente, usando a sensao e a percepo dos movimentos internos. 1brna-se evidente que a percepo do odor entrando pelas narinas, ocupando espaos, facilita a percepo da presena e a abertura dos espaos internos no resto do corpo. Os diferentes odores provocam tambm diferentes caractersticas no movimento sutil, interno ao corpo, o que vai alterar a qualidade do movimento externo. Acontece a conexo de um estmulo sensorial (o odor) com uma reao motora (abertura do espao interno e alterao na qualidade do movimento). O resultado verificvel por outra pessoa pela sua manifestao no movimento externo.7. Vivenciei este exerccio, no ano de 2000/ em um curso ministrado por 1bshiyuki Thnaka, que, atualmente, professor do Curso de Comunicao das Artes do Corpo, da PUC-SP.O citado exerccio faz parte do Seitai-ho, conjunto de tcnicas elaboradas por Harutika Noguti, no incio do sculo XX, no Japo.

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Na hiptese das metforas primrias e complexas, desenvolvida pelos filsofos e lingistas Mark Johnson e George Lakoff, durante a dcada de 1980 e j publicada em vrios livros (1986, 1999), os domnios motor, sensorial e cognitivo se desenvolvem, no incio da vida, de maneira interligada, por ativaes neurais simultneas e assim se mantm. Para uma criana pequena, as experincias subjetivas esto to fundidas com as experincias sensrio-motoras, que ela no as distingue. A expresso "abrao caloroso" uma metfora primria. Ela conceitual e imediata e acontece via rede neuronal. Nela os dois domnios so experienciados sem separao. Com o desenvolvimento, a distino comea a acontecer, mas as associaes cruzadas entre os domnios se mantm. A metfora primria pode ser comparada a tomos que podem, juntos, formar molculas - as metforas complexas. Na metfora complexa, diferentes campos conceituais podem ser ativados simultaneamente e, sob certas condies, conexes podem se formar, levando a novas inferncias. A informao vem do sensrio-motor ao conceitual e depois volta ao sensrio-motor, transformando-o. Um exemplo a expresso "o amor quente", que fala da experincia que tivemos ao sentir o calor do corpo de nossa me e do fato de a relacionarmos posteriormente ao sentimento de amor. So as metforas que compem nosso julgamento subjetivo, nossa relao com o mundo.Fazemos julgamentos subjetivos sobre coisas to abstratas quanto importncia, similaridade, dificuldade e moralidade, e temos experincias subjetivas de desejo, afeio, intimidade e realizao. Mas, ainda que estas experincias sejam muito ricas, muito do modo em que as conceitualizamos, raciocinamos sobre elas, e as visualizamos vem de outros domnios de experincia. Estes outros domnios so principalmente sensrio-motores, como quan-

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do conceitualizamos entendendo uma idia (experincia subjetiva) em termos de pegar um objeto (experincia sensrio-motora) e falhamos em compreender uma idia como se ela passasse reto por ns ou sobre nossas cabeas. O mecanismo cognitivo para tais conceitualizaes a metfora conceitual, que nos permite usar a lgica fisica de pegar para raciocinar sobre a compreenso (Lakoff e Johnson, 1999, p. 45).

Mesmo sabendo que o sistema sensrio-motor tem maior capacidade de fazer conexes inferenciais, e ser, portanto, mais comumente o domnio-fonte, tambm podemos acessar o motor pelo conceitual. o caso da situao em que conseguimos utilizar o conceito de espao externo para acessar a sensao da existncia de espaos internos ao nosso corpo. Mesmo assim, sabemos que a noo de espao externo foi tambm construda, inicialmente, pela experincia sensrio-motora. KJauss percebia o resultado destas correlaes fundamentais no movimento e, como conseqncia, via a estrutura corporal e o seu modo de funcionamento como a base para o trabalho da expressividade individual.Observei, de incio, a posio do dedo anular nas pinturas renascentistas e fiquei fascinado com a relao entre esses desenhos e a postura exigida para as mos no bal: em ambos os casos, a certeza de que o movimento parte de dentro e no pode, jamais, ser apenas forma. Vejamos: quando voc aperta o dedo anular para dentro sente todo o brao reagir e por isso que a mo tem essa postura no bal clssico. O problema que professores e bailarinos repetem apenas a forma e isso no leva a nada. O processo deveria ser o oposto: a forma surgir como conseqncia do trabalho (Vianna,2005, p. 28).

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NEIDE NEVES

A forma compreendida desconectada

como fim em si mesma aparece desque a provocaram originalmente,

provida dos impulsos internos

da totalidade que o corpo. Ela deve ter uma razo a uma estria, uma emoo. Trata-se da o movimento, e sensaes da musculatura que emergem que o como que mentais

de ser no corpo que a executa. E por "razo de ser" no se deve limitar a compreenso necessidade executa, das imagens fatores constitutivos que acarretou

do movimento. acarreta um alheiamento em relaa cada a

Se o trabalho corporal no leva em conta a necessidade est na raiz do movimento, o aos seus impulsos iniciais e aos que se apresentam

execuo. Assim, a forma final do movimento

deve conter a per-

cepo daquilo que o provocou e tudo o mais que o transforma cada momento. Dessa maneira, ele vem carregado da integralidade do corpo.A

forma, repito, conseqncia: so os espaos internos que devem criar o movimento de cada um (Vianna, 2005, p. 36). E explica: Os espaos correspondem s diversas articulaes do corpo, onde possvel localizar importantes fluxos energticos e onde se inserem os vrios grupos musculares. No seu sentido mais amplo, a idia de espao corporal est intimamente ligada idia de respirao... Em linguagem corporal, fechar, calcificar e endurecer so sinnimos de asfixia, degenerao, esterilidade. Respirar, ao contrrio, significa abrir, dar espao. Portanto, subtrair os espaos corporais o mesmo que impedir a respirao, bloqueando o ritmo livre e natural dos movimentos. Imagem muito forte de nossa emoo, a respirao representa nossa troca com o mundo. (...) A respirao abre espao para percebermos musculaturas mais profundas que, simbolicamente, chamaremos musculaturas da emoo. (Vianna, 2005, p. 70).

KLAUSS VIANNA

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H uma ressonncia es nas articulaes.

desta intuio de Klauss nos estudos de as emopermi-

Marjorie Garber8 (1997), que localiza, metaforicamente, Segundo este autor, as articulaes tem a articulao dos movimentos semntica. Seguindo acessamos o pensamento de Klauss, aumentamos conclui-se

e das idias no corpo, gerando

expresso. A sintaxe do movimento se faz via articulaes e gera a

que,

se

os espaos internos,

nossas possibilida-

des expressivas atravs das conexes entre os sistemas conceitual e sensrio-motor. estamos mudando do movimento. Porque, ao modificar o estado da articulao, os msculos que usamos para um determina-

E, ao usar outros msculos, acessamos outros ascaminham juntos.

pectos da nossa memria, ligados a eles. Assim sendo, estrutura e significado, sintaxe e semntica

Quando Klauss dizia que no se devia repetir as aes cotidianas sempre do mesmo jeito, no se devia dormir sempre no mesmo lugar, fazer os mesmos caminhos, tade de alterar o funcionamento desatenta nos leva repetio para a mudana vimento. "Mudar de local de refeio e de dormir dentro da prpria casa so estmulos que geram conflitos e novas musculaturas dentro do nosso cotidiano: espaos novos, musculatura nova, viso nova" (Vianna,2005, p. 96).

estava falando da vondo dia-a-dia, que Seu objetivo era a ateno tambm de mo-

automtico dos padres.

abrir espao para o novo. Estava chamando de musculatura. quisas, outros msculos

Ou seja, a partir de suas pes-

significam outras possibilidades

8. MaIjorie Garber o pseudnimo de um professor de Harvard, na rea de Estudos Culturais e Literatura.

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NEIDE NEVES

Quando o artista prope olhares diferentes criadores vo buscar inspirao soas portadoras diferente que se quer entender

para a realidade Quando os e nas pes este olhar que

do corpo, a expresso criativa que ele est buscando. nos povos primitivos de alguma alterao da normalidade,

e tomar como exemplo. Trata-se e presena Um es-

de buscar um estado corporal de disponibilidade tado que mantenha articulaes a possibilidade

possibilite a expresso daquele corpo, naquele momento. de articulao, e de seus acionamentos neuro-musculares.

das prprias

Para a Tcnica Klauss Vianna, no prprio corpo esto os meios. A partir de um estmulo dado ao sistema motor, neste trnsito de conexes internas ao corpo e corpo-ambiente, to, podemos provocar a emergncia es da histria de um determinado vez, alimentar xes acontecem novamente num dado momenemode imagens, sensaes,

corpo, que podem, por sua

o processo todo. Na realidade, as conenum fluxo, integrando todos "lidas" Apecom o estados,

em todos os sentidos e, com as ignies adequa-

das, o corpo produz os movimentos os aspectos do corpo-mente.

Estas imagens ou sensaes no so necessariamente por quem v estes movimentos, importantes para o intrprete sar disso, os movimentos corpo que v, da maneira naquele dado momento. e no so sempre conscientes. conectam como aquele Reconhecemos

nem este o objetivo. Elas so

gerados contaminam,

corpo pode responder, movimentos,

emoes no porque fazem parte de um cdigo, mas porque temos o mesmo aparato fisiolgico para lidar com eles. Alm disso, corpo e cultura esto intimamente ligados. Thnto a

constituio fisica e a maneira de funcionar do corpo influencia a expresso cultural, quanto as manifestaes culturais so capazes de gerar respostas fisicas, numa relao de interdependncia A pesquisa de Klauss tinha como proposio e troca. algo que vem

sendo investigado

nos ltimos vinte anos pelas cincias cogniti-

KLAUSS VIANNA

53

vaso Ele no buscava diretamente na sua compreenso nando emocionais. o sensrio-motor, As intenes9,

a emoo ou os conceitos, mas, acionando temas conceituais e

do corpo como uma unidade, sabia que, acioestaria decorrentes destes temas, fazem parte

do movimento. Diante destas consideraes, que as instrues funcionam so eficazes movimento; estimulam a percepo dos diferentes estados corporais e novo, produto de um trabalhadas a hiptese estudada neste livro

na Tcnica Klauss Vianna:

como ignio para o movimento; flexibilizao dos padres posturais e de

a disponibilidade

para o movimento

corpo, num dado momento, podem promover resultam

em conexo com o ambiente; que quer

o acesso a novas conexes neurais, que sempre do movimento; expressivo, Ou seja, transformam

no movimento,

dizer, traz uma informao. xe corporal na semntica treinam a retomada pressividade

a sinta-

de um movimento

por outro corpo ou sem perda da ex-

pelo mesmo corpo, em outro momento, individual.

4. Uma releituraO discurso de Klauss munia-se da viso de mundo corrente

em sua poca que, em muitos casos, pertinente

at hoje. Avan-

9. As intenes so uma qualidade de informao. Mas, como explicarei mais adiante, KJauss usava este termo como sinnimo de informao. De acordo com seu pensamento, toda informao que emerge no movimento, seja intencionalmente ou no, uma inteno.

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NEIDE NEVES

os j foram feitos, desde ento, em muitas reas, e aqueles referentes ao entendimento de como se processam importantes. com as investigaes contemporneas. inteno a cognio e a da na percepo dana prtica, questes corporal. Para facilitar o estudo, os tpicos levantados ram agrupados em dois eixos fundamentais, na hiptese foso particularmente Sua prtica se manmais recentes nenhum

tm atual e de acordo e das cincias possvel importantes

Assim, baseando-se

reler o discurso do trabalho

sem alterar

ponto algumas

fundamental. e dos estudos

a minha

neste livro: pensar

de KJauss, luz da sua prtica sobre o corpo e a comunicao

contemporneos

focando uma caracte-

rstica central do trabalho: a noo de que no modo de funcionamen-

to do corpo est a possibilidade de expresso. Para tanto, so aplicadas linhas de pesquisa que estudam que emergem do movimento. da Tcnica KJauss Vianna, os dois eixos so: das tenses limitadoras do movinovo, vivo, expressivo. os processos de comunicao

Na linguagem

A questo do desbloqueio

mento, para o acesso ao movimento A questo das intenes

dos movimentos. pode-se

Relendo estas idias luz dessas linhas de pesquisa, dizer:

A questo da flexibilizao do padro pessoal de movimento. A questo da informao que emerge no movimento. pretendo lanar mo de alo fun-

Para tratar estes dois assuntos, guns estudos do neurologista o do Grupo Neuronal cionamento ria e conscincia,

Gerald Edelman. de faculdades

Sua Thoria da Selecompreender tais como meme das funes

- TNGS - permite

do sistema cerebral,

explicar o surgimento

da mente

KLAUSS VIANNA

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mentais no processo de evoluo do sistema nervoso humano, assim como a relao da mente com o corpo. A compreenso dessas faculdades humanas, nos moldes propostos por Edelman, joga luz sobre os caminhos traados por Klauss. "Aevoluo est em todo lugar e a dana no escapa desta lei" (Vianna, 2005, p. 82).

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Capitulo Dois

Estabilidade e instabilidade"De fato, a chave para a autonomia que um sistema vivo acha seu caminho para o prximo momento agindo apropriadamente por seus prprios recursos".Francisco

J.

Varela

1. Dinmica do crebro e do movimentoNa prtica de movimento da Tcnica Klauss Vianna, no se pensa o movimento pela sua forma espacial, ou, melhor, o desenho espacial conseqncia do caminho que esse movimento traa internamente, no corpo. Tambm no se trabalha para uma aquisio de vocabulrio de movimentos, mas para desenvolver possibilidades de conexes geradoras de movimento. Mesmo quando movimentos so "repetidos", eles so trabalhados a partir das instrues utilizadas para cri-los. Trabalha-se no nvel bsico, estrutural, provocando o movimento a partir da direo dos ossos,

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NEIDE NEVES

para atingir a musculatura, le momento, movimento

deixando estrutura

do corpo, naqueNesse capelas in-

a "deciso" do caminho a tomar para a execuo do que resultar no desenho espao-temporal. e gerando movimento, alimentadas

minho, ento, as estruturas sensoriais e motoras esto, todo o tempo, se combinando formaes do ambiente e dos outros corpos, ou seja, do UmweZt1

daquele corpo, naquele momento. Desta maneira, atua-se de acordo com o modo de organizao do sistema corpo. Uma das ignies para o movimento acionamento do direcionamento usadas por Klauss o pelos mssseo. Ele observou que os os-

sos, como so mantidos em posio e movimentados to a partir do direcionamento Direcionados manuteno

culos, tambm podem acion-los. Pode-se executar um movimende um osso ou de ossos. E os mscudo osso. a especficas, os ossos garantem uma movimeno corcom los acionados variam de acordo com o direcionamento de maneiras dos espaos articulares, permitindo

tao mais ampla das articulaes. distribuio equilibrada

Alm disso, posicionam

po no eixo esttico mais adequado para uma boa sustentao, do esforo muscular contribui para a prontido para o movimento. Trabalhando esses direcionamentos, uso constante determinados musculatura, diminuindo vimento, de um determinado dificultando

e dos apoios, o que

consegue-se dissolver boa que leva a tensionam a e, assim, de mo-

parte das tenses existentes no corpo, muitas vezes causadas pelo padro postural, do movimento apoios que, sendo sempre repetidos, a passagem as possibilidades de movimentao.

Redirecionando

os ossos, desbloqueia-se, acionando

abre-se espaos e possibilidades

outros msculos.

1. Palavra cunhada por Jakob von Uxkull, bilogo alemo, na dcada de 1930, para significar o universo subjetivo, interno, que permite que o indivduo no se confunda com o mundo exterior, mas que inclui uma viso de mundo decorrente do processo evolutivo. um centro de resistncia.

KLAUSS VIANNA

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Toda vez que o corpo direciona um osso, acionam-se msculos, que movem outros ossos, numa reao em cadeia, que no se provoca voluntariamente, mas que resultado de como ossos e msculos esto organizados naquele determinado corpo. Esse processo deixa muito espao para conexes do momento presente e pretende provoc-las. Ele envolve, sem dvida, no s os aspectos motores, mas todas as conexes que acontecem no sistema nervoso, incluindo os aspectos sensorial e cognitivo, a produo de memria e imagens mentais. importante destacar que no se faz nenhuma separao entre o corpo e as faculdades mentais. O neurologista Gerald Edelman (1992, p. 3-30) explica, detalhadamente, a participao do movimento no funcionamento do crebro e da mente. O movimento produto das aes cerebrais e tambm componente para outras conexes. Segundo Charles Darwin2 (1809-1882),a mente e a conscincia humana surgem com a evoluo, por seleo natural, devido necessidade de adaptao. Edelman completa afirmando que, para compreender o surgimento da mente, a biologia to importante quanto os fatos da evoluo. Para ele, o estudo da biologia central quando se trata de tentar explicar mente, conscincia e a relao mente-crebro sem dualismos de qualquer espcie. Edelman relaciona ainda estrutura e funo, colocando a intencionalidade no jogo, pois ns somos seres vivos, biolgicos e intencionais. E explica as conexes entre forma e mente com uma teoria do crebro que consistente com a evoluo e o desenvolvimento especfico do sistema nervoso. Segundo ele, o aparecimento de clulas nervosas no parece ser o suficiente para a emer-

2. Naturalista, fundador da teoria evolucionria moderna, escreveu A origem das espcies (1859), livro que constituiu um marco na histria da biologia e no qual lanou suas idias sobre a seleo natural e a teoria da evoluo.

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NEIDE NEVES

gncia do mental. A mnima condio para o mental uma forma especfica de morfologia e seu funcionamento. A base fundamental para todo comportamento e para a emerpara o funcionaliA

gncia da mente a morfologia do animal e das espcies e como ela funciona. O corpo do animal to importante mento do crebro para o comportamento tuio da anatomia assim por diante (Edelman, cerebral depende mento e a evoluO do seu crebro quanto a forma e o funcionado corpo. de msculos real constie agindo sobre

ossos, nervos agindo sobre pele, em uma ordem determinada, quer dizer, depende do resto do fentipo" 1992, p. 52).

Para William James (apud Edelman,

1992: 6), a mente um de Edelman

processo e no uma coisa. Ela pessoal e reflete intencionalidade. Nesse mesmo sentido, a posio fundamental ranjos especiais da matria. de processos memente cipalmente intencional, que a mente um tipo especial de processo que depende es da matria cerebral no intencional. de troca de energia. de ar-

mas surge das interaA prpria matria nasce

Ela tambm

processo.

E os

processos mentais surgem do trabalho de sistemas cerebrais enorintrincados, em vrios nveis de organizao, que esto com as outras funes corporais, prinintimamente relacionados o movimento.

(...) vemos que organismos biolgicos (especificamente animais) so os seres que parecem ter mentes. Assim, natural levantar a hiptese de que um tipo particular de organizao biolgica incrementa processos mentais. Obviamente, ento, para continuar o assunto cientificamente, preciso chegar a saber como o crebro organizado (Edelman, 1992, p. 7). Pensadores como Ren Descartes pensante (1596-1650) propuseram compartilha a

idia de uma substncia

que toda matria

KLAUSS VIANNA

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em conscincia. Mais recentemente, o cientista cognitivo David Chalmers (1993) questiona a existncia de um "algo a mais", que no est restrito experincia fisica e responsvel pela conscincia. Mas, no h nada na composio essencial do crebro que possa nos informar sobre a natureza das propriedades mentais. O que essencial como a mente organizada. O que nos d a primeira informao do que torna o crebro to especial que nos faz esperar que possa gerar as propriedades mentais a sua extraordinria capacidade de conexo. O nmero alto e a surpreendente densidade das redes neurais no so as nicas propriedades singulares do tecido cerebral. Uma propriedade ainda mais notvel o modo como as clulas cerebrais esto arranjadas em padres funcionais. Os neurnios, clulas cerebrais, so inusitados em trs aspectos: sua forma variada, sua funo eltrica e qumica e sua conectividade. Eles se conectam entre eles e se organizam em ncleos, lminas e mapas. E o meio de comunicao entre eles a sinapse. Essas conexes no so precisamente especificadas anteriormente nos genes. Elas se fazem na relao dinmica da evoluo do embrio. A rede do crebro criada pelo movimento celular durante o desenvolvimento e pela extenso e conexo de um sempre crescente nmero de neurnios. O crebro um exemplo de um sistema auto-organizativo. Os mapas neurais so nicos em cada indivduo. E no so fixos; h flutuaes, ao longo do tempo, em algumas reas do crebro. A variabilidade dos mapas neurais em animais adultos depende de sinais de input eficazes. Esta variabilidade no discreta ou com algumas possibilidades apenas, mas contnua, finamente detalhada e abrangente. Essas caractersticas do crebro, de auto-organizao e de variabilidade ao longo do tempo, explicam sua morfologia evolucio-

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NEIDE NEVES

nria, que lhe particular, diferente de tudo o mais, e interage em muitos nveis, do tomo ao msculo. "Seria um erro, ento, ignorar o resto do corpo, porque h uma ntima relao entre as funes animais (principalmente o movimento) e o desenvolvimento do crebro" (Edelman, 1992: 7). Os arranjos dinmicos do crebro mostram a propriedade de memria do sistema: mudanas prvias alteram mudanas sucessivas de modos especficos e especiais. Trata-se de conexes neurais sucessivas e simultneas, gerando movimento, que gera sensao e percepo, que geram mais movimento, e assim por diante. Apesar dessa organizao dinmica ser resultado de uma ao eletroqumica especfica, o que cria os processos mentais no a sua composio, e, sim, o arranjo dinmico destas substncias cerebrais. Isso morfologia dinmica em todos os nveis. O funcionamento do crebro implica em movimento e conexo, est aberto para a variedade e para as mudanas, que no so consideradas erros e, sim, fonte de diversidade. O desenvolvimento auto-organizado e constante do crebro est ligado e depende da relao com o meio e com o organismo todo. Essa relao se faz atravs de glndulas e msculos, atualizando a todo momento sensaes, percepes e movimentos. Para a biologia, a variao real e no um erro. A variao individual a fonte de diversidade sobre a qual a seleo natural age para produzir diferentes tipos de organismo. Edelman diz que a prpria evoluo um gerador de diversidade. A seleo no s garante um padro comum em uma espcie, mas tambm resulta em diversidade individual ao nvel da mais fina rede neuronal. Ela faz parte do nosso organismo em todos os nveis e resulta da natureza dinmica dos eventos topobiolgicos, no crebro.

KLAUSS VIANNA

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A existncia da diversidade em termos individuais , aparentemente, uma das mais importantes caractersticas da morfologia que d nascimento mente no processo de evoluo. A nfase dada por Edelman aos aspectos dinmicos da morfologia cerebral como geradores da mente ajuda a esclarecer o pensamento de Klauss sobre o movimento. O movimento faz parte do funcionamento do crebro, desde os nveis mais baixos de descrio - na formao das clulas, na ao das sinapses, no desenvolvimento e na ao de loops e mapas - at o movimento do corpo no espao, que gerado por esse funcionamento cerebral e o realimenta atravs de inputs vindos do mundo exterior e do prprio organismo. Assim, como parte fundamental do processo de auto-organizao do crebro, o movimento, em todos os nveis, participa desta dinmica e compartilha caractersticas como a variabilidade, a diversidade, a prpria auto-organizao, a conexo com os meios interno e externo, a evoluo constante e dinmica. Estas caractersticas, apesar de constituintes e independentes da vontade, precisam ser levadas em conta quando buscam-se instrues que sirvam de ignio para o movimento. Quando a meta dar espao para a sua manifestao e us-las como material de trabalho, necessrio encontrar a ignio adequada, caso contrrio diminumos o alcance das propriedades de comunicao do movimento. Quando Klauss propunha uma instruo como um direcionamento sseo especfico, buscava deixar organizao corporal a construo dos movimentos e apostava que, com isso, estaria conseguindo provocar movimentos menos codificados ou padronizados. Acreditava que o corpo ao ser deixado disponvel para se mover, a partir de instrues adequadas, poderia acessar a memria e fazer emergir intenes e significados, independentemente

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NEIDE NEVES

da vontade

ou no. Buscava a diversidade

na peculiaridade,

por-

tanto, na organizao

corporal, de cada intrprete.

"O comportamento do sistema nervoso , de algum modo, autogerado em loops; a atividade do crebro leva ao movimento, que leva a sensaes e percepo posteriores e ainda a movimento, mais adiante" (Edelman, 1992:29). Dessa forma pode-se descrever por Klauss agem no corpo. como as instrues propostas

2. A emergncia da novidadeUm conceito importante para compreender o funcionamento ser til na

da mente o do reconhecimento. compreenso

Por se tratar de um mecanismo

que opera por seleo, no contato com a novidade, do processo de criao de movimentos.

Reconhecimento de um domnio outro domnio ta de informao

o contnuo ajuste adaptativo de elementos que ocorre em elementos independente. de Esse ajuste explcie sim por

fisico novidade

fisico, mais ou menos

ocorre sem instruo Da mesma maneira,

prvia e no se d por transferncia a evoluo no opera por instruo

entre o meio e os organismos,

mas por seleo.

seleo. E no h um propsito geral ou causa final. A evoluo, agindo por seleo, em populaes interior dos indivduos. Um exemplo o sistema de indivduos imunolgico, molecular.

por um longo perodo de tempo, faz nascer sistemas seletivos no que tem memria e capacidade de reconhecimento

No sistema imunolgico, clula individual.

a unidade de seleo o linfcito, a e seleciona de acordo com

O sistema reconhece

KLAUSS VIANNA

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os padres de normalidade, ou seja, de acordo com a existncia ou no de risco para a permanncia do organismo. Na evoluo, a unidade principal da seleo o animal individual, o fentipo. Quer dizer, o que gera a seleo de um trao gentico mais adaptativo no a sua apario em forma de alterao nos genes, mas a caracterstica que aparece no indivduo e que promove sua melhor adaptao ao meio. A partir da, este trao ser transmitido geneticamente." claro que os genes no so diretamente visveis para a seleo.

Obviamente, eles so selecionados em virtude de seus efeitos fenotpicos e, certamente, eles s podem ser considerados como tendo efeitos fenotpicos em concerto com centenas de outros gens"3(Dawkins, 1982, p. 117).

imunolgico e o evolucionrio lidam com a novidade por princpios seletivos similares, mas com mecanismos muito diferentes. como estes dois sistemas, tambm um sistema seletivo de reconhecimento que no opera por instruo. Os estudos do desenvolvimento sugerem que a extraordinria diversidade anatmica, nas mais finas ramificaes das redes neuronais uma inevitvel conseqncia do processo embriolgico. Esse nvel de diversidade individual no pode ser tolerado em um sistema de computador que segue instrues. Mas isso exatamente o que necessrio num sistema seletivo. A seleo lida com a diversidade interna ao sistema e com a novidade externa a ele. Necessita de uma constncia ou memria dos eventos seletivos, mas tambm introduz a variao.

o sistema

o crebro,

3. Grifo do autor, Richard Dawkins.

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NEIDE NEVES

Segundo Edelman, a unidade de seleo para o crebro no a clula nervosa individual, mas, de preferncia, uma coleo de clulas conectadas fortemente, chamada grupo neuronal, devido ao fato que o neurnio individual no exibe qualidades que ele exibe dentro do grupo. A nfase, no funcionamento do crebro, est na propriedade de conexo. Edelman, ao falar do funcionamento do crebro e desses princpios que comandam o corpo e a evoluo, ressalta a existncia e a participao da novidade e da diversidade. So fatores com os quais lidamos continuamente. Fazem parte do nosso funcionamento, tanto que necessitamos deles para evoluir. As respostas no esto prontas, so construdas ao longo do caminho, no tempoespao, por processos de seleo e de conexo. Por analogia, podemos usar o conceito de reconhecimento para explicar como se lida com o que acontece no corpo durante uma pesquisa de movimentos. No caso da Tcnica KIauss Vianna, o material de trabalho no constitudo de movimentos pr-existentes, codificados, mas de instrues destinadas gerao do movimento. No temos propostas prontas em forma de movimento, mas movimentos construdos ao longo da experimentao, no tempo-espao, por processos de escolha conscientes e inconscientes. Essas escolhas no esto evidentes, e no so trabalhadas apenas na forma externa do movimento no espao, mas tambm e, principalmente, nas conexes que acontecem no sistema neurosseo-muscular, na relao com o ambiente, e que resultam no movimento. A informao veiculada pelo movimento emerge das escolhas de caminhos internos e das conexes entre o corpo e o ambiente, no instante da execuo do movimento. Por exemplo, quando trabalhamos transferncias de apoio para a criao de movimentos, acionamos um primeiro apoio direcionando-o ativamente contra o solo. Isso acionar alguns msculos, gerando um movimento que altera a configurao dos apoios de

KLAUSS VIANNA

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acordo com a organizao da musculatura do corpo em questo. O prprio corpo ressalta um novo apoio, o que leva a outro movimento e nova configurao de apoios, e assim por diante. As escolhas vo sendo feitas a partir do movimento e dos apoios indicados pelo corpo, num contnuo. Escolhe-se quais apoios usar, a intensidade e a direo em que os direcionamos, a cada momento, seguindo os caminhos traados pelo corpo, as sensaes e imagens que emergem, em conexo com o ambiente. Dessa maneira, estamos sempre construindo cada movimento, lidando com o que o corpo produz, conscientemente ou no, em conexo com os estmulos internos e externos. Acreditamos que, desta forma, propiciamos o surgimento no s de movimentos j organizados por aquele corpo, refrescados pelas circunstncias do momento, mas tambm de novos movimentos. Ao trabalhar com o modo de funcionamento do corpo, se est sujeito s mesmas leis da seleo natural. Assim, a busca da novidade facilitada pelo prprio funcionamento do corpo. E a diversidade existente em cada organismo, visto aqui como um sistema, permite a organizao e a expresso da individualidade.

3. A TNGS: os processos seletivos dos padresSe afirmamos que as funes cerebrais so construdas de acordo com um processo de seleo, precisamos saber conciliar a variabilidade estrutural e funcional do crebro com a necessidade de explicar como ele realiza a categorizao, que lida com o reconhecimento do conhecido, com padro, com generalizao. Para tanto, Edelman diz ser necessria uma teoria que esteja de acordo com os fatos da evoluo e do desenvolvimento; explique a natureza adaptativa das respostas novidade; mostre como as funes cerebrais esto ligadas s do corpo de acordo com as prprias

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mudanas do corpo, com o crescimento e a experincia; descreva a existncia e as funes dos mapas no crebro, porque eles flutuam, como mapas mltiplos levam a respostas integradas e como eles levam a generalizaes de respostas perceptuais, na categorizao, mesmo na ausncia de linguagem. Com este objetivo, Edelman props a Teoria da Seleo do Grupo Neuronal - TNGS. Uma teoria complexa, baseada em trs princpios que explicam de que modo a anatomia do crebro primeiro ativada durante o desenvolvimento; de que forma padres de resposta so ento selecionados a partir desta anatomia, durante a experincia; e como a reentrada, um processo de sinalizao entre os mapas resultantes no crebro, provoca importantes funes de comportamento. De acordo com o primeiro princpio, a seleo de desenvolvimento, o processo dinmico primrio do desenvolvimento leva formao da neuroanatomia caracterstica de uma determinada espcie, que possui enorme variao nos seus mais finos nveis e ramificaes. Resulta em uma populao de grupos variados de neurnios em uma determinada regio cerebral, compreendendo redes neurais formadas por processos de seleo somtica, conhecida como um repertrio primrio. O cdigo gentico no prov um diagrama de conexes especfico para este repertrio, mas impe um conjunto de regras ao processo de seleo. Mesmo com esses limites,