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Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger: O Pensamento

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Page 1: Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger: O Pensamento

KIERKEGAARD

NIETZSCHE e

HEIDEGGER

A gna ldo Cu oco Po r t uga l UNB B ra s i l

A le xan dre F r an co Saacute Un i ve r s i dade de Co imb ra Po r t uga l

Ch r i s t i an I be r A l emanha

C l aud i o Gonca l ve s de A lme i da PUCRS B ra s i l

C le i de Ca l ga ro UCS B r as i l

Dan i l o Mar con de s Souz a F i l h o PUCRJ B ra s i l

Dan i l o Vaz C R M C os t a UNICAP PE B ra s i l

De l amar J o seacute Vo l pa t o Du t r a UFSC B ra s i l

Dra i t on Gonz aga de Souz a PUCRS B ra s i l

E dua rdo Lu f t PUCRS B r as i l

E rn i l do J ac ob S t e in PUCRS B ra s i l

Fe l i pe de Mat os Mu l l e r PUCRS B ra s i l

J ean -F r anccedilo i s Ke r veacutegan Un i ve r s i t eacute Pa r i s I F r an ccedila

J oatildeo F Hobus s UFPEL B ra s i l

J o seacute P inhe i ro Pe r t i l l e UFRGS B ra s i l

Ka r l He in z E f ken UNICAP PE B ra s i l

Kon rad U t z UFC B r as i l

Lau ro V a len t im S t o l l Na r d i UFRGS B ra s i l

Marc ia And rea Buumlh r in g PUCRS B ra s i l

Mi chae l Qu an t e Wes t f auml l i s che Wi lhe lms -Un i ve r s i t auml t A l eman ha

Migu le G iu s t i PUC L ima Pe ru

No rman Ro lan d M adara sz PUCRS B ra s i l

Nyth amar H F de O l i ve i r a J r PUCRS B ra s i l

Re ynne r F ran co Un i ve r s i dade de Sa l amanca E spanha

R i c a r do T imm de Souza PUCRS B ra s i l

Robe r t B r an dom Un i ve r s i t y o f P i t t s bu r gh EUA

Robe r t o Ho f me i s t e r P i ch PUCRS B r as i l

T a r c iacute l i o C i o t t a UNIOESTE B ra s i l

Th adeu Webe r PUCRS B r as i l

KIERKEGAARD

NIETZSCHE e

HEIDEGGER

O Pensamento

Contemporacircneo e a

Criacutetica agrave Metafiacutesica

Robson Costa Cordeiro

(Orgs)

φ

Direccedilatildeo editorial Agemir Bavaresco

Diagramaccedilatildeo e capa Lucas Fontella Margoni

Arte de capa Victoria Siemer

A regra ortograacutefica usada foi prerrogativa de cada autor

Todos os livros publicados pela

Editora Fi estatildeo sob os direitos da Creative

Commons 40

httpscreativecommonsorglicensesby40deedpt_BR

Seacuterie Filosofia e Interdisciplinaridade - 59

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

CORDEIRO Robson Costa (Org)

Kierkegaard Nietzsche e Heidegger O Pensamento Contemporacircneo e a Criacutetica agrave

Metafiacutesica [recurso eletrocircnico] Robson Costa Cordeiro (Org) -- Porto Alegre RS

Editora Fi 2016

334 p

ISBN - 978-85-5696-064-1

Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg

1 Kierkegaard 2 Nietzsche 3 Heidegger 4 Metafiacutesica 5 Hermenecircutica

I Tiacutetulo II Seacuterie

CDD-100

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Filosofia 100

Sumaacuterio

APRESENTACcedilAtildeO 9

NIETZSCHE E A RETOacuteRICA SOBRE A APODITICIDADE DO DISCURSO

ANDREacute FELIPE GONCcedilALVES CORREIA 13

PENSAMENTO E VONTADE COMO VONTADE DE PODER NA FILOSOFIA DE

FRIEDRICH NIETZSCHE

BRENO DUTRA SERAFIM SOARES 40

NIILISMO E TEacuteCNICA EM HEIDEGGER

BRUNO RICARDO A MALVINO 72

A INTRIacuteNSECA RELACcedilAtildeO ENTRE O AMOR FATI E A ARTE

EacuteLLIDA JUSSARA SILVA SANTOS 87

NOTAS SOBRE HERMENEcircUTICA EM HEIDEGGER E GADAMER DOIS SENTIDOS

DIFERENTES

ERNILDO STEIN 105

MARTIN HEIDEGGER LENDO FREDERICO NIETZSCHE

GILVAN FOGEL 127

A ESCRITA-GRITO DO LOUCO APROXIMACcedilOtildeES E RESSONAcircNCIAS DA FILOSOFIA DE

NIETZSCHE NA ESCRITA-VIDA DE ARTAUD

IKARO MAX BATISTA DE ARAUacuteJO 162

DA VONTADE DE PODER ENQUANTO ARTE NO PENSAMENTO DE FRIEDRICH

NIETZSCHE

JOSEPH ANDERSON PONTE CAVALCANTE LEITE 187

O PROBLEMA DA SUPERACcedilAtildeO DA METAFIacuteSICA NA CRIacuteTICA FENOMENOLOacuteGICA DE

HEIDEGGER

LUISMAR CARDOSO DE QUEIROZ 202

O SUJEITO A VERDADE E A CRIacuteTICA AO PENSAMENTO MODERNO

MAacuteRCIO JOSEacute SILVA LIMA 230

CONSIDERACcedilOtildeES SOBRE O CONCEITO DE EXISTEcircNCIA EM S A KIERKEGAARD

RAMON BOLIacuteVAR C GERMANO 245

NOBRE E ESCRAVO NA PERSPECTIVA DA VONTADE DE PODER NIETZSCHE E A

INTERPRETACcedilAtildeO DO HOMEM A PARTIR DA NOCcedilAtildeO DE VALOR

RAY RENAN SILVA SANTOS 273

HEIDEGGER E O CONCEITO DE FUSIS NO FRAGMENTO 16 DE HERAacuteCLITO ROBSON COSTA CORDEIRO 292

COSMOLOGIA DA VONTADE DE PODER DO PROJETO FILOSOacuteFICO Agrave FORMULACcedilAtildeO

DE UMA CONCEPCcedilAtildeO DE VIDA

THIAGO GOMES DA SILVA NUNES 307

Apresentaccedilatildeo

Os textos que compotildeem o presente Caderno de Estudos de Fenomenologia e Hermenecircutica Kierkegaard Nietzsche e Heidegger O Pensamento Contemporacircneo e a Criacutetica agrave Metafiacutesica satildeo oriundos tanto do trabalho que vem sendo desenvolvido sob a minha coordenaccedilatildeo pelo Grupo de Pesquisa Corpo e Fenomenologia junto aos alunos de Graduaccedilatildeo e Poacutes-Graduaccedilatildeo do curso de Filosofia da UFPB como tambeacutem da parceria com o Grupo de Pesquisa Filosofia e Hermenecircutica coordenado pelo Prof Dr Miguel Antonio do Nascimento Com o intuito de divulgar a produccedilatildeo e promover o intercacircmbio resolvemos publicar alguns textos oriundos dos estudos que vem sendo realizados pelos discentes e pesquisadores dos respectivos Grupos de Pesquisa Recebemos ainda como colaboraccedilatildeo textos de dois dos principais estudiosos de Heidegger e Nietzsche no Brasil O do Prof Ernildo Stein intitulado Notas sobre Hermenecircutica em Heidegger e Gadamer dois sentidos diferentes e o do Prof Gilvan Fogel intitulado Martin Heidegger lendo Frederico Nietzsche Agradecemos imensamente a inestimaacutevel colaboraccedilatildeo dos dois professores e esperamos no futuro publicar outros nuacutemeros desse Caderno Queremos desenvolver essa breve apresentaccedilatildeo falando um pouco acerca do sentido da palavra estudo Esperamos assim justificar de algum modo o motivo do uso da expressatildeo Caderno de Estudos e natildeo Caderno de Pesquisas muito embora na verdade se trate aqui da apresentaccedilatildeo dos trabalhos dos Grupos de Pesquisa Etimologicamente a palavra estudo deriva do latim studium que significa empenho esforccedilo dedicaccedilatildeo no sentido de comprometer-se com um trabalho com uma tarefa No estudo portanto encontra-se o engajamento a aplicaccedilatildeo o cuidado necessaacuterio para se buscar e ir ao encalccedilo daquilo que se procura Mas o que se procura soacute surge cresce e se

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consuma no procurar O procurado desse modo natildeo eacute o que estaacute previamente delineado e antecipado e que pode vir a ser alcanccedilado a partir de uma metodologia de um conjunto de regras previamente determinadas como acontece na pesquisa O estudo como trabalho constitutivo da existecircncia humana fomenta no homem a conquista de sua liberdade e a determinaccedilatildeo de um modo muito proacuteprio de ser e de interpretar o real Para os gregos esse tipo de trabalho se denominava sxolh de onde deriva a nossa palavra escola1 A palavra sxolh contudo que hoje tem o sentido de oacutecio natildeo significa em seu sentido originaacuterio descanso e ociosidade Significa antes ater-se engajar-se na determinaccedilatildeo criadora de sua proacutepria identidade na construccedilatildeo de um caminho proacuteprio de pensar Eacute esse o sentido que estaacute presente na famosa sentenccedila de Aristoacuteteles que caracteriza o homem como to z=+on logon

e)xon ou seja como ldquoo animal que possui logosrdquo O verbo grego e)xw de onde deriva sxolh significa propriamente ater-se O que a sentenccedila procura dizer portanto eacute que o homem eacute o animal que se ateacutem ao logos e que nesse ater-se eacute propriamente homem O que se pretende com esse Caderno de Estudos eacute fomentar o exerciacutecio dessa atividade desse ater-se e pocircr-se no caminho do pensamento que jaacute se pocircs no nosso caminho Os textos aqui apresentados portanto pretendem apenas introduzir os caminhantes que satildeo os proacuteprios autores e tambeacutem os leitores na caminhada do pensar nos caminhos de floresta (Holzwege) que conforme dizia Heidegger satildeo caminhos que na maior parte das vezes acabam se perdendo no ainda natildeo-trilhado Mas eacute soacute na erracircncia que esses caminhos conduzem que o homem pode escapar do erro de seguir o jaacute trilhado e assim

1 Cf mostra o Frei Hermoacutegenes Harada em seu livro De Estudo Anotaccedilotildees Obsoletas p 12 e segs

Robson Costa Cordeiro (Org) | 11

propriamente se encontrar ou seja pensar Zaratustra no discurso da virtude dadivosa jaacute alertava os seus disciacutepulos para essa necessidade ldquoAinda natildeo vos haviacuteeis procurado a voacutes mesmos entatildeo me achastes Assim falam todos os crentes por isso valem tatildeo pouco todas as crenccedilas Agora eu vos mando perder-vos e achar-vos a voacutes mesmordquo Quando nos referimos ao estudo estamos aqui procurando entendecirc-lo como empenho amor que o grego entendia como filia A filosofia como amor ao saber tem no procurado o saber natildeo algo exterior como um objeto erudito de estudo antes tem no procurado o que promove a proacutepria busca O que importa portanto natildeo eacute o movimento em direccedilatildeo ao pensamento como um lanccedilar-se a um objeto externo mas sobretudo aquilo que diz Kierkegaard em seu elogio do amor O voltar-se para si para o interior como consciecircncia de nosso estado sob o pensamento ou seja o saber ldquodo que se passa em si nesse exerciacutecio de pensamentordquo Isto contudo natildeo aponta para a interioridade da consciecircncia pois o saber ldquodo que se passa em si no exerciacutecio do pensamentordquo eacute o dar-se conta da presenccedila de um Todo Poderoso colaborador sem o qual o homem natildeo seria capaz de absolutamente nada Esse dar-se conta soacute pode ocorrer atraveacutes de um exerciacutecio que mostra que no momento em que somos capazes de tudo ou seja da suprema atividade que eacute o pensar acontece a revelaccedilatildeo de que na verdade natildeo somos capazes de nada Essa compreensatildeo eacute a mais difiacutecil pois no momento em que somos capazes de pensamento natildeo nos vemos como instrumentos do pensar mas como o sujeito que pode tudo inclusive determinaacute-lo e dominaacute-lo

Saber que natildeo se eacute capaz de nada eacute o supremo saber pois significa saber que soacute podemos ldquoserrdquo e tambeacutem pensar o que somos porque somos o lugar e a hora do acontecimento do Ser Significa portanto que natildeo somos capazes de nada sem o Ser ou seja que somos agrave medida

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que fazemos mas por outro lado que fazemos agrave medida que somos agrave medida que estamos na possibilidade para esse fazer Mas para poder assim pensar precisamos despertar para esse pensamento No entanto somos noacutes ao mesmo tempo que o despertamos esse verme dorminhoco que dorme em nosso leito E nisso se encontra o paradoxo de ser e pensar

O estudo portanto como empenho esforccedilo filia amor pelo saber eacute a atividade mais extenuante e a mais difiacutecil porque nos leva agrave confrontaccedilatildeo com esse paradoxo e eacute atraveacutes do seu exerciacutecio que o homem pode se dar conta de que soacute pode pensar propriamente conforme diz Kierkegaard ldquose aprender a despertar confiadamente para os pensamentosrdquo Os textos aqui apresentados satildeo esforccedilos na caminhada deste despertar e ser despertado

Joatildeo Pessoa 27 de Agosto de 2015

Robson Costa Cordeiro

Nietzsche e a Retoacuterica

Sobre a apoditicidade do discurso

Andreacute Felipe Gonccedilalves Correia1

1 Introduccedilatildeo

O trabalho em questatildeo tem por empenho interpretar a compreensatildeo de Nietzsche em torno da retoacuterica A obra mediante a qual a pesquisa se desdobra corresponde a uma compilaccedilatildeo de textos escritos no periacuteodo em que Nietzsche exercia a docecircncia na universidade de Basileia intitulada Da Retoacuterica Em uma passagem do primeiro texto da compilaccedilatildeo Nietzsche configura a retoacuterica como a forccedila (ldquoKraftrdquo) que suscita um sentido possiacutevel e faz valer mediante a persuasatildeo uma vivecircncia Enquanto tal forccedila a retoacuterica expressa uma espeacutecie de plasticidade (ldquoPlastizitaumltrdquo) no movimento interpretativo do real comportando a possibilidade de convencimento mesmo por falsas vias Contudo o que propriamente natildeo seria falseabilidade Seria possiacutevel ao desvelamento discursivo o pleno descortinar do veacuteu Caberia agrave linguagem a forccedila de acesso a epiacutelogos teleoloacutegicos Estas indagaccedilotildees suscitam o problema concernente agrave apoditicidade do discurso Supondo um inevitaacutevel malogro na obtenccedilatildeo de sustentaacuteculos metafiacutesicos por parte da linguagem perderia ela o seu vigor Ou seria justamente dessa limitaccedilatildeo que poderia emergir toda autenticidade do viver Para que possamos adentrar no acircmago dessas questotildees urge-nos uma meditaccedilatildeo em torno da linguagem

1 Mestrando do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba E-mail felgorreiahotmailcom

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Trecircs novas indagaccedilotildees se fazem necessaacuterias o que faz a linguagem Quem faz a linguagem O que eacute a linguagem Sucintamente responderiacuteamos agrave primeira dizendo que sua atividade (ldquoarterdquo) proacutepria eacute ldquointerpretarrdquo afetos (ldquoAffektenrdquo) a resposta agrave segunda recairia no homem agrave medida que eacute tomado e estimulado por essas afecccedilotildees e agrave terceira que eacute a retoacuterica Exige-se aqui por certo o desdobramento dessas asserccedilotildees Todavia seria esta a postura de Nietzsche ao referir-se agrave retoacuterica ldquoessa forccedila eacute ao mesmo tempo a essecircncia da linguagem esta reporta-se tatildeo pouco como a retoacuterica ao verdadeiro agrave essecircncia das coisas natildeo quer instruir (ldquobelehrenrdquo) mas transmitir a outrem (ldquoauf Andere uumlbertragenrdquo) uma emoccedilatildeo e uma apreensatildeo subjectivasrdquo (NIETZSCHE 1995 p 46) Se natildeo haacute linguagem que natildeo seja retoacuterica entatildeo cabe agrave retoacuterica todo o poder do discurso filosoacutefico e por conseguinte toda a verdade filosoacutefica Este percurso reflexivo desemboca portanto na relaccedilatildeo entre retoacuterica e verdade Ao situar a retoacuterica como o seio de onde brota a linguagem Nietzsche se nos apresenta como o precursor da virada retoacuterica e hermenecircutica O poder deste pensar faz oscilar todo anseio por discursos apodiacuteticos de cunho metafiacutesico preludiando o desenvolvimento da criacutetica agrave metafiacutesica que se desdobrou no seacuteculo XX Criacutetica esta que se debruccedilou sobre a problemaacutetica da linguagem como o preciacutepuo lugar (ldquotoposrdquo) mediante o qual poder-se-ia situar e configurar significaccedilotildees (ou interpretaccedilotildees) ao mundo Eacute manifesta a influecircncia que o pensamento nietzschiano exerceu sobre as meditaccedilotildees de Heidegger e Wittgenstein em torno da linguagem principalmente no segundo periacuteodo de ambos os pensadores A esses referecircncias concernentes ao problema da linguagem satildeo comumente suscitadas todavia sem a saliecircncia do estrito viacutenculo que tal problema tem para com a retoacuterica Eacute com esta aproximaccedilatildeo essencial que a obra de Nietzsche

Robson Costa Cordeiro (Org) | 15

aparece-nos outrossim como o movimento de ldquoavant-garderdquo de pensadores da viragem retoacuterica como Toulmin e Perelman

Podemos averiguar reflexotildees de cunho aforismaacutetico em torno da linguagem em vaacuterias obras do chamado ldquoNietzsche da maturidaderdquo nelas jaacute se expressam um pensador ancorado no abismo (ldquoAbgrundrdquo) de sua autecircntica filosofia tal como se encontra nesta passagem de A Gaia Ciecircncia

Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforccedilo compreender que importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que satildeo A reputaccedilatildeo o nome e a aparecircncia o peso e a medida habituais de uma coisa o modo como eacute vista ndash mediante a crenccedila que as pessoas neles tiveram incrementada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa por assim dizer tornando-se o seu proacuteprio corpo a aparecircncia inicial termina quase sempre por tornar-se essecircncia e atua como essecircncia Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusatildeo para destruir o mundo tido por essencial a chamada lsquorealidadersquo (lsquoWirklichkeitrsquo) Somente enquanto criadores podemos destruir (NIETZSCHE 2012a sect58 p 90-1)

A proposta deste breve estudo eacute resgatar a fonte

literaacuteria-filosoacutefica de onde partiu essa reflexatildeo da maturidade Noacutes a encontraremos em uma seacuterie de textos de um jovem professor de filologia em Basileia escritos na segunda metade do seacuteculo XIX

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2 Histoacuteria da Retoacuterica e Retoacuterica da Histoacuteria Apesar das muacuteltiplas colocaccedilotildees filosoacuteficas e filoloacutegicas espalhadas por toda a compilaccedilatildeo uma exclamaccedilatildeo em particular atrai a nossa atenccedilatildeo ldquoA retoacuterica eacute republicanardquo O que isto quer dizer Em uacuteltima instacircncia ela estaacute a nos apontar uma exigecircncia de reflexatildeo para com a histoacuteria (ldquoGeschichterdquo)2 Natildeo no sentido de historiografia mas sim de eclosatildeo cultivadora A histoacuteria de um povo estaacute intimamente vinculada agraves muacuteltiplas formas de cultivo (ldquoZuumlchtungrdquo) que nela adquirem corpo vivecircncia Ao identificar retoacuterica e repuacuteblica Nietzsche estaacute em verdade fazendo referecircncia agrave cultura que fez valer a ambas a Antiguidade grega3

2 O termo ldquoGeschichterdquo eacute derivado do termo ldquoGeschehnisrdquo (acontecimento) vinculando-se tambeacutem ao verbo ldquogeschehenrdquo (acontecer) de sorte que o seu sentido originaacuterio estaria mais vinculado agrave noccedilatildeo de ldquoacontecimento histoacutericordquo e natildeo agrave de ldquociecircncia histoacutericardquo

(ldquoHistorierdquo)

3 Essa colocaccedilatildeo se faz valer agrave medida que consideramos natildeo a totalidade das cidades-estados da Heacutelade mas sim aquela que representou na eacutepoca (seacutec V aC) e representa para toda a posteridade o apogeu e centralidade cultural dos helenos a saber a cidade de Atenas Ao contraacuterio do que se imagina a adoccedilatildeo dos ideais democraacuteticos (ou republicanos) natildeo vigorou na maior parte da Heacutelade sendo Atenas um caso muito peculiar Apenas inserida em uma poliacutetica que dignificasse a forccedila do individual (e todos os muacuteltiplos recursos mediante os quais este poderia expressar-se) eacute que a retoacuterica poderia ganhar prestiacutegio e difusatildeo Sexto Empiacuterico em Contra os retoacutericos nos fornece um testemunho da hostilidade para com a retoacuterica em outras localidades do mundo grego sendo-lhe a principal opositora a cidade de Esparta ldquoMas no entanto todos os homens em todos os lugares caccedilaram a Retoacuterica por ser muito hostil tal como por exemplo o legislador cretense que proibiu aqueles que se orgulhavam de sua oratoacuteria de se estabelecerem em sua ilha e tambeacutem o espartano Licurgo que tornando-se um admirador de Tales de Creta introduziu a mesma lei entre os espartanos E por isso muitos anos depois os eacuteforos puniram um jovem que estudara Retoacuterica no estrangeiro quando do seu retorno alegando como causa da sua condenaccedilatildeo que ele

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Apenas em um contexto histoacuterico adequado eclodiria o acolhimento da forccedila retoacuterica Forccedila esta que mediante a persuasatildeo discursiva instaura a simultaneidade do viver e do falar O nomear traz agrave presenccedila o nomeado faz vigorar um sentido viacutevido Tal como consta em Hesiacuteodo ao ser tomado por receio quanto a pronuncia de bestas mitoloacutegicas ldquoOutros ainda da Terra e do Ceacuteu nasceram trecircs filhos enormes violentos natildeo nomeaacuteveis Coto Briareu e Giges assombrosos filhosrdquo (HESIacuteODO 2011 v47-9 p111) O canto (a linguagem miacutetica) inspirado pelas musas ldquodesvelardquo mundos nos quais o viver apreende e encarna modos de manifestaccedilotildees de si proacuteprio

Toda a educaccedilatildeo retoacuterica (nascida da oralidade) que se estendeu na Antiguidade helecircnica expressa o valor atribuiacutedo agrave palavra aquilo que Nietzsche chama de ldquoPoder-discorrerrdquo ldquoA pretensatildeo mais ilimitada de tudo poder como oradores ou como estilistas atravessa toda a Antiguidade de uma maneira para noacutes incompreensiacutevelrdquo (NIETZSCHE 1995 p80) Segue-se pois que a vigecircncia do poder mediante a persuasatildeo exige uma abertura histoacuterica assim como para que haja desenvolvimento do mesmo uma educaccedilatildeo retoacuterica Embora o liame entre retoacuterica e repuacuteblica refira-se em uacuteltima instacircncia agrave antiga Atenas a gecircnese da aceitaccedilatildeo mediante a palavra remonta a algo mais originaacuterio que fora esquecido no decurso histoacuterico do homem ocidental O desenvolvimento da retoacuterica pode ser visto em todo caso como consequecircncia

praticara um artificioso modo de falar para deixar Esparta confusa E os proacuteprios espartanos continuaram a detestar a Retoacuterica e a empregar o discurso que eacute simples e curtordquo (EMPIacuteRICO 2013 p 11-13) O apreccedilo e empenho para com os quesitos beacutelicos afastaram Esparta (e vaacuterias outras) do desdobramento intelectual e artiacutestico desenvolvidos em Atenas de modo que natildeo surpreende a ascensatildeo dos sofistas poetas e filoacutesofos nesta uacuteltima Em Atenas o acircmbito discursivo adquire variadas dimensotildees e isso devido agrave sua situaccedilatildeo histoacuterico-poliacutetica que cresce em simultaneidade com as ramificaccedilotildees discursivas (retoacutericas)

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de um trabalho de cultivo da fala da persuasatildeo pela palavra sob a foacutermula do ldquomythosrdquo Esta foacutermula por si jaacute eacute vigecircncia retoacuterica pois nela se daacute uma criaccedilatildeo persuasiva Uma cultura homogecircnea expressa tatildeo soacute o resultado comum de um convencimento um auditoacuterio similiforme emerge em todo caso como uma interpretaccedilatildeo de mundo que vinga No homem que vivesente o mito tal como vimos em Hesiacuteodo natildeo se entrevecirc a obsessatildeo por uma verdade histoacuterica (historiograacutefica) pois a verdade miacutetica natildeo permanece verdade quando se lhe retira o ldquoveacuteurdquo da persuasatildeo Persuasatildeo aqui denota a vivecircncia que se disponibiliza nas imagens miacuteticas isto eacute na interpretaccedilatildeo de mundo que ldquoco-moverdquo na emergecircncia histoacuterica Essa histoacuteria natildeo diz um esgotamento unilateral em detrimento de outros pontos oacuteticos mas sim a dinacircmica produtiva (ldquopoieacutesisrdquo) do acontecer que estaacute sempre em uma perspectiva contextual Uma verdade ldquoem sirdquo soaria despropositada agrave vivecircncia miacutetica Escreve Nietzsche ldquoa retoacuterica surge num povo que vive ainda em imagens miacuteticas e que ainda natildeo conhece a necessidade incondicionada da confianccedila na histoacuteria prefere ser persuadido a ser ensinadordquo (NIETZSCHE 1995 p27) A cultura miacutetica dos gregos adquire ramificaccedilotildees nomeadamente retoacutericas primeiramente no acircmbito da argumentaccedilatildeo juriacutedica outras possibilidades no que tange agrave expressatildeo da forccedila persuasiva se desdobram neste periacuteodo da ldquopoacutelisrdquo A partir daiacute a formaccedilatildeo do homem grego (ldquopaideiardquo) cresce simultaneamente agrave sua educaccedilatildeo retoacuterica A articulaccedilatildeo do discurso adquire novos patamares com a efervescecircncia poliacutetica que se desdobra apoacutes e durante a eacutepoca de Peacutericles (seacutec V aC) inclua-se aiacute as trageacutedias e os sofistas A abertura histoacuterica que se entreabre na ldquoaacutegorardquo fomenta a possibilidade de enaltecimento tambeacutem do indiviacuteduo (prerrogativa adquirida mediante a devida educaccedilatildeo retoacuterica) algo que natildeo retira necessariamente a

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homogeneidade do cultivo grego pois ldquoa devoccedilatildeo agrave oratoacuteria eacute o elemento mais tenaz da cultura grega e persiste atraveacutes de todo o decliacutenio destardquo (NIETZSCHE 1995 p79) Para Nietzsche o proacutelogo deste decliacutenio se daacute mediante a ascensatildeo do socratismo Agrave definiccedilatildeo da retoacuterica como ldquopeithos episteacutemerdquo (ciecircncia da persuasatildeo) atribuiacuteda aos sofistas Goacutergias e Isoacutecrates escreve Nietzsche que ldquoPlatatildeo vota-lhe um oacutedio imensordquo (NIETZSCHE 1995 p31) ndash nas palavras do proacuteprio Platatildeo (Soacutecrates) ldquoo que chamo de retoacuterica constitui parte de uma certa atividade que nada tem de nobrerdquo (PLATAtildeO 2007 463a p66) Nietzsche estaacute a falar da hierarquia instaurada por Platatildeo entre o ldquorhetorikoacutesrdquo (retoacuterico) e o ldquodidaktikoacutesrdquo (dialeacutetico) A ldquodidaacuteticardquo deste uacuteltimo visa agrave instruccedilatildeo que o homem miacutetico dispensa pois para a dialeacutetica platocircnica a preocupaccedilatildeo natildeo eacute o verossiacutemil (opinativointerpretativo) que vige no mito ou na argumentaccedilatildeo mas sim a verdade4 A ldquodoacutexardquo que expressa toda discursividade retoacuterica visa agrave adesatildeo de um auditoacuterio contextualizado ao passo que a

4 Na Repuacuteblica Platatildeo distingue dois tipos de discurso ldquohaacute duas espeacutecies de literatura uma verdadeira e outra falsardquo (PLATAtildeO 2010 376e p86) Este uacuteltimo corresponde ao mito No Goacutergias eacute possiacutevel evidenciar um paralelo entre ldquofalsidade miacuteticardquo e retoacuterica na passagem em que esta eacute definida como uma habilidade ldquopara produzir uma certa satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (PLATAtildeO 2007 462c p65) sem viacutenculo necessaacuterio para com o verdadeiro Em Fedro exclama Soacutecrates ldquose encontro algueacutem que se me afigura com a aptidatildeo de dirigir a vista para a unidade e a multiplicidade naturais sigo-lhe o rasto como se um deus ele fosse Quem for capaz de semelhante coisa ndash soacute Deus sabe se estou ou natildeo com a razatildeo ndash mas ateacute o presente dou-lhe o nome de dialeacuteticordquo (PLATAtildeO 2011 266c p159) de modo inverso os retoacutericos ldquodizem que natildeo haacute necessidade de levar a coisa tatildeo a seacuterio nem de ir pegar o assunto de muito longe e com tantos rodeios para ser bom orador natildeo haacute necessidade em absoluto de participar da verdade ao estudo da verossimilhanccedila eacute que precisa aplicar-se quem se propotildee falar de acordo com as regras do bem dizerrdquo (272e-273a p177) Temos de um lado a apreensatildeo do verdadeiro e de outro a persuasatildeo pelo verossiacutemil

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supressatildeo deste procedimento argumentativo intenta apoderar-se de princiacutepios inequiacutevocos A forma do discurso miacutetico-argumentativo perde em prestiacutegio pois natildeo visa agrave instruccedilatildeo (do verdadeiro) mas sim a ldquoseduccedilatildeo persuasivardquo Nietzsche expressa a ldquoperspectivardquo da dialeacutetica na seguinte formulaccedilatildeo

Os mitos dependem da pagkaacutetecirc paidiacutea (divertimento nobre) as composiccedilotildees retoacutericas tal como as composiccedilotildees escritas soacute satildeo fabricadas para agradar A verdade natildeo se expressa nem na forma escrita nem na forma retoacuterica Emprega-se o mito quando a brevidade do tempo impede um ensino cientiacutefico Invocar testemunhas eacute um procedimento (kunstgriff) retoacuterico5 (NIETZSCHE 1995 p32)

Tambeacutem Aristoacuteteles eacute posto como um vieacutes daquele socratismo mantendo a mesma tendecircncia no referencial agrave verdade A retoacuterica eacute tida como ldquodyacutenamisrdquo (potecircncia forccedila capacidade) que estrutura a persuasatildeo segundo o conveniente cabendo-lhe ldquoo universal em cada casordquo definiccedilatildeo esta que exige uma adaptaccedilatildeo ao auditoacuterio Segue-se disto a impossibilidade de um discurso retoacuterico universal pois todo paracircmetro de universalidade retoacuterica se disponibiliza em perspectiva ldquoacidentalmenterdquo A forccedila de tal discurso apresenta-se em seu limiar como uma ldquoendoxardquo6 (opiniatildeo de aceitaccedilatildeo geral) isentando-se por conseguinte de um rigor demonstrativo apodiacutetico

5 Completa Nietzsche dizendo que ldquoos mitos platocircnicos satildeo introduzidos por um apelo a testemunhasrdquo (NIETZSCHE 1995 p36) apoiados contudo em uma cultura filosoacutefica (dialeacutetica)

6 Em Toacutepicos (livro I) Aristoacuteteles configura o raciociacutenio dialeacutetico (ldquodialektikos syllogismosrdquo) diferentemente de Platatildeo sem um rigor epistecircmico ldquoO silogismo dialeacutetico eacute aquele no qual se raciocina a partir de opiniotildees de aceitaccedilatildeo geralrdquo (ARISTOacuteTELES 2010 p348) Estabelecendo assim um viacutenculo entre ldquodialektikeacuterdquo e ldquoendoxardquo

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(ldquoapoacutedeixisrdquo) Cabe agrave ldquoepisteacutemerdquo (a ciecircnciafilosofia enquanto conhecimento do universal) pensar a verdade Escreve Nietzsche ldquoAristoacuteteles diz que uma coisa se trata filosoficamente em funccedilatildeo da verdade dialeticamente em funccedilatildeo da aparecircncia ou do sucesso da opiniatildeo da doacutexa dos outros Poder-se-ia dizer o mesmo da retoacutericardquo (NIETZSCHE 1995 p35) Ao rebaixar a ldquodialektikeacuterdquo potildee Aristoacuteteles em seu lugar a ldquoepisteacutemerdquo mantendo a mesma hierarquia para com a retoacuterica No periacuteodo das escolas heleniacutesticas arrefece a exigecircncia por filosofias ldquokataphaacuteticasrdquo de cunho teoreacutetico Com a ascensatildeo do impeacuterio alexandrino satildeo erigidas escolas filosoacuteficas voltadas agrave dimensatildeo ldquopraacuteticardquo do pensar resgatando um vieacutes socraacutetico menos vinculado e mais criacutetico agrave filosofia especulativa (enquadra-se aqui o empenho pela ldquoataraxiacuteardquo assim como pela ldquoepocheacuterdquo dos ceacuteticos) Esse periacuteodo se estende ateacute a eacutepoca do limiar da republica romana na qual a asserccedilatildeo ldquoa retoacuterica eacute republicanardquo atinge o seu apogeu com Ciacutecero Com os romanos a retoacuterica eacute resgatada em seu viacutenculo poliacutetico e ornamentada positivamente na dimensatildeo do ldquoeu leacutegeinrdquo (bem dizer) trazendo uma exigecircncia preciacutepua para com a ldquoformardquo do discurso ndash de modo que o ldquobem pensarrdquo soacute poderia disponibilizar-se no ldquobem dizerrdquo7 Natildeo haacute aqui cisatildeo entre o filoacutesofo e o orador Diz Nietzsche que Ciacutecero ldquonunca concebeu a oposiccedilatildeo entre o verdadeiro filoacutesofo e o oradorrdquo (NIETZSCHE 1995 p38) Isto pode ser evidenciado em suas reflexotildees sobre a velhice ldquoEacute antes para o orador que eu temeria os inconvenientes da velhicerdquo (CIacuteCERO 2002 p26) Os cuidados devotados a esta satildeo

7 A ldquoformardquo natildeo eacute apenas um instrumento insuficiente do ldquoconteuacutedordquo ao contraacuterio o vigor deste se daacute enquanto preocupaccedilatildeo formal (o ldquogosto pela formardquo) ldquoAquele que acha a linguagem interessante em si eacute diferente daquele que nela apenas reconhece o meio (ldquoMediumrdquo) de pensamentos interessantesrdquo (NIETZSCHE 1995 p89)

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antes realizados tendo em vista a sauacutede retoacuterica do orador Ao passo que o acontecer deste uacuteltimo unicamente vem agrave tona como e enquanto exposiccedilatildeo histoacuterica As reflexotildees concernentes agrave histoacuteria neste periacuteodo inicial da obra nietzschiana tomam como referencial alguns apontamentos do pensamento hegeliano (ora criticando-os ora os acolhendo)8 Assim como em Hegel eacute possiacutevel estabelecer um paralelo entre ldquoHistoacuteria da Filosofiardquo e ldquoFilosofia da Histoacuteriardquo9 parece-nos possiacutevel traccedilar aqui uma muacutetua configuraccedilatildeo entre ldquoHistoacuteria da Retoacutericardquo e ldquoRetoacuterica da Histoacuteriardquo A retoacuterica se constitui nos trilhos da dinacircmica histoacuterica e a histoacuteria enquanto percurso que cultiva compreensotildees diz um procedimento retoacuterico ldquoa redaccedilatildeo retorisante da histoacuteriardquo (NIETZSCHE 1995 p39) Segue-se disto que agrave degenerescecircncia histoacuterico-cultural acompanha outrossim o proceder pejorativo para com a discursividade retoacuterica O apogeu deste decliacutenio

8 Em Ecce Homo (autobiografia escrita em 1888 no final de seu periacuteodo produtivo) o proacuteprio Nietzsche reconhece tal influecircncia em sua primeira obra O Nascimento da Trageacutedia (1872) ao dizer que ela ldquotem cheiro indecorosamente hegelianordquo (NIETZSCHE 2011b NT1 p59) Assim como na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva (1874) no capiacutetulo oitavo onde reflete a ldquoinfluecircncia desta filosofia a filosofia hegelianardquo (NIETZSCHE 2003 sect8 p72) Considerando que os textos contidos em Da Retoacuterica foram escritos neste periacuteodo germinal parece-nos importante apontar alguns paralelos entre Nietzsche e Hegel (estes seratildeo dispostos preponderantemente em notas explicativas)

9 Escreve Hegel ldquoEacute importante aqui revelar sobretudo a relaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia com a proacutepria ciecircncia da filosofia A histoacuteria da filosofia natildeo tem por conteuacutedo acontecimentos e ocorrecircncias exteriores mas eacute o desdobramento do conteuacutedo da proacutepria filosofia tal como aparece no campo da histoacuteria Mostrar-se-aacute a este respeito que a histoacuteria da filosofia estaacute em consonacircncia mais ainda coincide com a proacutepria ciecircncia da filosofiardquo (HEGEL 2012 p73)

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adquire expressatildeo na exigecircncia por ldquocientificidaderdquo (ldquoWissenschaftlichkeitrdquo) moderna10 3 O esforccedilo moderno e a criacutetica retoacuterica A histoacuteria do pensamento se caracteriza por muacuteltiplas viradas Com a derrocada do Impeacuterio Romano do

10 Apesar da preciacutepua ocupaccedilatildeo da filosofia hegeliana para com a sistematicidade filosoacutefica do absoluto nela a histoacuteria se estrutura como o proceder das concepccedilotildees ie como momentos de composiccedilatildeo da autoconsciecircncia Daiacute pensarmos a exigecircncia da produccedilatildeo histoacuterica da consciecircncia para consigo proacutepria procedimento este que disponibiliza compreensotildees de cunho ldquoperspectiviacutesticordquo mesmo que realizando a unidade de si reconciliando-se As inferecircncias histoacutericas ditam a si proacutepria a multiplicidade de sua unidade Com Hegel natildeo obstante a sua ldquoinspiraccedilatildeordquo moderna comeccedila a ldquorazatildeo histoacutericardquo desdobrada mediante criacuteticas aos seus predecessores modernos Diz Hegel ldquoDeve admitir-se como legiacutetima a exigecircncia de que uma histoacuteria ndash seja qual for o seu objetivo ndash narre os fatos sem parcialidade sem que por meio dela prevaleccedila um interesse ou fim particular Mas com o lugar comum de semelhante exigecircncia poreacutem natildeo se vai muito longe De fato a histoacuteria de um objeto estaacute intimamente conexa com a concepccedilatildeo que dele se faz Segundo tal concepccedilatildeo determina-se jaacute o que se considera importante e conveniente para o fim e a relaccedilatildeo entre o acontecido e o mesmo fim suscita uma seleccedilatildeo dos fatos que se devem narrar uma maneira de os compreender pontos de vista sob os quais se englobemrdquo (HEGEL 2012 p14) O acontecer histoacuterico expressa uma patente contradiccedilatildeo e neste sentido ela se assemelha agrave proacutepria retoacuterica sobre a qual diz Nietzsche ldquotem de se estar habituado a suportar as opiniotildees e os pontos de vista mais alheios e mesmo sentir um certo prazer na contradiccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1995 p27-8) Todavia a consideraccedilatildeo histoacuterica de Hegel natildeo depotildee a assunccedilatildeo da filosofia perante a retoacuterica ldquoA filosofia eacute a ciecircncia dos pensamentos necessaacuterios cuja essencial conexatildeo e sistema eacute o conhecimento do que eacute verdadeiro e portanto eterno e impereciacutevelrdquo (HEGEL 2012 p 25) A sistematicidade do absoluto visa a ldquoplena luminosidaderdquo mesmo em sua configuraccedilatildeo histoacuterica (ldquoensombrecidardquo) O que distingue Hegel e Nietzsche eacute o fundo teleoloacutegico que encontramos no primeiro e a natildeo persistecircncia de uma unidade substancial que conduz a dinacircmica histoacuterica no segundo Hegel potildee a filosofia como ciecircncia e Nietzsche a potildee como retoacuterica

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Ocidente e a deferecircncia para com o cristianismo se instaura gradativamente um novo modelo para o trabalho filosoacutefico modelo este que resgata o mesmo impulso socraacuteticoplatocircnico pela verdade A consequecircncia disso eacute o desprestigio para com a retoacuterica A discursividade dogmaacutetica do medievo expressa um momento da retoacuterica esquecida de si proacutepria devendo tal esquecimento agrave ausecircncia de uma meditaccedilatildeo em torno da linguagem A linguagem aqui se esquece de sua origem interpretativa (ldquometafoacutericardquo) e por conseguinte de sua ldquoraizrdquo retoacuterica Para adentrarmos na criacutetica nietzschiana agrave tradiccedilatildeo do pensamento no Ocidente (criacutetica retoacuterica por excelecircncia) eacute necessaacuterio que faccedilamos um breve incurso nos pilares do pensamento moderno

Difundiu-se largamente o veredito de que a modernidade fomentou uma espeacutecie de ldquocisatildeordquo para com a filosofia escolaacutestica precedente Poreacutem em que sentido sustentar tal asserccedilatildeo Dito suscintamente no sentido de decorrecircncia nesta eacutepoca moderna de uma trepidaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao tradicional impulso para o trabalho filosoacutefico O ldquoponto de partidardquo (ldquotoposrdquo) de toda a investigaccedilatildeo especulativa sofre uma severa modificaccedilatildeo O raciociacutenio eacute simples antes de qualquer inferecircncia que legitime a realidade objetiva de algo urge uma anaacutelise da legitimidade cognitiva daquele que infere acerca dos objetos Natildeo mais principiar das realidades objetivas como ldquodadasrdquo em si mesmas mas sim das condiccedilotildees e paracircmetros mediante os quais torna-se possiacutevel o conhecer Quais satildeo as implicaccedilotildees dessa virada Em primeiro lugar (diferentemente do que poderia advir de leituras apressadas) os problemas centrais no medievo tais como Deus alma e liberdade natildeo satildeo peremptoriamente descartados O que dela decorre eacute apenas uma ldquoprecauccedilatildeordquo atinente ao ldquoponto de partidardquo mais resoluto mediante o qual se desdobre a possibilidade de atingir um conhecimento seguro Os sustentaacuteculos teoloacutegicos da

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filosofia medieval cedem sua autoridade agrave desembocadura epistemoloacutegica Em segundo lugar tem-se o iniacutecio para o movimento cognitivo natildeo no objeto poreacutem no ldquosujeitordquo inquiridor

A inspiraccedilatildeo deste projeto intelectual adota a filosofia cartesiana como eixo tomando-a criticamente ou seguindo-lhe os passos pois todos os pensadores modernos foram seus leitores Descartes inicia seu pensamento a partir da duacutevida hiperboacutelica (ldquodoute hyperboliquerdquo) para chegar agrave constataccedilatildeo de que de tudo eacute possiacutevel duvidar agrave exclusatildeo de que aquele que estaacute a duvidar duvida e com isto inicia-se toda a filosofia do sujeito A certeza (ldquocertituderdquo) da qual se pode partir isto eacute o princiacutepio desta forma de pensar eacute o sujeito pensante o ldquoEurdquo (ldquoego cogitordquo) Escreve Descartes no Discurso do Meacutetodo

Notando que esta verdade eu penso logo existo era tatildeo firme e tatildeo certa que todas as mais extravagantes suposiccedilotildees dos ceacuteticos natildeo seriam capazes de abalar julguei que podia aceita-la sem escruacutepulo como o primeiro princiacutepio da filosofia que procurava (DESCARTES 1991 p46)

A filosofia cartesiana acende a idiossincrasia moderna a saber a ldquoexigecircncia de cientificidaderdquo que por sua vez passa a operar em toda a filosofia posterior Como testemunho temos a evidecircncia desta exigecircncia jaacute nas primeiras linhas do prefaacutecio agrave segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura quando Kant expotildee o objetivo da obra a saber averiguar ldquose a elaboraccedilatildeo dos conhecimentos que pertencem ao ofiacutecio da razatildeo estaacute ou natildeo no caminho seguro de uma ciecircnciardquo (KANT 2013 p25) Natildeo obstante as muacuteltiplas perspectivas filosoacuteficas desenvolvidas nesse periacuteodo este seria o espiacuterito coevo entre os modernos Um dos elementos que salta agrave reflexatildeo diz respeito agrave estiliacutestica do discurso A estiliacutestica oral (ldquopoder-

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discorrerrdquo) do mundo helecircnico eacute sobreposta pela estiliacutestica escrita (ldquosaber-escreverrdquo) do homem moderno A escrita que se efetiva sem a inspiraccedilatildeo sonora perde o caraacuteter efecircmero do dizer agrave medida que almeja cristalizaacute-lo ndash a oralidade (ou ldquovivacidaderdquo) que se faz presente nos textos antigos entra em ocaso Isto se deve ao descaso do espiacuterito moderno para com uma educaccedilatildeo retoacuterica ldquoNo fundo a educaccedilatildeo superior lsquoclaacutessicarsquo de hoje guarda ainda uma boa parte desta concepccedilatildeo antiga exceto que natildeo se propotildee como fim o discurso oral mas antes a sua imagem enfraquecida o saber-escreverrdquo (NIETZSCHE 1995 p80)

11 A inspiraccedilatildeo oral exibe a forccedila retoacuterica de sua histoacuteria perdecirc-la pressupotildee um esforccedilo que visa isentar a razatildeo da histoacuteria (e da retoacuterica)

Esta transfiguraccedilatildeo axioloacutegica do ldquodizerrdquo reflete o projeto cientificista de educaccedilatildeo cujo escopo reside na exatidatildeo discursiva independentemente de sua vigecircncia histoacuterica A rigidez da expressatildeo escrita eacute accedilatildeo de caacutelculo ie intenta assegurar paracircmetros de rigor natildeo controversos antes (e fora) de todo acontecer O ldquoEurdquo enquanto agente preacutevio e propiciador de toda atividade eacute posto como fundo (ldquoGrundrdquo) mediante o qual o real eacute organizado e lapidado A seriedade cientiacutefica como consequecircncia desta crenccedila na razatildeo almeja isentar a sua linguagem do ldquojogordquo que constitui a histoacuteria e a retoacuterica diferentemente dos gregos anteriores agrave ascensatildeo do

11 Em Aleacutem do bem e do mal Nietzsche exemplifica o arrefecimento do influxo oral na figura da cultura alematilde tomando-a como sintoma da estiliacutestica moderna do discurso ldquoO alematildeo natildeo lecirc em voz alta natildeo lecirc para os ouvidos mas apenas com os olhos ao fazecirc-lo potildee os ouvidos na gaveta O homem da Antiguidade quando lia ndash acontecia raramente ndash lia em voz alta tambeacutem para si mesmo as pessoas admiravam-se quando algueacutem lia baixo e secretamente perguntavam-se pelo motivo Em voz alta ou seja com todos os crescendos inflexotildees mudanccedilas de tom e variaccedilotildees de ritmo com que o mundo puacuteblico da Antiguidade se rejubilavardquo (NIETZSCHE 2012b sect247 p140)

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socratismo ldquoEra assim que se caracterizava a especificidade da vida helecircnica todas as atividades do entendimento da seriedade da vida da necessidade e mesmo do perigo satildeo concebidas como um jogordquo (NIETZSCHE 1995 p28-9) O jogo produz e exige daqueles que o cultivam uma atenccedilatildeo para com o seu desdobrar requer portanto uma obediecircncia (ldquoGehorsamrdquo)12 Obediecircncia para com o ldquodizerrdquo da proacutepria vida enquanto jogo que indica uma ldquopossibilidaderdquo de ser um ldquodestinordquo a ser cultivado O jogo se faz jogo enquanto atividadehistoacuteria sendo-lhe o ldquoEurdquo epiacutegono realizando-se no jogo e natildeo como causa do jogar Considerando que todo jogo se desdobra mediante uma linguagem entatildeo seria propiacutecio dizer que eacute a linguagem que constitui a ldquoconsciecircnciardquo e natildeo o contraacuterio Diz Nietzsche ldquoA linguagem natildeo eacute uma produccedilatildeo (Werk) consciente individual ou coletiva Todo o pensamento consciente soacute eacute possiacutevel com a ajuda da linguagemrdquo (NIETZSCHE 1995 p92) Haveria contudo uma linguagem que natildeo estivesse entrelaccedilada com a histoacuteria o jogo e a retoacuterica Em outros termos caberia agrave linguagem discursos apodiacuteticos Responde Nietzsche ldquoNatildeo existe de maneira nenhuma a lsquonaturalidadersquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual se pudesse apelar a linguagem ela mesma eacute o resultado de artes puramente retoacutericasrdquo (p44-5) Com esta reestruturaccedilatildeo criacutetica da retoacuterica a compreensatildeo de ldquosubjetividaderdquo enquanto estabelecimento preacutevio e a-histoacuterico declina Ela natildeo pode ser um ancoradouro metafiacutesico pois representa em uacuteltima instacircncia um ldquotoposrdquo um lugar (compreensatildeo) a partir do qual se estrutura um raciociacutenio A exigecircncia por certezas uacuteltimas se esvai quando todo o acircmbito do discurso eacute posto como desvelamento possiacutevel ndash vigecircncia interpretativa que se mostra ndash logo sem paracircmetros de universalidade ou

12 Em alematildeo a palavra ldquoGehorsamrdquo remete ao verbo ldquohoumlrenrdquo (ouvir) daiacute o viacutenculo para com a oralidade

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necessidade (como quer o rigor cientificista) De modo que ldquoa essecircncia plena das coisas nunca eacute apreendidardquo (NIETZSCHE 1995 p45) Tal ldquoessecircnciardquo natildeo diz respeito ao trabalho linguiacutestico O discurso moderno representa um vieacutes retoacuterico que natildeo se sabe enquanto tal Toda linguagem estaacute circunscrita agrave ldquodoacutexardquo Controversa (ldquodubiumrdquo) por base 4 ldquoPathosrdquo e ldquoEnganordquo Dedicamo-nos ateacute aqui agrave compreensatildeo da linguagem como uma atividade resultante da retoacuterica ocupando-se preponderantemente com a persuasatildeo e a interpretaccedilatildeo logo sem compromissos de cunho metafiacutesico a-histoacuterico Na criacutetica agrave modernidade tentamos expor por conseguinte o fracasso desta em isentar-se da racionalidade histoacuterica Nesse quadro criacutetico poder-se-ia apontar a diacutevida de Nietzsche para com a filosofia de Hegel agrave medida que esta inaugura a razatildeo histoacuterica A disposiccedilatildeo da consciecircncia (ou autoconsciecircncia) se daacute como e enquanto realizaccedilatildeo histoacuterica de modo a solicitar do pensador uma profunda anaacutelise dos desdobramentos do pensar e de sua tradiccedilatildeo Encontramos na seguinte passagem uma suacutemula desta reflexatildeo

A posse da racionalidade autoconsciente que nos pertence a noacutes e ao mundo atual natildeo surgiu imediatamente e despontou apenas do solo da atualidade mas eacute-lhe essencial ser uma heranccedila e de um modo mais definido o resultado do trabalho e decerto do trabalho de todas as geraccedilotildees passadas do gecircnero humano Assim como as artes da vida exterior a quantidade de meios e habilidades as instituiccedilotildees e haacutebitos da coexistecircncia social e poliacutetica satildeo um resultado da reflexatildeo da invenccedilatildeo e do infortuacutenio da vontade e realizaccedilatildeo da histoacuteria (HEGEL 2012 p18-9)

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Na medida em que a histoacuteria eacute posta como a dinacircmica que exprime sentidos e formas de vida possiacuteveis poder-se-ia perguntar agora acerca da fonte para o interpretar a ldquodoxardquo que vige na linguagem opina acerca do quecirc O ldquoprojeto homemrdquo que vingou na modernidade agrave medida que buscou a suficiecircncia da razatildeo almejou tambeacutem a supressatildeo de uma possiacutevel reatividade insuficiente da mesma ndash o ldquoEurdquo enquanto condiccedilatildeo estruturante do mundo (agente) natildeo poderia ser consequecircncia de um afeto de um ldquopathosrdquo Nietzsche anexa agrave criacutetica retoacuterica aleacutem do problema histoacuterico a submissatildeo da razatildeo perante os afetos ldquoa linguagem natildeo apreende coisas ou processos mas excitaccedilotildees (ldquoReiserdquo) natildeo restitui sensaccedilotildees (ldquoEmpfindungrdquo) mas somente coacutepias (ldquoAbbildungrdquo) das sensaccedilotildeesrdquo (NIETZSCHE 1995 p45) A linguagem interpreta afetos sensaccedilotildees Daiacute que no desvelamento linguiacutestico nunca haacute nada aleacutem de coacutepias e figuras possiacuteveis das sensaccedilotildees que assolam o homem13 Temos com isto um movimento artiacutestico por excelecircncia Poder-se-ia dizer ainda que a arte enquanto accedilatildeo de ldquodoacutexardquo agrave medida que natildeo visa cristalizaccedilotildees corresponde agravequele prazer na contradiccedilatildeo (nota 6) de modo a reconhecer e ansiar pelo ldquoenganordquo A avidez por uma arte ldquoobjetivardquo seria desmesura (ldquohybrisrdquo) para consigo proacutepria pois toda arte do discurso eacute retoacuterica Escreve Nietzsche ldquoDiferenccedila capital arte leal e desleal A chamada arte objetiva eacute a mais das vezes uma arte desleal Tambeacutem a

13 Em Aleacutem do bem e do mal Nietzsche nos oferece um testemunho semelhante ldquoQuais os grupos de sensaccedilotildees que dentro de uma alma despertam mais rapidamente tomam a palavra datildeo as ordens isso decide a hierarquia inteira de seus valores determina por fim a sua taacutebua de bens As valoraccedilotildees de uma pessoa denunciam algo da estrutura de sua alma e aquilo em que ela vecirc suas condiccedilotildees de vida sua autecircntica necessidaderdquo (NIETZSCHE 2012b sect268 p166) Entenda-se alma (ldquoSeelerdquo) como a dimensatildeo plural das relaccedilotildees afetivas ie como um jogo de interesses perspectiviacutesticos

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retoacuterica eacute mais leal porque reconhece que visa enganarrdquo (NIETZSCHE 1995 p97) Engano natildeo comporta aqui um sentido moral antes expressa uma criacutetica aos discursos com pretensotildees apodiacuteticas O dizer que ao dizer natildeo esgota o que diz natildeo diz certezas seu empenho natildeo eacute epistecircmico mas sim ldquoopinativordquo ldquoa linguagem eacute retoacuterica porque apenas quer transmitir uma doacutexa e natildeo uma episteacutemerdquo (NIETZSCHE 1995 p46) 5 ldquoTroposrdquo e ldquoUsusrdquo Poder-se-ia agora suscitar o ldquocomordquo e o ldquopara querdquo procede a linguagem Ela natildeo poderia proceder senatildeo como e para a linguagem ie como figuras do discurso (ldquotroposrdquo) e para um uso (ldquoususrdquo) As figuras retoacutericas interpretam afetos daiacute a compreensatildeo do discurso como figuraccedilatildeo pois todo sentido possiacutevel para o viver do homem eacute disponibilizado mediante artifiacutecios retoacutericos A arte retoacuterica ocupa-se com os valores e definiccedilotildees agrave medida que estes satildeo inseridos em uma vivecircncia histoacuterica Nietzsche compreende este trabalho artiacutestico como ldquodesignaccedilotildees improacutepriasrdquo e isto por serem ldquoenganosasrdquo ldquoEntre os mais importantes artifiacutecios da retoacuterica contam-se os tropos as designaccedilotildees improacuteprias Mas todas as palavras satildeo em si e desde o comeccedilo quanto agrave sua designaccedilatildeo troposrdquo (NIETZSCHE 1995 p46) Uma das maiores dificuldades que se nos apresenta quando adentramos nas reflexotildees de Nietzsche corresponde aos jogos para com os sentidos que determinadas palavras adquiriram no decurso da histoacuteria do pensamento Este artifiacutecio atesta o viacutenculo indissociaacutevel entre forma e conteuacutedo filosoacutefico (influecircncia de Ciacutecero jaacute

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presente entre os gregos14) Toda a suposta oposiccedilatildeo entre razatildeo e afeto apoditicidade e ldquodoacutexardquo verdade e engano apontam tatildeo soacute para a radicalidade transfiguradora da arte retoacuterica A figuraccedilatildeo do discurso natildeo comporta assim embasamento moral (dualista a-histoacuterico) mas sim artiacutestico Natildeo haveria outra forma de fazer valer um sentido senatildeo ldquopoeticamenterdquoldquometaforicamenterdquo ou seja criando a si proacutepria sem necessidades uacuteltimas Nietzsche contrapotildee o artista ao filoacutesofo agrave medida que este hostiliza a forccedila plaacutestica da arte

O prazer do belo discurso daacute-se o seu proacuteprio domiacutenio onde natildeo tem a ver com a necessidade O povo de artistas procura a sua respiraccedilatildeo quer fazer do discurso algo de verdadeiramente bem (etwas recht Gutes) Mas os filoacutesofos natildeo tiveram nenhum sentido para isso (natildeo perceberam praticamente nada da arte cuja vida vibra em torno deles como natildeo percebem da plaacutestica) o que produz uma violenta e inuacutetil hostilidade (NIETZSCHE 1995 p82)

Arte eacute figuraccedilatildeo e o mundo adquire sentido

figurativamente daiacute todo discurso ser figurado ldquotroposrdquo Em uacuteltima instacircncia estamos a dizer que ldquotudo eacute metaacuteforardquo A mais profunda abstraccedilatildeo filosoacutefica repousa ainda em figuraccedilotildees e natildeo em essecircncias ldquoOs abstrata provocam a ilusatildeo de que satildeo a essecircncia quer dizer a causa das propriedades quando eacute apenas na sequecircncia dessas propriedades que lhes atribuiacutemos uma existecircncia figuradardquo

14 Tal como expressa esta passagem de A Gaia Ciecircncia ldquoOh esses gregos Eles entendiam do viver Para isto eacute necessaacuterio permanecer valentemente na superfiacutecie na dobra na pele adorar a aparecircncia acreditar em formas em tons em palavras em todo Olimpo da aparecircncia Esses gregos eram superficiais ndash por profundidaderdquo (NIETZSCHE 2012a Pr sect4 p15)

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(NIETZSCHE 1995 p77) Estamos circunscritos agrave dimensatildeo do dizer logo jamais tocamos o ldquoinauditordquo15 Vislumbre sequer nos eacute disponibilizado para aleacutem da ldquodoacutexardquo De modo que a persuasatildeo mais fecunda mediante a linguagem natildeo ultrapassa a atividade retoacuterica O esquecimento desta atividade que convence por metaacuteforas fomenta a exigecircncia pelo inequiacutevoco e necessaacuterio16 A Coisa mesma (ldquodie Sache selbstrdquo) como diz Hegel eacute para Nietzsche seguindo os passos de Ciacutecero uma metaacutefora ldquoAs metaacuteforas satildeo de algum modo bens de empreacutestimo que se vatildeo buscar algures porque se natildeo tem a proacutepria coisardquo (p70)

De onde brotam entretanto esses referidos ldquobens de empreacutestimordquo Brotam da proacutepria linguagem enquanto dimensatildeo interpretativa dos afetos Escreve Nietzsche ldquoA linguagem nunca exprime nada na sua integridade mas exibe somente uma marca que lhe parece salienterdquo (NIETZSCHE 1995 p46) Essa marca (ldquoMerkmalrdquo) refere-se agrave vivecircncia da proacutepria linguagem agrave medida que se vincula ao viver histoacuterico do homem ie agrave dinacircmica dos afetos17 Embora natildeo exprima o ldquoserrdquo da coisa a linguagem

15 Em uma das conferecircncias intituladas A essecircncia da linguagem diz Heidegger ldquoUm lsquoeacutersquo se daacute onde se interrompe a palavrardquo (HEIDEGGER 2008 p171)

16 Em Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral obra da juventude encontramos o mesmo testemunho ldquoO que eacute portanto a verdade Uma multidatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias e antropomorfismos em resumo uma soma de relaccedilotildees humanas que foram realccediladas transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retoacuterica e que depois de um longo uso pareceram estaacuteveis canocircnicas e obrigatoacuterias aos olhos de um povo as verdades satildeo ilusotildees das quais se esqueceu que satildeo metaacuteforas gastas que perderam a sua forccedila sensiacutevel moeda que perdeu sua efiacutegie e que natildeo eacute considerada mais como tal mas apenas como metalrdquo (NIETZSCHE 2008 p4-5)

17 Nietzsche salienta e justifica a oralidade no mundo antigo como interpretaccedilatildeo dos afetos agrave medida que a vincula com a muacutesica ldquoA linguagem eacute feita de sons como a muacutesicardquo (NIETZSCHE 1995 p87) Muacutesica eacute aqui entendida como a dimensatildeo do ldquopathosrdquo ie do

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vive em comunhatildeo com o proacuteprio aparecer humano O ldquopara querdquo da linguagem recai por conseguinte na questatildeo do ldquoususrdquo 18

Uma cultura embevecida de si proacutepria com a dos helenos assim sentia-se devido agrave uniatildeo entre viver e dizer Todo aquele que natildeo estivesse inserido nessa experiecircncia grega era tido como baacuterbaro19 De modo que a vivecircncia miacutetica se dava com o ldquousordquo daquela uniatildeo Quem porventura natildeo se adequasse agraves marcas com que aquela uniatildeo era vivida usada incorreria em barbarismo em ldquoerrordquo Diz Nietzsche ldquoUma figura que natildeo encontre quem a aceite torna-se um erro Um erro retomado por um usus torna-se uma figurardquo (NIETZSCHE 1995 p48) Natildeo se estaacute a dizer contudo que o ldquousordquo grego eacute um ldquoacertordquo

sentimento e da atividade que ldquosofrerdquo o homem ldquoPodemos quase afirmar que eram menos liacutenguas de palavras do que liacutenguas de sentimentos em todo caso os sentimentos formavam as sonoridades e as palavras em cada povo segundo a sua individualidade o movimento (wallen) do sentimento trazia o ritmo Pouco a pouco a liacutengua separou-se da liacutengua das sonoridades (Tonsprache)rdquo (p86) A perda dessa dimensatildeo se daacute em crescente alavancada na modernidade agrave medida que tambeacutem a retoacuterica entra em decliacutenio

18 O ldquouso da linguagemrdquo problematiza a questatildeo da compreensatildeo ou ainda mais a da vivecircncia afetiva seja no acircmbito mais amplo das relaccedilotildees humanas (comunidades povos etc) ou mesmo em uma mais reduzida ou intimista (mais raras pessoais) Tal reflexatildeo eacute desenvolvida nas obras posteriores do filoacutesofo tal como consta nesta passagem de Aleacutem do bem e do mal ldquoPalavras satildeo sinais sonoros para conceitos mas conceitos satildeo sinais-imagens mais ou menos determinados para sensaccedilotildees recorrentes e associadas para grupos de sensaccedilotildees Natildeo basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos uns aos outros eacute preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espeacutecie de vivecircncias interiores eacute preciso enfim ter a experiecircncia em comum com o outrordquo (NIETZSCHE 2012b sect268 p165)

19 Esta experiecircncia representa a necessidade e autenticidade discursiva da vida entre os gregos ldquono conjunto os Gregos sentiam-se como os homens do discurso em oposiccedilatildeo aos aacuteglocircssoi (baacuterbaros) os natildeo-Gregosrdquo (NIETZSCHE 1995 p81)

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em sentido estrito mas que eacute um acerto (uma figuraccedilatildeo artiacutestica) agrave medida que uma interpretaccedilatildeo possiacutevel (metafoacuterica ldquoenganosardquo) eacute aderida e propicia uma experiecircncia comum de vida de histoacuteria20 A prerrogativa dos gregos se encontra na lucidez com que a vida entregou-se agrave linguagem e o ldquousordquo que enalteceu-se a ponto de inaugurar e cultivar artisticamente a linguagem O esplendor da antiguidade deve-se ao desvelamento retoacuterico que se deu sobre a proacutepria retoacuterica

Para Nietzsche a ldquopenuacuteriardquo e espanto inicial perante a insondabilidade com que o mundo continuamente se apresenta ao homem converte-se em ornamento mediante um ldquousordquo possiacutevel daquela uniatildeo Na esteira de Ciacutecero diz Nietzsche ldquoque o modo do discurso metafoacuterico nasceu da necessidade sob pressatildeo da indigecircncia e da perplexidade mas que depois foi seguida pela sua agradabilidaderdquo (NIETZSCHE 1995 p70) ndash A ldquonecessidaderdquo de uma interpretaccedilatildeo possiacutevel que faculte a vida entre homens21 Uma cultura se caracteriza por

20 Wittgenstein nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas ao tratar a linguagem como atividade que se disponibiliza no uso expressa algo semelhante ldquoQuando os filoacutesofos usam uma palavra ndash lsquosaberrsquo lsquoserrsquo lsquoobjetorsquo lsquoeursquo lsquoproposiccedilatildeorsquo lsquonomersquo ndash e almejam apreender a essecircncia da coisa devem sempre se perguntar esta palavra eacute realmente sempre usada assim na linguagem na qual tem o seu torratildeo natal ndash Noacutes conduzimos as palavras do seu emprego metafiacutesico de volta ao seu emprego cotidianordquo (WITTGENSTEIN 2009 sect116 p72)

21 Em todo caso uma questatildeo de valor ldquocomeacuterciordquo Escreve Nietzsche ldquoTodo o comeacutercio entre os homens consiste no seguinte que cada um deles possa ler na alma do outro e a liacutengua comum eacute a expressatildeo sonora de uma alma comum Quanto mais este comeacutercio for iacutentimo e sensiacutevel mais a liacutengua seraacute rica porque ela cresce e decai com essa alma coletiva Falar eacute no fundo a questatildeo que eu ponho ao meu semelhante para saber se ele tem a mesma alma que eu as mais antigas proposiccedilotildees parecem-me ter sido proposiccedilotildees interrogativasrdquo (NIETZSCHE 1995 p99)

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conseguinte como vigecircncia de ldquotroposrdquo Natildeo apenas uma cultura mas todo e qualquer ldquoauditoacuteriordquo

Em uacuteltima instacircncia um paracircmetro de ldquoagradabilidaderdquo requer uma adaptaccedilatildeo a um auditoacuterio ao ldquousordquo que neste vigora Falar corretamente natildeo eacute uma exigecircncia estritamente gramatical pois esta natildeo comporta vigor algum caso a desvinculemos de uma necessidade contextual ndash ldquoo baacuterbaro natildeo fala bem porque natildeo eacute gregordquo isto se daacute agrave medida que esta eacute uma asserccedilatildeo de um auditoacuterio grego Tem-se de considerar os ldquoseguintes criteacuterios para quem e diante de quem se fala em que momento em que lugar sobre que assuntordquo (NIETZSCHE 1995 p56) Natildeo haacute o incontextualizado O proacuteprio acolhimento de uma suposta incontextualizaccedilatildeo depende de ldquoaprovaccedilatildeordquo logo de uma contextualizaccedilatildeo De modo que a ldquouniversalidade da razatildeordquo mesmo a contragosto estaacute circunscrita a uma ldquohomologizaccedilatildeordquo a uma ldquocolheita comumrdquo (ldquohomolegeinrdquo) ndash como no exemplo dos gregos e baacuterbaros um universal eacute fruto do particular Segue-se disso uma criacutetica agrave proacutepria filosofia agrave medida que esta intenta apoderar-se de um discurso apodiacutetico ie de um ldquoauditoacuterio universalrdquo Natildeo reduzir-se-ia o lastro de toda filosofia agrave perseguiccedilatildeo por este auditoacuterio Tal como escreve Perelman ldquoUma argumentaccedilatildeo dirigida a um auditoacuterio universal deve convencer o leitor do caraacuteter coercivo das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta independente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo (PERELMAN 2005 p35)

Em todo caso ldquoresultado de artes puramente retoacutericasrdquo (NIETZSCHE 1995 p45)

6 Conclusatildeo No percurso aqui traccedilado tentou-se interpretar o modo como a criacutetica retoacuterica de Nietzsche nos serviria para

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pensar a proacutepria tradiccedilatildeo filosoacutefica Esta fora criticada em seu impulso claacutessico pela verdade pela essecircncia Todavia o proacuteprio Nietzsche diz que a retoacuterica eacute a essecircncia da linguagem Como compreender este impasse Heidegger se depara com o mesmo problema ldquoComo devemos questionar a linguagem se nossa relaccedilatildeo com a linguagem eacute confusa e em todo caso indeterminada Como devemos perguntar pela essecircncia se o que se chama essecircncia eacute em si mesmo discutiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2008 p134) Parece que todo empenho ldquokataphaacuteticordquo se mostra frustracircneo Todavia caso olhemos mais atentamente veremos que pensar a retoacuterica como a essecircncia da linguagem eacute uma questatildeo mais interrogativa do que afirmativa Escreve Nietzsche ldquoas mais antigas proposiccedilotildees parecem-me ter sido proposiccedilotildees interrogativasrdquo (NIETZSCHE 1995 p99) A pergunta pela essecircncia agrave medida que estaacute intimamente atada agrave retoacuterica (e agrave histoacuteria) se manteacutem sempre enquanto pergunta por exigir de si proacutepria um percurso uma experiecircncia da linguagem Essecircncia soacute pode ser pensada enquanto linguagem de modo que natildeo haacute essecircncia alguma que natildeo seja articulaccedilatildeo retoacuterica Nos serviria agora Wittgenstein ao dizer que ldquoA essecircncia se expressa na gramaacuteticardquo (WITTGEISNTEIN 2009 sect371 p158) A estrutura metafoacuterica de todo dizer manteacutem um abismo (ldquoAbgrundrdquo) para com asserccedilotildees de cunho ontoloacutegico Ao considerarmos que a retoacuterica natildeo se apoia em fundo (ldquoGrundrdquo) algum resta-nos compreendecirc-la como expressatildeo de abismo persuasatildeo que tem como esteio um interrogar Como bem aponta Heidegger ldquoA essecircncia ndash da linguagem Pelo ponto de interrogaccedilatildeo cai por terra tudo o que no tiacutetulo eacute presunccediloso e banalrdquo (HEIDEGGER 2008 p134) Em determinadas passagens da compilaccedilatildeo eacute possiacutevel detectar influecircncias remanescentes de Kant e Schopenhauer este ainda natildeo eacute o Nietzsche a ldquomarteladasrdquo

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da deacutecada de 1880 Todavia insinuaccedilotildees para esta eacutepoca jaacute se encontram nesses textos ldquojuvenisrdquo De modo que natildeo soaria estranho concluirmos com as palavras de Zaratustra ldquoe onde o ser humano natildeo estaria diante de abismos O proacuteprio ver natildeo eacute ndash ver abismosrdquo (NIETZSCHE 2011 p 149)22 Referecircncias ARISTOacuteTELES Oacuterganon Traduccedilatildeo de Edson Bini Bauru SP

Edipro 2ordf ed 2010 CIacuteCERO Marco Tuacutelio Saber envelhecer e A amizade

Traduccedilatildeo de Paulo Neves Porto Alegre LPampM 2002 DESCARTES Reneacute Discurso do Meacutetodo Traduccedilatildeo de J

Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 5ordf ed Satildeo Paulo Ed Nova Cultural 1991 ndash (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

EMPIacuteRICO Sexto Contra os retoacutericos Traduccedilatildeo de Rafael

Huguenin e Rodrigo Pinto de Brito Satildeo Paulo Editora Unesp 2013

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedette Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 1ordf Ed 2007

HEGEL GW Friedrich Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo Artur Moratildeo RJ Nova Fronteira 2012 HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo

de Marcia Saacute Cavalcante Schuback 4 ed ndash Petroacutepolis RJ Vozes Braganccedila Paulista SP Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco 2008

22 Da visatildeo e do enigma (ldquoVom Gesicht und Raumlthselrdquo) parte 1

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HESIacuteODO Teogonia Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo Paulo Ed Iluminuras 2011

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Traduccedilatildeo de

Fernando Costa Mattos 3ordfed ndash Petroacutepolis RJ Vozes Braganccedila Paulista SP Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco 2013

NIETZSCHE Friedrich Da Retoacuterica Traduccedilatildeo de Tito

Cardoso e Cunha Lisboa Ed Vega 1995 ___________________ Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva da utilidade e desvantagem da histoacuteria para a vida Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003 ndash (Conexotildees 20)

___________________ Sobre a verdade e a mentira no

sentido extramoral Traduccedilatildeo de Noeacuteli Correia de Melo Sobrinho Satildeo Paulo Ed Brasileira 2008

___________________ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo de

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

__________________ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar

de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordfEd Companhia de Bolso 2011b

__________________ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordf Ed Companhia de Bolso 2012a

___________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordfEd Companhia de Bolso 2012b

___________________ Saumlmtliche Werke Kritische

Studienausgabe in 15 Baumlnden Muumlnchen Deustscher Taschenbuch Verlag de Gruyter 1999

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PLATAtildeO Goacutergias Traduccedilatildeo de Edson Bini Bauru SP

Edipro 2007 (Diaacutelogos II) __________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da

Rocha Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 12ordf ed 2010

__________ Fedro Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Ed

ufpa Beleacutem 2011 PERELMAN Chaiumlm Tratado da Argumentaccedilatildeo Traduccedilatildeo

de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo 2 ed ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2005

TOULMIN S The Uses of Argument Cambridge University

Press 2008

WITTGENSTEIN Ludwig Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Traduccedilatildeo Marcos G Montagnoli revisatildeo da traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Emmanuel Carneiro Leatildeo 6ordf ed ndash Petroacutepolis Vozes 2009

Pensamento e Vontade como

Vontade de Poder na Filosofia

de Friedrich Nietzsche

Breno Dutra Serafim Soares1

O Surgimento de uma nova concepccedilatildeo de verdade

Haacute um escrito de Nietzsche que data de 1873 denominado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral no qual ele expotildee um conceito de verdade que aponta para o aspecto humano demasiado humano deste conceito Neste escrito Nietzsche escreve o seguinte acerca da verdade

Um exeacutercito moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos numa palavra uma soma de relaccedilotildees humanas que foram realccediladas poeacutetica e retoricamente transpostas e adornadas e que apoacutes uma longa utilizaccedilatildeo parecem a um povo consolidadas canocircnicas e obrigatoacuterias as verdades satildeo ilusotildees das quais se esqueceu que elas assim o satildeo metaacuteforas que se tornaram desgastadas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam seu troquel e agora satildeo levadas em conta apenas como metal e natildeo mais como moedas (VM I p 36)

Verdade e mentira pois devem ser entendidas nesse contexto natildeo mais como descriccedilotildees acuradas das

1 Doutorando em Filosofia pelo programa integrado de doutorado pelas Universidades Federais da Paraiacuteba Rio Grande do Norte e Pernambuco mestre em Filosofia pelo programa de mestrado da Universidade Federal da Paraiacuteba graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraiacuteba Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraiacuteba

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realidades mas como metaacuteforas cujo objetivo eacute facilitar a conservaccedilatildeo da espeacutecie Verdade ldquoeacute antropomoacuterfica de fio a pavio e natildeo conteacutem um uacutenico ponto sequer que fosse lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido deixando de lado o homemrdquo (VM I p 39) Ambas possuem o mesmo valor uma natildeo eacute ontologicamente superior agrave outra porque remete a um estudo do ser A condiccedilatildeo da verdade eacute a mesma da mentira Esta eacute uma forccedila de dissimulaccedilatildeo tanto quanto a verdade ela realiza a funccedilatildeo de manutenccedilatildeo da espeacutecie tatildeo bem quanto a outra Verdade e mentira podem ter um sentido moral mas natildeo extramoral como propotildee o tiacutetulo do escrito este sentido extramoral diz respeito justamente a uma possiacutevel compreensatildeo ontoloacutegica dos termos que eacute veemente negada por Nietzsche Isto porque ambas decorrem de erros de inferecircncias que natildeo tem correspondecircncia alguma com a realidade mas refletem o antropomorfismo do humano que simplifica e abstrai o fluxo perpeacutetuo do vir-a-ser em conceitos ldquotodo conceito surge pela igualaccedilatildeo do natildeo-igualrdquo (VM I p 35) que daacute uma feiccedilatildeo humana agraves coisas Natildeo haacute nada que possa ser denominado igual ou diferente tudo eacute completamente singular e individualizado e o conceito natildeo passa de uma generalizaccedilatildeo arbitraacuteria Estas generalizaccedilotildees arbitraacuterias geram por sua vez as qualidades ocultas com as quais distinguimos as coisas e as pessoas

Nietzsche exemplifica esse pensamento com o conceito de honestidade

Nada sabemos por certo a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse honestidade mas antes do mais de inuacutemeras accedilotildees individualizadas e por conseguinte desiguais que igualamos por omissatildeo do desigual e passamos a designar desta feita como accedilotildees honestas a partir delas formulamos finalmente uma qualitas occulta com o nome honestidade (VM I p 35-36)

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Eacute certo que se trata da percepccedilatildeo de um Nietzsche

relativamente jovem visto que o texto veio agrave tona em 1873 Poreacutem em uma obra mais tardia como Crepuacutesculo dos iacutedolos Nietzsche identifica razatildeo a uma metafiacutesica da linguagem Neste sentido a linguagem eacute proacutepria agrave criaccedilatildeo de iacutedolos porque ela simplifica de forma demasiada processos complexos que se passam no interior do indiviacuteduo Se em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral a linguagem jaacute natildeo representa a realidade de forma adequada em Crepuacutesculo dos iacutedolos ela eacute uma verdadeira criadora de entidades metafiacutesicas Senatildeo vejamos

a linguagem pertence por sua origem agrave eacutepoca da mais rudimentar forma de psicologia penetramos num acircmbito de cru fetichismo ao trazermos agrave consciecircncia os pressupostos baacutesicos da metafiacutesica da linguagem isto eacute da razatildeo (CI III ldquoA lsquorazatildeorsquo na filosofiardquo sect 5ordm p 28)

Nos dois volumes de aforismos que Nietzsche

denomina de Humano demasiado humano 1 e 2 (1878) observamos como uma criacutetica acerca do pensamento tradicional eacute efetuada em prol de um conhecimento traacutegico Este pode ser designado como uma reflexatildeo que procura elidir qualquer grandiloquecircncia por parte do ser humano em tudo que lhe diz respeito Nietzsche nos exorta a perceber como as concepccedilotildees tradicionais da metafiacutesica da religiatildeo e da moral satildeo pautadas por erros da razatildeo Estes por sua vez satildeo identificados a partir de um filosofar histoacuterico e de uma anaacutelise psicoloacutegica do humano O que estaacute em jogo aqui eacute uma confianccedila de que por traacutes das convicccedilotildees humanas haacute uma escolha inconsciente que o processo que nos leva a assumir determinadas posiccedilotildees acerca da vida eacute por demais complexo para ser reduzido a algo da ordem da consciecircncia

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A filosofia histoacuterica seraacute o meacutetodo de investigaccedilatildeo mais utilizado por Nietzsche natildeo somente neste periacuteodo como tambeacutem ao longo de toda sua obra Este meacutetodo teraacute por escopo elidir os preconceitos erigidos pela filosofia metafiacutesica dentre os quais encontramos aquele que Nietzsche vem a denominar como o ldquodefeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo qual seja justamente a falta de sentido histoacuterico (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Esse defeito leva o filoacutesofo a desconsiderar que tudo veio a ser que natildeo existem fatos eternos nem verdades absolutas (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Atraveacutes de seu filosofar histoacuterico Nietzsche trabalha com a ideia de que natildeo haacute um ser humano eterno mas sim um ser humano que veio a ser e que principalmente nos uacuteltimos quatro milecircnios natildeo sofreu grandes alteraccedilotildees em sua constituiccedilatildeo (HDH 1 I sect 2ordm p 16)

Para Nietzsche isso implica em dizer que a faculdade de cogniccedilatildeo natildeo pode ser considerada como estaacutetica mas como algo que veio de um longo processo no qual a linguagem se desenvolveu a partir de simplificaccedilotildees dos eventos ocorridos na natureza Nietzsche assevera que ldquodo periacuteodo dos organismos inferiores o homem herdou a crenccedila de que haacute coisas iguais (soacute a experiecircncia cultivada pela mais alta ciecircncia contradiz essa tese)rdquo (HDH 1 I sect 18 p 28) As crenccedilas no sujeito e no predicado na causalidade no livre-arbiacutetrio e nos postulados baacutesicos da loacutegica satildeo decorrentes de erros de raciociacutenio de generalizaccedilotildees e inferecircncias realizadas a partir de uma tendecircncia encontrada nos organismos inferiores (HDH 1 I sect 18 p 27) O problema segundo a oacutetica de Nietzsche eacute que a metafiacutesica se ocupa de questotildees como a substacircncia a relaccedilatildeo entre sujeito e objeto e a liberdade da vontade como se fossem algo da ordem do eterno e natildeo o resultado de uma longa e lenta evoluccedilatildeo dos organismos vivos Poder-se-ia pensar que o uso do termo ldquoerrordquo nos permite falar em correccedilatildeo e possivelmente em obtenccedilatildeo

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de uma verdade mais acertada acerca dos fenocircmenos Poreacutem isto seria um equiacutevoco porque o vocaacutebulo ldquoerrordquo natildeo eacute utilizado em um contexto epistemoloacutegico mas para expressar justamente a impossibilidade de fazermos uso tanto deste termo quanto do termo ldquoverdaderdquo num sentido objetivo Nietzsche usa o vocaacutebulo ldquoerrordquo (de forma talvez equivocada) para mostrar que todas as verdades natildeo passam de erros porque todas elas satildeo interpretaccedilotildees de tipos de vontade e natildeo descriccedilotildees acuradas do ser Pode-se dizer que a filosofia de Nietzsche estaacute para aleacutem do sentido ontoloacutegico de verdade que nela jaacute natildeo se trabalha com tal noccedilatildeo e que a palavra ldquoerrordquo deve sempre ser entendida como a superaccedilatildeo de tal paradigma Em suma o paradigma da verdade enquanto determinaccedilatildeo do ser jaacute natildeo eacute mais atuante o que opera agora eacute o paradigma do valor no qual todos os conceitos consistem em valores que se impotildeem segundo perspectivas de vida diversas

Eacute justamente a isso que Eugen Fink se refere quando relata que

Ele [Nietzsche] natildeo prova de modo nenhum a veracidade da religiatildeo ou da metafiacutesica para ele esta questatildeo eacute como se jaacute estivesse resolvida quando se mostra que existem tendecircncias vitais por detraacutes da vontade de verdade e que essas tendecircncias natildeo satildeo desinteressadas que visam agrave redenccedilatildeo e outras coisas semelhantes (1983 p 50)

Em Humano demasiado humano a verdade e a mentira

vecircm agrave tona como o resultado de configuraccedilotildees de vontade que necessitam de determinados valores para se sobressair perante as demais A verdade e a mentira natildeo possuem mais um aspecto esteacuteril e espiritual mas vital porque passam a ser consideradas como valores a serem assumidos pelo ser humano Por isso elas devem ser compreendidas em sua historicidade elas natildeo possuem status ontoloacutegico

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mas somente moral porque satildeo uacuteteis enquanto mantenedoras de determinado tipo de vida De agora em diante o pensador deve questionar esse dever para com a verdade objetivamente determinada ele deve investigar ateacute mesmo a obrigaccedilatildeo que temos para com a verdade Isto pode ser conferido a partir da leitura do aforismo ldquoProblema do dever para com a verdaderdquo no qual Nietzsche escreve o seguinte

O pensador vecirc tudo como tendo se tornado e tudo ldquotornadordquo como discutiacutevel eacute portanto o homem sem dever ndash na medida em que eacute apenas pensador Como tal entatildeo ele tambeacutem natildeo reconheceria o dever de enxergar e exprimir a verdade e natildeo teria esse sentimento ele pergunta de onde vem ela para onde pretende ir mas mesmo esse questionar parece questionaacutevel (HDH 2 AS sect 43 p 192)

Nietzsche natildeo nega que a noccedilatildeo de entendimento como concebida por Kant seja verdadeira poreacutem ele afirma que ela se baseia nestes erros da razatildeo e que ldquoa um mundo que natildeo seja nossa representaccedilatildeo as leis dos nuacutemeros satildeo inteiramente inaplicaacuteveis elas valem apenas no mundo dos homensrdquo (HDH 1 I sect 19 p 29) Certamente desde Kant a filosofia se pauta pela concepccedilatildeo de que eacute o intelecto que estabelece as regras a partir das quais podemos entender o mundo e natildeo o contraacuterio Poreacutem Nietzsche vai mais aleacutem nessa criacutetica para o filoacutesofo

aquilo que para noacutes homens se chama vida e experiecircncia gradualmente veio a ser estaacute pleno de vir a ser e por isso natildeo deve ser considerada uma grandeza fixa da qual se pudesse tirar ou rejeitar uma conclusatildeo acerca do criador (a razatildeo suficiente) (HDH 1 I sect 16 p 25)

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A vida natildeo pode ser considerada uma grandeza fixa isto por si soacute impede que elaboremos um juiacutezo acerca dela que natildeo seja injusto Quando pautamos a nossa relaccedilatildeo com a temporalidade fazendo uso de termos como ldquofenocircmenordquo temos uma recusa do vir-a-ser porque a estabilidade ligada ao conceito de fenocircmeno jaacute eacute em si um preconceito sobre a corrente contiacutenua da existecircncia Por isso Nietzsche assevera que ldquode agora em diante o filosofar histoacuterico eacute necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestiardquo (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Eacute necessaacuterio que nos livremos do dogmatismo que tambeacutem se configura neste filosofar que desconsidera a histoacuteria e busca uma verdade estanque para todos ldquoeacute preciso livrar-se do mau gosto de querer estar de acordo com muitosrdquo (ABM II sect 43 p 44) Em Humano demasiado humano ao tecer uma consideraccedilatildeo sobre o intelecto humano Nietzsche chega a afirmar que ldquoele apareceu ndash aparece pois ainda vivemos este periacuteodo ndash quando uma extraordinaacuteria longamente acumulada energia da vontade se transferiu excepcionalmente para fins intelectuais mediante a hereditariedaderdquo (HDH 1 V sect 234 p 148) Ou seja jaacute temos uma consideraccedilatildeo incipiente acerca da vontade e de como ela se desloca para outro campo que natildeo o da accedilatildeo para tornar possiacutevel a formaccedilatildeo do intelecto Este tema seraacute futuramente retomado sob a designaccedilatildeo de ldquovontade de verdaderdquo Em Para aleacutem do bem e do mal (1886) Nietzsche nos traraacute uma versatildeo amadurecida do tema ao apontar que nossas convicccedilotildees estatildeo envoltas por uma necessidade de conservaccedilatildeo e expansatildeo da vida portanto seria obtuso perquirirmos acerca de um juiacutezo utilizando termos como verdade e falsidade (ABM I sect 4ordm p 11)

Nesta obra ele expotildee a questatildeo da verdade a partir do problema do valor da verdade ldquoo que em noacutes aspira realmente agrave verdade De fato por longo tempo nos detivemos ante a questatildeo da origem dessa vontade ndash ateacute afinal parar completamente ante uma questatildeo ainda mais fundamental Noacutes questionamos o valor

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dessa vontaderdquo (ABM I sect 1ordm p 9) Jaacute em Humano demasiado humano Nietzsche trabalha com a ideia de que eacute necessaacuterio compreender que toda metafiacutesica ndash assim como os temores das religiotildees ndash eacute positiva para a humanidade e que noacutes avanccedilamos porque acreditamos em seus conceitos Contudo resta ainda perceber que toda metafiacutesica eacute um erro porque como dito acima adveacutem de uma seacuterie de inferecircncias que embora tenham respaldo na natureza satildeo decorrentes de uma simplificaccedilatildeo grosseira realizada pela nossa capacidade de representaccedilatildeo O surgimento de uma teoria do poder em A Gaia Ciecircncia A gaia ciecircncia (1882) eacute a obra de transiccedilatildeo na produccedilatildeo de Nietzsche Trata-se de uma obra dividida em cinco livros dos quais os trecircs primeiros foram escritos por volta de 1882 ao passo que os dois uacuteltimos datam de 1883 a 1886 ou seja foram elaborados num periacuteodo que corresponde ao de Assim falou Zaratustra e Para aleacutem do bem e do mal Por isso essa obra jaacute traz em seu bojo consideraccedilotildees sobre os conceitos de vontade de poder morte de Deus (niilismo) e eterno retorno do mesmo Nela tambeacutem eacute dada continuidade agrave cruzada de Nietzsche contra a moral e a consciecircncia de culpa No proacutelogo da obra que data de 1886 Nietzsche descreve o livro como um ldquodivertimento apoacutes demorada privaccedilatildeo e impotecircncia o juacutebilo da forccedila que retorna da renascida feacute num amanhatilde e no depois de amanhatilderdquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 1ordm p 9)

Ele nos remete aqui a sua condiccedilatildeo pessoal aduz que o momento de feitura da obra refletiu um periacuteodo de convalescenccedila Tendo em vista que para Nietzsche a filosofia de um autor natildeo pode ser dissociada de sua vida ldquotoda grande filosofia foi ateacute o momento a confissatildeo pessoal de seu autorrdquo (ABM I sect 6ordm p 12) natildeo nos parece absurdo que o pensamento que lhe surge sob a pressatildeo da

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doenccedila natildeo lhe seja alheio mas sirva para pocircr agrave prova a sua pessoa enquanto pensador Natildeo eacute por acaso que Nietzsche ainda no proacutelogo escreve o seguinte ldquosabemos agora para onde o corpo doente com a sua necessidade inconscientemente empurra impele atrai o espiacuteritordquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 11) Esta digressatildeo acerca da doenccedila e suas implicaccedilotildees sobre o pensamento pode parecer mera elucubraccedilatildeo mas tem consequecircncias importantes para o pensamento de Nietzsche Como ele mesmo disse a doenccedila potildee a prova seu pensamento permitindo-lhe considerar se em toda a filosofia

que potildee a paz acima da guerra toda eacutetica que apreende negativamente o conceito de felicidade toda metafiacutesica e fiacutesica que conhece um finale um estado final de qualquer espeacutecie todo anseio predominantemente esteacutetico ou religioso por um Aleacutem Ao-lado Acima Fora (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 11)

natildeo foi a doenccedila que inspirou o filoacutesofo Nietzsche vai mais longe nessa consideraccedilatildeo acerca

do papel da doenccedila no pensamento e chega mesmo a afirmar que a fronteira entre o pensar como produto da alma e as necessidades fisioloacutegicas como algo proacuteprio do corpo eacute algo ilusoacuterio e talvez algo inconscientemente forjado para proteger o caraacuteter objetivo da ideia e de tudo que diz respeito ao acircmbito do pensamento Talvez a histoacuteria do pensamento tenha sido ldquoapenas uma interpretaccedilatildeo do corpo e uma maacute-compreensatildeo do corpordquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 12) Nota-se a partir dessas consideraccedilotildees iniciais que Nietzsche natildeo distingue corpo e alma como haviam feito os pensadores anteriores a ele Distinccedilatildeo esta que funciona talvez como sintoma como forma de alienar o pensamento tornando-o puramente espiritual livrando-o de toda carga imposta pela frivolidade

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do corpo Afinal como Nietzsche aduz o pensamento pode muito bem ser apenas um disfarce para necessidades fisioloacutegicas Vemos assim como Nietzsche daacute continuidade ao pensamento esboccedilado em livros anteriores que remete o pensar a determinado tipo de vontade com o adendo de que em A gaia ciecircncia Nietzsche potildee o pensamento agrave prova descrevendo-o como ldquosintoma de determinados corposrdquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 12) O valor da verdade enquanto descriccedilatildeo acurada da totalidade do ser eacute posto em xeque ao mesmo tempo em que eacute mostrada sua importacircncia enquanto sintoma de sauacutede ou doenccedila ascensatildeo ou degeneraccedilatildeo da vida (GC ldquoProacutelogordquo sect 4ordm p 14-15) O resultado disso eacute que a verdade natildeo continua como verdade se lhe tiramos o veacuteu (GC ldquoProacutelogordquo sect 4ordm p 15) O valor atribuiacutedo agrave existecircncia pela metafiacutesica eacute descartado como resposta objetiva para a condiccedilatildeo humana natildeo possui valor algum quando tomado cientificamente Poreacutem como sintoma do corpo como sintoma do ecircxito ou do fracasso da potecircncia ou impotecircncia daquele que pensa eacute de suma importacircncia para a ciecircncia principalmente para a histoacuteria e a psicologia Segundo Nietzsche

ateacute a pessoa mais nociva pode ser a mais uacutetil no que toca agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie pois manteacutem em si ou por sua influecircncia em outras impulsos sem os quais a humanidade teria haacute muito se estiolado ou corrompido (GC I sect 1ordm p 51)

Eacute ilusoacuterio julgar as accedilotildees em boas ou maacutes de acordo

com sua contribuiccedilatildeo para a conservaccedilatildeo da espeacutecie pois ldquotudo eacute parte da assombrosa economia da conservaccedilatildeo da espeacutecierdquo (GC I sect 1ordm p 51) Afirmar que ldquoateacute a pessoa mais nociva pode ser a mais uacutetil no que toca agrave conservaccedilatildeo da espeacutecierdquo traz consequecircncias profundas para o estudo da moral Se ateacute mesmo os impulsos maus satildeo apropriados

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para o fim da manutenccedilatildeo da espeacutecie natildeo nos eacute mais possiacutevel julgar uma accedilatildeo como boa ou maacute utilizando como paracircmetro justamente a condiccedilatildeo de apropriada ou natildeo ao fim da espeacutecie (GC I sect 4ordm p 57)

A tiacutetulo de exemplo tomemos o estudo que Nietzsche faz da virtude da compaixatildeo Se tomarmos o sentido claacutessico que eacute atribuiacutedo agrave compaixatildeo esta virtude natildeo eacute tatildeo virtuosa assim Isto porque segundo o filoacutesofo a compaixatildeo natildeo exprime nada aleacutem da oportunidade para o aumento do poder daquele que se diz compassivo em relaccedilatildeo agravequele que eacute objeto da compaixatildeo Essa anaacutelise estaacute de acordo com o entendimento de Nietzsche de que todas as virtudes podem ser compreendidas a partir de uma teoria do sentimento de poder ldquoao fazer bem e fazer mal aos outros exercitamos neles o nosso poder ndash eacute tudo o que queremos nesse casordquo (GC I sect 13 p 64)

Temos no aforismo 13 de A gaia ciecircncia intitulado ldquoSobre a teoria do sentimento de poderrdquo uma formulaccedilatildeo incipiente do conceito de vontade de poder Embora este conceito venha a aparecer de forma mais evidente somente no aforismo 349 de A gaia ciecircncia ou seja no quinto livro da obra que teria sido acrescendo a esta cinco anos depois ndash jaacute no periacuteodo de Para aleacutem do bem e do mal ndash o aforismo 13 jaacute nos fornece indicaccedilotildees cruciais acerca do tema Este aforismo eacute de suma importacircncia para entender o conceito fundamental da obra de Nietzsche visto que ele traz em seu bojo a afirmaccedilatildeo de que as virtudes satildeo na verdade sacrifiacutecios ao nosso ldquodesejo de poderrdquo (GC I sect 13 p 64)

Nietzsche afirma que queremos o bem agravequeles que dependem de noacutes porque assim aumentamos o nosso sentimento de poder ao mesmo tempo pelo mesmo motivo nos mostramos belicosos para com os inimigos de nosso poder O sacrifiacutecio que fazemos no intuito de fazer o bem ou o mal natildeo altera o valor uacuteltimo das accedilotildees o que interessa aqui eacute a sensaccedilatildeo de aumento do poder (GC I sect 13 p 64) Neste aforismo jaacute encontramos tambeacutem

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esboccedilada a compreensatildeo da verdade como ldquovontade de verdaderdquo visto que a verdade eacute concebida do ponto de vista da posse ldquoQuem sente que estaacute lsquode posse da verdadersquo a quantas posses natildeo tem de renunciar para salvaguardar esta sensaccedilatildeordquo (GC I sect 13 p 64)

O que estaacute em jogo aqui eacute a renuacutencia de demais aspectos da vida em detrimento da posse da verdade Nietzsche salienta que a verdade estaacute relacionada ao poder daquele que a salvaguarda a sensaccedilatildeo de aumento de poder daquele que deteacutem a verdade eacute valiosa ao ponto deste renunciar a outras posses a ponto de se sacrificar por ela Em suma a sensaccedilatildeo de aumento do poder pode acarretar em sacrifiacutecios nos quais ateacute mesmo a vida deixa de ser um valor supremo o mais importante aqui eacute a sensaccedilatildeo de que nos sacrificamos pelo desejo de poder (GC I sect 13 p 64)

Segundo ele as virtudes satildeo ldquoprejudiciais aos que as possuem enquanto impulsos que neles vigoram de maneira muito aacuterida e violenta natildeo querendo que a razatildeo os conserve em equiliacutebrio com os demais instintosrdquo (GC I sect 21 p 70) Nietzsche chega mesmo a ser provocativo ao afirmar que aquele que possui genuinamente uma virtude eacute viacutetima dela (GC I sect 21 p 70) Isso porque as virtudes existem como expressatildeo de aumento ou decreacutescimo de poder Uma virtude plena trabalha contra o indiviacuteduo eacute prejudicial a este porque eacute chamada de boa em vista dos efeitos que pressupomos que tem para a sociedade e natildeo para o seu detentor (GC I sect 21 p 69-70)

Quando a sociedade elogia o virtuoso ela o faz diminuindo o seu poder ldquoo lsquoproacuteximorsquo louva o desinteresse porque dele retira vantagemrdquo (GC I sect 21 p 70) Vemos assim como a teoria do sentimento de poder surge para suprir o vaacutecuo deixado pela moral tradicional que segundo Nietzsche jaacute caducava Natildeo eacute mais a moral que determina o valor da virtude mas o sentimento de poder daquele que a deteacutem eacute a partir dela que Nietzsche pode afirmar que o elogio das virtudes eacute o elogio de algo nocivo porque reflete

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o elogio de ldquoimpulsos que destituem o homem do seu nobre amor proacuteprio e da forccedila para a suprema custoacutedia de si mesmordquo (GC I sect 21 p 70)

No quinto livro da obra mais precisamente no aforismo 344 Nietzsche tece consideraccedilotildees acerca da relaccedilatildeo da ciecircncia com a verdade afirmando que esta repousa numa crenccedila de que a verdade eacute necessaacuteria (GC V sect 344 p 235) Responder agrave pergunta sobre a necessidade da verdade de forma afirmativa revela somente uma crenccedila de que a verdade eacute mais necessaacuteria que todo o resto Tal resposta se mostra somente como uma convicccedilatildeo porque como diz Nietzsche natildeo demonstra a validade ontoloacutegica da verdade mas somente a crenccedila de que ela eacute mais uacutetil do que a mentira Afinal como salienta o filoacutesofo ldquoQue sabem vocecircs de antematildeo sobre o caraacuteter da existecircncia para poder decidir se a vantagem maior estaacute do lado de quem desconfia ou de quem confia incondicionalmenterdquo (GC V sect 344 p 235)

Novamente o tema da utilidade se faz presente e serve para minar a crenccedila na univocidade dos conceitos pois ldquose a verdade e a inverdade continuamente se mostrassem uacuteteisrdquo natildeo poderiacuteamos pressupor que haacute necessidade das ciecircncias somente porque nestas a verdade eacute buscada incondicionalmente (GC V sect 344 p 235) Nietzsche revela que a nossa feacute na ciecircncia repousa ainda numa crenccedila metafiacutesica de que a verdade eacute divina (GC V sect 344 p 236) Caso questionemos o valor da verdade questionamos tambeacutem o valor da ciecircncia quando abordamos o problema da verdade como vontade de verdade vontade de natildeo se deixar enganar voltamos a questatildeo para o campo da moral porque a remetemos ao problema da utilidade da mesma para a vida ldquolsquoPor que ciecircnciarsquo leva de volta ao problema moral para que moral quando vida natureza e histoacuteria satildeo lsquoimoraisrsquordquo (GC V sect 344 p 236)

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O erro natildeo estaacute em viver a partir de artigos de feacute mas sim em eternizar tais artigos de feacute glorificaacute-los como algo atemporal O erro estaacute em natildeo perceber que o proacuteprio erro pode ser uma condiccedilatildeo necessaacuteria agrave vida Se tivermos em mente que tais artigos de feacute natildeo correspondem agrave essecircncia do mundo mas consistem numa espeacutecie de antropomorfismo2 que tais artigos de feacute satildeo necessaacuterios agrave vida mas que natildeo podem ser elevados agrave condiccedilatildeo de verdade acerca da realidade porque decorrentes de inferecircncias infundadas acerca das coisas entatildeo talvez possamos viver de forma mais leve como espiacuteritos livres que fazem da experiecircncia consigo mesmos o seu mote de vida

A vida natildeo eacute argumento ndash Ajustamos para noacutes o mundo em que podemos viver ndash supondo corpos linhas superfiacutecies causas e efeitos movimento e repouso forma e conteuacutedo sem esses artigos de feacute ningueacutem suportaria hoje viver Mas isto natildeo significa que eles estejam provados A vida natildeo eacute argumento entre as condiccedilotildees para a vida poderia estar o erro (GC III sect 121 p 145)

A teoria do poder substitui a moral tradicional porque descreve as relaccedilotildees a partir da noccedilatildeo de acreacutescimo ou decreacutescimo de poder No aforismo 349 intitulado ldquoAinda a procedecircncia dos eruditosrdquo Nietzsche escreve que ao contraacuterio do que pensava Spinoza por exemplo a vida tende agrave expansatildeo do poder ela natildeo busca a autoconservaccedilatildeo mas a abundacircncia ldquona natureza natildeo

2 Este entendimento que tem nos artigos de feacute a realizaccedilatildeo de uma espeacutecie de antropomorfismo soacute prevalece enquanto o conceito de vontade de poder natildeo eacute claramente exposto e adotado por Nietzsche porque apoacutes isso as valoraccedilotildees seratildeo vistas como o resultado de tentativas de dominaccedilatildeo da vontade de poder e natildeo mais como algo posto por um sujeito cognoscente

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predomina a indigecircncia mas a abundacircncia o desperdiacutecio chegando mesmo ao absurdordquo (GC V sect 349 p 243-244) A vida natildeo gira em torno da conservaccedilatildeo Eacute certo que os seres viventes lutam pela existecircncia mas segundo Nietzsche a luta pela existecircncia natildeo eacute o objetivo da vida ldquoa luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderacircncia de crescimento e expansatildeo de poder conforme a vontade de poder que eacute justamente vontade de vidardquo (GC V sect 349 p 244)

A partir daqui toda consideraccedilatildeo acerca da vida toda valoraccedilatildeo seraacute o resultado da vontade de poder se manifestando sob determinada configuraccedilatildeo Afinal como Nietzsche salienta ldquoo fato de que algo precisa ser considerado verdadeiro eacute necessaacuterio natildeo o fato de que algo eacute verdadeirordquo (FP 9 [38] [28] do outono de 1887 p 291) Todo povo que vive avalia mas natildeo a partir de paracircmetros racionais de avaliaccedilatildeo Natildeo eacute propriamente o ser humano a partir de sua faculdade racional que potildee valores mas a vida em si mesma enquanto vontade de poder ldquoMuitas coisas satildeo mais estimadas pelo vivente do que a vida mesma mas no proacuteprio estimar fala ndash a vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Os valores natildeo podem ser compreendidos a partir da reacutegua estabelecida pela razatildeo cartesiana pois o uacutenico moacutevel da vontade de poder eacute o aumento do poder

Satildeo nossas necessidades que interpretam o mundo nossos impulsos e seus proacutes e contras Cada impulso eacute uma espeacutecie de despotismo cada um tem a sua perspectiva que ele gostaria de impor como norma a todos os outros impulsos (FP 7 [60] do final de 1886 ndash primavera de 1887 p 263)

Os filoacutesofos em sua busca pela verdade

manifestam uma vontade de poder enviesada que exige que tudo se torne pensaacutevel computaacutevel ldquoVontade de tornar

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pensaacutevel tudo o que existe assim chamo eu agrave vossa vontaderdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p108) Dessa forma o que caracteriza o ser humano natildeo eacute mais a capacidade para descrever a realidade em sua essecircncia transcendente como queria Platatildeo ou mesmo a capacidade para conhecer de uma maneira transcendental atraveacutes das formas a priori da sensibilidade do entendimento e da razatildeo como queria Kant mas a capacidade para criar valor porque todo dizer do ser humano manifesta o predomiacutenio de uma vontade de poder que natildeo pode ser mensurada em seu grau de veracidade mas somente a partir da forccedila com que a mesma se impotildee

Nossos valores satildeo inseridos interpretativamente nas coisas Haacute afinal um sentido em si O sentido natildeo eacute necessariamente sentido-relacional e perspectiva Todo sentido eacute vontade de poder (todos os sentidos relacionais podem ser resolvidos nela) (FP 2 [77] do outono de 1885 ndash outono de 1886 p 79)

Dizer que a vida eacute vontade de poder significa dizer

que tudo que vive busca ldquoantes de tudo dar vazatildeo a sua forccedilardquo (ABM I sect 13 p 19) Os filoacutesofos apresentam suas teses como se estas resultassem de ldquouma dialeacutetica fria pura divinamente imperturbaacutevelrdquo quando essas teses surgem de seu iacutentimo desejo tornado consciente (ABM I sect 5ordm p 12) Dessa forma as ldquoverdadesrdquo dos filoacutesofos natildeo passam de preconceitos que satildeo revestidos de razatildeo para se tornarem passiacuteveis de assimilaccedilatildeo pelos demais

No aforismo 347 intitulado ldquoOs crentes e sua necessidade de crerrdquo Nietzsche estabelece uma associaccedilatildeo inequiacutevoca entre os conceitos de vontade de poder e niilismo Ao escrever acerca do niilismo segundo o modelo de Satildeo Petersburgo que segundo ele consiste ldquona crenccedila na descrenccedila ateacute chegar ao martiacuterio por elardquo (GC V sect 347

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p 241) Nietzsche chega agrave conclusatildeo de que o niilismo esse desejo desenfreado pela feacute que natildeo eacute mais possiacutevel ocorre quando falta a vontade pois esta eacute o afeto de comando o emblema da forccedila A forccedila aqui consiste na capacidade de comandar a si mesmo e natildeo se deixar comandar ldquopor um deus um priacutencipe uma classe um meacutedico um confessor um dogma uma consciecircncia partidaacuteriardquo (GC V sect 347 p 241)

Neste sentido tanto o budismo quanto o cristianismo estatildeo ligados a um adoecimento ou afrouxamento da vontade O adoecimento da vontade propicia o advento da noccedilatildeo de dever porque o dever implica no comando no direcionamento da vontade por uma instacircncia superior ao indiviacuteduo quando este natildeo eacute mais capaz de comandar a si mesmo A feacute eacute justamente esse desiacutegnio esse direcionamento da vontade para um ldquouacutenico ponto de vista e sentimento que passa a predominarrdquo (GC V sect 347 p 241)

Nietzsche toma essa elucidaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o adoecimento da vontade e o surgimento da noccedilatildeo de dever como base para fazer uma distinccedilatildeo entre o espiacuterito livre e o crente O primeiro ao contraacuterio do crente que chega agrave convicccedilatildeo fundamental de que tem de ser comandado porque natildeo pode fazecirc-lo por si soacute tem prazer na autodeterminaccedilatildeo A forccedila do espiacuterito livre adveacutem da liberdade da vontade

Uma liberdade da vontade em que um espiacuterito se despende de toda crenccedila todo desejo de certeza treinado que eacute em se equilibrar sobre tecircnues cordas e possibilidade e em danccedilar ateacute mesmo agrave beira de abismos (GC V sect 347 p 241)

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A caracterizaccedilatildeo da vida como vontade de poder em Assim falou Zaratustra

Como relatado acima nas obras Humano demasiado humano Aurora e nas trecircs primeiras partes de A gaia ciecircncia eacute descoberto por Nietzsche algo bastante perturbador a verdade natildeo passa de metaacutefora Tudo que dizemos acerca do mundo natildeo passa de ldquoantropomorfismo esteacuteticordquo (GC III sect 109 p 136) Poreacutem ao mesmo tempo em que faz essa descoberta aterradora o filoacutesofo concebe de forma incipiente uma ldquoteoria do sentimento de poderrdquo Destarte a criacutetica do ldquoperiacuteodo positivistardquo natildeo pode ser simplesmente descartada pelo contraacuterio ela eacute de grande importacircncia na medida em que revela a Nietzsche que por traacutes de toda postulaccedilatildeo de valor haacute apenas a busca pelo poder

Temos nestas obras uma descoberta que se assemelha ao deus Jano da mitologia romana ela eacute bifrontal Por um lado a razatildeo eacute incapaz de tocar o tecido da realidade por outro toda descriccedilatildeo diz respeito agrave manutenccedilatildeo e expansatildeo da vida Como bem observa Tuumlrcke (1993 p 65)

O intelecto difamado como mentiroso eacute o mesmo que eacute festejado como artista o modo diverso de valoraacute-lo eacute um passar de uma teoria negativa para uma teoria positiva de conhecimento do desmascaramento do escandaloso defeito que lhe eacute inerente para a investigaccedilatildeo de como chegou a ter este defeito

Estaacute dado aqui o passo decisivo para a formulaccedilatildeo

do conceito de vontade de poder De fato embora esses escritos mostrem que as bases metafiacutesicas e morais de nossa civilizaccedilatildeo foram minadas de forma irreversiacutevel a ponto de nos legar o sentimento de vazio existencial eles

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servem para revelar a Nietzsche o caraacuteter fundamental da vida

A diferenccedila entre a criacutetica de Humano demasiado humano Aurora e A gaia ciecircncia e a criacutetica de Assim falou Zaratustra eacute que toda uma nova concepccedilatildeo acerca da existecircncia que vinha maturando ao longo destas obras se torna madura o suficiente para embasar uma proposta mais robusta para o problema da decadecircncia Embora seja impossiacutevel identificar a partir de paracircmetros estritamente racionais qualquer verdade acerca do mundo que nos rodeia toda verdade passa a ser entendida como uma ficccedilatildeo que permite a manutenccedilatildeo e desenvolvimento de determinada organizaccedilatildeo da vida social

Na quinta e uacuteltima parte de A gaia ciecircncia ao elaborar uma criacutetica acerca das filosofias que postulam a preservaccedilatildeo como instinto fundamental da vida jaacute nos eacute revelado de forma expliacutecita que a vida tende agrave expansatildeo do poder nada mais ldquoquerer preservar a si mesmo eacute expressatildeo de um estado indigente de uma limitaccedilatildeo do verdadeiro instinto fundamental da vida que tende agrave expansatildeo do poderrdquo (GC V sect 349 p 243-244) Por sua vez a passagem de Assim falou Zaratustra na qual Nietzsche estabelece consideraccedilotildees fundamentais acerca da vontade de poder eacute denominada ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo e consta do segundo livro da obra Nesta passagem o filoacutesofo faz Zaratustra enunciar o seguinte ldquoOnde encontrei seres vivos encontrei vontade de poder e ainda na vontade do servente encontrei a vontade de ser senhorrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 109)

Ainda na mesma passagem pouco mais agrave frente Zaratustra diraacute que a vida natildeo eacute ldquovontade de existecircnciardquo porque ldquoo que natildeo eacute natildeo pode querer mas o que se acha em existecircncia como poderia ainda querer existecircnciardquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Esse trecho revela a vontade de poder como vontade de superaccedilatildeo e natildeo de manutenccedilatildeo expotildee uma criacutetica agrave concepccedilatildeo de vontade

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como tendecircncia a permanecer na existecircncia Tanto essa concepccedilatildeo como essa criacutetica jaacute haviam sido expostas no aforismo 349 de A gaia ciecircncia Poreacutem haacute algo de novo aqui pois Zaratustra tambeacutem afirma que ldquoEste segredo a proacutepria vida me contou lsquoVecircrsquo disse lsquoeu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmorsquordquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110)

Neste sentido natildeo temos aqui um sujeito que conhece os atributos da vida mas a vida que se mostra a si mesma como vontade de poder Natildeo temos aqui uma consideraccedilatildeo de cunho antropoloacutegico pois natildeo eacute Zaratustra que enuncia que a vida natildeo eacute nada aleacutem de vontade de poder eacute a vida mesma que o diz ao profeta A partir daqui toda consideraccedilatildeo acerca da vida toda valoraccedilatildeo seraacute o resultado da vontade de poder se manifestando sob determinada configuraccedilatildeo Todo povo que vive avalia mas natildeo a partir de paracircmetros racionais de avaliaccedilatildeo Natildeo eacute propriamente o ser humano a partir de sua faculdade racional que potildee valores mas a vida em si mesmo enquanto vontade de poder Os valores natildeo podem ser compreendidos a partir da reacutegua estabelecida pela razatildeo cartesiana pois o uacutenico moacutevel da vontade de poder eacute o aumento do poder

Temos o abandono da oacutetica da subjetividade em prol da vontade de poder que possibilita a superaccedilatildeo da criacutetica da metafiacutesica da religiatildeo e da moral como resultado de mero antropomorfismo Natildeo eacute mais o ser humano enquanto sujeito que conhece e avalia mas a vontade de poder que se expressa no humano bem como em todas as coisas como luta por superaccedilatildeo Isso fica claro quando lemos o seguinte ldquoMuitas coisas satildeo mais estimadas pelo vivente do que a vida mesma mas no proacuteprio estimar fala ndash a vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Essa mudanccedila de paradigma se torna evidente quando percebemos como Nietzsche concebe a ldquoverdaderdquo preconizada pelos filoacutesofos como ldquovontade de verdaderdquo

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Os filoacutesofos em sua busca pela verdade manifestam uma vontade de poder enviesada que exige que tudo se torne pensaacutevel computaacutevel ldquoVontade de tornar pensaacutevel tudo o que existe assim chamo eu agrave vossa vontaderdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 108) Dessa forma o que caracteriza o ser humano natildeo seraacute mais a capacidade para descrever a realidade mas a capacidade para criar valor porque todo dizer seu manifesta o predomiacutenio de uma vontade de poder que natildeo pode ser mensurada em seu grau de veracidade mas somente a partir da forccedila que a mesma impotildee

Sob a perspectiva da vontade de poder o niilismo seraacute natildeo somente o resultado do pensamento ocidental ele passaraacute a ser a loacutegica interna desse pensamento que se desenvolve a partir da decadecircncia desde seu princiacutepio Isso se torna patente quando vemos Nietzsche afirmar em seu Crepuacutesculo dos iacutedolos que os dialeacuteticos natildeo satildeo livres para serem dialeacuteticos ldquoa racionalidade foi entatildeo percebida como salvadora nem Soacutecrates nem seus lsquodoentesrsquo estavam livres para serem ou natildeo racionais ndash isso era de rigueur [obrigatoacuterio] era seu uacuteltimo recursordquo (CI ldquoO problema de Soacutecratesrdquo sect 10 p 21-22)

Nietzsche ressalta que aquele tipo de argumentaccedilatildeo dialeacutetica a que se dedicava Soacutecrates era vista com maus olhos pela nobreza de Atenas Isto porque segundo ele

tambeacutem se desconfiava de toda essa exibiccedilatildeo dos proacuteprios motivos Coisas de respeito como homens de respeito natildeo trazem assim na matildeo os seus motivos Eacute indecoroso mostrar todos os cinco dedos Eacute de pouco valor aquilo que primeiramente tem de se provar (CI II ldquoO problema de Soacutecratesrdquo sect 5ordm p 19)

Ao somarmos esta criacutetica do pensador dialeacutetico que

busca enunciar razotildees para seu modo de agir agrave descriccedilatildeo

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do homem nobre como aquele que natildeo exibe os proacuteprios motivos que tem acima de tudo no pathos da distacircncia3 sua motivaccedilatildeo fundamental podemos compreender melhor o que seria o super-homem para Nietzsche

O que estaacute impliacutecito aqui eacute a noccedilatildeo de que a vontade de poder configura a forma como elaboramos a existecircncia Natildeo somos livres para assumirmos a perspectiva que supostamente adotamos na verdade a perspectiva que adotamos eacute o resultado de uma configuraccedilatildeo da vontade de poder que pode ser o resultado de forccedilas ativas ou reativas O adoecimento da vontade leva a uma configuraccedilatildeo da existecircncia que fomenta a fraqueza em vez da forccedila A vontade fraca eacute aquela que natildeo consegue lidar com os aspectos negativos da vida sem criar paliativos que a tornam menos dura mais palataacutevel Nessa perspectiva o advento da modernidade ndash com todas as inovaccedilotildees na forma de pensar que lhe satildeo proacuteprias ndash natildeo representa um avanccedilo em relaccedilatildeo agrave forma de pensar da Antiguidade e do Medievo A ciecircncia o sentido histoacuterico a democracia continuam sendo a expressatildeo de uma vontade fraca Tudo natildeo passa do resultado de ldquoinstintos ruins de naturezas doentesrdquo a que foi dado vazatildeo (EH ldquoPor que sou tatildeo inteligenterdquo sect 10 p 50)

A elaboraccedilatildeo de uma hierarquia de valores em Para aleacutem do Bem e do Mal

A descriccedilatildeo de uma ldquonobreza em geralrdquo pode ser encontrada em Para aleacutem do bem e do mal livro que se segue ao Zaratustra Nesta obra jaacute temos o exerciacutecio de um projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores que se traduz pela distinccedilatildeo entre a valoraccedilatildeo tiacutepica de uma vontade fraca (que

3 De acordo com Patrick Wotling (2013 p 35-36) pathos da distacircncia consiste no ldquodesejo passional de distacircncia que potildee os limites destinados a afastar aqueles que natildeo satildeo reconhecidos como lsquoparesrsquordquo

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se exprime pela foacutermula ldquobom e maurdquo) e aquela que Nietzsche considera forte ou seja nobre (pautada na foacutermula ldquobom e ruimrdquo) Esta obra conteacutem tambeacutem aforismos nos quais Nietzsche disserta a respeito do que ele denomina como a ldquorebeliatildeo escrava na moralrdquo cujo resultado eacute a substituiccedilatildeo da moral nobre por uma moral escrava

Para ele ldquoa alma nobre tem reverecircncia por si mesmardquo (ABM IX sect 287 p 174) A alma nobre eacute aquela impelida pelo egoiacutesmo ldquoela natildeo gosta de olhar lsquopara cimarsquo ndash mas sim adiante de maneira lenta e horizontal ou para baixo ndash ela sabe que se encontra no altordquo (ABM IX sect 265 p 165) Afinal ldquoo essencial numa aristocracia boa e satilde eacute que ela natildeo se sinta como funccedilatildeo (quer da realeza quer da comunidade) mas como seu sentido e suprema justificativardquo (ABM IX sect 258 p 154) Essa caracteriacutestica distingue o nobre do escravo porque este natildeo estabelece distinccedilotildees a partir de si mesmo de sua forccedila mas a partir do outro da supressatildeo da forccedila do outro

o olhar do escravo natildeo eacute favoraacutevel agraves virtudes do poderoso eacute ceacutetico e desconfiado tem finura na desconfianccedila frente a tudo lsquobomrsquo que eacute honrado por ele ndash gostaria de convencer-se de que nele a proacutepria felicidade natildeo eacute genuiacutena (ABM IX sect 260 p 158)

Ao longo dos livros que precedem Para aleacutem do bem e do mal vimos como Nietzsche mostra que a consciecircncia eacute uma faceta iacutenfima da atividade que se desenvolve no corpo humano como ela representa o instinto de rebanho que resulta da dificuldade do humano em sobreviver por si soacute no meio selvagem A consciecircncia se desenvolveu juntamente com a linguagem a partir de simplificaccedilotildees grosseiras mas necessaacuterias para que a besta homem pudesse sobreviver Esse tipo de consideraccedilatildeo visa mostrar que a linguagem possui utilidade para o humano mas este

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natildeo pode fazer uso dela para alcanccedilar o reino do supra-sensiacutevel onde supostamente reina a verdade Tal concepccedilatildeo da linguagem tambeacutem eacute mostrada por Nietzsche como o resultado de uma luta por domiacutenio como uma perspectiva de vida

Resta saber como Nietzsche pode fazer um julgamento tatildeo negativo dessa vontade de poder que se sublima em vontade de verdade a ponto de afirmar que ldquofilosofar eacute um atavismo de primeiriacutessima ordemrdquo (ABM I sect 20 p 24) Para tanto eacute necessaacuterio perceber que embora a vida seja vontade de poder ou seja acircnsia de domiacutenio haacute vontades fortes e fracas (ABM I sect 21 p 26) O que seria uma vontade fraca Tal vontade se apresentaraacute como aquela que deseja ldquoum punhado de lsquocertezarsquo a toda uma carroccedila de belas possibilidadesrdquo (ABM I sect 10 p 15) Uma vontade fraca deseja um significado para a vida dado de antematildeo natildeo suporta a abertura para possibilidades que eacute proacutepria da vida Talvez possamos compreender melhor uma vontade fraca a partir da vontade forte Esta pode ser denominada tambeacutem a partir da designaccedilatildeo espiacuterito livre o artista da vida capaz de compreender a imoralidade da vida e de se arriscar na tentativa do artificial em vez de buscar guarida no gosto pelo incondicional (ABM II sect 31 p 35)

A vontade forte natildeo se deixa levar por moralismos ela vivencia um periacuteodo extramoral no qual natildeo passa de ldquoum preconceito moral que a verdade tenha mais valor do que a aparecircnciardquo (ABM II sect 34 p 39) Nietzsche eacute provocativo ao afirmar que o filoacutesofo tem de agora em diante direito ao ldquomau caraacuteterrdquo (ABM II sect 34 p 38) sim ao mau caraacuteter porque ele natildeo mais avalia as accedilotildees com base na moral De fato se levarmos em consideraccedilatildeo que a proacutepria palavra ldquoaccedilatildeordquo jaacute eacute um preconceito que ela representa uma simplificaccedilatildeo grosseira dessa corrente contiacutenua na qual se desenrola a vida se considerarmos que o livre-arbiacutetrio eacute um anseio por nos sobrecarregar de responsabilidade (ABM I sect 21 p 25) se considerarmos que o oposto do livre-

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arbiacutetrio o ldquocativo-arbiacutetriordquo natildeo passa de um abuso da noccedilatildeo de causa e efeito quando existe somente vontade atuando sobre vontade (ABM II sect 21 p 25) entatildeo a vontade forte eacute aquela que se rebela contra a simplicidade da gramaacutetica a metafiacutesica do homem comum vislumbrando os conceitos como ldquoficccedilotildees convencionais para fins de designaccedilatildeo de entendimento natildeo de explicaccedilatildeordquo (ABM I sect 21 p 25-26) Tal vontade poderaacute ser taxada de ldquomau caraacuteterrdquo porque ela natildeo se pauta mais por este moralismo que resulta da accedilatildeo dominada pelo livre-arbiacutetrio porque ela natildeo mais carrega o fardo que resulta de tal raciociacutenio justamente o fardo da responsabilidade Para a vontade forte soacute haacute vontade atuando sobre vontade o mundo eacute visto como vontade de poder e nada mais (ABM II sect 36 p 40) Nietzsche natildeo nega que a sociedade gerada pela teacutecnica desenvolvida a partir da ciecircncia e em uacuteltima instacircncia pela metafiacutesica seja mais segura mais pacata mais fina em seus costumes No entanto isso natildeo significa necessariamente algo positivo ldquoesse homem das culturas tardias e das luzes veladas seraacute por via de regra um homem bem fraco sua aspiraccedilatildeo mais profunda eacute que um dia tenha fim a guerra que ele eacuterdquo (ABM V sect 200 p 86) Isso porque Nietzsche tambeacutem afirma que ldquoo sofrimento profundo enobrece coloca agrave parterdquo (ABM IX sect 270 p 169) Em outros termos a reaccedilatildeo em face ao sofrimento passa a ser o criteacuterio para avaliar o valor dos valores ldquoA hierarquia eacute quase que determinada pelo grau de sofrimento a que um homem pode chegarrdquo (ABM IX sect 270 p 169)

O que distingue os sofredores ndash pois todos somos sofredores ndash eacute sua relaccedilatildeo com o sofrimento se buscamos escapar do sofrimento em direccedilatildeo a um ser venturoso ou se consideramos o ser como suficientemente venturoso a ponto de ldquojustificar mesmo uma quantidade descomunal de sofrimentordquo (FP 14 [89] do comeccedilo do ano 1888 p 241) Haacute portanto dois tipos de sofredores os que sofrem de

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abundacircncia de vida e aqueles que sofrem de empobrecimento de vida (GC V sect 370 p 272)

O sentido do sofrimento assume assim papel fundamental no pensamento de Nietzsche Ele serve para estabelecer a linha divisoacuteria entre o que ele denomina como ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoconhecimento romacircnticordquo ou ldquopessimistardquo ldquoDecifra-se o problema eacute o problema do sentido do sofrimento ora um sentido cristatildeo ora um sentido traacutegicordquo (FP 14 [89] do comeccedilo do ano 1888 p 241) Os espiacuteritos niveladores defensores das ideias modernas formam fileiras para debelar o sofrimento por isso satildeo considerados romacircnticos fracos Da mesma forma a vontade que estabelece como paracircmetro avaliador o prazer e o desprazer que coloca a supressatildeo do sofrimento em primeiro plano revela seu caraacuteter fraacutegil adoecido

Afinal ldquohaacute problemas mais elevados do que dor prazer e compaixatildeo e toda filosofia que trate apenas disso eacute ingenuidaderdquo (ABM VII sect 225 p 118) Jaacute o conhecimento traacutegico eacute aquele que se permite ldquonatildeo soacute a visatildeo do terriacutevel e discutiacutevel mas mesmo o ato terriacutevel e todo luxo de destruiccedilatildeo decomposiccedilatildeo negaccedilatildeordquo (GC V sect 370 p 273) O conhecimento traacutegico consiste justamente em perceber que o sofrimento eacute inerente agrave vida mas natildeo somente consiste em concebecirc-lo como algo desejaacutevel ldquoVocecircs querem se possiacutevel ndash e natildeo haacute mais louco lsquopossiacutevelrsquo ndash abolir o sofrimento e quanto a noacutes ndash parece mesmo que nos o queremos ainda mais maior e pior do que jamais foirdquo (ABM VII sect 225 p 117) Conclusatildeo A figura do Uumlbermensch vem representar justamente a vontade que supera a si mesma capaz de moldar a vida a partir de sua forccedila capaz de realizar a transvaloraccedilatildeo de todos os valores ldquo() todo tipo de pessimismo e niilismo

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na matildeo dos mais fortes natildeo passa agora de um martelo e de um instrumento a mais com o qual eacute possiacutevel colocar um novo par de asasrdquo (FP 2 [101] do outono de 1885 ndash outono de 1886 p 91) O Uumlbermensch eacute um ser cuja criaccedilatildeo natildeo pode ser mensurada como certa ou errada a partir da ldquoreacutegua da razatildeordquo tendo em vista ser a razatildeo fruto de uma inversatildeo de valores que colocou em relevo as ldquopropriedades que servem para aliviar a existecircncia dos que sofremrdquo (ABM IX sect 260 p 158)

O Uumlbermensch eacute aquele indiviacuteduo capaz de interpretar a existecircncia mas natildeo a partir de um ponto de vista teoacuterico que tem no sujeito racional seu ponto de apoio O pensamento que se adequa a uma ordem de razotildees natildeo eacute capaz de compreender esse aspecto de toda criaccedilatildeo porque ele jaacute estaacute comprometido com a loacutegica da verdade Sendo assim toda criaccedilatildeo do Uumlbermensch eacute obra de arte e como tal eacute verdadeira em si mesma

A este respeito vale a pena citar Miguel Antonio do Nascimento que se expressa da seguinte maneira sobre o tema

Assim o que faz valer no valor natildeo eacute o dado efetivo mas o poder tornar efetivo dando ao ato cunho de criaccedilatildeo Nesta circunstacircncia de falta de um dado criar resulta necessariamente em criar do nada o sentido de sua proacutepria existecircncia tornando o ser humano seu proacuteprio para-aleacutem-de-si em elevaccedilatildeo (2004 p 310)

O Uumlbermensch representa o niilismo ativo a vontade de poder capaz de criar a partir do nada Natildeo nos eacute possiacutevel aventar Deus como conjectura porque Deus ultrapassa nossa capacidade criadora Para compreender isso basta observarmos o trecho do Zaratustra denominado ldquoNas ilhas bem-aventuradasrdquo no qual Nietzsche fala da

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impossibilidade da criaccedilatildeo de deuses mas na possibilidade de criaccedilatildeo do Uumlbermensch

Deus eacute uma conjectura mas eu quero que vossas conjecturas natildeo excedam vossa capacidade criadora Podeis criar um deus ndash Entatildeo natildeo me faleis de deuses Mas bem poderiacuteeis criar o Uumlbermensch (ZA II ldquoNas ilhas bem-aventuradasrdquo p 81)

Quando assumimos uma perspectiva teoloacutegica entendemos o ser humano como objeto de uma narrativa que o transcende natildeo como o sujeito detentor da forccedila (ou fraqueza) para se determinar enquanto criador de valores Sob uma perspectiva escatoloacutegica todos os valores que venham a ser criados jaacute estatildeo determinados de antematildeo como ldquobonsrdquo ou ldquomausrdquo pelos paracircmetros estabelecidos pelo Deus que nos criou Devemos portanto conjeturar a respeito do que natildeo estaacute fora dos limites de nossa capacidade criativa O Uumlbermensch surge assim como meta a ser alcanccedilada porque ele consiste numa expressatildeo cunhada por Nietzsche para a compreensatildeo poacutes-metafiacutesica da existecircncia ou seja para a compreensatildeo da histoacuteria ocidental como histoacuteria do niilismo

O Uumlbermensch assume essa histoacuteria como seu destino O conhecimento traacutegico consiste justamente em perceber que o sofrimento eacute inerente agrave vida mas natildeo somente consiste em concebecirc-lo como algo desejaacutevel ldquoVocecircs querem se possiacutevel ndash e natildeo haacute mais louco lsquopossiacutevelrsquo ndash abolir o sofrimento e quanto a noacutes ndash parece mesmo que noacutes o queremos ainda mais maior e pior do que jamais foirdquo (ABM VII sect 225 p 117) A vontade de poder possui assim uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com o niilismo O sentido mesmo da vontade de poder diz respeito agrave compreensatildeo de que a tradiccedilatildeo filosoacutefica chegou ao seu colapso ou seja revelou-se a natureza niilista de sua proposta O metro para

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a verdade eacute a capacidade para suportar esse destino e viver uma vida autecircntica apesar da ausecircncia de um fundamento uacuteltimo para a existecircncia Tomemos o trecho de Assim falou Zaratustra intitulado ldquoDa redenccedilatildeordquo como exemplo Trata-se do primeiro momento em que a temaacutetica do eterno retorno eacute focada nesta obra ainda que apenas indiretamente Nesta passagem do Zaratustra a relaccedilatildeo com a temporalidade eacute delineada a partir de duas concepccedilotildees adversas de redenccedilatildeo a redenccedilatildeo que liberta do tempo e a redenccedilatildeo que se daacute no tempo A primeira forma de redenccedilatildeo eacute proposta pelo ldquoespiacuterito de vinganccedilardquo contra o tempo que se caracteriza pela ldquoaversatildeo da vontade pelo tempo e seu lsquoFoirsquordquo (ZA II ldquoDa redenccedilatildeordquo p 133) O espiacuterito de vinganccedila eacute aquele que natildeo consegue estabelecer uma relaccedilatildeo saudaacutevel com a temporalidade com o correr do tempo e a impossibilidade da vontade de ldquoquerer para traacutesrdquo (ZA II ldquoDa redenccedilatildeordquo p 133)

O eterno retorno eacute o pensamento que reflete o grau maacuteximo de niilismo ou de ausecircncia de sentido tal doutrina desponta como o pensamento que natildeo admite sentido algum para o ser em geral porque potildee a repeticcedilatildeo eterna de tudo que haacute como condiccedilatildeo indeleacutevel e inelutaacutevel Se a histoacuteria do Ocidente eacute a histoacuteria da ascensatildeo do niilismo o eterno retorno eacute o pensamento que retira de maneira definitiva o veacuteu de sentido que poderia ser ainda atribuiacutedo agrave existecircncia por alguma interpretaccedilatildeo Mas isso eacute proposital porque Nietzsche entende que ldquoa medida de grau da forccedila da vontade eacute ateacute que ponto se pode prescindir de sentido nas coisas ateacute que ponto se suporta viver em um mundo sem sentidordquo (FP 9 [60] [46] do outono de 1887 p 302) Nota de Esclarecimento

Satildeo de Nietzsche as obras sem indicaccedilatildeo de autor Abreviamos os tiacutetulos como segue

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VM ndash Sobre verdade e mentira no sentido extramoral HDH 1 ndash Humano demasiado humano (v 1) HDH 2 OS ndash Humano demasiado humano (v 2) miscelacircnea de opiniotildees e sentenccedilas HDH 2 AS ndash Humano demasiado humano (v 2) o andarilho e sua sombra A ndash Aurora GC ndash A gaia ciecircncia ZA ndash Assim falou Zaratustra ABM ndash Para aleacutem do bem e do mal GM ndash Genealogia da moral CI ndash Crepuacutesculo dos iacutedolos AC ndash O anticristo CW ndash O caso Wagner EH ndash Ecce homo Forma de citaccedilatildeo Para os textos publicados por Nietzsche o algarismo romano indica a parte ou capiacutetulo o algarismo araacutebico indica a seccedilatildeo no caso de ZA e CI o algarismo romano indica a parte do livro seguida do tiacutetulo da passagem e do algarismo araacutebico que indica a seccedilatildeo no caso de GM o algarismo romano anterior ao araacutebico remete a uma das trecircs dissertaccedilotildees no caso de EH o algarismo araacutebico que se seguiraacute ao tiacutetulo do capiacutetulo indicaraacute a seccedilatildeo Para as anotaccedilotildees poacutestumas os algarismos araacutebicos seguidos da data indicam o fragmento poacutestumo e a eacutepoca em que foi redigida Quanto aos demais autores indicamos o autor e a data de publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo seguida da paacutegina

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Referecircncias NASCIMENTO Miguel Antonio do (2004) Sobre a criacutetica de

Nietzsche aos valores Ethica ndash Cadernos acadecircmicos v 11 n 1 e 2 p 283-311

NIETZSCHE Friedrich W A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo notas e

posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

_________ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

_________ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais

Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

_________ Crepuacutesculo dos iacutedolos ou Como se filosofa

com o martelo Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

_________ Fragmentos poacutestumos 1885-1887 volume VI

Trad de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

_________ Fragmentos poacutestumos 1887-1889 volume VII

Trad de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

_________ Humano demasiado humano um livro para

espiacuteritos livres volume I Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza 2 ed Satildeo Paulo Companhia de bolso 2005

_________ Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres volume II Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza 2 ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

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_________ Para aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de bolso 2005

Niilismo e Teacutecnica em

Heidegger

Bruno Ricardo A Malvino1

Introduccedilatildeo

Neste trabalho tentaremos traccedilar o quadro niilista

no qual Heidegger situa a sua compreensatildeo de teacutecnica moderna procurando compreender a caracterizaccedilatildeo da teacutecnica moderna como Ge-stell nas suas variadas caracteriacutesticas e determinaccedilotildees Em seguida exploraremos em que medida a Ges-stell representa para Heidegger o ldquosupremo perigordquo nomeadamente no texto ldquo A Questatildeo da Teacutecnica publicado em 1954 para assim investigarmos a relaccedilatildeo da teacutecnica com o niilismo no texto ldquoPara que Poetasrdquo de 1950 a fim de estabelecer pontes entre Nietzsche e o pensamento metafiacutesico nomeadamente a filosofia moderna Nesse sentido tentaremos articular como Heidegger interpreta as teorias da vontade de poder e do eterno retorno do mesmo como apoteoses (epifanias) do niilismo ou seja consumaccedilatildeo do caminho trilhado pela metafiacutesica desde as suas origens onde o ser eacute permanentemente confundido com a essecircncia que se encontra presente na totalidade do ente interpretando tambeacutem a vontade de poder e o Uumlbermensch nietzschiano como a transformaccedilatildeo do ego cogito de Descartes num ego volo a saber num Eu quero Em seu texto A essecircncia do Niilismo Heidegger faz a seguinte observaccedilatildeo sobre o niilismo e sua essecircncia

O niilismo eacute um movimento historial natildeo qualquer opiniatildeo ou doutrina representada por quem quer

1 Mestrando em Filosofia pela universidade Federal da Paraiacuteba

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que seja O niilismo move a histoacuteria segundo o modo de um processo fundamental quase natildeo reconhecido que se daacute no destino dos povos ocidentais Por isso o niilismo natildeo eacute tambeacutem somente uma manifestaccedilatildeo historial entre outras natildeo eacute somente uma corrente espiritual que ao lado de outras ao lado do cristianismo do humanismo e do iluminismo ocorre igualmente dentro da histoacuteria ocidental O niilismo eacute pensado em sua essecircncia muito mais o movimento fundamental da histoacuteria do ocidente Ele mostra algo que cala tatildeo fundo que seu desdobramento soacute pode ainda ter como consequecircncias cataacutestrofes mundiais O niilismo eacute o movimento historico-mundial dos povos da terra que entraram no acircmbito de poder da modernidade (HEIDEGGER 2000 p 6)

Na longa crise da grande filosofia posterior ao

sistema de Hegel Heidegger restitui-nos o sentido do que significa pensar em grande estilo natildeo soacute pela densidade de sua obra mas tambeacutem pela aguda sensibilidade que demonstrou diante dos principais problemas de nossa eacutepoca o arrefecimento da consciecircncia religiosa a crise dos valores a falta de confianccedila na razatildeo meramente instrumental o fim do absoluto e o fechamento do horizonte da teacutecnica Nesse sentido o fulcro da reflexatildeo de Heidegger eacute trazido agrave tona pelo pensamento de uma criacutetica da modernidade na qual o filoacutesofo questiona e investiga o modus operandi e o modo de pensar tecnoloacutegico no qual se consuma a metafiacutesica ou seja no modo como a natureza eacute trazida diante do homem moderno atraveacutes da representaccedilatildeo (Vor-stellung) pelo proacuteprio homem Ora o homem potildee o mundo diante de si como a objetualidade na sua totalidade movido por uma ldquovontade de vontaderdquo e potildee-se a si mesmo diante do mundo Nesse sentido para Heidegger o homem cultiva a natureza quando ela natildeo basta para responder agraves suas expectativas representativas

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Nesse processo denominado por Heidegger de Ereignis Acontecimento apropriativo o homem elabora coisas novas quando elas o incomodam inaugurando uma tecnicizaccedilatildeo da teacutecnica

A histoacuteria (Geschichte) compreendida por Heidegger como evento-apropriador (Ereignis) eacute uma verdade A verdade que em Ser e Tempo era entendida como (Aleacutetheia) agora a partir do vigorar da teacutecnica possui o sentido de ldquoacontecimento-apropriativo ou seja Ereignis Enquanto no desvelamento (aleacutetheia) se apresentava a ldquocoisa ela mesmardquo como fenocircmeno no acontecimento da teacutecnica se revela o desabrigar de todo misteacuterio O Ges-stell como essecircncia da teacutecnica tem o estatuto de verdade num sentido abrangente e totalizante eacute a verdade que se mostra natildeo como o que se mostra por si senatildeo como aquilo que se afirma por si eacute um acontecimento O que acontece essencialmente eacute o enquadramento de tudo sob a determinaccedilatildeo da representaccedilatildeo e do caacutelculo O algoritmo e o caacutelculo garantem a individuaccedilatildeo da coisa tornada objeto para um sujeito ou seja a representaccedilatildeo Tendo em vista que a representaccedilatildeo possui o caraacutecter de ser-sempre presente podemos entender o papel do homem no advento e manutenccedilatildeo da teacutecnica eacute da ldquonaturezardquo ou destino do homem corresponder a esse apelo teacutecnico Ele corresponde representando sem se dar conta de que ao representar ele natildeo apreende o mundo mas apenas visotildees imagens ou concepccedilotildees de mundo o mundo eacute objetivado Eacute no homem que o mundo se torna Imagem do Mundo

O termo Ges-stell eacute o termo utilizado por Heidegger para caracterizar o ponto culminante da modernidade e do pensamento metafiacutesico ou seja o modelo de racionalidade imperante no qual o pensamento se torna calculador privilegiando um modelo de

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racionalidade no qual o ser2 eacute pensado enquanto coisa ou seja maquinaria

Ao tornar impliacutecito que a tecnologia moderna e o pensamento metafiacutesico partilham da mesma essecircncia Heidegger avanccedila com uma estrateacutegia assente num argumento fundamental a tecnologia e o pensamento nietzschiano caracterizam o niilismo moderno e a superaccedilatildeo da tecnologia moderna soacute poderaacute ocorrer no cerne de uma superaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico Somente uma nova relaccedilatildeo com o ser pode superar a tecnologia moderna

Seraacute a tecnicidade a passagem histoacuterica para o teacutermino a derradeira queda do homem agrave condiccedilatildeo de animal tecnificado e que assim perde inclusive a animalidade originaacuteria que o ligava aos outros animais ou seraacute que ela pode ser tomada antes de mais nada como um abrigo e assim algo capaz de servir de fundamento para repensar e levar nossa existecircncia (Heidegger 2013 p 194)

Nesse contexto podem-se enquadrar as

enigmaacuteticas palavras que o pensador vai buscar em Houmllderlin que versam ldquoMas aiacute onde cresce o perigo aiacute tambeacutem vige aquilo que salvardquo3

Analisemos um pouco esses versos citados por Heidegger Diz o autor seguindo essa estrofe de Houmllderlin que o ldquoperigordquo presente no ponto culminar da metafiacutesica e da essecircncia da tecnologia moderna abre as portas para a sua proacutepria superaccedilatildeo A fazer jus a essa mesma ideia

2 O ser para Heidegger eacute o esquecido da Histoacuteria da Filosofia como metafiacutesica O ser eacute o acontecimento-apropriador (Ereignis) O ser eacute a diferenccedila ontoloacutegica entre ente e ser do ente (ente enquanto ente)

3 Heidegger Martin Caminhos de Floresta edCalouste Gubenkian p40 ldquo A salvaccedilatildeo teraacute de vir do lugar onde se daacute a viragem no interior da essecircncia dos mortaisrdquo

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Heidegger utiliza outra metaacutefora para dizer o mesmo quando afirma que o Ges-stell eacute essencialmente ambiacuteguo eacute uma cabeccedila de Jano por um lado corresponde agrave consumaccedilatildeo da metafiacutesica por outro anuncia a passagem da metafiacutesica a um outro pensamento o Ereignis4

Comeccedilaremos pois nas linhas que se seguem por tentar aprofundar de que forma o Ges-stell corresponde simultaneamente ao aacutepice da metafiacutesica que Heidegger faz coincidir com o pensamento nietzschiano e agrave essecircncia da tecnologia moderna Como se caracteriza e o que significa exatamente o Ges-stell Em seguida procuraremos entender em que medida o Ges-stell eacute o ldquoperigordquo ou seja tentaremos sintetizar no pensamento de Heidegger quais as determinaccedilotildees que fazem com que ele seja o perigo Por fim avanccedilaremos com uma interpretaccedilatildeo na qual se procuraraacute articular a questatildeo do ldquocrescimento daquilo que salvardquo relacionando-a com o conceito de Ereignis e com o que este poderaacute significar no contexto da problematizaccedilatildeo heideggeeriana sobre a teacutecnica O Ges-stell na essecircncia do pensamento Nietzschiano

Heidegger encontra na filosofia nietzschiana como se sabe a consumaccedilatildeo da metafiacutesica no seu percurso da filosofia ocidental iniciado por Platatildeo Para Heidegger Nietzsche eacute um pensador moderno que leva agraves ultimas consequecircncias o pensamento que se inaugurou com o cogito ergo sum de Descartes

4 Seminaacuterio sobre a conferecircncia Tempo e Ser (1962) in Heidegger Conferecircncias e escritos filosoacuteficos S Paulo Nova cultural 1991 p 221-241 onde se lecirc ldquoentre as formas epocais do ser e as transformaccedilotildees do ser no Ereignis situa-se o Ges-stel Este eacute por assim dizer - uma cabeccedila de Jano Pode significar ainda uma constituiccedilatildeo da vontade de vontade e assim ser compreendida como a extrema caracteriacutestica do ser Mas eacute ao mesmo tempo uma forma preacutevia do proacuteprio Ereignisrdquo

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A fim de estabelecer pontes entre Nietzsche e o pensamento metafiacutesico nomeadamente a filosofia moderna Heidegger recorre a uma dupla estrateacutegia nos extensos e inuacutemeros textos dedicados a esta questatildeo primeiramente argumenta que as teorias da vontade de poder e do eterno retorno do mesmo nada mais satildeo do que apoteoses (epifanias) e consumaccedilatildeo do caminho trilhado pela metafiacutesica desde as suas origens onde o ser eacute permanentemente confundido com a essecircncia que se encontra presente na totalidade do ente Em segundo lugar interpreta a vontade de poder e o Uumlbermensch nietzschiano como a transformaccedilatildeo do ego cogito de Descartes num ego volo a saber num Eu quero

Em conformidade com isto para Heidegger no pensamento nietzschiano tambeacutem o querer humano apenas pode existir agrave maneira do impor-se ou seja do forccedilar tudo de antematildeo antes mesmo de tudo dominar a entrar no seu domiacutenio Nesse sentido para ele o pensamento nietzschiano se volta em sua essecircncia para este querer a partir do qual tudo se torna agrave partida e em seguida de uma forma irresistiacutevel material de elaboraccedilatildeo que se impotildee A terra e a atmosfera tornam-se mateacuteria prima Desse modo o proacuteprio homem torna-se material que eacute colocado ao encargo dos objetivos propostos A instalaccedilatildeo incondicionada do impor-se tambeacutem incondicional da elaboraccedilatildeo propositada do mundo vai-se entatildeo configurando-se necessariamente nos moldes do mando humano num processo que surge da essecircncia oculta da teacutecnica

Na sua criacutetica a Nietzsche Heidegger traccedila assim o caminho e aponta as caracteriacutesticas daquilo que considera ser a metafiacutesica da presenccedila inaugurada com o eidos platocircnico Uma breve incursatildeo pela criacutetica heideggeriana agrave metafiacutesica nietzschiana torna-se fundamental para completar a caracterizaccedilatildeo do niilismo e do Ges-stell que

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recorde-se eacute tambeacutem a essecircncia da teacutecnica moderna Ora em que consiste a partilha de sua essecircncia

De fato contrariamente ao Ges-stell o Vor-stellen essecircncia da metafiacutesica moderna que se inicia a partir do subjetivismo cartesiano corresponde segundo Heidegger ao acircmbito da maacutexima objetividade isto eacute do surgimento do mundo como objeto Na sua criacutetica agrave modernidade Heidegger defende que com o cogito ergo sum de Descartes o homem torna-se doravante a proacutepria substacircncia das coisas transforma-se em sujeito a partir da auto-certeza que possui do seu proacuteprio eu e do seu poder de representar que eacute a base fundadora de toda a verdade realidade e valor As coisas tornam-se reais ou atuais apenas na medida em que satildeo objetivadas pelo sujeito cognoscente ldquoMais ainda a transformaccedilatildeo do homem em sujeito e do mundo em objeto eacute uma consequecircncia do estabelecimento da teacutecnica e natildeo o contraacuteriordquo (Heidegger 2002 p334)

No ponto que aqui nos interessa particularmente isto significa que o homem moderno colocou a si mesmo como substacircncia (res cogitans) das coisas ao mesmo tempo em que as reduziu ao estatuto de meras representaccedilotildees As coisas tornam-se reais ou atuais apenas na medida em que satildeo objetivaacuteveis e representaacuteveis pelo sujeito cognoscente Esse subjetivismo maacuteximo conhece seu aacutepice com a tendecircncia da humanidade para se fazer a Imagus Dei ou seja a Imagem de Deus entendido como o criador providencial que domina e calcula a totalidade da entidade como uma obra que ele produziu Nesta medida a identificaccedilatildeo do homem com Deus encontra sua consumaccedilatildeo no absolutismo esteacutetico nietzschiano que corresponde ao triunfo maacuteximo da vontade de poder segundo a doutrina que Heidegger atribui a Nietzsche a saber que tudo o que experienciamos eacute meramente o produto da vontade humana

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Natildeo que a totalidade do querer seja soacute por si o perigo mas antes o querer ele mesmo sob a forma do impor-se no interior do mundo que apenas eacute admitido como vontade O querer que quer a partir dessa vontade decidiu-se jaacute a mandar de um modo absoluto Com esta decisatildeo entrega-se prontamente agrave organizaccedilatildeo total Mas antes de tudo a proacutepria teacutecnica impede qualquer experiecircncia de sua essecircncia (Heidegger 2002 p339)

Ora essa atribuiccedilatildeo niilista de Heidegger ao pensamento nietzschiano partilha da mesma essecircncia Como vimos ambos se instituem como os domiacutenios privilegiados de esgotamento das possibilidades da metafiacutesica Assim o Ges-stell eacute um ponto de esgotamento da metafiacutesica mas eacute tambeacutem enquanto fim um novo comeccedilo Como ponto de esgotamento corresponde simultaneamente a uma transformaccedilatildeo e a um novo estaacutegio da relaccedilatildeo do homem com o ser que permanece ainda inquestionada

A essecircncia da teacutecnica potildee o homem a caminho do desencobrimento que sempre conduz o real de maneira mais ou menos perceptiacutevel agrave disponibilidade Pocircr a caminho significa destinar Por isso denominamos de destino a forccedila de reuniatildeo encaminhadora que potildee o homem a caminho de um desencobrimento Eacute pelo destino que se determina a essecircncia de toda histoacuteria A histoacuteria natildeo eacute um mero objeto da historiografia nem somente o exerciacutecio da atividade humana A accedilatildeo humana soacute se torna histoacuterica quando enviada por um destino5 E somente o que jaacute se destinou a uma representaccedilatildeo objetivante torna acessiacutevel como objeto o histoacuterico da historiografia isto eacute de uma ciecircncia Eacute daiacute que proveacutem a confusatildeo corrente

5 Cf Vom Wesen der Wahrheit 1930 na primeira ediccedilatildeo de 1943 p16s

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entre o histoacuterico e o historiograacutefico (Heidegger 2006 p27)

Assim a essecircncia da teacutecnica eacute um desvelamento um estatuir (stellen) um colocar-em-obra como tal um modo de destinaccedilatildeo do ser Mas o stellen do Ges-stell para aleacutem de evocar sua pertenccedila ao destino do ser possui caracteriacutesticas especiacuteficas que determinam seu modo mais proacuteprio como niilismo

Desse modo a metafiacutesica de Nietzsche eacute a consumaccedilatildeo o ponto culminante e o fim da metafiacutesica moderna porque com a maacutexima subjetividade transformada em perspectivismo a objetividade transforma-se tambeacutem em algo exclusivamente dependente da vontade de vontade do pensamento e da teacutecnica De fato para Heidegger apesar de ser tributaacuteria da concepccedilatildeo moderna de mundo a filosofia de Nietzsche vai mais longe Quando o ser e o real satildeo transformados em valores entramos no reino da subjetividade absoluta do perspectivismo total em que se anula a diferenccedila entre sujeito e objeto O mundo jaacute natildeo eacute concebido como um objeto representado por um sujeito Tudo se transforma em reserva permanente para garantir a conservaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo da vontade de poder Nesse sentido para Heidegger o ser foi transformado num valor ldquoO tornar constante a estabilidade da reserva permanente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria imposta pela proacutepria vontade de poder segura de si mesmardquo (Heidegger 2013 p 311)

Nesse ponto culminar a filosofia nietzschiana para Heidegger corresponde agrave maacutexima ocultaccedilatildeo do ser ou seja ao niilismo extremo No Ges-stell o ser como aleacutetheia encontra-se ausente Desse modo podemos dizer que com o Ges-stell eacute anulada qualquer outra hipoacutetese de desvelamento Essa eacute uma das razotildees porque o Ges-stell eacute o ldquosupremo perigordquo o Ges-stell reuacutene e concentra todas as formas de desencobrimento numa soacute isto eacute transforma

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todo e qualquer desvelamento num desvelamento provocante em que o real no qual o mundo eacute ordenado eacute intimidado a tornar-se apenas fundo disponiacutevel A verdade do ser que significa aleacutetheia retira-se sob o domiacutenio do Ges-stell No universo tecnoloacutegico moderno o desvelamento ocorre para fins uacutenicos desse proacuteprio desvelamento O caraacuteter encobridor e oculto eacute completamente esquecido Encontramo-nos no domiacutenio da ocultaccedilatildeo geral do ser somos apanhados nas malhas do niilismo

Ademais o Ges-stel a com-posiccedilatildeo eacute o ldquoperigordquo porque oculta quaisquer outras formas de desvelamento Mas o eacute tambeacutem e principalmente porque ao ocultar quaisquer outras formas de desvelamento oculta-se tambeacutem a si proacuteprio Diz Heidegger em A Questatildeo da Teacutecnica

Assim pois a com-posiccedilatildeo provocadora da ex-ploraccedilatildeo natildeo encobre apenas um modo anterior de desencobrimento a pro-duccedilatildeo mas tambeacutem o proacuteprio desencobrimento como tal e com ele o espaccedilo onde acontece em sua propriedade o desencobrimento isto eacute a verdade (Heidegger 2006 p30)

Ora na medida em que pertence ao

desvelamento o Ges-stell como qualquer outra forma de desvelamento tende para a ocultaccedilatildeo e por isso faz parte do ldquoperigordquo No entanto o Ges-stell natildeo representa apenas o perigo inerente agrave qualquer forma de desvelamento senatildeo o supremo ldquoperigo6rdquo Por quecirc

6 Isto quer dizer que o que eacute perigoso natildeo eacute a teacutecnica em si (as maacutequinas as automaccedilotildees a energia nuclear os computadores a biotecnologia) mas o destino de desvelamento do ser que rege a teacutecnica ndash porque mais perigoso que a bomba atocircmica eacute o esquecimento do Ser

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Porque o Ges-stell representa aquele modo ldquodestinalrdquo onde todos os engodos da metafiacutesica satildeo levados agraves suas uacuteltimas consequecircncias ou seja sobre a eacutegide e domiacutenio do Ges-stell os entes jaacute natildeo satildeo sequer concebidos como ldquoobjetosrdquo agrave maneira moderna Satildeo mero fundo disponiacutevel para o eterno retorno do mesmo

O perigo consiste na ameaccedila que diz respeito agrave essecircncia do homem na sua relaccedilatildeo com o proacuteprio Ser e natildeo em perigos casuais Este perigo eacute o Perigo Ele encobre-se no abismo para todos os entes Para ver o perigo e para o mostrar tecircm de existir aqueles mortais que chegam primeiro ao abismo[] A salvaccedilatildeo teraacute de vir do lugar onde se daacute a viragem no interior da essecircncia dos mortais

A essecircncia da teacutecnica e o ponto de consumaccedilatildeo da metafiacutesica equivalem a uma ameaccedila pendente sobre a liberdade humana considerada como a ldquoessecircncia da verdaderdquo ou seja a liberdade humana como aquele espaccedilo por onde o ser pode emergir fugindo ao fechamento do ente Num cenaacuterio onde a humanidade se encontra determinada pelo Ges-stell o ser estaacute totalmente ausente Sob esse pano de fundo o Uumlbermensch nietzschiano eacute perspectivado como um soldado tecnoloacutegico que luta exclusivamente pela manutenccedilatildeo do poder Desse modo o homem afasta-se definitivamente do ser arriscando-se a perder o espaccedilo da liberdade Ao perder a sua essecircncia o homem torna-se igual a qualquer ente que se encontra na natildeo ocultaccedilatildeo

Este eacute o retrato para Heidegger da metafiacutesica em sua culminaccedilatildeo Mas agrave luz da pretensatildeo de Heidegger tambeacutem acontece que o poder salvador chega no interior do perigo crescente Com o Ges-stell como vimos a metafiacutesica chega ao seu ponto de culminaccedilatildeo Mas eacute tambeacutem aiacute onde suas possibilidades se encontram esgotadas que Heidegger defende que o niilismo e a consumaccedilatildeo da metafiacutesica satildeo o preluacutedio para algo de novo ldquoSoacute quem se aventura de maneira pensante na

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extrema penuacuteria do niilismo consegue tambeacutem pensar o pensamento superador como o que impotildee uma viragem agrave penuacuteria e se mostra como necessaacuteriordquo (Heidegger 2010 p 341)

As reflexotildees de Heidegger sobre a teacutecnica foram escritas em meados do seacuteculo passado no culminar da tecnologia mecacircnica e no surgimento de tecnologias mais fluidas e natildeo mecacircnicas a energia atocircmica as tecnologias de informaccedilatildeo e de comunicaccedilatildeo O pensamento de Heidegger acompanha esse movimento de forma verdadeiramente uacutenica Nesse sentido antecipa as teorias poacutes-modernas O niilismo corroeu as verdades e enfraqueceu as religiotildees mas invalidou tambeacutem os dogmatismos e desacreditou as ideologias ensinando-nos assim a manter uma razoaacutevel prudecircncia do pensamento um paradigma de pensamento obliacutequo e prudente que nos torna capazes de navegar por entre os escolhos do mar da precariedade na viagem do vir-a-ser na transiccedilatildeo de uma cultura a outra A ideia de ordenaccedilatildeo fundo disponiacutevel reserva permanente colocaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo num fluxo constante em que toma o lugar de tudo a ideia de desaparecimento do objeto desmembramento e fragmentaccedilatildeo da experiecircncia do real antecipam grande parte da reflexatildeo poacutes-moderna sobre a nossa contemporaneidade Mas a absoluta novidade de Heidegger eacute que ele se recusa a pensar o atual em termos estritamente contemporacircneos Eacute no sentido original da palavra teacutecnica que se encontra a chave para a compreensatildeo da tecnologia contemporacircnea em sua dupla face de perigo e salvaccedilatildeo Eacute como ponto culminar da metafiacutesica da presenccedila constante que a tecnologia pode subitamente provocar uma ebuliccedilatildeo do real num movimento em que a presenccedila constante se transforma em permanente disponibilidade

Ora essa permanente disponibilidade tanto pode ser no sentido da integraccedilatildeo do caacutelculo global mas pode criar tambeacutem uma abertura em que subitamente o Ser

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como aleacutetheia se ilumina na compreensatildeo do sem-fundamento (Ab-grund) o abandono do pensamento metafiacutesico e niilista Nesse sentido ler Heidegger eacute acompanhar um pensamento que se pretende original um pensamento que se propotildee pensar fora dos quadros do pensamento calculador moderno eacute acompanhar o pensamento meditativo pelos trilhos da floresta negra em busca de pequenas clareiras

Referecircncias CASANOVA Marco Antocircnio Compreender Heidegger

Petroacutepolis Vozes 2009

CORDEIRO Robson Costa Nietzsche e a vontade de poder como arte uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Ed Universitaacuteria da ufpb 2010

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HEIDEGGER Martin A determinaccedilatildeo histoacuterico-ontoloacutegica do niilismo In Nietzsche vol II Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Ed Forense Universitaacuteria 2007

___________________ A essecircncia do fundamento In Marcas do Caminho Trad de Ernildo Stein Petroacutepolis Vozes 2009

___________________ A essecircncia do niilismo In Nietzsche ndash Metafiacutesica e Niilismo Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2000

__________________ A palavra de Nietzsche ldquoDeus estaacute mortordquo Trad de Marco Antocircnio Casanova Satildeo Paulo Natureza Humana Vol 5(2) 471-526 jul-dez 2003

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__________________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2006

__________________ Hinos de Houmllderlin Trad de Lumir Nahodil Lisboa Instituto Piaget 2004

__________________ Loacutegica a pergunta pela essecircncia da linguagem Trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hoock Quadrado Lisboa Calouste Gulbekian 2008

__________________ O acontecimento apropriativo Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

__________________ O eterno retorno do mesmo In Nietzsche vol I Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2007

___________________ Ser e Tempo Trad de Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2012

___________________ O niilismo europeu In Nietzsche vol II Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Ed Forense Universitaacuteria 2007

______________ Para quecirc poetas in Caminhos de floresta Trad Bernhard Sylla e Vitor Moura Lisboa Calouste Gulbenkian 2002

LOPARIC Zeljko A escola de Kyoto e o perigo da teacutecnica Satildeo Paulo DWW Editorial 2009

POGGELER Otto A via do pensamento de Martin Heidegger Trad de Jorge Telles de Menezes Lisboa Instituto Piaget 2001

RUumlDIGER Francisco Martin Heidegger e a questatildeo da teacutecnica Porto Alegre Ed Sulinas 2006

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VOLPI Franco O niilismo Trad de A Vennuchi Satildeo Paulo Loyola 1999

A Intriacutenseca Relaccedilatildeo entre o

Amor Fati e a Arte

Eacutellida Jussara Silva Santos1

Quando a expressatildeo em latim amor fati que quer dizer ldquoamor ao destinordquo aparece nas obras do filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche ela natildeo se revela um pensamento capaz de instaurar um sentido que enriqueccedila a filosofia nietzschiana se natildeo estiver intrinsecamente ligado agraves demais doutrinas do filoacutesofo No entanto quando pensado em ligaccedilatildeo com as doutrinas da filosofia nietzschiana o pensamento do amor fati pode ser compreendido como aquele que traz uma noccedilatildeo fundamental no esclarecimento das mesmas como acontece com a doutrina do eterno retorno no qual o amor fati encontra um elemento oculto que dificulta a sua plena adesatildeo a saber o pensamento mais abissal que se refere ao eterno retorno da inutilidade

Em contrapartida quando ligado intrinsecamente agrave vontade de poder o amor fati eacute pensado desde uma ligaccedilatildeo de reciprocidade uma vez que a vontade de poder permite ao amor fati ser percebido como libertador desde a perspectiva de uma vontade criadora a qual eacute atingida a partir da ideacuteia do super homem Assim sendo o presente artigo busca apresentar o amor fati como o sentimento traacutegico que atraveacutes da arte como vontade de poder afirma a vida em todo seu aparecer como tambeacutem no que se manteacutem encoberto ou seja que abarca o cruel o sombrio do ilimitado do disforme do desmedido em seu movimento de apariccedilatildeo isto eacute no seu ganhar forma Como

1 Mestranda em Filosofia pela UFPB - Email eljussaragmailcom Bolsista PIBIC 20142015

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sentimento de afirmaccedilatildeo o amor fati procura superar a dualidade entre mundo verdade (suprassensiacutevel) e mundo aparente (sensiacutevel) A contraposiccedilatildeo entre mundo verdade e mundo aparente

A vida como vontade de poder eacute aquela que estaacute sempre por se fazer desde si mesma do nada e para o nada e desse modo natildeo possui lastro substrato ou finalidade alguma aleacutem da proacutepria ldquomostraccedilatildeordquo aleacutem do proacuteprio aparecer Nesse sentido o que a vida busca eacute sempre auto-superaccedilatildeo atraveacutes de um jogo entre mando e obediecircncia que lhe satildeo proacuteprios como tambeacutem da relaccedilatildeo com a morte no sentido de abrir matildeo daquilo que jaacute foi para dar lugar agravequilo que ainda estaacute por vir ou mesmo que precisa vir para que a vida possa vir a ser Sendo assim como afirma Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche a vida ldquoeacute ela proacutepria a construtora a organizadora que fixa formas para seguidamente as destruirrdquo (FINK 1983 p 19) e desse modo surge aqui uma integraccedilatildeo entre os deuses Apolo e Dioniacutesio como veremos mais adiante Por conseguinte diante desse caraacuteter cruel da vida da existecircncia de natildeo possuir substrato algum ou seja de natildeo possuir sentido ou ordem mas tatildeo somente um movimento perspectiviacutestico de apariccedilatildeo o homem se encontra como que tomado por uma necessidade de mentira para que possa suportar tal existecircncia

Que o homem precisa da mentira para ldquosobrepujarrdquo o caraacuteter cruel da existecircncia eacute o que Nietzsche procura mostrar na obra A vontade de poder que traz um apanhado de textos de anotaccedilotildees e fragmentos poacutestumos do filoacutesofo escritos na deacutecada de 1880 Por conseguinte eacute precisamente no sect853 I que tem como tiacutetulo A arte no Nascimento da trageacutedia que o filoacutesofo diz ldquoTemos necessidade da mentira para sobrepujarmos essa realidade

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essa ldquoverdaderdquo quer dizer para vivermosrdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Ou seja essa passagem sugere que para que a vida ou a existecircncia do homem natildeo venha a perecer ou dito de outro modo para que o homem possa suportar a existecircncia como sendo aquilo que se constitui atraveacutes de um movimento de auto-exposiccedilatildeo tal homem precisa dar um sentido para o seu viver portanto um sentido para o seu existir

Ora como vontade de poder vida se mostra como aquilo que estaacute sempre no empenho para vir agrave aparecircncia ou seja como um movimento de auto-exposiccedilatildeo Mostra-se assim como um modo de se fazer ver como uma perspectiva Nesse sentido vida se constitui no movimento de ldquomostraccedilatildeordquo que natildeo encontra esgotamento antes uma manifestaccedilatildeo dela mesma que natildeo cessa de mostrar-se de vaacuterios modos Natildeo obstante dar um sentido para a vida significa tatildeo somente sobrepor a este mundo outro mundo que natildeo seja devir isto eacute que possua um caraacuteter de ser

Por conseguinte eacute a partir da mentira que o homem encontra uma forma de sobrepujar a dura realidade da vida e do mundo como sendo nada aleacutem de vontade de poder no qual encontra um modo de ldquocrerrdquo na vida Ainda no sect853 I encontramos uma passagem que diz ldquoA metafiacutesica a moral a religiatildeo a ciecircncia foram consideradas neste livro tatildeo-somente como diferentes formas da mentira com seu auxiacutelio crecirc-se na vidardquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Nesse sentido tanto a metafiacutesica como a moral a religiatildeo e a ciecircncia satildeo apontadas por Nietzsche como diferentes formas do homem suportar a existecircncia ou seja satildeo valores criados pelo homem para constituir um mundo a partir do qual o viver seja suportaacutevel Todavia como afirma Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche ldquoa ltltmentiragtgt do intelecto proveacutem da impossibilidade de apreender conceptualmente a vida considerada natildeo no sentido bioloacutegico mas metafiacutesicordquo (1983 p 34) Isto eacute o

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mundo criado a partir da mentira prefigura uma vontade de viver que leva o homem a sustentar a vida atraveacutes de uma ilusatildeo a saber que haacute um mundo verdade que se sobrepotildee ao mundo aparente ao mundo sensiacutevel do devir

Natildeo obstante eacute dessa necessidade de sustentaccedilatildeo da vida dessa necessidade de encontrar um modo de suportar a existecircncia que surge a contraposiccedilatildeo entre o mundo verdade e o mundo aparente como aquilo que caracteriza o niilismo a metafiacutesica o platonismo Esse mundo verdade por sua vez eacute o mundo criado a partir da necessidade de sentido ou seja o mundo criado eacute aquele para o qual o homem estabelece um sentido uma meta um mundo que assume o caraacuteter de verdadeiro um mundo do ser o qual corresponde a uma unidade Desse modo o mundo criado eacute aquele que condena o caraacuteter contraditoacuterio que eacute proacuteprio da vida ou seja como ldquoa vida deve inspirar confianccedilardquo 2 com a criaccedilatildeo do mundo verdadeiro eacute constituiacutedo para a vida um caraacuteter de ser a partir do qual a vida eacute justificada Nesse sentido quando o homem se volta contra o caraacuteter transitoacuterio da vida criando para si um mundo suprassensiacutevel que justifique a vida se oferece para ele a partir dessa criaccedilatildeo como consequecircncia a feacute de modo que a vida nesse sentido parece crescer ou seja se intensificar como diz Nietzsche ldquoNos instantes em que o homem foi enganado em que ludidriou a si mesmo em que acreditou na vida oh como entatildeo esta cresceu nele Que encanto Que sentimento de poder Quanto triunfo de artista no sentimento de poderrdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426)

Portanto o modo de se constituir um mundo verdade que se sobrepotildee ao mundo cruel caoacutetico ao mundo do devir na medida em que prefigura um aspecto negativo que procura negar a vida eacute tambeacutem o que permite a sua conservaccedilatildeo e nesse sentido eacute tambeacutem para o

2 Cf Vontade de Poder 2008 sect 853 I p 426

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homem uma forma de conquistar poder ou seja isso eacute o que conduz o homem a um sentimento profundo de poder a partir do qual vida se volta contra ela mesma natildeo como um modo de buscar destruir a si mesma como uma forma de aniquilamento mas propriamente como uma forma de natildeo se deixar perecer Sendo assim essa forma de condenaccedilatildeo da vida no sentido de buscar atribuir-lhe um caraacuteter de ser um substrato - entendido enquanto apiedamento da vida - eacute o que propriamente a manteacutem

Por conseguinte a partir desse desejo ou melhor dessa vontade de negaccedilatildeo da vida o homem se insere em uma dimensatildeo que em sua essecircncia eacute profundamente criadora isto porque no movimento de negaccedilatildeo da vida se apresenta uma vontade que ainda que seja para negar a vontade de poder ao criar o mundo suprassensiacutevel o mundo verdade tambeacutem se apresenta como vontade criadora Ora se o que caracteriza aqui o niilismo eacute propriamente a negaccedilatildeo da vida e do devir que lhe eacute proacuteprio bem como a criaccedilatildeo de um aleacutem mundo ou seja um mundo verdade entatildeo o niilismo eacute tambeacutem profundamente criador

Desse modo tambeacutem o homem como aquele que cria valores que possam assegurar a vida e dar-lhe sentido tornando-a confiaacutevel eacute tambeacutem um ldquoartistardquo uma vez que inaugura realidades ainda que seja partindo da mentira Nesse sentido o homem ldquomentirosordquo ou seja aquele que encontra na mentira um modo de superaccedilatildeo da vida eacute o artista que cria valor para o qual a ldquometafiacutesica religiatildeo moral ciecircncia ndash todos satildeo apenas rebentos de sua vontade de arte de mentira de fuga diante da ldquoverdaderdquo de negaccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426)

Todavia para Nietzsche ldquohaacute apenas um uacutenico mundo e este eacute falso cruel contraditoacuterio sedutor sem sentidordquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Desse modo dizer que o mundo eacute sem sentido a partir do

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pensamento nietzschiano eacute dizer propriamente que natildeo possui sentido algum para aleacutem dele mesmo como aparecircncia ou seja como vontade de poder e nesse sentido em contraposiccedilatildeo ao mundo verdade - criado pelo homem - o mundo da aparecircncia natildeo apresenta caraacuteter de ser mas antes de devir Natildeo obstante o mundo do devir natildeo eacute um mundo ordenado antes ele eacute propriamente caos3

Ora a vontade de poder eacute sempre um querer vir agrave presenccedila e desse modo diz respeito ao conjunto de forccedilas ou melhor de impulsos que se combatem entre si que estatildeo sempre em confronto Natildeo obstante assim como a vida eacute um jogo de ldquomostraccedilatildeordquo que natildeo aspira nada a natildeo ser vir agrave aparecircncia ou seja aparecer tambeacutem o mundo como afirma Muumlller-Lauter em seu livro A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche ldquorevela-se como jogo e contra-jogo de forccedilas ou de vontades de poderrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 75) isto eacute como vontade de poder o mundo se revela como um jogo ininterrupto de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo do qual eacute constituiacutedo

Por conseguinte em se tratando ainda do que seria o mundo Nietzsche em uma citaccedilatildeo de novembro de 1887-marccedilo de 1888 escreve ldquoQue o mundo natildeo eacute em absoluto um organismo poreacutem caosrdquo (novembro de 1887-marccedilo 1888 11[74] KGW VIII 2 279 (VP 711) Essa passagem sugere que o mundo deve ser compreendido natildeo somente como sendo um ou seja como uma unidade e desse modo natildeo como ser como eacute caracterizado o mundo verdadeiro o mundo criado antes deve ser compreendido como sendo uma unidade que abarca o muacuteltiplo enquanto vontade de poder

3 Caos aqui natildeo deve ser compreendido no sentido de um estado de completa desordem que antecede a formaccedilatildeo do mundo e que tal formaccedilatildeo toma como ponto de partida mas de acordo com a interpretaccedilatildeo de Heidegger como ldquoaquilo que acossa corre e eacute movimentado aquilo cuja ordem estaacute velada cuja lei natildeo conhecemos imediatamenterdquo (HEIDEGGER 2010 p 440)

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Ou seja como foi dito anteriormente como vontade de poder o mundo prefigura uma multiplicidade de forccedilas que estaacute sempre em confronto umas com as outras que tem como finalidade tatildeo somente sua proacutepria apariccedilatildeo atraveacutes de um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Portanto o mundo aparente ou seja terreno se mostra como sendo contraditoacuterio devir e portanto caoacutetico Nesse sentido como afirma Muumlller Lauter ainda em seu livro A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche ldquoo mundo natildeo eacute um mundo orgacircnico mas mundo de ldquoorganismosrdquo o caos das organizaccedilotildees de poder se alterando permanentementerdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 120) Desse modo o mundo aparente eacute o mundo do devir do movimento de exposiccedilatildeo gratuita e portanto tatildeo somente um jogo inuacutetil de exposiccedilatildeo sobre ele mesmo

Natildeo obstante a partir da compreensatildeo do que foi dito acerca da contraposiccedilatildeo do mundo verdade e do mundo aparente vale salientar que o que Nietzsche quer mostrar eacute que soacute haacute um uacutenico mundo e que este eacute o mundo cruel contraditoacuterio que se mostra para o homem como sendo caoacutetico sombrio por natildeo possuir caraacuteter de unidade alguma antes uma manifestaccedilatildeo de forccedilas que o permite vir agrave aparecircncia que o permite se mostrar Nesse sentido o mundo criado isto eacute o mundo metafiacutesico natildeo passa de uma criaccedilatildeo do homem que busca dar um sentido para a vida sobrepondo a esse mundo sem sentido um mundo verdade que natildeo seja devir que natildeo seja em sua essecircncia contraditoacuterio Essa necessidade de mentira usada para ldquosobrepujarrdquo essa terriacutevel realidade eacute caracteriacutestica do homem niilista metafiacutesico platonista que precisando se sentir em um conforto atraveacutes de uma unidade que o governe sobrepotildee a este mundo um mundo do ldquoserrdquo o qual se mostra como um mundo que possui valores como unidade verdade e finalidade

Todavia para Nietzsche o mundo verdadeiro eacute o mundo cruel e natildeo o mundo metafiacutesico ou seja o mundo

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verdadeiro eacute aquele que se apresenta constituiacutedo atraveacutes de um jogo dionisiacuteaco que ao mesmo tempo em que cria tambeacutem destroacutei Em sua obra intitulada A Gaia Ciecircncia mais precisamente no livro III sect109 sobre o caraacuteter do mundo Nietzsche diz ldquoO caraacuteter geral do mundo no entanto eacute caos por toda a eternidade natildeo no sentido de ausecircncia de necessidade mas de ausecircncia de ordem divisatildeo forma beleza sabedoria e como quer que chamem nossos antropomorfismos esteacuteticosrdquo (NIETZSCHE 2001 sect 109 p 136) Desse modo quando ele diz que o mundo eacute caos natildeo devemos entender que o mundo se mostra como uma desorganizaccedilatildeo ou mesmo uma confusatildeo antes se mostra como aquilo que apresenta uma necessidade proacutepria enquanto um acontecer Ou seja o mundo como sendo caos se mostra atraveacutes de um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo sempre em retomada a partir do qual ele se mostra

Por conseguinte o mundo aparente eacute aquele que se mostra desde afeto e enquanto afeto se mostra para o homem como uma perspectiva que se abre Nesse sentido o afeto eacute o que permite ao homem perceber o real como um processo de apariccedilatildeo de brotaccedilatildeo Desse modo a aparecircncia se mostra como a forma originaacuteria da verdade e portanto estabelece para o mundo aparente enquanto aparecircncia o caraacuteter de ldquoverdaderdquo ou seja do real no seu aparecer Natildeo obstante eacute atraveacutes da arte mais precisamente a partir do fenocircmeno do traacutegico que a verdadeira natureza da realidade pode ser percebida isto eacute a arte eacute o que possibilita perceber vida como sendo tatildeo somente aparecircncia e do mesmo modo o mundo como um jogo ininterrupto do criar e do destruir

A arte como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida Na obra O Nascimento da Trageacutedia publicada em 1872 o mundo eacute decifrado a partir do fenocircmeno da arte

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pelo qual atraveacutes de categorias esteacuteticas se formula a visatildeo fundamental do ser Desse modo para Nietzsche a arte eacute colocada como a ldquotarefa suprema e a atividade propriamente metafiacutesica desta vidardquo4 a partir da qual se daacute o esclarecimento de modo metafiacutesico do conjunto de tudo o que existe ou seja do mundo Afirma Fink em seu livro A Filosofia de Nietzsche que ldquosoacute com os olhos da arte consegue o pensador mergulhar o seu olhar no coraccedilatildeo do mundordquo (FINK 1983 p18) Nesse sentido a arte eacute o que possibilita perceber a vida como sendo aparecircncia isto eacute como aquilo que natildeo possui nada de fundo substancial que esteja por traacutes mas tatildeo somente como aquilo que se auto-expotildee que se mostra Nesse sentido a vida se mostra como aquela que estaacute sempre se voltando para que possa constituir a si mesma e desse modo na mesma medida em que cria tambeacutem destroacutei mundos Como afirma Cordeiro em seu livro Nietzsche e a vontade de poder como arte uma leitura a partir de Heidegger ldquocada mundo criado eacute uma perspectiva de vida que se mostra que aparece eacute uma aparecircnciardquo (CORDEIRO 2010 p60)

Ora o mundo eacute vontade de poder e como vontade de poder prefigura essencialmente um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nesse sentido como mostra Heidegger em seu livro Nietzsche v I ldquoa partir da arte e como arte a vontade de poder se torna propriamente visiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2010 p67) e desse modo tambeacutem atraveacutes da arte a forccedila que promove a apariccedilatildeo do mundo toma forma no seu aparecer Sendo assim a arte eacute aquilo que consegue apreender a visatildeo traacutegica do mundo Para tanto a arte eacute necessariamente reconduzida por Nietzsche agravequela que seria a arte traacutegica grega isto porque na arte traacutegica grega surgem os elementos dionisiacuteaco e apoliacutenio como elementos que estatildeo sempre em oposiccedilatildeo um ao outro e desse modo

4 O Nascimento da Trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica prefaacutecio para Richard Wagner 2007 p 23

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prefiguram a oposiccedilatildeo entre o finito e o infinito ou seja aquilo que aparece como forma e o disforme que estatildeo presentes no processo de aparecer da vida de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo dos mundos Nesse sentido ldquoApolo simboliza o instinto plaacutestico ele eacute o deus da clareza da luz da medida da forma da composiccedilatildeo harmoniosa em contrapartida Dioacutenisos eacute o deus do caoacutetico e do desmedido do disforme do fluxo borbulhante da vidardquo (FINK 1983 p23)

Natildeo obstante o deus Apolo simboliza o sonho a partir do qual o homem pode construir todo o mundo da bela aparecircncia enquanto que o deus Dioniacutesio representa o ecircxtase ou seja aquilo que rompe com a individuaccedilatildeo Nesse sentido o impulso dionisiacuteaco representa o disforme da vida do mundo isto eacute a vida se mostra como transbordante como aquilo que eacute ilimitada como tatildeo somente possibilidade Apolo por sua vez surge como um impulso que limita daacute forma ou melhor atraveacutes do impulso apoliacuteneo a vida se mostra individualizada em formas e aparecircncias No entanto nesse mostrar-se nesse aparecer da vida do mundo o que se daacute natildeo eacute uma exclusatildeo do deus Dioniacutesio antes ele deve ser percebido como aquilo que estaacute encoberto em tudo o que aparece se mostra e que ao aparecer jaacute aparece como sendo Apolo Desse modo o que parece acontecer aqui eacute um acordo de paz entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco mas isso natildeo quer dizer propriamente que o confronto o querer sempre predominar de um sobre o outro acabe Por conseguinte eacute desse acordo de paz ou mesmo acasalamento que se daacute o nascimento da trageacutedia grega isto porque o grego possuiacutea uma ldquoserenojovialidaderdquo (Heiterkeit) que o permitia espelhar tanto o elemento de Apolo referente ao conjunto de imagens quanto o elemento de Dioniacutesio atraveacutes do coro representado na trageacutedia Desse modo como afirma Cordeiro o grego ldquoao permitir que ecoasse juntamente com o elemento apoliacuteneo o dionisiacuteaco representado pelo coro [] ele teria permitido junto ao que aparece aquilo

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que natildeo aparece mas que eacute fonte de todo aparecerrdquo (CORDEIRO 2010 p 6263)

Todavia natildeo eacute somente na trageacutedia que o grego conseguia expressar sua relaccedilatildeo com a vida com o mundo Tambeacutem atraveacutes da aparecircncia da obra de arte ele conseguia transfigurar todo o sofrimento como tambeacutem a dor da existecircncia Ora a dor da existecircncia a dor da vida diz respeito ao caraacuteter cruel de natildeo ter fundo algum de ser tatildeo somente possibilidade de ser ilimitada e por isso precisando sempre vir a ser delimitada ou seja adquirir forma Frente a esse caraacuteter cruel da existecircncia o homem grego atraveacutes da arte conseguia alcanccedilar um estado de tranquilidade ao dar para a vida formas e imagens No entanto como afirma Cordeiro

[] a arte natildeo deve ser compreendida como a obra de arte mas como a forccedila que impulsiona todo o criar e que faz surgir a obra natildeo como uma forma de fugir ou de encobrir o real naquilo que possui de terriacutevel e abissal Antes a arte deve ser compreendida como a forccedila que ao permitir a transfiguraccedilatildeo da dor primordial da existecircncia em arte natildeo encobre a dor mas a conduz para revelar-se conjuntamente com a obra criada (CORDEIRO 2010 p 63)

Desse modo a arte se mostra como ldquosinocircnimo da proacutepria criatividade da vidardquo (VATTIMO 2010 p 25) Por conseguinte essa concepccedilatildeo esteacutetica se mostra para o grego como uma redenccedilatildeo mas que no entanto natildeo prefigura uma fuga da realidade como faz o niilista A redenccedilatildeo aqui mencionada se daacute na proacutepria vontade por vontade ser um anseio fervoroso na proacutepria aparecircncia Nesse sentido ldquoa arte como vontade de aparecircncia eacute a figura suprema da vontade de poderrdquo (HEIDEGGER 2010 p 193) isto eacute a vontade a partir da arte se mostra como o

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movimento que eacute constitutivo e proacuteprio de todo aparecer Em sua obra A Filosofia de Nietzsche Fink afirma

Tal como o homem o artista-imitador experimenta pela criaccedilatildeo artiacutestica a redenccedilatildeo na obra do mesmo modo que na aparecircncia bela da obra de arte o sofrimento e a fealdade satildeo transfigurados o fundo criador do mundo atinge na aparecircncia bela das muacuteltiplas formas do existente finito a temporaacuteria tranquumlilidade da permanecircncia todavia o jogo do fundo primordial natildeo cria apenas tambeacutem destroacutei em todo o devir das coisas estaacute jaacute a semente do decliacutenio no prazer de engendrar e de amar palpita tambeacutem o prazer da morte do aniquilamento (FINK 1983 p32)

Por conseguinte nesse processo de apariccedilatildeo da arte como vontade de poder o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute somente aquilo que aparece antes o que eacute admirado ou ainda o que eacute contemplado eacute o movimento do sem fundo do caoacutetico vindo a forma sendo delimitado Nesse sentido o que a obra de arte mostra ao mesmo tempo em que reverencia eacute o processo pelo qual o disforme passa vindo a ganhar forma isto eacute vindo agrave aparecircncia Desse modo aquilo que aparece ganha sentido desde o que estaacute encoberto Nesse caso Apolo ao aparecer soacute aparece desde Dioniacutesio Sendo assim ldquosomente a arte garante e assegura a vida perspectivamente em sua vitalidade isto eacute nas possibilidades de sua elevaccedilatildeo e com efeito contra o poder da verdaderdquo (HEIDEGGER 2010 p 389) Natildeo obstante o elemento da arte eacute puramente o sensiacutevel ou seja a aparecircncia sensiacutevel Portanto a arte eacute o que possibilita ao homem afirmar o que a instauraccedilatildeo do mundo suprassensiacutevel condena a saber a dinacircmica perspectiviacutestica da vida Nesse sentido a arte seria a afirmaccedilatildeo do real no seu aparecer enquanto que a busca por uma verdade aleacutem

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da ldquoverdaderdquo como aparecircncia seria um modo de negaccedilatildeo do mundo do ldquoaquirdquo no qual a arte se encontra

O amor fati como afirmaccedilatildeo dos elementos apoliacuteneo e dionisiacuteaco

Vimos que a arte traacutegica a partir dos impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco eacute o que possibilita perceber vida no seu aparecer ou seja no movimento perspectiviacutestico da vida no seu vir agrave presenccedila no se deixar ver Do mesmo modo vimos que no movimento de apariccedilatildeo da arte como vontade de poder estaacute intriacutenseco tanto aquilo que se mostra como tambeacutem o que estaacute encoberto Desse modo compreender a arte traacutegica como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida eacute dizer propriamente que na arte e a partir da arte vida se revela como sendo em sua essecircncia tatildeo somente movimento para ser e do mesmo modo tatildeo somente aparecircncia Nesse sentido como afirma Nietzsche em O Nascimento da Trageacutedia ldquotoda a vida repousa sobre a aparecircncia a arterdquo (NIETZSCHE 2007 p 17) Portanto para Nietzsche a arte natildeo prefigura uma resignaccedilatildeo diante da vida a partir da qual o homem encontra um consolo diante do caraacuteter terriacutevel da existecircncia ao contraacuterio a arte eacute o que permite perceber o caraacuteter cruel da existecircncia mas natildeo negando e sim glorificando todo o terriacutevel o contraditoacuterio

Natildeo obstante a partir dessa compreensatildeo a ideia do traacutegico abarca um pensamento de natildeo somente assumir mas tambeacutem de afirmaccedilatildeo da existecircncia em todos os seus aspectos como se prefigura na expressatildeo amor fati Ora como foi dito anteriormente o objeto da arte eacute o sensiacutevel ou seja a arte deve ser compreendida como aquilo que possibilita a ldquomostraccedilatildeordquo da vontade de poder isto eacute o seu aparecer Desse modo a arte se revela como amor pelo sensiacutevel pela aparecircncia Nesse sentido amar para Nietzsche eacute querer Sendo assim como foi dito

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anteriormente afirmar que ldquoa arte como vontade de aparecircncia eacute a figura suprema da vontade de poderrdquo (HEIDEGGER 2010 p 193) seria o mesmo que dizer que a arte eacute amor pela aparecircncia Portanto o amor fati como amor ao destino entendido como um querer significa aqui querer a proacutepria vontade que aparece atraveacutes da arte como tambeacutem o necessaacuterio no seu movimento perscpectiviacutesitico de vir agrave aparecircncia de se mostrar

Por conseguinte o amor fati natildeo significa somente amar aquilo que se mostra no seu aparecer Antes ele expressa um querer que quer todo o movimento de apariccedilatildeo ou seja o que o amor fati afirma eacute tambeacutem aquilo que estaacute encoberto o disforme o ilimitado que impulsiona todo aparecer isto eacute afirma o movimento a partir do qual irrompe num ver numa perspectiva que se abre Nesse sentido ao levarmos em consideraccedilatildeo o que aqui foi apresentado o conceito do traacutegico a partir do pensamento nietzschiano abarca um pensamento que eacute capaz natildeo somente de assumir como tambeacutem de afirmar todo o movimento do que aparece e que no aparecer quer todo o movimento que se encontra ainda sombrio caoacutetico Desse modo o amor fati como o que afirma todo o terriacutevel da existecircncia eacute o que permite ao homem se voltar para esse caraacuteter terriacutevel e natildeo ver isso como resignaccedilatildeo antes como transbordamento superabundacircncia isto eacute ver isso como algo a ser louvado

Consequentemente o amor fati como aquilo que afirma o traacutegico se mostra como ldquouma foacutermula de afirmaccedilatildeo suprema nascida da abundacircncia da superabundacircncia um dizer Sim sem reservas ao sofrimento mesmo agrave culpa mesmo a tudo o que eacute estranho e questionaacutevel na existecircncia mesmordquo (NIETZSCHE 2008 p 60) Isto eacute o amor fati prefigura um modo de pensar ou dito de outro modo uma forma de perceber como tambeacutem de acolher tanto a criaccedilatildeo como a destruiccedilatildeo uma vez que ama que quer toda a inocecircncia do

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vir-a-ser Nesse sentido o amor fati natildeo condena ou nega antes aceita afirma o real como aquilo que eacute constituiacutedo no eterno movimento de aparecimento Como nos mostra Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche ldquoo sentimento traacutegico da vida eacute antes a aceitaccedilatildeo da vida a jubilosa adesatildeo tambeacutem ao horriacutevel e ao medonho agrave morte e ao decliacuteniordquo (FINK 1983 p 18) Dito isto o amor fati pode ser compreendido como esse sentimento traacutegico que afirma o eterno conflito entre o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco pois afirma que todas as formas ou aparecircncias finitas ldquosatildeo apenas ondas temporaacuterias na grande mareacute da vidardquo (FINK 1983 p 18)

Natildeo obstante para amar todo o movimento de vir agrave aparecircncia como tambeacutem para perceber o caraacuteter terriacutevel da existecircncia e natildeo se resignar diante disso eacute preciso jaacute estar tomado por amor ou seja por afeto Nesse sentido o afeto deve ser compreendido como o que se dispotildee ou seja ser afetado ou estar tomado pelo afeto eacute propriamente deixar a coisa - aqui a vontade de poder - aparecer em diferentes perspectivas Por conseguinte esse estar tomado por afeto diz respeito a uma disposiccedilatildeo que natildeo deve ser compreendida como subjetiva uma vez que aqui natildeo se pretende amar antes se eacute tomado pelo amor no sentido de ser tocado Em seu livro Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte uma leitura a partir de Heidegger Cordeiro ao falar do artista como aquele que estaacute tomado por um ldquoverrdquo interpreta esse estado de afecccedilatildeo do seguinte modo

O artista eacute aquele que traz em si de uma maneira muito proacutepria a vontade de ilusatildeo de aparecircncia Ele como criador deixa que no vazio do seu ser um mundo (uma perspectiva de ser) se molde e que nesse moldar-se vaacute definindo os contornos do seu eu Para isso ele precisa estar atento agrave ldquoescutardquo para assim poder ser tocado ldquoEscutarrdquo tem aqui o mesmo sentido que ldquoverrdquo Nenhum dos dois significa nada fisioloacutegico bioloacutegico ou psiacutequico O

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homem precisa ldquoescutarrdquo mas natildeo enquanto um eu uma consciecircncia que esteja agrave espera de um aviso de um anuacutencio Por mais estranho que pareccedila natildeo eacute o eu que ldquoescutardquo Antes para ldquoescutarrdquo eacute preciso sossegar o eu acalmar as suas pretensotildees de entidade livre autocircnoma (CORDEIRO 2010 p 74)

Por conseguinte a vivecircncia radical do amor fati se daacute para o homem no deixar que no vazio do seu ser a vida - que prefigura dor e o sofrimento por ser aquilo que precisa eternamente voltar a constituir a si mesmo - se mostre de diferentes perspectivas atraveacutes da arte como vontade de poder Natildeo obstante o homem para se deixar ser tomado pelo amor fati deve ser como o homem grego que mergulhou fundo na dor e que diante do sofrimento e do terriacutevel voltou-se para justificar isso como obra de arte natildeo somente aceitando mas afirmando a vida como aquilo que natildeo possui caraacuteter de ser Nesse sentido ao justificar a dor atraveacutes da obra de arte o grego expressou natildeo somente a sua dor como tambeacutem uma forma de glorificar o terriacutevel o horrendo Desse modo se daacute precisamente o amor fati como ldquoo dizer Sim agrave vida mesmo em seus problemas mais duros e estranhos a vontade de vida alegrando-se da proacutepria inesgotabilidade no sacrifiacutecio de seus mais elevados tipos ndash a isto chamei dionisiacuteacordquo (NIETZSCHE 2008 p 61)

Diante do que foi dito a arte se mostra como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida como aquilo que ela eacute a saber como aparecircncia como sendo sem fundo Nesse sentido a arte se mostra como aquilo que possibilita vida se mostrar ou seja aparecer Em sua obra A vontade de poder mais precisamente no sect853 II Nietzsche intensifica ainda mais a relaccedilatildeo da arte com a vida ao dizer

A arte e nada como a arte Ela eacute a grande possibilitadora da vida a grande sedutora para a

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vida o grande estimulante da vida A arte como uacutenica forccedila contraacuteria superior em oposiccedilatildeo a toda vontade de negaccedilatildeo da vida anticristatilde antibudista e antiniilista par excellence A arte como a redenccedilatildeo de quem conhece - daquele que vecirc e quer ver o caraacuteter temiacutevel e problemaacutetico da existecircncia do conhecedor [-] traacutegico A arte como a redenccedilatildeo do homem da accedilatildeo - daquele que natildeo apenas vecirc o caraacuteter terriacutevel e problemaacutetico da existecircncia mas antes o vive e quer vivecirc-lo do homem que eacute guerreiro traacutegico do heroacutei A arte como a redenccedilatildeo do sofredor - como caminho para estados nos quais o sofrer eacute querido transfigurado divinizado nos quais o sofrer eacute uma forma do grande arrebatamentordquo (NIETZSCHE 2008 p427 sect853 II)

Ora diante do que foi dito o amor fati eacute a expressatildeo maacutexima de afirmaccedilatildeo da vida e desse modo se opotildee a negaccedilatildeo da vida ou mesmo a qualquer busca por conforto por seguranccedila por ausecircncia de sofrimento antes natildeo somente permite ao homem reconhecer o caraacuteter cruel como tambeacutem abraccedila a vida enquanto fonte borbulhante isto eacute enquanto o delimitado ou ilimitado ganhando forma no aparecer no vir agrave presenccedila Portanto o amor fati permite ao homem perceber ldquoo mundo como uma obra de arte que daacute agrave luz a si mesma- -rdquo (NIETZSCHE 2008 sect796 p397) e desse modo estaacute intrinsecamente ligado agrave obra de arte mais precisamente a arte traacutegica tanto no que diz respeito ao aparecer como no proacuteprio criar Referecircncias AZEVEDO Vacircnia Dutra Um senatildeo diante da justificaccedilatildeo

eacutetica Amor fati em Nietzsche In Pontiacutefica Universidade Catoacutelica de Campinas Dissertatio [33] 113 ndash 145 inverno de 2011

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CORDEIRO Robson C Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte Uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Editora Universitaacuteria UFPB 2010

FINK Eugen A filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Lourenccedilo D Peixoto Lisboa Editorial Presenccedila 1983

NIEZTSCHE F W A Gaia Ciecircncia Trad P C L Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

___________ A Vontade de Poder Trad Marcos Siineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

___________ Assim Falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad M F Santos Petroacutepolis RJ Vozes 2007

___________ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad P C L Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

___________ O Nascimento da Trageacutedia ou Helenismo e Pessimismo Trad J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007

___________ Fragmentos Poacutestumos 1885-1887 Volume VI Trad Marco Antocircnio Casa Nova Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 2013

VATTIMO Gianni Diaacutelogo com Nietzsche ndash Ensaio 1961 -2000 Trad Silvana Cobucci Leite Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

RUBIRA Luiacutes O amor fati em Nieztsche Condiccedilatildeo Necessaacuteria para a Transvaloraccedilatildeo In Polymatheia ndash Revista de Filosofia Fortaleza vol IV N 6 2008 p 227 ndash 236

Notas sobre Hermenecircutica em

Heidegger e Gadamer

dois sentidos diferentes

Ernildo Stein

I

A questatildeo da relaccedilatildeo entre Heidegger e Gadamer

quantos estatildeo envolvidos com isso Jaacute se tentou tanto uma aproximaccedilatildeo e jaacute se multiplicaram os equiacutevocos quase ao infinito Os dois autores satildeo realmente dois mundos A gente faz uma espeacutecie de complementaccedilatildeo de um com o outro e isto eacute impossiacutevel Tenho um artigo sobre a diferenccedila entre os dois no meu livro Inovaccedilatildeo na filosofia Eacute muito concentrado e aborda um aspecto

Quando me despedi de Heidegger em dezembro de 1965 falei na minha tese e ele me disse se vocecirc quer falar do ciacuterculo hermenecircutico tem que falar com Gadamer Eu jaacute tinha lido Verdade e meacutetodo mas natildeo tinha entendido bem seu nuacutecleo No livro Hermenecircutica e Epistemologia publicado na comemoraccedilatildeo dos 50 anos da obra de Gadamer digo alguma coisa mas sobretudo traduzo aiacute um artigo de A De Waelhens que diz coisas importantes Devem-se tratar os dois autores como dois mundos e mesmo a Hermenecircutica nos dois tem sentido muito diferente Recebi um pequeno livro de entrevistas talvez as uacuteltimas de Gadamer a um ex-colega meu de doutorado na Alemanha Silvio Vieta em que este lembra a Gadamer uma frase de Heidegger Laacute em Heidelberg estaacute Gadamer querendo resolver tudo com a Hermenecircutica A reaccedilatildeo de Gadamer eacute clara mas sem muita surpresa

Lembro esses dois episoacutedios para se perceber como os dois filoacutesofos se relacionavam Era uma relaccedilatildeo

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respeitosa de mestre e disciacutepulo Mas os caminhos que terminaram seguindo natildeo coincidiam Eram dois mundos Mas eram amigos e criacuteticos ao mesmo tempo Heidegger tinha plena consciecircncia da imensidatildeo de sua obra e sabia que Gadamer tinha sido seu melhor disciacutepulo e que ele tinha levado adiante algo que Heidegger natildeo fizera apesar de ser consequecircncia de seu Ser e tempo Mas se isto que Gadamer fizera era estranho para Heidegger tambeacutem ao mesmo tempo era de consequecircncias novas e muito beneacuteficas para a tradiccedilatildeo da fenomenologia Hermenecircutica A ideia de Gadamer de ler a Hermenecircutica aplicada a toda a tradiccedilatildeo como historicidade do compreender - da verdade da arte da histoacuteria e da linguagem na cultura era genial mas natildeo trazia o impulso especulativo de Heidegger Sem Heidegger a Filosofia do seacuteculo vinte natildeo seria o que eacute Gadamer natildeo chegou a esta altura Mas ainda assim noacutes olhariacuteamos o mundo da cultura e da filosofia com muito menos forccedila e plenitude se natildeo houvesse Gadamer com sua Hermenecircutica filosoacutefica

Heidegger inaugurou um paradigma onde Gadamer encontrou um ambiente para a sua visatildeo Mas sem Gadamer talvez natildeo lecircssemos coisas de Heidegger como as lemos No entanto eacute claro que natildeo daacute para interpretar Heidegger a partir de Verdade e Meacutetodo Gadamer tem muito do neokantismo na sua Hermenecircutica E isto foi inovador Gadamer que Heidegger nem avaliou bem nos anos vinte foi no entanto muito maior filoacutelogo que Heidegger Conhecia muito mais grego mas Heidegger com seu grego fez muito mais filosofia E as filosofias dos dois satildeo muito diferentes justamente por isso E por isso tambeacutem a Hermenecircutica eacute muito diferente nos dois Heidegger fala da filosofia (ou fenomenologia) Hermenecircutica a filosofia eacute substantivo e a Hermenecircutica eacute adjetivo Gadamer substantiva a Hermenecircutica e acrescenta o adjetivo filosoacutefica E isto significa um abismo de diferenccedila por mais que as duas tenham algo em comum

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Quero clarear uma coisa que pouca gente vecirc e eacute essencial Nem Heidegger nem Gadamer se pode aplicar diretamente a campos determinados do conhecimento Mas olhamos diferente o conhecimento quando conhecemos os dois No fundo Gadamer trouxe a sua Hermenecircutica filosoacutefica como uma teoria geral da Hermenecircutica para todas as Hermenecircuticas das diversas aacutereas do conhecimento De Waelhens diria que Gadamer construiu uma Hermenecircutica das Hermenecircuticas de cada campo do conhecimento De outro modo cada interpretaccedilatildeo de um campo especiacutefico com sua Hermenecircutica deve seguir certas questotildees centrais que Gadamer desenvolveu como modo de tratamento em sua Hermenecircutica filosoacutefica Na sociologia natildeo fazemos Hermenecircutica filosoacutefica no direito tambeacutem natildeo O que fazemos eacute seguir passos que aprendemos e que se tornam importantes nas Hermenecircuticas particulares Gadamer nos mostra os cuidados que temos que ter quando interpretamos o direito na Hermenecircutica que fazemos no direito etc Portanto uma teoria geral da Hermenecircutica (por isso filosoacutefica) daacute diretrizes e consciecircncia histoacuterica para as Hermenecircuticas particulares

Radicalmente diferente eacute a Hermenecircutica em Heidegger Digamos assim ele quer fazer uma ontologia Hermenecircutica ou uma fenomenologia Hermenecircutica com a qual quer mostrar um sucedacircneo da metafiacutesica uma metafiacutesica natildeo absoluta uma metafiacutesica enraizada no ser humano um metafiacutesica como ciecircncia procurada (episteme zetoumene) e natildeo uma metafiacutesica como ontoteologia Vecirc-se a diferenccedila da intenccedilatildeo heideggeriana ele abrange toda a metafiacutesica com seu projeto de uma Hermenecircutica fenomenoloacutegica ou sua ontologia Hermenecircutica Por isso se deve ver a diferenccedila de projetos entre as duas Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer Contudo haacute algo que as aproxima eacute que Gadamer assume e reconhece o projeto heideggeriano e eacute dele que aprende o tipo de

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filosofia com a qual pode desenvolver a sua Hermenecircutica filosoacutefica Heidegger natildeo serve diretamente para aquilo que Gadamer pretende sua Hermenecircutica da Hermenecircutica ou melhor das Hermenecircuticas de todos os campos de saber que lidam com as humanidades com as filoloacutegicas e nelas incluindo ateacute a filosofia na medida em que lida com a linguagem Mas eacute claro que Heidegger lida com a linguagem em outro niacutevel na medida em que introduz uma dupla estrutura a estrutura apofacircntica e a estrutura Hermenecircutica A diferenccedila neste niacutevel entre Heidegger e Gadamer eacute de dimensatildeo ou de acircmbito ou de alcance Gadamer opera no paradigma que Heidegger instaurou e dele tem conhecimento e com isso produz seu Verdade e meacutetodo Pode-se ver a maior dimensatildeo que tem a obra de Heidegger diante de Gadamer E contudo na manhatilde em que este daria sua uacuteltima aula em Heidelberg ao se aposentar o primeiro que entrou na sala vindo de Freiburg foi Heidegger

II Tratava-se nesse texto de trazer algumas distinccedilotildees

para evitar certas superposiccedilotildees entre os dois autores Este eacute o melhor caminho para compreender a especificidade de ambos Haacute no entanto dois aspectos que devem ser mostrados e que significam levar adiante o trabalho com a Hermenecircutica O primeiro constitui o contexto em que se situa a grande revoluccedilatildeo de Heidegger no contexto da filosofia ocidental com a proposta de tentar responder a questatildeo fundamental Que eacute o ser qual o sentido do ser Em funccedilatildeo dela o filoacutesofo escreveu seu livro Ser e tempo Nele desenvolve a analiacutetica existencial introduz o meacutetodo fenomenoloacutegico hermenecircutico Mas o meacutetodo representa aqui um caminho a ser usado para introduzir de um lado a criacutetica ao dualismo da filosofia da modernidade e revelar como o viacutenculo entre ser e compreensatildeo implicava num

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novo conceito de mundo ligado ao ser humano enquanto ser-no-mundo o ser-aiacute (Dasein)

O ser-aiacute compreende o ser e na mesma medida se compreende a si mesmo Surge a questatildeo do ciacuterculo hermenecircutico e com ele se introduzia ao mesmo tempo uma questatildeo que desde sempre estava operando na questatildeo da linguagem

A distinccedilatildeo que Heidegger introduz entre a dimensatildeo apofacircntica e a dimensatildeo Hermenecircutica para dar conta de uma dupla estrutura da linguagem desvela um modo de ser ligado ao mundo o estar vinculado do ser-aiacute ao mundo praacutetico O compreender-se deste modo daacute agrave dimensatildeo Hermenecircutica uma caracteriacutestica existencial que iraacute atravessar toda a anaacutelise dos existenciais e com isto a linguagem recebe uma espeacutecie de compromisso com o modo de ser-no-mundo praacutetico Supera-se deste modo a forma puramente loacutegica de pensar a linguagem e o discurso Entatildeo tambeacutem a questatildeo do ser deixa de ser apenas uma questatildeo loacutegica Sem abandonar a forma loacutegico-analiacutetica ela traz o elemento existencial do Dasein como modo-de-ser-no-mundo para a linguagem Dessa maneira sempre que falamos operamos em dois niacuteveis o apofacircntico e o hermenecircutico Como no niacutevel cotidiano de comunicaccedilatildeo usamos a gramaacutetica com suas exigecircncias loacutegicas natildeo manifestamos a outra estrutura a Hermenecircutica Mas ela estaacute presente e nos liga como falantes ao mundo praacutetico Como ela sempre jaacute estaacute antecipada quando nos comunicamos pela gramaacutetica da loacutegica podemos falar de uma preacute-compreensatildeo em todo nosso discurso

Eacute ela que impede a gramaacutetica de ser puramente formal e de noacutes nos comunicarmos no vazio de um discurso positivo Levamos o hermenecircutico sempre conosco Podemos continuar falando mas essa preacute-compreensatildeo nos acompanha dando-nos a dimensatildeo que sustenta a linguagem loacutegica E eacute dela que ateacute precisamos para falar da dimensatildeo Hermenecircutica Todo nosso campo

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de conhecimento no entanto eacute tambeacutem hermenecircutico Podemos falar aqui tambeacutem de uma circularidade na medida em que natildeo saiacutemos de um campo da linguagem para o outro campo A dupla estrutura aponfacircntico-Hermenecircutica nos abriga existencialmente

Mostrar isto foi a grande revelaccedilatildeo de Ser e tempo Mas este mostrar percorre toda a analiacutetica existencial e eacute atravessado pela fenomenologia Hermenecircutica Quando falamos portanto em Hermenecircutica trazemos conosco todas as dimensotildees do ser-no-mundo que Heidegger mostrou com sua fenomenologia Hermenecircutica e existencial A diferenccedila ontoloacutegica a distinccedilatildeo entre ser e ente o proacuteprio ciacuterculo hermenecircutico ontoloacutegico em que compreendemos ser e nos compreendemos enquanto somos tudo isso soacute faz sentido se formos capazes de realizar em nosso modo de ser e de operar o modo hermenecircutico-existencial Desde sempre somos assim no mundo

Devemos portanto a Heidegger esta dimensatildeo nova que ele mostrou explicitamente A grandeza da intuiccedilatildeo e seu desenvolvimento em Verdade e meacutetodo foi possiacutevel porque Gadamer compreendeu esta dimensatildeo do pensamento de Heidegger Eacute por isso que natildeo falamos da Hermenecircutica filosoacutefica sem que Heidegger esteja presente E aqui comeccedila a proximidade praacutetica que liga nossas anaacutelises quando operamos nossas interpretaccedilotildees num acircmbito em que aproximamos Heidegger e Gadamer

Conveacutem aprofundarmos a questatildeo do ciacuterculo hermenecircutico que em nossos dias eacute considerada um elemento indiscutiacutevel se natildeo quisermos perder a dimensatildeo que necessariamente acompanha todo conhecimento quando estamos analisando a questatildeo da Hermenecircutica

Temos poreacutem a tendecircncia de atribuir agrave questatildeo do ciacuterculo uma espeacutecie de ponto uacuteltimo que basta aceitar para que o nosso discurso se possa desenvolver no contexto adequado No entanto mesmo aceitando a dupla estrutura

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do mundo da linguagem e tendo evitado o encolhimento de nosso dizer surpreende-nos a necessidade a de uma interpretaccedilatildeo de todo o quadro que formamos O ciacuterculo hermenecircutico eacute conhecimento mas natildeo envolve eventos objetos processos accedilotildees relaccedilotildees e pessoas como se fossem conteuacutedos garantidos pela representaccedilatildeo e por um sujeito Natildeo eacute simples entrar neste ambiente do ciacuterculo hermenecircutico

Somos levados pelo cotidiano de nosso falar a olhaacute-lo como o chatildeo de nossa experiecircncia da empiria No entanto a linguagem que se desenvolve para falar do ciacuterculo hermenecircutico e para alimentaacute-lo eacute filosoacutefica Natildeo aprendemos a falar de modo filosoacutefico sem que tenhamos entrado num espaccedilo em que renunciamos agrave gramaacutetica da objetivaccedilatildeo Mas se atingimos esta dimensatildeo que transcende o discurso dos objetos surpreende-nos a necessidade de saber pensar a condiccedilatildeo da relaccedilatildeo desta linguagem com o todo

Como nos relacionamos com o todo que se potildee no caminho Eacute claro que jaacute apreendemos que o ciacuterculo hermenecircutico surgiu com a fenomenologia e laacute Heidegger nos fala da compreensatildeo do ser e da compreensatildeo que temos de noacutes numa relaccedilatildeo reciacuteproca Aiacute acontece um todo Que todo eacute esse Eacute o todo de uma compreensatildeo e o todo de uma linguagem que diz A questatildeo que se insinua nasce justamente neste encontro Como afirmar este todo Pois se afirmo o todo estou fora dele e entatildeo natildeo eacute o todo Se no entanto estiver no todo nada dele posso dizer O que termino fazendo eacute uma narrativa de mim no todo Mas esta narrativa com que comeccedilo a me introduzir no todo estaacute fora do todo e entatildeo novamente o todo natildeo eacute o todo

Quando falamos no ciacuterculo hermenecircutico se introduz portanto o paradoxo que materializamos no exposto Temos que concluir que o ciacuterculo hermenecircutico eacute um todo com que operamos justamente para compensar a

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impossibilidade de afirmar um absoluto ou absolutos objetivados Mas ele somente pode estar neste lugar porque na filosofia natildeo lidamos com a compreensatildeo dos objetos nem com a compreensatildeo da totalidade dos objetos mas com o todo do nosso compreender

III

De maneira um tanto compacta apresentei o lugar

de origem da questatildeo da Hermenecircutica em Heidegger Com toda a tradiccedilatildeo da Escola Histoacuterica pelas costas depois de muitos anos de contato com a metafiacutesica e a ontologia da filosofia grega e medieval e das questotildees extraiacutedas das leituras de textos de Satildeo Paulo e outros autores da Escritura e de estudos dos neokantianos Heidegger se tornou assistente e interlocutor de Husserl

A entrada na Fenomenologia representou para Heidegger um modo novo de trabalho filosoacutefico com uma bagagem de conhecimento da tradiccedilatildeo ao contraacuterio de seu mestre Husserl que vinha da matemaacutetica e da loacutegica Tinha no entanto posto como subtiacutetulo a partir do segundo volume de suas Investigaccedilotildees loacutegicas ldquoFenomenologia do conhecimentordquo

Atento ao modo de investigaccedilatildeo de Husserl e tentando situar o meacutetodo fenomenoloacutegico no contexto de suas experiecircncias introduzira na aprendizagem com o mestre materiais muito diferentes Mas natildeo imaginemos que Heidegger natildeo tivesse sido impressionado com a questatildeo da intencionalidade e outras categorias que Husserl desenvolvera influenciado por Franz Brentano

Heidegger entretanto introduziria toda a sua experiecircncia da Histoacuteria da Filosofia na recepccedilatildeo e no estudo da filosofia Esta combinaccedilatildeo daria como resultado no comeccedilo um modo diferente de olhar os procedimentos da fenomenologia transcendental de Husserl para mais

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adiante introduzir materiais que conduziriam agrave fenomenologia Hermenecircutica

Vamos observar um tanto de fora esta combinaccedilatildeo e as modificaccedilotildees que foram sendo trazidas pelos interesses teoacutericos de Heidegger e entatildeo iremos perceber que muito cedo estavam aparecendo sinais de uma nova direccedilatildeo na Filosofia Eacute este desenvolvimento que denominarei de nascimento de um novo paradigma Natildeo tentarei descrever todos os elementos que significam e trazem motivos para esta passagem e nascimento de um paradigma Mas ouso adiantar que as condiccedilotildees para o nascimento do paradigma da fenomenologia Hermenecircutica estavam realmente se gestando

Tudo que em Husserl era essencial para seu trabalho e sua interpretaccedilatildeo passaria a ser visto e articulado de outro modo Assim a proacutepria ideia de intencionalidade de representaccedilatildeo de conhecimento de reflexatildeo a relaccedilatildeo sujeito e objeto tudo isso mudaria e tomaria outro sentido E seriam introduzidos vaacuterios novos termos jaacute muito cedo como vida mundo ser histoacuteria tempo ou termo husserlianos seriam transformados como transcendental reduccedilatildeo indicaccedilatildeo formal categoria

Pelo princiacutepio dos anos vinte Heidegger jaacute estava interpretando a seu modo autores e temas da nova fenomenologia e introduzira uma combinaccedilatildeo entre termos filosoacuteficos claacutessicos e novos conceitos As expressotildees que passam a predominar jaacute nos datildeo ideia de uma nova leitura uma nova interpretaccedilatildeo e um novo modo de pensar a Fenomenologia com temas novos Assim se chegaria agrave combinaccedilatildeo entre ontologia e fenomenologia e fenomenologia Hermenecircutica Estava se configurando uma nova gramaacutetica nova sintaxe e semacircntica proacuteprias Tudo poreacutem era conduzido por uma nova ideia de compreender transcendental e outros elementos que serviriam de moldura e bastidor para a linguagem que conduziria ao universo terminoloacutegico de Ser e tempo Estava sendo

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configurado um novo paradigma que conveacutem examinar um pouco

IV

A partir desta etapa a interpretaccedilatildeo de certos

claacutessicos da Histoacuteria da Filosofia usando seu modo novo de concepccedilatildeo do meacutetodo fenomenoloacutegico que o levara a uma atitude nova diante da Filosofia e de seus temas centrais Heidegger se fixa um objetivo ambicioso para sua anaacutelise O filoacutesofo quer retomar a questatildeo da filosofia que Platatildeo e Aristoacuteteles tinham posto e procurado responder em vatildeo QUE Eacute O SER Mas desde sempre e agora quando perguntamos pelo ser entramos em aporia confessa Platatildeo no diaacutelogo Sofista

Se as coisas satildeo assim Heidegger quer retomar a questatildeo na forma da pergunta pelo sentido do ser Para isso o filoacutesofo propotildee uma analiacutetica existencial guiado pelos procedimentos de seu meacutetodo fenomenoloacutegico Realiza uma exposiccedilatildeo provisoacuteria do meacutetodo e nela iraacute aparecer a distinccedilatildeo entre apofacircntico e hermenecircutico onde o tornado fenocircmeno se mostraraacute na superfiacutecie como fenocircmeno vulgar e na profundidade como fenocircmeno no sentido fenomenoloacutegico Entatildeo torna-se possiacutevel desenvolver a analiacutetica existencial que seraacute atravessada pela dupla estrutura a que acena o meacutetodo fenomenoloacutegico

Eacute preciso perguntar pelas estruturas existenciais que constituem o Dasein o ser no mundo e que aparecem ocultas nas estruturas existenciaacuterias do cotidiano Basicamente isto se constitui a partir da distinccedilatildeo entre ser e ente Geralmente estamos envolvidos pelo ocupar-nos com os entes e esquecemos o ser Daiacute o filoacutesofo passa a operar com a diacuteade velamento-desvelamento Esta vem pelo meacutetodo fenomenoloacutegico atravessa todas as dimensotildees do Dasein os existenciais e se ancora na diferenccedila ontoloacutegica Mas o filoacutesofo atravessa toda sua anaacutelise pelo

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velamento e desvelamento que iraacute tomar tambeacutem a forma do autecircntico e do inautecircntico na analiacutetica existencial dos existenciais Apesar de que o mais proacuteximo o ser sempre parece o mais longiacutenquo porque estamos envolvidos com a ocupaccedilatildeo com os entes que nos parecem o mais proacuteximo tendemos a este jogo em que temos que lutar contra a tendecircncia de confundir o proacuteximo com o longiacutenquo para natildeo esquecer o ser pelo ente

Poderiacuteamos ir mais longe mas para o bom entendedor a anaacutelise realizada revela porque a dimensatildeo Hermenecircutica a mais proacutexima (que nos parece a mais longiacutenqua) tende a ser esquecida pela dimensatildeo apofacircntica (na verdade a mais longiacutenqua) que nos parece a mais proacutexima Assim procedemos em todas as nossas formas de objetificaccedilatildeo e subjetivaccedilatildeo e temos apenas a Hermenecircutica para mostrar o engano do nosso modo de ser cotidiano jaacute que atraveacutes dela e da dupla estrutura que protege nossa linguagem de cair no positivo no apofacircntico na solidatildeo loacutegica

O mais importante de tudo que dissemos eacute que a Hermenecircutica estaacute ligada ao problema do ser Por isso a compreensatildeo do ser daacute esta densidade e sustenta a dimensatildeo uacutenica da Hermenecircutica Com a Hermenecircutica ligada agrave compreensatildeo do ser surge o caraacuteter duplo da interpretaccedilatildeo Interpretamos para compreender mas jaacute sempre compreendemos para interpretar A compreensatildeo do ser pelo Dasein eacute resultado da hegemonia ocircntico-ontologica do Dasein Eacute por isso que quando interpretamos jaacute sempre compreendemos este compreender eacute uma estrutura existencial do Dasein Esta a razatildeo porque podemos falar de uma preacute-compreensatildeo que antecipa qualquer interpretaccedilatildeo

Pelo que mostramos em nossa anaacutelise o paradigma heideggeriano se articula a partir de uma nova tentativa de resposta agrave questatildeo do ser E isto traz como consequecircncia ou como resultado da analiacutetica existencial uma vinculaccedilatildeo

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da compreensatildeo com o ser do Dasein e com o ser Heidegger mostra isto em suas anaacutelises do compreender em vaacuterios paraacutegrafos de Ser e tempo Eacute nessa linha de reflexatildeo que encontraremos as verdadeiras razotildees de o filoacutesofo ser o fundador de um novo paradigma que pode ser chamado de fenomenologia Hermenecircutica A Hermenecircutica que resulta deste paradigma eacute uma Hermenecircutica ontoloacutegica Nesta Hermenecircutica se fundam todas as Hermenecircuticas tambeacutem a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer

V

Podemos imaginar o volume de informaccedilatildeo que

traz um pensamento filosoacutefico que terminamos reconhecendo como um paradigma Natildeo se trata no entanto apenas de conhecimento ou de autores que foram estudados por Heidegger Nele como em alguns filoacutesofos ocidentais aos quais podemos atribuir o construccedilatildeo de um paradigma termina aparecendo uma posiccedilatildeo que nos leva a deslocar nossas eventuais convicccedilotildees fragmentaacuterias para um novo universo que tambeacutem torna inovadoras nossas formas de situar e representar o que pensamos

Quando Heidegger apela para o conceito de vida faacutetica que termina atravessando todos os elementos caracteriacutesticos do comeccedilo dos anos vinte ele natildeo apenas quer desconstruir as ontologias tradicionais que chama de ontologias da coisa O filoacutesofo jaacute antecipa a questatildeo do tempo a partir da temporalidade e da historicidade Com isso o modo de a filosofia apresentar a metafiacutesica como ontoteologia isto eacute como teoria do fundamento uacuteltimo eacute trazida para um modo de interrogar na finitude Isto significa que a filosofia deixa para traacutes o dualismo e dessa maneira a necessidade de buscar a totalidade pela reflexatildeo e pela subjetividade

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Esta aparente tarefa central que domina a filosofia moderna depende de uma compreensatildeo que precede o esquema sujeito-objeto que estaacute ligada a ontologia da finitude Temos assim a introduccedilatildeo da fenomenologia como Hermenecircutica da facticidade que seraacute a nova forma de perguntar pela questatildeo do ser

Desse modo a ontologia da finitude seraacute o caminho pelo qual a analiacutetica existencial levaraacute agrave desconstruccedilatildeo da metafiacutesica A proacutepria metafiacutesica se revelaraacute como uma ciecircncia procurada (segundo caminho de Aristoacuteteles) e natildeo uma ontoteologia (primeiro caminho de Aristoacuteteles) Desta maneira Heidegger seguiraacute o desenvolvimento da pergunta pelo sentido do ser pelo meacutetodo da fenomenologia Hermenecircutica

Realizaraacute a analiacutetica existencial para mostrar a necessidade de superar o dualismo cartesiano renovando a questatildeo da compreensatildeo expondo a triacuteplice estrutura do Dasein como modo de ser no mundo ser adiante de si mesmo ser junto das coisas e jaacute ser em que constituem o cuidado que eacute o ser do Dasein A temporalidade como existecircncia decaiacuteda e facticidade seraacute o sentido do cuidado A temporalidade seraacute entatildeo o sentido do ser do ser-aiacute Uma vez exposta a temporalidade que envolve todos os existenciais o filoacutesofo se propotildee pensar o tempo como horizonte do sentido do ser Ainda que tenhamos visto um miacutenimo do todo que constitue os diversos aspectos do paradigma heideggeriano que sustenta sua visatildeo de compreensatildeo e Hermenecircutica jaacute eacute possiacutevel ver como o filoacutesofo pretende apresentar sua visatildeo criacutetica dos paradigmas metafiacutesicos

Vamos nos servir de Manfredo Arauacutejo para resumir as consequecircncias da criacutetica A concentraccedilatildeo da reflexatildeo na historicidade vai tornar impossiacutevel qualquer tentativa de estabelecer o comeccedilo absoluto para o pensamento cuja pressuposiccedilatildeo baacutesica eacute o abismo entre sujeito e objeto o que leva agrave pergunta fundamental Como chegar afinal ao

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mundo Para essa pressuposiccedilatildeo o conhecimento eacute uma atividade da mente um aparato cognitivo distinto do mundo e que se preenche com material cognosciacutevel atraveacutes dos sentidos Esta posiccedilatildeo trabalha com um duplo dualismo um dualismo interno entre sensibilidade e espiritualidade e um dualismo externo entre mente e mundo Para Heidegger essa questatildeo baacutesica natildeo se potildee porque sujeito e objeto jaacute estatildeo sempre abrangidos pela dimensatildeo originaacuteria o ser Nessa perspectiva Heidegger rompe com a epistemologizaccedilatildeo que caracterizou a filosofia moderna e repotildee a ontologia no centro da Filosofia (Manfredo Arauacutejo de Lima ldquoTeoria do ser primordial como tarefa suprema de uma filosofia sistemaacutetico-estrutural In Siacutentese Belo Horizonte v 39 n 123 p 53-79 p 58 janabr 2012)

Como vimos antes Gadamer se situa com sua Hermenecircutica filosoacutefica dentro do paradigma heideggeriano O que significa isto Natildeo precisamos situar-nos em nenhum paradigma Mas podemos estar situados num paradigma sem o sabermos de maneira clara No caso de Gadamer o autor analisa os aspectos que o ligam a Heidegger e tambeacutem mostra certas questotildees que o ultrapassam e separam dele O filoacutesofo por exemplo diz explicitamente que se inspirou sobretudo no conceito de facticidade agora aplicada agrave cultura fora da analiacutetica existencial de Heidegger Natildeo eacute tema de sua obra a questatildeo do ser a questatildeo da temporalidade a questatildeo da transcendentalidade Nem mesmo lhe interessava a questatildeo geral da metafiacutesica e um novo projeto da questatildeo do ser e seu sentido

No entanto haacute por outro lado muitos elementos que lembram o paradigma heideggeriano A historicidade da compreensatildeo a ampliaccedilatildeo da questatildeo da Hermenecircutica e sobretudo a ideia da dupla estrutura da linguagem Em resumo tambeacutem Gadamer se move na dimensatildeo aleacutem do

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dualismo moderno Talvez deva ser lembrada sobretudo a questatildeo da finitude e a questatildeo da preacute-compreensatildeo

Se aqui lembramos como Gadamer se aproxima do paradigma heideggeriano e como se separa isto jaacute mostra que pensamos que o filoacutesofo natildeo apresenta um paradigma proacuteprio ainda que tenha uma originalidade insuperaacutevel Talvez natildeo possamos compreender a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer sem a Filosofia Hermenecircutica de Heidegger O filoacutesofo no entanto explorou com sua obra um universo que marcaraacute nosso tempo e ocupa um lugar decisivo para entendermos como nos situamos na nossa cultura Ele nos mostra como devemos trabalhar com as Hermenecircuticas dos diversos campos do saber sobretudo os que lidam com a linguagem

Creio que as duas Hermenecircuticas dos dois pensadores tem uma complementaridade que ainda natildeo foi pensada Natildeo sei se podemos pensar Gadamer sem Heidegger mas certamente Gadamer abriu um pensamento novo e deu agraves intuiccedilotildees heideggerianas um sentido com nova amplitude

VI

Ateacute agora fizemos uma excursatildeo atraveacutes da

paisagem da Hermenecircutica na filosofia Mas o interesse era iluminar a proximidade e a distacircncia das Hermenecircuticas em Heidegger e Gadamer Entramos na anaacutelise por uma seacuterie de consideraccedilotildees que terminaram nos levando agrave questatildeo do paradigma na filosofia e sua funccedilatildeo baacutesica para darmos conta do modo melhor de proceder para chegar ao nuacutecleo de uma filosofia As conclusotildees foram claras e mostraram que em Heidegger haacute um paradigma em movimento e que a questatildeo da Hermenecircutica a partir da fenomenologia Hermenecircutica eacute o lugar em que se alimenta a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer

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Era importante perceber como atraveacutes da Hermenecircutica em Heidegger Gadamer deu forma ao nuacutecleo fundamental de sua Hermenecircutica que denominou de filosoacutefica Natildeo podemos aplicar um paradigma filosoacutefico diretamente a outro paradigma filosoacutefico Os paradigmas tem sua longa seacuterie de elementos que lhes datildeo autonomia Mas isso natildeo os faz viver se articulando sem um constante diaacutelogo com o pensamento em geral Jaacute vimos como a questatildeo central da fenomenologia Hermenecircutica se comensura com o projeto heideggeriano de investigar o sentido do ser e portanto de se empenhar nas questotildees centrais da metafiacutesica

Heidegger usou os recursos mais sugeridos do que desenvolvidos de seu meacutetodo que deveria ter sido explicitado mais amplamente para tomar a forma de um quadro teoacuterico adequado a seu projeto de perguntar pelo sentido do ser atraveacutes da analiacutetica existencial

Gadamer desenvolveu sua Hermenecircutica sem um projeto que deveria dar conta de um projeto de universalidade como o projeto heideggeriano Natildeo se pode no entanto afirmar que Verdade e meacutetodo natildeo tenha um objetivo universal que foi desenvolvendo com seus recursos teoacutericos As intenccedilotildees que conduziam suas etapas teoacutericas eram relativamente definidas Dar conta de uma verdade natildeo apenas proposicional da arte da histoacuteria e da linguagem representava uma dimensatildeo nova no contexto de toda filosofia Isto jaacute possuiacutea uma envergadura teoacuterica e especulativa que atingia todo o espectro da filosofia Haacute algo inteiramente diferente nesta Hermenecircutica denominada filosoacutefica e isto deveria levar a produzir efeitos em todos os campos em que se trabalhava com interpretaccedilatildeo

Para ir direto ao problema a profunda inovaccedilatildeo com a ideia da historicidade da compreensatildeo e seus elementos complementares dava-se atraveacutes dos efeitos que dela deveriam resultar para todos os campos do

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conhecimento sobretudo aqueles referidos agrave linguagem e aspectos com ela vinculados incluindo nisto tambeacutem agrave filosofia

Depois da consciecircncia histoacuterica vinculada com nosso modo de compreender natildeo conseguimos mais reduzir nosso lidar com a linguagem como se a dimensatildeo loacutegico-analiacutetica tivesse a uacuteltima palavra As intenccedilotildees da Hermenecircutica faziam dela uma Hermenecircutica filosoacutefica porque ela deveria ter consequecircncias regradoras para todos os campos particulares da interpretaccedilatildeo

Haacute algo de um objetivo filoloacutegico nesta Hermenecircutica que procura chegar aos mecanismos da historicidade da compreensatildeo em todas as esferas da cultura sobretudo quando se opera com a linguagem E eacute nesta direccedilatildeo que Gadamer atinge todos os que trabalham com o conhecimento em que os textos tecircm consequecircncias para o pensamento as escolhas e as decisotildees Tudo estaacute mergulhado numa dimensatildeo histoacuterica que natildeo se esgota por causa da historicidade da compreensatildeo

Natildeo se trata de dar conta de um projeto filosoacutefico simplesmente mas de mostrar como funcionamos nos nossos discursos em dois niacuteveis em que a loacutegica natildeo esgota o sentido porque ele vem carregado e marcado pela tradiccedilatildeo Heidegger faz ver aspectos de todo o universo a que Gadamer se dedica mas a sua Hermenecircutica natildeo vigia os processos de compreensatildeo de nossa cultura no movimento da historicidade A Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer vem ao nosso encontro quando esquecemos o acontecer da historicidade no nosso conhecimento nos diversos campos do saber e isto eacute tambeacutem tarefa da filosofia No entanto eacute mais que isso ela se transforma em Hermenecircutica da Hermenecircutica(ou melhor das Hermenecircuticas)

No caso de Heidegger Ser e tempo suscitou bem outra reaccedilatildeo Tratava-se de um campo ontoloacutegico

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Quando se encontraram estudiosos da antropologia da psicologia da psicanaacutelise da teologia e da literatura com a concepccedilatildeo e as categorias centrais da analiacutetica existencial de Ser e tempo a reaccedilatildeo foi quase imediata Abrira-se um campo de categorias e uma instigante sucessatildeo de aspectos que eram absolutamente novos e contudo parecia que estes campos do conhecimento estavam esperando por estas temaacuteticas novas e pelo repertoacuterio conceitual extremamente sugestivo

Na psicologia e sobretudo na psicanaacutelise e na psiquiatria natildeo foram incorporados muitos conceitos de Ser e tempo mas parecia que o ser humano podia ser repensado a partir do Dasein e assim se teria dado um salto para as teorias destas aacutereas e para a compreensatildeo da cliacutenica

Natildeo parecia tatildeo relevante a questatildeo da Hermenecircutica renovada na analiacutetica existencial mas antes os conteuacutedos que ela trazia Os psiquiatras e os psicanalistas descobriam no aprofundamento do estudo da analiacutetica existencial uma grande ampliaccedilatildeo da compreensatildeo do ser humano Tambeacutem Heidegger e outros filoacutesofos estavam muito interessados nos efeitos de suas teorias nas hipoacuteteses com que trabalhava a comunidade dos estudiosos da alma humana

Ficaram famosos os estudos de Binswanger que tentou mesmo escrever um livro ao estilo de Ser e tempo do ponto de vista psiquiaacutetrico No encontro referido no comeccedilo Heidegger por sua vez falava com muito entusiasmo para mim dos cursos que dava na cliacutenica de Medard Boss em Zollikon na Suiacuteccedila

Interesses reciacuteprocos aproximaram Heidegger e Bultmann que chegou a reescrever a questatildeo da concepccedilatildeo da revelaccedilatildeo por influecircncia de Ser e tempo num livro com o sugestivo tiacutetulo Crer e compreender (Glauben und Verstehen)

Mas o que nos interessou ao longo de nossas consideraccedilotildees era a questatildeo da Hermenecircutica Confesso que a questatildeo do compreender e da interpretaccedilatildeo a partir

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de Heidegger foi muitas vezes encoberta pela questatildeo ontoloacutegica na filosofia e pelo estudo dos existenciais nas ciecircncias humanas Somente Binswanger valorizou a compreensatildeo para a psiquiatria E diversos estudiosos das ciecircncias humanas valorizaram o meacutetodo fenomenoloacutegico

Mas foi a publicaccedilatildeo de Verdade e meacutetodo que deu novo impulso ao problema hermenecircutico Toda a estrutura do livro e as trecircs partes sobre a verdade da arte da histoacuteria e da linguagem anunciavam uma nova dimensatildeo da Hermenecircutica No entanto penso que foi a questatildeo da compreensatildeo e da historicidade do compreender que teve influecircncia teoacuterica no campo das ciecircncias humanas mas muito aleacutem da epistemologia Gadamer mesmo suscita no livro um interesse pela Hermenecircutica pelas importantes referecircncias agrave Hermenecircutica biacuteblica juriacutedica e teoloacutegica Mas convenhamos se toda a obra de Gadamer nos leva a desenvolver e aplicar a Hermenecircutica no conhecimento humano sobretudo nas ciecircncias humanas e principalmente naquelas que lidam com a linguagem isto se daacute atraveacutes do acontecer

Penso que podemos ver a Hermenecircutica de Gadamer como o grande guarda-chuva da interpretaccedilatildeo e da compreensatildeo no campo da linguagem Tenho que chamar atenccedilatildeo para o que eacute decisivo na temaacutetica da Hermenecircutica em Gadamer que Verdade e meacutetodo natildeo trata de uma Hermenecircutica que seja uma estrutura ou faccedila parte de uma estrutura que possa ser comparada a estruturas que outros campos do conhecimento apresentam A obra toda se configura como uma exposiccedilatildeo de todos os elementos que compotildeem o conhecimento humano como um acontecer Eacute por isso que Verdade e meacutetodo nos traz uma dimensatildeo o acontecer da historicidade que abrange todos os elementos com que opera a interpretaccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico na aacuterea de humanas

Chegamos ao ponto em que parecem colidir as Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer No entanto o

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que haacute eacute uma aproximaccedilatildeo Nela temos que manter Heidegger como o lugar originante da Hermenecircutica e Gadamer como aquele autor que soube pelo imenso conhecimento trazer a dimensatildeo do acontecer da cultura humana onde muitas formas de conhecimento operam com a Hermenecircutica Em Heidegger a Hermenecircutica estaacute ligada ao Dasein como um existencial que atravessa o meacutetodo fenomenoloacutegico Gadamer estaacute envolvido na articulaccedilatildeo do elemento hermenecircutico na historicidade do compreender que acontece em todo o conhecimento humano

VII

Nossa anaacutelise se estendeu por exigecircncia da clareza

que temos que encontrar neste campo da Hermenecircutica onde a dispersatildeo se infiltra justamente por tratar de um dos acircmbitos fundamentais que envolvem o homem a linguagem Natildeo resta duacutevida que dela tratam os estudiosos de diversos campos desde o empiacuterico passando pelo formal atravessando a anaacutelise linguiacutestica e entrando nas diversas formas de abordagem pela filosofia Na Histoacuteria da Filosofia a tradiccedilatildeo Hermenecircutica representa uma evoluccedilatildeo histoacuterica que se enraiacuteza no seacuteculo 19 Mas foi pela Escola histoacuterica alematilde que a procura de um fundamento filosoacutefico para o conhecimento histoacuterico levou ateacute a Hermenecircutica como forma de afirmaccedilatildeo de um campo especiacutefico que seria uma alternativa de meacutetodo para as ciecircncias humanas Meacutetodo hermenecircutico primeiro e progressivamente tomando forma de um campo de estudos que podemos chamar um acircmbito hermenecircutico marcado pelo compreender Como jaacute vimos este compreender se amplia ateacute tornar-se um modo de ser um existencial que atravessa a linguagem

Natildeo precisamos voltar aos problemas que surgem no confronto entre analiacutetico e hermenecircutico Temos apenas

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que levar em conta que a virada analiacutetica na filosofia acordou para o uso hermenecircutico na questatildeo da linguagem

Primeiro a descoberta de que a exclusividade da abordagem analiacutetica dos discursos podia ser facilmente posta em duacutevida A dimensatildeo da compreensatildeo se impunha em muitos campos das ciecircncias humanas e revelaria pela preacute-compreensatildeo um universo em que sempre nos moviacuteamos

Fazia-se presente nesta Hermenecircutica a superaccedilatildeo da relaccedilatildeo sujeito-objeto que era o traccedilo dominante da metafiacutesica objetivista e que levava agraves questotildees do dualismo no conhecimento

A partir da consciecircncia de que a Hermenecircutica representava um amplo campo de tratamento de nosso conhecimento pelas obras de Heidegger e Gadamer a abordagem das ciecircncias humanas passou por uma grande mudanccedila

Certamente tinha que ser descoberto que a reviravolta analiacutetico-linguiacutestica mostrava que havia uma linguagem entre noacutes e o objeto Mas esta reviravolta natildeo era apenas loacutegico-semacircntica como erroneamente se acreditava O nosso conhecimento jaacute se constitui num modo de ser de caraacuteter pragmaacutetico que Heidegger denominaria uma relaccedilatildeo praacutetica com os entes que conhecemos e com nosso ser A Hermenecircutica vinha a ser o espaccedilo para ampliar um modo de estarmos envoltos na linguagem pelo nosso modo de ser no mundo Mais radical A linguagem eacute a casa do ser (Heidegger) A questatildeo que fica eacute a que nos conduz desde o comeccedilo de nossa anaacutelise que Hermenecircutica como em que medida e com que consequecircncias podemos abordar nos diversos campos do conhecimento

Jaacute fizemos algumas referecircncias a esta questatildeo em passagens anteriores Mas eacute uacutetil chamar atenccedilatildeo para o fato de que a Hermenecircutica marca presenccedila por toda parte Nem sempre se define de maneira adequada de que

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Hermenecircutica se trata Quanto agraves Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer tambeacutem haacute dificuldades para definir o espaccedilo e as formas de operar com elas Em nossa anaacutelise mostrou-se a dificuldade de separaacute-las e podemos agora dizer que em geral natildeo existe o cuidado suficiente na aplicaccedilatildeo

Temos ainda o grande problema das condiccedilotildees dos autores que fazem a experiecircncia com a Hermenecircutica em seus campos de teorizaccedilatildeo com sua especialidade Quanto de filosofia conhecem em que tipo de paradigma filosoacutefico se movimentam o que esperam de resultados para melhorar ou consolidar os campos em que atuam Em geral o uso da Hermenecircutica produz conflitos entre teorias que jaacute estatildeo enraizadas em pressupostos filosoacuteficos porque se pressupotildeem paradigmas com dificuldades na aproximaccedilatildeo

Martin Heidegger lendo

Frederico Nietzsche

Gilvan Fogel

Quem tem uma meta ( um fitoldquoein Zielrdquo) e um herdeiro este no tempo certo quer a morte para o herdeiro e a meta ndash Assim Falava Zaratustra I Da morte livre

1 Eacute possiacutevel que em buscando entender e

explicitar a contemporaneidade Nietzsche tenha sido o interlocutor mais proacuteximo mais imediato de Heidegger E como Nietzsche aparece se mostra para Heidegger Como Heidegger lecirc Nietzsche De cara poreacutem marquemos neste diaacutelogo Frederico Nietzsche passa a chamar-se vontade de poder Vontade de poder eacute como Nietzsche a certa altura de sua lida filosoacutefica passa a nomear a realidade primeira elementar ou imediata que ele vecirc experimenta e tambeacutem denomina vida Vida eacute o movimento espontacircneo gratuito portanto sem razatildeo alguma para ser ou natildeo ser de irromper de vir agrave ou para a luz isto eacute aparecer e assim pocircr-se e impor-se Este assim imperar enquanto e como espontacircneo aparecer eacute o poder Esta banalidade esta trivialidade eacute um grande pensamento uma grande visatildeo ou sacada ― enfim uma grande experiecircncia inspirada nos gregos inauguradora fundadora de uma trajetoacuteria de um percurso ou de uma histoacuteria de pensamento a saber o de Nietzsche o pensamento de vida enquanto e como vontade de poder E grande aqui estaacute dizendo radical essencial Bem a isso a tal experiecircncia ou sacada segundo o proacuteprio Nietzsche para melhor dizecirc-la e formulaacute-la portanto para melhor pensar o acontecimento vida Nietzsche denomina vontade de poder Antes vontade para o poder ― ldquoWille zur Machtrdquo E por que vontade

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Heidegger lendo vontade de poder inicialmente faz uso de um meacutetodo nietzschiano o da caricatura ou seja o uso de caricaturar isto eacute de exagerar (com medida) para tornar visiacutevel Ver entrever ler entreler o sinal o aceno o sintoma e aiacute entatildeo exagerar para vir agrave luz para tornar-se visiacutevel Assim segundo este meacutetodo Nietzsche isto eacute vontade de poder se torna a uacuteltima palavra o uacuteltimo nome da metafiacutesica Mas com que direito isso eacute feito O que eacute visto entrevisto lido entrelido O uacuteltimo metafiacutesico quer dizer o uacuteltimo (o mais recente melhor o recentemente mais essencial mais radical) a ver a compreender e a postular toda articulaccedilatildeo e compreensatildeo de toda e qualquer realidade possiacutevel a partir de um fundamento constituiacutedo que atua que opera como causa como agente como sujeito Isso eacute de iniacutecio e grosso modo metafiacutesica Mas ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo quer tambeacutem e principalmente dizer o filoacutesofo o pensador que justo pela via de seu pensamento leva e eleva esta tradiccedilatildeo do fundamento da vontade de fundamento (ieacute igualmente de verdade pois trata-se aqui de verdade do fundamento e de fundamento da verdade) agrave sua cumulaccedilatildeo agrave sua plenificaccedilatildeo ou melhor consumaccedilatildeo Ou seja o filoacutesofo o pensador que esvazia completamente esta tradiccedilatildeo porque a enche toda a cumula maximamente isto eacute faz com que ela possa venha a poder tudo que ela pode poder No caso tal fundamento assim constituiacutedo eacute a vontade entendida como vontade de (para o) poder onde poder se torna o poder de controle de asseguramento de caacutelculo enfim o modo proacuteprio de ser da teacutecnica moderna Natildeo ― isso eacute demais Nietzsche vendo e pensando isso e assim Eacute demais Eacute erro E se natildeo eacute miopia ou coisa de vesgo deve ser maacute vontade Logo Nietzsche que eacute o mais contundente e agudo criacutetico de sujeito de substacircncia de causalidade de eu seja psicoloacutegico seja transcendental Isso esta fala de Heidegger eacute desvio eacute erro e com laivos de

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maacute vontade de maacute feacute Mas vamos agrave caricatura Concedamos-lhe um creacutedito

Lendo Nietzsche Heidegger vecirc e acentua isto eacute para evidenciar ou tornar visiacutevel exagera superdimensiona na caricatura o modo como a tradiccedilatildeo vindo agrave fala hoje aqui e agora ou seja enquanto e como noacutes herda Nietzsche isto eacute como a tradiccedilatildeo que eacute essencialmente a metafiacutesica hoje interpreta ou se apropria de Nietzsche Ouccedila-se de vontade de poder Interpretar eacute sempre apropriar E a-propriar eacute sempre trazer ou levar para um proacuteprio No caso eacute o proacuteprio que eacute a metafiacutesica ou seja a sua identidade o seu modo de ser que eacute ver entender articular e expor o que quer que seja desde a necessidade do fundamento entendido e definido como fundamento inconcusso e este como causa e esta como substacircncia ou sujeito E o modo como na modernidade cartesiana este fundamento se concretiza eacute o modo do sujeito ou da sujetidade do eu do cogito que pode que precisa ser lido e entendido como vontade no sentido da exposiccedilatildeo ou melhor da auto-exposiccedilatildeo desta sujetidade autocircnoma que em se expondo ou se objetivando de tudo se apropria e se apodera (interpreta) e assim tudo iguala ou nivela a si proacutepria A este processo metafiacutesico de compreensatildeo e de definiccedilatildeo ou determinaccedilatildeo de realidade a modernidade denomina constituiccedilatildeo objetivaccedilatildeo Melhor constituiccedilatildeo ou estruturaccedilatildeo como ou desde accedilatildeo ou atividade do sujeito (eu consciecircncia autocircnoma) Justo esta accedilatildeo ou atividade do sujeito chama-se objetivaccedilatildeo ou a colocaccedilatildeo do real como objeto ou objetividade E a esta accedilatildeo ou atividade deste sujeito do sujeito moderno denomina-se igualmente vontade agrave medida que este processo de constituiccedilatildeoobjetivaccedilatildeo marca o eu quero como accedilatildeo ou atividade do cogito do ego cogito ― ego cogito = ego volo Vontade aqui eacute pois a accedilatildeo a atividade do eu transcendental (consciecircncia autocircnoma) se expondo se objetivando e agrave medida que assim constitui

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toda e qualquer realidade como objetividade diz eu (transcendental subjetividade autocircnoma vontade) quero

Neste horizonte desde esta perspectiva ou interesse (o mundo moderno) eacute ouvida isto eacute eacute interpretada ou apropriada a fala de vontade de poder A vontade entendida como a accedilatildeo ou a atividade constituidora e objetivadora do eu ou da consciecircncia autocircnoma (o sujeito moderno) eacute a oacutetica o sentido a partir do(a) qual tudo para a modernidade eacute visto estruturado ― sub-visto e sub-entendido Ainda caricaturando eacute mais ou menos como se a modernidade o cartesianismo ― isto eacute noacutes ― ao ouvir a fala nietzschiana de vida como vontade de (para o) poder dissesse ldquoAh este Nietzsche eacute dos nossos Eacute nosso par Falemos conversemos inter parisrdquo

Desde este lugar ou interesse esta tradiccedilatildeo este ldquoenvio histoacutericordquo na fala de Heidegger ouve a seguinte pergunta posta por Nietzsche pela boca do Zaratustra ldquoQuem deve ser o senhor da Terrardquo1 E imediatamente toda empertigada e peito estufado quase que em grito proclama ldquoEurdquo A esta tradiccedilatildeo absolutamente natildeo interessa isto eacute natildeo vecirc natildeo ouve natildeo pode ver e ouvir o possiacutevel outro registro o possiacutevel outro horizonte (de salto de passagem ou ultra-passagem) a possiacutevel outra musa que fala que ecoa e que ressoa na resposta de Zaratustra agrave sua proacutepria pergunta e que eacute senhor da Terra seraacute haacute de ser aquele ldquoque ouvir que obedecer ao sentido da Terrardquo ldquoAquele que permanecer fiel agrave Terrardquo2

ldquoTerra O que eacute isso Natildeo interessardquo Melhor ldquoA Terra sou eu Eu quero Isto eacute em constituindo em objetivando eu uso eu aproprio eu igualo eu nivelo Eu agrave medida que substacircncia sujeito sou o senhor quer dizer o dono o proprietaacuteriordquo Eu aqui estaacute pois dizendo a compreensatildeo metafiacutesica transformada em euconsciecircncia

1 Cf Assim falava Zaratustra IV O canto do noctiacutevago n4

2 Cf Assim falava Zaratustra Proacutelogo n 3

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autocircnomo(a) (isso eacute Descartes e o novo o novo modo de ser da modernidade) e que assim vai entoando o seu refratildeo narciacutesico tal como se vecirc e se ouve em ldquoCantate du Narcisserdquo de Paul Valeacutery e que se faz uma extraordinaacuteria chave hermenecircutica para esta mesma modernidade Este canto este refratildeo eacute como o chumbo derretido que vai sendo lenta e homeopaticamente vertido gota a gota pingado em nossos ouvidos de homens de hoje e de agora Como Na voz na cantilena da teacutecnica da teacutecnica moderna da tecno-ciecircncia ou da tecnologia Vontade de para o poder

Heidegger lendo entrelendo Nietzsche desde a tradiccedilatildeo que o herda que o recebe ou recepciona vecirc isso ou assim Para evidenciar para tornar visiacutevel agrave Klee calca decalca exagera e exacerba esta linha desta caricatura (nota em caricatura em arte mais se calca se decalca se exagera e se exacerba quanto mais leve e fino e sutil eacute o traccedilo a matildeo) de tal modo que vai chegar a esta extravagante afirmaccedilatildeo alienada e louca se natildeo estulta eou de maacute feacute aos ouvidos de um nietzschiano poacutes-moderno agrave la lettre com a doutrina do super-homem (do Uumlbermensch) o cogito cartesiano chega agrave sua extrema dominaccedilatildeo Super-homem aqui natildeo deve ser ouvido como possiacutevel para aleacutem do homem entenda-se para aleacutem do humanismo greco-cristatildeo e entatildeo para aleacutem do animal racional Natildeo Super-homem Uumlbermensch agora e aqui e assim fala do homem moderno o cartesiano o da autonomia do eu ou da consciecircncia poreacutem super-dimensionado (o ldquohomem unidimensionalrdquo de Marcuse) que entatildeo se faz maximamente isto eacute como tipo ou estrutura ldquolrsquohomme reacutevolteacuterdquo e ldquobiacutepede ingratordquo na forma da caricatura dostoievskiana Formas exacerbadas e pueris do homem moderno mais uma vez do tipo cartesiano agora enlevado e embevecido consigo mesmo sob a eacutegide do esplendor do monumentalismo e do gigantismo pex de Raskolnikov (seu Colombo seu Napoleatildeo) em Crime e Castigo ou de Kiriacutelov em Os Democircnios O modelo o archeacute-tipo eacute Kiriacutelov o matador de Deus e que assim no estertor

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da vontade rebelada (pura puerilidade do homem sem transcendecircncia) inverte a metafiacutesica no desespero e na exacerbaccedilatildeo do ldquoagora eu sou Deusrdquo ldquoagora eu querordquo Culmina e cumula o ego cogito = ego volo isto eacute o super-homem na visatildeo caricata ainda de Dostoievski e que eacute o retrato em ponto maior do homem moderno cartesiano iluminista Heidegger no rastro no eco no vaacutecuo de Dostoievski lecirc assim Heidegger ainda eacute maiusculamente dostoievskiano3 quando em Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica fala de um grave aspecto do niilismo europeu enquanto e como a despotenciaccedilatildeo do espiacuterito ldquodie Entmachtung des Geistesrdquo (perda de forccedila perda de poder do espiacuterito seu esvaziamento) agrave medida que hoje o espiacuterito se transformou em inteligecircncia em intelecto4 Isto a saber tal transformaccedilatildeo perfaz o nuacutecleo do diagnoacutestico dostoievskiano da Europa moderna do iluminismo ou do faustianismo europeu A ldquomeia ciecircnciardquo como diz com grande desprezo um personagem dostoievskiano em Os Democircnios

Eacute assim nesta direccedilatildeo que vontade de poder revigorada como retomada ou repeticcedilatildeo do igual no eterno retorno do igual isto eacute da proacutepria vontade enquanto e como o moderno ego cogito = ego volo ― enfim nesta direccedilatildeo e assim eacute que a modernidade se querendo a si proacutepria em insistente revigoramento ou revitalizaccedilatildeo de revolta (lrsquohomme reacutevolteacute) e de ingratidatildeo (ldquoo biacutepede ingratordquo)

3 Natildeo se estaacute aqui como acima de modo geral a insinuar ou a marcar alguma ldquoinfluecircnciardquo nova e desconhecida ouvida talvez em alguma alcova () de Dostoievski sobre Heidegger (ele o conhecia e muito bem segundo testemunho natildeo de alcova de Gadamer) e accedilular a acribia e a sanha da pesquisa a favor ou contra com documentos comprovaccedilotildees ocorrecircncias Ah ocorrecircncias Absolutamente este natildeo eacute o caso Nada do espiacuterito dos idiotas da objetividade Por que para que este desgaste Natildeo sejamos tolos e nem perdulaacuterios

4 Heidegger M Einfuumlhrung in die Metaphysik Max Niemeyer Tuumlbingen 1976 S 34 e 35 Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica Tempo Brasileiro Rio 1978 paacuteg 71 e 72 trad ECLeatildeo

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in hoc signo pois que a vontade se faz vontade de vontade (assim interpreta Heidegger o eterno retorno enfatizando o interesse moderno cartesiano) e molda e modela a essecircncia da teacutecnica moderna isto eacute da tecno-logia onde este ldquoloacutegosrdquo eacute o moderno o da autonomia do eu ou da consciecircncia transfigurada em vontade igualadora e niveladora de tudo ldquoNivelar montanhas aplainar tudo eacute um grande pensamentordquo diz e proclama Stawroguin isto eacute o gecircnio do mal (em ldquoOs Democircniosrdquo) o gecircnio da modernidade cartesio-iluminista faustiana na funda profunda compreensatildeo dostoievskiana com a qual comunga Heidegger

Eacute neste contexto nesta fervura hermenecircutica que na leitura aguda de Heidegger a modernidade precisava da fala de vontade de poder para ela proacutepria melhor se entender agrave medida que ela por esta via em auto-interpretaccedilatildeo desta mesma modernidade viesse toda agrave tona agrave luz em se concretizando ou se realizando como dona como senhora da Terra5 ldquoEu quero Eu querordquo ― esta

5Aristoacuteteles em Met I mutatis mutandis faz uma semelhante leitura dos preacute-socraacuteticos Uma leitura teleoloacutegica na qual ou desde a qual o comeccedilo archeacute se explicita se expotildee todo na sua cumulaccedilatildeo e assim vem agrave compreensatildeo tal como antes natildeo era possiacutevel No caso Aristoacuteteles retro-olhando para os preacute-socraacuteticos e constatando que todos queriam compreender a physis mas natildeo sendo eles capazes de formular este problema da physis isto eacute do movimento a partir da e como a articulaccedilatildeo das quatro causas na teoria por ele elaborada na sua Fiacutesica ― assim Aristoacuteteles diz insinua que ele a partir de sua teoria da causalidade estava em condiccedilotildees de entender os preacute-socraacuteticos melhor do que eles foram capazes de se entender do que eles podiam se entender a si proacuteprios ― ldquode certo modo esta foi a fala de todos por outro lado jamaisrdquo (Met I 10 993ordf)

Assim Heidegger lendo vontade de poder desde e como a proacutepria moderna metafiacutesica da subjetividade se apropria de tal doutrina a metafiacutesica dana vontade que se quer a si proacutepria mostra que assim eacute possiacutevel a esta modernidade se entender melhor do que ateacute entatildeo sem tal nome ou formulaccedilatildeo se entendia podia se entender Vontade de poder foi pois o nome o conceito que faltava agrave modernidade agrave contemporaneidade agrave metafiacutesica em sua consumaccedilatildeo ou cumulaccedilatildeo para que ela proacutepria se

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eacute sua fala seu grito sua convulsatildeo e seu espasmo enquanto e como nivelamento achatamento de toda a Terra segundo a bitola do seu querer da sua vontade A vontade a metafiacutesica moderna se faz teacutecnica e atua opera como intelecto (inteligecircncia) caacutelculo isto eacute controle e (auto) asseguramento E isso eacute nisso constitui-se poder ― o poder6 Este poder se torna o alvo a meta da vontade do querer de todo querer E assim como teacutecnica (= metafiacutesica na sua cumulaccedilatildeo) a vontade se faz senhora dona da Terra Tal como queria Descartes um saber uma ciecircncia ldquoque assim nos torna mestres e senhores possuidores da

fizesse mais clara para si mesma e desde si mesma Ela em se lendo em se interpretando (apropriando) na e desde a vontade de poder cumula-se ou consuma-se como exerciacutecio de gnoti seautoacuten do conhece-te a ti mesmo tal como Hegel via especulativamente (e natildeo moralmente) a filosofia ocidental a fenomenologia do espiacuterito ou a histoacuteria da experiecircncia da consciecircncia enquanto e como a histoacuteria do verdadeiro

Trata-se sim no caso de Heidegger de uma leitura de uma interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ainda que nada hegeliana Isto eacute tanto para Heidegger quanto para Nietzsche natildeo se trata de uma teleologia do verdadeiro [da consciecircncia do desdobramento (ldquoEntwicklungrdquo) da consciecircncia] mas antes do erro ― da histoacuteria de um erro diz Nietzsche Ou se se quer sim teleologia do verdadeiro (da consciecircncia para a auto-consciecircncia da subjetividade para ela proacutepria como vontade de vontade) poreacutem enquanto e como a teleologia de um erro a saber a proacutepria consciecircncia o proacuteprio verdadeiro (ldquodas Wahrerdquo na fala de Hegel) pois a consciecircncia o eu sujeito eacute erro o erro moderno O que Nietzsche chama histoacuteria de um erro eacute a mesma histoacuteria que Hegel denomina histoacuteria do verdadeiro de ldquodas Wahrerdquo Sim a mesma mas vista desde um outro lugar desde um outro horizonte (vida como vontade de poder) uma vez que ldquoum erro natildeo pode ser reconhecido como tal desde o solo do proacuteprio errordquo estaacute dito no Posfaacutecio a O Nascimento da Trageacutedia Sim a mesma histoacuteria mas que agora em virtude deste outro lugar deste outro interesse ou horizonte converte-se na histoacuteria de um erro porque eacute a do verdadeiro

6 Hoje tende-se a entender poder todo poder a partir do coletivo do social melhor do poliacutetico pois hoje impera a poliacutetica total o politicismo integral Sinal dos tempos Mas isso a saber poliacutetica total tambeacutem eacute teacutecnica Sobretudo isso eacute teacutecnica ― ciberneacutetica

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naturezardquo7 isto eacute da Terra E o que eacute a Terra O sentido da Terra Isso diz subdiz a modernidade o homem ou o tipo sem transcendecircncia todo soberba ― isso natildeo interessa A Terra sou eu Eu quero Assim fala assim grita a hybris moderna isto eacute a grima a sanha que somos ― intelecto (inteligecircncia) caacutelculo controle (auto) asseguramento A vontade do para o poder Este horizonte este pavoroso interesse se apropria se apodera de Nietzsche e assim vai usando e ab-usando deda vontade de poder Heidegger lecirc vecirc isso e com a lente de aumento da caricatura evidencia mostra torna este fenocircmeno visiacutevel Este fenocircmeno a saber a cumulaccedilatildeo da modernidade como cumulaccedilatildeo da metafiacutesica enquanto e como teacutecnica moderna que se expotildee enquanto e como vontade de vontade ― a vontade de (para o) poder intelecto controle caacutelculo certeza auto-asseguramento na da Terra Eacute assim que a metafiacutesica moderna se lecirc ou seja se interpreta a si mesma no pensamento de vida como vontade de (para o) poder Mas o que eacute a Terra

2 Nietzsche escreveu ldquoMeu gecircnio estaacute em minhas

ventas ― Mein Genie ist in meinen Nuumlsternrdquo8 Parecircntese ldquoNuumlsternrdquo satildeo ventas e natildeo ldquonarinasrdquo ldquoNarinardquo eacute coisa chique coisa fina Haacute ateacute aquela ldquogratilde-fina de narinasrdquo ― ah deixa praacute laacute No caso satildeo ventas mesmo Coisa meio muito de bicho que Nietzsche aqui agrave forccedila do estilo da forma quer enfatizar Fechemos o parecircntese Mas isso quer dizer ele sente no ar ele fareja Seguindo agora a este meacutetodo ldquodas ventasrdquo e natildeo mais o da caricatura Heidegger ocupando-se de Nietzsche sente no ar cheira fareja subjetivismo voluntarismo um certo heroiacutesmo um certo gigantismo da vontade Coisa insinuada velada Estranho

7 Cf Descartes Discours de La meacutethode La Renaissance Du Livre Paris 1935 sixiegraveme partie p 59

8 Cf Ecce Homo Por que sou um destino nr 1

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chamar ldquovontaderdquo ao movimento espontacircneo livre gratuito de pura doaccedilatildeo que eacute a vida a doadora plaacutecida Por que para que vontade se eacute inteiramente de graccedila sem querer Haacute algo de estranho no ar Foi mais ou menos seguindo a este meacutetodo que no Hamlet pela boca de Marcelo vai ser dito ldquoHaacute algo de podre no reino da Dinamarcardquo9 Bem mas Heidegger natildeo diz ldquoeu cheirordquo e nem ldquoeu farejordquo Ele diz ldquoescutordquo Mas aqui (eacute porque na filosofia e na Cavalaria Andante tudo eacute agraves avessas tudo eacute de cabeccedila para baixo) ldquocheirarrdquo ldquofarejarrdquo e ldquoescutarrdquo dizem o mesmo Que mesmo Eacute o meacutetodo o caminho ou a via que natildeo eacute o(a) ldquoda provardquo o(a) da demonstraccedilatildeo se se entende sob demonstraccedilatildeo o procedimento loacutegico-dedutivo argumentativo Hoje para se fazer uma tal prova uma tal demonstraccedilatildeo tambeacutem muito se recorre agrave pesquisa muitas vezes subentendida como esta peacuterola que eacute o levantamento o inventaacuterio e a enumeraccedilatildeo estuacutepida e tediosa das ldquoocorrecircnciasrdquo ― como se pensamento acontecesse pudesse acontecer em um escritoacuterio de contabilidade fazendo balancete Este farejar ou escutar revela algo que soacute se daacute agravequele que muito e bem frequenta no caso um pensamento um pensador Trata-se de ler como Nietzsche cobrava que ele proacuteprio fosse lido com paciecircncia vacum ruminando10 E este negoacutecio de paciecircncia vacum eacute coisa bem de suabo ldquoMuito frequentarrdquo ldquopaciecircncia vacumrdquo isto eacute dele do pensamento ou do pensador muito se ocupar muito preacute-ocupar-se lenta e longamente Sobretudo isso sem pressa O que aqui estaacute em questatildeo diria diz Nietzsche ldquonatildeo tem pressardquo ldquoA coisa o problema natildeo tem pressa ― em plena eacutepoca do trabalho da pressa somos amigos do lentordquo11 Assim com desde este

9 Hamlet I 4

10 Cf Nietzsche Aurora Prefaacutecio n 5

11 Cf Nietzsche Idem

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paciente e lento passa com agudeza e finura com perspicaacutecia a entre-ver a entre-ler isto eacute comeccedila a sacar a perceber ― a cheirar a farejar e isso eacute o ouvir ― tudo que estaacute silenciado calado retraiacutedo velado mas justamente assim vigorosa decisiva ou essencialmente presente atuante isto eacute co-pensando co-falando co-escrevendo Mais ou menos assim o meacutedico lecirc escuta ausculta os sintomas Nietzsche igualmente natildeo disse que ldquoo filoacutesofo eacute o meacutedico da humanidaderdquo Mas seguindo este meacutetodo Heidegger entre-lecirc e entre-vecirc ― ouve ― o co- ou sub-pensado o co- ou sub-dito o co- ou sub-falado E quanto a isso disso natildeo haacute prova demonstraccedilatildeo objetiva clara loacutegica indiscutiacutevel Aquela de acabar com o papo Ah isso eacute subjetivismo puro Quem assim objeta poreacutem quer objetivismo isto eacute jaacute fala desde o cacircnone desde a bitola sujeito x objeto O procedimento de Heidegger assim como tambeacutem o de Nietzsche natildeo eacute objetivo porque tambeacutem natildeo eacute natildeo pode ser subjetivo E isso porque subjetivo x objetivo objetivo x subjetivo haacute muito desde sempre no pensamento de Heidegger (ldquoSer e Tempordquo) se tornou caduco Trata-se de um modo de ser ― o da vida o do Dasein ― no qual esta disjunccedilatildeo ou confronto natildeo entra natildeo pode entrar Natildeo tem vez Natildeo cabe Natildeo eacute natildeo pode ser medida criteacuterio E isso desde que se fez evidecircncia que o homem e o real se fazem se datildeo enquanto e como Dasein (abertura ek-stase vida presenccedila) e este enquanto e como ser-no-mundo isto eacute inserccedilatildeo ciacuterculo afeto Neste contexto a medida o criteacuterio eacute sim o farejar o escutar E escuta eacute corpo Corpo e pensamento Melhor corpo como pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Assim se daacute assim se faz corpo Corpo e pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Talvez melhor pensamento como e desde corpo Isso eacute muito eacute demasiado nietzschiano Ser-no-mundo eacute escuta ― de sentido de mundo de loacutegos E isso eacute corpo Assim cresce espessa-se pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Mas

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deixemos isso na menccedilatildeo soacute na menccedilatildeo pois isso este tema jaacute eacute outra musa

Mas Heidegger lendo Nietzsche ― dele ocupando-se longa e lentamente grave radical e essencialmente ― fareja ouve subjetividade metafiacutesica da subjetividade no seu estertor na sua cumulaccedilatildeo ou plenificaccedilatildeo Algo que ele natildeo vecirc natildeo fareja natildeo ouve pex em Houmllderlin pois este jaacute teria feito a travessia deste deserto ― a metafiacutesica como moderno voluntarismo e sua cumulaccedilatildeo como niilismo Houmllderlin cronologicamente atraacutes no entanto jaacute deu jaacute teria dado um passo mais agrave frente mais radical mais essencial isto eacute mais a caminho de essecircncia ou de gecircnese E aqui um passo mais agrave frente quer dizer voltou mais afundou mais perpassou mais a vontade de fundamento e de verdade e assim atravessou ultrapassou conquistou ― o sem fundo o a-bysso de todo fundo de todo fundamento ou de toda vontade de fundamento (= metafiacutesica) Aqui ainda e ainda seguindo aquele agraves avessas proacuteprio da filosofia e do pensamento avanccedila aquele que mais funda e mais essencialmente volta retorna quer dizer repete retoma gecircnese ― comeccedilo ldquoAnfangrdquo ldquoarcheacuterdquo E nisso e assim nesta viagem de solavancos e sobressaltos retoma repete volta aquele que paacutera E vamos parar por aqui Depois voltamos a isso A verdade eacute que com este procedimento em questatildeo estaacute uma sinceridade proacutepria e real de autecircntico caminho de autecircntica experiecircncia

Heidegger pois lendo Nietzsche ocupado grave funda lenta e longamente neste percurso frequentando todos os interstiacutecios e meandros desta viagem fareja ouve um ranccedilo Claro aqui sempre neste mundo agraves avessas tambeacutem se ouve ranccedilo e natildeo soacute se cheira ou se degusta Este ranccedilo poreacutem eacute necessaacuterio absolutamente necessaacuterio e essencial (geneacutetico) isto eacute constitutivo e proacuteprio do movimento de cumulaccedilatildeo da hora de plenificaccedilatildeo ou cumulaccedilatildeo Marginais da experiecircncia (e marginal de

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experiecircncia eacute marginal de evidecircncia pois experiecircncia eacute evidecircncia) de um caminho gente sem paciecircncia diria Nietzsche veem num tal ranccedilo algo menor algo negativo uma deficiecircncia quando natildeo um insulto ou um denegrimento ldquoUacuteltimo metafiacutesicordquo Aos ouvidos destes marginais isso soa como insulto caluacutenia como se metafiacutesica fosse um insulto uma calunia coisa feia ― aids hanseniacutease Mas isso eacute coisa de pequeno de quem natildeo faz natildeo fez e se recusa a fazer um caminho Sim um caminho Metafiacutesica eacute coisa grande essencial humana demasiado humana a tal ponto que Nietzsche quando experimentava a sua mais solitaacuteria solidatildeo no tempo e na hora de cumulaccedilatildeo laacute pelos idos de 1888 em carta a Carl Fuchs escrita desde Turin a certa altura diz ldquominha velha moradia de veratildeo Sils-Maria a Alta Engadina m i n h a paisagem tatildeo distante tatildeo apartada da vida tatildeo metafiacutesica Como tudo se afasta se distancia Como tudo vai entredistanciando-se entreafastando-se Como a vida se faz silenciosa parada E ainda natildeo se eacute velho Somente filoacutesofo Somente agrave margem agrave parte Somente comprometidamente agrave parterdquo12 Somente metafiacutesico estaacute ele dizendo Somente agrave parte agrave margem isto eacute agrave distacircncia necessaacuteria para poder ver para a coisa fazer-se visiacutevel ― este eacute o compromisso o comprometimento meta-fiacutesico por excelecircncia A distacircncia com a qual e desde a qual os deuses veem e a teoria se faz A metafiacutesica eacute tambeacutem isso ela daacute tambeacutem e sobretudo isso Ou seja ela tambeacutem e sobretudo daacute o lugar e a hora irremediaacuteveis do homem agrave parte agrave margem ― comprometidamente agrave parte agrave margem Mas deixemos isso tambeacutem soacute na menccedilatildeo

E na hora em que preparava um prefaacutecio para algo que poderia ter se tornado um livro A Vontade de Poder ele

12 Cf Nietzsche F Werke IV Briefe (1861-1889) Carl Hanser Verlag Ulm 1977 herausg Karl Schlechta paacuteg 879880 Turin den 14 April 1888

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vai dizer ldquoAquele que aqui toma a palavra natildeo fez ateacute agora outra coisa senatildeo entrar afundar em si (ldquosich besinnenrdquo pensar-se refletir-se) como um filoacutesofo e um solitaacuterio por instinto que tem sua forccedila no ser agrave parte agrave margem na paciecircncia na demora no recuo e no retrair-serdquo De novo neste agrave parte agrave margem fora distante ― nisso mais uma vez estaacute reivindicando seu lugar sua paacutetria sua paisagem ― a metafiacutesica E ratificando este ldquouacuteltimordquo como fim e como cumulaccedilatildeo de caminho vai ainda dizer de si mesmo ldquo[aquele que aqui toma a palavra] como o primeiro niilista consumado da Europa que poreacutem jaacute viveu o proacuteprio niilismo ateacute o fim que o tem atraacutes de si de baixo de si fora de sirdquo13 ― aleacutem de si ldquoO primeiro niilista consumado da Europardquo diz o mesmo que o ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo Isso eacute condiccedilatildeo absoluta condiccedilatildeo para toda e qualquer superaccedilatildeo ― para toda e qualquer ultrapassagem virada Eacute preciso esgotar saturar exaurir Isso e assim eacute consumaccedilatildeo plenificaccedilatildeo Aiacute e assim se enche toda a histoacuteria da metafiacutesica (leia-se agora vontade de fundamento como vontade de verdade pois assim a moderna metafiacutesica se compreende se vecirc se quer Assim como vontade que se quer a moderna metafiacutesica cumpre seu destino de distacircncia mesmo de desfazer a distacircncia que o homem eacute14) justamente porque aiacute e assim ela se esvazia toda uma

13 Cf KGW VIII-2 11[411] S 432 A Vontade de Poder Prefaacutecio n3 Contraponto Rio 2008 paacuteg 23

14 Este desfazer a distacircncia a distacircncia que o homem eacute anulaacute-la eliminaacute-la ― principalmente isso eacute o projeto ou a vontade moderna a metafiacutesica moderna E isso agrave medida que ela promove e realiza o tempo a histoacuteria do tipo culpado e revoltado ― o biacutepede ingrato Eacute o sujeito moderno a autonomia do eu ou da consciecircncia apagando querendo apagar e desfazer esta constitutiva distacircncia agrave medida que se faz sujeito absoluto ideia absoluta que eacute quando transcendecircncia quando toda e qualquer diferenccedila eacute anulada na absoluta congruecircncia entre sujeito e objeto A oposiccedilatildeo eacute superada [ieacute instala-se e instaura-se a ldquoabsoluta congruecircnciardquo (Hegel)] pela anulaccedilatildeo da diferenccedila no e pelo poder absoluto do sujeito ― leia-se da autonomia do eu da consciecircncia que eacute que se toma como absoluta substacircncia Assim creio pode deve ser lido

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vez que assim ela natildeo pode mais nada porque pocircde tudo que podia poder De tanto encher-se cumular-se de tanto poder enfim se esvazia toda por isso e graccedilas a isso ― natildeo pode mais nada Vira crianccedila Isto eacute Uumlbermensch para aleacutem do homem do humanismo greco-cristatildeo do ldquoanimal racionalrdquo

Heidegger estaacute lendo sub-lendo ouvindo tudo isso pois soacute aiacute e assim jaacute eacute jaacute estaacute acontecendo tambeacutem virada isto eacute a passagem para um outro registro para um outro tocircnus para uma outra tecircmpera vital Tambeacutem Nietzsche se vecirc se sabe neste ponto de virada e sabe do ambiacuteguo (do duplo da duplicidade) deste lugar e desta hora Nietzsche sobretudo Nietzsche experimentou viveu o extraordinaacuterio o estraccedilalhador do ambiacuteguo desta hora deste tempo Aiacute assim e por isso ele enlouqueceu A loucura de Nietzsche eacute sua extra-ordinaacuteria experiecircncia de seu proacuteprio pensamento (o mesmo aconteceu a Houmllderlin outro explorador do escuro da noite desta hora deste tempo) do destino (= envio histoacuteria) do pensamento ocidental isto eacute da ldquoloacutegicardquo15 do niilismo ou da metafiacutesica pois niilismo eacute o nome para dizer a ldquoloacutegicardquo isto eacute necessaacuterio destino envio ou histoacuteria da metafiacutesica enquanto e como vontade de do fundamento Soacute gente ldquoruim da cabeccedilardquo soacute os ldquoidiotas da objetividaderdquo acreditam que Nietzsche tenha enlouquecido por conta de alguma siacutefilis contraiacuteda em algum bordel Por isso ele se diz tambeacutem um ldquopalhaccedilordquo um ldquobufatildeordquo um ldquoHanswurstrdquo Por isso ele com estranha clarividecircncia vai se referir agrave vontade de poder como ldquouma nova fixaccedilatildeo

o final delirante (principalmente o capiacutetulo 3 da terceira seccedilatildeo) de A Ciecircncia da Loacutegica de Hegel

15 Cf KGW idem A Vontade de Poder op Cit nr 4 paacuteg 24 onde se lecirc ldquopois o niilismo eacute a loacutegica de nossos grandes valores e ideais pensada ateacute o fim ― porque precisamos experimentar (pensar) o niilismo ateacute o fimrdquo Ou seja eacute preciso eacute absolutamente preciso ser o ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo Uacuteltimo e primeiro aqui perfazem um uacutenico e mesmo limiar um uacutenico e mesmo instante A mesma hora

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(ldquoFixierungrdquo) do conceito vidardquo16 Heidegger ouve estas coisas e as evidencia as exagera para tornar visiacutevel e assim evidencia a natureza a iacutendole do tempo que somos da eacutepoca que herda isto eacute que interpreta e apropria Nietzsche-vontade de poder

O Zaratustra poreacutem tem coisa Ele eacute o ldquonon plus ultrardquo Tudo que o precede diz Nietzsche eacute preparaccedilatildeo para ele Ele eacute ldquoo simrdquo O ldquogrande simrdquo E tudo que lhe sucede eacute ldquonatildeordquo Pode ser ldquonatildeordquo Depois do Zaratustra tudo praticamente tudo eacute ldquonatildeordquo pode ser ldquonatildeordquo a partir do ldquosimrdquo do grande ldquosimrdquo A partir daiacute do Zaratustra tudo eacute tudo pode ser ldquoa marteladasrdquo ldquona porradardquo Tudo tem tudo pode ter ou levar o subtiacutetulo de ldquoO Crepuacutesculo dos Iacutedolosrdquo ou seja ldquoComo se filosofa a marteladasrdquo E estranho no proacuteprio Zaratustra vontade de poder vai se embaccedilando se esfumando ainda que justo no Zaratustra ela tenha vindo toda agrave tona agrave evidecircncia ― aliaacutes justamente por isso graccedilas a isso se esfuma se esvai Em horas em instantes cruciais a fala nem eacute mais de vontade de poder pois parece esta se exauriu se esvaziou se fez supeacuterflua Entatildeo fala-se por exemplo de ldquoSem vozrdquo (ldquoOhne Stimmerdquo) de ldquoSem nomerdquo (ldquoder Namenloserdquo) de ldquodeus desconhecidordquo (ldquoder unbekannte Gottrdquo) Talvez seja por isso que Nietzsche vendo ouvindo entrevendo e entreouvindo esta metamorfose e cumulaccedilatildeo por volta de 1887 em uma anotaccedilatildeo que deveria servir de base para alguns ldquoprefaacutecios e posfaacuteciosrdquo fazendo um retrospecto por alguns de seus escritos vai dizer do Zaratustra ldquoPara com meu filho Zaratustra exijo respeito (ldquoEhrfurchtrdquo terser diante dele um temor nobre) e somente a uns poucos deve ser permitido ouvi-lo auscultaacute-lo (ldquoihm zuzuhoumlrenrdquo) Quanto a mim lsquoseu pairsquo poreacutem ― pode-se rir tal como eu mesmo o

16 Cf KGW VIII-1 p 321 A Vontade de Poder opcit nr 617 p 316

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faccedilo aliaacutes ambos pertencem agrave minha alegria agrave minha felicidaderdquo17

O Zaratustra o primeiro perfeito niilista europeu portanto aquele que tem em si todo o perfazimento do niilismo da histoacuteria que eacute o niilismo Tal perfazimento atravessamento eacute perfeiccedilatildeo (ldquoenteacutelecheiardquo) Eacute assim que ele eacute aquele que tem o niilismo atraacutes de si dentro de si aleacutem de si Aquele no qual desde o qual e como o qual jaacute se deu se daacute ldquoviradardquo O Nietzsche quando ri de si ele ri de vontade de poder18 Afinal Nietzsche eacute vontade de poder

17 Cf Nietzsche F KGW VIII-1 6[4] p 240

18 O riso eacute uma categoria no pensamento de Nietzsche e principalmente no Zaratustra Tal como a escuta isto eacute o corpo o riso eacute uma conditio sine qua non para entendecirc-los ― ao Zaratustra e a Nietzsche de modo geral Condiccedilatildeo para se entender a hora e o lugar deste pensamento desta experiecircncia histoacuterica Kant de modo lapidar na Criacutetica do Juiacutezo assim definiu o riso ldquoO riso eacute um afeto que resulta (que se daacute a partir de) da suacutebita transformaccedilatildeo de uma tensa espera (expectativa) em nadardquo (KUk sect 54 S 225 ndash Felix Meiner Verlag Hamburg 1974 S 190) Pergunta-se qual a grande espera qual a tensa expectativa que de repente se desfaz em nada e desde a qual entatildeo irrompe explode o riso na boca de Zaratustra-Nietzsche Lembremos Zaratustra natildeo eacute uma pessoa um indiviacuteduo natildeo eacute um personagem natildeo eacute uma tresloucada fantasia ele eacute a encarnaccedilatildeo (concretizaccedilatildeo) do pensamento do Ocidente que agora e aqui se faz vida pensada e compreendida desde e como vontade de poder-eterno retorno E tal pensamento sendo a encarnaccedilatildeo de tal desdobramento da histoacuteria da filosofia ocidental eacute vive na tensatildeo na espera ou na expectativa maior de verdade isto eacute de fundo de fundamento ― de vontade de fundo de fundamento enquanto e como vontade de verdade E eacute isso ― tal expectativa tal espera ou tal tensatildeo ― que de repente depois de todo o percurso de Zaratustra sua viagem isto eacute sua repeticcedilatildeo ou re-tomada da histoacuteria do Ocidente no e como seu decliacutenio ― enfim assim de repente num salto (ieacute subitamente) isso tal tensa espera se desfaz em nada Salta irrompe o proacuteprio nada como o fundo o fundamento da vontade de fundo e de fundamento E isso faz brotar faz explodir um grande riso despojado e despejado Des-fechado destampado aberto Sim uma baita gargalhada no do Zaratustra-Nietzsche Natildeo cabe aqui agora discutir e elaborar esta questatildeo esta extraordinaacuteria questatildeo do riso no pico no cume da experiecircncia da viagem do Zaratustra Isso natildeo cabe numa nota Fica a insinuaccedilatildeo e a sugestatildeo do tema decisivo

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Uma vez feita esta nova-uacuteltima ldquofixaccedilatildeo do conceito vidardquo ― para que serve mais Esgotou saturou Encheu Agora trans-borda Sobra Sobra tanto que jaacute natildeo presta para mais nada Jogue-se fora Eacute super-fluo Eacute demais Na vida o que eacute demais eacute para ser descartado jogado fora pois se natildeo intoxica envenena Esquecimento eacute ldquovis ativardquo ― eacute forccedila eacute vida Estaraacute aiacute dentro uma grande memoacuteria Uma memoacuteria que brota desde dentro de esquecimento do maior esquecimento Houmllderlin experimentou o brilho desta noite e o Hipeacuterion proclamou ldquoHaacute daacute-se um esquecimento de toda a vida de toda a existecircncia um emudecimento de todo nosso ser e eacute onde se estaacute tal como se tiveacutessemos tudo encontrado Haacute daacute-se um emudecimento um esquecimento de toda nossa vida de toda nossa existecircncia e eacute onde se estaacute tal como se tiveacutessemos tudo perdido uma noite de nossa alma onde nenhum brilho de uma estrela onde sequer um fogo-faacutetuo nos iluminardquo19 E isso eacute uma grande lembranccedila Eacute isso eacute esta estranha lembranccedila esta insoacutelita recordaccedilatildeo que ecoa que ressoa tal como eco tal como ressonacircncia de abismo ― de nada do nada do fundo da vida no pensamento de Nietzsche e de Heidegger Ambos parados celebram em

crucial para o pensamento-experiecircncia da virada da superaccedilatildeo do homem da metafiacutesica como a experiecircncia alegre jovial (a gaia ciecircncia) da e na aquiescecircncia do abissal do a-bysso Portanto a experiecircncia a evidecircncia da gratuidade de vida de existecircncia desde nada para nada Agrave guisa de fecho a esta longa nota lembramos esta liacutetica passagem do Zaratustra A fala eacute do homem mais asqueroso ― ele diz ldquoZaratustra vocecirc eacute um puto (ldquoDu bist ein Schelm) Uma coisa eu sei e aprendi de vocecirc oacute Zaratustra quem quer matar da maneira mais radical (ldquower am gruumlndlichsten toumlten Will) este ri Natildeo com ira natildeo com oacutedio (ldquoZornrdquo) se mata mas com riso ― assim falaste um dia Oacute Zaratustra tu velado (ldquoDu Verborgenerrdquo) ― tu destruidor sem oacutedio tu perigoso santo ― tu eacutes um putordquo (Assim Falava Zaratustra IV A festa do burro 1)

19 Cf Houmllderlin F Hipeacuterion ou o Eremita na Greacutecia tomo I livro I Forense Rio de Janeiro 2012 p 71 trad Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback

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cuidadosa escuta em auscultaccedilatildeo o brilho desta noite a fala deste silecircncio a eloquecircncia deste emudecimento20 Recordaccedilatildeo de abismo ― isso eacute uma grande recordaccedilatildeo Essencial inauguradora sempre reinauguradora ― fundamental Quando Heidegger fala de pensar como recordar e de pensar como agradecer natildeo seria isso mais ou menos isso que estaria em questatildeo a saber pensar como co-pensar este abisso recordar este abissal em tudo que se pensa se diz se fala Co-ver isso este modo de ser e esta experiecircncia em tudo que se vecirc Pensar como recordar natildeo seria sempre a cada passo recordar isso trazer sempre de novo para o coraccedilatildeo este modo de ser esta experiecircncia

3 Agora uma vez ldquoesquecidardquo a coisa isto eacute o

nome vontade de poder vamos agrave coisa mesma ― ldquodireckt zur Sache selbstrdquo Ocupemo-nos da ldquocoisardquo inteiramente sem nome ― de ldquoder Namenloserdquo21 Crua ― crua e nua No osso Por que para que chamar ldquovontaderdquo agravequilo que se daacute sem porquecirc e sem para quecirc Por que Para que este nome Bem mas antes e qual eacute a ldquocoisardquo isto eacute qual

20 Eacute isso sobretudo isso que escuto como eco como ressonacircncia e reverberaccedilatildeo no testemunho de ldquoBeitraumlgerdquo II justamente intitulado ldquoDer Anklangrdquo (Ressonacircncia reverberaccedilatildeo eco e tambeacutem lembranccedila)

21 Cf Assim Falava Zaratustra III Do grande anseio ― ldquoo Sem Nome (lsquoder Namenlosersquo ― obs Nietzsche diz ldquoder Namenloserdquo e natildeo como mais seria de se esperar ldquodas Namenloserdquo) para o qual somente cantos futuros encontraratildeo nomerdquo Heidegger em A Caminho da Linguagem fala do propoacutesito de deixar seu ldquocaminho de pensamento no sem nome ― um meinen Denkweg im Namenlosen zu lassenrdquo (Cf A Caminho da Linguagem Vozes 2003 p 96 Trad MC Schuback) E em Ensaios e conferecircncias ao se ocupar do comentaacuterio de um verso de Houmllderlin vai falar de ldquoo deus desconhecidordquo der unbekannte Gott que eacute resguardado como tal ao se revelar no velamento e como velamento ― eacute isso mesmo a essecircncia do misteacuterio (Cf Ensaios e Conferecircncias Vozes 2002 p 174 trad MC Schuback) Essas menccedilotildees visam tatildeo soacute marcar que ambos os pensadores caminham sim o mesmo caminho vivem sim a mesma hora

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realmente a questatildeo Qual realmente o problema Isso eacute seraacute o nosso tempo a nossa hora Talvez que isso seja uma coisa miacutenima insignificante Faz-se poreacutem grande por ser o imperativo da hora do tempo Do nosso tempo da nossa hora Soacute isso eacute preciso Nosso tema nosso problema seraacute herdar o proacuteprio desse nosso tempo dessa nossa hora Ser contemporacircneo de si mesmo eacute sempre uma difiacutecil tarefa Natildeo basta ser coetacircneo Isso eacute faacutecil porque inevitaacutevel Mas ser um verdadeiro um autecircntico contemporacircneo ― como Herdando E Herdando o que precisa ser herdado ― nosso tempo nossa hora Heidegger foi um tal herdeiro O desafio eacute que igualmente noacutes tambeacutem o sejamos Herdar autenticamente ser verdadeiramente herdeiro eacute o modo como realizamos nosso modo de ser irrevogavelmente histoacuterico

E qual o nosso tema Como a partir de que precisamos herdar o nosso tempo Como nosso tempo se nos envia nos chega O modo como o nosso tempo nos chega estaacute sempre a dizer o modo como o real nos eacute legado E eacute assim como o real que aqui e agora nos eacute legado que a filosofia precisa herdar isto eacute eacute assim que ela precisa insistir em ser filosofia promover-se e desse modo se concretizar como histoacuteria Ser contemporacircnea de si mesma E nosso tema nosso problema eacute o fim da modernidade o fim do cartesianismo o fim da razatildeo Nosso Mas isso jaacute eacute velho Jaacute foi de Nietzsche jaacute foi de Heidegger Sim e continua nosso pois este continua sendo nosso tempo nossa hora Em filosofia em histoacuteria um tempo uma hora uma eacutepoca ― isso dura muito Eacute um longo tempo longa duraccedilatildeo ou persistecircncia e que no entanto perfaz um instante Eacute sim o tempo de um instante E este tempo este instante eacute uma travessia cujo tempo de atravessamento natildeo eacute registrado no reloacutegio no calendaacuterio Ateacute um dois seacuteculos mas sempre um instante ― um aion

O fim da modernidade o fim da razatildeo O que eacute como eacute razatildeo No contexto ou no horizonte da

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modernidade do cartesianismo podemos dizer um modo de organizar a realidade isto eacute de tornar realidade realidade que se faz desde trecircs princiacutepios ou seja seguindo ou obedecendo basicamente a trecircs princiacutepios o de identidade o de natildeo contradiccedilatildeo e o de razatildeo suficiente O que quer que venha a se organizar a se compor ou a se estruturar sem violar a qualquer um destes princiacutepios diz-se eacute racional O projeto moderno de matematizaccedilatildeo do real eacute o projeto de antecipar numericamente estes trecircs princiacutepios isto eacute de algum modo tornaacute-los nuacutemeros ou seja sob o modo da antecipaccedilatildeo possibilitaacute-los e tornaacute-los vigentes enquanto e como quantificaccedilatildeo isto eacute enquanto e como caacutelculo Este procedimento como um todo perfaz a ideia de fundamento de fundamentar ou de lanccedilar boas bases Eacute esta a fundamentaccedilatildeo moderna E caacutelculo calcular aqui natildeo estaacute se referindo somente a uma operaccedilatildeo mental de natureza loacutegico-dedutiva uma demonstraccedilatildeo nestes tracircmites Caacutelculo aqui se refere principalmente a um contar com isto eacute ser ou ter instaurar ou criar condiccedilotildees preacutevias (via matematizaccedilatildeo ou antecipaccedilatildeo numeacuterica) para poder contar com ou seja previamente estabelecer condiccedilotildees de certeza ― de controle de seguranccedila de asseguramento ou melhor de auto-asseguramento Assim por esta via eacute concretizado o meacutetodo o caminho ou a proposta de rota de percurso do cartesianismo que potildee e impotildee a certeza como medida como criteacuterio de verdade isto eacute de realidade

Nosso tempo nossa eacutepoca experimenta o estertor deste projeto deste programa Eacute hoje a vigecircncia da teacutecnica o domiacutenio ou a dominaccedilatildeo da informatizaccedilatildeo como o deliacuterio do nuacutemero da numeraccedilatildeo do caacutelculo do controle e do asseguramento O impeacuterio do diacutegito Haacute algo de podre no reino da Dinamarca pois eacute fato que natildeo haacute vida sem um certo coeficiente de certeza mas eacute igualmente fato que natildeo haacute vida que possa se fazer soacute desde e como certeza Morte atrofia cristalizaccedilatildeo paralisaccedilatildeo

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Nietzsche jaacute tendo sido esta loacutegica ateacute o fim (pois esta eacute a loacutegica do niilismo a loacutegica da histoacuteria do Ocidente)22 vai cartesianamente isto eacute de maneira simples e clara contundente luacutecida e ateacute jocosamente fazendo trocadilho com a liacutengua alematilde para evidenciar uma radicaliacutessima experiecircncia do tempo do nosso tempo ― enfim olhando retro-olhando contemplando a histoacuteria da vontade de verdade da vontade de fundo e de fundamento ele vai dizer ldquoMan geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden gehtrdquo23 Traduz-se ldquoAfunda-se (ieacute vai-se a pique sucumbe-se) quando sempre se vai sempre se quer ir ao fundo aos fundamentos isto eacute aos princiacutepios agraves causasrdquo Isso eacute dito com laivos de riso de sorriso maroto Heidegger eacute meio muito caturro natildeo eacute muito de rir Ao inveacutes disso ele faz a exegese a deduccedilatildeo desta fala de Nietzsche Deduccedilatildeo isto eacute a minuciosa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica desta extraordinaacuteria experiecircncia Isso acontece por exemplo no seu curso do semestre de inverno 195556 em Freiburg intitulado ldquoO Princiacutepio de razatildeordquo ou o ldquoPrinciacutepio de fundamentordquo ― ldquoDer Satz vom Grundrdquo Satildeo treze aulas Um extraordinaacuterio percurso Percurso Aquilo natildeo anda Eacute um espantoso exerciacutecio do mesmo no parado como parado Mais intenso ― natildeo tatildeo intenso quanto aquilo soacute uma natureza morta soacute uma maccedilatilde soacute uma laranja de Ceacutezanne Sim e tal como uma tal natureza morta nada mais intenso nada mais concentrado mais compacto e tambeacutem nada mais transluacutecido nada mais diaacutefano nada mais liacutempido e limpo e inocente do que aquilo E isso aquilo eacute a histoacuteria do evidenciar-se do sem razatildeo do princiacutepio de razatildeo do sem fundo do princiacutepio do fundamento Tanta razatildeo tanto fundamento tanta vontade de fundo de

22 ldquoporque o niilismo eacute a loacutegica de nossos grandes valores e ideais pensada ateacute o fimrdquo ― KGW VIII-2 11[411] S 432 ou A Vontade de Poder Contraponto Rio de Janeiro 2008 paacuteg 24

23 KGW VIII-2 11[6] S 252

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fundamento e de verdade ― ora por que Para que Por que tanta ingratidatildeo Natildeo haacute razatildeo para tanta razatildeo natildeo haacute fundamento para tanta fundamentaccedilatildeo E isso e esta constataccedilatildeo sem nenhum lamento sem nenhuma maacutegoa sem culpa Uma contida serena alegria Alegria e becircnccedilatildeo Alegria becircnccedilatildeo e gratidatildeo Redime-se o biacutepede ingrato Nada ― evoeacute Mais uma vez Mais uma vez e sempre Mais uma vez e sempre o que eacute dom daacutediva doaccedilatildeo Pura gratuidade Muito obrigado

E Heidegger paacutera por aiacute Por aiacute jaacute parou jaacute parara Nietzsche Ele enlouqueceu ele perdeu a razatildeo perdeu peacute e fundo e fundamento aiacute Aiacute nesta hora neste lugar Neste tempo ― sim o nosso tempo Aiacute nesta passagem nesta travessia daacute vau Seremos capazes de uma tal perda Seremos capazes de uma tal conquista Seremos capazes de sermos contemporacircneos de noacutes mesmos herdeiros do que se nos envia do que se impotildee que seja herdado ― a saber o nosso tempo o nosso tema Na corrida isto eacute no percurso que eacute a histoacuteria da filo-sofia da vontade de saber Nietzsche e Heidegger parece chegam empatadiacutessimos O photochart define o empate Teria sido isso uma corrida de cavalo Este tal de Ocidente esta tal de Europa seria algo como um hipoacutedromo Nietzsche nesta liccedila no meio desta refrega ― a histoacuteria do Ocidente da Europa ― e chegando a este ponto de culminaccedilatildeo (a hora de perder a razatildeo) considera que aqui agora ldquocom o maior esforccedilo da reflexatildeo eacute preciso superar a metafiacutesicardquo [ldquomit houmlchster Anspannung seiner Besonnenheit die Metaphysik (zu) uumlberwindenrdquo] e que aqui agora ldquofaz-se necessaacuterio um movimento para traacutes um retro-movimento de voltardquo (ldquoeine R uuml c k l auml u f i g e B e w e g u n g)rdquo para o qual soacute poucos muito poucos estatildeo preparados e dispostos ― a saber os dispostos ou aptos agrave maior tensatildeo ou ao maior esforccedilo da meditaccedilatildeo ― ldquodie houmlchster Anspannung der Besonnenheitrdquo E conclui ldquopois aqui tal como no hipoacutedromo() faz-se necessaacuterio dar a volta por sobre o fim

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da raiardquo24 ― isto eacute entatildeo assim re-percorrecirc-la re-tomando-a ou repetindo-a desde este ponto de cumulaccedilatildeo de virada Isso eacute decliacutenio ldquoUntergangrdquo ou seja o movimento que tal como o sol se faz para baixo para o fundo procurando tal como o sol iluminar ldquoo mundo de baixordquo o ldquoUnterweltrdquo ao fim do dia que eacute o Ocidente Assim Nietzsche experimenta e pensa virada o movimento de dar fundo ao fundo ao fundamento do Ocidente a metafiacutesica afundando abismando-se ― pois quem sempre vai ao fundo este a-funda ldquoMan geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden gehtrdquo O fundo o fundamento o comeccedilo ou archeacute natildeo tem fundo natildeo tem fundamento razatildeo de ser ou ateacute de natildeo ser Eacute salto e no salto gratuidade pura gratuidade O a-bysso o abissal

Heidegger fincado neste mesmo lugar e nesta mesma hora ― o lugar e a hora de perder a razatildeo o fundo o fundamento a verdade ― fala da necessidade ldquodo passo atraacutesrdquo ldquoder Schritt zuruumlckrdquo e formula ldquoO passo atraacutes de volta move-se desde dentro da metafiacutesica em direccedilatildeo agrave essecircncia da metafiacutesicardquo25 isto eacute em direccedilatildeo ao sem fundo da vontade de fundamento ao sem razatildeo do princiacutepio de razatildeo Heidegger paacutera aiacute A verdade eacute que aiacute neste ponto comeccedila e acaba o pensamento de Heidegger Ser e Tempo comeccedila aiacute ― jaacute comeccedila aiacute Mas viu-se esta eacute tambeacutem a casa de Nietzsche sua estalagem na viagem que eacute o Ocidente sua histoacuteria Aiacute Nietzsche tal como Heidegger paacutera e escuta ldquoO Zaratustra eacute o renascimento da arte do ouvir ― um pressuposto para elerdquo26 Parar e escutar ― 24 Nietzsche F Humano demasiado humano I nr 20 Eacute preciso ler a iacutentegra deste extraordinaacuterio aforismo A uacuteltima frase eacute de difiacutecil traduccedilatildeo pois de refinada cunhagem em alematildeo Ela soa ldquoum das Ende der Bahn herumzubiegenrdquo

25 Cf Heidegger M Die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik em Identitaumlt und Differenz Neske Tuumlbingen 1976 S 41

26 Cf Ecce Homo Por que escrevo tatildeo bons livros Assim falava Zaratustra n 1

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isso eacute ldquobesinnenrdquo ldquoBesinnungrdquo ou seja entrar afundar no sentido ateacute mesmo e sobretudo no sem sentido do sentido ― o a-bysso ― e isso eacute meditar Tal escuta tal meditaccedilatildeo eacute corpo se fazendo corpo A grande razatildeo E isso corpo se fazendo corpo eacute pensar Bem mas isso de ouvir como pensar eacute Heidegger quem fala Mas pensar como corpo se fazendo corpo desde e como ouvir isso tambeacutem eacute Heidegger27 E o mesmo Nietzsche que no Ecce Homo diz ser a arte do ouvir o pressuposto para se ler o Zaratustra escreveu igualmente em pleno tempo de geraccedilatildeo do Zaratustra ldquoAssim como a natureza natildeo procede segundo fins assim deveria o pensador natildeo pensar segundo fins isto eacute nada buscar nada querer provar ou contradizer mas tal como numa peccedila musical ouvir auscultar ele teria uma impressatildeo do quanto ou do quatildeo pouco ouviurdquo28 Pensar eacute ouvir Eacute fazer com que corpo se faccedila corpo isto eacute eacute entrar eacute afundar no sentido na hora E isso parado Natildeo eacute hora de avanccedilo de progresso O avanccedilo o progresso jaacute o foi do espiacuterito da consciecircncia da razatildeo ― a filo-sofia Isso eacute a vontade de saber de verdade Mais do que vontade cobiccedila avidez A hora agora eacute outra O imperativo agora eacute outro Parar Parar esperar escutar Afundar Ir sim ao fundo Quem sempre vai ao fundo aos fundamentos agrave verdade ― este afunda Aparece irrompe mostra-se e faz-se visiacutevel o a-byssal Como Mostrar-se do abismo do abissal Sim eacute a evidecircncia da presenccedila de uma ausecircncia ― enquanto e como ausecircncia E sem afatilde e sem sanha e sem vontade de luz de presenccedila Sem lamento sem acusaccedilatildeo sem falta ou como deficiecircncia carecircncia A clareza do escuro O brilho da noite Uma evidecircncia escura e do escuro No mais fundo no mais profundo esquecimento uma lembranccedila uma

27 A respeito de escuta e corpo cf Heidegger M Zollikoner Seminare Vittorio Klostermann Frankfurt 1994 S 1256 Seminaacuterios de Zollikon Vozes Petroacutepolis 2001 p 1234

28 Cf Nietzsche F KGW V-1 4[73] S S 447

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recordaccedilatildeo de nada de nada Assim seja Ameacutem Que becircnccedilatildeo Pura doaccedilatildeo Pura gratuidade Muito obrigado

Neste ponto nesta hora no imperativo desta hora parar eacute progredir Isto eacute parar aqui agora eacute assumir a hora e avanccedilar nela quer dizer nela afundar Numa socircfrega e desenfreada corrida para frente isto eacute na escalada do progresso do espiacuterito (= histoacuteria da filosofia da metafiacutesica) ― aiacute quem paacutera no e graccedilas ao simples fato de parar no e graccedilas ao puro e simples fato de ter ganho a disposiccedilatildeo ou a preacute-disposiccedilatildeo de parar (haacute daacute-se aiacute jaacute um salto) rompe com o impetuosismo de avanccedilar de progredir Passo atraacutes movimento de volta isso eacute parada eacute parar Imperativo de nosso tempo Na experiecircncia e na evidecircncia deste tempo desta hora Nietzsche escreve ldquoPressuposiccedilatildeo coragem paciecircncia nenhum lsquoretornorsquo tambeacutem nenhum afatilde ou furor de adiante para frenterdquo29 Quando Nietzsche na citaccedilatildeo fala de ldquonenhum retornordquo (ldquoRuumlckkehrrdquo) eacute no sentido de nenhum iacutempeto de voltar retornar entendido ou subentendido agora natildeo no sentido da volta como decliacutenio que aqui acima enfatizamos mas no sentido de ardor nostaacutelgico saudosista e salviacutefico de renascimento de redenccedilatildeo no e como anelo por restauraccedilatildeo de tradiccedilatildeo perdida dos bons e velhos valores perdidos esquecidos desvalorizados (grosso modo a metafiacutesica os valores tradicionais da ciecircncia da religiatildeo do cristianismo) Tal retorno tal renascimento costuma ser tiacutepico nestas horas de perda ― coisa tiacutepica de nostaacutelgicos saudosistas conservadores ― sim eunucos Mas tambeacutem nada praacute frente nada de pesquisa com o propoacutesito de preencher alguma lacuna e assim esclarecer resolver um problema premente do saber da ciecircncia Natildeo A hora eacute de parada O tempo eacute de espera Paciecircncia Sem ardecircncias sem iacutempetos de progresso assanhado ou de regresso nostaacutelgico Tempo hora de espera e de escuta Isso eacute coragem Isso eacute a

29 KGW VIII-1 7[54] S 321 ou A Vontade de Poder opcit nr 617 p 317

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verdadeira assunccedilatildeo da hora do tempo Paradoxalmente isso mesmo a saber o passo atraacutes a parada ― justo este tempo de passagem e de virada eacute tempo eacute hora de decliacutenio de ldquoUnter-gangrdquo a descida ao fundo para assim retomar o fundo do fundo ou do fundamento que entatildeo se evidencia (a experiecircncia da hora evidencia isso e assim) como o sem fundo o a-byssal Comeccedilo (archeacute) eacute suacutebito i-mediato sem fundo sem porquecirc ou para quecirc ― a-byssal Espera e escuta ― sobretudo a atitude de escuta isto eacute de sintonia e de sincronia de consanguinidade com a coisa com a questatildeo mostra revela este sem fundo de todo fundo o sem fundamento de todo fundamento A gratuidade e na gratuidade a inocecircncia o sem querer Sem fundo sem Deus de graccedila puro dom gratuidade Este ponto de culminaccedilatildeo esta plenitude este zecircnite do dia que eacute o Ocidente (a Europa a filosofia a vontade de luz) a evidecircncia proporcionada pela experiecircncia de decliacutenio ― esta eacute a situaccedilatildeo de passagem de transiccedilatildeo enfim a ponte sobre a qual estaacute sobre a qual eacute Zaratustra Aiacute sua casa sua morada seu lugar A casa a morada o lugar do tempo da hora Haacute que habitaacute-la moraacute-la Assim seja Amor fati Incipit Zaratustra

E neste ponto comeccedila Heidegger Comeccedila e acaba Incipit Ser e Tempo Aiacute nesta hora neste tempo ― aiacute sim alfa e ocircmega Eacute o imperativo do tempo da hora Cada filosofia cada pensamento e cada filoacutesofo ou pensador tem seu tempo sua hora seu imperativo ou sua necessidade Na assunccedilatildeo de tal imperativo de tal necessidade estaacute a sua liberdade Heidegger foi este herdeiro Por isso contemporacircneo ― e natildeo soacute um mero coetacircneo que eacute soacute da mesma idade ― de seu tempo E assim por isso colocando e re-cordando esta hora este lugar e esta tarefa de espera e de escuta ― a tarefa posta e imposta pela parada pelo tempo de parar ― definindo seu lugar e sua hora Heidegger abre seu programa de trabalho de vida apoacutes cumprido o intransferiacutevel percurso de Ser e Tempo intitulado ldquoContribuiccedilotildees para a Filosofia (do evento ou do

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acontecimento apropriante)rdquo dizendo a hora eacute de passagem de transiccedilatildeo (ldquoZeitalter des Uumlbergangsrdquo) o tempo a hora eacute ldquode uma transformaccedilatildeo ou transfiguraccedilatildeo de essecircncia do homem que passa de ldquoanimal rationalerdquo para Da-sein30 isto eacute para homem entendido enquanto e como ser-no-mundo (abertura ek-stase e nisso e assim presenccedila) ou seja a passagem e a re-tomada da evidecircncia do a-byssal de transcendecircncia ou de doaccedilatildeo de irrupccedilatildeo gratuita Aiacute e assim a Terra a paacutetria ― a Terra do homem dos homens lembrando e parafraseando Saint Eacutexupeacutery

Eacute o mesmo lugar a mesma hora a mesma casa de Nietzsche Eacute Uumlber-gang eacute um ir por sobre transiccedilatildeo passagem (ponte Bruumlcke) que eacute um ir ao e para o fundo Unter-gang decliacutenio a-fundar Eacute o ponto o posto de guarda do Zaratustra a passagem (ldquoUumlbergangrdquo) a ponte (ldquoBruumlckerdquo) homem-superhomem (ldquoMensch-Uumlbermenschrdquo) O homem isto eacute o homem do humanismo greco-cristatildeo isto eacute o ldquoanimal rationalerdquo e o para-aleacutem-do-homem greco-cristatildeo em ultra-passagem e superaccedilatildeo do homem (ldquoanimal rationalerdquo) o que Nietzsche pensa desde e como vida corpo ― crianccedila Nietzsche e Heidegger estatildeo na mesma hora na mesma viagem no mesmo desafio E aiacute nesta hora neste lugar ambos param precisam parar pois este eacute o imperativo da hora do tempo Aiacute montar guarda Parar guardar velar Sim na escuta e na espera desde espera e escuta em vigiacutelia resistir suportar Guardar velar Haacute aiacute sim coisa de burro De burro e de camelo Eacute no deserto eacute desde dentro do deserto que vem que se faz que se daacute transformaccedilatildeo transfiguraccedilatildeo virada ou passagem para um outro registro

30 Cf Heidegger M Beitraumlge zur Philosophie (Vom Ereignis) Vittorio Klostermann Frankfurt 1989 GA Band 65 S 3 A passagem de Heidegger reza ldquoim Zeitalter des Uumlbergangs was einem Wesenswandel des Menschen aus dem lsquovernuumlnftigen Tierrsquo (animal rationale) in das Da-sein gleichkommtrdquo

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ou outra regecircncia ― metanoacuteia A hora eacute esta o tempo eacute este ― parar esperar ouvir

Esclareccedilamos um pouco aqui nesta hora e neste posto neste poacutertico um pouco de teimosia de caturrice ― isso eacute bom Coisa de suabo que Nietzsche em algum lugar com humor detectava em Hegel conterracircneo suabo de Heidegger Eacute algo do tipo da tecircmpera de Ceacutezanne que em carta a Zola natildeo hesita em se dizer ldquoSou pesado lento e burrordquo Isso eacute uma tecircmpera um tempero e um tempo O tempo O nosso tempo Se acharmos a imagem de Ceacutezanne meio pesada meio agressiva pode-se pedir que aqui agora se seja um pouco mineiro Eacute lembrando uma fala de Guimaratildees Rosa a respeito da mineirice Em algum lugar31 ele fala do mineiro do tipo mineiro meio capiau meio matuto como um cara que vai devagarzinho picando o fumo de rolo no covo da matildeo e matutando vai assim ldquofazendo a contabilidade da metafiacutesicardquo e ponderando sempre matutando ldquoque agitar-se natildeo eacute agirrdquo Uma admiraacutevel capacidade de resistecircncia de suportaccedilatildeo agrave monotonia

Somos seremos capazes desta paciecircncia Seremos dignos herdeiros Para tanto poreacutem eacute preciso jaacute ter conseguido a condiccedilatildeo para ser nesta espera nesta escuta neste matutar melhor neste meditar nesta meditaccedilatildeo ― ldquoBesinnungrdquo Eacute preciso jaacute ter perdido a pressa do nosso tempo que na vida do espiacuterito antes do intelecto chama-se pesquisa Essa eacute nossa agitaccedilatildeo Claro isso natildeo eacute accedilatildeo pois natildeo eacute a paciecircncia da espera e da escuta desde as quais com as quais ldquouma essecircncia uma forccedila eacute levada agrave sua cumulaccedilatildeo ou perfeiccedilatildeo enteacutelecheiardquo32 Para tanto eacute preciso jaacute ter perdido a pressa isto eacute a sanha a hybris Paradoxal absolutamente paradoxal mas para saltar eacute preciso jaacute ter saltado eacute preciso

31 Cf Rosa Guimaratildees Minas Gerais em Ave Palavra Joseacute Olympio Rio 1978 paacuteg 217 e seg

32 Cf Heidegger M Sobre o humanismo abertura do texto

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jaacute ter entrado na impulsatildeo do salto Mas a pressa a sanha que na vida do espiacuterito tornado inteligecircncia ou intelecto se faz se fez pesquisa ― isso eacute a marca do tempo a essecircncia de um tempo o nosso que estaacute se cumulando que estaacute vindo agrave perfeiccedilatildeo enquanto e como histoacuteria da metafiacutesica enquanto e como histoacuteria da razatildeo teacutecnica O fruto estaacute enchendo-se todo Eacute esta essecircncia que estaacute vindo agrave cumulaccedilatildeo E diz Nietzsche a coisa natildeo tem pressa E continua ldquofalamos e escrevemos de modo tal que aquele que tem pressa eacute levado ao desespero agrave desesperaccedilatildeordquo33

4 A confusatildeo eacute geral Mal-entendido um

verdadeiro quiproquoacute Eruditamente um ldquoquid pro quordquo tomando uma coisa pela outra e a outra pela uma Comeccedilou-se a falar a respeito da leiturainterpretaccedilatildeo de Nietzsche por parte de Heidegger A expectativa era que se esclarecesse alguma coisa a respeito deste tema A certa altura comeccedilou-se a misturar tudo a ponto de parecer que se estaacute a dizer que Heidegger e Nietzsche satildeo ldquoa mesma coisardquo ― a noite escura em que todos os gatos satildeo pardos A verdade eacute que se comeccedilou falando de Heidegger e (+) Nietzsche e de repente este ldquoerdquo (+) foi abolido e sobrou soacute um problema que este sim eacute comum e constitui um mesmo seja para Nietzsche seja para Heidegger ― seja para noacutes Passagem transiccedilatildeo ponte virada ― outro registro outra regecircncia A hora o tempo que precisam tambeacutem ser os nossos No Zaratustra ouvimos ldquoQuem tem uma meta (ldquoein Zielrdquo) e um herdeiro este no tempo certo quer a morte para o herdeiro e a metardquo34 Importante decisivo eacute o problema satildeo os problemas ― isso precisa fazer-se meta Nomes Autores e autorias Sejamos nobres e dignos Haacute que ter meta e que aconteccedila o herdeiro Que cresccedilam e apareccedilam meta e herdeiro pois

33 Cf Nietzsche F Aurora Proacutelogo nr 5

34 Assim Falava Zaratustra I Da morte livre (voluntaacuteria)

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A filosofia tem ou eacute autores nomes doutrinas Ou antes interessa deve interessar sobretudo os problemas e natildeo os autores nomes Autorias Afinal nesta hora de passagem de virada eacute Nietzsche ou Heidegger Quem tem razatildeo Ora mas a hora natildeo eacute justamente de perder a razatildeo de natildeo ter razatildeo Aqui agora quem tiver razatildeo estaacute carregado demais sobrecarregado ― um burro traacutegico ldquoAgraves vez quem num tem razatildeo eacute qui taacute cum elardquo disse em algum lugar em alguma hora um catrumano um meio muito louco meio virado ― meio muito iluminado E esta aqui e agora eacute a hora segundo a qual quem natildeo tem razatildeo eacute que estaacute com ela E como dizem ainda louco mesmo eacute quem perde tudo menos a razatildeo Agrave luz disso ateacute jaacute convocaram uma Cruzada para ressuscitar o Quixote O Louco35 Nietzsche Heidegger ― eles em boa hora no tempo certo perderam a razatildeo a verdade ldquoO novo em nosso atual posicionamento em relaccedilatildeo agrave filosofia eacute uma convicccedilatildeo que nenhuma eacutepoca jamais teve o fato que noacutes natildeo temos a verdade Todos os homens anteriores tinham a verdade mesmo os ceacuteticosrdquo36 escreveu Nietzsche se autodiagnosticando Tambeacutem Heidegger natildeo tem mais a verdade o fundamento a razatildeo Ele assim como Nietzsche ganhou sua hora seu tempo Foi herdeiro ― bom digno herdeiro Foi contemporacircneo de si mesmo A hora continua a mesma o tempo eacute o mesmo ― sejamos contemporacircneos de noacutes mesmos Sejamos herdeiros bons herdeiros em boa hora E a hora o tempo eacute de parar Parar esperar escutar Um tempo e uma hora em que se impotildee que nos enchamos de nada ― o nada do fundo do fundamento da razatildeo E natildeo haacute pressa A coisa natildeo tem pressa Natildeo cabe pesquisa ― natildeo eacute o caso Superaccedilatildeo do homem superaccedilatildeo da metafiacutesica virada ― quem tem

35 Cf Unamuno M de Vida de Don Quijote y Sancho Espasa-Calpe SA Madrid 1975

36 Cf KGW V-1 3[19] S382

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razatildeo Eacute Heidegger ou Nietzsche Ora isso natildeo interessa Natildeo eacute o caso Por que para que registro de nascimento ou atestado de oacutebito Por que para que direito autoral Registro no ECAD Fiscalizaccedilatildeo Natildeo eacute bom natildeo ter vergonha de ser de ldquoescuro nascimentordquo ldquoOacuterfatildeo de papel passadordquo eacute o soacute que soacute se vecirc nesta Terra na Terra dos homens Esta certidatildeo a Terra lavra esse papel ela passa

Mais ou menos pelos comeccedilos de 1888 cheio de muito silecircncio Nietzsche escreve a seguinte anotaccedilatildeo que devemos considerar gravemente ldquoYo me sucedo a mi mismo ― digo eu tal como aquele velho em Lope de Vega sorrindo pois tal como ele eu pura e simplesmente natildeo mais sei o quatildeo velho jaacute sou e o quatildeo jovem ainda sereirdquo37

E Heidegger num curso sobre Schelling falando do fracasso deste disse ldquoNietzsche o uacutenico pensador essencial depois de Schelling fracassou em sua obra A Vontade de poder Mas estes dois grandes fracassos (Schelling e Nietzsche) destes dois grandes pensadores natildeo eacute nenhuma falha e nada negativo Ao contraacuterio Eacute o sinal do advento de algo totalmente outro o raio de um novo comeccedilordquo E continua logo abaixo ldquoNietzsche certa vez na eacutepoca de sua criaccedilatildeo mais intensa e de sua mais profunda solidatildeo escreveu em um exemplar de seu livro Aurora os seguintes versos como dedicatoacuteria

Quem um dia tem muito a anunciar e a proclamar Este silencia muito e fundo em si (lsquoSchweigt Viel in sich hineinrsquo) Quem um dia tem de fazer espoucar o raio Este precisa por muito tempo ser nuvem (1883)rdquo38

37 Cf KGW VIII-2 11[22] S 256

38 Cf Heidegger M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der Menschlichen Freiheit (1809) Max Niemeyer Tuumlbingen 1971 S 4

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Num fracasso num grande fracasso haacute sempre uma conquista uma grande conquista Grande isto eacute radical essencial E isso tambeacutem por ser a experiecircncia e a evidecircncia de quem percorreu um caminho proacuteprio ― proacuteprio ieacute necessaacuterio e assim cunhando modelando a proacutepria liberdade Soacute os grandes e os soacutes os solitaacuterios (ldquoAs matildeos do solitaacuterio erram menosrdquo disse Rilke) fracassam grandemente quer dizer essencial visceral e vitalmente Fundamente Grande insistamos aqui natildeo eacute grandatildeo gigante ― eacute soacute sincero proacuteprio Isso costuma ser ateacute muito pequeno ― discreto soacutebrio recatado silencioso Pobre Toda leitura toda interpretaccedilatildeo nietzschiana de Heidegger eacute a homenagem e o tributo de um herdeiro O herdeiro de um fito de uma meta de um destino isto eacute de um envio histoacuterico De uma liberdade que se faz Assim pois se herda e se homenageia necessidade e liberdade Honra-se assim a coisa a questatildeo Isso e soacute isso importa isto eacute pesa Eacute coisa de quem tem olhos e coraccedilatildeo mansos agradecidos Nietzsche-Heidegger ― isso eacute uma uacutenica e mesma viagem uma uacutenica e mesma experiecircncia ldquoErfahrungrdquo Uma soacute hora Soacute isso importa soacute isso interessa

Vejamos a coisa assim Sejamos faccedilamo-nos agrave altura da coisa de uma coisa grande de uma hora grande que tambeacutem eacute que tambeacutem precisa ser a nossa Ponhamo-nos agrave sua altura vejamo-la desde o seu lugar proacuteprio Lugar e hora proacuteprios ldquoCoisas grandes exigem que delas se fale com grandeza ou que se calerdquo39 De uma coisa de toda e qualquer coisa fala-se com grandeza quando nos colocamos agrave sua altura isto eacute no seu lugar e na sua hora e entatildeo desde aiacute realmente a partir da proacutepria coisa da proacutepria questatildeo se fala se diz Isso eacute ser justo com as coisas com a coisa Honraacute-la

Petroacutepolis 15 de julho de 2013

39 Cf KGW VIII-3 15[118] S 271 ou 18[12] S 335 ou Vontade de Poder opcit n 1 paacuteg 23

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APEcircNDICE (Na verdade advertecircncia preacutevia) Questotildees a considerar Por que Heidegger interpreta Nietzsche tal como interpreta Isto eacute o que ele quer com esta sua interpretaccedilatildeo Eacute preciso esclarecer como ponto de partida certos pressupostos Coisas meio muito acacianas isto eacute que seriam solenemente endossadas pelo conselheiro Acaacutecio Poreacutem noblesse oblige a) Heidegger natildeo eacute ingecircnuo e nem idiota ou retardado mental Esta observaccedilatildeo se faz importante pois com frequecircncia satildeo feitas consideraccedilotildees e objeccedilotildees agrave interpretaccedilatildeo heideggeriana que nos levam a sub-por que ele seja ingecircnuo ou estuacutepido Heidegger segundo tais consideraccedilotildees fica parecendo um M Homais ou talvez um M Jourdain b) Heidegger natildeo eacute mal-intencionado mau-caraacuteter ieacute pex ele natildeo interpreta Nietzsche subestimando-o para que entatildeo ele Heidegger se superestime Ou seja ele natildeo potildee Nietzsche para baixo para entatildeo ele subir em cima e aparecer Isso seria pequeno mesquinho No caso isso natildeo eacute medida Por exemplo ele natildeo fala de Nietzsche como ldquoo uacuteltimo metafiacutesicordquo como se isso fosse um insulto um denegrimento uma deficiecircncia ou insuficiecircncia (coisa estulta feia e menor) para entatildeo ele aparecer como o primeiro natildeo metafiacutesico ou poacutes-metafiacutesico isto eacute como o primeiro redimido ou ressurgido dentre os mortos na e da histoacuteria

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Feita esta limpeza de terreno este acerto de rumo voltemos a perguntar Por que Heidegger interpreta Nietzsche tal como interpreta O que ele quer com isso isto eacute com tal interpretaccedilatildeo Estas consideraccedilotildees devem nortear a leitura do texto que precede Isso eu tentei dizer no texto

A Escrita-Grito do Louco

Aproximaccedilotildees e ressonacircncias da

filosofia de Nietzsche na escrita-

vida de Artaud

Ikaro Max Batista de Arauacutejo1

Quanto mais longe se vai mais pessoal e uacutenica se torna a vida A obra de arte eacute a expressatildeo necessaacuteria irrefutaacutevel definitiva dessa realidade uacutenica Nisso reside a ajuda prodigiosa que ela daacute agravequele que eacute forccedilado a produzi-la Isso explica de modo certo que devemos nos prestar agraves provas mais extremas (Carta de Rainer Maria Rilke)

Certamente a escrita pesa largamente no destino de alguns espiacuteritos Haacute sempre algo de incocircmodo ou de anormal na alma de quem escreve quase como se a constituiccedilatildeo neuroloacutegica deles fosse de outra natureza e tipo Esses homens os homens das letras os ldquohomens inteligentesrdquo (DOSTOIEacuteVSKI 1989 p11) contrapostos ao ldquohomem de accedilatildeordquo satildeo esses sofredores que possuem uma hiper-consciecircncia (ou consciecircncia hipertrofiada) que como uma faca na carne os estrangulam no momento oportuno e o dissuadem de atingirem de pronto seus objetivos colocando para eles questotildees impertinentes intoleraacuteveis mas ao seu ver extremamente necessaacuterias para a vida O homem de accedilatildeo ldquofundamentalmente uma criatura

1 Graduado como bacharel no curso Filosofia pela UFPB com a monografia intitulada ldquoA muacutesica como arte da reconstruccedilatildeo da cultura traacutegica em Nietzscherdquo orientando do Prof Dr Robson Costa Cordeiro Faz parte do Grupo de Pesquisa na aacuterea de esteacutetica filosoacutefica hermenecircutica e metafiacutesica

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limitadardquo cuja consciecircncia eacute ldquouma porccedilatildeo igual agrave metade ou agrave quarta parte de que eacute concedida ao homem culto de nosso seacuteculo XIXrdquo (Ibidem p14) natildeo tecircm entraves ou crises quanto agraves suas reais funccedilotildees e necessidades cotidianas Ele natildeo as coloca em questatildeo ou sob o microscoacutepio de qualquer saber mais preciso e desconfiado

Alguns espiacuteritos malogram em sua busca pela felicidade como eacute tida e difundida no senso comum Satildeo homens fundamentalmente doentes e em aberta hybris com o ambiente e consigo mesmos No entanto natildeo deixa de ser curioso e interessante como tais espiacuteritos nesse excruciante duelo em que sozinhos chegam a escancarar a nudez da situaccedilatildeo humana a sua real ausecircncia de fundo e de pontos de apoio soacutelidos atingem uma beleza de expressatildeo e de pensamento que torna todo o percurso infernal de suas vidas um detalhe da paisagem de suas descobertas essenciais

Nosso intento aqui natildeo seraacute ignorar a vida decerto mas jogar algumas luzes e projetar as sombras para uma apreciaccedilatildeo teatral do que a vida e a filosofia do pensador alematildeo Friedrich Nietzsche trouxe de estiacutemulo e abriu caminhos para o que o ator poeta e escritor francecircs Antonin Artaud viria a desenvolver tanto em vida quanto em obra Natildeo apenas em termos de verve e beleza ou termos de carnalidade expressiva mas em monstruosas dimensotildees de fuacuteria destrutiva e densidade de formulaccedilatildeo nos leva a aproximar as obras de pensamento compostas por Antonin Artaud e por Friedrich Nietzsche E fundamentalmente descaminhos do que era tido por instituiacutedo soacutelido e ldquoverdadeirordquo nos saberes e poderes modernos desde a fundaccedilatildeo da ciecircncia ocidental por Soacutecrates e Platatildeo

De onde vem a necessidade - esse turbulento imperativo - que leva tanto Nietzsche quanto Artaud a explodirem em lava incandescente enquanto escrevem Tem-se a impressatildeo de que ambos escrevem com uma fuacuteria

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indecorosa como se fossem dilapidar as folhas em branco fazecirc-las em pedaccedilos e senti-las sangrar sob suas penas Tanto um quanto outro queriam que suas obras fossem vivas ou fossem sua proacutepria vida O proacuteprio Nietzsche acabou por ser conhecido como o que constituiu primordialmente uma ldquofilosofia da vidardquo (FINK 1983 p9) Eacute por tal motivo que por exemplo sempre se tornou problemaacutetico classificaacute-los em gecircneros literaacuterios preacute-definidos O que os tornou facilmente alvo de mentecaptos obcecados com ideias antigas e paraliacuteticas Ao se deparar em 1888 com um criacutetico que o acusa de ldquomau estilordquo e ldquosem gosto para o fazer literaacuteriordquo Nietzsche em 10 de fevereiro responde natildeo sem ironia

O Senhor Spitteler tem uma inteligecircncia fina e agradaacutevel () ele fala apenas de Aesthetica meus problemas foram apenas deixados de lado ndash incluindo aiacute minha pessoa [] ldquoas frases curtas funcionam menos aindardquo (e eu burro que sou imaginei que desde os primoacuterdios do mundo ningueacutem tivesse dominado como eu a frase lapidar testemunha meu Zaratustra) [] meu interlocutor soacute tem olhos para o estilo aliaacutes um mau estilo e lamenta afinal que suas esperanccedilas no Nietzsche escritor tenham por conta disso se reduzido de maneira significativa Farei eu pois ldquoliteratura (ASTOR 2013 p249)

lsquoFarei pois ldquoliteraturardquorsquo Natildeo Pois ldquoeu natildeo sou

homem eu sou dinamiterdquo (NIETZSCHE 2008 p144) escreveria Nietzsche em 1888 em sua autobiografia literaacuteria E uma dinamite ou um divisor de consciecircncias ndash portador de uma ldquocrise como jamais houve outra na terrardquo - definitivamente natildeo pode fazer mera ldquoliteraturardquo e sim escrever atraveacutes de cataclismos apocalipses acontecimentos tsunacircmicos tatildeo enigmaacuteticos quanto a proacutepria natureza do caos

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Tanto Artaud quanto Nietzsche satildeo autores fascinantes rebeldes transgressores brilhantemente armados de intelectos profundos e de sensibilidade iacutempar No entanto apesar de alguma distacircncia que os separa e de caminhos diversos no campo da arte ou da escolha filosoacutefica penetramos em subterracircneos nos quais podemos apreender e sentir uma confluecircncia para aleacutem da derrocada psicoloacutegica dos dois grandes homens Os dois foram extremados niilistas inicialmente de inspiraccedilotildees romacircnticas pessimistas e traacutegicas E filosofaram com a vida vivenciando carnalmente as suas ideias Como se jaacute conhece tanto Artaud quanto Nietzsche foram julgados por seus contemporacircneos considerados loucos ainda em vida e morreram privados da razatildeo Anos depois eacute que suas obras foram revisitadas revistas criticamente e o tempo passou a validar muito de suas previsotildees

Percebemos nos dois autores que a acircnsia de transformar o mundo estava conectada com a vontade interior de levaacute-lo de volta as suas origens Anterior mesmo a qualquer divisatildeo elementar entre abstraccedilatildeo e efetividade valores sexo ou mesmo papeacuteis sociais Enquanto Nietzsche pensa especificamente nos traacutegicos gregos e nos pensadores preacute-socraacuteticos nos quais o mito era o horizonte que permeava e unificava as accedilotildees a religiatildeo a intuiccedilatildeo e o pensamento se davam por imagens Artaud volta-se para os siacuterios babilocircnicos e os povos orientais mais primitivos Em sua obra sobre o imperador assiacuterio de Roma Heliogaacutebalo Artaud remonta ao espetaacuteculo de confronto entre os princiacutepios masculinos e femininos e a tentativa de fundi-los de modo anaacuterquico e pederaacutestico empreendido pelo proacuteprio imperador Artaud quer reorganizar e reestruturar o homem para que sua vida ultrapasse o ldquoponto de ausecircncia e de inanidaderdquo (BLANCHOT 2005 p54) que fratura seu ser e seu pensamento Uma recusa sangrenta da metafiacutesica e do vazio do homem Almeja evacuar o organismo a deacutebil organizaccedilatildeo orgacircnica deficiente para resgatar o corpo

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originaacuterio do homem antes da Queda o corpo-sem-oacutergatildeos um corpo puro de intensidades e desejos que estaacute sempre no limiar-absoluto Artaud aquele que abomina o homem deus a histoacuteria e que restitui agrave vida o estado de potecircncia pura

Quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse macaco de uma vez por todas e jaacute ningueacutem acredita mais em deus todos acreditam cada vez mais no homem Assim agora eacute preciso emascular o homem Como () Colocando-o de novo pela uacuteltima vez na mesa de autoacutepsia para refazer sua anatomia O homem eacute enfermo e mal construiacutedo Temos que nos decidir a desnudaacute-lo para raspar esse animaluacuteculo que o corroacutei mortalmente deus e juntamente com deus os seus oacutergatildeos Se quiserem podem meter-me numa camisa de forccedila mas natildeo existe coisa mais inuacutetil que um oacutergatildeo (ARTAUD pp 41-42)

Artaud completa seu argumento dizendo que soacute quando conseguirem livrar o homem de seus oacutergatildeos e do ldquodeus-microacutebiordquo eacute que o teratildeo libertado de seus automatismos e da guerra interna em que natildeo existe hierarquia alguma Assim ldquopoderatildeo ensinaacute-lo a danccedilar agraves avessas como no deliacuterio dos bailes populares e esse avesso seraacute seu verdadeiro lugarrdquo (Ibidem p42)

Podemos assim agrave priori encontrarmos pontos de aproximaccedilatildeo entre os dois condenaccedilatildeo de nossa civilizaccedilatildeo da decadecircncia o rechaccedilo da metafiacutesica a criacutetica da religiatildeo e da moral consideradas como uma arma dos deacutebeis contra os fortes a confianccedila na arte e o teatro como regeneraccedilatildeo da cultura uma experiecircncia de polifonia do lsquoeursquo atraveacutes da experimentaccedilatildeo de diversos estilos de escrita a determinaccedilatildeo da vida como crueldade e a provaccedilatildeo da loucura

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Toda essa filosofia de Artaud estaacute radicalmente perpassada pelas descobertas tanto de Nietzsche quanto de Schopenhauer muito embora a implicaccedilatildeo do primeiro nos interesse mais aqui E eacute nessa crueldade ontoloacutegica nessa indiferenccedila cruel da natureza que iremos detectar e fazermos a primeira experiecircncia de ligar umbilicalmente o pensamento de Artaud com a experiecircncia originaacuteria de Nietzsche Percebemos uma imensa afinidade de gestos literaacuterios e filosoacuteficos entre eles O pensamento de Nietzsche desnuda a alma humana escancara suas ilusotildees e as destroacutei sem piedade e tambeacutem traz o corpo agrave tona como o maior misteacuterio da filosofia Artaud reconhece isso e certamente pode ter sido inspirado O trabalho de esquartejamento do modo de vida mitigado pelo Ocidente iniciado em Nietzsche parece ter continuidade na obra e vida de Artaud Procuraremos entender como isso se deu

A Crueldade Ontocoacutesmica do Vir-a-Ser A crueldade aparece como princiacutepio de base

afirmado tanto em Nietzsche quanto em Artaud em vaacuterias de suas obras Se olharmos por exemplo a argumentaccedilatildeo nietzschiana sobre os impulsos esteacuteticos da natureza que se manifestam no homem iremos nos deparar com o dionisiacuteaco considerado como pulsatildeo elementar baacuterbara que teve que ser absorvida pelos gregos antigos Jaacute em sua primeira obra de 1872 O Nascimento da Trageacutedia Nietzsche atraveacutes de um meacutetodo de introvisatildeo nada ortodoxo chega a admitir a existecircncia de dois impulsos que atravessam a histoacuteria da arte e da psicologia dos antigos gregos o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco

O dionisiacuteaco teria sido a base originaacuteria do pessimismo helecircnico tornado popular atraveacutes da sabedoria

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de Sileno (NIETZSCHE 2003 p36)2 Eacute o que aparece em termos de mais arcaico contemporacircneo ou mesmo anterior agrave paideacuteia grega e a formaccedilatildeo cultural oliacutempica advinda de Homero e Hesiacuteodo Nietzsche com formaccedilatildeo filoloacutegica e filoacutesofo da suspeita como mais tarde seraacute conhecido ausculta o passado grego com um ouvido afinado para detectar a verdade dos instintos helecircnicos e desconfia do que a tradiccedilatildeo esteacutetica e filoloacutegica toma por verdade No fundo desconfiava que o que estava incrustado como uma sombra no saber metafiacutesico da verdade era a posiccedilatildeo favoraacutevel e natildeo questionada da moral particularmente da moral cristatilde religiosa que era uma crenccedila comum e partilhada pelos teoacutelogos e filoacutesofos desde a Idade Medieval ateacute a moderna

Abrir espaccedilo para o dionisiacuteaco seria portanto perigoso no tocante a questionar a formaccedilatildeo da moral dentre os antigos e como isso foi legado ao Ocidente inteiro E efetivamente Nietzsche embora nesse primeiro momento natildeo se ocupe diretamente da moral cristatilde enquanto negadora da vida (Ibidem p19)3 posteriormente

2 ldquoReza a antiga lenda que o Rei Midas perseguiu na floresta durante longo tempo sem conseguir captura-lo o saacutebio Sileno o companheiro de Dioniacutesio Quando por fim ele veio a cair em suas matildeos perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferiacutevel para o homem Obstinado e imoacutevel o democircnio calava-se ateacute que forccedilado pelo rei prorrompeu finalmente por entre um riso amarelo nestas palavras - Estirpe miseraacutevel e efecircmera filhos do acaso e do tormento Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar natildeo ouvir O melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter nascido natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

3 Em Tentativa de Autocriacutetica ldquoela (a obra) jaacute denuncia um espiacuterito que um dia qualquer que seja o perigo se poraacute contra a interpretaccedilatildeo e a significaccedilatildeo morais da existecircnciardquo ou ldquordquoTalvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendor antimoral seja no precavido e hostil silecircncio com que no livro se trata o cristianismo ndash o cristianismo como a mais extravagante figuraccedilatildeo do tema moral que a humanidade chegou ateacute agora a escutarrdquo

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se aprofundaraacute nesta criacutetica retirando mais essa ilusatildeo do homem ocidental

No livro Nietzsche explica como os gregos tiveram que lutar contra seus impulsos autodestrutivos e pessimistas para obter o pleno domiacutenio de si e como para isso tiveram que criar uma projeccedilatildeo apoliacutenea sobre si mesmos e sua cultura Daiacute teriam se originado os deuses oliacutempicos como esse esplendor de forccedila e coragem como esse ideal a alcanccedilar na vida excelente e corajosa Mesmo poreacutem com essa criaccedilatildeo mito-poeacutetica ainda tinham que lidar com a potecircncia dionisiacuteaca vinda dos baacuterbaros estrangeiros Uma potecircncia que destruiacutea as formas individuais que celebrava o caos com festas sangrentas com orgias sexuais com pilhagens e saques de povos e tribos A loucura o transe a infacircmia a despersonalizaccedilatildeo a violecircncia desmedidas eram o efeito devastador desta tirania instintiva que ameaccedila os gregos em sua proacutepria cultura vinda dos lados vinda dos outros povos e paiacuteses e do mais recocircndito deles proacuteprios colocando em risco a confianccedila que tinham a respeito de seus destinos Apolo era o escudo metafiacutesico apropriado para manter em pleno funcionamento e em estado estabilizado a poacutelis grega

Nietzsche faz o trabalho do arqueoacutelogo de uma guerra psicoloacutegica que se trava no seio da cultura helecircnica identifica no desenvolvimento dos periacuteodos da arte grega a predominacircncia ora do apoliacuteneo ora do dionisiacuteaco e tambeacutem os momentos em que por meio da arte se lanccedilava ldquoaparentemente a ponterdquo (Ibidem p27) entre um e outro lanccedilando-se em periacuteodos amenos de paz A forma artiacutestica que Nietzsche considera o perfeito balanccedilo entre os impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos se daacute na formaccedilatildeo da trageacutedia aacutetica na qual o fundo dionisiacuteaco ndash a Vontade ou o Em-si na filosofia schopenhauriana inspirada em Kant - levando o coro de saacutetiros ao transe e agrave encenaccedilatildeo riacutetmica simbolizava ldquonuma descarga de imagensrdquo o vasto mundo sonoro dionisiacuteaco Aqui haacute o nascimento comum da muacutesica

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com a poesia e o teatro Como cabeccedilas da hydra essas artes surgem da vontade que se manifesta no fundo da vida do mesmo corpo vivo do mundo que se manifesta no homem como natureza estetizada O dionisiacuteaco base fundamental do mundo se expressa e se redime de sua intensa contradiccedilatildeo e sofrimento por meio da aparecircncia apoliacutenea O mundo diz Nietzsche em ldquoA Gaia Ciecircnciardquo seraacute entatildeo esteticamente justificaacutevel

Encontraremos em Artaud esse pensamento radicalizado de tal forma que a sua compreensatildeo do teatro o Teatro da Crueldade eacute capaz de fazer ldquorenovar o sentido da vidardquo e que vida aqui ldquonatildeo se trata () do exterior dos fatos mas dessa espeacutecie de centro fraacutegil e turbulento que as formas natildeo alcanccedilamrdquo (ARTAUD 2006 p8) Ora natildeo seria esse ldquocentro fraacutegil e turbulentordquo esse Uno-Primordial da esfera dionisiacuteaca de que nos fala Nietzsche Eacute bem provaacutevel que sim embora Artaud tenha uma concepccedilatildeo de vida e de mundo voltada para ldquouma identificaccedilatildeo maacutegica com essas formas4rdquo na qual uma cultura autecircntica e violentamente egoiacutesta ou interessada se perfaz A busca de Artaud por uma linguagem que ldquorompa a linguagem para tocar na vidardquo o busca a refazer toda a ideia de teatro do Ocidente E eacute sobre isso que iremos falar no proacuteximo ponto

O Teatro da Crueldade e o Refazer a Vida No prefaacutecio de sua obra O Teatro e seu Duplo Artaud

faz uma menccedilatildeo ao que seria a verdadeira cultura e sua relaccedilatildeo com a vida Assim ele escreve ldquoA verdadeira cultura age por sua exaltaccedilatildeo e sua forccedila e o ideal europeu da arte visa lanccedilar o espiacuterito numa atitude separada da forccedila e que assiste agrave sua exaltaccedilatildeo Eacute uma ideia preguiccedilosa inuacutetil e que a curto prazo engendra a morte (Ibidem p6)rdquo

4 Ibidem p 6

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Artaud assim como Nietzsche olha para o cidadatildeo burguecircs meacutedio de postura passiva e mentalmente provinciano cristatildeo assolado pelo teacutedio pelo trabalho e vecirc nele a personificaccedilatildeo da morte em vida Vecirc que o homem que consome a cultura o faz em seus intervalos diaacuterios ou depois da sua vida de trabalho de sua rotina exasperante e que a cultura o serve nesta mesma paralisia na qual o homem natildeo participa mais como membro ativo de ritual algum A cultura moderna na qual estatildeo inseridos ambos eacute uma cultura de consumo que engendra a morte que arrefece as potecircncias proacuteprias e criadoras do homem que o vicia em assistir sua vida passivamente

Artaud assim como Nietzsche assume entatildeo o papel de revolucionar essa cultura a partir da invocaccedilatildeo das forccedilas e da magia viva do homem dentro da esfera da arte Nietzsche havia visto em Wagner esse ponto de convergecircncia e transmutaccedilatildeo da cultura do gado passivo em um renascimento da cultura traacutegica a partir da muacutesica e do drama wagneriano Artaud poreacutem vai mais longe ao querer descartar a possibilidade ocidental do teatro que eacute ainda o teatro do drama psicoloacutegico que tem sua hierarquia de gestos e accedilotildees baseadas ou reduzidas ao texto Ele inventa assim a sua contraproposta radical ao teatro que chafurda na crise da representaccedilatildeo o seu Teatro da Crueldade Artaud explica em uma carta o que significa ldquocrueldaderdquo em sua boca

A crueldade natildeo foi acrescentada a meu pensamento ela sempre viveu nele mas eu precisava tomar consciecircncia dela Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida de rigor coacutesmico e de necessidade implacaacutevel no sentido gnoacutestico de turbilhatildeo de vida que devora as trevas no sentido da dor fora de cuja necessidade inelutaacutevel a vida natildeo consegue se manter o bem eacute desejado eacute o resultado de um ato o mal eacute permanente (Ibidem p119)

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Em outras palavras literalmente Artaud quer dizer

que ldquoa vida eacute crueldaderdquo mas tambeacutem que ldquonatildeo existe crueldade sem consciecircnciardquo A crueldade da vida pertence entatildeo ao ser consciente ao homem Um animal mesmo carniacutevoro e violento natildeo eacute em nada cruel do contraacuterio eacute natural e aceitaacutevel A distinccedilatildeo entre crueldade natural ou inocente e uma crueldade perversa se daacute atraveacutes da intencionalidade consciente do uso das forccedilas para provocar o puro mal para poluir e destruir a vida em sua base mesmo E aqui mais uma vez haacute uma concordacircncia entre Nietzsche e Artaud a maior crueldade do homem se daacute atraveacutes da moral da moralidade dos costumes e da consciecircncia que o fazem voltar-se contra si proacuteprio e contra seus semelhantes

Essa uacuteltima seria caracterizada pela maldade dos fracos e desfavorecidos ou o sistema da moral que consiste em uma inversatildeo da crueldade da vida contra ela mesma Segundo Nietzsche em sua Genealogia da Moral tal operaccedilatildeo de inversatildeo foi originariamente operada pelos fracos e escravos que queriam levar o forte a sentir remorso por sua condiccedilatildeo de forte a desprezar sua proacutepria natureza

Artaud entra em conflito aberto contra esse mundo falso dos valores e busca em seu teatro a sublevaccedilatildeo das forccedilas vitais originaacuterias do homem e sonha com um teatro que ldquorefaccedila a vidardquo buscando na linguagem fiacutesica ldquomiacutemica natildeo corrompidardquo o gesto extremamente preciso que funcione como ruptura da cadeia loacutegica de significaccedilatildeo que tenciona e aprisiona os corpos e espiacuteritos As potecircncias vulcacircnicas originaacuterias da criaccedilatildeo humana devem voltar ao centro da vida ao centro do palco da vida moderna O gesto do ator natildeo pode submeter-se a nenhuma ordem discursiva preestabelecida todo o conteuacutedo sintaacutetico e semacircntico teleoloacutegico estaacute suspenso da hierarquia da cena mas ao contraacuterio compor uma linguagem inaugural espeacutecie de hieroacuteglifo vivo para ser decifrado pelo

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espectador em pura liberdade de fruiccedilatildeo e participaccedilatildeo As palavras seratildeo apagadas do palco da crueldade apenas na medida em que se impotildee como ordenamentos como categorizaccedilotildees e classificaccedilotildees taxativas Artaud busca recompor o teatro reconfigurando a accedilatildeo e o gesto adormecido em cada som e palavra Quer trazer a carne da palavra agrave tona a imanecircncia pura do verbo a nudez dos sentidos nem que pra isso ele tenha que se alienar da proacutepria liacutengua

eu natildeo tenho mais a minha liacutengua () nada de palavra nada de espiacuterito nada () natildeo esperem que eu nomeie esse tudo que eu lhes diga em quantas partes ele se divide que lhes diga seu peso () ah esses estados que nunca satildeo nomeados essas situaccedilotildees eminentes da alma ah esses intervalos do espiacuterito (ARTAUD 2006 p20) 5

O que ele quer eacute ldquoa formaccedilatildeo de uma realidade a

irrupccedilatildeo ineacutedita de um mundordquo num teatro que ldquodeve nos dar esse mundo efecircmero mas verdadeiro este mundo tangente ao realrdquo que seraacute ldquoele proacuteprio este mundo ou noacutes dispensaremos o teatrordquo (Ibidem p30) O efeito de tal teatro no espectador deve algo entre ldquoa anguacutestia o sentimento de culpabilidade a vitoacuteria a saciedaderdquo de modo que ele seraacute ldquosacudido e ficaraacute arrepiado com o dinamismo interior do espetaacuteculordquo e que tal dinamismo ldquoestaraacute em relaccedilatildeo direta com as anguacutestias e preocupaccedilotildees de toda a sua vidardquo O teatro entatildeo para refazer a vida deveraacute possuir essa ressonacircncia interior profunda esse caraacuteter de gravidade ldquonatildeo eacute ao espiacuterito ou aos sentidos dos espectadores que nos dirigimos mas a toda sua existecircnciardquo (Ibidem p31)

5O Pesa-Nervos In Linguagem e Vida p20

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Cada espetaacuteculo deveraacute se tornar entatildeo uma reencenaccedilatildeo coacutesmica do drama da proacutepria vida tal qual seria possiacutevel ver com Nietzsche a partir da trageacutedia de Dioniacutesio no qual a fatalidade seraacute permanentemente evocada como uma espeacutecie de acontecimento que exigiraacute do puacuteblico a adesatildeo iacutentima Essa seraacute a sua tarefa absoluta e levaacute-la a cabo seraacute ter ldquopersuadido (o puacuteblico) de que somos capazes de fazecirc-los gritarrdquo (Ibidem p34)

Claro que tal proposta natildeo poderia ter passado em sua eacutepoca sem polecircmicas Os primeiros a se manifestarem abertamente contra foram os proacuteprios companheiros de Artaud que entatildeo ainda estava fazendo parte do movimento surrealista na deacutecada de 20 ao que Breacuteton em seu Segundo Manifesto do Surrealismo denuncia Artaud e seu ldquoideal de teatro () que era organizar espetaacuteculos que pudessem rivalizar em beleza com as batidas da poliacutecia (Ibidem p 89)6rdquo

As tentativas poreacutem de pocircr em praacutetica as ideias do Teatro da Crueldade no Teatro Alfred Jarry idealizado por Artaud natildeo deram certo Suas montagens natildeo foram bem-sucedidas em termos de puacuteblico e criacutetica e as tecnologias da eacutepoca natildeo favoreciam ao que hoje eacute muito mais faacutecil e praacutetico fazer do que em sua eacutepoca Assim Artaud passa a abandonar a ideia de reconstruir propriamente o teatro para reconstruir a vida usando a si mesmo como molde estilizando e abrindo como campo esteacutetico sua proacutepria existecircncia atraveacutes de sua vida puacuteblica e de suas obras (ou jatos de sangue literaacuterio) enquanto campo de combate Artaud abandona o teatro depois de seu fracasso ao tentar colocar a metafiacutesica em cena Seu teatro natildeo conseguiria atingir a dimensatildeo cataacutertica porque o mundo moderno das maacutequinas jaacute natildeo era mais capaz de metafiacutesica

6Nota citada na p 30 referecircncia da ediccedilatildeo francesa do Manifestes du surreacutealisme Andreacute Breton Ideacutees nrf 1965 p89

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Obra como Espaccedilo da Reinvenccedilatildeo e de Combate

A escrita artaudiana eacute uma mescla de gritos e sussurros laacutegrimas espermaacuteticas urina sangue secircmen que trituram torturam o corpo e produzem uma escrita de fogo e carne queimada flutuando como um bezerro sacrificado na superfiacutecie ensanguentada numa produccedilatildeo de marcas escarificaccedilotildees no corpo e natildeo paacuteginas Marca como a lei lei como a escrita sobre o corpo corpo como o aleacutem da crueldade (LINS 1999 p10)

A linguagem em Artaud estaacute totalmente identificada

com a vida Linguagem-bomba linguagem-evasatildeo holocausto-do-espiacuterito ferida-da-liacutengua Natildeo buscando teleologia ou abstraccedilotildees salvadoras chafurdando na proacutepria limitaccedilatildeo e ampliando-a ao campo do indefinido do intraduziacutevel A linguagem-bomba de Artaud eacute uma viagem pelas veias pelas escarificaccedilotildees pelos bueiros do ser pelos esgotos da alma uma danccedila apopleacutetica no abismo A palavra explode como chicote nos textos do imprevisiacutevel e revolucionaacuterio Artaud Ele natildeo quer nada pronto delimitado esperado nada nascido Renega ateacute o absurdo vai ateacute o vazio ectoplaacutesmico espectral retira a palavra da tensatildeo referente-referenciado signo-significante Asfixia a semacircntica anterior o apriori do campo das significaccedilotildees Artaud busca no corpo a origem da liacutengua e da expressatildeo No proacuteprio Nietzsche vamos encontrar que a linguagem eacute a especializaccedilatildeo de determinados afetos E a linguagem comeccedila pela poesia pelo canto pelo gesto que busca dimensionar-se para atingir a expressatildeo de determinados instintos

Resta-nos considerar a linguagem enquanto produto do instinto tal como ocorre entre as abelhas ndash nos formigueiros etc O instinto no entanto natildeo eacute o resultado da reflexatildeo consciente e

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tampouco a mera consequecircncia da organizaccedilatildeo corporal [] O instinto eacute a bem dizer inseparaacutevel do mais profundo iacutentimo de um ser (NIETZSCHE apud BARROS 2007 p49)

A relaccedilatildeo do expressar do buscar uma liacutengua uma

expressatildeo estaacute entatildeo no campo do padecer do sofrer do migrar para si dentro do proacuteprio do sofrimento Essa auto-exposiccedilatildeo eacute perpassada pelo fora o tempo inteiro ao mesmo tempo em que retira de si toda as marcas do que foi impresso culturalmente no proacuteprio indiviacuteduo Artaud e no indiviacuteduo Nietzsche Eacute uma relaccedilatildeo que busca se purificar mas para isso passa pela convalescenccedila que eacute a total perda de apoio num exterior concreto ou numa verdade absoluta imposta de fora A iacutentima ligaccedilatildeo entre sofrer e pensar entre doenccedila e pensamento tambeacutem estende uma rede de irmandade entre Nietzsche e Artaud Sabe-se da constante condiccedilatildeo convalescente de Nietzsche desde seus anos em Basileacuteia ateacute a eclosatildeo da euforia de Turim7 A sua convalescenccedila em Basileacuteia teve fundamental importacircncia no sentido de Nietzsche despertar para como sua vida normatizada enquanto professor de Universidade era inautecircntica ndash ldquoum desviordquo - em relaccedilatildeo a sua real tarefa Podemos entatildeo identificar o papel decisivo que teve a enfermidade em um despertar da tarefa do pensamento do questionamento radical da criacutetica corrosiva e da transgressatildeo de Nietzsche em relaccedilatildeo agrave vida e agraves instituiccedilotildees de sua eacutepoca

Nietzsche busca expressar o vir-a-ser com intensificados jogos poeacuteticos com a linguagem desaprisionada buscando se contrapor aos modelos metafiacutesicos-conceituais conceitos-prisotildees do pensamento

7 A respeito de biografias interessantes de Nietzsche indicamos a considerada a maior biografia do filoacutesofo o livro Nietzsche de Curt Paul Janz (Biografia em 3 tomos [1978-1979] Paris Galimard) e a de Dorian Astor Nietzsche Porto Alegre ndash RS LPampM)

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como diraacute Artaud A nomadologia8 escrita ou nomadologia dos signos eacute tambeacutem agenciamento criativo da praacutetica de pensamento tanto em Nietzsche quanto em Artaud Ao longo da obra do filoacutesofo alematildeo nos deparamos com obras que operam sob o estilo dissertativo (a exemplo de O Nascimento da Trageacutedia Genealogia da Moral) no estilo aforiacutestico (Para Aleacutem do Bem e do Mal Humano Demasiado Humano Crepuacutesculo dos Iacutedolos etc) panfletos (Consideraccedilotildees Extemporacircneas) uma espeacutecie de saga poeacutetica em forma de novela paroacutedica (Assim Falou Zaratustra) escritos autobiograacuteficos (Ecce homo) aleacutem de obras no estilo poeacutetico e ditiracircmbico Sem mencionar a vastiacutessima obra feita de seus fragmentos poacutestumos com apontamentos vetores de pensamento estrateacutegias e indicaccedilotildees guardadas de maneira desordenada sistematicamente agrave margem de suas publicaccedilotildees oficiais Artaud jaacute reconhecido por sua policromia artiacutestica produz textos sobre cinema poesia criacutetica literaacuteria roteiros peccedilas esboccedila projetos de performance atua pinta e desenha Natildeo afeito a um caminho seguro e normativo Artaud acima de tudo experimenta Eacute a experiecircncia que eacute constitutiva de seu pensamento de sua praacutetica como poeta pensador e ator E a experiecircncia dos dois do pensamento se depara efetivamente sempre em aporias ou em limiares que se tornam acontecimentos ou experiecircncias-limite E tal experiecircncia retira da autonomia da vontade do sujeito o seu espaccedilo privilegiado e transcendental de escolha de sentido de determinaccedilatildeo categorial E tal busca leva o pensador ao polo do viver que se intensifica numa direccedilatildeo oposta ao mero existir da maioria conformada e acomoda na prisatildeo da liacutengua do conceito-padratildeo do corpo condicionado pelas regras loacutegico-civilizadas

8 Termo utilizado por Gilles Deleuze e Guatarri em sua obra Mil Platocirc Vol 5 Por conta do espaccedilo e do propoacutesito do artigo evitarei explicar o conceito

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Pois a humanidade natildeo quer se dar ao trabalho de viver de entrar nesse acotovelamento natural das forccedilas que compotildeem a realidade a fim de extrair dela um corpo que nenhuma tempestade poderaacute mais consumir Ela sempre preferiu contentar-se muito simplesmente em existir Quanto agrave vida eacute no gecircnio do artista que ela tem o haacutebito de ir procura-la () para arrancar o fato de viver agrave ideacuteia de existir9 (ARTAUD 2006 p284)

Eacute Blanchot que nos lembra que Artaud ldquonunca

aceitaraacute o escacircndalo de um pensamento separado da vidardquo nem mesmo quando estaacute em devir puramente entregue agrave experiecircncia mais radical e direta quando ele vive e sofre a separaccedilatildeo e a ausecircncia tanto de um quanto doutro Eacute essa experiecircncia do limite de sua potecircncia e impotecircncia quando seu pensamento estaacute a um passo atraacutes dele como um ideal devorador e imperturbaacutevel projetando uma nebulosa e a vertigem do Vazio como possibilidade a que se agarra e nega radicalmente

Por que Artaud e Nietzsche estatildeo buscando essa Experiecircncia-limite Por que estatildeo perseguindo ldquocom a sede infinita da almardquo esse cataclismo do sujeito cartesiano e da loacutegica em prol de uma intuiccedilatildeo selvagem da pura imagem e do viver sem as marcas do jaacute dado ldquoAs sensaccedilotildees estatildeo mortasrdquo nos diz Artaud O que as matou foi o excesso de falso racionalismo e de teacutecnicas na vida moderna Contra isso Artaud encarna uma maacutequina de guerra que anseia vigorar diante do sufocamento do corpo e do espiacuterito no Ocidente ldquoPois bem Eacute minha fraqueza e minha absurdidade querer escrever a qualquer preccedilo e me exprimir Sou um homem que sofreu muito do espiacuterito e por isso tenho o direito de falarrdquo (ARTAUD apud

9 Ensaio intitulado ldquoVan Gogh O suicidado da sociedaderdquo In Linguagem e Vida

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BLANCHOT 2005 p51) Encarna assim uma vida devotada agrave guerra contra as representaccedilotildees engendra um devir revolucionaacuterio que faz eco agrave transvaloraccedilatildeo proposta por Nietzsche para aleacutem do bem e do mal

Artaud grita em febre Estaacute na abstinecircncia do pensamento Em suas cartas ao editor Jacques Rivieacutere fala sobre ldquoa impossibilidade de pensar que eacute o pensamentordquo Natildeo eacute apenas uma dificuldade metafiacutesica eacute o arrebatamento de uma dor de uma sombra imensa que o perpassa e se avoluma como ldquoausecircncia de voz pra gritarrdquo Ele sente na pele que a ldquofacilidade profundardquo para exprimir a ldquototalidade imediatardquo lhe foi arrancada e esmagada na alma que ldquono momento mesmo que a alma se dispotildee a organizar sua riqueza suas descobertas () uma vontade superior e maleacutevola ataca a (sua) alma como um vitriolordquo e introduz no centro dele a afirmaccedilatildeo de um perpeacutetuo sequestro que se torna o seu mais proacuteprio como sua verdadeira natureza A sua poesia versa sobre essa falha essa lacuna esse buraco no pensamento que o aflige A escrita de Artaud cobre e relata visceralmente a experiecircncia do bloqueio que o faz ldquoser pela metade pensar pela metade sentir pela metaderdquo

Um dos traccedilos fundamentais da obra de Nietzsche

eacute cada vez mais que sua obra avanccedila e desenvolve uma experiecircncia de si mesmo que aparece como uma transgressatildeo dos valores Um exemplar fundamental se daacute em sua proacutepria autobiografia Ecce Homo tatildeo bem analisada por ANDRADE (2008) Nietzsche contesta os pilares da normalidade desvinculando-a da sauacutede Uma descriccedilatildeo exemplar dessa experiecircncia de si mesmo eacute dada por Nietzsche em uma carta escrita para Karl Fuchs em 14 de dezembro de 1887

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Na Alemanha preocupa-se muito com as minhas lsquoexcentricidadesrsquo mas como nunca souberam onde estaacute o meu centro ser-lhes-aacute difiacutecil encontrar a verdade de quando e onde tenho sido lsquoexcecircntricorsquo ateacute agora Por exemplo o ter sido filoacutelogo foi qualquer coisa situada inteiramente fora do meu centro o que natildeo quer dizer que isso haja sido mau Assim tambeacutem me parece agora uma excentricidade o fato de ter sido wagneriano Esta uacuteltima foi uma experiecircncia sobremaneira perigosa e agora que vejo que natildeo me afundei por levaacute-la ateacute o final eacute que me apercebo do sentido que teve para mim Foi a prova mais forte a que pude submeter o meu caraacutecter Depois pouco a pouco vai-nos disciplinando e conduzindo ateacute agrave unidade o mais iacutentimo que possuiacutemos Aquela paixatildeo que durante muito tempo natildeo tem nome aquecircle trabalho de que se eacute involuntariamente missionaacuterio consegue salvar-nos de tocircda a dispersatildeo (NIETZSCHE 1944 p 341)

Nietzsche recusa a norma como o centro

organizador de onde irradia a sua individualidade Deste modo a norma aparece como um desvio de si mesmo desvio daquela sua tarefa particular para a qual foi (auto) disciplinado e que lhe restituiu como um resultado (e natildeo como um pressuposto) sua unidade e individualidade O que Nietzsche busca antes eacute a dissonacircncia e o muacuteltiplo A filosofia nietzschiana natildeo eacute um sistema que estaacute no museu da histoacuteria das ideias poreacutem um discurso que provoca o nosso mais profundo interior Nietzsche costumava dizer que escrevia para si mesmo mas sempre se povoando de contrapostas almas ldquoSomos feitos de muitas almas numa soacuterdquo que poderia ser visto como essa relaccedilatildeo interna entre as vaacuterias vontades de potecircncia que nos habitam e nos formam Ao fazer experimentaccedilotildees consigo mesmo Nietzsche convida-nos a pensarmos as nossas proacuteprias experiecircncias Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Haacute

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que se entender o que Nietzsche indica como ldquopara todosrdquo e ao mesmo tempo ldquopara ningueacutemrdquo ldquoMas isso eacute contraditoacuterio Logo impossiacutevelrdquo diz-nos o claacutessico silogismo aristoteacutelico Isso eacute desconstruiacutedo atraveacutes da polifonia de registros buscados por Nietzsche que contempla o caos criador que o perpassa e o constitui os diversos niacuteveis de afetos e vontades de potecircncia que se relacionam ora uns ora outros tocando acordes diversos na sua alma de forma perspectivistica gerando tipos intensos diversos e contrapostos de interpretaccedilotildees A dessingularizaccedilatildeo gera a multiplicidade ampliada a diversidade expressiva amplia o espectro de percepccedilotildees e saberes que vatildeo formar o que Nietzsche ao hierarquizar de acordo com a vida vai chamar de grande estilo Para tal conceito achamos de grande valia o que nos diz Nietzsche citado em BARROS (2012 p 32) ldquoAssenhorar-se do caos que se eacute forccedilar o seu caos a se tornar forma tornar-se necessidade na forma [] eis aqui a grande ambiccedilatildeordquo

O grande estilo em Artaud corresponderia a algo como ldquose perder para se ganharrdquo seria o desencontro consigo num perpeacutetuo autoengendramento algo que ele descobriu na Danccedila do Rito do Peiote entre os iacutendios taraumaras Atraveacutes de uma ldquoviagem aos confins do inconsciente alojando-se como uma ferida na liacutengua na sua erracircncia agrave procura do Absoluto da Verdade do Serrdquo ele cairia no natildeo-ser partiria em busca do Impossiacutevel purificado da origem-prisatildeo

Dois caminhos diversos intensificados de formas parecidas e diferentes ndash anaacutelogas ateacute certo ponto - mas que desembocaram no mesmo destino a loucura

Nietzsche apesar de todo seu lado problemaacutetico e

doentio buscou atingir a grande sauacutede que tanto falou em seus uacuteltimos escritos principalmente em sua inquietaccedilatildeo

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pelo grande estilo Artaud enquanto poeta dramaturgo e ator encarnou suas obras e personagens tal qual quando agiu em Paris nos anos 30 como se fosse Heacuteliogaacutebalo em Roma durante seu cruel impeacuterio No fim da vida Nietzsche assinava suas cartas como ldquoDioniacutesiordquo ldquoJuacutelio Ceacutesarrdquo ou ldquoO Crucificadordquo Ambos ampliaram perspectivas e apontaram o raio de suas provocaccedilotildees e questionamentos para o que ainda era o nosso tempo por assim dizer no seu uacutetero de gestaccedilatildeo Ambos tambeacutem sucumbiram na luta Nietzsche lutando contra sua enfermidade durante infernais onzes anos nos quais parentes de maacute-feacute conjugadas com antissemitas utilizaram o espoacutelio do filoacutesofo de maneira mundialmente catastroacutefica Artaud passa pelo calvaacuterio o verdadeiro inferno de internaccedilatildeo em internaccedilatildeo que chega a durar cerca de uma deacutecada Sainte-Anne Quatre-Mares Ville-Eacutevrard Cheacutezal-Beacutenoit Rodez Chega a passar fome e fica no esquecimento ateacute 1943 quando seu ex-companheiro de tempos surrealistas Robert Desnos o transfere para Rodez e aos cuidados do Dr Gaston Ferdiegravere eacute estimulado a escrever e a desenhar isso natildeo impede o psiquiatra de aplica-los frequentes sessotildees de eletrochoque

Em 1946 terminada a guerra intelectuais de destaque mobilizam-se para tirar Artaud de Rodez e garantir sua subsistecircncia Grava o seu uacuteltimo escacircndalo em 1948 Para acabar com o julgamento de Deus uma peccedila de imprecaccedilatildeo onde escarra no organismo como doenccedila imputada por Deus para dominar o homem para moldaacute-lo controla-lo para parasitar sua liacutengua seus pensamentos e sua sensibilidade Em 1949 ele morre perto do peacute de sua cama estrangulado no reto pelo cacircncer Seu grito reverberando a anguacutestia o isolamento e a marginalizaccedilatildeo em vida ndash bem como sua genialidade ndash chega a noacutes e nos toca no acircmago junto com a provocaccedilatildeo do filoacutesofo dionisiacuteaco que tambeacutem natildeo buscava nada aleacutem do que

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intensificar sua potecircncia e seu cruel e incendiaacuterio ldquoapetite de vidardquo

A uacuteltima provocaccedilatildeo que me passa na cabeccedila ao pensar nesses dois e em como sua cumplicidade alieniacutegena ndash natildeo em termos de filiaccedilatildeo pois nem Nietzsche queria ldquoseguidoresrdquo nem Artaud queria ser inautecircntico e devedor de algo ou algueacutem - me parece perceptiacutevel eacute seraacute que poderiacuteamos ver na obra tardia de Artaud ndash a sua vida ndash a encarnaccedilatildeo do tipo de vida ldquojustificada esteticamenterdquo por Nietzsche Referecircncias ANDRADE Daniel Pereira Para Aleacutem da Loucura e da

Normalidade Nietzsche contra a recepccedilatildeo psiquiaacutetrica In Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 27 p 279-301 juldez 2008

ASTOR Dorian Nietzsche Trad Gustavo de Azambuja Feix 1ordf ed- Porto Alegre RS LPampM 2013

ARTAUD Antonin O Teatro e seu duplo Trad Texeira Coelho 3ordf ed ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

_______________ Linguagem e Vida Org e Trad J Guinsburg Silvia Fernandes Telesi Antocircnio Mercado Neto Regina Correa Rocha e Seacutergio Saacutelvia Coelho 3ordf reimpr Da 1ordf ed ndash Satildeo Paulo Perspectiva 2006

________________ Escritos de um louco Ed Coletivo Sabotagem Disponiacutevel online wwwsabotagemcjbnet (sem data e sem creacuteditos de traduccedilatildeo)

BARROS Fernando de Moraes O Pensamento Musical de Nietzsche 1ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2007

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_________________________ Nietzsche ouvinte de Chopin em busca do ldquogrande estilordquo In Estudos Nietzsche Curitiba v 3 n 1 p 31-48 janjun 2012 p31-48

BARROS Wagner de Resenha de ANDRADE Daniel Pereira Nietzsche a experiecircncia de si como transgressatildeo (loucura e normalidade) In Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 26 p 203-210 janjun 2008

BLANCHOT Maurice O livro por vir Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Martins Fontes 2005

DETIENNE Marcel Dioniso a ceacuteu aberto Trad Carmem Cavalcanti 1ordf ed Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1988

DIAS Rosa Maria Nietzsche vida como obra de arte 1ordf ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011

DOSTOacuteIEVSKI Fioacutedor Notas do Subterracircneo Trad Moacir Werneck de Castro Editora Bertrand Brasil Rio de Janeiro ndash RJ 1989

DELEUZE Gilles Conversaccedilotildees Trad Peacuteter Paacutel Pelbart 1ordf ed Satildeo Paulo Ed 34 1992

_______________ GUATARRI Feacutelix Mil platocircs capitalismo e esquizofrenia Vol1 Trad Aureacutelio Guerra Neto e Ceacutelia Pinto Costa Rio de Janeiro Ed 34 1995

______________ GUATARRI Feacutelix Mil platocircs capitalismo e esquizofrenia Vol5 Trad Peteacuter Pal Peacutelbart e Janice Caiafa Ed 34 ndash Rio de Janeiro 1997

DUMOULIEacute Camille Nietzsche y Artaud pensadores de la crueldad In Instantes y Azares Escrituras nietzscheanas ndeg 4-5 Ediciones La Cebra 2007 Buenos Aires Agentina p 15-30

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________________Antonin Artaud e o Teatro da Crueldade Trad Sylvie Lins In Revista da Aacuterea de Liacutengua e Literatura Francesa UNESP Satildeo Paulo Breacutesil n 11 2010 P 63-74

FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Duarte Peixoto 1ordf ed Lisboa Editorial Presenccedila 1983

FOUCAULT Michel A Microfiacutesica do Poder 8ordf ed Org e Trad Roberto Machado ndash Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1989

GROSSMAN Eveacutelyne Antonin Artaud Un insurgeacute du corps Ed Deacutecouvertes Gallimard Litteacuterature Paris 2006

HAYMAN Ronald Nietzsche Nietzsche e suas vozes Trad Scarlett Marton 1ordf ed Satildeo Paulo Editora UNESP 2000

LINS Daniel Artaud o artesatildeo do corpo-sem-oacutergatildeos 1ordm ed EdRelume Dumaraacute ndash Rio de Janeiro 1999

NIETZSCHE Friedrich O Nascimento da Trageacutedia ou Helenismo e Pessimismo Trad J Guinsburg 2ordf ed 7ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

___________________ A Gaia Ciecircncia Trad Paulo Ceacutesar de Souza 6ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 2011

__________________ A Visatildeo Dionisiacuteaca do Mundo Trad Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes Maria Cristina dos Santos de Souza 1ordf ed 2ordf tiragem Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

__________________ Despojos de uma trageacutedia (cartas ineacuteditas) Traduccedilatildeo de Ferreira da Costa Porto Editora Educaccedilatildeo Nacional 1944

__________________ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

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_________________ Ecce Homo de como a gente se torna o que a gente eacute Trad Marcelo Backes Porto Alegre LPampM 2003

_________________ A Vontade de Poder Trad de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

RILKE Rainer Maria Cartas a um jovem poeta Trad Pedro Suumlssekind 1ordf ed Editora LampPM Pocket Porto Alegre 2009

Da Vontade de Poder enquanto

Arte no Pensamento de Friedrich

Nietzsche

Joseph Anderson Ponte Cavalcante Leite1

1 Vida como Impulso para Criaccedilatildeo Para Nietzsche vontade de poder eacute o conceito que

diz vida eacute o conceito a partir do qual tudo deve ser dito na existecircncia no mundo Vontade de poder eacute o termo nietzschiano que pronuncia a realidade do real o que implica na inexistecircncia de um fundamento substancial que engendre na vida um estado de ser estaacutetico cristalizado e imutaacutevel Pois vontade de poder eacute vontade para poder eacute vontade para se constituir a partir daquilo que ainda pode ser Nesse sentido o real eacute compreendido desde a incessante dinacircmica regida pelo anseio de busca para ser de busca para se constituir anseio este fundamental para o movimento proacuteprio da vida o movimento proacuteprio da vontade A exuberacircncia da vida estaacute no ininterrupto movimento para ser na vontade para ser aquilo que ainda natildeo eacute mostrando-se desde formas muacuteltiplas de manifestaccedilatildeo da vontade de poder Aquilo que brota que irrompe na realidade brota como princiacutepio que visa apenas a mostraccedilatildeo gratuita que visa apenas aparecer Tal princiacutepio como vontade de poder natildeo cessa em seu movimento de mostraccedilatildeo engendrando o aparecimento de muacuteltiplas formas perspectiviacutesticas de se fazer ver da vida

1 Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraiacuteba Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Paraiacuteba Membro do grupo de pesquisa cadastrado no Cnpq Corpo e Fenomenologia

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do real Desta maneira vida eacute apontada como o eterno retorno da vontade de poder A realidade eacute o eterno retorno do mesmo que se configura como vontade de poder Como nos enfatiza Gianni Vattimo ldquoa vontade de potecircncia representa a essecircncia do mundo como Nietzsche o vecirc enquanto o eterno retorno eacute sua existecircncia e realizaccedilatildeordquo (VATTIMO 2010 p 6-7) sendo o eterno retorno um fato e como tal ldquoenuncia uma necessaacuteria estrutura da realidaderdquo (VATTIMO 2010 p 8)

No discurso do Superar-se a si mesmo da obra Assim Falou Zaratrusta Nietzsche nos apresenta de acordo com seu pensamento entrelaccedilado com o princiacutepio da vontade de poder o que determina o modo de ser de todo vivente Em tal discurso vida se mostra a partir do jogo de mando e obediecircncia no qual estes dois atos estatildeo intimamente relacionados ao que Nietzsche declara como escuta O termo ldquoescutardquo aqui natildeo estaacute relacionado apenas com uma interpretaccedilatildeo fisioloacutegica de uma das faculdades dos cinco sentidos mas ganha um significado extraordinaacuterio na medida em que diz respeito agrave abertura para o transcendente a abertura de ser tocado e afetado por aquilo que deve ser Escutar a vida eacute ter o poder de ser afetado por aquilo que se destina desde vontade de poder para a inauguraccedilatildeo de uma nova realidade Para o homem efetivar sua destinaccedilatildeo eacute preciso que mande em si desde a obediecircncia agravequilo que foi presenteado pela vida a partir da escuta do afeto

Nesse sentido aqui estaacute o cerne da criaccedilatildeo o cerne do acontecer artiacutestico pois artista se revela para Nietzsche como aquele que cria desde sua abertura para a escuta daquilo que vida presenteia como possibilidade de aparecimento de uma nova realidade sendo esta algo que jaacute se deu silenciosamente jaacute se destinou O artista deve estar na escuta da possibilidade do irromper da vida deve estar na abertura para a vida que se manifesta perspectivistacamente de maneira diferenciada de modos de

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ser desde vontade de poder Deste modo para Nietzsche artista natildeo diz respeito somente agravequele que eacute afetado pelos atos de musicar esculpir poetar ou pintar artista natildeo diz respeito somente agravequele ligado agraves belas-artes mas o que diz artista aqui se caracteriza por aquele que eacute tomado pelo poder da arte por aquele que eacute afetado pela forccedila de estar na abertura na escuta da criaccedilatildeo de uma nova realidade presenteada pela vida a partir de modos diferenciados de se manifestar constituindo-se juntamente com a vida de maneira proacutepria destinal

Inicialmente vamos partir do fragmento 853 da obra A Vontade de poder que constitui um comentaacuterio que Nietzsche escreve acerca da concepccedilatildeo de arte apresentada em sua obra O Nascimento da Trageacutedia No comeccedilo da primeira parte de tal fragmento Nietzsche atenta para sua concepccedilatildeo de mundo exposta em O Nascimento da Trageacutedia evidenciando o mundo natildeo desde uma contraposiccedilatildeo entre mundo aparente e mundo verdadeiro mas atribuindo a este mundo aparente contraditoacuterio e cruel o caraacuteter de verdadeiro Daqui segue-se o pensamento de que o mundo eacute propriamente esse acontecer sem sentido sem fundamento o que o torna cruel e terriacutevel

Para suportar essa vida de exposiccedilatildeo gratuita constituiacuteda desde o que jaacute foi exposto a partir da vontade de poder que natildeo visa coisa alguma a natildeo ser aparecer o homem encontra alternativa na mentira Assim Nietzsche aponta para a necessidade da mentira para fazer com que o homem suporte a realidade do mundo sem fim sem sentido sem fundamento ldquoO fato de que a mentira seja necessaacuteria para o viver pertence a esse caraacuteter terriacutevel e problemaacutetico da existecircnciardquo (NIETZSCHE 2008 p 426) Eacute pela mentira que o homem pode atribuir um lastro que o possibilite aguentar o viver conferindo uma significaccedilatildeo a este conferindo um motivo pelo qual viver um motivo que forneccedila assim um fundamento uma confianccedila um asseguramento Mas de que mentira Nietzsche estaacute a falar

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A histoacuteria do homem ocidental eacute perpassada pela criaccedilatildeo de tais tipos de mentira que atribuem crenccedila na vida que fazem com que a realidade da existecircncia seja confiaacutevel Como tipos dessas mentiras Nietzsche aponta para a metafiacutesica a moral a religiatildeo e a ciecircncia Aqui o homem mentiroso eacute o artista pois a partir da mentira manifestada haacute a criaccedilatildeo de uma nova realidade haacute a inauguraccedilatildeo de um ser para a existecircncia

Apesar de designar tais manifestaccedilotildees como mentiras na compreensatildeo de que estas negam a vida em sua natureza proacutepria de vontade de poder Nietzsche natildeo deixa de afirmar que as mesmas retiram seu fundamento da proacutepria vontade de poder Como foi dito vontade de poder eacute o conceito que diz realidade e mesmo quando ela se manifesta de maneira a negar tal realidade ainda assim eacute de tal vontade que a negaccedilatildeo retira seu vigor A dinacircmica proacutepria da vida eacute o jogo para a apariccedilatildeo mesmo que tal apariccedilatildeo faccedila-se mostrar mentirosa em relaccedilatildeo ao que a vida tem de mais proacuteprio O homem teve que ser artista para a partir de vontade de poder criar modos de realidade que o presenteasse como consolo fazendo com que ele resistisse agrave sua existecircncia como sem fundamento algum como sem sentido como apenas vontade para poder O advento da metafiacutesica da religiatildeo da moral e da ciecircncia eacute devido agrave capacidade artiacutestica criadora da vida que fornece uma perspectiva para o homem sendo nesse sentido uma perspectiva que engendra a fuga do homem do seu ser proacuteprio como nada ser uma perspectiva que afeta o homem como vontade de arte permitindo que ele negue a vida em sua natureza mais proacutepria como vontade de poder atraveacutes da criaccedilatildeo de realidades seguras e confiaacuteveis

ldquoA vida deve inspirar confianccedilardquo a tarefa posta dessa maneira eacute imensa Para resolvecirc-la o homem precisa ser jaacute por natureza um mentiroso precisa ser mais do que tudo um artista E ele eacute isto

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tambeacutem metafiacutesica religiatildeo moral ciecircncia ndash todos satildeo apenas rebentos de sua vontade de arte de mentira de fuga diante da ldquoverdaderdquo de negaccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 426)

Nesse querer atribuir agrave vida um lastro que a faccedila ser

suportaacutevel confiaacutevel o homem termina por ser dentre todos os entes aquele que almeja a dominaccedilatildeo da vida De acordo com Nietzsche o homem partilha essa faculdade de criaccedilatildeo com tudo aquilo que se constitui no real jaacute que vida mundo eacute vontade de poder Sendo partiacutecipe da dinacircmica da vida como vontade de poder o homem se manifesta como o ente artiacutestico por excelecircncia tendo que sempre superar a si mesmo na abertura da criaccedilatildeo de novas realidades Eacute pela mentira pela atribuiccedilatildeo de um mundo alheio ao que lhe eacute proacuteprio que o homem pretende saciar sua vontade de poder natildeo apenas para suportar mas controlar a maneira como deve ser compreendida a realidade a maneira como deve ser a existecircncia

Mesmo ludibriando-se com a mentira que o faz crer na vida mesmo aqui o homem eacute aquele que eacute glorificado pela vida como artista eacute aquele afetado pelo sentimento de poder da criaccedilatildeo Como pronuncia Nietzsche ldquoE sempre que o homem se alegra eacute sempre o mesmo em sua alegria alegra-se como artista saboreia-se como poder saboreia a mentira como seu poderrdquo (NIETZSCHE 2008p 426) Vida em sua dinacircmica proacutepria eacute a manifestaccedilatildeo do aparecer gratuito de todas as coisas tendo o homem como co-autor maior na medida em que este inaugura a partir de pontos de vistas presenteados pela proacutepria vida novas realidades atribuiacutedas de sentidos e fundamentaccedilotildees O proacuteprio niilismo europeu eacute intensamente criador em sua manifestaccedilatildeo de negar a vida como vontade de poder

O niilismo europeu eacute visto por Nietzsche como a loacutegica que perpassa a histoacuteria do homem ocidental sendo tal loacutegica caracterizada pelo dizer ldquonatildeordquo agrave vida em sua

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natureza proacutepria de ser vontade de poder de ser vontade para ser aquilo que ainda natildeo eacute de natildeo ser nada que tenha fundamento uacuteltimo cristalizado que forneccedila um sentido pelo qual o homem possa se assegurar O homem ao se deparar com esta natureza da vida como vontade de poder eacute afetado por rebeldia contra a vida procurando estipular valores que lhe sejam alheios mas que contudo venham a lhe fornecer um sentido

Ora satildeo os supremos valores impostos agrave vida que conferem sentido e movem o viver A humanidade procura criar valores para conferir sentido agrave vida no entanto tais valores natildeo satildeo proacuteprios do viver O homem rebelado natildeo suporta que a vida seja sem fundamento criando valores que ofereccedilam para a mesma o sentido confortaacutevel que lhe falta pois para o homem a vida natildeo pode ser sem valor sem sentido Tal sentido no entanto eacute estabelecido a partir de algo alheio ao que eacute proacuteprio do viver criado fora da dinacircmica da vida como esforccedilo para ser Sendo a vida como exposto por Nietzsche eterna retomada do lanccedilar-se no por se fazer retorna sempre como querer ser retorna como aquilo que precisa ser Desta forma ao abraccedilar o querer estabelecer sentido e fundamento desde algo que se encontra fora do jogo gratuito e sem sentido de auto exposiccedilatildeo da vida o homem se torna prisioneiro da dinacircmica proacutepria do niilismo reconhecendo que os supremos valores estabelecidos se transformam em ruiacutena se transformam em um esforccedilo em vatildeo diante do mais supremo movimento da vida que natildeo permite a cristalizaccedilatildeo de um fundamento uacuteltimo O desespero e a melancolia tomam o homem ocidental no momento em que este reconhece que a vida eacute sem sentido mas que no entanto aos olhos de tal homem natildeo deveria ser

O que deve ser destacado aqui eacute que mesmo esses valores que surgem desde um impulso de dizer natildeo agrave vida na pretensatildeo de impor para ela um caraacuteter de ser estaacutetico surgem desde o que a vida eacute como vontade de poder Eacute a

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proacutepria vontade de poder em sua dinacircmica de criaccedilatildeo de perspectivismos que fornece tais pontos oacuteticos como refuacutegio para a vida que definha por natildeo suportar ser sem fundamento ser sem sentido Assim podemos exemplificar isto com o que Nietzsche nos apresenta como ideal asceacutetico em sua terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral indicando que tal ideal que promove o niilismo ao estabelecer valor desde a postulaccedilatildeo de um mundo suprassensiacutevel em contraposiccedilatildeo ao mundo aparente e real impondo agrave vida um fundamento alheio um fundamento que natildeo existe eacute um ideal que representa uma ldquovontade de nadardquo como afirma Brusotti em seu artigo Ressentimento e Vontade de Nada

Nesse sentido o que o asceacutetico natildeo suporta eacute a natureza da vida de nada ser e para consolar-se de tal natureza acaba arrogantemente postulando de qualquer maneira algo que lhe confira sentido agrave vida Como afirma Nietzsche em Genealogia da Moral ldquo no fato de o ideal asceacutetico haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana o seu horror vacui [horror ao vaacutecuo] ele precisa de um objetivo ndash e preferiraacute ainda querer o nada a nada quererrdquo (NIETZSCHE 2009 p 80) Portanto para o homem asceacutetico niilista eacute preferiacutevel querer um mundo fictiacutecio e mentiroso que lhe confira alguma seguranccedila do que afirmar a proacutepria natureza de nada ser substancialmente Mas o que deve ganhar destaque aqui eacute justamente essa capacidade de criaccedilatildeo de realidade que o ideal asceacutetico fornece Ao fazer surgir um sentido o ideal asceacutetico promove a vontade de ainda se sentir vivo promove a conservaccedilatildeo daquele que natildeo aceita a vida como luta para constituir-se presenteando aqueles que tecircm o ideal asceacutetico como fundamento um sentido para viver Aqui o querer asceacutetico ainda promove acircnimo pois querer o nada ainda se revela como um querer Como nos mostra Muumlller-Lauter para se firmar nesse mundo ideal fictiacutecio o

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ideal asceacutetico tambeacutem teve que ser afetado por forccedila tambeacutem teve que advir de uma vontade criadora

Por um lado vida se nega na praacutexis asceacutetica Pois esta eacute somente uma ponte para uma outra forma de existecircncia oposta agrave vida Nesse contexto precisa-se de forccedila para ldquoestancar as fontes de forccedilardquo Assim aqui domina a aversatildeo agrave vida Por outro lado poreacutem o ideal asceacutetico representa um ldquoartifiacutecio de conservaccedilatildeo da vidardquo Pois se a vida eacute apenas ponte entatildeo eacute preciso que se edifique e se fixe nela O sacerdote asceacutetico atraveacutes da potecircncia de seu desejo ldquode ser outro de estar em outro lugarrdquo fica aprisionado justamente nesta vida Com isso ldquoesse negador pertence agraves enormes forccedilas conservadoras e afirmadoras da vidardquo (MUumlLLER-LAUTER 2009 p 130)

Assim a vontade negadora da vida a vontade de

nada do fictiacutecio e mentiroso eacute como afirma Brusotti ldquoum faute de mieux por falta de uma vontade melhorrdquo (BRUSOTTI 2000 p 6) O que implica que toda vida se baseia desde uma interpretaccedilatildeo de sentido desde uma maneira de atribuir valor presenteado pela proacutepria vida como vontade de poder a partir de um ponto oacutetico Como salienta Gianni Vattimu ldquotoda forma de vida precisa de uma verdade de um sistema de condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e desenvolvimento projetado em uma interpretaccedilatildeo do mundordquo (VATTIMO 2010 p 244)

Desta maneira tomando o ideal asceacutetico como exemplo de uma manifestaccedilatildeo propriamente niilista o niilismo aqui surge como sendo tambeacutem advindo do que vida eacute como vontade para poder impulso intensamente criador na medida em que manifesta a inauguraccedilatildeo de novas realidades calcadas em fins e fundamentos uacuteltimos o que atribui sentido agrave vida No entanto como visto tal sentido eacute atribuiacutedo desde a crenccedila em uma realidade alheia

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ao que vida eacute propriamente como vontade de poder A manifestaccedilatildeo de fenocircmenos como metafiacutesica religiatildeo ciecircncia e etc representa a manifestaccedilatildeo da vontade de poder que nega a si mesmo para a sua conservaccedilatildeo Para Nietzsche a vontade de poder por excelecircncia encontra sua apariccedilatildeo na arte pois esta tem seu vigor ao afirmar a vida assim como ela eacute como vontade para poder 2 Vontade de Poder como Arte A Vontade de Poder

por Excelecircncia Como visto para Nietzsche vida eacute vontade de

poder em seu eterno retorno eacute dinacircmica de apariccedilatildeo que se mostra desde diferentes perspectivas na criaccedilatildeo de realidades que visam o seu proacuteprio incremento a sua auto-superaccedilatildeo Neste sentido vontade de poder eacute aquilo que possibilita o aparecer da realidade da vida mesmo que tal mostraccedilatildeo manifeste uma negaccedilatildeo da proacutepria vida Diferentemente do niilismo que manifesta justamente esse impulso criador advindo da vontade de poder que se volta contra ela mesma para a sua conservaccedilatildeo Nietzsche aponta para a arte o caraacuteter de supremacia da vontade de poder Mas em que medida Nietzsche atribui esse caraacuteter para a arte

Para Nietzsche seria atraveacutes da arte que o homem poderia dar-se conta do que vida eacute em seu ser proacuteprio do que vida eacute como dinacircmica de mostraccedilatildeo de perspectivas que natildeo cessam de aparecer de vida como vontade de poder em eterna retomada natildeo tendo fundamento uacuteltimo substancial nem um sentido ou finalidade mas tendo como uacutenico empenho o aparecer gratuito para incrementar-se em novas apariccedilotildees Arte aqui seria aquilo que mostraria ao homem a vida em sua transparecircncia Assim nos explica Cordeiro ldquoSer transparente tem o sentido portanto de deixar vida aparecer torna-se visiacutevel atraveacutes de si como sendo perspectiva como o que natildeo cessa de aparecer e que

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tem sempre de retornar como aparecircnciardquo (CORDEIRO 2010 p 105-206) Desta forma eacute pela manifestaccedilatildeo da arte que se mostra aquilo que a vida tem como encoberto como silenciado

O caraacuteter de vida como aquilo que natildeo tem fundamento algum como abissal sem fundo eacute pela arte manifestado mostrado Ao se deparar com o fenocircmeno artiacutestico o homem pode perceber a vida como aquilo que se mostra gratuitamente na criaccedilatildeo de novas realidades de novas apariccedilotildees de ser Eacute pelo artista que vida se mostra como aquilo que originariamente ela eacute ou seja como um jogo que ganha forma com aquilo que fundamenta e possibilita as vaacuterias formas distintas de aparecer Ganhar forma eacute ganhar manifestaccedilatildeo de ser eacute ser a mostraccedilatildeo da perspectiva que se presenteou E como dito tal perspectiva tal valor soacute eacute por aquilo que estaacute velado em toda mostraccedilatildeo por aquilo que eacute vontade para poder ser tal manifestaccedilatildeo

Para Nietzsche o ver do filoacutesofo como artista eacute o ver do que fundamenta eacute o ver daquilo que estaacute por traacutes de toda apariccedilatildeo eacute o ver que vecirc aquilo que estaacute oculto velado e silenciado em todo aparecer Ao se fazer com a coisa manifestada o artista aparece como aquele que possibilita o dar-se conta de que tal coisa eacute apenas um ponto oacutetico uma perspectiva presenteada pela vida na intenccedilatildeo de tatildeo somente aparecer se mostrar brotar Eacute nesse sentido que arte eacute o que possibilita a transparecircncia da vida em se mostrar em sua dinacircmica mais proacutepria em sua essecircncia mais iacutentima como nada como o que natildeo corresponde a nada que subjaz como o que eacute somente vontade para poder

Eacute no acontecer do artista que se percebe um arqueacutetipo do que vida eacute originalmente Eacute na arte que se daacute criaccedilatildeo produccedilatildeo de criaccedilotildees A vida como a grande possibilitadora de criaccedilotildees da realidade encontra na arte a manifestaccedilatildeo mais proacutepria de si A vida como esta que

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incessantemente insiste em criar e recriar a si mesma incrementa-se ganha forccedila justamente nesse movimento de criaccedilotildees diferenciadas do mesmo O artista como aquele que estaacute aberto para o abandono do jaacute constituiacutedo na escuta do que eacute inaugural exemplifica o comportamento criador da vida que se cria e se recria na medida em que acontece na medida em que se mostra perspectivisticamente O artista eacute aquele que abandona o jaacute criado para voltar-se para um novo processo criador para uma nova inauguraccedilatildeo de modos de ver para uma nova possibilidade de manifestaccedilatildeo da realidade Desta maneira Nietzsche aponta para a vontade de poder como arte a suprema vontade de poder pois eacute aquela que possibilita ao homem perceber o proacuteprio caraacuteter de tudo o que existe como vontade como possibilidade de mostraccedilatildeo No fragmento 796 de A Vontade de Poder Nietzsche pronuncia ldquoO mundo como obra de arte que daacute a luz a si mesma - -rdquo (NIETZSCHE 2008 p 397) Mundo se constitui por um poder de forccedila criadora por um poder que eacute artiacutestico Vida ldquoeacuterdquo desde uma forccedila criadora forccedila que se desperdiccedila no impulso de pura e simplesmente brotar aparecer se mostrar Mundo diz respeito agrave criaccedilatildeo gratuita de realidades de modos de ver de vontades para ser que se manifestam desde a mesma forccedila criadora insistente em desperdiccedilar-se no seu tomar-se aparecircncia E eacute nesse desperdiacutecio que vida ganha sua interpretaccedilatildeo mais vigorosa pois natildeo visa nada aleacutem de seu proacuteprio movimento natildeo visa nada aleacutem de si mesma e de sua gratuidade se afirmando em juacutebilo de si em acircnsia e prazer de si e em nada mais que isso

Assim a vontade de poder como arte eacute a vontade de poder que representa a afirmaccedilatildeo da vida o proacuteprio acircnimo Eacute pela arte que se percebe o movimento da vontade que se contrapotildee a todo impulso de negaccedilatildeo da vida a todo impulso que obriga agrave vida a um caraacuteter de dever ser A vontade de poder como arte eacute a vontade de poder que se

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manifesta como o oposto ao niilismo Na segunda parte do fragmento 853 de A Vontade de Poder Nietzsche apresenta ldquoa arte como a uacutenica forccedila contraacuteria superior em oposiccedilatildeo a toda vontade de negaccedilatildeo da vida anticristatilde antibudista e antiniilista par excellencerdquo (NIETZSCHE 2008 p 427) A arte se contrapotildee ao niilismo por desde o jaacute afirmado representar o caraacuteter proacuteprio de criaccedilatildeo da vida por afirmar a vida como abandono do jaacute constituiacutedo para a inauguraccedilatildeo de uma nova realidade O niilismo como impulso negador da vida ao impor a esta uma natureza de ser substancial imutaacutevel e permanente se depara com a arte que o coloca como uma das maneiras pela qual vida aparece

O acontecer do niilismo se confronta com a arte que o aponta como uma das obras artiacutesticas da vida como vontade de poder Desta maneira o niilismo europeu eacute superado pelo reconhecimento e a afirmaccedilatildeo da vida como um nada que artisticamente cria valores para tatildeo somente brotar irromper O niilismo associado agrave arte eacute uma nova forma de niilismo natildeo sendo mais um negador da vida na criaccedilatildeo de valores e sentidos alheios a esta que desembocam em um pathos do em- vatildeo em descrenccedila naquilo que em um momento forneceu crenccedila na vida mas tal forma de niilismo associado agrave arte eacute aquele que reconhece a vida como um nada afirmando esse nada como aquilo que possibilita a criaccedilatildeo de novos valores que natildeo seratildeo vistos como o uacuteltimo sentido da realidade mas como modos de apariccedilatildeo possibilitados pelo caraacuteter artiacutestico e criador da vida como vontade de poder

Ainda no fragmento 853 agora na quarta parte Nietzsche ainda mostra a relaccedilatildeo de arte e verdade declarando ldquoque a arte tem mais valor que a verdaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 427) Eacute preciso ressaltar aqui que a verdade da qual Nietzsche estaacute falando diz respeito agrave verdade metafiacutesica substancial que procura determinar o ser das coisas o substrato uacuteltimo da realidade Ter mais valor

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significa ter mais capacidade de engendrar pontos de vista a partir do que a vida presenteia Como afirma Heidegger em sua obra Caminhos de Floresta no texto A Palavra de Nietzsche ldquoDeus morreurdquo o valor como esse ponto de visatildeo presenteado pela vida ldquo eacute posto sempre por e para um verrdquo (HEIDEGGER 2002 p 263) Entatildeo valor eacute uma perspectiva doada pela proacutepria vida

Sendo vida vontade de poder que anseia incessantemente para criar e doar tais modos de ver diferenciadamente atentamos para a verdade metafiacutesica o caraacuteter de ser uma dessas manifestaccedilotildees da vida como vontade Nesse sentido eacute o poder artiacutestico da vida que possibilita a criaccedilatildeo de crenccedila em uma verdade metafiacutesica Natildeo eacute o homem que desde suas postulaccedilotildees antropomoacuterficas concebe um caraacuteter de verdade agrave vida Antes eacute a proacutepria vida que se mostra e se permite ver desde tal valor O que permite ao homem a accedilatildeo de conferir valor natildeo retira vigor do proacuteprio homem mas desde o que a vida eacute em sua natureza mais proacutepria desde o que a vida eacute como vontade de poder em seu eterno retorno impulsivo para a criaccedilatildeo de uma nova realidade para em seu caraacuteter artiacutestico inaugurar verdades

Eacute soacute atraveacutes da arte que o homem encontra representaccedilatildeo daquilo que eacute vida em sua natureza proacutepria Atraveacutes da arte o homem pode perceber a vida em sua originalidade em sua incessante vontade para poder vir a ser exaltando a vida em sua exposiccedilatildeo gratuita e sem sentido sem fim ou fundamento abraccedilando a vida em seu ser devir que nada assegura como um lastro uacuteltimo preacute-constituiacutedo que almeja tatildeo somente brotar aparecer recriar realidades Eacute atraveacutes da arte que o homem pode entatildeo perceber aquilo que estaacute por traacutes de tudo o que aparece

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Conclusatildeo Desde o que foi exposto podemos aqui apontar

para um dos maiores problemas da filosofia de Nietzsche em seu olhar diante do que aparece como possibilidade de futuro da humanidade o niilismo europeu Ao falar de niilismo Nietzsche o faz afirmando que este representa a loacutegica de toda histoacuteria do homem ocidental a partir da tradiccedilatildeo do platonismo da metafiacutesica atestando que o advento de tal movimento soacute poderaacute ser sentido nos seacuteculos XX e XXI Para Nietzsche nossa contemporaneidade eacute marcada por tal advento que representa a queda dos supremos valores a descrenccedila nisso que o ser humano tem como vida justamente por ser pelo niilismo que o homem engendra valores e expectativas agrave vida mas de maneira improacutepria

O caminho traccedilado pela humanidade pode ser descrito a partir daqui como o que aponta para um cansaccedilo um desgosto com a vida Nietzsche nos apresenta a arte como forccedila contraacuteria a esse niilismo Eacute pela arte que o homem pode reconhecer a natureza proacutepria da vida de natildeo ser nada que possa cabalmente definida nada que possa ganhar imposiccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo de realidade imutaacutevel A vida por ela mesma insiste em retornar como vontade como impulso para se constituir desde novas apariccedilotildees Eacute pela arte que o homem abraccedila a condiccedilatildeo de participar dessa dinacircmica que parte do abissal que parte do natildeo-fundamento Tal dinacircmica que anseia por manifestaccedilotildees gratuitas manifestaccedilotildees que se inspiram apenas para manifestar Abraccedilar a natureza proacutepria da realidade de ser vontade eacute afirmar que o proacuteprio niilismo representa mais uma de suas maneiras de apariccedilatildeo que pode ser superada pela afirmaccedilatildeo da gratuidade de novas apariccedilotildees

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Referecircncias BRUSOTTI Marco Ressentimento e Vontade de Nada

Traduccedilatildeo de Ernani Chaves In Cadernos Nietzsche 8 p 3-34 2000

CORDEIRO Robson C Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte Uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Editora Universitaacuteria UFPB 2010

HEIDEGGER Martin A palavra de Nietzsche ldquoDeus morreurdquo in Caminhos de Floresta Traduccedilatildeo de Alexandre Franco de Saacute Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

MUumlLLER-LAUTER Wolfgang Nietzsche sua Filosofia dos Antagonismos e os Antagonismos de sua Filosofia Traduccedilatildeo de Clademir Araldi Satildeo Paulo Editora Unifesp 2009

NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Trad de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

___________________ Assim Falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1995

___________________ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

___________________ Genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009

VATTIMO Gianni Diaacutelogo com Nietzsche ndash Ensaios 1961-200 Traduccedilatildeo de Silvana Cobucci Leite Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

O problema da superaccedilatildeo da

metafiacutesica na criacutetica

fenomenoloacutegica de Heidegger

Luismar Cardoso de Queiroz1

O periacuteodo que compreende os anos iniciais da

atividade filosoacutefica de Heidegger natildeo deve ser encarado como um estaacutegio esquecido no caminho do seu pensamento As diferenccedilas que demarcam o pensamento heideggeriano ndash pensamento que se estende por mais de meio seacuteculo ndash satildeo apenas nuances de um mesmo elemento que natildeo perde em nada a sua forccedila de determinaccedilatildeo Para demonstrar o modo como aquilo que emerge nos anos iniciais se manteve decisivo durante o percurso de sua filosofia Heidegger ao caracterizar a trajetoacuteria de sua obra cita um verso de Houmllderlin que diz ldquoPois assim como iniciastes permaneceraacutesrdquo (HEIDEGGER apud STEIN 2001 p 300)

Como sabemos o princiacutepio elementar em funccedilatildeo do qual se move a filosofia de Heidegger desde o seu inicio eacute o problema do ser Em toda extensatildeo de sua obra eacute impossiacutevel delimitarmos um momento de pensamento que natildeo esteja sob a forccedila de atraccedilatildeo desta questatildeo O fervor com que Heidegger atacou o academicismo filosoacutefico de sua eacutepoca eacute uma consequecircncia direta da intensidade com que buscou recolocar uma questatildeo que segundo ele fora esquecida pela tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental e que no iniacutecio do seacuteculo XX a questatildeo jaacute alcanccedilara o niacutevel maacuteximo de sua demissatildeo Heidegger afirma nas primeiras linhas de ldquoSer e Tempordquo que mesmo em meio a uma eacutepoca onde ldquose

1 Doutorando pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN

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arrogue o progresso de afirmar novamente a lsquometafiacutesicarsquordquo (HEIDEGGER 2005 p 27) o fato eacute que a questatildeo que deu focirclego primordial agrave filosofia no Ocidente caiu no esquecimento A tentativa de recolocar de modo proacuteprio esta questatildeo natildeo significa meramente repetir o projeto da metafiacutesica tradicional que inevitavelmente se concretizou como um modo de encobrimento de seu elemento originaacuterio Nisto incorreu tambeacutem a cultura filosoacutefica de sua eacutepoca que na tentativa de superar a metafiacutesica tradicional se enveredou no mesmo desvio essencial

Heidegger portanto como toda grande personalidade na histoacuteria da filosofia suscita alternativas que intencionam apresentar um ponto de convergecircncia para a discussatildeo de problemas aparentemente solucionados mas que conservam a profundidade de complicaccedilotildees tatildeo urgentes que podem decidir o futuro da filosofia O elemento que viraacute agrave tona no pensamento de Heidegger e que permaneceraacute pensado durante a trajetoacuteria de sua filosofia jaacute desde o seu princiacutepio esboccedila uma reaquisiccedilatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica Este elemento assume uma seacuterie de designaccedilotildees tais como ldquovida faacuteticardquo ldquoeu histoacutericordquo ldquocoisa primordialrdquo ldquoexperiecircncia faacutetica da vidardquo ldquofacticidaderdquo ldquoDaseinrdquo entretanto todos buscam ressaltar o solo originaacuterio a partir do qual se torna possiacutevel uma recapitulaccedilatildeo da questatildeo do ser bem como uma plausiacutevel superaccedilatildeo da metafiacutesica

Em todas as fases do pensamento ontoloacutegico de Heidegger eacute possiacutevel constatarmos tentativas de acesso agrave originaacuteria dimensatildeo do sentido do ser Isto torna evidentemente possiacutevel um intercacircmbio de noccedilotildees fenomenoloacutegicas entre o pensamento do jovem Heidegger e os momentos posteriores de sua filosofia Evidentemente este intercacircmbio de noccedilotildees eacute regulado pela consideraccedilatildeo de que a diversidade de noccedilotildees eacute causada pela alteraccedilatildeo dos mecanismos conceituais que sob a tentativa de uma interpretaccedilatildeo do ser estatildeo sempre em processo de

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remodelaccedilatildeo Esta diversidade de caminhos de pensamento explica-se pelo fato de a proacutepria linguagem em seus elementos constitutivos se encontrar encharcada pela conceptualidade ontoloacutegica da tradiccedilatildeo Neste sentido procurar pocircr em explicitaccedilatildeo a fugaz dimensatildeo dos fenocircmenos originaacuterios eacute vivenciar o quebrantamento constante da linguagem Deste modo o presente artigo visa apresentar o modo como a criacutetica filosoacutefica de Heidegger traz agrave tona a possibilidade de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Introduziremos uma noccedilatildeo provisoacuteria de superaccedilatildeo da metafiacutesica como tambeacutem indicaremos um direcionamento para a realizaccedilatildeo dessa superaccedilatildeo Faremos isto atraveacutes de uma analise que coloca em intercacircmbio noccedilotildees fenomenoloacutegicas que se localizam tanto no pensamento do jovem Heidegger (periacuteodo que compreende sua aproximaccedilatildeo com a compreensatildeo faacutetica da vida cristatilde) como tambeacutem no periacuteodo que procede ldquoSer e Tempordquo periacuteodo no qual Heidegger potildee em tematizaccedilatildeo o problema de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica e a histoacuteria do ser

Primeiro procuraremos demonstrar de que modo o caraacuteter paradigmaacutetico da racionalidade justifica a necessidade de superaccedilatildeo da metafiacutesica Nesse sentido veremos o modo como sob a efusatildeo das noccedilotildees constitutivas da hermenecircutica da facticidade a realizaccedilatildeo de uma economia onto-teoloacutegica no pensamento do jovem Heidegger possibilita uma alternativa para escapar do solipsismo da racionalidade metafiacutesica Em segundo lugar analisaremos o modo como a criacutetica heideggeriana empreende uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Assim encontraremos natildeo uma criacutetica que se volta contra a metafiacutesica mas um pensamento que coloca em exposiccedilatildeo o solo primordial da metafiacutesica Em terceiro veremos o modo como a compreensatildeo da diferenccedila ontoloacutegica jaacute evocada nos anos iniciais da filosofia de Heidegger sob a noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica da vida tonifica o pensamento

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que supera a racionalidade metafiacutesica Por uacuteltimo demonstraremos a necessidade de uma reexposiccedilatildeo do caraacuteter problemaacutetico do ser possibilitando uma tematizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial que pensada nos termos da experiecircncia faacutetica da vida confirma a criacutetica fenomenoloacutegica como um ldquopocircr-se a caminhordquo na direccedilatildeo de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica

1 A problemaacutetica da superaccedilatildeo da metafiacutesica

A tentativa de superaccedilatildeo da metafiacutesica efetuada

durante o seacuteculo XVIII pelos positivistas natildeo representa simplesmente a tentativa de transpor uma doutrina filosoacutefica mas superar aquela modalidade de pensamento que abarcava a compreensatildeo da realidade na tradiccedilatildeo filosoacutefica O que se almejava suplantar era a proacutepria racionalidade metafiacutesica que embrenhada profundamente nas produccedilotildees culturais do Ocidente encontrava-se em descompasso com o programa proposto pela nova ciecircncia

O periacuteodo de transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o seacuteculo XX eacute marcado por um mal-estar cultural que inevitavelmente seria somatizado pela eclosatildeo das duas Grandes Guerras Mundiais O modelo de racionalidade pautado nos ideais iluministas acabara de adquirir um amargor insuportaacutevel para os espiacuteritos ceacuteticos daqueles que haveriam de definir a orientaccedilatildeo cultural do pensamento contemporacircneo A respeito desta turbulecircncia espiritual Gadamer demonstra a inquietaccedilatildeo que naqueles dias colocou em suspense o modelo de racionalidade iluminista dizendo

[] natildeo haacute como se espantar com o fato de os espiacuteritos liacutederes desse tempo terem se perguntado o que havia de falso nessa crenccedila na ciecircncia nessa crenccedila na humanizaccedilatildeo e no policiamento do mundo falso no suposto desenvolvimento da

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sociedade para o progresso e para a liberdade (GADAMER 2012 p 238)

A proacutepria racionalidade havia tomado consciecircncia

de seu caraacuteter paradigmaacutetico bem como de suas limitaccedilotildees ndash o que implicava necessariamente na urgecircncia de sua superaccedilatildeo A ldquobelle epoacutequerdquo iluminada pelo esplendor da mentalidade cientiacutefico-racional se desmantelara completamente junto com amarras espirituais que a sustentavam Entretanto como poderia a razatildeo encontrar os caminhos da superaccedilatildeo de si mesma Natildeo seria isto um inevitaacutevel contrassenso uma autotraiccedilatildeo Natildeo incorreria o pensamento racional naquele mesmo equiacutevoco que acusa Hegel ter cometido a filosofia transcendental ou seja ldquonatildeo querer entrar nrsquoaacutegua antes de ter aprendido a nadarrdquo (HEGEL 1995 p 109) Como eacute possiacutevel a razatildeo superar-se sem se reiterar na superaccedilatildeo Como se colocar em busca de um fundamento para aleacutem da racionalidade cientiacutefica se a proacutepria dinacircmica transcendente do ldquopara aleacutemrdquo eacute imanente agrave atividade racional

Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX perante a agonia apocaliacuteptica que afligia a Europa a atividade filosoacutefica passara a assumir uma tonalidade milenarista Urgia a necessidade de se encontrar uma alternativa redentora que fosse capaz de desbancar de uma vez por todas o impeacuterio da racionalidade metafiacutesica Em contrapartida a comunidade filosoacutefica alematilde atraveacutes do movimento neokantiano havia elegido a filosofia de Kant como modelo de orientaccedilatildeo na busca de um fundamento capaz de sustentar a validade do conhecimento cientiacutefico Este fundamento a despeito do qual as escolas de Marburgo e Baden haveriam de travar uma intensa discussatildeo significava muito mais do que um fundamento epistemoloacutegico representava no fundo em tempos como aqueles um porto seguro em meio agrave instabilidade espiritual vivenciada pela cultura europeacuteia A dimensatildeo aberta pelo

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idealismo transcendental apresentava-se como uma fonte rica e adequada para as diversas apropriaccedilotildees neokantianas que intencionavam a obtenccedilatildeo de uma efetiva virada no processo do conhecimento Ora o que representava esta virada se natildeo o vir agrave tona daquela certeza indubitaacutevel do sujeito cartesiano Procurava-se de fato um eixo de sustentaccedilatildeo para a realidade cognitiva O que demonstrava claramente o quanto a atividade filosoacutefica permanecia apesar dos inuacutemeros esforccedilos retida agrave esfera paradigmaacutetica da racionalidade metafiacutesica da qual desejava se libertar A proacutepria necessidade metodoloacutegica de um fundamento uacuteltimo de um princiacutepio puro e absoluto confirmava o predomiacutenio da racionalidade metafiacutesica Heidegger declara a ineficaacutecia do projeto neokantiano ao afirma que

O neokantismo (Nartorp) inverteu o processo simplesmente da lsquoobjetivaccedilatildeorsquo (conhecimento da objetualidade) e alcanccedilou assim a lsquosubjetivaccedilatildeorsquo (a qual deve apresentar psicoloacutegica e filosoficamente o processo) Nisso a objetualidade apenas eacute transferida do objeto em sujeito o conhecer enquanto conhecer permanece poreacutem o mesmo fenocircmeno natildeo esclarecido (HEIDEGGER 2010 p 15)

Alcanccedilar o conhecer enquanto conhecer ou seja

esclarecer o conhecer em processo representa a via de fuga para o dilema apresentado por Hegel dilema esse que expressa o predomiacutenio absoluto da esfera da racionalidade O projeto neokantiano bem como toda a criacutetica agrave metafiacutesica que se desenvolve a partir do seacuteculo XIX falha ao natildeo ter em conta o que afirma Heidegger em ldquoSer e Tempordquo dizendo

Toda ideia de ldquosujeitordquo ndash a menos que tenha sido depurada por uma preacutevia determinaccedilatildeo ontoloacutegica fundamental ndash continua pondo ontologicamente na

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partida o subjectum (ύποχείμενον) por mais enfaacutetica que seja a oposiccedilatildeo ocircntica agrave ldquosubstancializaccedilatildeo da almardquo ou agrave ldquocoisificaccedilatildeo da consciecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 151)

A colocaccedilatildeo de um subjectum no ponto de partida

ou seja a colocaccedilatildeo de algo subjacente de algo que estaacute na base e portanto como estacircncia de sustentaccedilatildeo jaacute implica num deslocamento do pensamento para fora daquela perspectiva da realizaccedilatildeo do conhecer em processo A tendecircncia de projetar um fundamento uacuteltimo para aleacutem ou para aqueacutem da razatildeo cientiacutefica jaacute por si soacute reitera a forma de racionalidade que se quer superar Do mesmo modo o

termo grego ύποχείμενον cujo sentido expressa ldquoo que estaacute agrave matildeordquo e com isso disponiacutevel ao uso ressalta ainda mais o caraacuteter preacute-dominante da racionalidade metafiacutesica Eacute submetendo a si que o paradigma da racionalidade metafiacutesica estrutura toda compreensibilidade do real Natildeo eacute por menos que a famosa maacutexima do idealismo hegeliano publicada em sua ldquoFilosofia do Direitordquo onde se diz que ldquoO que eacute racional eacute efetivo e o que eacute efetivo eacute racionalrdquo proponha com tanta veemecircncia que o limite da realidade eacute delimitado pelo conceito Para Heidegger Hegel eacute o ponto de culminacircncia de toda a experiecircncia ontoloacutegica inaugurada pelos gregos e perpassada por toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica Deste modo a maacutexima hegeliana representa muito mais do que uma tese perioacutedica ela sintetiza o caraacuteter essencial da racionalidade ocidental onde em sintonia com esta nada poderaacute existir se natildeo for idecircntica a si mesma

Esta reclusatildeo solipsista da razatildeo ocidental perpetua o impeacuterio de sua solidatildeo absoluta A proacutepria alteridade sob a insiacutegnia da representaccedilatildeo eacute produto de seus processamentos endoacutegenos Descartes havia encontrado na indubitabilidade do cogito pensante um ponto de apoio seguro para resgataacute-lo das incertezas da contingecircncia sensiacutevel Entretanto natildeo foi capaz de perceber que jaacute

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estava agrave mercecirc de um outro ldquogecircnio malignordquo um de natureza ainda mais sublime Destarte uma criacutetica agrave racionalidade metafiacutesica deveria levar em consideraccedilatildeo a ldquoingenuidade dos filoacutesofosrdquo (NIETZSCHE 2010 p 31) ndash como denuncia Nietzsche ndash perante a genialidade da razatildeo paradigmaacutetica como condiccedilatildeo fundamental da histoacuteria da filosofia ocidental Eacute neste sentido que Heidegger iraacute assumi-la considerando o pensamento que sempre de novo reitera um subjectum como condiccedilatildeo inerente ao existir humano

O projeto de superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica empreendido a partir do seacuteculo XIX em diante natildeo foi capaz de realizar suas pretensotildees Natildeo porque natildeo haja um caminho plausiacutevel para tal projeto mas sim porque ao inveacutes de se propor um determinado conteuacutedo quumliditativo deve-se antes analisar a proacutepria postura do pensamento que impotildee este conteuacutedo Deste modo eacute pela compreensatildeo da racionalidade que se abre o caminho de acesso agrave dimensatildeo do conhecer em sua realizaccedilatildeo Tendo em vista essa meta Heidegger em seus primeiros anos prescinde da proacutepria ideia de fundamentaccedilatildeo ndash contexto fundador ndash e propotildee o desalentador natildeo-lugar da experiecircncia faacutetica da vida que posteriormente em ldquoSer e Tempordquo se configuraria no vazio radical do Dasein Soacute nesta dimensatildeo segundo Heidegger seria possiacutevel uma autecircntica inversatildeo no processo do conhecimento Pois na experiecircncia faacutetica da vida eacute que se manteacutem em confronto aquilo do que a vida foge sob a forma da reclusatildeo solipsista da razatildeo absoluta ndash o impeacuterio da razatildeo eacute uma fuga da inquietante situaccedilatildeo existencial humana

Poder e dissimulaccedilatildeo satildeo marcas profundas da racionalidade ocidental Ela domina para poder dissimular a inquietaccedilatildeo de fundo da situaccedilatildeo existencial humana Heidegger declara na ldquoIntroduccedilatildeo agrave Fenomenologia da Religiatildeordquo que a vida busca asseguramentos contra a inquietaccedilatildeo do histoacuterico Ora o que seriam estes

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ldquoasseguramentosrdquo Satildeo os contextos de fundamentaccedilatildeo que se destilam da historicidade da vida a partir da dinacircmica de pensamento que Heidegger caracteriza como queda na experiecircncia faacutetica da vida Esta dinacircmica perpassa toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica e isto fica ainda mais claro quando ressaltamos a necessidade intriacutenseca agrave reflexatildeo metafiacutesica de colocar para si mesma uma finalidade Os asseguramentos satildeo postos pela reflexatildeo teoacuterica-objetivante uma postura de pensamento imanente agrave racionalidade ocidental Nessa postura de pensamento os fenocircmenos satildeo desarraigados da brutalidade de sua condiccedilatildeo primordial Sob o peso inquietante da vida a racionalidade metafiacutesica responde com um ldquooacutedio gnoacutesticordquo agrave concretude histoacuterica que se expressa eloquumlentemente na elaboraccedilatildeo das formas puras e imutaacuteveis ndash verdades eternas

Entretanto Heidegger encontra esta medianidade faacutetica da vida realizada na experiecircncia religiosa do cristianismo primitivo E eacute precisamente ali na vida sob o abalo da feacute que ele capta os mecanismos conceituais capazes de elucidar a fugaz esfera da experiecircncia faacutetica da vida Os primeiros anos de Heidegger em Friburgo satildeo caracterizados por uma forte economia onto-teoloacutegica que consistia no influxo de categorias existenciais subjacentes agrave experiecircncia religiosa do cristianismo e o originariamente filosoacutefico Sob a tese de que ldquoo cristianismo primitivo vive (ou ensina) a temporalidaderdquo Heidegger destaca a partir da existencialidade cristatilde categorias preacute-cognitivas que resistentes agrave tendecircncia de queda na facticidade possibilitam um ponto de escape para reclusatildeo solipsista da racionalidade metafiacutesica Atraveacutes do influxo onto-teoloacutegico Heidegger possibilitou a abertura de um horizonte permeado por uma experiecircncia de pensamento inteiramente nova que reconquistando o que outrora fora reconhecido sob o conveniente tiacutetulo de irracional condiciona a realizaccedilatildeo de uma autecircntica transcendecircncia Pois o horizonte que se abre sob o influxo onto-teoloacutegico

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eacute aquele que se encontra sob o ponto cego da racionalidade teoacuterica-objetivante Entretanto eacute deste mesmo ponto que profusivamente emana toda atividade intelectiva A economia onto-teoloacutegica ao manter o pensamento em constante tensatildeo com o histoacuterico rompe o solipsismo da racionalidade ocidental abrindo-a para uma autecircntica heterogeneidade ou seja a experiecircncia do absolutamente e absurdamente outro Mesmo desdenhando dos meacutetodos e proposiccedilotildees de Spengler2 Heidegger afirma na ldquoIntroduccedilatildeo agrave Fenomenologia da Religiatildeordquo que este pressentiu numa dimensatildeo exclusivamente histoacuterica aquilo de que carece a filosofia Spengler afirma

Eis o que falta ao pensador ocidental e o que natildeo deveria faltar justamente a ele a compreensatildeo da natureza histoacuterica-relativa das suas conclusotildees que natildeo passam da expressatildeo de um modo singular de ser e somente dele O pensador ocidental carece do conhecimento dos inevitaacuteveis limites que restringem a validez de suas afirmaccedilotildees Ignora que suas ldquoverdades inabalaacuteveisrdquo e suas ldquopercepccedilotildees eternasrdquo satildeo verdadeiras soacute para ele e eternas unicamente do ponto de vista da sua visatildeo de mundo Natildeo se recorda do dever de sair de sua esfera para procurar outras verdades criadas com a mesma certeza por homens de culturas diferentes o que seria indispensaacutevel para que uma filosofia do futuro se pudesse completar Precisamente isso significa compreender o linguajar das formas histoacutericas e do mundo vivo (SPENGLER 1973 p 41)

2 Heidegger acredita que a filosofia da historia proposta por Spengler esteve desprovida daquilo que lhe seria essencial ou seja o histoacuterico em seu caraacuteter originaacuterio Isto foi apenas pressentido mas natildeo tematizado Para Heidegger o projeto filosoacutefico de Spengler eacute um locus a non lucendo ou seja algo cuja essecircncia natildeo corresponde ao que o nome sugere (Cf ZIMMERNAM 1990 p 27)

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2 A criacutetica heideggeriana e a superaccedilatildeo da metafiacutesica A questatildeo que aqui nos referimos eacute a questatildeo do

ser A retomada desta questatildeo primordial da filosofia que faraacute Heidegger revitalizar a tradiccedilatildeo se daraacute sob uma espeacutecie de paradigma inteiramente novo De fato a obliquidade da compreensatildeo inaugurada pela fenomenologia ontoloacutegica do jovem Heidegger se apresenta de forma tatildeo atiacutepica que concebecirc-la sob a forma de um novo paradigma jaacute nos coloca no interior da tradicional loacutegica que se quer suplantar Modificar o centro gravitacional da metafiacutesica natildeo implica necessariamente em uma transformaccedilatildeo substancial desta De fato o sistema permaneceraacute sempre o mesmo em meio agraves diversas reconfiguraccedilotildees natildeo importando quais mudanccedilas ocorram em seu centro quumliditativo Com isso o caraacuteter ineacutedito da filosofia heideggeriana natildeo se define pelo acreacutescimo de um novo eixo temaacutetico no corpo historiograacutefico da literatura filosoacutefica Antes caracteriza-se pela problematizaccedilatildeo das condiccedilotildees determinantes do sistema metafiacutesico Deste modo natildeo se trata exclusivamente de uma novidade mas de uma redescoberta Trata-se de repetir o que desde os antigos gregos se manteacutem inquietante e que durante toda historia espiritual do Ocidente foi encoberto com respostas

Neste redescobrir coloca-se em foco a plataforma originaacuteria do pensamento metafiacutesico donde se desarraiga os paradigmas da filosofia ocidental Se voltar para esta plataforma eacute destacar o centro ex-cecircntrico da metafiacutesica3

3 Este centro ex-cecircntrico natildeo nos absorve numa egocentricidade apropriante ao inveacutes disso nos arremessa sempre para fora de modo que nesta ex-pulsatildeo simultaneamente o ente se tematiza e encobre sua fonte originaacuteria Este centro ex-cecircntrico se daacute no nosso ser-aiacute mais imediato e a partir dele se desgarra o pensar e dizer objetivantes os quais operam uma ldquofixaccedilatildeo do permanenterdquo

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Ou seja o fundamento sem fundo que nunca pode dispor-se objetivamente como centro antes resistindo a toda contemplaccedilatildeo desvia de si os olhares teoreacuteticos condensando-os em objetividades metafiacutesicas Ora estas objetividades metafiacutesicas constituem o desvelamento fundante do conhecimento objetivo cuja orientaccedilatildeo da objetivaccedilatildeo do que se tematiza dirige-se para o ente e natildeo para o ser Neste movimento de objetivaccedilatildeo o pensar se fecha para o que se desvela originariamente Entretanto este desvio do pensamento tem sua ocorrecircncia e resultado uacuteltimo enraizados no solo originaacuterio da metafiacutesica que segundo Heidegger eacute a verdade do ser Neste sentido mesmo o modo de ser encobridor ainda permanece ligado ao elemento originaacuterio da metafiacutesica Destaquemos aqui uma passagem da conferecircncia de 1949 intitulada como ldquoIntroduccedilatildeo a lsquoO que eacute Metafiacutesicarsquordquo onde Heidegger demonstra com clareza esta ligaccedilatildeo

Pelo fato de a metafiacutesica interrogar o ente enquanto ente ela permanece junto ao ente e natildeo se volta para o ser enquanto ser Como a raiz da aacutervore ela [a metafiacutesica] envia todas as seivas e forccedilas para o tronco e os ramos A raiz se espalha pelo solo para que a aacutervore dele [o solo] surgida possa crescer e abandonaacute-lo A aacutervore da filosofia surge do solo onde se ocultam as raiacutezes da metafiacutesica O solo e o chatildeo satildeo sem duacutevida alguma o elemento no qual a raiz da aacutervore se essencia O crescimento da aacutervore poreacutem jamais seraacute capaz de assimilar em si o chatildeo de suas raiacutezes de tal forma que desapareccedila como algo arboacutereo na aacutervore Pelo contraacuterio as raiacutezes se perdem no solo ateacute as uacuteltimas radiacuteculas O chatildeo eacute chatildeo para a raiz dentro dele ela se esquece em favor da aacutervore Tambeacutem a raiz ainda pertence agrave aacutervore mesmo que a seu modo se entregue ao elemento do solo Ela [a metafiacutesica] dissipa seu elemento e a si mesma pela aacutervore Como raiz ela natildeo se volta para o solo ao menos natildeo de modo tal

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como se fosse sua essecircncia desenvolver-se apenas para si mesma neste elemento Provavelmente tambeacutem o solo natildeo eacute tal elemento sem que o perpasse a raiz (HEIDEGGER 2008 p 378)

A aacutervore da filosofia soacute pode crescer no abandono

do solo da verdade desencobridora do ser Entretanto mesmo em seu abandono permanece necessariamente nutrida e arraigada no solo originaacuterio do ser Eacute no elemento originaacuterio do solo do ser que a histoacuteria do pensamento Ocidental enquanto esquecimento do ser se essencia A proacutepria metafiacutesica enquanto raiz da aacutervore ao se espalhar pelo solo esquece a si mesma em sua profundidade um esquecimento que favorece diretamente o desenvolvimento da aacutervore Com isso foi o esquecimento essencial da metafiacutesica que nutriu continuamente o espiacuterito ocidental O que identificamos como cultura ocidental eacute fruto deste esquecimento Por isso mesmo eacute que a metafiacutesica em sua expansatildeo dissipa seu elemento e a si mesma em prol do crescimento da aacutervore De fato o abandono do solo eacute necessaacuterio para a ldquoconservaccedilatildeo e consistecircncia da vida humanardquo (HEIDEGGER 2008 p 82)

Por isso mesmo a criacutetica heideggeria natildeo compreende a si mesma como uma novidade mas como uma rememoraccedilatildeo do princiacutepio primordial perante o qual toda novidade jaacute se encontra de antematildeo superada A criacutetica se volta para o in-significado (ou seja aquilo que antecede originariamente a significacircncia do mundo) buscando explicitar o que se manteacutem in-diferente em meio agrave multiformidade do real Entretanto com que dignidade a filosofia de Heidegger evoca para si a capacidade de trazer agrave tona o que a si mesmo se desfoca em toda manifestaccedilatildeo ocircntica Como pode Heidegger garantir que a sua criacutetica agrave tradiccedilatildeo tambeacutem natildeo esteja secretamente sujeita agravequele ldquodestinamento essencial da metafiacutesicardquo que se caracteriza pela omissatildeo de seu solo originaacuterio

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Toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica em sua saga pelo ser comportou-se apenas com o ente Sua incapacidade natildeo consiste numa demissatildeo temaacutetica da questatildeo Pois ldquoa metafiacutesica expressa o ser constantemente e nas mais diversas modulaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER 2008 p 382) O problema do ser sempre inspirou a partir de uma profundidade originaacuteria o pensamento representacional da metafiacutesica Entretanto a incapacidade da metafiacutesica consiste em seu modo de interpretaccedilatildeo e portanto o problema da filosofia torna-se um problema de meacutetodo A reformulaccedilatildeo do meacutetodo resulta diretamente de uma reconsideraccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica entre ser e ente Ao buscar enunciar o ser a metafiacutesica sempre tinha em vista o ente na totalidade E deste modo ao desvelar o ente o ser mesmo que ilumina e condiciona a manifestaccedilatildeo do ente era velado por um pensamento que sucumbe na resposta

A criacutetica heideggeriana busca sujeitar o pensamento ao acircmbito proacuteprio da verdade do ser A superaccedilatildeo da metafiacutesica natildeo representa para Heidegger de modo algum a extinccedilatildeo dela Antes com esta superaccedilatildeo o que se busca eacute a conservaccedilatildeo de seu elemento fundamental bem como a elevaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico para o interior do acircmbito desencobridor do ser A metafiacutesica natildeo eacute abolida antes eacute confirmada Heidegger descreve bem a natureza desta superaccedilatildeo dizendo

Um pensamento que pensa a verdade do ser natildeo se contenta mais em verdade com a metafiacutesica mas um tal pensamento natildeo pensa contra a metafiacutesica Para voltarmos agrave imagem anterior ele natildeo arranca a raiz da filosofia Ele lhe cava o chatildeo e lhe lavra o solo A metafiacutesica permanece a primeira instacircncia da filosofia Ela natildeo alcanccedila poreacutem a primeira instacircncia do pensamento No pensamento da verdade do ser a metafiacutesica eacute superada (HEIDEGGER 2008 p 379)

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Entretanto como pode o pensamento mover-se na dimensatildeo da verdade do ser sem que se cristalize numa especulaccedilatildeo representacional velando de novo sua dimensatildeo originaacuteria Um caminho em direccedilatildeo agrave superaccedilatildeo da metafiacutesica soacute seraacute devidamente encontrado se o pensamento ndash ao resistir agrave tendecircncia essencial de representar o ente num movimento de objetivaccedilatildeo ndash manter-se a si mesmo pensante numa postura de docilidade para com o ser (uma ldquoquietude fascinadardquo) Ou seja numa ldquoadmiraccedilatildeo acolhedorardquo ou mesmo num ldquoatentar em uma escuta obediente ao que aparecerdquo (HEIDEGGER 2008 p 84) Isto eacute se esforccedilar por manter-se no dizer silencioso do ldquoaiacuterdquo ndash o aberto do ser Este eacute o acircmbito profundo do silecircncio essencial a respeito do qual afirma Nietzsche ldquoali tudo fala mas nada eacute ouvidordquo (NIETZSCHE 2014 p 176) pois se ouve com a violecircncia do ldquoouvir abstratamenterdquo (HEIDEGGER 1977 p 19) Nesta abertura os ldquocacarejosrdquo dos sons objetivantes cessam tornando-se oportuno o ldquosentar-se em silecircncio no ninho para chocar os ovosrdquo (NIETZSCHE 2014 p 176)

E o que representa esta figura senatildeo o pocircr em curso e deixar vir a ser o que se apresenta Gadamer iraacute reinterpretar este pensamento pensante que se potildee na escuta do ser e que possibilita a superaccedilatildeo da metafiacutesica como o ldquoverdadeiro ouvirrdquo (GADAMER (A) p 671) da experiecircncia hermenecircutica que tambeacutem eacute ldquoverdadeiro meacutetodordquo (Op cit p 673) Segundo ele sob a tutela deste pensamento que se potildee na escuta ldquonos entregamos por completo agrave forccedila do pensar e natildeo deixamos valer as ideacuteias e opiniotildees que pareciam loacutegicas e naturaisrdquo (Idem) Este eacute a postura de pensamento que se deixa levar pelo acontecimento do proacuteprio ser Heidegger apresenta uma clara distinccedilatildeo entre a experiecircncia especulativa hermenecircutica do pensar pensante e o modo de pensar representacional na seguinte descriccedilatildeo

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A experiecircncia cotidiana das coisas em sentido amplo nem eacute objetivante nem eacute uma objetivaccedilatildeo Quando por exemplo sentados no jardim alegramo-nos com as rosas em flor natildeo fazemos da rosa objeto e nem mesmo alguma coisa que se encontra contraposta ou seja algo tematicamente representado Quando em um dizer silencioso entrego-me ao vermelho brilhante da rosa e medito sobre o ser vermelho da rosa esse ser-vermelho natildeo eacute objeto nem eacute coisa nem eacute algo que se contrapotildee como rosa em flor A rosa estaacute no jardim balanccedila para laacute e para caacute ao sabor do vento Jaacute o ser-vermelho da rosa natildeo estaacute no jardim e nem pode balanccedilar ao sabor do vento Todavia penso e falo do ser-vermelho quando o nomeio Assim realiza-se um pensar e um dizer que de modo algum produz objetivaccedilatildeo (HEIDEGGER 2008 p 83)

Na contramatildeo do extravio do pensamento

objetivante podemos perceber a partir da citaccedilatildeo acima uma postura de pensamento que rompe com a loacutegica representacional da metafiacutesica Sob esta loacutegica tradicional o sentido do ser eacute interpretado segundo o modo de ser da presenccedila constante A loacutegica do pensamento objetivante perpassa a metafiacutesica tradicional poreacutem natildeo apenas ela a criacutetica moderna agrave metafiacutesica tambeacutem sucumbe perante esta loacutegica O projeto anti-metafiacutesico da filosofia moderna que encontra na criacutetica positivista seu expoente maacuteximo ao preconizar a aboliccedilatildeo da antiga metafiacutesica e apresentar a ciecircncia como uacutenico caminho capaz de conduzir o homem agrave experiecircncia fundamental da verdade natildeo apenas eacute perpassado pela loacutegica representacional da metafiacutesica como tambeacutem leva a cabo na orientaccedilatildeo objetivante de seu pensamento teacutecnico-cientificista o esquecimento do ser

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3 A diferenccedila ontoloacutegica na experiecircncia faacutetica da vida Vimos como o jovem Heidegger em um periacuteodo

decisivo do desenvolvimento de seu pensamento recorre agrave experiecircncia religiosa do cristianismo originaacuterio com o intuito de subsidiar a tarefa de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Neste sentido tornou-se possiacutevel vislumbrar o proacuteprio conceito e necessidade de uma superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica Depois disto tambeacutem indicamos que a proacutepria retomada da questatildeo ou do caraacuteter problemaacutetico do ser jaacute de certo modo antecipa este movimento de superaccedilatildeo ndash isto pode ser ilustrado por uma declaraccedilatildeo de Kant que diz ldquoSaber aquilo que se deve racionalmente indagar jaacute por si prova exuberacircncia de entendimento e sabedoriardquo (KANT 2014 p 70) Sendo assim para efeito de conclusatildeo procuraremos agora demonstrar o modo como a experiecircncia faacutetica da vida ao inveacutes de ser uma resposta ociosa que parte do absurdo de uma pergunta impensada constitui-se um caminho pelo qual se coloca de novo em marcha o pensar essencial da filosofia

Se pensarmos a superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica que se efetua na experiecircncia faacutetica da vida sob a luz da diferenccedila ontoloacutegica poderemos dispor de um acesso agrave dinacircmica de superaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico Com isto haveremos de ratificar por meio de uma sintonizaccedilatildeo com resultados posteriores agrave hermenecircutica da facticidade o modo como a experiecircncia faacutetica da vida promove uma experiecircncia de pensamento que atinge o elemento fundamental da metafiacutesica Veremos que ao se considerar a noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica da vida a partir de seu engajamento com a distinccedilatildeo ontoloacutegica a problemaacutetica do ser eacute reassumida em toda a sua intensidade

Em vista disso procuraremos promover um esclarecimento provisoacuterio do sentido da formulaccedilatildeo

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ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo Iremos apenas acentuar aquilo que na evocaccedilatildeo desta diferenccedila ressalta o caraacuteter originaacuterio da experiecircncia faacutetica da vida Em seguida explicitaremos a proacutepria noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica e o modo como tal experiecircncia pode efetuar a superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica

O emprego da expressatildeo ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo remonta ao inicio da deacutecada de 20 quando o jovem Heidegger ainda estava completamente absorto na elaboraccedilatildeo de uma hermenecircutica da facticidade O fato da ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo ter sido engendrada no seio do pensamento hermenecircutico o qual refletia a auto-compreensatildeo faacutetica do ser-aiacute existente eacute decisivo para ressaltarmos a forccedila de superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica na experiecircncia faacutetica da vida Pois se a reconsideraccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica potildee em quadro o desvio da racionalidade metafiacutesica de seu elemento fundamental a experiecircncia faacutetica da vida pode ser caracterizada como uma tentativa de retorno em meio agrave diferenccedila ontoloacutegica Por conseguinte postulamos que na experiecircncia faacutetica da vida encontra-se radicada a possibilidade da diferenccedila ontoloacutegica Eacute na esfera desta experiecircncia que o poder distinguir imanente agrave essecircncia proacutepria do ser-aiacute encontra a forccedila riacutetmica de sua estrutura dinacircmica

Retomemos aqui de modo provisoacuterio a compreensatildeo heideggeriana da noccedilatildeo de diferenccedila ontoloacutegica A distinccedilatildeo entre ocircntico e ontoloacutegico eacute o que delimita a essecircncia desta noccedilatildeo de diferenccedila Com o termo ldquoocircnticordquo Heidegger demarca o caraacuteter distintivo do ente perante o ser que por sua vez tem seu estatuto caracterizado sob o tiacutetulo de ldquoontoloacutegicordquo Esta distinccedilatildeo natildeo eacute meramente proposicional Ela visa antes de tudo explicitar uma condiccedilatildeo fundamental do nosso ser-aiacute cotidiano Conforme o testemunho de Gadamer Heidegger havia declarado que ldquoEssa distinccedilatildeo natildeo eacute de modo algum

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feita por noacutesrdquo (HEIDEGGER apud GADAMER 2007 p 92) Na verdade a diferenccedila ontoloacutegica apresenta um caraacuteter eminentemente faacutetico pois como declara Gadamer ldquonosso pensamento se encontra desde o princiacutepio sobre o caminho da diferenciaccedilatildeo do ente em seu serrdquo (Idem) Ou seja noacutes nos encontramos sempre nesta diferenccedila A todo momento nos relacionamos com este ou aquele ente ldquocomo se estiveacutessemos presos ao domiacutenio do enterdquo (HEIDEGGER 2008 p 120) Entretanto em nossa lida cotidiana com os entes que espontaneamente nos vecircm ao encontro somos sub-repticiamente perpassados por uma vaga e mediana compreensatildeo do ser Eacute no ente que o ser se desvela e por isto mesmo eacute que o ente espontaneamente se daacute Esta dadidade do ente (condiccedilatildeo de ser aiacute dado) confirma o caraacuteter faacutetico da diferenciaccedilatildeo do ente em seu ser A tensatildeo distintiva entre ente e ser em meio a nossa lida cotidiana eacute faacutetica e antecede as designaccedilotildees proposicionais

Na vivenciabilidade faacutetica desta diferenccedila ndash ao passo que algo se distancia no ocultamento de uma compreensatildeo mediana (o ser) ndash um despontar tem lugar Este caraacuteter faacutetico da diferenccedila seraacute posteriormente assumido por Heidegger como ldquoabertura do serrdquo ou mesmo como ldquoacontecimento apropriativordquo (GADAMER 2007 p 93) Nesta tensatildeo da diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica onde estaacute em jogo o ocultamento e desocultamento do ser o ldquoo mundo mundardquo (conforme a linguagem hermenecircutica do jovem Heidegger) Com a recolocaccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica nos deparamos com o proacuteprio fundamento da essecircncia do Dasein ou seja com o seu ser e estar na transcendecircncia Eacute neste sentido que declara Heidegger

Se entretanto por outro lado o elemento distintivo do ser-aiacute reside no fato de se relacionar com ente compreendendo o ser entatildeo o poder distinguir no qual a diferenccedila ontoloacutegica se torna faacutetica deve ter fincado a raiz de sua proacutepria

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possibilidade no fundamento da essecircncia do ser-aiacute A este da diferenccedila ontoloacutegica designamos jaacute nos antecipando transcendecircncia do ser-aiacute (HEIDEGGER 2008 p 146)

Tendo em vista portanto a disposiccedilatildeo da diferenccedila

ontoloacutegica na dimensatildeo da experiecircncia faacutetica o que Heidegger denomina como ocircntico visa designar a regiatildeo de abertura do ente seu ldquoacircmbito revelador natildeo predicativordquo Com isso a possibilidade de toda predicaccedilatildeo vaacutelida em nosso ser cotidiano estaacute enraizada nesta abertura preacute-predicativa que Heidegger denomina de verdade ocircntica Eacute nesta abertura ocircntica que a verdade da enunciaccedilatildeo (entendida como adequaccedilatildeo e conformidade da coisa com o conhecimento) tatildeo necessaacuteria para sustentaccedilatildeo do edifiacutecio das ciecircncias positivas encontra sua possibilidade radical

Entretanto esta abertura ocircntica eacute por sua vez iluminada e conduzida por uma compreensatildeo do ser Segundo Heidegger ldquoDesvelamento do ser eacute o que primeiramente possibilita a manifestaccedilatildeo do ente Esse desvelamento como verdade sobre o ser eacute chamado verdade ontoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2008 p 143) Esta compreensatildeo do ser natildeo eacute produto de uma conceituaccedilatildeo por isso mesmo eacute preacute-ontoloacutegica ou preacute-conceptual Toda e qualquer tentativa de conceituaccedilatildeo do ser parte do proacuteprio cerne da compreensatildeo preacute-ontoloacutegica Isto se daacute quando o ser preacute-ontologicamente compreendido eacute tematizado e problematizado pela proacutepria compreensatildeo preacute-ontoloacutegica Tais tentativas de conceituaccedilatildeo do ser engendram os ldquoconceitos fundamentaisrdquo das ciecircncias pois acabam por delimitar um campo especiacutefico ldquocomo aacuterea de objetivaccedilatildeo por meio do conhecimento cientiacuteficordquo (HEIDEGGER 2008 p 144)

Para Heidegger os niacuteveis e modulaccedilotildees da verdade ontoloacutegica que se estendem entre a compreensatildeo preacute-

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ontoloacutegica e as tentativas de conceituaccedilatildeo do ser traem ldquoa riqueza daquilo que como verdade originaacuteria fundamenta toda verdade ocircnticardquo (HEIDEGGER 2008 p 145) Esta traiccedilatildeo que ao mesmo tempo eacute fuga do solo originaacuterio eacute decisiva para constituiccedilatildeo das ciecircncias positivas Sendo precisamente esse renitente desvio do elemento autenticamente ontoloacutegico a condiccedilatildeo formadora do pensamento ocidental Eacute neste sentido que Spengler ao identificar na civilizaccedilatildeo o uacuteltimo estaacutegio de uma cultura define tal estaacutegio como ldquodecrepitude espiritualrdquo e ldquometroacutepole petrificada petrificanterdquo Ora eacute por intermeacutedio da petrificaccedilatildeo da verdade do ser que a civilizaccedilatildeo ocidental lanccedilou a pedra angular do conhecimento cientiacutefico A petrificaccedilatildeo da compreensatildeo preacute-ontoloacutegica do ser possibilita o comportamento para com o ente em sua abertura ocircntica O modo como o pensamento escoa da experiecircncia ontoloacutegica fundamental para uma compreensatildeo ocircntica do ser demarca o desvio que seraacute superado na experiecircncia faacutetica da vida Este desvio ontoloacutegico que no acircmbito da experiecircncia faacutetica da vida eacute caracterizado como a queda na facticidade eacute o que define o esquecimento do ser pela racionalidade metafiacutesica Tal desvio eacute caracterizado por Heidegger em ldquoSer e Tempordquo quando este afirma que

O ser dos entes natildeo ldquoeacuterdquo em si mesmo um outro ente O primeiro passo filosoacutefico na compreensatildeo do problema do ser consiste em ldquomithoacuten tina diegeisthairdquo ldquoNatildeo contar estoacuteriasrdquo significa natildeo determinar a proveniecircncia do ente como um ente reconduzindo a um outro ente como se o ser tivesse o caraacuteter de um ente possiacutevel (HEIDEGGER 2005 p 32)

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4 O problema do ser e o acesso agrave dimensatildeo primordial

A tentativa de nos colocarmos no limiar do

problema do ser (atividade que Heidegger caracteriza como elaborar a colocaccedilatildeo da questatildeo) eacute determinante para compreendermos a intensidade com que a experiecircncia faacutetica da vida responde agrave problemaacutetica ontoloacutegica Para Heidegger a tradiccedilatildeo natildeo apenas faltou com a resposta mas acima de tudo foi incapaz de pensar a questatildeo ou mesmo de sofrer sua inquietaccedilatildeo O caraacuteter problemaacutetico do ser que outrora deu focirclego ao despertar da atitude questionante dos antigos pensadores gregos foi emudecido pelos escombros da excessiva especulaccedilatildeo teoacuterica-objetivante da tradiccedilatildeo filosoacutefica Sendo assim a recolocaccedilatildeo da questatildeo e re-estabelecimento da situaccedilatildeo problemaacutetica face ao ente em seu ser nos instala na esfera da escuta essencial situaccedilatildeo onde se faz antecipadamente presente aquilo que se questiona na questatildeo ndash o ser Estando pois assim situados ndash postados na esfera da escuta essencial ndash eacute que poderemos nos colocar sob o influxo da afliccedilatildeo gerada pela problematicidade do ente em seu ser A despeito deste niacutevel de experiecircncia do pensamento fonte fecunda de todo autecircntico filosofar Nietzsche expressa atraveacutes de seu Zaratustra o seguinte

Oacute solidatildeo Solidatildeo paacutetria minha Quatildeo terna e bem aventurada me fala a tua voz Noacutes natildeo interrogamos um ao outro natildeo reclamamos um ao outro passamos um ao outro aberto por portas abertas Pois contigo tudo eacute aberto e claro e mesmo as horas correm aqui com peacutes mais leves De fato no escuro o tempo eacute mais pesado que na luz Aqui se abrem para mim as palavras e as arcas de palavras de todo ser todo o ser quer vir a ser

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palavra todo vir-a-ser quer comigo aprender a falar (NIETZSCHE 2014 p 176)

Esta paacutetria caracteriza o solo da experiecircncia

ontoloacutegica primordial donde se desarraiga as tendecircncias do comportamento teoacuterico-destemporalizante Sob o peso do desamparo que se impotildee nesta esfera da escuta essencial as palavras da erudiccedilatildeo cientiacutefica-objetivante ndash palavras que estropiam a visatildeo originaacuteria dos fenocircmenos ndash satildeo dissipadas E na clarividecircncia desta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial onde a face problemaacutetica do ser se desvela a luz da racionalidade paradigmaacutetica eacute obliterada e a fugaz temporalidade eacute sentida com pernas de chumbo Apenas sob o influxo de uma experiecircncia de tal niacutevel eacute que o pensamento estaraacute preparado para ldquopocircr-se a caminhordquo ou seja estaraacute preparado para caminhar nas ldquocercanias do serrdquo (HEIDEGGER 2008 p 357)

Por isso para compreendermos a experiecircncia faacutetica da vida como alternativa de acesso agrave questatildeo fundamental da filosofia eacute mister delinearmos aquela situaccedilatildeo de sintonia com a problemaacutetica ontoloacutegica a partir da qual poderemos nos esquivar daquela conceptualidade dogmaacutetica da tradiccedilatildeo que dispensou o caraacuteter problemaacutetico do ser

Em ldquoSer e Tempordquo o trabalho de uma elaboraccedilatildeo da colocaccedilatildeo da questatildeo do ser nos remete imediatamente agrave necessidade de tornar transparente o ser daquele que questiona ou seja o Dasein 4 No periacuteodo que compreende os anos de Friburgo o constructo Dasein tal como o encontramos em ldquoSer e Tempordquo ainda natildeo havia sido plenamente tematizado o que natildeo implica dizer que os seus

4 Sobre isto afirma Heidegger ldquoA colocaccedilatildeo expliacutecita e transparente da questatildeo sobre o sentido do ser requer uma explicaccedilatildeo preacutevia e adequada de um ente (pre-senccedila) no tocante a seu serrdquo (HEIDEGGER 2005 p 33)

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elementos constitutivos jaacute natildeo estivessem plenamente concebidos Eacute sob a dimensatildeo da experiecircncia faacutetica da vida que a explicitaccedilatildeo do Dasein seraacute antecipada nos anos que compreendem o pensamento do jovem Heidegger A experiecircncia faacutetica da vida nos fornece um protoacutetipo daquela mesma ldquodepuraccedilatildeo ontoloacutegica da subjetividaderdquo (cf HEIDEGGER 2005 p 82) que o Dasein concretizaraacute em ldquoSer e Tempordquo Por intermeacutedio de uma tal depuraccedilatildeo que em si mesma consiste numa criacutetica fenomenoloacutegica agrave transcendentalidade eacute que o questionamento do ser obteacutem sua orientaccedilatildeo ou seja abre-se um horizonte de visualizaccedilatildeo preacutevia do procurado na questatildeo do ser A experiecircncia da problematicidade do ser eacute tatildeo originaacuteria quanto o elemento problemaacutetico Deste modo em consonacircncia com o jovem Heidegger um autecircntico questionamento ontoloacutegico soacute pode ser possiacutevel quando proveacutem de um inquietante situar-se na esfera da compreensibilidade faacutetica da vida O desvelar da face problemaacutetica do ser e a partir disto a colocaccedilatildeo de sua questatildeo por si soacute jaacute nos coloca na dimensatildeo da experiecircncia faacutetica da vida Pois o despertar da questatildeo fundamental jaacute traz consigo a dimensatildeo preacute-compreensiva da resposta

A experiecircncia faacutetica da vida eacute apresentada pelo jovem Heidegger como alternativa que responde a questatildeo fundamental ignorada pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e deste modo apresenta-se como caminho para superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica [A metafiacutesica sempre tangenciou mas natildeo foi capaz de acessar a dimensatildeo originaacuteria da filosofia] O proacuteprio delineamento da situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial onde o ser se desvela como problema jaacute implica numa superaccedilatildeo Compreender o problema do ser eacute estar situado sob o influxo da inquietaccedilatildeo que o proacuteprio ser gera a partir de seu caraacuteter problemaacutetico

Entatildeo de que modo podemos elucidar a situaccedilatildeo na qual o problema fundamental da filosofia se torna latente Que situaccedilatildeo eacute esta que aqui nos referimos

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Falamos haacute pouco de uma ldquosituaccedilatildeo ontoloacutegico-existencialrdquo e com isto jaacute pressupomos a ordem e a natureza desta situaccedilatildeo As designaccedilotildees ldquoontoloacutegicordquo e ldquoexistencialrdquo satildeo tautoloacutegicas no contexto do pensamento heideggeriano Pois para Heidegger o ontoloacutegico eacute o existencial e o existencial eacute o ontoloacutegico Entretanto a niacutetida tautologia da foacutermula ldquoontoloacutegico-existencialrdquo visa resguardar as designaccedilotildees de seu comum emprego no contexto das teorias tradicionais O ontoloacutegico-existencial delimita a situaccedilatildeo a partir da qual brota o problema do ser E portanto delimita a situaccedilatildeo-limite que abarca a compreensatildeo mediana do ser constitutiva do ser-aiacute existente ndash a preacute-compreensatildeo do ser eacute uma determinaccedilatildeo essencial da existecircncia Esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial ateacute onde sabemos natildeo eacute partilhada por nenhum outro ente a natildeo ser o ente que noacutes mesmos somos ente que eacute atingido pelo problema do ser Em ldquoSer e Tempordquo podemos observar o modo como Heidegger faz uma alusatildeo a esta situaccedilatildeo

Enquanto procura o questionamento necessita de uma orientaccedilatildeo preacutevia do procurado Para isso o sentido do ser jaacute nos deve estar de alguma maneira disponiacutevel Jaacute se aludiu noacutes nos movemos sempre numa compreensatildeo do ser Eacute dela que brota a questatildeo expliacutecita do sentido do ser e a tendecircncia para o seu conceito Noacutes natildeo sabemos o que diz ldquoserrdquo Mas jaacute quando perguntamos o que eacute ldquoserrdquo noacutes nos mantemos numa compreensatildeo do eacute sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse ldquoeacuterdquo Noacutes nem sequer conhecemos o horizonte em que poderiacuteamos apreender e fixar-lhe o sentido Essa compreensatildeo do ser vaga e mediana eacute um fato (HEIDEGGER 2005 p 31)

Esta situaccedilatildeo-limite que segundo Heidegger tem

forccedila de lanccedilar luz sobre o ser-aiacute vivente (HEIDEGGER

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2008 p 21) eacute uma situaccedilatildeo antinocircmica Nela o ser natildeo se apresenta de modo inteiramente desconhecido mas em contrapartida como algo completamente inapreensiacutevel Esta situaccedilatildeo radical na qual sempre nos movemos em cada ocasiatildeo constitutiva de nosso ser-aiacute cotidiano traz agrave tona a convocaccedilatildeo de recolocarmos a pergunta pelo ser Esta convocaccedilatildeo natildeo eacute uma temaacutetica de investigaccedilatildeo artificialmente produzida pela curiosidade acadecircmica Ao inveacutes disto eacute um problema que emerge do nosso ser-aiacute mais profundo Heidegger apresenta como epiacutegrafe de ldquoSer e Tempordquo o modo como a filosofia grega na figura de Platatildeo vivencia a fundo esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial A epiacutegrafe relata o estado de aporia de Platatildeo perante o caraacuteter problemaacutetico do ser Nela encontramos o seguinte relato

[] pois eacute evidente que de haacute muito sabeis o que propriamente quereis designar quando empregais a expressatildeo lsquoentersquo Outrora tambeacutem noacutes julgaacutevamos saber agora poreacutem caiacutemos em aporia (PLATAtildeO apud HEIDEGGER 2005 p 24)

O regresso operado pelo pensamento

fenomenoloacutegico agrave situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial visa uma introvisatildeo na dimensatildeo do viver faacutetico do ser-aiacute existente que o jovem Heidegger caracterizaraacute como experiecircncia faacutetica da vida Por meio deste posicionamento metodoloacutegico o caraacuteter fugaz e obscuro da compreensatildeo faacutetica se tornaraacute expliacutecito Na experiecircncia faacutetica da vida se delimita o acircmbito de auto-compreensatildeo da facticidade a uacutenica situaccedilatildeo a partir da qual o mundo fenomecircnico se desvela em toda a sua originariedade Esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial constitutiva do ser-aiacute faacutetico eacute uma linha tecircnue entre a morte e a vida do autecircntico filosofar Pois eacute a partir desta dimensatildeo faacutetica e situaccedilatildeo antinocircmica que eclodem as tendecircncias de obscurecimento e

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impedimento de explicitaccedilatildeo da facticidade A fenomenologia se depara com o desafio de compreender os fenocircmenos sem desgarra-los de sua dimensatildeo originaacuteria A vida faacutetica deve ser elucidada sem que o pensamento se condense em objetividades ndash uma compreensatildeo que natildeo deixa rastros Este eacute aquele posicionamento metodoloacutegico que Nietzsche ratifica na figura de Zaratustra dizendo ldquoQuando chegou tua hora mais silenciosa e te arrastou para longe de ti mesmo quando falou num malvado sussurro lsquoFala e te despedaccedilarsquordquo (NIETZSCHE 2014 p 175)

Referecircncias GADAMER Hans-Georg Verdade e Meacutetodo I traccedilos

fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica Trad Flaacutevio Paulo Meurer Petroacutepolis Vozes 2004

______________ (A) Verdade e Meacutetodo II complementos e iacutendices Trad Flaacutevio Paulo Meurer Petroacutepolis Vozes 2004

_______________ Hermenecircutica em retrospectiva Heidegger em retrospectiva Vol 1 Trad Marco Antocircnio Casanova 2 ed Petroacutepolis Vozes 2007

HEIDEGGER Martin Fenomenologia da Vida Religiosa Trad bras Enio Paulo Giachine Jairo Ferrandin Renato Kirchner Petroacutepolis Vozes 2010

_______________ Marcas do Caminho Trad bras Enio Paulo Ernildo Stein Petroacutepolis Vozes 2008

_______________ Ser e Tempo Trad bras Fausto Castilho Campinas Editora da Unicamp Petroacutepolis Vozes 2012

_______________ Ser e Tempo ndash Parte I Trad bras Maacutercia de Saacute Cavalcante Petroacutepolis Vozes 2005

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_______________ A origem da obra de arte Trad Maria da Conceiccedilatildeo Costa Lisboa Ediccedilotildees 70 1977

HEGEL Georg Wilhelm Friedrich Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas A ciecircncia da Loacutegica Vol 1 Trad Paulo Meneses Joseacute Machado Satildeo Paulo Loyola 1995

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Trad Manuela Pinto dos Santos Alexandre Fradique Morujatildeo 8 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2013

NIETZSCHE Friedrich Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2014

SPENGLER Oswald A decadecircncia do Ocidente Trad Herbert Caro Rio de Janeiro Zahar 1973

STEIN Ernildo Compreensatildeo e finitude estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana Ijuiacute Unijuiacute 2001

ZIMMERMAN Michael E Heideggerrsquos confrontation with modernity technology politics and art Indiana Indiana University Press 1990

O Sujeito a Verdade e a Criacutetica

ao Pensamento Moderno

Maacutercio Joseacute Silva Lima1

Introduccedilatildeo

O pensamento moderno eacute profundamente marcado pela questatildeo do ldquosujeitordquo ou seja o cogito cartesiano responsaacutevel pela accedilatildeo do pensar no homem Este pensamento eacute inaugurado no seacuteculo XVII por Reneacute Descartes que em suas Meditaccedilotildees Metafiacutesicas apresenta ao mundo a res cogitans que em oposiccedilatildeo agrave res extensa determina a atividade do pensamento Assim sendo seguindo ainda a dualidade socraacutetico-platocircnica (sensiacutevel-inteligiacutevel) o pensamento moderno potildee o homem numa situaccedilatildeo cujo limite eacute marcado pela relaccedilatildeo bipolar entre uma coisa que pensa e uma coisa palpaacutevel que se mensura que se observa e que possui extensatildeo

Mais tarde Immanuel Kant vai de certa forma afirmar que em mateacuteria de conhecimento esse sujeito que pensa que para ele contudo natildeo eacute uma res cogitans poderaacute realizar representaccedilotildees acerca da extensatildeo do objeto conhecidocognosciacutevel Em outras palavras esta consciecircncia presente no homem e capaz de pensar o objeto poderaacute fazerrealizar representaccedilotildees do fenocircmeno ndash mesmo que fique de fora o conhecimento sobre o nuacutemeno a coisa em si Levando em consideraccedilatildeo o raciociacutenio de Descartes e Kant acerca da accedilatildeo humana percebemos que para ambos o homem eacute possuidor de uma consciecircncia capaz de representar o mundo externo Essa consciecircncia portanto permite ao homem a constituiccedilatildeo do ldquoeurdquo pois

1 Doutorando pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN

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enquanto sujeito ele pode manipular o mundo externo e representar o fenocircmeno

Por conseguinte o sentido que orienta o pensamento moderno eacute o cartesiano Nele a realidade eacute dividida em dois grandes polos o acircmbito do sujeito e o acircmbito do objeto O sujeito por sua vez eacute a substacircncia ativa e nele o homem eacute identificado com o cogito com a coisa pensante Por sua vez o homem enquanto ente que pensa encontra-se marcado pela autonomia e pode ser capaz responsaacutevel e senhor da sua accedilatildeo Daiacute entatildeo este ente que pensa e que possui autonomia pode enfim representar Neste sentido ldquoa representaccedilatildeo eacute na verdade um voltar-se do ldquocogitordquo sobre si mesmo que assim se re-toma e entatildeo re-apresenta o objeto segundo o modo de ser do sujeitordquo (FOGEL 2009 p 66) O sujeito como medida de todas as coisas

Em plena Modernidade partiu de Martin Heidegger filoacutesofo do seacuteculo XX uma anaacutelise contundente e ao mesmo tempo intrigante acerca deste tema No segundo volume de sua obra dedicada a Nietzsche Heidegger disserta acerca da autonomia do sujeito moderno Para tanto inicia seu pensamento refletindo sobre a famosa sentenccedila de Protaacutegoras ldquoO homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo que elas satildeo das que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo (PROTAacuteGORAS apud HEIDEGGER 2007 p100) A sentenccedila seria entatildeo uma comprovaccedilatildeo do pensamento cartesiano na antiguidade Estaria o sofista Protaacutegoras assumindo uma posiccedilatildeo do homem enquanto sujeito que age sobre todas as coisas Vejamos as reflexotildees heideggerianas sobre o caso

Para Heidegger ldquocairiacuteamos em um engano fatiacutedicordquo ao tentar compreender a sentenccedila de Protaacutegoras aos moldes do pensamento cartesiano Na Modernidade acreditamos que temos acesso ao ente simplesmente pelo

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fato do ldquoeurdquo ndash o cogito enquanto sujeito que pensa ndash poder representar o objeto No entanto este modo de compreensatildeo ignora aquilo que se encontra na dimensatildeo do desvelamento do ente Poreacutem o ente muitas vezes compreendido como objeto estaacute para o homem enquanto Dasein como aquilo que se desvela aquilo que estaacute no acircmbito do aberto Para que o homem consiga representar aquilo que estaacute posto diante de si eacute preciso pois um acontecimento mais originaacuterio algo que pressupunha desvelamento

Eacute nesta perspectiva que o homem se torna a medida de todas as coisas uma vez que eacute nesta dimensatildeo do real que ele eacute tomado por aquilo que acredita representar Neste caso natildeo eacute ele quem ldquomederdquo todas as coisas no sentido de mensurar quantificar e agir sobre elas como a ciecircncia moderna faz O que a sentenccedila mostra eacute que o homem estaacute na ldquomedidardquo de todas as coisas ou seja pelo e atraveacutes do desvelamento o homem eacute tocado por todas as coisas A autonomia do sujeito aqui jaacute eacute um evento secundaacuterio Natildeo haacute um sentido que seja juiz nem dos outros entes enquanto objeto nem de seu ser enquanto consciecircncia autocircnoma ldquoO modo como Protaacutegoras define a relaccedilatildeo do homem com o ente eacute apenas uma circunscriccedilatildeo acentuada do desvelamento do ente na totalidade agrave respectiva esfera da experiecircncia do mundordquo (HEIDEGGER 2007 p 103)

Segundo o filoacutesofo alematildeo na sentenccedila de Protaacutegoras o ldquoeurdquo eacute determinado por meio de seu pertencimento ao desvelamento do ente Eacute aquilo que se desvela que aparece e se desencobre do ente que o sujeito por assim dizer pode conhecer Haacute portanto o cunho essencial do vir agrave presenccedila do ente diante do homem que natildeo subjaz a este vir agrave presenccedila e portanto natildeo eacute sujeito A verdade (aletheacuteia) possui o caraacuteter de desvelamento pois trata natildeo de uma adequaccedilatildeo do intelecto agrave coisa (veritas est adaequatio intellectus et rei) mas tatildeo somente algo proacuteprio e

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constitutivo daquilo que eacute desvelado A ldquomedidardquo de que trata a sentenccedila apresenta o sentido proacuteprio de moderaccedilatildeo a saber moderaccedilatildeo do desvelamento moderaccedilatildeo daquilo que se desvela como ente para o homem

Esta seria a maneira grega de se compreender o homem na sentenccedila de Protaacutegoras natildeo como um sujeito de quem todas as coisas dependem Natildeo como um sujeito capaz e responsaacutevel por ldquomedirrdquo ldquomoderarrdquo todo o objeto mas como um ente (Dasein) que lanccedilado ao mundo nele estaacute pelo desvelamento na medida de todas as coisas Vecirc-se por aiacute que a posiccedilatildeo metafiacutesica moderna se apresenta de forma diferente da posiccedilatildeo metafiacutesica dos gregos Para estes a concepccedilatildeo de um sujeito autocircnomo tal qual como conhecemos na Modernidade era inexistente O guerreiro por exemplo que em batalha guerreava natildeo lutava por autonomia proacutepria mas porque Ares o guiava O mancebo quando apaixonado acreditava assim estar pelo efeito devastador de Eros O proacuteprio Soacutecrates afirmava possuir um Daemon uma espeacutecie de gecircnio pessoal que lhe orientava Ou seja sempre estavam agrave medida de algo exterior a eles Este algo exterior Heidegger chama o que se desvela o ser

A partir do pensamento cartesiano o conceito de ldquosujeitordquo ndash antes Hypokeimenon depois Subiectum ndash encontra-se essencialmente ligado ao homem e justamente nesta perspectiva os demais entes se transformam em objetos desse homemsujeito Agora diferentemente de outrora o Subiectum natildeo eacute mais o nome nem o conceito utilizado para definir os entes animais plantas pedra O Subiectum transformara-se em Sujeito e o sujeito concerne agravequilo que eacute atribuiccedilatildeo do homem enquanto fundamento de todo o representar Aqui o conhecer adquire tambeacutem uma nova compreensatildeo pois na perspectiva cartesiana conhecer eacute aquilo que de forma indubitaacutevel eacute representado pelo sujeito Para isso torna-se importante a existecircncia do meacutetodo (methodus) ldquonome para o pro-cedimento assegurador e

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conquistador que se abate sobre o ente a fim de asseguraacute-lo como objeto para o sujeitordquo (HEIDEGGER 2007 p 127)

Com o homem sendo essencialmente ldquosujeitordquo capaz de representar os entes enquanto objeto e a ldquoverdaderdquo sendo compreendida enquanto uma certeza derivada da accedilatildeo calculadora este mesmo homem passa a ter uma relaccedilatildeo de conquista e de assenhoramento com o mundo circundante Aqui a sentenccedila de Protaacutegoras possui um valor diferente daquele estabelecido pelo modo grego de pensar No modo cartesiano eacute o homem quem atribui o padratildeo de medida Eacute ele quem determina ldquoa partir de si e em direccedilatildeo a si mesmordquo aquilo que pode ser considerado acerca do mundo enquanto objeto Entretanto Heidegger nos chama atenccedilatildeo para o fato de que o homem moderno natildeo seja considerado como um mero ldquoeu egoiacutesta isoladordquo mas um ldquosujeitordquo lanccedilado a caminho do caacutelculo e da representaccedilatildeo ilimitada do ente

Portanto com base no exposto podemos demonstrar o modo como Heidegger distingue as representaccedilotildees metafiacutesicas fundamentais no pensamento de Protaacutegoras e de Descartes Segundo ele

1 Para Protaacutegoras o homem eacute determinado em seu ser-proacuteprio por meio da pertinecircncia agrave esfera daquilo que eacute desvelado Para Descartes o homem eacute determinado enquanto si proacuteprio por meio da retomada do mundo no representar do homem 2 Para Protaacutegoras a entidade do ente eacute ndash no sentido da metafiacutesica grega ndash o presentar-se no desvelado Para Descartes a entidade significa representidade por meio do e para o sujeito 3 Para Protaacutegoras a verdade significa desvelamento daquilo que se presenta Para Descartes a certeza da representaccedilatildeo que se re-presenta e assegura

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4 Para Protaacutegoras o homem eacute a medida de todas as coisas no sentido da restriccedilatildeo comedida agrave esfera do desvelamento e aos limites do velado Para Descartes o homem eacute a medida de todas as coisas no sentido da presunccedilatildeo da supressatildeo dos limites da representaccedilatildeo em direccedilatildeo a certeza que se assegura de si O padratildeo de medida submete tudo aquilo que pode valer como sendo ao caacutelculo da representaccedilatildeo (HEIDEGGER 2007 p 128)

A criacutetica ao Eu-sujeito como causa da accedilatildeo Anterior ao pensamento de Heidegger na primeira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral Nietzsche nos assevera que eacute sob a seduccedilatildeo da linguagem que entendemos ndash ou mal entendemos ndash que em todo atuar atua um atuante Segundo ele no entanto natildeo haacute um ator por traacutes do ato Desse modo eacute somente sob a seduccedilatildeo da linguagem que podemos dizer por exemplo que o raio brilha visto que o raio (o corisco) natildeo eacute um sujeito que antecede o brilhar (o claratildeo) Natildeo existe um substrato um ldquoserrdquo que atua e faz acontecer (NIETZSCHE 2009 p 33) O agente pelo qual compreendemos na Modernidade a saber um sujeito que pratica a accedilatildeo eacute apenas uma ldquoficccedilatildeordquo que acrescentamos agrave accedilatildeo A accedilatildeo jaacute eacute tudo Noacutes modernos duplicamos a accedilatildeo pois a tratamos como causa e efeito

E assim se comporta a nossa ciecircncia Acreditamos que no seu desenvolver-se haacute uma causa e um efeito ou seja um sujeito e um objeto que reage a tal accedilatildeo Mas de fato natildeo eacute isso que ocorre De acordo com Nietzsche o eu-sujeito que age que pensa e que faz acontecer eacute somente uma construccedilatildeo gramatical criada pela linguagem Eacute aquilo que ele denomina como uma ldquocrenccedila da nossa razatildeordquo Em A Vontade de Poder o sujeito eacute apontado como uma invenccedilatildeo ldquonatildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais

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inventado posto por traacutesrdquo (NIETZSCHE 2008 sect 481 p 260)

O sujeito eacute entatildeo o inteacuterprete que noacutes modernos pomos por traacutes da interpretaccedilatildeo Esta accedilatildeo se refere ao proacuteprio pensar Ao pensar acreditamos que exista um eu como causa desse pensar Pensamos que o pensamento parte de uma autonomia da consciecircncia que decide o que pensar como pensar e quando pensar Acostumamos-nos a proceder desse modo todavia para Nietzsche ldquopor mais que essa ficccedilatildeo possa agora ser costumeira e indispensaacutevel ndash isso somente natildeo prova nada contra o seu caraacuteter fictiacutecio uma crenccedila pode ser condiccedilatildeo da vida e apesar disso ser falsardquo (NIETZSCHE 2008 sect 483 p 260) Contudo eacute no paraacutegrafo 484 da mesma obra que o filoacutesofo traacutegico aguccedila sua criacutetica chegando ao cartesianismo ou seja ao modelo de pensamento cartesiano que entende que por traacutes de todo ato inclusive o ato de pensar haja um eu um sujeito que seja a causa da accedilatildeo2 Assim Nietzsche utiliza a palavra latina Cartesius para se referir a Descartes ao declarar que ldquopelo caminho de Cartesius natildeo se chega a algo absolutamente certo mas soacute a um fato de uma crenccedila muito forterdquo (NIETZSCHE 2008 sect 484 p 261) Por isso ao pensar imaginamos que haja um pensante por traacutes ndash penso logo existo (cogito ergo sum) ndash postulamos a crenccedila em uma substacircncia a priori em algo que subjaz ao pensar entretanto ao mesmo tempo somos acolhidos por uma crenccedila Como jaacute foi dito anteriormente esta crenccedila para Nietzsche proveacutem de uma accedilatildeo formulada pelo nosso haacutebito gramatical A constituiccedilatildeo da nossa linguagem definida a partir da relaccedilatildeo sujeitopredicado remete para todo fazer um agente causador Foi esta maneira gramatical de pensar que levou o homem (enquanto o sujeito que age

2 Embora Descartes nunca houvesse utilizado em suas Meditaccedilotildees a palavra sujeito

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o eu consciente) a ldquoagirrdquo sobre a natureza (encarada nas matildeos do sujeito como um objeto) e a interpretar-se como a medida de todas as coisas Passamos a compreender o mundo a partir da loacutegica do sujeito e objeto aquele que age e pratica a accedilatildeo e aquilo que sofre a accedilatildeo que eacute resultado da accedilatildeo e que pode ser algo observaacutevel mensuraacutevel e manipulaacutevel E assim se comporta o homem moderno sobretudo naquilo que concerne agrave atividade cientiacutefica Nessa perspectiva Nietzsche vai dizer que o sujeito eacute a terminologia que nossa crenccedila gramatical construiu para fundamentar uma unidade subjacente que determina o real A partir dessa unidade subjacente acreditamos ser capazes de descrever a realidade e atribuir a ela valor de verdade Achamos que estamos agrave frente de todas as coisas Somos impelidos a imaginar que como agente causador podemos comandar a natureza determinaacute-la e fazecirc-la se comportar conforme nossas accedilotildees

ldquoSujeitordquo ldquoobjetordquo ldquopredicadordquo ndash essas separaccedilotildees foram feitas e agora recobrem como esquemas todos os fatos que aparecem A falsa observaccedilatildeo fundamental eacute a de que creio que sou eu quem faz algo que sofre algo quem ldquotemrdquo algo quem ldquotemrdquo uma propriedade (NIETZSCHE 2008 sect 549 p 284)

Nietzsche ainda pergunta se a crenccedila no conceito de sujeito e predicado natildeo seria uma grande tolice O sujeito como causa natildeo seria um deliacuterio Para ele natildeo possuiacutemos nenhuma experiecircncia de uma causa O que ocorre eacute que esse conceito causa nasce da convicccedilatildeo subjetiva de que noacutes somos a causa Quando falamos caminhamos levantamos o braccedilo acreditamos que somos a causa Entretanto para Nietzsche isso incorre em erro em mal entendido pois procuramos erroneamente um agente para a causa para o fazer e para o acontecer

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ldquoCausardquo natildeo acontece em absoluto no tocante a alguns casos em que nos pareceu dada a partir dos quais a representamos como compreensatildeo do acontecer estaacute provado o auto-engano Nosso ldquoentendimento de um acontecerrdquo consiste em que um sujeito inventado eacute responsabilizado pelo fato de que algo tenha acontecido e de como aconteceu (NIETZSCHE 2008 sect 551 p 285)

Em Aleacutem do Bem e do Mal Nietzsche ainda faz as

seguintes indagaccedilotildees ldquoDe onde retiro o conceito de pensar Por que acredito em causa e efeito O que me daacute o direito de falar em um Eu como causa e por fim de um Eu como causa de pensamentordquo (NIETZSCHE 2005 sect 16 p 21) Jaacute no paraacutegrafo seguinte o filoacutesofo alematildeo reafirma que isso eacute supersticcedilatildeo De acordo com ele acreditar em um sujeito que controla seus proacuteprios pensamentos eacute pura supersticcedilatildeo uma vez que o pensamento vem quando ele quer e natildeo quando eu quero Nesse caso o sujeito eu natildeo eacute a condiccedilatildeo do predicado penso (NIETZSCHE 2005 sect 17 p 22)

O pensar e consequentemente o agir proveacutem natildeo de uma autonomia do sujeito de um eu que pensa ou que pratica uma determinada accedilatildeo Para que se decirc pensamento e accedilatildeo eacute preciso que se decirc primeiramente afecccedilatildeo ou seja um afeto (pathos) que leve o homem a obedecer A obediecircncia soacute se daacute na escuta que eacute proacutepria do afeto Estar na escuta eacute estar disponiacutevel para a afecccedilatildeo para o instante extraordinaacuterio em que a vida nos toca e nos faz sentir como agentes causadores Eacute soacute mediante a afecccedilatildeo que podemos produzir pensamentos praticar a accedilatildeo e ateacute mesmo achar que somos o eu-sujeito responsaacutevel pela causa de tudo

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A questatildeo da verdade As noccedilotildees modernas de sujeito e objeto levaram-nos a compreender a verdade como o que eacute proacuteprio e constitutivo daquilo que se pode observar mensurar e quantificar A verdade se apresentou como o resultado de uma operaccedilatildeo realizada por meio de um meacutetodo capaz de descrever de forma minuciosa aquilo que se estaacute verificando Se antes a verdade consistia naquilo que era definido pelo pensamento metafiacutesico agora jaacute na Modernidade o que prevalece eacute aquilo que concerne agrave atividade cientiacutefica As ldquoverdadesrdquo passaram por meio da anaacutelise cientiacutefica a serem comprovadas legitimadas e validadas Houve entatildeo uma inversatildeo de criteacuterios O que antes era tarefa da metafiacutesica agora eacute campo das ciecircncias O que cabia agrave reflexatildeo agrave contemplaccedilatildeo e agrave deduccedilatildeo definir agora eacute objeto da anaacutelise meticulosa da observaccedilatildeo empiacuterica e da descriccedilatildeo cientiacutefica E para tanto foi de fundamental importacircncia as noccedilotildees modernas de sujeito e objeto Um sujeito capaz de pensar e de agir de forma independente autocircnomo que se julgasse liberto de preconceitos capaz de manipular o objeto e extrair dele todos os seus misteacuterios Mas seria a ciecircncia moderna capaz de descrever a realidade e retirar dela sua verdade Em que consiste a verdade Seria a verdade o produto de uma metodologia Natildeo seria a verdade um valor que atribuiacutemos agraves coisas Concluiacutemos que sim O proacuteprio Nietzsche no paraacutegrafo 481 de A Vontade de Poder quando diz que ldquonatildeo haacute fatos soacute interpretaccedilotildeesrdquo oferece-nos subsiacutedios para sustentar a hipoacutetese de que aquilo que fundamenta a verdade na era moderna pode estar profundamente ligado ao contexto cultural de uma eacutepoca A verdade pode estar inserida no acircmbito das atividades culturais e como tal receber criteacuterios

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de valores que determinam natildeo apenas a verdade mas tambeacutem a falsidade o bem e o mal o melhor e o pior

Mas o que dizer das verdades apresentadas explicadas e comprovadas pela ciecircncia moderna como por exemplo a lei da gravidade ou o movimento dos astros O que dizer daquilo que a ciecircncia informa acerca do planeta terra dos ecossistemas e da anatomia humana Haveria uma verdade legiacutetima naquilo que as ciecircncias declaram Para responder novamente recorremos agravequilo que estaacute ligado agrave cultura3 Eacute o modo de pensar e de agir de uma eacutepoca e de um povo quem define os criteacuterios de verdades Assim sendo verdades que jaacute foram apresentadas pela proacutepria ciecircncia jaacute chegaram a ser reavaliadas a exemplo da exclusatildeo de Plutatildeo da categoria de planeta do nosso sistema solar Mas haveria entatildeo verdades absolutas Falar de verdades absolutas eacute buscar explicaccedilotildees acerca daquilo que fundamenta o real Esse eacute o papel da filosofia desde suas origens na Greacutecia Antiga a busca pelo fundamento daquilo que rege o real Todavia para formular seus conceitos os filoacutesofos foram afetados tambeacutem pela cultura de sua eacutepoca Assim as verdades filosoacuteficas foram elaboradas a partir de conceitos proacuteprios mas que de alguma forma foram influenciados pela cultura A razatildeo filosoacutefica ao longo de toda histoacuteria da filosofia buscou alcanccedilar a verdade absoluta do real mas pouco percebeu que todos os conceitos formulados sobre tal verdade tiveram como pano de fundo a influecircncia cultural No Craacutetilo Platatildeo diz que verdadeiro eacute o discurso que diz as coisas como satildeo Jaacute seu contraponto a saber o

3 Cultura eacute aqui compreendida como o conjunto de modos de vida regras e comportamento adquiridos pelo homem a partir de sua convivecircncia em sociedades Satildeo os costumes haacutebitos linguagens e conhecimentos desenvolvidos por um determinado povo em um determinado lugar e em uma determinada eacutepoca

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falso eacute aquele que diz as coisas como natildeo satildeo A grande questatildeo desta sentenccedila estaacute contida justamente no seu discurso Dizer por meio do discurso o que as coisas satildeo ou natildeo satildeo e daiacute extrair sua veracidade requer a formulaccedilatildeo de juiacutezos e os juiacutezos por sua vez satildeo determinados e construiacutedos culturalmente Nesse caso o discurso sobre a verdade daquilo que eacute ou natildeo eacute prefigura uma tomada de posiccedilatildeo que desde jaacute muito antes eacute estabelecida pela cultura Tambeacutem Aristoacuteteles certa vez mencionou que quando negamos aquilo que eacute e afirmamos aquilo que natildeo eacute incorremos no falso Em contrapartida ao afirmarmos aquilo que eacute e negarmos aquilo que natildeo eacute estamos no acircmbito da verdade Entretanto para negarmos ou afirmarmos algo necessitamos de toda uma gama de experiecircncias que soacute pode nos ser transmitida culturalmente Isto quer dizer que a verdade ou a falsidade das coisas dependem do juiacutezo que eacute formado sobre elas Tal juiacutezo por sua vez proveacutem daquilo que absorvemos de forma cultural atraveacutes da histoacuteria Em outras palavras queremos dizer que ao sermos lanccedilados ao mundo somos situados num ponto do tempo e do espaccedilo e com isso de forma involuntaacuteria absorvemos os costumes os haacutebitos o pensamento a linguagem o comportamento as crenccedilas e o raciociacutenio que nos levam a elaborar criteacuterios de verdades O sujeito que ao observar mensurar e descrever o objeto delimita sua falsidade ou sua verdade jaacute se encontra contagiado por uma carga cultural que determina sua posiccedilatildeo diante da verdade E o que estaria por traacutes disso tudo A abertura a afecccedilatildeo Pela abertura o homem eacute afetado por criaccedilatildeo Em seguida ele passa a criar modos de vida costumes haacutebitos conhecimentos linguagem Tambeacutem surgem novas interpretaccedilotildees perspectivas e valores e satildeo justamente estes valores que iratildeo delimitar os criteacuterios utilizados por um determinado grupo social para definir aquilo que eacute

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compreendido como verdade Neste sentido falar de verdade tal como a compreendemos na Modernidade eacute falar de um juiacutezo pois esta verdade implica uma natildeo-verdade e quando afirmamos uma ou outra o que estaacute por traacutes da nossa decisatildeo eacute aquilo que nos foi passado pela cultura de um tempo de um povo e de um lugar em que estamos inseridos No fundo natildeo somos noacutes que decidimos acerca da verdade seja a partir de nossa autonomia como sujeitos ou a partir de uma verdade absoluta que nos eacute revelada Apenas somos influenciados pela nossa cultura e a partir dela interpretamos as coisas e a chamamos de falsas ou verdadeiras O que jaacute eacute um evento secundaacuterio Consideraccedilotildees finais

Ao que parece a autonomia do sujeito ainda continua sendo uma temaacutetica natildeo superada Filoacutesofos contemporacircneos na linha de Nietzsche e Heidegger como Foucault Derrida e Deleuze permaneceram nessa criacutetica do sujeito ndash autocircnomo dominador e calculador do real ndash e foram por vezes denominados poacutes-modernos Por outro lado a proposta de compreender o homem como sujeito dotado da capacidade de representar impulsionou a forma como muitos refletiram sobre a metafiacutesica moderna O bom de tudo isso talvez seja a natildeo superaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico pois atraveacutes do choque de ideias e da accedilatildeo dialeacutetica do pensamento a filosofia permanece viva para o surgimento e criaccedilatildeo de novas reflexotildees e como diria o proacuteprio Nietzsche novas perspectivas

No que se refere agrave verdade concluiacutemos que esta se encontra profundamente ligada agrave questatildeo cultural Eacute a cultura de uma eacutepoca e de um povo quem determina os criteacuterios de verdades a serem seguidos como referencial Foi assim na Antiguidade na Idade Meacutedia e agora na Modernidade ndash ou Poacutes-modernidade Acreditamos que eacute o

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modo de pensar de uma eacutepoca que influencia diretamente na forma como pensamos Eacute a partir daiacute que elaboramos por meio de perspectivas aquilo que nos aparece como a verdade ndash mesmo que com o passar dos tempos tal verdade caia em desuso

Isso no entanto natildeo se afasta daquilo que Heidegger nos apresentou como desvelamento O desvelamento eacute aquilo que proporciona o desenvolvimento da cultura de onde a partir dela proveacutem os valores de verdades A uacutenica diferenccedila eacute que aquilo que compreendemos por verdade jaacute eacute tambeacutem um fenocircmeno secundaacuterio causado pelo desvelamento Neste caso haacute uma verdade (aleacutetheia) por traacutes de nossa verdade Haacute um desvelamento que nos leva culturalmente a formar os criteacuterios de nossas verdades Referecircncias DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Traduccedilatildeo de Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) FOGEL Gilvan Que eacute filosofia filosofia como exerciacutecio de finitude Aparecida-SP Ideias amp letras 2009 HEIDEGGER Martin Nietzsche II Traduccedilatildeo de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2007 KANT Immanuel Criacutetica da razatildeo pura Traduccedilatildeo de Valeacuterio Rohden e Udo Baldur Moosburger Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

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NIETZSCHE Friedrich Wilhelm A genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das letrascompanhia de bolso 2009 ___________________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das letrascompanhia de bolso 2005 ___________________________ A vontade de poder Traduccedilatildeo de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

Consideraccedilotildees sobre o Conceito

de Existecircncia em S A

Kierkegaard

Ramon Boliacutevar C Germano1

Introduccedilatildeo Natildeo seria fora de propoacutesito parafraseando o

proacuteprio Kierkegaard em sua dissertaccedilatildeo2 falar em um conceito de existecircncia constantemente referido a Kierkegaard Poderiacuteamos ateacute ir mais longe e dizer que se o conceito de ironia entrou no mundo com Soacutecrates o conceito de existecircncia fez sua entrada na contemporaneidade com Kierkegaard Natildeo eacute a toa que o epiacuteteto de ldquopai do existencialismordquo foi colado agraves costas do filoacutesofo como que para zombar de seu esforccedilo ndash assim como nas escolas os alunos mais perversos colam nas costas de outro sem que este o perceba um pedaccedilo de papel com a expressatildeo ldquochute-merdquo para que entatildeo possam chutaacute-lo

O fato eacute que embora Kierkegaard talvez natildeo seja o ldquopai do existencialismordquo sua obra natildeo pode ser pensada fora de seu esforccedilo em direccedilatildeo agrave existecircncia Natildeo se pode negar sem que essa negaccedilatildeo ldquoviolente o fenocircmenordquo que a obra deste autor engolfa-se na existecircncia concreta e a partir dela dirige-se ao indiviacuteduo singular ao ldquohomem de boa vontaderdquo que nos Discursos Edificantes eacute chamado de ldquomeu leitorrdquo e de ldquomeu refuacutegiordquo

Com isso estamos convencidos de que todo e qualquer percurso pela obra de Kierkegaard em muito

1 Doutorando em Filosofia (UFPB-UFPE-UFRN)

2 O Conceito de Ironia constantemente referido a Soacutecrates (KIERKEGAARD 2010b)

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ganharia se compreendesse a existecircncia natildeo soacute como pano de fundo mas como o palco onde tudo se daacute Com efeito toda a sua atividade de escritor parece orientar-se rumo agrave afirmaccedilatildeo da existecircncia ldquopartindo do filosoacutefico do sistemaacutetico para chegar ao simples isto eacute ao existencialrdquo (KIERKEGAARD 2002 p 127) 3

Neste trabalho devemos lanccedilar um olhar mais detido sobre o conceito de existecircncia numa tentativa de elucidaccedilatildeo filosoacutefica do conceito mesmo a partir da compreensatildeo preacutevia da existecircncia como devir e como inter-esse Mas jaacute comeccedilamos no risco de errar Pois quando absorvemos a existecircncia no conceito quando tratamos a existecircncia conceitualmente o que fazemos eacute de fato falsificar a existecircncia transformando-a em algo diferente do que ela de fato eacute Pois o que realmente importa na existecircncia natildeo eacute o ato de pensaacute-la mas o ato de existir nela Em todo caso como natildeo deixamos de existir enquanto pensamos nosso trabalho eacute legiacutetimo e justificado ndash desde que tenhamos sempre em mente que a existecircncia soacute pode ser tratada ldquoexistencialmenterdquo isto eacute que ao tratarmos dela precisamos permanecer continuamente atentos ao fato de que noacutes que investigamos e pensamos ao mesmo tempo existimos e que como tais devemos pensar como existentes e natildeo como seres fantaacutesticos que como gosta de dizer Kierkegaard querem viver sub specie aeterni

Na primeira parte introduzimos a reflexatildeo sobre a existecircncia a partir da correlaccedilatildeo entre os conceitos de devir e liberdade Em seguida (ponto 2) analisamos a determinaccedilatildeo

3 Sempre que possiacutevel citamos as traduccedilotildees de Kierkegaard para o portuguecircs sobretudo as do professor e tradutor Aacutelvaro Luiz M Valls Como ainda estamos distantes de uma ediccedilatildeo das obras completas em nossa liacutengua tivemos que traduzir algumas passagens a partir da ediccedilatildeo digital criacutetica dos Soslashren Kierkegaards Skrifter (SKS) disponiacutevel no siacutetio httpsksdkforsideindholdasp Sempre referenciamos essas traduccedilotildees com a abreviatura ldquoSKSrdquo seguida do nordm do volume e da marcaccedilatildeo da paginaccedilatildeo dos Soslashren Kierkegaards Skrifter

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da existecircncia como interesse para entatildeo passarmos agrave exposiccedilatildeo da existecircncia como negatividade e esforccedilo continuado (ponto 3)

1 Devir e liberdade no Interluacutedio das Migalhas

Filosoacuteficas

O opuacutesculo intitulado Migalhas Filosoacuteficas4 a despeito de seu tom despretensioso eacute de longe uma das obras mais influentes do corpus kierkegaardiano Dizemos ldquoinfluenterdquo natildeo pelo fato de ela ter causado alguma impressatildeo nos leitores da eacutepoca em que foi publicada longe disso mas por ter lanccedilado as bases do problema geral de toda a obra5 ao mesmo tempo em que condicionaria a elaboraccedilatildeo de um dos textos mais relevantes ndash para natildeo dizer a obra capital ndash da produccedilatildeo de Kierkegaard qual seja o Poacutes-Escrito Conclusivo Natildeo Cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas

4 As Migalhas Filosoacuteficas ou um bocadinho de filosofia foram publicadas em 13 de junho1844 cinco dias antes da publicaccedilatildeo de O Conceito de Anguacutestia e dos Prefaacutecios Para as Migalhas Kierkegaard criou um pseudocircnimo Johannes Climacus que mais tarde reapareceria como o autor do Poacutes-Escrito Conclusivo Natildeo Cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas (1846) Climacus natildeo eacute um pseudocircnimo como os demais Ele possui uma biografia uma personalidade e uma psicologia proacuteprias de modo que ateacute poderiacuteamos trataacute-lo como uma personagem Em Johannes Climacus ou De Omnibus Dubitandum Est encontra-se uma descriccedilatildeo de sua vida desde a infacircncia passando pela juventude ateacute o desenvolvimento de suas proacuteprias reflexotildees filosoacuteficas Climacus se declara um pensador incapaz de servir ao Sistema Daiacute o tiacutetulo ironicamente despretensioso de seu opuacutesculo que natildeo pretende ser um sistema de filosofia mas simples Migalhas Filosoacuteficas O tiacutetulo da obra faz referecircncia a uma passagem do Hippias Maior de Platatildeo onde se lecirc ldquondash Mas Soacutecrates que pensas de nossa discussatildeo Como disse haacute pouco satildeo aparas e migalhas de argumentos reduzidos a pedacinhosrdquo (304a)

5 Sobre a enunciaccedilatildeo desse problema conferir Ponto de Vista do meu trabalho como autor (SKS 16) Em portuguecircs KIERKEGAARD 2002 pp 31-32 41 55

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Apesar do papel central desempenhado pelos cinco breves capiacutetulos que formam as Migalhas natildeo nos concentraremos aqui no ldquoexperimento teoacutericordquo de Climacus nem abordaremos os temas do paradoxo absoluto do disciacutepulo contemporacircneo e do disciacutepulo de segunda matildeo O que nos interessa eacute antes uma parte do ensaio que intermedeia os capiacutetulos IV e V e que Climacus resolveu chamar de Interluacutedio Trata-se de um ldquoparecircnteserdquo complexo no qual o tom filosoacutefico se torna mais acentuado do que no restante da obra o que jaacute se pode depreender do seu tiacutetulo que reza ldquoO Passado eacute mais Necessaacuterio do que o Futuro Ou o possiacutevel ao se tornar real tornou-se por isso mais necessaacuterio do que erardquo Ora tais perguntas jaacute indicam que o problema em questatildeo diz respeito agrave relaccedilatildeo entre possibilidade e realidade de um lado e necessidade do outro donde se percebe que o que estaacute em jogo aqui eacute em primeiro lugar a questatildeo metafiacutesica da inter-relaccedilatildeo das categorias modais (possibilidade realidade e necessidade)

A primeira parte do ensaio ndash objeto de nosso interesse aqui ndash introduz a discussatildeo sobre as categorias de modalidade a partir de um questionamento sobre a mudanccedila que caracteriza o vir a ser ou o devir (Tilblivelse) Pergunta o autor ldquoComo eacute que muda o que vem a ser ou qual eacute a mudanccedila (kinesis) proacutepria do devirrdquo (KIERKEGAARD 2008 p 105) Ora a dificuldade inicial consiste no seguinte se aquilo que vem a ser na medida em que deveacutem muda essencialmente entatildeo natildeo eacute isto mesmo que vem a ser mas se por outro lado natildeo se altera quando vem a ser entatildeo natildeo vem a ser propriamente Com outras palavras eacute preciso que haja uma mudanccedila no devir do contraacuterio natildeo seraacute devir nenhum mas natildeo uma mudanccedila na essecircncia do que deveacutem pois neste caso natildeo deveacutem mas deixa de ser o que eacute incorrendo-se assim numa μετάβασις

εἰς ἄλλο γένος (passagem para outro gecircnero)

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Assim sendo se aquilo que vem a ser precisa mudar mas natildeo em sua essecircncia Climacus precisa afirmar que ldquoesta mudanccedila [a mudanccedila do devir] natildeo eacute entatildeo mudanccedila na essecircncia (Vaeligsen) mas no ser (Vaeligren) eacute a mudanccedila do natildeo-ser para o serrdquo (SKS 4 273) No entanto este natildeo-ser que eacute abandonado pelo que vem a ser precisa tambeacutem ser existir6 do contraacuterio a mudanccedila torna-se uma ilusatildeo Entatildeo completa Climacus ldquoMas um tal ser que contudo eacute natildeo-ser eacute a possibilidade e um ser que eacute ser eacute o ser real ou a realidade e a mudanccedila do devir eacute a passagem da possibilidade agrave realidaderdquo (KIERKEGAARD 2008 p 106)

Portanto existe uma mudanccedila no ser que eacute passagem da possibilidade para a realidade sem que haja mudanccedila na essecircncia7 Mas como essa passagem acontece Sua mudanccedila seria necessaacuteria Seu movimento aconteceria na necessidade Com outras palavras o devir se daacute por necessidade ou o necessaacuterio pode devir Segundo Climacus ldquoTodo vir-a-ser eacute um padecer e o necessaacuterio natildeo pode padecer natildeo pode padecer a paixatildeo da realidade que consiste em que o possiacutevel () mostre-se como nada no instante em que vem a ser real pois a possibilidade eacute nadificada pela realidaderdquo (Id Ibid p 106) O necessaacuterio portanto natildeo pode devir e ldquoa uacutenica coisa que natildeo pode devir eacute o necessaacuterio porque o necessaacuterio eacuterdquo (Id Ibid p 106) Embora essa distinccedilatildeo entre o devir e o necessaacuterio possa parecer supeacuterflua ndash afinal natildeo eacute coisa difiacutecil notar que o necessaacuterio natildeo pode incluir em si a possibilidade caracteriacutestica do devir jaacute que eacute uma necessidade ndash o que

6 Cf KIERKEGAARD 2008 p 106

7 Talvez importe lembrar apenas a tiacutetulo de referecircncia que os dois primeiros livros da Ciecircncia da Loacutegica de Hegel em sua primeira parte (A Loacutegica Objetiva) satildeo intitulados respectivamente de ldquoA Doutrina do Serrdquo e ldquoA Doutrina da Essecircnciardquo

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estaacute por traacutes desta distinccedilatildeo eacute justamente a concepccedilatildeo segundo a qual o possiacutevel ao se tornar real tornar-se-ia por isso mais necessaacuterio do que era antes de ter-se efetivado Tal concepccedilatildeo embora erroneamente atribuiacuteda a Hegel remonta na verdade agrave Analiacutetica dos Conceitos de Kant mais precisamente agrave taacutebua das categorias assim como apresentada na Criacutetica da Razatildeo pura (B95) 8 Como se sabe para Kant a terceira categoria de cada grupo eacute resultante da unidade das outras duas precedentes Como ele mesmo escreve em B 110 ldquoHaacute sempre em cada classe um nuacutemero igual de categorias a saber trecircs () Acrescente-se a isso que a terceira categoria resulta sempre da ligaccedilatildeo da segunda com a primeira da sua classe (KANT 2001 p 114) Na classe da modalidade aparecem como primeira e segunda categorias a possibilidade (Moumlglichkeit) e a existecircncia (Dasein) sendo a terceira a necessidade (Notwendigkeit)9 No entender de Kant (B 111) ldquoa necessidade natildeo eacute mais do que a existecircncia dada pela proacutepria possibilidaderdquo (Id Ibid p 114) Eacute por isso que Climacus apoacutes diferenciar a necessidade das outras categorias modais pode perguntar ldquoEntatildeo a necessidade natildeo eacute a unidade de possibilidade e de realidaderdquo (KIERKEGAARD 2008 p 107) E responde da seguinte maneira ldquoPossibilidade e realidade natildeo satildeo diferentes na essecircncia mas no serrdquo (Id Ibid p 107) A afirmaccedilatildeo eacute simples mas diz muito Por um lado se a possibilidade e a realidade natildeo satildeo diferentes na essecircncia

8 Jon Stewart no capiacutetulo intitulado ldquoMartensenrsquos Doctrine of Immanence and Kierkegaardrsquos Transcendence in the Philosophical Fragmentsrdquo (STEWART 2003 p 336 em diante) mostra como a criacutetica de Climacus remonta agrave posiccedilatildeo kantiana e se dirige particularmente agrave Martensen e natildeo propriamente a Hegel

9 Com mais precisatildeo na classe da modalidade as categorias aparecem em pares Moumlglichkeit ndash Unmoumlglichkeit Dasein ndash Nichtsein Notwendigkeit ndash Zufaumllligkeit (B 106)

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entatildeo a passagem da primeira para a segunda natildeo constitui uma mudanccedila essencial de modo que o possiacutevel ao se tornar real natildeo se tornou por isso mais necessaacuterio do que era isto eacute diferente de si mesmo essencialmente Por outro lado se possibilidade e realidade satildeo diferentes no ser sua unidade tampouco pode resultar na necessidade uma vez que esta eacute uma determinaccedilatildeo da essecircncia (a essecircncia do necessaacuterio consiste em ser) e uma mudanccedila no ser (a passagem da possibilidade agrave realidade) natildeo pode resultar numa mudanccedila na essecircncia sem que incorramos novamente

numa μετάβασις εἰς ἄλλο γένος Com isso afirma-se em primeiro lugar que a realidade em sendo o que eacute natildeo eacute diferente na essecircncia da possibilidade ou seja a mesma contingecircncia que caracteriza o possiacutevel de maneira essencial tambeacutem deve valer para a realidade efetiva Em segundo lugar se a mudanccedila do devir eacute a passagem da possibilidade agrave realidade tal mudanccedila natildeo pode acontecer pela ou na necessidade jaacute que esta eacute absoluta e essencialmente diferente do possiacutevel e do real A implicaccedilatildeo eacute clara ldquoA mudanccedila do devir eacute a realidade a passagem acontece pela liberdade Nenhum devir eacute necessaacuterio () Todo devir acontece em liberdade natildeo por necessidaderdquo (Id Ibid p 108) Assim Climacus introduz no devir a determinaccedilatildeo da liberdade e com isso afasta daquilo que vem a ser ndash do passado que deveio do presente que deveacutem e do futuro que haacute de devir ndash a determinaccedilatildeo da necessidade Mas falar do devir como um movimento que acontece pela liberdade implica em compreendecirc-lo no interior de uma ambiguidade que engendra incerteza ou para lembrar a expressatildeo de Haufniensis10 que ldquofaz nascer anguacutestiardquo Vejamos isso de maneira mais detida Em sendo a passagem do natildeo-ser para o ser da possibilidade para a realidade o devir ndash enquanto

10 Heterocircnomo autor de O Conceito de Anguacutestia

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acontecimento na liberdade ndash conserva em si sempre a marca da contingecircncia daquilo que poderia natildeo ser ou daquilo que no que estaacute sendo natildeo eacute Trata-se da incerteza proacutepria do devir que natildeo eacute mais incerta no futuro do que no passado ou seja se aquilo que haacute de vir eacute incerto pois pode muito bem natildeo devir tambeacutem aquilo que deveio eacute igualmente incerto pois ao vir a ser natildeo se torna mais necessaacuterio do que era antes de devir Existe portanto uma negatividade proacutepria do devir que natildeo pode ser confundida com a positividade do necessaacuterio Segundo Climacus a incerteza do devir eacute dupla ldquoo nada do-que-natildeo-estaacute-sendo e a possibilidade anulada que eacute ao mesmo tempo a aboliccedilatildeo de toda outra possibilidaderdquo (Id Ibid p 118) Sendo assim a certeza do devir estaacute sempre em contradiccedilatildeo com uma incerteza essencial de modo que esta ambiguidade entre certeza e incerteza eacute a caracteriacutestica distintiva do devir O Interluacutedio natildeo vai aleacutem no tratamento especiacutefico da noccedilatildeo de devir Importa lembrar que o recorte feito por noacutes aqui se insere em uma discussatildeo muito mais ampla e que demandaria uma anaacutelise mais detalhada da obra desde que nosso objetivo fosse contextualizar a questatildeo do devir no acircmbito do problema geral das Migalhas11 Mas como o que visamos aqui eacute antes de mais uma referecircncia pontual agrave noccedilatildeo de devir ndash tendo em vista sua relaccedilatildeo com a existecircncia ndash parece-nos suficiente o que foi dito ateacute o momento como introduccedilatildeo do tema No que segue ndash ao refletimos sobre a compreensatildeo da existecircncia como interesse junto agraves anaacutelises posteriores da negatividade da existecircncia ndash a compreensatildeo do devir e de sua relaccedilatildeo com a existecircncia naturalmente se tornaraacute mais evidente Por ora eacute suficiente natildeo perdermos de vista a jaacute referida correlaccedilatildeo entre o

11 Um tratamento mais criacutetico da questatildeo pode ser encontrado no texto jaacute referido de Jon Steward (STEWART 2003 p 336 em diante) Para um tratamento mais expositivo conferir (HOWLAND 2006 pp 157-172)

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devir e a liberdade (enquanto determinaccedilatildeo fundamental do devir) o que implica em uacuteltima instacircncia na incerteza objetiva enquanto caraacuteter distintivo daquilo que vem a ser Que o indiviacuteduo existente enquanto existente estaacute continuamente em devir e por conseguinte na incerteza proacutepria do devir eacute o que veremos ao longo deste texto Passemos entatildeo ao segundo ponto sem perdermos de vista que as anaacutelises aqui visam a uma compreensatildeo mais clara do conceito de existecircncia

2 Existecircncia e (eacute) Inter-esse

Por volta do ano de 1843 ndash ano da publicaccedilatildeo de

sua primeira obra ndash Kierkegaard esboccedilara em seus papeacuteis privados os pontos de um ensaio metodoloacutegico de ampla abrangecircncia e que a nosso ver esclarece de maneira bastante pontual uma distinccedilatildeo que acompanharaacute a sua obra como um todo O esboccedilo aparece assim

Sobre os conceitos de Esse e Inter-esse Um ensaio metodoloacutegico As diferentes ciecircncias devem ser ordenadas de acordo com os diferentes modos como acentuam o ser e como a relaccedilatildeo para com o ser lhes daacute vantagens reciacuteprocas

Ontologia Sua certeza eacute absoluta ndash aqui pensamento e ser satildeo um mas em contrapartida essas ciecircncias satildeo hipoteacuteticas

Matemaacutetica

Ciecircncia-Existencial (SKS 27 271)

A primeira coisa que chama nossa atenccedilatildeo neste esboccedilo metodoloacutegico eacute o fato de Kierkegaard intitulaacute-lo de

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ldquoSobre os conceitos de Esse e Inter-esserdquo ao mesmo tempo em que omite esses termos no corpo do ldquoensaiordquo apenas falando no correspondente dinamarquecircs para Esse qual seja Vaeligren (Ser) sem se pronunciar diretamente sobre o Inter-esse Eacute preciso entatildeo buscar os significados nas entrelinhas pois tambeacutem aqui Kierkegaard se pronuncia de maneira indireta o que se pode muito bem notar pela omissatildeo da explicaccedilatildeo daquilo que ele mesmo chama de Existentiel-Videnskab (CiecircnciaSaber-Existencial) Ora a primeira conclusatildeo que podemos tirar deste esboccedilo eacute justamente a de que a ontologia e a matemaacutetica se contrapotildeem agrave ciecircncia-existencial segundo o modo em que as primeiras e a segunda acentuam o ser Pois bem se o esboccedilo quer ser um ensaio metodoloacutegico sobre os conceitos de Esse e de Inter-esse tudo indica na direccedilatildeo de que a ontologia e a matemaacutetica estatildeo inseridas no domiacutenio do Esse enquanto a ciecircncia-existencial no acircmbito do Inter-esse Isso porque somos levados a ler este esboccedilo ndash e o leitor haacute de concordar conosco neste ponto ndash como a exposiccedilatildeo de duas vias distintas de relaccedilatildeo para com o ser tais que a compreensatildeo de uma eacute esclarecida pela sua diferenciaccedilatildeo frente agrave outra Sendo assim a explicaccedilatildeo dada agrave primeira divisatildeo (Ontologia e Matemaacutetica) parece servir de base para a compreensatildeo da ciecircncia-existencial embora natildeo tenhamos elementos seguros para simplesmente deduzir a explicaccedilatildeo desta uacuteltima a partir de uma inversatildeo da primeira Como veremos a elucidaccedilatildeo do que aqui eacute chamado de ciecircncia-existencial depende antes de tudo da compreensatildeo da existecircncia mesma e do modo como podemos pensaacute-la Natildeo eacute uma tarefa faacutecil O proacuteprio Climacus jaacute havia dito no Poacutes-Escrito que a existecircncia eacute uma coisa muito difiacutecil de lidar Seria um consolo se pudeacutessemos desmenti-lo e mostrar que a existecircncia eacute coisa muito faacutecil de lidar mas receamos que Climacus esteja certo e que a tarefa natildeo seja coisa simples Em todo caso nosso esforccedilo aqui deve ser o de lidar com a existecircncia e ao fazecirc-lo

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mostrar a dificuldade da lida como a dificuldade proacutepria da existecircncia Se algumas passagens do percurso textual se mostrarem agrave primeira vista ligeiramente confusas com o avanccedilo da discussatildeo certamente ficaratildeo mais bem esclarecidas claro desde que natildeo se tornem ainda mais confusas Partamos pois de uma distinccedilatildeo apresentada em uma conhecida nota de rodapeacute das Migalhas Filosoacuteficas entre dois modos de se acentuar o ser como ser de fato e como ser ideal Ao discutir uma afirmaccedilatildeo de Espinosa segundo a qual quanto mais perfeita uma coisa eacute tanto mais existecircncia e necessidade envolve e vice-versa Climacus escreve

Ele [Espinosa] explica perfectio por realitas esse de modo que quanto mais perfeito algo eacute mais ele eacute poreacutem sua perfeiccedilatildeo consiste em ter mais esse isto quer dizer entatildeo que quanto mais algo eacute tanto mais eacute [] O que estaacute faltando aqui eacute uma distinccedilatildeo entre ser de fato e ser ideal O uso em si e por si nada claro de se falar em mais ou menos ser e consequentemente em graus de realidade ou do ser torna-se ainda mais confuso quando aquela distinccedilatildeo acima natildeo eacute feita () Em relaccedilatildeo ao ser fatual natildeo tem nenhum sentido falar de mais ou menos ser Uma mosca se ela eacute tem tanto ser quanto o deus () pois quanto ao ser de fato vale a dialeacutetica de Hamlet ser ou natildeo-ser O ser de fato eacute totalmente indiferente agrave diversidade de toda e qualquer definiccedilatildeo essencial e tudo que existe participa do ser sem ciuacuteme mesquinho e participa no mesmo grau Idealmente o caso eacute bem diferente isto eacute totalmente certo Mas no momento em que eu falo de ser no sentido ideal natildeo mais falo do ser mas da essecircncia (KIERKEGAARD 2008 p 67)

Climacus mostra primeiramente como a confusatildeo entre ser de fato (faktisk Vaeligren) e ser ideal (ideel Vaeligren) leva Espinosa a falar em mais ou menos ser ou em graus de

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realidade ou de existecircncia o que natildeo se pode aplicar ao ser de fato isto eacute agravequilo que simplesmente por estar aiacute jaacute eacute o que eacute Ora ao tratar dos termos em questatildeo de maneira indistinta Espinosa acaba por conceber o ser de fato idealmente incorrendo em um mal-entendido que impede que a verdadeira dificuldade se apresente Com efeito ao ser concebido idealmente natildeo eacute mais do ser de fato que se fala mas da ldquoideiardquo ou do ldquoconceitordquo de ser de fato quer dizer fala-se do concreto de maneira abstrata e assim abre-se matildeo do concreto Por isso Climacus pode afirmar que quando se fala de ser no sentido ideal natildeo se fala mais do ser mas sim de algo outro isto eacute da essecircncia (uma idealidade) Outra citaccedilatildeo essa dos Papiper12 poderaacute nos ajudar a compreender melhor o que estaacute em questatildeo aqui Segundo Kierkegaard

O que confunde toda a ideia de ldquoessecircnciardquo na loacutegica eacute que a atenccedilatildeo natildeo eacute dada ao fato de que ela opera continuamente com o ldquoconceitordquo existecircncia Mas o ldquoconceitordquo existecircncia eacute uma idealidade e a dificuldade eacute apenas se existecircncia eacute absorvida no conceito Assim Spinoza pode estar certo essentia involvit existentiam a saber o conceito-existecircncia ou seja existecircncia na idealidade Por outro lado Kant estaacute certo em dizer ldquoExistecircncia natildeo adiciona nenhum predicado a um conceitordquo K pensa manifestamente na existecircncia como natildeo sendo absorvida no conceito a existecircncia empiacuterica Em todas as relaccedilotildees de idealidade vale que essentia eacute existentia ndash se de outro modo o seu uso eacute vaacutelido aqui

12 Os Papirer satildeo os ldquopapeacuteisrdquo deixados por Kierkegaard ndash comentaacuterios pessoais esboccedilos notas ensaios etc etc Satildeo uma peccedila importante na constituiccedilatildeo do corpus autoral de Kierkegaard Os Papirer revelam nuances que os textos publicados inevitavelmente omitem

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A afirmaccedilatildeo leibniziana Se Deus eacute possiacutevel ele eacute necessaacuterio estaacute totalmente certa Nada eacute acrescentado a um conceito se ele tem existecircncia ou natildeo eacute uma questatildeo de completa indiferenccedila ele realmente tem existecircncia isto eacute existecircncia-conceito existecircncia ideal (SKS 22 433 NB 14)

Estaacute claro que a principal distinccedilatildeo feita aqui eacute entre a existecircncia de fato por um lado e a ldquoexistecircncia-conceitordquo a existecircncia compreendida idealmente por outro Trata-se a nosso ver da mesma distinccedilatildeo entre ser de fato e ser ideal embora apresentada em outros termos Importa neste caso que natildeo se confunda a existecircncia ideal com a existecircncia concreta ndash ou natildeo se tome o ser de fato como ser ideal Com efeito tratada a partir desta indistinccedilatildeo a dificuldade natildeo se pode apresentar Ao se confundir ser de fato e ser ideal a existecircncia acaba sendo concebida abstratamente ou seja essecircncia e existecircncia passam a se corresponder mas de modo que a existecircncia aqui eacute compreendida abstratamente como existecircncia ideal No entanto a determinaccedilatildeo puramente ideal da existecircncia pode muito bem corresponder agrave essecircncia mas natildeo pode ser confundida com a existecircncia concreta Eacute o que Kierkegaard pretende mostrar quando afirma que o mote de Espinosa essentia involvit existentiam estaacute correto desde que aqui se compreenda por ldquoexistecircnciardquo a existecircncia na idealidade absorvida no conceito ou seja existecircncia no pensamento (Tanke-Existents) Mas essa existecircncia ideal ainda eacute existecircncia no sentido proacuteprio do termo E que ldquosentido proacutepriordquo seria esse Tais questionamentos nos remetem de fato agrave dificuldade sobre a qual Espinosa natildeo quis se pronunciar Isso porque ao ser concebida idealmente a existecircncia perde seu traccedilo distintivo que aleacutem de lhe dar o seu ldquosentido proacutepriordquo mostra ao mesmo tempo qual eacute a verdadeira dificuldade Devemos entatildeo nos concentrar neste

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traccedilo distintivo da existecircncia a fim de compreendermos esta dificuldade Para tanto faccedilamos uma referecircncia inicial ao opuacutesculo publicado postumamente sob o tiacutetulo Johannes Climacus ou De Omnibus Dubitandum Est13 onde a existecircncia eacute definida como consciecircncia e interesse No primeiro capiacutetulo da Pars Secunda o autor investiga como deve ser definida e existecircncia para que seja possiacutevel duvidar A questatildeo leva-o diretamente agrave busca da possibilidade ideal da duacutevida na consciecircncia ou seja precisava descobrir como a consciecircncia deveria ser para que fosse possiacutevel ao sujeito duvidar Com isso o texto identifica a existecircncia com a consciecircncia a busca de como deve ser definida a existecircncia para que seja possiacutevel duvidar leva o autor a defini-la indiretamente como consciecircncia A pergunta entatildeo recai sobre esta uacuteltima como deve ser definida a consciecircncia para que seja possiacutevel duvidar A reposta obviamente deve ser uma elucidaccedilatildeo do que o autor entende por consciecircncia e por conseguinte ndash jaacute que consciecircncia e existecircncia aparecem como sinocircnimos ndash do que se entende aqui por existecircncia Ali podemos ler o seguinte ldquoA imediatidade eacute a realidade a linguagem eacute a idealidade a consciecircncia eacute a contradiccedilatildeo No momento em que anuncio a realidade surge a contradiccedilatildeo pois o que eu digo eacute a idealidaderdquo (KIERKEGAARD 2003 p 108) Haacute portanto dois acircmbitos distintos o da realidade cuja forma eacute a imediatidade e o da idealidade que eacute mediatidade (palavra linguagem) A consciecircncia natildeo eacute nenhum dos dois separadamente mas a contradiccedilatildeo ldquoA realidade natildeo eacute a consciecircncia a idealidade tampouco e contudo a consciecircncia natildeo existe sem ambas e esta contradiccedilatildeo eacute o ser da consciecircncia e sua essecircnciardquo (Id Ibid p 110) Note-se que a consciecircncia natildeo eacute uma simples relaccedilatildeo mas uma relaccedilatildeo cuja forma eacute a contradiccedilatildeo Se se anula a

13 SKS 15 13-53

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contradiccedilatildeo anula-se com ela a consciecircncia Aleacutem disso a consciecircncia natildeo se identifica simplesmente com a reflexatildeo jaacute que esta eacute pressuposto daquela ldquoa reflexatildeo eacute a possibilidade da relaccedilatildeo a consciecircncia eacute a relaccedilatildeo cuja forma primeira eacute a contradiccedilatildeordquo (Id Ibid p 111) A reflexatildeo determina a dicotomia ndash por exemplo realidade e idealidade ndash enquanto a consciecircncia eacute sempre tricotocircmica jaacute que consiste na relaccedilatildeo contraditoacuteria e natildeo em cada uma das partes separadamente

A reflexatildeo eacute a possibilidade da relaccedilatildeo Isso tambeacutem pode ser expresso da seguinte forma a reflexatildeo eacute desinteressada A consciecircncia ao contraacuterio eacute a relaccedilatildeo e portanto o interesse dualidade que se exprime inteiramente e com concisa ambiguidade na palavra interesse (interesse) (Id Ibid p 113)

A consciecircncia portanto eacute um ldquoserrdquo (esse) ldquoentrerdquo (inter) Trata-se da expressatildeo de uma dualidade ou de uma ambiguidade essencial que relaciona de modo contraditoacuterio elementos que tendem a negar-se mutuamente A idealidade e a realidade a finitude e a infinitude o eterno e o temporal satildeo inter-relacionados de modo que a forma dessa relaccedilatildeo eacute a proacutepria contradiccedilatildeo Sendo assim a resposta dada agrave questatildeo que intitula o capiacutetulo a saber ldquoComo deve ser definida a existecircncia para que seja possiacutevel duvidarrdquo eacute esta a existecircncia eacute inter-esse Justamente porque eacute interesse a existecircncia traz em si a possibilidade da duacutevida que se sustenta naquela contradiccedilatildeo essencial Se a existecircncia natildeo fosse interesse mas um esse qualquer entatildeo natildeo poderiacuteamos falar em duacutevida ou em incerteza pois de fato teriacuteamos uma certeza firme (o esse) Mas como o esse da existecircncia eacute um inter-esse o que existe aiacute eacute um confronto um embate no qual nenhuma das partes pode sobrepor-se agrave outra sem ser ao mesmo tempo sobreposta Significa que a certeza fica suspensa na contradiccedilatildeo e entatildeo a duacutevida torna-se possiacutevel

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E com isso nos aproximamos daquela dificuldade da qual falaacutevamos acima Em sendo interesse a existecircncia eacute uma dificuldade para o existente por este ser composiccedilatildeo do eterno e do temporal do ideal e do real do finito e do infinito etc situada na existecircncia Note-se que aqui natildeo se trata obviamente da existecircncia meramente fatual como o estar aiacute de uma rocha ou uma rosa mas da existecircncia strictu sensu existecircncia que eacute interesse para o existente Com isso fica claro que falar em uma existecircncia ideal eacute abrir matildeo da dificuldade proacutepria da existecircncia Como diziacuteamos para Climacus o mote de Espinosa essentia involvit existentiam baseia-se na compreensatildeo abstrata da existecircncia isto eacute na existecircncia absorvida no conceito ou seja existecircncia no pensamento (Tanke-Existents) Agrave nossa pergunta se essa existecircncia ideal ainda eacute existecircncia no sentido proacuteprio podemos muito bem responder que natildeo pois compreendida como uma existecircncia no pensamento a existecircncia natildeo eacute mais interesse mas ldquoexistecircnciardquo desinteressada Ora no momento em que a existecircncia eacute absorvida no conceito tornando-se uma idealidade produz-se entatildeo uma outra coisa que natildeo eacute mais a existecircncia jaacute que esta como temos visto natildeo eacute a idealidade mas a relaccedilatildeo de idealidade e realidade cuja forma eacute a contradiccedilatildeo Sendo assim o problema de se conceber a existecircncia como uma determinaccedilatildeo puramente abstrata eacute que ldquona linguagem da abstraccedilatildeo nunca aparece aquilo que constitui a dificuldade da existecircncia e do existenterdquo (SKS 7 247) 14 Isso porque a abstraccedilatildeo prescinde do concreto do

14 Atualmente (2015) temos disponiacutevel em portuguecircs apenas a primeira parte do Poacutes-Escrito Conclusivo natildeo cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas de Johannes Climacus O professor e tradutor Aacutelvaro Valls gentilmente nos cedeu parte de sua traduccedilatildeo do segundo volume que ao que tudo indica natildeo tarda em ter sua primeira ediccedilatildeo Utilizamos a traduccedilatildeo ineacutedita de Valls como fonte de apoio para algumas passagens da

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devir do interesse da existecircncia e portanto ldquoda dificuldade do existente por este ser composiccedilatildeo do eterno e do temporal situada na existecircnciardquo (SKS 7 247) Para usar os termos da discussatildeo feita acima diriacuteamos que a dificuldade consiste em apreender o ser de fato e introduzir a idealidade (o ser ideal) na esfera do ser de fato15 afirmando assim a contradiccedilatildeo que a existecircncia eacute A tendecircncia em pensar a existecircncia sob o aspecto da eternidade (sub specie aeligterni) implica na abstraccedilatildeo da dificuldade de pensaacute-la dentro da contradiccedilatildeo que lhe eacute essencial Mais ainda o simples fato de fazer da existecircncia um objeto do pensamento quer dizer o simples fato de pensaacute-la constitui jaacute uma dificuldade Com efeito pensar a existecircncia em abstraccedilatildeo eacute o mesmo que superaacute-la ou anulaacute-la ldquoPensando-a eu a supero e entatildeo natildeo a pensordquo (SKS 7 281) Mas e se aquele que pensa estiver existindo Note-se que neste caso a dificuldade retorna uma vez que ldquoa existecircncia os coloca juntos pois o pensante existerdquo (Idem) Significa dizer que seu pensamento natildeo eacute de todo desprovido de existecircncia afinal natildeo eacute o pensamento de um ser puramente ideal mas de um sujeito existente que pensa Pensar a existecircncia eacute entatildeo superaacute-la mas como aquele

segunda parte do Poacutes-Escrito Assim embora as traduccedilotildees que seguem sejam nossas precisamos reconhecer que sem o aval do texto de A Valls natildeo estariacuteamos seguros quanto agraves nossas proacuteprias traduccedilotildees jaacute que nosso conhecimento do dinamarquecircs de Kierkegaard eacute incipiente

15 Na nota citada acima Climacus mostra essa contradiccedilatildeo de maneira ainda mais intensa ao dizer que ldquoa dificuldade consiste em chegar a apreender o ser de fato e introduzir dialeticamente a idealidade de Deus na esfera do ser de fatordquo (KIERKEGAARD 2008 p 67) A dificuldade aqui eacute maior justamente porque Deus eacute a idealidade suprema que enquanto tal tem a necessidade Introduzir essa idealidade na esfera do ser de fato natildeo constitui apenas uma dificuldade mas algo que de tatildeo contraditoacuterio chega a ser um absurdo Obviamente o que estaacute em jogo aqui eacute a realidade do Deus encarnado No Poacutes-Escrito Climacus refere-se agrave ldquocategoria do absurdordquo como traccedilo distintivo do cristianismo (Cf KIERKEGAARD 2013 p 216)

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que pensa existe ndash e natildeo pode prescindir do existir para pensar ndash esse seu pensamento ainda conserva uma ligaccedilatildeo inexoraacutevel com a existecircncia Climacus expressa isso dizendo que ldquoa existecircncia juntou o pensar com o existirrdquo e que por isso mesmo haacute dois acircmbitos o da abstraccedilatildeo e o da realidade Mas a dificuldade estaacute no fato de que a realidade natildeo pode ser expressa na linguagem da abstraccedilatildeo ldquoA realidade [Virkeligheden] eacute um inter-esse entre a unidade hipoteacutetica da abstraccedilatildeo de pensar e serrdquo (SKS 7 286) Aqui precisamos apurar nossa atenccedilatildeo Climacus refere-se agrave unidade entre ser e pensar ndash expressatildeo fundamental da filosofia hegeliana ndash como uma unidade hipoteacutetica da abstraccedilatildeo A realidade pelo contraacuterio eacute o inter-esse em meio a ser e pensar e portanto natildeo eacute nem o puro pensar nem o puro ser (que satildeo o mesmo) mas justamente o momento (real) da separaccedilatildeo de ser e pensar Na existecircncia a identidade ideal de pensar e ser eacute cindida ldquoum ser humano pensa e existe e a existecircncia separa pensamento e ser os manteacutem afastados um do outro em sucessatildeordquo (SKS 7 303) No pensamento abstrato daacute-se algo diferente pensar e ser satildeo um soacute mas precisamente porque aqui se abstrai da existecircncia Como explica Climacus

A afirmaccedilatildeo filosoacutefica da identidade entre ser e pensar eacute exatamente o oposto do que parece ser eacute a expressatildeo de que o pensamento deixou completamente a existecircncia que emigrou e encontrou um sexto continente onde eacute absoluto e autossuficiente na identidade absoluta do pensamento e do ser (SKS 7 302)

Sendo assim o puro pensar natildeo guarda relaccedilatildeo com a existecircncia mas tenta a todo tempo abstrair do fato de que o ser humano enquanto sujeito existente estaacute em contiacutenuo devir e interessado em sua proacutepria existecircncia Natildeo gostariacuteamos de ir aleacutem nesta discussatildeo mas importa salientar que existe

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aqui uma criacutetica especiacutefica agrave pretensatildeo da filosofia hegeliana que ao iniciar com o puro pensar pretende a partir daiacute incluir a existecircncia no Sistema Por ora basta que estejamos atentos ao fato de que sendo inter-esse a existecircncia constitui um estado intermediaacuterio no qual a certeza objetiva do pensar abstrato eacute posta de lado como fantasmagoria restando agravequele que existe a incerteza da vida terrena sua inconclusividade e negatividade Eacute o que veremos logo em seguida Antes uma uacuteltima palavra sobre o ldquoensaio metodoloacutegicordquo com o qual abrimos nossa discussatildeo Depois do que foi exposto torna-se mais claro que o que ali era chamado de Ciecircncia-Existencial corresponde ao saber que se volta natildeo para a identidade de pensar e ser (Ontologia e matemaacutetica) mas para o Inter-esse enquanto um estado intermediaacuterio no qual ser e pensar permanecem separados Tal saber natildeo se caracteriza por um pensamento abstrato mas por um ldquopensamento concretordquo que enquanto tal natildeo alcanccedila a certeza absoluta mas em contrapartida natildeo eacute hipoteacutetico Tal ldquociecircnciardquo deve ter sua forma de pensar proacutepria de modo a repercutir em si o interesse proacuteprio da existecircncia E aquele que no acircmbito deste saber existencial se diz ldquopensadorrdquo natildeo pode excluir a existecircncia do seu pensamento mas precisa ser um pensador subjetivo existente

3 Incerteza objetiva e negatividade a existecircncia

como esforccedilo continuado

Vimos acima como o devir enquanto passagem da possibilidade para a realidade ndash ou como um movimento que acontece pela liberdade ndash eacute em si mesmo indeterminaccedilatildeo inconclusividade negatividade que angustia numa palavra eacute de todo incerto Dizer que o sujeito existente estaacute continuamente vindo a ser equivale a

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dizer que ele eacute livre e que se angustia16 de modo que a existecircncia enquanto devir traz sempre consigo o negativo algo que escapa agrave apreensatildeo objetiva algo que natildeo possui certeza positiva que pode natildeo ser o que Climacus tentou expressar quando falava em um ldquonada do-que-natildeo-estaacute-sendordquo De igual modo em sendo inter-esse a existecircncia eacute em si mesma contraditoacuteria suspendendo todo saber positivo sobre si mesma e deixando o sujeito existente entregue agrave incerteza e agrave negatividade sem garantias objetivas

No Poacutes-Escrito Climacus serve-se por analogia do Eros do Banquete platocircnico para definir a natureza da existecircncia Escreve ele

De acordo com Platatildeo Penuacuteria e Recurso geraram portanto Eros cuja natureza eacute formada a partir de ambos Mas o que eacute a existecircncia Eacute aquela crianccedila que foi gerada pelo infinito e o finito pelo eterno e o temporal e que por isso estaacute continuamente esforccedilando-se (KIERKEGAARD 2013 p 96)

Estaacute claro que a analogia confirma o que diziacuteamos

acima a existecircncia eacute o engendramento de contraacuterios uma siacutentese estabelecida em tensatildeo constante e que enquanto tal exige do existente um esforccedilo sempre renovado na lida com essa situaccedilatildeo criacutetica17 Enquanto composiccedilatildeo do eterno e do temporal do finito e do infinito a existecircncia guarda em si uma negatividade cujo fundamento reside justamente nesta siacutentese contraditoacuteria Ora se o eterno vem a ser no tempo ou se o infinito une-se ao finito na existecircncia cada contraacuterio nega-se mutuamente de modo

16 Sobre a relaccedilatildeo entre devir liberdade e anguacutestia Cf O Conceito de Anguacutestia (KIERKEGAARD 2010a)

17 Em A Doenccedila para Morte Anti-Climacus define a situaccedilatildeo do homem ndash considerado como espiacuterito Selv ndash explicitamente como uma situaccedilatildeo criacutetica (Cf SKS 11 141)

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que toda certeza positiva eacute posta em suspenso conforme mostra Climacus

A negatividade que haacute na existecircncia ou melhor a negatividade do sujeito existente (que o seu pensamento deve repercutir essencialmente em uma forma adequada) funda-se na siacutentese do sujeito no fato de ele ser um espiacuterito infinito existente A infinitude e o eterno satildeo a uacutenica certeza mas desde que esta estaacute no sujeito estaacute na existecircncia e a primeira expressatildeo para isso eacute seu engano e a imensa contradiccedilatildeo de que o eterno vem a ser de que ele surge (Id Ibid p 85)

A negatividade do sujeito existente funda-se portanto na siacutentese no interesse do sujeito isto eacute no fato de que o homem eacute um ldquoespiacuterito infinito existenterdquo Note-se ldquoinfinitordquo e ldquoexistenterdquo o que constitui a tensatildeo contraditoacuteria Ao falar nestes termos Climacus enfatiza primeiramente a situaccedilatildeo interessada do sujeito existente cuja forma eacute uma ldquoimensa contradiccedilatildeordquo Mas essa contradiccedilatildeo perceba-se eacute justamente a de que o eterno deveacutem ou seja eacute a contradiccedilatildeo proacutepria do devir E o que fundamenta aquela negatividade eacute precisamente essa ldquoimensa contradiccedilatildeordquo pois nela a certeza objetiva torna-se suspeita ou aparece como engano (Svig) Eacute este engano que constitui a negatividade pois nele aquilo que seria certo torna-se suspeito afinal estaacute comprometido numa contradiccedilatildeo Em relaccedilatildeo a isso um exemplo dado pelo autor eacute esclarecedor o sujeito existente eacute eterno mas ao mesmo tempo enquanto existente eacute temporal ndash siacutentese devir interesse Pois bem o que torna a infinitude suspeita o seu engano eacute que a possibilidade da morte (a finitude) estaacute sempre presente a todo o instante ldquoToda confianccedila positiva estaacute entatildeo posta sob suspeitardquo (KIERKEGAARD 2013 p 85) A possibilidade da morte impossibilita qualquer certeza positiva em relaccedilatildeo agrave infinitude pois na

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finitude a infinitude torna-se uma possibilidade que enquanto tal relaciona-se essencialmente com o porvir e que por conseguinte eacute algo completamente incerto Em outras palavras quando o eterno vem a ser (deveacutem) o que se obteacutem natildeo eacute o eterno sub specie aeterni mas o eterno sob o aspecto da contradiccedilatildeo cuja expressatildeo eacute o porvir Como escreve Climacus ldquoquando eu junto a eternidade e o devir natildeo obtenho sossego mas porvirrdquo (SKS 7 280) Mas o porvir eacute justamente a morada da possibilidade onde tudo eacute incerto Ora tal incerteza notemos bem eacute a insiacutedia da infinitude e do eterno na existecircncia Para nos aproveitarmos da analogia com o Banquete diriacuteamos que a infinitude eacute aquilo que nunca podemos assegurar definitivamente mas que soacute pode ser assegurada por um esforccedilo incessante de retomada e de conquista reiterada ndash o que a natureza de Eros (filho de Penia e Poros) expressa muito bem Mas embora seja a insiacutedia da infinitude essa incerteza objetiva eacute ao mesmo tempo a forma de expressatildeo da infinitude na existecircncia quer dizer sua insiacutegnia Significa que o eterno a infinitude soacute pode se expressar no devir de maneira objetivamente incerta como algo que escapa agrave apreensatildeo objetiva do sujeito existente e que soacute pode ser assegurado pelo empenho da subjetividade existente18 Esse empenho ou esforccedilo do sujeito existente pode ser

18 Aqui precisariacuteamos de um esclarecimento que os limites de nosso trabalho natildeo permitem oferecer Por enquanto basta que fique claro que a incerteza objetiva em relaccedilatildeo a algo ndash por exemplo agrave imortalidade ndash natildeo pode ser superada objetivamente como se atraveacutes de algum meio objetivo (uma investigaccedilatildeo uma prova uma demonstraccedilatildeo) tal incerteza se tornasse mais certa ou menos incerta do que eacute Pelo contraacuterio a certeza da imortalidade soacute pode existir para a subjetividade mas de tal forma que a incerteza objetiva seja mantida e sustentada pela paixatildeo da subjetividade paixatildeo essa que natildeo quer extirpar a incerteza mas que crecirc apesar da incerteza objetiva Assim o peso eacute posto na subjetividade

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muito bem designado pela palavra paixatildeo Nesse sentido faccedilamos uma citaccedilatildeo mais longa que ilustra bem o que aqui queremos destacar a saber que a existecircncia na incerteza objetiva e na negatividade que lhe satildeo proacuteprias exige do sujeito existente um esforccedilo continuado ou uma paixatildeo viva Diz Climacus

O existir () natildeo pode prescindir da paixatildeo () Muitas vezes pensei como se poderia levar um homem agrave paixatildeo Pensei entatildeo se eu poderia montaacute-lo num cavalo e fazer este desembestar no mais selvagem galope ou ainda melhor a fim de fazer surgir a paixatildeo se eu pudesse tomar um homem que quisesse chegar a um lugar o mais raacutepido possiacutevel (portanto jaacute algo apaixonado) e montaacute-lo num cavalo que mal pudesse andar e no entanto o existir eacute assim quando se estaacute consciente dele Ou se numa carroccedila de um cocheiro que de outra maneira natildeo pudesse chegar agrave paixatildeo se atrelassem um Peacutegaso e um Pangareacute e se lhe dissesse ldquoVai avante jaacuterdquo ndash aiacute eu acho que conseguiria E assim eacute o existir quando se estaacute consciente dele A eternidade como aquele cavalo alado eacute infinitamente raacutepida a temporalidade eacute um pangareacute e o existente eacute o cocheiro quando a existecircncia natildeo deve ser o que se costuma chamar de existecircncia pois nesse caso o existente natildeo seria o cocheiro mas um camponecircs becircbado deitado e dormindo na carroccedila e que deixa os cavalos por conta proacutepria Entenda-se ele tambeacutem guia ele tambeacutem eacute cocheiro e da mesma forma talvez haja muitos que ndash tambeacutem existem (SKS 7 283-4)

A paixatildeo entatildeo eacute um esforccedilo constante de manutenccedilatildeo19 da tensatildeo que a proacutepria existecircncia eacute A

19 Usamos a palavra em seu sentido etimoloacutegico de ldquoato de segurar ou sustentar com a matildeordquo o que combina com a imagem dos dois cavalos

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eternidade e a temporalidade ndash tais como um Peacutegaso e um rocim atrelados ao mesmo carro ndash precisam ser sustentadas ambas sem que uma seja mantida em detrimento da outra Assim a paixatildeo consiste em permanecer na temporalidade e ao mesmo tempo sem abrir matildeo da temporalidade colocar-se eternamente aleacutem da temporalidade Natildeo se trata de tornar-se eterno como se natildeo se estivesse na temporalidade nem tampouco de agarrar-se agrave temporalidade em detrimento do eterno Eacute preciso primeiro tomar consciecircncia de que se existe e que em se tratando da existecircncia a dificuldade eacute viver na tensatildeo e natildeo existir como se natildeo houvesse contradiccedilatildeo ou como se esta tivesse sido superada Como escreve Climacus ldquoMas existir de verdade ou seja penetrar sua existecircncia com consciecircncia e ao mesmo tempo eternamente colocar-se aleacutem da existecircncia e ainda presente nela e ainda assim no devir isso eacute realmente difiacutecilrdquo (SKS 7 281) Para expressar essa paixatildeo que eacute esforccedilo continuado Climacus serve-se de uma imagem tomada de Lessing cujo valor representativo nos obriga a citaacute-la na iacutentegra Diz Lessing

Se Deus me oferecesse fechada em Sua matildeo direita toda a verdade e em Sua matildeo esquerda o impulso uacutenico sempre animado para a verdade embora com o acreacutescimo de me enganar sempre e eternamente e me dissesse Escolhe ndash eu me prostraria com humildade ante Sua matildeo esquerda e diria Pai daacute-me pois a verdade pura eacute de fato soacute para Ti e mais ningueacutem (KIERKEGAARD 2013 p 110)

pois se trata de sustentar com as matildeos as reacutedeas de ambos sem largaacute-los deixando-os por si soacutes ndash assim com a eternidade e a temporalidade

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O meacuterito de Lessing aqui eacute justamente o de falar como um indiviacuteduo que estaacute consciente de sua existecircncia O impulso uacutenico sempre animado [den einzigen immer regen Trieb] aponta para a inconclusividade ou incompletude da existecircncia Se a verdade pura eacute de fato soacute para Deus cabe ao existente seguir no esforccedilo continuado para ou em direccedilatildeo agrave verdade de modo que esta para o existente seraacute justamente esse impulso uacutenico ou esse esforccedilo constante e natildeo simplesmente um objeto que ele enfim conhece Eacute isso que Lessing pretende enfatizar quando reforccedila que Deus junto com o impulso uacutenico para a verdade acrescentaria um veto um impedimento mantenedor desse impulso ndash como que um ldquoenganordquo que manteria o impulso sempre vivo e animado Com outras palavras o meacuterito de Lessing eacute o de refletir subjetivamente sobre a verdade ou seja pensar a verdade em sua relaccedilatildeo com o sujeito existente natildeo como um objeto mas como a apropriaccedilatildeo que aqui aparece nos termos de um impulso uacutenico e vibrante O esforccedilo continuado eacute por assim dizer a uacutenica maneira pela qual o sujeito existente pode se relacionar com a verdade Dito isto um novo passo precisaria ser dado qual seja aquele que partindo da centralidade da existecircncia recoloca a questatildeo filosoacutefica da verdade a partir de outros termos Eacute o que Climacus faraacute cuidadosamente na segunda parte do Poacutes-Escrito e que seraacute por ele mesmo identificado como sua tese a saber que a subjetividade a interioridade eacute a verdade Satildeo questotildees que demandam esforccedilos futuros de investigaccedilatildeo e que excedem os limites deste trabalho Conclusatildeo O percurso que ora concluiacutemos talvez tenha cumprido a funccedilatildeo modesta a que se prestava isto eacute introduzir algumas das questotildees centrais as quais a compreensatildeo de existecircncia de Kierkegaard se mantem atrelada Importa no entanto que faccedilamos ainda um

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uacuteltimo comentaacuterio a respeito do que foi apresentado ateacute aqui A con-diccedilatildeo existencial eacute contra-diccedilatildeo Assim conseguimos enunciar a tensatildeo paradoxal que se afirma e persiste na compreensatildeo de existecircncia de Kierkegaard Natildeo se trata de afirmar ndash como vez por outra se costuma fazer ndash que o homem eacute mera indeterminaccedilatildeo ou que natildeo haacute uma condiccedilatildeo uma essecircncia ou uma natureza humana que o homem precisa fazer-se a si mesmo porque nasce completamente indeterminado que sua existecircncia precede temporalmente a sua essecircncia e assim por diante Todas satildeo compreensotildees possiacuteveis mas nenhuma parece ser a de Kierkegaard Com efeito o que ele pretende eacute antes retesar e natildeo afrouxar a tensatildeo contraditoacuteria Por isso o homem tem uma condiccedilatildeo ndash poderiacuteamos dizer possui uma essecircncia ndash mas essa condiccedilatildeo eacute em si mesma contradiccedilatildeo ndash ou a sua essecircncia eacute em si mesma existecircncia ndash o que provoca uma crise aguda na relaccedilatildeo Ora tal situaccedilatildeo criacutetica desassossega fazendo com que o existente debata-se desesperadamente para desfazer-se da contradiccedilatildeo que ele mesmo eacute Mas tal como um noacute de escota ndash que quanto mais puxamos para desatar tanto mais ele se retesa e prende mas quando relaxamos a tensatildeo ele entatildeo afrouxa e desata ndash assim tambeacutem eacute a existecircncia quanto mais tentamos nos desvencilhar da contradiccedilatildeo que ela mesma eacute tanto mais nos vemos desesperadamente atados Para que a tensatildeo natildeo oprima talvez o existente precise aprender a entregar-se Com isso concluiacutemos com uma ldquodeixardquo para que possa entrar em cena uma obra natildeo mais de Climacus mas de Anti-Climacus20 qual seja A Doenccedila para a Morte Nela o caraacuteter criacutetico da existecircncia eacute acentuado a partir de outros termos Abordaacute-la eacute tarefa para outra ocasiatildeo

20 Outro Heterocircnomo de Kierkegaard Anti-Climacus assina A Doenccedila para a Morte (1849) e Tirociacutenio no Cristianismo (1850)

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Referecircncias HOWLAND Jacob Kierkegaard and Socrates A Study in

Philosophy and Faith Cambridge Cambridge University Press 2006

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Traduccedilatildeo de

Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo (introduccedilatildeo) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001

KIERKEGAARD Soslashren A Soslashren Kierkegaards Skrifer (SKS versatildeo 181 2014) httpsksdkforsideindholdasp

________ Poacutes-Escrito Conclusivo natildeo-cientiacutefico agraves

Migalhas Filosoacuteficas Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2013

________ O Conceito de Anguacutestia traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls

Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2010a

________ O Conceito de Ironia constantemente referido a Soacutecrates traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2010b

________ Migalhas Filosoacuteficas ou um bocadinho da

filosofia de Johannes Cliacutemacus traduccedilatildeo de Aacutelvaro Luiz Montenegro Valls e Ernani Reichmann notas de Aacutelvaro Luiz Montenegro Valls Editora Vozes Petroacutepolis 2008

________ Johannes Climacus ou Eacute preciso duvidar de

tudo Traduccedilatildeo de Siacutelvia Saviano Sampaio e Aacutelvaro Luiz Montenegro Valls Prefaacutecios e notas de Jacques Lafarge 1ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

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________ Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra de Escritor introduccedilatildeo de Jean Burn traduccedilatildeo de Joatildeo Gama ndash Ediccedilotildees 70 Lisboa Portugal 2002

STEWART Jon Kierkegaardrsquos Relations to Hegel Reconsidered Cambridge Cambridge University Press 2003

Nobre e Escravo na Perspectiva

da Vontade de Poder Nietzsche

e a interpretaccedilatildeo do homem a

partir da noccedilatildeo de valor

Ray Renan Silva Santos1

1 Avaliaccedilatildeo e gecircnese dos valores Na filosofia de Nietzsche o significado de valor

(ldquoWertrdquo) estaacute associado ao que ele entende por avaliaccedilatildeo (ldquoAuswertungrdquo) ldquoSomente haacute valor graccedilas agrave avaliaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1987 p 75)2 A avaliaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo mediante a qual o homem cria valores Valor por sua vez diz respeito agrave essecircncia do homem ao modo como o homem se constitui enquanto tal Zaratustra diz que ldquosem a avaliaccedilatildeo seria vazia a noz da existecircnciardquo3 isso porque eacute atraveacutes dela que o proacuteprio valor da existecircncia tem a sua origem Seria a existecircncia agrave parte da avaliaccedilatildeo do homem vazia e desprovida de sentido Que implicaccedilatildeo a mais tem o sentido de avaliar Eacute dito por Nietzsche (2013 p 291) que ldquonas avaliaccedilotildees se expressam condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e crescimentordquo O que significa ldquoconservaccedilatildeo e crescimentordquo

Conservar-se eacute o modo a partir do qual o homem luta para sobreviver Essa luta poreacutem tem um caraacuteter peculiar que diz respeito somente ao homem pois este eacute o uacutenico ente que avalia e atribui valor agraves coisas Eacute a partir das

1Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da

Paraiacuteba (UFPB)

2De mil e um fitos primeira parte

3De mil e um fitos primeira parte

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avaliaccedilotildees que se constitui ldquocrescimentordquo no sentido de que conforme o homem se manteacutem atraveacutes do valor sua vida tem com isso um acrescimento um ldquoa mais de poderrdquo

Avaliar eacute necessariamente valorar e o ato de valorar eacute tambeacutem um ato de criar Mas o que de fato constitui uma avaliaccedilatildeo Para que possamos ter um direcionamento de tal compreensatildeo analisemos a seguinte frase de Zaratustra ldquoNenhum povo poderia viver se antes natildeo avaliasse o que eacute bom e o que eacute maurdquo (NIETZSCHE 1987 p 74)4 Aqui a noccedilatildeo de avaliar estaacute correspondendo aos valores bom e mau Assim a noccedilatildeo de valor que estaacute atrelada agrave avaliaccedilatildeo deveraacute ser definida agrave medida que compreendermos que implicaccedilotildees tem bom e mau

Na citaccedilatildeo mencionada a avaliaccedilatildeo diz respeito a algo que faz parte da dinacircmica proacutepria do viver ela eacute o que exprime o conteuacutedo proacuteprio da existecircncia humana que surge atraveacutes do valor Avaliar o que eacute bom e o que eacute mau significa atribuir valores agraves accedilotildees O valor de uma determinada accedilatildeo eacute o que constitui o modo proacuteprio da vida do homem e a vida por sua vez se caracteriza como um movimento que se faz presente atraveacutes de valor assim o homem daacute sentido agrave sua proacutepria vida conforme cria valores tais valores satildeo definidos por ele como sendo bom e mau O que aparece aqui como elemento importante eacute o fato de que eacute o homem que cria os valores O valor natildeo existe como em si e por si o homem valora agrave medida da avaliaccedilatildeo sendo esta uacuteltima resultado de muacuteltiplos afetos que se apropriam dele O valor entatildeo eacute sempre relativo ao homem isto eacute valor eacute o que exprime a atividade propriamente do homem e o diferencia dos outros entes O ato de valorar designa a criaccedilatildeo a partir da qual a vida se mostra em seu incessante movimento de brotaccedilatildeo Todavia o homem e a accedilatildeo valorativa estatildeo em uma

4De mil e um fitos primeira parte

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relaccedilatildeo com a realidade esta no sentido de uma forccedila que diz a vida em sua totalidade

A caracterizaccedilatildeo do sentido nietzschiano de ldquovalorrdquo ao mesmo tempo em que aponta para a essecircncia do homem exprime essa essecircncia em um modo de perspectiva Valor portanto eacute o que se faz presente em todos os homens poreacutem em graus distintos A manifestaccedilatildeo de perspectivas diferentes eacute referente aos impulsos que por sua vez satildeo diferentes entre si Natildeo haacute nenhum impulso ou forccedila no mundo que possa ter sua equivalecircncia em igualdade pois tudo eacute distinto tudo carrega diferenccedila Esse elemento distintivo faz com que as forccedilas estejam em um conflito hieraacuterquico pois ldquocada pulsatildeo eacute uma espeacutecie de ambiccedilatildeo despoacutetica (Herrschsucht) cada uma tem a sua perspectiva perspectiva que a pulsatildeo gostaria de impor como norma para todas as outras pulsotildeesrdquo (NIETZSCHE 2008a sect 481 p 260) Dessa forma natildeo eacute difiacutecil concluir que o valor de bom para um povo pode natildeo ter o mesmo valor para outro daiacute a frase de Zaratustra ldquoNunca um vizinho compreendeu o outro sempre a sua alma admirou-se da insacircnia e da malvadez do vizinhordquo 5

A valoraccedilatildeo (ldquoWertschaumltzungrdquo) sendo um ato necessaacuterio para a condiccedilatildeo de conservaccedilatildeo da vida tem a ver com uma forccedila um impulso que condiciona o homem a criar valores tal impulso eacute o que Nietzsche chama de vontade de poder Assim acha-se aqui a relaccedilatildeo entre bom e mau dita anteriormente relativa a essa vontade de poder que eacute o que condiciona o homem a criar Haacute que se perguntar poreacutem acerca do significado proacuteprio de vontade de poder Em A vontade de poder eacute dito que ldquoEste mundo eacute a vontade de poder ndash e nada aleacutem disso E tambeacutem voacutes mesmos sois essa vontade de poder ndash e nada aleacutem dissordquo (NIETZSCHE 2008a sect 1067 p 513) Quando Nietzsche diz que o mundo eacute vontade de poder com isso ele exprime

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a dinacircmica e o movimento do mundo como sendo essa vontade6 A expressatildeo no alematildeo Wiile zur Macht que significa literalmente vontade para poder indica vontade direcionada ao poder isto eacute constituiacuteda atraveacutes do poder Todos os acontecimentos do mundo satildeo vontade de poder No homem essa vontade se manifesta atraveacutes da valoraccedilatildeo portanto ele soacute vem a se constituir enquanto pertencente agrave condiccedilatildeo de valorar

Em Genealogia da moral Nietzsche direciona a origem do conceito de ldquobomrdquo como tendo se desenvolvido a partir de uma classe dominante e privilegiada Do mesmo modo o conceito de ldquoruimrdquo teria surgido a partir dessa mesma classe Sendo assim eacute bom tudo aquilo que condiz com o caraacuteter de homem nobre superior e guerreiro eacute ruim tudo aquilo contraacuterio ao nobre isto eacute comum inferior e escravo Eacute neste sentido que eacute dito por Nietzsche que

[] em toda parte ldquonobre ldquoaristocraacuteticordquo no sentido social eacute o conceito baacutesico a partir do qual necessariamente se desenvolveu ldquobomrdquo no sentido de ldquoespiritualmente nobrerdquo ldquoaristocraacuteticordquo de ldquoespiritualmente bem-nascidordquo ldquoespiritualmente privilegiadordquo um desenvolvimento que sempre

6Na citaccedilatildeo mencionada apesar do emprego do artigo ldquoardquo para indicar ldquovontade de poderrdquo esta natildeo diz respeito agrave noccedilatildeo de ldquounidaderdquo no sentido de uma organizaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo do todo pois o mundo eacute para Nietzsche constituiacutedo por muacuteltiplas vontades de modo que natildeo haacute a vontade de poder como unidade que comporta a multiplicidade dos acontecimentos do mundo mas sim vontades de poder enquanto constituintes da totalidade do mundo O uso do artigo dessa forma eacute referente ao sentido da ldquoqualidaderdquo do mundo como ldquoo todordquo ldquoa realidaderdquo mas estes sendo entendidos como multiplicidade desordenada Ainda a respeito da frase mencionada Muumlller-Lauter (1997 p 82-83-84) diz ldquoO todo em sua variedade eacute designado com o nome lsquoa vontade de poderrsquo A que remete aqui o emprego do singular Com ele Nietzsche exprime que a vontade de poder eacute a uacutenica qualidade que se deixa encontrar seja o que for que consideremosrdquo

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corre paralelo agravequele outro que faz ldquoplebeurdquo ldquocomumrdquo ldquobaixordquo transformar-se finalmente em ldquoruimrdquo (NIETZSCHE 2009 p 18)

Encontra-se dessa forma uma problemaacutetica no que diz respeito a uma transformaccedilatildeo conceitual de ldquobomrdquo Essa transformaccedilatildeo conceitual estaacute relacionada agrave reviravolta agrave inversatildeo dos valores morais ou para dizer de outro modo ela diz respeito agrave ldquotresvaloraccedilatildeo dos valoresrdquo (ldquoUmwertung der Wertrdquo)7 No que concerne a tal transformaccedilatildeo conceitual Nietzsche faz primeiramente uma anaacutelise acerca de tais conceitos em sua proacutepria liacutengua no alematildeo Em alematildeo a palavra schlecht (ldquoruimrdquo) que permite a derivaccedilatildeo do termo schlicht (ldquosimplesrdquo) designava o homem comum inferior e em oposiccedilatildeo ao homem nobre Essa anaacutelise continua ainda com a origem de tais conceitos na liacutengua grega e no latim No grego κακός (ldquomaurdquo) era o termo para designar o homem plebeu em

oposiccedilatildeo ao ἀγαθός (ldquobomrdquo) no latim malus (ldquomaurdquo) era a palavra empregada para indicar o homem inferior de classe baixa fraco e plebeu em oposiccedilatildeo ao bonus (ldquobomrdquo) que por sua vez dizia respeito ao homem guerreiro de discoacuterdia superior

Embora essas indicaccedilotildees em referecircncia aos diferentes tipos de homem possam ter um sentido de ordem social eacute preciso que compreendamos o homem caracterizado ldquotambeacutem segundo um traccedilo tiacutepico do caraacuteterrdquo ressalta Nietzsche (2009 p19) pois ldquoeacute este caso que aqui nos interessardquo Assim eacute necessaacuterio elucidarmos aqui a distinccedilatildeo fundamental a respeito das concepccedilotildees de nobre e escravo bem como os motivos histoacutericos atraveacutes dos quais o

7Em algumas editoras a expressatildeo ldquoUmwertungrdquo eacute traduzida por ldquotransvaloraccedilatildeordquo O uso aqui de ldquotresvaloraccedilaordquo eacute devida agrave escolha da editora da obra Genealogia da Moral que por sua vez traduz a expressatildeo dessa maneira

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sentido originaacuterio dos valores correspondentes a ambos sofreu alteraccedilotildees

11 Moral de nobre e moral de escravo Para podermos definir com mais clareza o que diz

respeito agrave moral de nobre eacute preciso nos atermos ao que Nietzsche chama de ldquotraccedilo tiacutepico do caraacuteterrdquo Nobre e escravo satildeo dois conceitos para designar o modo como a moral eacute entendida em sua gecircnese portanto satildeo conceitos que expressam avaliaccedilatildeo e valoraccedilatildeo em forma de princiacutepio Em sentido propriamente filosoacutefico nobre e escravo satildeo duas dimensotildees ontoloacutegicas atraveacutes das quais a vida se mostra Eacute nesse sentido originaacuterio do valor que Nietzsche nos indica os conceitos de bom e ruim como inicialmente provindo da classe nobre este ao corresponder agrave vida em seu instinto espontacircneo e cego considera-se bom porque cumpre o papel de pertencimento ao movimento mediante o qual a vida se destina para ele o escravo eacute considerado ruim pelo nobre porque ao natildeo corresponder com a vida em sua forma de irrupccedilatildeo ele nega esse caraacuteter com ressentimento Portanto trata-se aqui da condiccedilatildeo proacutepria e essencial do homem O homem nobre sendo tambeacutem um homem guerreiro de discoacuterdia tem como caracteriacutestica de seu modo de ser a coragem Ele eacute homem de destemor com sede de domiacutenio e imposiccedilatildeo de sua forccedila eacute tambeacutem um homem que natildeo guarda maacutegoas nem rancor de seu inimigo pois mesmo seu inimigo sendo a sua imagem de contraste ele somente o despreza mas sem o sentimento de vinganccedila e ressentimento Sobre essa peculiaridade do homem nobre Nietzsche diz

[] por vezes natildeo reconhece a esfera por ele desprezada a do homem comum do povo baixo por outro lado considere-se que o afeto do desprezo do olhar de cima para baixo do olhar

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superiormente a supor que falseie a imagem do desprezado em todo caso estaraacute muito longe do falseamento com que o oacutedio estranhado a vinganccedila do impotente atacaraacute ndash in efiggie naturalmente ndash a do seu adversaacuterio (NIETZSCHE 2009 p 26)

Segundo o modo de valoraccedilatildeo nobre ldquobomrdquo eacute o impulso vital que se apropria dele eacute a vida em sua condiccedilatildeo originaacuteria eacute o fluxo do vir-a-ser destituiacutedo de interrupccedilotildees Logo ldquoruimrdquo segundo essa mesma concepccedilatildeo eacute tudo aquilo que natildeo constitui a vida desde a vontade inerente ao homem eacute o deixar com que a fraqueza constitua a vida eacute deixar-se conduzir pelo passado ou futuro e natildeo vivenciar o instante (ldquoAugenblickrdquo) que eacute a uacutenica garantia da vida tal como se destina para o homem Instante eacute aqui o reconhecimento e acolhimento do tempo como unidade do passado presente e futuro em uma eclosatildeo contiacutenua sem que haja oposiccedilatildeo entre ambos Desse modo podemos perceber com mais clareza donde se origina o conceito de ldquobomrdquo quando relacionado ao que Nietzsche chama de traccedilo tiacutepico do caraacuteter O sentido de valor na moral nobre estaacute relacionado ao ldquobomrdquo esse bom estaacute relacionado agrave maneira como se constitui sua vontade que eacute livre e espontacircnea essa vontade eacute o que constitui propriamente sua felicidade

Por outro lado a designaccedilatildeo do valor no sentido da moral escrava estaacute relacionada ao ldquoBemrdquo que condiz com a perspectiva da moral cristatilde o bem assim eacute o que permite o homem agir deste ou daquele modo pois ele eacute o princiacutepio por meio do qual as accedilotildees devem ser guiadas logo a vontade aqui eacute suprimida por um valor esse valor eacute tambeacutem um meio a partir do qual se deve seguir para alcanccedilar a felicidade a felicidade no entanto somente eacute possiacutevel num outro mundo jaacute que o valor de ldquoBemrdquo de acordo com a concepccedilatildeo cristatilde estaacute relacionado a um mundo suprassensiacutevel ndash daiacute a expressatildeo do termo ldquoescravordquo utilizada por Nietzsche o modo de ser escravo implica ser

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escravo de um ideal de um valor colocado como acima de si mesmo e da proacutepria vida

Como a natureza do homem nobre eacute dizer ldquosimrdquo agraves suas forccedilas espontacircneas em consequecircncia disso uma vez que suas forccedilas constituem um domiacutenio pode ser o caso de ser criada uma aristocracia uma classe favorecida um status social dominante em que haveraacute outra classe desfavorecida ndash a do homem escravo Este eacute o sentido ldquosecundaacuteriordquo da compreensatildeo de nobre e escravo pois eacute o caraacuteter que exprime a constituiccedilatildeo originaacuteria de ambos Ora sendo o homem escravo o desfavorecido segundo Nietzsche o que iraacute constituir sua vida seraacute o ressentimento para com os nobres por isso a moral de escravo eacute definida por Nietzsche como reativa A moral do escravo tambeacutem pode ser caracterizada como a moral judaico-cristatilde daiacute a figura do homem escravo ter atributos como de homem compassivo humilde fraco oprimido etc O homem escravo natildeo age a partir de si mesmo ele reage a partir de outrem Ele age em vista da utilidade da accedilatildeo ele precisa assegurar que sua accedilatildeo natildeo seraacute algo de prejudicial a si proacuteprio e por isso se torna escravo de um ideal de um valor de ldquobomrdquo criado por ele mesmo e postulado como em si e como determinante do mundo O sentido de bom aqui estaacute centrado na fraqueza numa espeacutecie de querer que a vida esteja em estabilidade em meio ao movimento incessante ldquoMaurdquo segundo esse modo de valorar seria toda a dinacircmica de conflito irrupccedilatildeo e destruiccedilatildeo pertencentes agrave vida Neste sentido a moral eacute utilizada como forma de combater o caraacuteter antagocircnico e conflituoso da existecircncia Poreacutem esse combate consiste em um recuo em uma rejeiccedilatildeo daquilo que faz parte da constituiccedilatildeo do viver Essa rejeiccedilatildeo pode ser melhor compreendida quando associada agravequilo que eacute designado por Nietzsche como ldquoressentimentordquo

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A rebeliatildeo escrava na moral comeccedila quando o proacuteprio ressentimento se torna criador e gera valores o ressentimento dos seres aos quais eacute negada a verdadeira reaccedilatildeo a dos atos e que apenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeo (NIETZSCHE 2009 p 26)

Ressentimento eacute o que possibilita a criaccedilatildeo de valores da moral escrava Mas natildeo somente isso o ressentimento eacute tambeacutem o modo atraveacutes do qual o escravo conserva sua vida Todavia no ressentir-se ldquoa verdadeira reaccedilatildeordquo eacute negada porque nela natildeo se manifesta a accedilatildeo que eacute desejada mas apenas o desejo da accedilatildeo O escravo natildeo estaacute na condiccedilatildeo de poder criar valores que correspondam ao devir (rdquoWerdenrdquo) por isso o uacutenico modo de se conservar eacute reagindo agrave mudanccedila e agrave efemeridade do mundo Assim ele reage criando valores que falsificam o vir-a-ser em detrimento de uma estabilidade que forneccedila garantia para a existecircncia

Na anaacutelise genealoacutegica dos valores Nietzsche nos chama atenccedilatildeo para o aspecto histoacuterico das guerras judaico-romanas O romano seria se quisermos traccedilar uma relaccedilatildeo mais precisa o povo mais privilegiado e por isso tambeacutem o povo nobre o judeu entatildeo seria o povo de sacerdotes o povo escravo O termo ldquoressentimentordquo eacute de grande importacircncia para o entendimento do caraacuteter do povo judeu Se por um lado o homem nobre na medida em que sendo um homem de guerra natildeo se ressentia de seus inimigos pelo simples fato de desprezaacute-los por outro o homem escravo carrega consigo um ressentimento uma sede de vinganccedila contra seus inimigos os nobres Como se sabe o povo judeu pode ser definido tambeacutem como o povo cristatildeo pois eacute dele que proveacutem o cristianismo Quando a Judeia assume o poder ao conquistar a vitoacuteria contra Roma uma nova moralidade se impotildee como dominante por parte dos escravos daiacute a frase inicial sobre ldquoa rebeliatildeo

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escrava na moralrdquo O que fundamenta essa moral eacute o ressentimento e eacute esse ressentimento que cria os valores estabelecidos como condutores da vida O importante aqui no que concerne ao termo ldquovalorrdquo eacute que ele tem um sentido diferente do que vem a ser ldquovalorrdquo na moral de nobre

Com isto logo se faz perceber a distinccedilatildeo entre moral de nobre e moral de escravo A moral de escravo que se constitui a partir do ressentimento eacute a moral dos cristatildeos8 que ldquoapenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeordquo uma vez que deixam o ldquocastigordquo aos seus inimigos para Deus Assim o valor antiacutepoda ao ldquobemrdquo eacute denominado de ldquomalrdquo ndash ambos valores que natildeo se encontravam estabelecidos na cultura de um modo geral para o homem Por conseguinte todo o modelo da cultura e da civilizaccedilatildeo ocidental vem a ganhar uma expressatildeo diferente da que antes se apresentara Essa mudanccedila eacute o que vem a ser a inversatildeo dos valores morais por parte dos judeus Nietzsche diz

Nada do que na terra se fez contra ldquoos nobresrdquo ldquoos poderososrdquo ldquoos senhoresrdquo ldquoos donos do poderrdquo eacute remotamente comparaacutevel ao que os judeus contra eles fizeram os judeus aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas atraveacutes de uma radical tresvaloraccedilatildeo dos valores deles ou seja por um ato da mais vinganccedila espiritual (NIETZSCHE 2009 p 23)

8 A relaccedilatildeo entre a jaacute mencionada ldquorebeliatildeo escrava na moralrdquo e a instauraccedilatildeo do cristianismo no Ocidente exprime uma mesma concepccedilatildeo ldquoA verdade da primeira dissertaccedilatildeo eacute a psicologia do cristianismo o nascimento do cristianismo do espiacuterito do ressentimento natildeo como se crecirc do ldquoespiacuteritordquo ndash um antimovimento em sua essecircncia a grande revolta contra a dominaccedilatildeo dos valores nobresrdquo (NIETZSCHE 2008b p 93)

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A vitoacuteria do povo judeu contra o povo romano desencadeou uma manifestaccedilatildeo invertida dos valores morais que por seu turno caracterizou o padratildeo da cultura ocidental O que antes era visto como fraco inferior e ruim passou a ser visto como forte superior e bom se antes o que caracterizava a bondade do homem juntamente com seu poder era o modo como ele se impunha como guerreiro posteriormente o que passou a ser propagado como bom foi o ideal do homem compassivo fraco e oprimido sendo este ideal uma forma de o homem voltar-se contra a proacutepria vida A impotecircncia do homem paradoxalmente passou a ser sua forccedila pois o que constituiacutea o homem ldquoforterdquo agora era a promessa de outro mundo transcendente e suprassensiacutevel onde ele seria recompensado por todas as opressotildees que sofreu no mundo ldquoterrestrerdquo e posteriormente regozijar-se-ia na eterna e soberana paz Essa eacute a perspectiva do cristianismo a promessa de Deus segundo a qual o ceacuteu seraacute dos oprimidos dos que sofrem dos que satildeo humilhados dos que satildeo compassivos Quando o plano dos valores morais foi invertido pelos judeus o que passou a predominar foram os valores judaico-cristatildeos de acordo com os princiacutepios biacuteblicos do Novo Testamento

Esses ideais satildeo as leis que constituiacuteram e constituem ateacute hoje a histoacuteria da civilizaccedilatildeo ocidental Dessa forma a vinganccedila como antes fora mencionada eacute deixada para um futuro ndash que os cristatildeos chamam de ldquojuiacutezo finalrdquo ndash o que aparece aqui como uma vontade da vontade e natildeo propriamente a vontade ldquoVontade da vontaderdquo consiste em vontade rebelada contra si proacutepria e uma vez que a vontade de poder em seu curso natural eacute constituiacuteda atraveacutes da espontaneidade e do fluir da pulsaccedilatildeo o querer e

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a accedilatildeo satildeo apenas um soacute ato quantum de impulso corresponde a quantum de forccedila9

O que eacute importante salientar eacute que tanto a valoraccedilatildeo nobre quanto a do escravo fazem mostrar o modo proacuteprio como a vontade de poder se destina ao homem Isto pode ser visto de maneira impliacutecita em tal passagem do Zaratustra ldquoOutrora os povos suspendiam por cima de si uma taacutebua do bem O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer criaram juntos para si essas taacutebuasrdquo (NIETZSCHE 1987 p 75) A conotaccedilatildeo do termo ldquoamorrdquo nos indica o que vem a ser vontade de poder Eacute a vontade de poder que cria atraveacutes do homem em seu avaliar as taacutebuas de valores Ora isto significa que a existecircncia de diferentes morais natildeo tem seu meacuterito uacutenica e exclusivamente no homem pois este natildeo eacute propriamente livre no sentido de ter um livre-arbiacutetrio e de ser plenamente capaz de escolher qual caminho seguir por uma autonomia da consciecircncia ldquoO homem natildeo eacute a consequecircncia de uma intenccedilatildeo proacutepriardquo (NIETZSCHE 2000 p 50)10 O homem natildeo eacute condicionado a criar valores por uma forccedila que eacute propriamente dele no sentido de pertencer ao seu ldquointeriorrdquo mas sim por muacuteltiplas vontades que estatildeo no mundo de modo a constituiacute-lo Vontade de poder eacute o que condiciona o mando e a obediecircncia as apreciaccedilotildees de valor nobre e escravo

Como vimos o caraacuteter do homem nobre eacute definido por Nietzsche como ativo ao passo que o caraacuteter do escravo eacute definido como passivo Tal caracterizaccedilatildeo pode ser melhor compreendida a partir da seguinte citaccedilatildeo

9 ldquoUm quantum de forccedila equivale a um mesmo quantum de impulso vontade atividade ndash melhor nada mais eacute senatildeo este mesmo impulso este mesmo querer e atuarrdquo (NIETZSCHE 2009 p 33)

10Os quatro grandes erros

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Que eacute ldquopassivordquo resistir e reagir Ser obstruiacutedo no movimento que se projeta para frente portanto um agir da resistecircncia e da reaccedilatildeo Que eacute ldquoativordquo Lanccedilar-se em direccedilatildeo ao poder (NIETZSCHE 2013 5 (64) p 176)

A conotaccedilatildeo de passivo estaacute relacionada ao que

Nietzsche chama de resistir e reagir Mas o que significa resistir e reagir Eacute a condiccedilatildeo atraveacutes da qual o ser passivo se conserva A reaccedilatildeo eacute referente ao movimento proacuteprio do mundo que por sua vez designa um incessante fluxo de forccedilas ela eacute uma forccedila contraacuteria a esse fluxo Em resistindo tal eacute o modo como aquele que reage preserva sua vida Esse modo de preservar a vida constitui uma ldquoobstruccedilatildeordquo de si proacuteprio no que tange agraves forccedilas instintivas e ativas da condiccedilatildeo espontacircnea da vida Obstruir-se significa natildeo aceitar a vida e reagir ao movimento que lhe eacute proacuteprio Reaccedilatildeo poreacutem exprime ao mesmo tempo de onde ela proveacutem a saber da vida Natildeo haacute uma forccedila que condiciona a reaccedilatildeo que seja distinta do que natildeo eacute reaccedilatildeo Pode-se afirmar inclusive que tudo eacute ldquoaccedilatildeordquo no sentido de que tudo proveacutem do mesmo ndash vontade de poder ndash que se manifesta de modos distintos Esse elemento de distinccedilatildeo a partir do qual a vontade se manifesta eacute o que caracteriza accedilatildeo e reaccedilatildeo A accedilatildeo relacionada ao que Nietzsche chama de ldquoativordquo eacute um pertencimento do homem ao que condiciona sua atividade a reaccedilatildeo diz respeito a uma rejeiccedilatildeo do que condiciona todo acontecimento Todavia o homem natildeo pode reagir atraveacutes de outro condicionamento porque tudo eacute vontade de poder

Por outro lado o que significa propriamente ldquoativordquo Eacute a forma com que o homem se direciona ao poder isto eacute ao inesgotaacutevel retorno ao poder Poder-se-ia poreacutem objetar mas uma vez que tudo proveacutem de uma mesma forccedila tudo natildeo estaria direcionado ao poder A

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resposta seria sim e natildeo Sim porque agrave medida que accedilatildeo e reaccedilatildeo provecircm da vontade de poder ambas soacute se constituem enquanto direcionadas a essa vontade por outro lado natildeo porque o direcionar-se ao poder como maneira ativa caracteriza um dizer ldquosimrdquo portanto um querer uma aceitaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo tal como se manifesta aceitaccedilatildeo esta que natildeo ocorre na reaccedilatildeo

12 Vontade de poder como movimento de auto superaccedilatildeo

Para que possamos compreender com mais clareza

o sentido proacuteprio de vontade de poder tomemos como exemplo a seguinte citaccedilatildeo ldquoUma taacutebua de tudo o que eacute bom estaacute suspensa por cima de cada povo Vede eacute a taacutebua do que ele superou eacute a voz de sua vontade de poderrdquo (NIETZSCHE 1987 p 74)11 Cada povo tem seu modo de conceber e portanto valorar o que eacute bom Aquilo que eacute bom para um povo eacute o que eacute colocado como valor superior O bom proveacutem de um esforccedilo de direcionar-se para poder valorar esforccedilo que eacute condicionado por vontade de poder Tal vontade se constitui como um movimento de superaccedilatildeo de si mesma essa superaccedilatildeo se caracteriza como uma forccedila incontrolaacutevel provinda de um impulso constituinte da vida Superar a si mesmo a partir da concepccedilatildeo da vontade de poder significa romper com o atual para se realizar em uma nova dinacircmica de ser daiacute a afirmaccedilatildeo de que ldquomas um poder mais forte uma nova superaccedilatildeo nasce de vossos valores ela faz romperem-se o ovo e a casca do ovordquo (NIETZSCHE 1987 p 128)12 ldquoRomper o ovo e casca do ovordquo tem relaccedilatildeo com a maneira atraveacutes da qual a vida irrompe com o atual e se apropria do homem fazendo surgir uma nova perspectiva

11De mil e um fitos primeira parte

12Do superar si mesmo segunda parte

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Na seguinte passagem de Assim falou Zaratustra o conceito de vontade de poder eacute definido assim ldquoCom os vossos valores e palavras do bem e o do mal exerceis poder oacute voacutes que estabeleceis valoresrdquo (NIETZSCHE 1987 p 128)13 A essecircncia do homem consiste em exercer poder atraveacutes dos valores Como foi dito antes os valores de bom e mau satildeo os valores que o homem avalia como necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da vida Essa conservaccedilatildeo consiste em avaliar o que eacute de valor superior e o que eacute de valor inferior para si proacuteprio Na frase aqui citada nos aparece os termos bem e mal Contextualmente esses termos correspondem imediatamente agravequeles outros isto eacute bom e mau Bom e mau tecircm relaccedilatildeo com bem e mal ambos no sentido da moralidade cristatilde Nietzsche natildeo define a moral de nobre como tendo essa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo e sim em uma relaccedilatildeo entre bom e ruim O bom como derivaccedilatildeo de um princiacutepio universal ndash o bem ndash e o mau como derivaccedilatildeo tambeacutem de um valor universal ndash o mal ndash seriam modos de avaliaccedilatildeo da moral de escravo14 Em Aleacutem do bem e do mal eacute dito que

A moral dos escravos eacute essencialmente uma moral de utilidade Aqui estaacute o foco de origem da famosa

13Do superar si mesmo segunda parte

14Essa distinccedilatildeo pode ser um pouco mais esclarecida na seguinte citaccedilatildeo ldquoEste lsquoruimrsquo de origem nobre e aquele lsquomaursquo que vem do caldeiratildeo do oacutedio insatisfeito ndash o primeiro uma criaccedilatildeo posterior secundaacuteria cor complementar o segundo o original o comeccedilo o autecircntico feito na concepccedilatildeo de uma moral escrava ndash como satildeo diferentes as palavras lsquomaursquo e lsquoruimrsquo ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de lsquobomrsquordquo (NIETZSCHE 2009 p 28-29) O elemento que se estaacute a destacar eacute a diferenciaccedilatildeo entre a maneira de avaliar nobre e a escrava Assim como o ldquoruimrdquo (ldquoschlechtrdquo) do nobre natildeo corresponde ao ldquomaurdquo (ldquoboumlserdquo) da moral do escravo tambeacutem o ldquobomrdquo (ldquogutrdquo) do nobre eacute totalmente distinto do ldquobomrdquo (ldquogutrdquo) do escravo Embora seja utilizada a mesma palavra para indicar o bom o sentido e o conteuacutedo do valor eacute outro

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oposiccedilatildeo ldquobomrdquo e ldquomaurdquo ndash no que eacute mau se sente poder e periculosidade uma certa terribilidade sutileza e forccedila que natildeo permite o desprezo Logo segundo a moral dos escravos o ldquomaurdquo inspira medo segundo a moral dos senhores eacute precisamente o ldquobomrdquo que desperta e quer despertar medo enquanto o homem ldquoruimrdquo eacute sentido como despreziacutevel (NIETZSCHE 2005 p 158)

Na perspectiva de Nietzsche a pergunta pelo significado dos valores morais soacute pode ser respondida sob a compreensatildeo do elemento da origem de tais valores A vontade de poder enquanto forccedila que se destina incontrolavelmente para o homem aparece como esse elemento que natildeo apenas eacute criador da moral mas tambeacutem distintivo A filosofia de Nietzsche enquanto criacutetica dos valores se estabelece como uma criacutetica do valor dos valores Isto nos indica que eacute preciso uma anaacutelise acerca da criaccedilatildeo dos valores Essa criaccedilatildeo tem como ponto de partida uma origem a partir da qual todos os valores dela provecircm essa origem por sua vez eacute o valor dos valores

O elemento criador dos valores eacute a avaliaccedilatildeo a avaliaccedilatildeo no entanto natildeo se confunde com os valores visto que ela eacute o elemento originaacuterio do valor dos valores O filoacutesofo francecircs Gilles Deleuze (1976 p 4) ao interpretar essa relaccedilatildeo entre avaliar e valorar escreve ldquoAs avaliaccedilotildees referidas a seu elemento natildeo satildeo valores mas maneiras de ser modos de existecircncia daqueles que julgam e avaliam servindo precisamente de princiacutepios para os valores em relaccedilatildeo aos quais eles julgamrdquo Avaliaccedilotildees como ldquomaneiras de serrdquo se referem agrave vontade de poder como manifestaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo da existecircncia

Quando associamos essa relaccedilatildeo entre avaliar e valorar agraves perspectivas do nobre e do escravo percebemos que estes natildeo satildeo valores mas meios atraveacutes dos quais se constituem a origem do valor dos valores de ambas as

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morais O elemento diferencial dos valores eacute o sentimento de distacircncia conforme podemos analisar na seguinte citaccedilatildeo ldquoEnquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma jaacute de iniacutecio a moral escrava diz Natildeo a um lsquoforarsquo um lsquooutrorsquo um lsquonatildeo-eursquo ndash e este Natildeo eacute seu ato criadorrdquo (NIETZSCHE 2009 p 26)

O elemento diferencial dos valores se encontra na diferenccedila das forccedilas que se exprimem enquanto valoraccedilatildeo da proacutepria forccedila Como essas forccedilas estatildeo em conflito umas com as outras e assim possuem entre si uma hierarquia por conseguinte os valores que provecircm dessas forccedilas tambeacutem iratildeo se caracterizar como distantes entre si Assim todo valor predominante e superior a outro estaacute numa relaccedilatildeo com uma forccedila predominante e superior a outra forccedila Multiplicidade de vontades constituem lutas entre si acircnsia por mais poder e por domiacutenio portanto constituem hierarquia e consequentemente distinccedilatildeo A distinccedilatildeo eacute sempre relativa ao grau de poder exercido pela vontade ldquoA quantidade de poder que tu eacutes decide sobre a distinccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2008a sect 858 p 431) Conclusatildeo

Esta anaacutelise acerca do fundamento do valor leva-

nos a mergulhar dentro da problemaacutetica nietzschiana dos valores Uma primeira pergunta que se pode fazer eacute se um valor eacute a expressatildeo de uma forccedila que o avalia enquanto tal o que existe por traacutes de uma coisa quando esta ainda natildeo foi avaliada A resposta para esta pergunta seria que nada existe Por traacutes de uma coisa natildeo avaliada e portanto natildeo valorada existe uma realidade destituiacuteda de valor que eacute somente puro devir Assim quando pensamos a realidade como um todo percebemos esse todo como essencialmente vazio de significado e sentido O que daacute significado ao todo eacute o ato de avaliaacute-lo pois eacute a partir dessa avaliaccedilatildeo que se tem a origem dos valores que lhe atribuem

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sentido Nem o todo nem os atos de valoraacute-lo possuem valores em si os proacuteprios atos fazem parte do todo logo todo e qualquer valor eacute criaccedilatildeo proveniente daquele que cria ldquo uma accedilatildeo em si eacute totalmente vazia de valor tudo depende de quem a fazrdquo (NIETZSCHE 2008a sect 292 p 168)

Com isto logo percebemos o ponto culminante da concepccedilatildeo nietzschiana de mundo uma vez que o todo eacute essencialmente desprovido de valor a realidade das coisas tanto natildeo possui verdade como natildeo possui relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre valores A verdade e a oposiccedilatildeo entre valores surgem agrave medida que o homem as cria Valores satildeo perspectivas que por sua vez satildeo interpretaccedilotildees da vontade de poder com relaccedilatildeo agrave realidade pois ldquoTodas as vontades de poder ex-potildeem interpretamrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 124) Assim nos diferentes valores encontramos diferentes interpretaccedilotildees referentes ao que se mostra pois ldquoNossos valores satildeo introduzidos nas coisas pela interpretaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2008a sect 590 p 310) Referecircncias DELEUZE Gilles Nietzsche e a filosofia Trad Ruth Joffily

Dias e Edmundo Fernandes Dias Rio de Janeiro Editora Rio 1976

MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A doutrina da vontade de poder em Nietzsche Trad de Oswaldo Giacoia Junior Satildeo Paulo ANNABLUME 1997

NIETZSCHE Friedrich Wilhelm A vontade de poder Trad Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Morais Rio de Janeiro Contraponto 2008a

___________________________ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Cesar Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2005

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___________________________ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1987

___________________________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Trad Marco Antonio Casa Nova Rio de Janeiro 2000

___________________________ Ecce homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2008b

___________________________ Fragmentos Poacutestumos Volume VI Trad Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 2013

___________________________ Genealogia da moral Trad Paulo Cesar Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2009

Heidegger e o conceito de fusij

no fragmento 16 de Heraacuteclito

Robson Costa Cordeiro1

Na preleccedilatildeo que realizou no semestre de veratildeo de 1843 intitulada A origem do pensamento ocidental Heraacuteclito Heidegger procura a partir do fragmento 16 de Heraacuteclito verificar o que constitui o a-se-pensar originaacuterio Originaacuterio para Heidegger remete agrave origem do pensamento Eacute preciso contudo distinguir origem de comeccedilo A origem o princiacutepio natildeo eacute algo que comeccedila entra em vigor e fica para traacutes como o que agora eacute apenas passado O princiacutepio nunca perde o vigor e estaacute sempre por vir Em Hinos de Houmllderlin Heidegger deixa isso claro

lsquoComeccedilorsquo ― eacute alguma coisa diferente de lsquoprinciacutepiorsquo Uma nova condiccedilatildeo meteoroloacutegica por exemplo comeccedila com uma tempestade mas o seu princiacutepio eacute a total alteraccedilatildeo das condiccedilotildees atmosfeacutericas que atua previamente Comeccedilo eacute aquilo com que algo se inicia o princiacutepio eacute aquilo de onde algo se origina (HEIDEGGER 1999 p 3)

Em Hinos de Houmllderlin Heidegger comeccedila analisando o poema Germacircnia E o que significa falar no contexto da anaacutelise desse poema de comeccedilo Heidegger comeccedila com o poema Germacircnia para chegar ao princiacutepio agrave origem pois eacute somente partindo de um iniacutecio que se pode chegar ou mesmo se indicar a origem Quando fala origem do pensamento ocidental Heidegger natildeo estaacute falando do seu

1 Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba Coordenador do Grupo de Pesquisa Corpo e Fenomenologia E-mail robsonccordeirobolcombr

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comeccedilo como de uma determinada sentenccedila de um pensador que em uma determinada data teria feito comeccedilar o pensamento ocidental O que ele estaacute procurando indicar eacute que a partir da fala de um determinado pensador (como seria o caso da fala de Heraacuteclito no fragmento 16) se poderia chegar ou entatildeo indicar a origem fazer a experiecircncia da origem do pensamento ocidental No caminho que constitui essa experiecircncia conforme estaacute

insinuado no fragmento 16 Heidegger encontra a fusij

enquanto misteacuterio do ser Mas o que procura Heidegger ao regressar aos gregos natildeo eacute um retorno ao que foi pensado na aurora da nossa histoacuteria anteriormente ao decliacutenio do pensamento metafiacutesico com Platatildeo Segundo Zarader uma possibilidade mais clara consistiria ldquoem compreender o movimento heideggeriano como um reenvio natildeo ao pensamento do comeccedilo mas ao seu impensadordquo (sd p 348) Tratar-se-ia segundo ela da ldquopaciente explicitaccedilatildeo de uma questatildeo que nos interpela em silecircncio desde a manhatilde de nosso destino e que nos interpela tanto mais fortemente quanto nunca lhe demos ouvidosrdquo (Id Ibid p 348) Decerto que isso soacute pode ser feito a partir do texto da liacutengua no caso a grega na qual a origem foi inscrita A origem se distingue do comeccedilo porque eacute a partir da origem que o comeccedilo pocircde ser o que ele foi As palavras de origem pois satildeo as palavras que ldquopronunciadas no comeccedilo foram em parte iluminadas pelo pensamento em parte deixadas na sombra do impensadordquo (Id Ibid p 348) De onde vem o poder do pensamento de Heraacuteclito para ainda nos inquietar apoacutes mais de 25 seacuteculos De modo algum devido ao caraacuteter atemporal ou eterno do seu pensamento Segundo Carneiro-Leatildeo ldquoa atualidade de Heraacuteclito emerge e brota da proacutepria vigecircncia histoacuterica do seu pensamentordquo (2010 p 153) Eacute por ser histoacuterico que o pensamento de Heraacuteclito fez histoacuteria pois remete para a proacutepria dinacircmica da histoacuteria como o que nos interpela no

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silecircncio do seu resguardo Em seu primeiro soneto a Orfeu Rilke falou do movimento de elevaccedilatildeo e brotaccedilatildeo de realidade quando tudo silenciou quando conforme ele anuncia ldquono silecircncio unacircnime nasceu novo princiacutepio gesto e transformaccedilatildeordquo (RILKE 2000 p 21) Novo princiacutepio na verdade estaacute se referindo ao velho antiquiacutessimo princiacutepio que eacute o que sempre volta a principiar em toda inauguraccedilatildeo de realidade Mas o velho por sempre voltar a principiar eacute sempre o novo o mais jovial cheio de vitalidade e plenitude Por isso por nunca cessar de principiar eacute sempre novo princiacutepio novo gesto e nova transformaccedilatildeo Eacute isto o que procuraremos pensar a partir do fragmento 16 de Heraacuteclito que reza to mh du=non pote pw=j a)=n tij laqoi Heidegger coloca o fragmento 16 como o primeiro no sentido daquele que toca o nuacutecleo dominante daquilo que constitui para os primeiros pensadores dentre eles Heraacuteclito o a-se-pensar originaacuterio Desse modo ele natildeo segue a claacutessica divisatildeo dos fragmentos conforme foi estabelecida por Diels A sua primeira traduccedilatildeo para o fragmento eacute a seguinte ldquoComo algueacutem poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez jaacute natildeo declina A traduccedilatildeo segundo Heidegger natildeo precisa ser literal mas fiel agrave palavra do pensador Portanto natildeo se trata de uma mera justaposiccedilatildeo de palavras quase mecacircnica mas sim de poder vislumbrar a partir da totalidade da sentenccedila o poder de nomeaccedilatildeo e conjunccedilatildeo das palavras Enquanto interpretaccedilatildeo a traduccedilatildeo consiste em conduzir para uma outra margem desconhecida que se encontra do outro lado do rio largo e amplo que eacute aquilo que se tem de pensar originariamente a fusij como o misteacuterio do ser Atraveacutes da traduccedilatildeo Heidegger pretende passar para a outra margem do rio procurando pensar o impensado nas palavras do pensador grego conduzindo assim o pensamento agrave sua rememoraccedilatildeo (Andenken) que sendo rememoraccedilatildeo do impensado eacute ao mesmo tempo impulso

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para o novo para o futuro (Vordenken) Portanto eacute a partir da provocaccedilatildeo suscitada pelo pensador originaacuterio que Heidegger pensa natildeo somente o impensado das suas palavras mas tambeacutem o proacuteprio destino de sua eacutepoca como a eacutepoca do predomiacutenio teacutecnico e do pensamento calculador em que os deuses estatildeo foragidos e em que a fusij torna-se mundo manipulaacutevel e objetivaacutevel pelo sujeito Heidegger considera que soacute o pensamento originaacuterio traz em si encoberto um tesouro que permanece impensaacutevel e que desde esse estar encoberto propicia ser cada vez melhor compreendido o que significa dizer ser compreendido de maneira diferente da literal A interpretaccedilatildeo realiza o que silencia na palavra literal trazida pela traduccedilatildeo e eacute por isso que mesmo na proacutepria liacutengua eacute preciso que se traduza Com a traduccedilatildeo desse modo se pretende compreender melhor aquilo que jaacute foi compreendido pelo proacuteprio autor Mas na verdade ldquoesse compreender melhor natildeo eacute nunca o meacuterito do inteacuterprete mas o presente do interpretadordquo (HEIDEGGER 1994 p 64) Nietzsche tambeacutem jaacute tinha pensado algo parecido no contexto do seu pensamento acerca da vontade de poder ao colocar e procurar responder ao seguinte questionamento ldquoEacute afinal necessaacuterio ainda pocircr o inteacuterprete por traacutes da interpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia hipoacuteteserdquo (NIETZSCHE 1980 sect 481 p 337)

O fragmento 16 se encontra em uma passagem do Pedagogo de Clemente de Alexandria que viveu entre 160-220 dc Segundo Heidegger Clemente de Alexandria utiliza esse fragmento para sustentar um pensamento teoloacutegico e pedagoacutegico como comentaacuterio agrave seguinte passagem do livro primeiro dos oraacuteculos de Isaiacuteas profeta de Israel ldquoAi daqueles que procuram esconder-se de Javeacute para ocultar seus proacuteprios projetos Agem nas trevas dizendo lsquoQuem nos vecirc Quem nos conhecersquordquo (ISAIacuteAS 29 15-16) Em seu comentaacuterio Clemente de Alexandria procura mostrar que eacute

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possiacutevel esconder-se da luz sensiacutevel do sol mas natildeo da claridade do olho inteligiacutevel de Deus que segundo o Evangelho de Mateus (66) ldquovecirc no escondidordquo

Em Os trabalhos e os dias Hesiacuteodo (v 267) mostra que o olho de Zeus tambeacutem vecirc tudo ldquoO olho de Zeus que tudo vecirc e assim tudo saberdquo (panta i)dwn Dioj o)fqalmoj

kai panta nohsaj) (HESIacuteODO 1991 p 43) Para Hegel na culminaccedilatildeo do pensamento moderno o que era inicialmente inacessiacutevel e obscuro deve ser trazido para a luz de um saber incondicional O projeto do seu sistema eacute acabar com todo resquiacutecio de obscuridade conforme mostra a conclusatildeo de sua preleccedilatildeo inaugural na universidade de Heidelberg em 28 de outubro de 1816

A essecircncia do universum inicialmente escondida e encoberta natildeo possui forccedila para opor resistecircncia agrave coragem do conhecimento ela (a essecircncia do universum) deve-se abrir-se diante dele (do pensamento da filosofia) e pocircr diante de seus olhos a sua riqueza e a sua profundidade deixando-se por ele aproveitar (Apud HEIDEGGER 1994 p 29-30)

Diante disso a pergunta decisiva para Heidegger

seria Por que o universo isto eacute o absoluto natildeo tem em si forccedila alguma de resistecircncia em afirmar a sua essecircncia velada diante do poder explorador do conhecimento metafiacutesico A resposta segundo ele seria porque a vontade de mostrar-se eacute a essecircncia do absoluto e este seria o pressuposto do sistema-Enciclopeacutedia de Hegel (HEIDEGGER 2007 p 145) O que temos agora de fazer eacute pocircr em questatildeo a relaccedilatildeo da sentenccedila de Heraacuteclito com as interpretaccedilotildees de Clemente de Alexandria e Hegel A sentenccedila eacute to mh du=non

pote pw=j a)=n tij laqoi (ldquoComo algueacutem poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez jaacute natildeo declina) A sentenccedila coloca uma pergunta embora decirc a impressatildeo agrave

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primeira vista de que se trata de uma pergunta retoacuterica que apenas reforccedilaria o sentido de uma afirmaccedilatildeo

Mas por que a tendecircncia eacute ver na sentenccedila uma afirmaccedilatildeo velada em forma de pergunta e natildeo uma autecircntica genuiacutena pergunta Parece ser pelo fato de que sempre jaacute partimos do pressuposto de que a essecircncia tem o sentido de luz presenccedila seja a luz do olho inteligiacutevel de Deus do qual natildeo poderiacuteamos nunca nos esconder seja a luz do poder revelador do espiacuterito absoluto A estrutura da sentenccedila eacute a seguinte De iniacutecio nos temos to mh du=non

pote (ldquoo que jaacute natildeo declinardquo) Entretanto natildeo eacute dito o que eacute isso que nunca declina A suspeita que persiste nas interpretaccedilotildees vigentes eacute considerar o que jaacute natildeo declina como uma espeacutecie de observador que nada deixa escapar e que estaacute sempre a espreitar o homem como foi o caso da interpretaccedilatildeo que Clemente de Alexandria fez a partir da sentenccedila de Heraacuteclito e da poesia de Hesiacuteodo Ou entatildeo se considera o que nunca declina no sentido do espiacuterito absoluto como o fez Hegel cuja vontade de mostrar-se seria a sua proacutepria essecircncia

Em seguida o fragmento diz pw=j a)=n tij (ldquocomo algueacutem poderiardquo) No tij no algueacutem estaacute implicado o homem embora tambeacutem natildeo esteja dito o que eacute ser homem Por fim tambeacutem eacute dito no final do fragmento laqoi (estar encoberto) Duas perguntas parecem entatildeo impor-se 1) Quem eacute o homem este algueacutem sobre quem se fala de algo que jaacute natildeo declina O que eacute isto que jaacute natildeo declina diante do qual o homem natildeo poderia manter-se encoberto O fragmento pergunta de maneira essencial pelo pw=j (como) isto eacute pelo modo como o homem poderia manter-se encoberto face ao que nunca declina Mas ao falar ldquoface ao que nunca declinardquo parece que estamos falando ldquodianterdquo de um observador de um ser que tudo observa e que nada deixa escapar To mh du=non pote (ldquoo que jaacute natildeo declinardquo) desse modo parece indicar um

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substrato um ente uma essecircncia no sentido de algo que estaacute sempre presente tudo observando sabendo e vendo

A expressatildeo to mh du=non pote remete para uma experiecircncia com o verbo dunein que estaacute ligado ao verbo duw que significa aprofundar mergulhar O sol no poente mergulha no mar e aiacute declina mas o seu declinar natildeo eacute o seu aniquilamento Pensado de modo grego de acordo com o sentido do verbo dunein declinar significa o desaparecer da presenccedila como modo de sair e penetrar no que se encobre No entanto segundo Heidegger isso eacute algo bem diferente do modo como noacutes modernamente compreendemos o declinar entendendo-o como aniquilar-se natildeo ser mais Pensado de modo grego ao contraacuterio ele mostra que ldquodeclinar eacute antes lsquoumrsquo ser ou ateacute mesmo o ser O declinar eacute um tornar-se encoberto e um encobrimento em grego lanqanw laqwrdquo (HEIDEGGER 1994 p 50) O desaparecer da presenccedila para Heraacuteclito natildeo significa deixar de ser ou de vigorar mas entrar em latecircncia como o que possibilita o espaccedilo de toda vigecircncia O vigente natildeo eacute soacute o presente o presentemente presente mas tambeacutem o passado e o futuro nos quais vigora natildeo a patecircncia do presente mas a latecircncia do ausente

As palavras fundamentais da sentenccedila portanto satildeo du=non (o que declina) e laqoi (o encobrimento) Mas o fragmento de Heraacuteclito natildeo fala de um decliacutenio e sim de algo que natildeo declina E ao falar do que natildeo declina Heraacuteclito natildeo estaacute pensando o mesmo que Hegel ao falar do Universo do Absoluto cuja essecircncia eacute vontade de mostrar-se A diferenccedila radical parece residir no seguinte Enquanto que para Heraacuteclito eacute o homem que natildeo pode manter-se encoberto face ao que nunca declina para Hegel o que se descobre eacute o que natildeo pode resistir ao poder de conquista do homem

A questatildeo essencial para Heidegger natildeo eacute procurar saber o que eacute aquilo que natildeo declina pois isto jaacute pressupotildee que estamos pensando de maneira comum E por que

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Porque segundo ele to d=u=non natildeo tem um sentido inequiacutevoco sendo o seu significado de natureza ambiacutegua devido ao caraacuteter do particiacutepio grego To d=u=non eacute o particiacutepio presente ativo do verbo dunw Conforme mostra Heidegger particiacutepio eacute a traduccedilatildeo romana da expressatildeo grega h( metoxh que significa a participaccedilatildeo o ter parte em Como termo teacutecnico da gramaacutetica grega h( metoxh diz respeito agrave forma verbal que participa compartilha tanto do nome e do substantivo como do modo de ser do verbo e da accedilatildeo sendo assim verbo e nome ao mesmo tempo

To d=u=non portanto natildeo significa primordialmente uma coisa que se potildee declina mas um processo a accedilatildeo de declinar Meta (que com o genitivo significa com em companhia de) e e)xw (tenho possuo) formam a estrutura da palavra metoxh acentuando o caraacuteter de participaccedilatildeo de companhia entre o ter e o ser o que mostra segundo Carneiro-Leatildeo que em tudo que se tem ldquoeacute preciso ser o que se tem para se poder ter de modo criadorrdquo Desse modo segundo ele revela-se que ldquoeacute o verbo que sustenta o substantivordquo (CARNEIRO-LEAtildeO 2010 p 176) Portanto quando a preocupaccedilatildeo fundamental eacute questionar acerca do que eacute aquilo que natildeo declina eacute porque a pergunta jaacute se move a partir da distinccedilatildeo claacutessica entre ser e agir substacircncia e acidente coisa e atividade sujeito e processo ou seja a partir da pressuposiccedilatildeo de que toda accedilatildeo eacute accedilatildeo de um sujeito E poderia ser diferente Poderia haver accedilatildeo sem sujeito

Para o modo de pensar moderno decerto que natildeo Se natildeo haacute subjetividade sem objetividade ou vice-versa ou seja se subjetividade-objetividade constituem um processo isto contudo natildeo significa que o processo seja algo constituiacutedo pelo sujeito ou o objeto ou entatildeo pelo sujeito e objetos juntos em uma dialeacutetica E por que natildeo Porque sujeito e objeto e toda dialeacutetica de constituiccedilatildeo se formam a partir do processo constituinte (CARNEIRO-LEAtildeO 2010 p 168) Isto parece indicar uma prioridade do

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processo da accedilatildeo do verbo com relaccedilatildeo ao nome ao sujeito Essa relaccedilatildeo entre verbo e nome aparece conforme mostramos acima no particiacutepio grego e eacute utilizando o particiacutepio que os pensadores gregos se referem ao ser de tudo o que estaacute sendo como a questatildeo fundamental da filosofia Em Metafiacutesica Aristoacuteteles coloca a questatildeo desse modo ti to o)n que equivale agrave questatildeo tij h( ou)sia (ARISTOacuteTELES 1990 1028 b4 p 322) No iniacutecio do livro G ele fala que haacute uma ciecircncia que contempla o ente enquanto ente )Estin e)pisthmh tij h( qewrei+ to o)n $)= o)n (Id Ibid 1003 a21-22 p 150)

Sendo particiacutepio de ei=)nai to ouml)n o sendo o que estaacute sendo eacute uma delimitaccedilatildeo do real em sua realizaccedilatildeo isto eacute na perspectiva de ser e realizar-se Portanto ao falar de to ouml)n o sendo os pensadores estatildeo procurando pensar a partir dele o ei=)nai o ser que eacute sempre mais antigo do que tudo que estaacute sendo isto eacute do que todo real Mas a partir dessa referecircncia agrave questatildeo fundamental da metafiacutesica conforme foi colocada por Aristoacuteteles eacute preciso fazer o paralelo com a questatildeo essencial do fragmento 16 de Heraacuteclito Levando essa necessidade em conta uma questatildeo parece impor-se Como poderia to d+u+non (o que declina) e to o)n (o que estaacute sendo) dizerem o mesmo Para isso natildeo seria preciso que ser e desaparecer fossem o mesmo Aleacutem disso o fragmento de Heraacuteclito fala de to

mh du=non pote e natildeo de to d+u+non Sendo o que nunca declina estaria to mh du=non em uma estreita aproximaccedilatildeo com o que o pensamento metafiacutesico pensou acerca do ser Sendo o que nunca declina o ser soacute poderia entatildeo ser pensado como o que sempre ldquoeacuterdquo ou seja como o que sempre vigora aparece Seria desse modo que Heraacuteclito tambeacutem teria pensado o ser

Conforme mostramos acima o declinar pensado de modo grego eacute bem mais lsquoumrsquo ser ou ateacute mesmo o ser Sendo assim natildeo significa um deixar de ser ou de vigorar mas um entrar em latecircncia como o que possibilita toda

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vigecircncia O declinar o pocircr-se e desaparecer portanto satildeo tambeacutem modos de ser e de realizar-se do real assim como o nada que parece ir de encontro a todo ente No decliacutenio e no desaparecimento no nada estaacute pensado de maneira originaacuteria o ser o misteacuterio da fusij

To mh du=non pote nomeia a fusij Mas como se no fragmento 16 Heraacuteclito sequer utiliza essa palavra Sendo o que nunca declina a fusij eacute o contiacutenuo fugir agrave ocultaccedilatildeo Mas a fuga natildeo tem o sentido de exclusatildeo daquilo de que se foge mas atribuiccedilatildeo de uma resistecircncia que precisa a cada vez ser vencida Isto Heidegger procura deixar claro atraveacutes do rigor da interpretaccedilatildeo que ele faz do fragmento quando mostra que Heraacuteclito utiliza o adveacuterbio mh que apesar de ser um termo negativo distingue-se contudo de ou) pois natildeo eacute mera negaccedilatildeo A expressatildeo mh ― pote no meio da qual estaacute du=non torna segundo Heidegger o sentido verbal-temporal de du=non plaacutestico como aquilo que a cada vez precisa furtar-se agrave forccedila de ocultaccedilatildeo O mh ― pote ldquojaacute natildeordquo ldquoa cada vezrdquo indica um resistir que tira a sua forccedila daquilo ao que resiste e que traz em si mesmo a ocultaccedilatildeo a qual resiste como o que faz parte de sua proacutepria constituiccedilatildeo

Dando mais um polimento na traduccedilatildeo Heidegger diz em lugar de ldquoo que a cada vez jaacute natildeo declinardquo ldquoo que nunca declinardquo A partir disso ele conclui que a traduccedilatildeo quase obriga a dizer ldquoo surgimento incessanterdquo ldquopois aquilo que nunca eacute um decliacutenio deve ser um surgimento incessanterdquo (HEIDEGGER 1994 p 87) A conexatildeo entre to mh du=non pote e fusij parece agora ter ficado mais clara No entanto se observarmos o fragmento 123 fusij

kruptesqai filei= parece haver uma contradiccedilatildeo pois como a fusij poderia ser ldquoum surgimento incessanterdquo (to

mh du=non pote) se ldquoama ocultar-serdquo (kruptesqai filei) Decerto que aqui natildeo podemos nos voltar para o

exame dos passos detalhados dados por Heidegger em sua interpretaccedilatildeo do fragmento 123 Vamos somente mostrar

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alguns nexos entre os dois fragmentos no sentido de procurar expor que essa aparente contradiccedilatildeo que constitui o misteacuterio da fusij no fragmento 123 como amor ao ocultamento jaacute se encontra presente no fragmento 16 Para que isso seja devidamente compreendido eacute preciso

primeiro entender o sentido da palavra filei A partir do

seu modo particular de compreender essa palavra Heidegger procura mostrar a relaccedilatildeo essencial da fusij (o surgimento incessante) com o ocultamento (kruptesqai) ao traduzir o fragmento do seguinte modo ldquoO surgimento favorece o encobrimentordquo

Filei=n tem agora o sentido de favor e favorecer Com isso Heidegger procura mostrar que o surgimento favorece o encobrimento e que o encobrimento assim favorecido vigora na proacutepria essecircncia do surgimento Do mesmo modo em se fechando o fechamento favorece o surgimento Eacute a partir da unidade originariamente unificante do favor que se pode pensar a fusij Mas de que modo podemos pensar que esse nexo entre surgimento e ocultamento jaacute estaria presente no fragmento 16 de Heraacuteclito

O favor o favorecer (filei=n) propicia o combate (polemoj) como aquilo que a fusij deve travar para emergir do proacuteprio retiro de onde ela proveacutem A fusij soacute pode ser eclosatildeo ldquosurgimento incessanterdquo porque surge constantemente do velamento Precisa desse modo se inclinar para o velamento favorecendo-o visto que o velamento eacute a uacutenica coisa capaz de garantir a sua eclosatildeo O ldquosurgimento incessanterdquo desse modo como o ldquonunca declinarrdquo natildeo significa natildeo ter relaccedilatildeo nenhuma com a ocultaccedilatildeo mas ao contraacuterio conforme diz o proacuteprio Heidegger ldquoO nunca entrar no encobrimento eacute o surgir duradouro desde o encobrir-serdquo (HEIDEGGER 2009 p 268)

Embora possamos dizer que ao desvelamento pertence o velamento eacute difiacutecil contudo dizer qual eacute a

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natureza deste pertencer Decerto que Heraacuteclito natildeo o entendia como sendo da ordem da sucessatildeo temporal A natureza desse pertencimento constitui o proacuteprio misteacuterio do ser No surgimento incessante na eclosatildeo a partir de si reina um retraimento sem o qual a fusij natildeo poderia vigorar Sendo a essecircncia unificadora da fusij filei=n indica natildeo apenas uma relaccedilatildeo mas a inclinaccedilatildeo a partir da qual o desvelamento e o velamento concedem um ao outro a possibilidade de ser o que cada um eacute Filei=n polemoj e a(rmonia satildeo palavras utilizadas para pensar essa articulaccedilatildeo para designar o conflito e o simultacircneo abrigo de eclosatildeo e ocultaccedilatildeo um no outro

Eacute o mesmo que pensar junto guerra e paz inverno e veratildeo dia e noite conforme mostra o fragmento 67 de Heraacuteclito Mas com isso ele natildeo estaacute querendo dizer que a contradiccedilatildeo inerente ao muacutetuo pertencer eacute superada devido ao caraacuteter de sucessatildeo temporal ou entatildeo que tudo estaacute continuamente a alterar-se e que nada perdura Antes estaacute pensando De nenhum lado como tal podes fixar-te pois eacutes transportado pela luta dos contraacuterios para o lado oposto O que perdura eacute a harmonia invisiacutevel como tensatildeo dos movimentos contraacuterios Se de acordo com o fragmento 53 ldquoa guerra eacute pai de todas as coisasrdquo eacute preciso entender que guerra luta natildeo eacute desavenccedila e mera inquietude mas o confronto entre os poderes essenciais do ser

Atraveacutes desse confronto ― conforme mostra Houmllderlin que foi um dos primeiros a descobrir a importacircncia de Heraacuteclito como grande pensador antes mesmo de Nietzsche e Heidegger ― os homens se evidenciam enquanto homens e os deuses enquanto deuses uns contra os outros e por isso em iacutentima harmonia Como poderia haver a luta o combate para emergir do velamento se natildeo houvesse o favorecimento (filei=) do velamento como algo que a proacutepria fusij impotildee para si A harmonia como o manter reunido em tensatildeo aquilo que

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tende a opor-se eacute o divino O que eacute mantido reunido em tensatildeo eacute o favorecimento do velamento e o combate para dele emergir como dois poderes essenciais do ser Manter reunido em tensatildeo esses dois poderes constitui o enigma da relaccedilatildeo entre filei (o favor) e polemoj (o combate) E de onde vem o viacutecio em querer resolver o enigma em querer postular uma compreensatildeo de ser fora de toda contradiccedilatildeo como o que apenas ldquoeacuterdquo ou seja como o que ldquoeacuterdquo apenas surgimento unidade do que sempre estaacute presente

Essa era tambeacutem uma preocupaccedilatildeo de Houmllderlin conforme podemos ver no epigrama intitulado ldquoRaiz de todo malrdquo (Apud HEIDEGGER 2009 p 187) ldquoSer reunido eacute divino e bomrdquo dizia ele E na sequecircncia do epigrama o poeta pergunta ldquode onde vem entatildeo esse viacutecio dentre os homens de que soacute o um e o uno sejardquo (Id Ibid p 187) Este viacutecio que tambeacutem podemos chamar de u(brij que indica o privileacutegio do surgimento fundamenta-se no privileacutegio do ente Isto por seu lado decorre da proacutepria essecircncia da fusij que eacute ambiacutegua Na sua ambiguidade ela eacute por um lado surgimento brotaccedilatildeo aparecimento e o que aparece no surgimento eacute o proacuteprio ente Desse modo em decorrecircncia de sua proacutepria ambiguidade a fusij encaminha a ocultaccedilatildeo para o ocultamento O viacutecio a u(brij desse modo embora seja do homem adveacutem da proacutepria fusij constituindo a essecircncia da metafiacutesica

Mas por outro lado o apagar das chamas da u(brij como o serenar do viacutecio eacute a revelaccedilatildeo do jogo de mundo da luta dos contraacuterios como ambiguidade que natildeo pode ser superada A revelaccedilatildeo como o que surge aparece eacute sempre tambeacutem um ente Mas devido agrave ambiguidade caracteriacutestica da fusij pode revelar o ser de toda revelaccedilatildeo E se eacute verdade que Heraacuteclito chegou a observar os jogos das crianccedilas o que entatildeo se revelou para ele foi algo que ningueacutem jamais observara ldquoO jogo da grande crianccedila universal Zeusrdquo (NIETZSCHE 1999 p 834) Zeus

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brincando de criar e destruir jogando inocentemente o jogo de pedras nunca saciado sempre despertado de novo pelo impulso do jogo construindo e derrubando montinhos de areia agrave beira-mar Na verdade natildeo eacute Zeus quem joga Zeus eacute o tempo o jogo e por isso a proacutepria imagem da divindade Diante de tatildeo bela imagem o desperto o sabedor o que algum dia viveu um instante extraordinaacuterio conforme anunciava Nietzsche deveria dizer ldquoNunca vi coisa mais divinardquo E para que entatildeo deus ser substacircncia e todas as imagens do um e do impereciacutevel se jaacute temos o jogo a fusij como jogo do mundo Referecircncias ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Trad de Valentin Garciacutea Yebra

Madrid Editorial Gredos 1990 BIacuteBLIA SAGRADA Traduccedilatildeo de Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balancin Satildeo Paulo Paulus 1990 CARNEIRO-LEAtildeO Emmanuel O pensamento originaacuterio no

fragmento 16 de Heraacuteclito In Filosofia grega ndash uma introduccedilatildeo Teresoacutepolis Daimon Editora 2010

HEIDEGGER Martin Aletheacuteia (Heraacuteclito fragmento 16) In

Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2002b

___________________ ldquopoeticamente o homem habitardquo

In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2002b

__________________ Hegel Traduccioacuten de Dina V Picotti

C Buenos Aires Prometeo Libros 2007 ___________________ Heraacuteclito Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute

Cavalcante Schuback Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

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___________________ Heraklit Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 1994

___________________ Hinos de Houmllderlin Traduccedilatildeo de

Lumir Nahodil Lisboa Instituto Piaget sd ___________________ Houmllderlins Hymnen lsquoGermanienrsquo

und lsquoder Rheinrsquo Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 1999

___________________ Vortraumlge und Aufsaumltze Stuttgart

Klett-Cotta 2009 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo de Mary de

Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Iluminuras 1991 NIETZSCHE Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos

gregos Traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade Lisboa Ediccedilotildees 70 1987

NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Trad de

Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

NIETZSCHE Friedrich Der Wille zur Macht Stuttgart

Alfred Kroumlner Verlag 1980 ____________________ Die Philosophie im tragischen

Zeitalter der Griechen In Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe I Muumlnchen Deustscher Taschenbuch Verlag de Gruyter 1999

RILKE Rainer Maria Sonetos a Orfeu e elegias de Duiacuteno

Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2000

ZARADER Marleacutene Heidegger e as palavras de Origem

Traduccedilatildeo de Joatildeo Duarte Lisboa Instituto Piaget 2001

Cosmologia da Vontade de

Poder Do Projeto Filosoacutefico agrave

Formulaccedilatildeo de uma Concepccedilatildeo

de Vida

Thiago Gomes da Silva Nunes1

Nietzsche jaacute havia declarado em Assim falou Zaratustra ldquoExaminai cuidadosamente se natildeo penetrei no coraccedilatildeo da vida e ateacute nas raiacutezes de seu coraccedilatildeo Onde encontrei seres vivos encontrei vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de sirdquo p 108 ndash 110) Em Aleacutem do bem e do mal afirmara que temos de ldquofazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como a uacutenicardquo (BM ldquoDos preconceitos dos filoacutesofosrdquo sect 36 p 39 ndash 40) Natildeo eacute por menos que Nietzsche eacute considerado um pensador profundamente engajado agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica dado que a sua obra aproxima-se sob muitos aspectos de um projeto metafiacutesico2 Sobretudo quando busca a compreensatildeo de todas as dimensotildees da vida ndash e de ldquotodo acontecer mecacircnico na medida em que nele age uma forccedilardquo esta sendo ldquojustamente forccedila de vontade efeito da vontaderdquo (BM ldquoDos preconceitos dos filoacutesofosrdquo sect 36 p 39 ndash 40) ndash como expressotildees de uma pulsatildeo elementar

1 Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraiacuteba (UEPB) Mestre pela Universidade Federal da Paraiacuteba (UFPB) Atualmente eacute doutorando pelo programa integrado de poacutes-graduaccedilatildeo da UFPB junto com a UFRN e UFPE

2 Nesses termos a interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger continua sendo a principal referecircncia a conferir a Nietzsche o semblante de um metafiacutesico engajado agrave tradiccedilatildeo ocidental

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Como se sabe Nietzsche ambicionava reconduzir todos os resultados ateacute o momento obtidos pelo esclarecimento filosoacutefico e cientiacutefico para a compreensatildeo de um uacutenico e mesmo fenocircmeno a vida como manifestaccedilatildeo da vontade de poder

Mas antes de qualquer julgamento do hipoteacutetico ldquoteor metafiacutesicordquo subjacente ao esquema cosmoloacutegico nietzschiano eacute preciso obter um olhar de conjunto da vontade de poder enquanto especulaccedilatildeo filosoacutefica Para isso faz-se necessaacuterio utilizar os fragmentos poacutestumos datados dos uacuteltimos anos de atividade luacutecida de Nietzsche geralmente considerado o seu periacuteodo de maior maturidade e produtividade3 Destaco com isso o aforismo 38 [12] datado do veratildeo de 1885 como consta na ediccedilatildeo criacutetica dos escritos poacutestumos organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari Esse fragmento nos apresenta a mais completa declaraccedilatildeo nietzschiana de que a sua perspectiva eacute aleacutem de tudo uma entre tantas existentes assumindo portanto a condiccedilatildeo de corporificaccedilatildeo perspectivista da vontade de poder e com isso a sua consequente condiccedilatildeo de fluidez Considerando a integridade da passagem facilmente se deduziria como o pensamento poacutestumo de Nietzsche eacute de indiscutiacutevel valor para a compreensatildeo de sua obra como um todo Vejamos entatildeo o fragmento

Sabeis voacutes tambeacutem o que eacute para mim ldquoo mundordquo Devo mostraacute-lo em meu espelho Este mundo uma imensidatildeo de forccedila sem comeccedilo sem fim uma firme brocircnzea grandeza de forccedila que natildeo se torna maior natildeo se torna menor natildeo se consome soacute se transforma e como um todo eacute de imutaacutevel grandeza um orccedilamento domeacutestico sem gastos e

3 De maneira geral considera-se que a fase de maturidade da obra nietzschiana se inicia com a publicaccedilatildeo de Assim falou Zaratustra em 1883 mas os principais fragmentos poacutestumos que marcam o periacuteodo vatildeo de 1885 ateacute 1889

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sem perdas mas do mesmo modo sem crescimento sem ganhos encerrado pelo ldquonadardquo como por seu limite nada que se desvaneccedila nada desperdiccedilado nada infinitamente extenso mas sim como forccedila determinada posto em um determinado espaccedilo natildeo em um lugar que fosse algures ldquovaziordquo antes como forccedila em toda parte como jogo de forccedila ao mesmo tempo uno e vaacuterio acumulando-se aqui e ao mesmo tempo diminuindo acolaacute um mar em forccedilas tempestuosas e afluentes em si mesmas sempre se modificando sempre refluindo com anos imensos de retorno com vazante e montante de suas configuraccedilotildees expelindo das mais simples agraves mais complexas do mais calmo mais inteiriccedilo mais frio ao mais incandescente mais selvagem para o que mais contradiz a si mesmo e depois de novo da plenitude voltando ao lar do mais simples a partir do jogo das contradiccedilotildees de volta ateacute o prazer da harmonia afirmando a si mesmo ainda nessa igualdade de suas vias e anos abenccediloando a si mesmo como aquilo que haacute de voltar eternamente como um devir que natildeo conhece nenhum tornar-se satisfeito nenhum fastio nenhum cansaccedilo - este meu mundo dionisiacuteaco do criar eternamente a si mesmo do destruir eternamente a si mesmo este mundo misterioso da dupla voluacutepia este meu ldquoaleacutem de bem e malrdquo sem fim se natildeo haacute um fim na felicidade do ciacuterculo sem vontade se natildeo haacute boa vontade no anel que torna a si mesmo ndash voacutes quereis um nome para este mundo Uma soluccedilatildeo para todos os seus enigmas Uma luz tambeacutem para voacutes oacute mais esconsos mais fortes mais desassombrados mais iacutensitos agrave meia-noite Este mundo eacute a vontade de poder ndash nada aleacutem disso E tambeacutem voacutes mesmos sois essa vontade de poder ndash e nada aleacutem disso (38 [12] Junho ndash julho de 1885 p 212 ndash 213)4

4 Tomamos como referecircncia bibliograacutefica para este aforismo a

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Eacute importante lembrar que Nietzsche natildeo conseguiu fundamentar a tese da vontade de poder ldquocientificamenterdquo como almejava o que colabora para a futura compreensatildeo da sua ideia como um projeto metafiacutesico5 Independente disso a edificaccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana parece se desenvolver ao inverter a metodologia filosoacutefica considerada ateacute o momento tradicional buscando suplantar as bases de pensamento ocidental e portanto a modernidade vivenciada pelo proacuteprio Nietzsche6 No segundo momento ele procurou afirmar tudo aquilo que foi negado pela tradiccedilatildeo o que significaria dizer que o seu projeto se desenvolve rumo a uma afirmaccedilatildeo incondicional da pluralidade de faces contradiccedilotildees e ciclo dinacircmico de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo do real ou seja tudo aquilo que foi negado pela metafiacutesica ocidental

Eacute desta forma que logo no iniacutecio no aforismo Nietzsche retoma a metaacutefora do espelho jaacute utilizada em outras passagens para referenciar o caraacuteter perspectivista

coletacircnea de textos poacutestumos Sabedoria para depois de amanhatilde organizada por Heinz Friedrich e traduzida para o portuguecircs por Karina Jannini Contudo optei pela traduccedilatildeo do mesmo aforismo feita por Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes como consta na polecircmica coletacircnea A vontade de poder da editora Contraponto Justificamos a escolha pela qualidade desta uacuteltima dado que ela se apresenta com maior fluidez de leitura que a primeira por mais que isso acabe por tocar no problema centenaacuterio em volta da coletacircnea de textos

5 Eacute de se pensar tambeacutem ateacute que ponto a filosofia em si jaacute natildeo eacute metafiacutesica em ato Dado que uma das principais caracteriacutesticas carregadas pelo pensamento filosoacutefico eacute o alto niacutevel de abstraccedilatildeo de consideraccedilotildees que por mais que tomem como base o ldquorealrdquo ainda natildeo se aplicam ao proacuteprio todo filosofar eacute assim uma arquitetocircnica metafoacuterica que atesta este caraacuteter transcendente do ser humano

6 Tal como as ideias de ldquofato linearidade temporal progresso e racionalizaccedilatildeo do realrdquo verdadeiros estandartes do iluminismo assimilados pela cultura cientificista do seacuteculo XIX

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de sua concepccedilatildeo de vida ndash ldquoSabeis voacutes tambeacutem o que eacute para mim lsquoo mundorsquo Devo mostraacute-lo em meu espelhorsquordquo ndash designando com isso que a vontade de poder eacute uma ldquointerpretaccedilatildeo natildeo textordquo no sentido de um texto-mundo isto eacute da vida enriquecida pela possibilidade da interpretaccedilatildeo Parece-nos oacutebvio que o conhecimento eacute fruto da vida sobretudo ao se destacar a atividade interpretativa e por isso a existecircncia de ldquoum texto originalrdquo tornar-se-aacute o ldquopostulado loacutegico de toda interpretaccedilatildeordquo mesmo que ningueacutem conheccedila ldquoesse texto original inferido Assim acontece com a essecircncia inferida do mundordquo (SAFRANSKI 2005 p146) Diante da pluralidade de perspectivas acerca do mundo a vida aparece como um imenso texto destituiacutedo de significado a priori sem comeccedilo e sem fim sem qualquer fundamento que natildeo seja o proacuteprio ciclo de efetividade do viver

Mas se todo o conhecimento humano resume-se agrave atividade interpretativa da proacutepria vida podemos perguntar o que qualifica a especulaccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana em detrimento de outras tantas interpretaccedilotildees do real Nesse ponto eacute preciso atentar que Nietzsche natildeo deixa de admitir que existam ldquoboasrdquo e ldquomaacutesrdquo interpretaccedilotildees ou seja aquelas com grande forccedila vital em prejuiacutezo daquelas naturalmente decadentes nos termos de uma foacutermula que poderiacuteamos apresentar como ldquomais forccedilardquo ou ldquomenos forccedilardquo Uma boa interpretaccedilatildeo de mundo no sentido de manifestar-se como expressatildeo de forccedila vital seria caracterizada pelo vigor que envolve os aspectos dinacircmicos e contraditoacuterios da vida Em suma a boa interpretaccedilatildeo eacute aquela que assinala e assume o devir sem quaisquer traccedilos de ressentimento Jaacute uma interpretaccedilatildeo decadente expressa-se pela tiacutepica tentativa de cristalizaccedilatildeo do ser conforme as foacutermulas de racionalizaccedilatildeo oferecidas pela tradiccedilatildeo definindo o espiacuterito limitado da modernidade ocidental que se guia pela vontade de verdade essa que natildeo deixa de ser uma face interpretativa

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da proacutepria vida mas que se apresenta nos termos da decadecircncia vital

Sendo assim a concepccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana institui-se sob os termos de uma teoria dinacircmica que assume os caraacutecteres da mutabilidade fluidez e contradiccedilatildeo do viver procurando sempre inverter a loacutegica da metafiacutesica ocidental ao postular que sua tese origina-se daquilo que foi considerado uma deficiecircncia pela tradiccedilatildeo O mesmo raciociacutenio havia sido apresentado parcialmente em Aleacutem do bem e do mal recebendo maior atenccedilatildeo em Genealogia da moral (1887) onde Nietzsche analisa que tudo aquilo que fora classificado como mal nefasto e belicoso pela tradiccedilatildeo ocidental na verdade diz respeito a uma seacuterie de aspectos ascendentes do viver as forccedilas de configuraccedilatildeo mutabilidade e renovaccedilatildeo a dimensatildeo artiacutestica e ascendente da vida

Subsequentemente Nietzsche revelou que o substrato da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental essa que negara por tanto tempo o devir na verdade eacute a proacutepria decadecircncia vital como manifestaccedilatildeo subsequente do horror ao viver sentido por uma classe de indiviacuteduos Sendo assim a postulaccedilatildeo do ldquoaleacutem mundordquo metafiacutesico ndash o mundo ideal ndash eacute entendida por ele como o desague de um processo contiacutenuo e milenar Nesses termos a crenccedila no mundo verdadeiro natildeo seria assim um simples deliacuterio humano mas sim derivaccedilatildeo de uma incapacidade pois o ldquonatildeo-poder-contradizer comprova uma incapacidade natildeo uma lsquoverdadersquordquo (14 [152] Comeccedilo de 1888 p 301) As crenccedilas metafiacutesicas surgiriam assim como artifiacutecios ficcionais com fins de conservaccedilatildeo de faces de vida em deterioraccedilatildeo metalinguagem que acabaria se convertendo em verdadeiras figuras de dominaccedilatildeo A verdade seria assim concebida por Nietzsche como a manifestaccedilatildeo do proacuteprio medo da impotecircncia de criaccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo do viver isto eacute como expressatildeo de decadecircncia vital contraposta agraves faces juvenis poderosas e artiacutesticas da vida

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A crenccedila na faculdade da razatildeo como criteacuterio chave de apreensatildeo do real teria sido o fenocircmeno que alterou radicalmente os rumos tomados pelo Ocidente Mas a irocircnica descoberta de Nietzsche eacute a de que tudo o que foi veementemente negado pela tradiccedilatildeo metafiacutesica pode ainda ser caracterizado nos termos daquilo que identificou como a expressatildeo visceral e ascendente da vida seu lado artiacutestico mudanccedila vir a ser multiplicidade oposiccedilatildeo contradiccedilatildeo forccedila guerra e destruiccedilatildeo mas aleacutem de tudo poder de criaccedilatildeo Essas definiccedilotildees trazem agrave tona o quadro geral traccedilado pelo desenvolvimento da especulaccedilatildeo nietzschiana e que trabalharia agora com a noccedilatildeo de ldquoforccedilardquo termo adotado da fiacutesica moderna Nietzsche buscava atribuir agrave visatildeo cientiacutefica do mundo uma pulsatildeo interna insaciaacutevel quase que metafiacutesica7 a partir da percepccedilatildeo de ldquoquanta

7 Geralmente se entende que a associaccedilatildeo do termo metafiacutesica ao pensamento nietzschiano tem por implicaccedilatildeo necessaacuteria a vinculaccedilatildeo com a filosofia heideggeriana o que definitivamente natildeo eacute o presente caso De fato a atribuiccedilatildeo do conceito de metafiacutesica a Nietzsche comeccedila com Heidegger mais precisamente nos dois volumes dedicados agrave anaacutelise da obra nietzschiana datados de 1936 e 1940 Heidegger atribui ao pensamento nietzschiano o sentido da concretizaccedilatildeo uacuteltima de um projeto filosoacutefico que tomara forma a partir de Platatildeo nos termos de uma maquinaria metafiacutesica de dominaccedilatildeo da natureza A vontade de poder seria esta expressatildeo maacutexima de justificaccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo sem fim por parte do Ocidente e Heidegger se propotildee a retomar a cosmovisatildeo preacute-platocircnica ndash talvez ateacute heracliacutetica ndash para o pensamento filosoacutefico com fins de superar a cultura ocidental Contudo natildeo visamos aqui atribuir agrave vontade de poder e ao pensamento nietzschiano a alcunha heideggeriana posto que partimos de uma compreensatildeo mais objetiva e ampla de metafiacutesica Neste sentido entendemos por metafiacutesica a elevaccedilatildeo de um corpo teoacuterico ou mesmo de um juiacutezo ndash o que Aristoacuteteles denominara por substacircncia ndash ao acircmbito universal como que a prerrogativa de fundamentaccedilatildeo do conhecimento humano entendimento que perpassa de forma geral a obra de Kant Ao final da sua obra Nietzsche traccedila um gecircnero de epistemologia filosoacutefica significativamente distinta das tradicionais teorias do conhecimento mas esse aspecto do pensamento nietzschiano seraacute abordado ao final do presente texto

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dinacircmicosrdquo (14 [79] Comeccedilo do ano de 1888 p 235) em plena atuaccedilatildeo Ele tinha em vista uma relaccedilatildeo coacutesmica entre forccedilas para as quais nada mais existiria que outras quantidades dinacircmicas de forccedilas como um ciclo de oposiccedilotildees

A noccedilatildeo de forccedila surge como a designaccedilatildeo do caraacuteter corrente do mundo expressando o dinamismo do real ao pressupor e uniformizar uma seacuterie de caracterizaccedilotildees cosmoloacutegicas apresentadas no decorrer da obra nietzschiana Pode-se dizer que as forccedilas agora compotildeem a realidade da vida natildeo apenas no sentido estrito da mateacuteria mas como um tipo de pulsatildeo criadora do proacuteprio mundo material ou ainda como agente inerente e determinante do mesmo Desta maneira as forccedilas satildeo a proacutepria vontade de poder ou pelo menos o caraacuteter dinacircmico e fracionado do ciclo de interatividade do jogo do viver Dentro desta estrutura de especulaccedilatildeo o novo conceito natildeo se diferencia essencialmente da concepccedilatildeo de poder mas o complementa ao corporificaacute-lo com um conteuacutedo intuitivo derivado da fiacutesica moderna Nietzsche tinha por objetivo despir sua tese de possiacuteveis vestes ontoloacutegicas que pudessem lhe ser associadas levantando ateacute a possibilidade de fundamentaccedilatildeo cientiacutefica da ideia mas diferentemente da fiacutesica da eacutepoca ele se furtou do entendimento de uma estrutura previsiacutevel de leis

Quando se observa a abrangecircncia da ideia de forccedila conclui-se que ela eacute uma das caracterizaccedilotildees mais significativas da especulaccedilatildeo nietzschiana Sobretudo quando eacute observado que todas as definiccedilotildees anteriormente apresentadas seratildeo entendidas agora como semblantes manifestos de um mundo composto e regido pelo ciclo de interaccedilatildeo das forccedilas Vir a ser pulsatildeo ficcional caos guerra e superaccedilatildeo de si satildeo concepccedilotildees que se manifestam aqui como dimensotildees fronteiriccedilas da interaccedilatildeo unitaacuteria do ciclo de oposiccedilotildees da vida A vida em si seria manifestaccedilatildeo de forccedila e a forccedila por conseguinte eacute aquilo que procura

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afrontar e subjugar o que lhe faz oposiccedilatildeo seja por meio de alianccedilas seja por uma transformaccedilatildeotransfiguraccedilatildeo muacutetua com fins de superaccedilatildeo das oposiccedilotildees Mas para que uma forccedila continue sendo o que ela eacute torna-se necessaacuterio o erro o engano a ilusatildeo de seus fins particulares a vigecircncia de um ldquoegoiacutesmordquo ficcional que tudo deseja superar e envolver

Compreende-se assim que eacute natural a uma coalizaccedilatildeo de forccedilas ansiar por uma ilusoacuteria supremacia coacutesmica desejo que na verdade diz respeito agrave vitalidade manifesta em atuaccedilatildeo tudo que vive deseja e se continua a desejar eacute porque vive Chega-se agrave conclusatildeo que natildeo pode existir fenocircmeno literalmente oposto agrave forccedila visto que nesses termos a uacutenica realidade da vida eacute o proacuteprio jogo de forccedilas ou melhor a pluralidade constitutiva da vida eacute o resultado do ciclo de forccedilas poder em processo de superaccedilatildeo de si em detrimento de poder em decadecircncia vital processo muacutetuo de triunfo e extinccedilatildeo que colabora para um uacutenico transcurso vital Por isso a vida eacute um fenocircmeno que deve ser entendido sob a dimensatildeo do ciclo de criaccedilatildeo e extinccedilatildeo o jogo de forccedilas como o desmembramento necessaacuterio de um curso de superaccedilatildeo coacutesmica

A vida eacute assim uma brocircnzea grandeza de forccedila indiferente agrave fraqueza humana indiferente a qualquer gecircnero de decadecircncia vital consequentemente insensiacutevel a todos os ideais que marcaram o projeto de cultura ocidental Eacute desta forma que a ideia da vontade de poder se estabelece sob o liame da forccedila pois reconhece e se funda na ideia do jogo de poder consideraccedilatildeo que significa assumir o real como um resultado dinacircmico de um contiacutenuo processo de superaccedilatildeo de si mesmo No fim das contas Nietzsche diraacute que o ldquoacontecimento propriamente articulado transcorre abaixo de nossa consciecircncia as seacuteries que vecircm agrave tona e a sucessatildeo de sentimentos pensamentos etc [] satildeo sintomas do acontecimento propriamente

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ditordquo (1 [60] Outono de 1885 ndash Iniacutecio do ano de 1886 p 16 ndash 17) ou seja do instinto elementar

A consciecircncia humana como expressatildeo de vida soacute atuaria superficialmente nos termos de uma ldquounidade reflexivardquo dado que o ldquoeurdquo ou o ldquoindiviacuteduordquo nada mais seriam que manifestaccedilotildees superficiais de uma multiplicidade de forccedilas em atuaccedilatildeo Ainda assim pensar a vontade de poder nos termos de uma unidade vital soacute eacute possiacutevel por meio da percepccedilatildeo de um jogo de forccedilas que tudo envolve e por isso crescer progredir e viver tomam sempre como base um jogo que se alimenta da derrota extinccedilatildeo e decadecircncia de outros quanta dinacircmicos A teoria das forccedilas confere agrave concepccedilatildeo de vida de Nietzsche o caraacuteter do jogo de poder um combate sem qualquer rumo que natildeo seja o simples poder no sentido anteriormente exposto de um curso de superaccedilatildeo contiacutenuo como semblante do devir

A vida eacute assim o fenocircmeno que busca a si mesmo e as forccedilas satildeo o conteuacutedo caoacutetico e dinacircmico do seu ciclo de superaccedilatildeo Natildeo existe qualquer meta ou desenvolvimento no jogo de forccedilas da vida porque o devir eacute o fim em si o que implica dizer que natildeo haacute limite conclusatildeo ou estado de perfeiccedilatildeo que lhe seja aspirado Tendo por base de raciociacutenio a multiplicidade de manifestaccedilotildees que compotildeem a dinacircmica da vida entende-se que metas e finalidades soacute tem sentido dentro de determinados quadros de atuaccedilatildeo quando se eacute observado o campo perspectiviacutestico e ficcional que lhes eacute de fundamental importacircncia ao exerciacutecio do poder

Com isso a vida eacute concebida como um eterno combate entre forccedilas opostas centros de concentraccedilatildeo de poder coalizotildees de forccedila que lutam em prol de mais poder Dessa maneira nunca poderia existir um tipo de estado de equiliacutebrio coacutesmico simplesmente porque a proacutepria conquista jaacute estabelece um novo jogo de tensatildeo com prazo limitado considerando que a fatalidade do cosmos eacute a sua

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condiccedilatildeo de instabilidade e mutabilidade Mas eacute aiacute que nos deparamos com mais uma aparente contradiccedilatildeo do pensamento nietzschiano por um lado a vida eacute concebida como jogo de forccedilas o que acarreta na admissatildeo do caraacuteter contraditoacuterio e caoacutetico do ser Contudo as oposiccedilotildees natildeo existiriam em si pois expressam apenas graus distintos de forccedila que aparecem como oposiccedilotildees em determinados momentos dentro de campos perspectiviacutesticos delimitados por uma seacuterie ininterrupta de fatores

Nietzsche jaacute havia frisado que a identificaccedilatildeo de contradiccedilotildees geralmente diz respeito a um gecircnero de pensamento que natildeo consegue lidar com os aspectos paradoxais da vida Mas natildeo pretendemos com isso justificar todas as contradiccedilotildees da obra nietzschiana mas apenas destacar que parte dessas diz respeito agrave busca pela superaccedilatildeo das limitaccedilotildees do pensamento loacutegico e objetivante da tradiccedilatildeo ocidental O que Nietzsche entende por conhecimento eacute um fenocircmeno essencialmente ficcional e nesse caso expressatildeo do senso de conservaccedilatildeo posto que a ldquoutilidade da conservaccedilatildeo natildeo uma necessidade qualquer teoacuterico-abstrata de natildeo ser enganado encontra-se como motivaccedilatildeo por detraacutes do desenvolvimento dos oacutergatildeos do conhecimentordquo (14 [122] Comeccedilo do ano de 1888 p 273)

O pensamento tradicional que elege na loacutegica racionalista o alvitre da cultura ocidental passa a ser o alvo do empreendimento nietzschiano dado que esse corpo especulativo subsiste ainda como um esquema imageacutetico basilar agrave loacutegica de domiacutenio dos fracos sobre os fortes raciociacutenio equivalente agravequilo que havia teorizado em Genealogia da moral Tornava-se necessaacuterio assim superar a forma linear baixa e decadente de ver e viver do Ocidente elegendo no dinamismo do real o ponto de partida para uma nova sociedade Deste modo a vontade de poder seria um projeto essencialmente filosoacutefico que manteacutem um diaacutelogo com a ciecircncia moderna mas que natildeo almeja menos

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que reconfigurar as formas de ver e viver do tiacutepico homem ocidental

Se por um lado a vida eacute composta pela dinacircmica dos ciclos de oposiccedilatildeo por outro Nietzsche nos diz que as oposiccedilotildees natildeo existem em si Isso significa afirmar que o jogo de poder soacute existe como meio de transformaccedilatildeo e superaccedilatildeo da vontade como processo de desmembramento necessaacuterio ao ciclo unitaacuterio de superaccedilatildeo A luta eacute a esfera relacional do jogo de forccedilas do cosmos mas antes de tudo ela eacute o instrumento de manutenccedilatildeo da proacutepria vida e por isso natildeo existem oposiccedilotildees em si mas apenas manifestaccedilotildees do processo de manutenccedilatildeo do devir

A imprecisa e dinacircmica unidade elementar apenas se transforma alimentando-se de si mesma no seu ciclo de forccedilas posto que eacute um orccedilamento domeacutestico sem perdas e ganhos consequentemente sem valor metas ou fins que natildeo digam respeito ao uacutenico sentido do jogo de forccedilas o proacuteprio poder Sendo assim o devir natildeo busca nada que natildeo seja o proacuteprio devir o que significa que a vida natildeo se eleva ou decai apenas se transforma O nada se encerra como o seu limite porque o devir eacute aquilo que busca a si mesmo Em prol de quecirc De ldquonadardquo que natildeo seja claro o proacuteprio devir A vida eacute assim movimento que natildeo visa mais que a superaccedilatildeo de si mesmo movimento que busca mais movimento isto eacute processo de exposiccedilatildeo gratuita sem qualquer motivaccedilatildeo maior que o simples vir a ser esbanjamento de forccedila no incremento do poder em prol de mais poder

Vida eacute movimento de exposiccedilatildeo gratuita que tem no poder a justificaccedilatildeo do ciclo de interatividade do viver o que implica sempre em dizer que a pulsatildeo de superaccedilatildeo do ser natildeo se origina da fome da escassez ou da pobreza Torna-se necessaacuterio entatildeo destacar que Nietzsche preserva parcialmente ldquodois pensamentos baacutesicos de Darwin de um lado a doutrina da evoluccedilatildeo na concepccedilatildeo especial da doutrina das origens de outro lado a ideia da luta pela

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existecircncia como impulso do desenvolvimento evolucionistardquo (SAFRANSKI 2005 p 243) Mas descartando a noccedilatildeo de linearidade evolutiva no sentido de um melhoramento do vivente8 ele diraacute que a luta natildeo aparece como expressatildeo da simples vontade de viver compreensatildeo subjacente agrave teoria da evoluccedilatildeo mas antes da riqueza exuberacircncia e absurdo esbanjamento imotivado de poder porque ldquoquando se luta luta-se pelo poderrdquo (CI ldquoIncursotildees de um extemporacircneordquo sect14 p 71)

O processo de superaccedilatildeo da vida natildeo eacute passiacutevel de previsatildeo ele natildeo nasce de uma necessidade fugaz do vivente pois a vida quer dar vazatildeo agrave forccedila de ser e a conservaccedilatildeo eacute apenas uma expressatildeo dessa aspiraccedilatildeo Vida eacute expressatildeo da vontade que se revela como eterna luta sendo assim manifestaccedilatildeo da convergecircncia de forccedilas com vistas agrave suplantaccedilatildeo inevitaacutevel de um determinado ponto de estagnaccedilatildeo que Nietzsche tende a compreender como face de decadecircncia Isso implica afirmar que a ascensatildeo de uma ou mais formas de vida ou seja de um campo de concentraccedilatildeo de forccedila em detrimento de outro natildeo eacute necessariamente seletiva como diria Darwin mas eacute apenas o resultado subsequente do ciclo de interaccedilatildeo das forccedilas no percurso de superaccedilatildeo Esse fenocircmeno poderia ser observado sob dois acircngulos distintos primeiramente do poder predominante em vigecircncia e que tende agrave derrocada

8 Natildeo poderia Nietzsche aceitar a linearidade da teoria evolucionista por mais que esse acircmbito de pensamento tenha se pautado na noccedilatildeo de seleccedilatildeo natural a partir de Charles Robert Darwin (1809 ndash 1882) e o maior argumento contra essa teoria vigora no proacuteprio homem Eacute preciso ter em vista que o raciociacutenio nietzschiano eacute majoritariamente antropoloacutegico como poderia o homem moderno debilitado fisicamente e espiritualmente simbolizar uma evoluccedilatildeo bioloacutegica quando comparado ao estereoacutetipo do homem antigo Que seleccedilatildeo natural haveria de existir se os fracos e decadentes perpetuaram-se ao longo dos tempos enquanto os poderosos alvitres da aristocracia haviam sido tragados pelo caos da histoacuteria

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se estagnado no segundo do dinamismo configurador e potencializador impliacutecito agrave coalizatildeo de forccedilas em ascensatildeo para ser Dois estaacutegios distintos mas complementares dado que fazem referecircncia a um uacutenico e mesmo fenocircmeno o devir

Dessa forma Nietzsche seraacute obrigado a admitir que a constituiccedilatildeo pulsional do ser ndash os quanta dinacircmicos ndash eacute no miacutenimo limitada e transitoacuteria afinal de contas do que se alimentaria um fenocircmeno que pudesse crescer infinitamente As forccedilas satildeo limitadas por sua proacutepria constituiccedilatildeo vital como tambeacutem pela inexistecircncia de algo fora do jogo de poder subsequentemente pela inexistecircncia de algo que natildeo tenha por caracteriacutesticas vitais a limitaccedilatildeo e a finitude Ora se o cosmos ldquopode ser pensado como grandeza determinada de forccedila e como nuacutemero determinado de centros de forccedila [] entatildeo se segue daiacute que ele tem de percorrer um nuacutemero calculaacutevel de combinaccedilotildees no grande jogo de dados de sua existecircnciardquo (14 [188] Comeccedilo do ano de 1888 p 338) A finitude das forccedilas acaba por conceder agrave totalidade do mundo o caraacuteter da transitoriedade mas a limitaccedilatildeo desse acircmbito natildeo resulta na restriccedilatildeo do devir propriamente dito afinal de contas a vida se transforma passa mas nunca ldquocomeccedilourdquo

Lembremos que natildeo existe qualquer meta ou desenvolvimento no jogo de forccedilas da vida isso porque o devir eacute o fim em si mesmo o que implica na dissoluccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de limite conclusatildeo9 ou estado de

9 Como jaacute foi dito essa ideia foi carregada pela cultura judaico-cristatilde a partir da referecircncia de um iniacutecio dos tempos e de um estado conclusivo expresso sobretudo pela revelaccedilatildeo do apocalipse o que seria o fim dos tempos O livro biacuteblico intitulado Apocalipse conhecido como ldquolivro das revelaccedilotildeesrdquo eacute o uacuteltimo do Novo Testamento e eacute atribuiacutedo ao apostolo Joatildeo A concepccedilatildeo espaccedilo-temporal linear advinda do cristianismo seria transmitida ao cientificismo moderno que ateacute hoje expressa um anseio por melhoras e aperfeiccediloamentos como se inconscientemente ndash ou mesmo conscientemente se levado em conta o conceito de Espiacuterito Absoluto de Hegel ndash postulasse um estado final de

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perfeiccedilatildeo O principal argumento levantado por Nietzsche contra qualquer teoria que levante a hipoacutetese de um desenvolvimento linear do cosmos seraacute a de que o devir natildeo pode desaguar simplesmente no nada ou pelo menos encerrar-se em um estado final porque se tivesse de ser esse estado a muito teria chegado

Temos aqui mais uma vez dados distintos que aparentam entrar em conflito de um lado a ideia de um devir eterno e incessante do outro a atual convicccedilatildeo de que a essecircncia constitutiva do mundo ndash as forccedilas ndasheacute transitoriedade e finitude A associaccedilatildeo entre um curso de tensatildeo insaciaacutevel com a ideia da finitude das forccedilas concederaacute agrave concepccedilatildeo de vida nietzschiana o caraacuteter ciacuteclico que seraacute desenvolvido a partir da doutrina do eterno retorno do mesmo Em um tempo admitidamente ldquoinfinito cada possiacutevel combinaccedilatildeo seria algum dia alcanccedilada mais ainda ela seria alcanccedilada infinitas vezes E como todas as combinaccedilotildees ainda efetivamente possiacuteveis precisariam ter sido percorridas entre cada ldquocombinaccedilatildeordquo e seu proacuteximo lsquoretornorsquordquo (14 [188] Comeccedilo do ano de 1888 p 338 ndash 339) admite-se aqui um jogo entre finitude do espaccedilo e infinitude temporal isto eacute finitude constitutivas das forccedilas e infinitude do ciclo do devir

A vida se nutre da proacutepria finitude no sentido de que as forccedilas alimentam-se umas das outras ldquoum orccedilamento domeacutestico sem gastos e sem perdas mas do mesmo modo sem crescimento sem ganhosrdquo Viver eacute assim um curso ciacuteclico de interatividade fatal agrave manutenccedilatildeo do todo finitude que colabora com a eternidade de um movimento coacutesmico Nietzsche dialoga com o princiacutepio da

perfeiccedilatildeo um ideal de vida fomentado pelos benefiacutecios da ldquoevoluccedilatildeordquo da humanidade Nietzsche denominaria esse processo como o culto agrave ldquosombra de Deusrdquo da mesma forma que a sombra de Buda havia sido cultuada por seacuteculos numa caverna (GC sect 108 p 126)

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conservaccedilatildeo de energia10 da fiacutesica moderna que entende que a quantidade de poder que se tem ao final de um determinado processo eacute o mesmo que o inicia e por isso a conservaccedilatildeo da vida exige o eterno retorno do mesmo como processo ciacuteclico do jogo de interatividade de forccedilas [limitadas] envolvidas por curso temporal [infinito]

Mas ainda haacute um semblante determinante para a compreensatildeo da teoria das forccedilas evocado pelo eterno retorno do mesmo ele eacute a total impossibilidade de uma forccedila ser aquilo que ela natildeo eacute como que a limitaccedilatildeo do poder de atuaccedilatildeo da vida A necessidade dos mesmos fenocircmenos dentro de um curso cosmoloacutegico natildeo eacute um simples determinismo do real mas eacute apenas a expressatildeo de que natildeo eacute possiacutevel agrave vida natildeo ser ou melhor natildeo eacute possiacutevel agrave vida ser aquilo que ela natildeo eacute Nesse caso tecircm-se a vontade de poder como instacircncia referencial para se pensar o ciclo de forccedilas e o retorno do mesmo como expressatildeo maior desse curso a percepccedilatildeo temporal da vontade de poder Se levado em conta a ideia entenderemos que o viver natildeo poderaacute se manifestar de outra forma que natildeo seja o eterno e insaciaacutevel desejo por poder A repeticcedilatildeo de uma seacuterie subsequente de fenocircmenos num ciclo ininterrupto de forccedilas soacute poderaacute ser entendida como a eterna manifestaccedilatildeo da vontade que tudo envolve Portanto uma face de vida ldquoeacuterdquo necessariamente e nesse caso ela eacute vontade de poder natildeo havendo qualquer outra opccedilatildeo agrave vida que natildeo seja manifestar-se nos termos da vontade de poder

Ao se observar a loacutegica subsequente agrave admissatildeo dessa concepccedilatildeo de vida entenderemos que para

10 O princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia de Julius Robert von Mayer fiacutesico e meacutedico de origem alematilde entende que a energia inerente a um determinado processo sempre eacute constante ou seja que a energia natildeo eacute criada muito menos tem um fim mas que se transforma Mayer natildeo tinha em vista o movimento ciacuteclico do cosmos foi Nietzsche acrescentou isso a partir dos seus estudos da literatura cientiacutefica materialista (SAFRANSKI 2005 p 210)

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Nietzsche o viver natildeo possui um curso de determinaccedilatildeo radical similar agrave fiacutesica moderna Ele apenas aplica no seu filosofar uma ratificaccedilatildeo teoacuterica nos termos da proacutepria tese uma vez que a ideia da vontade que tudo envolve e determina acaba por se caracterizar como um conceito de orientaccedilatildeo reflexiva Neste sentido toda expressatildeo de vida por mais singela e aparentemente desprovida de quaisquer ambiccedilotildees ainda esconde no seu iacutentimo o ansiar elementar que perfaz o viver Falamos aqui de um jogo de tensatildeo e do eterno retorno como expressatildeo temporal da vontade de poder deixando de lado outras possiacuteveis leituras Em vista disso a admissatildeo da ciclicidade temporal junto agrave finitude das forccedilas impotildee a perspectiva da repeticcedilatildeo consecutiva do ciclo de forccedilas e natildeo de vicissitudes esteacutetico-fenomecircnicas como jaacute se pensou

Mas antes de adentrar os aspectos reflexivos que originaram o eterno retorno devemos observar um ponto de destaque do conceito Se a luta coacutesmica tem por implicaccedilatildeo necessaacuteria a superaccedilatildeo de si mesma pode-se perguntar por que natildeo haveria evoluccedilatildeo na vida ou progressatildeo na histoacuteria humana Diferentemente da noccedilatildeo de desenvolvimento linear que marcou o pensamento ocidental a superaccedilatildeo de si vislumbrada por Nietzsche concentra-se na ideia do Devir como um primado epistemoloacutegico o que por si estaacute em contraposiccedilatildeo a tudo aquilo que pensa estar cristalizado no tempo e espaccedilo Mas se a ideia do Devir fosse concebida como uma caracterizaccedilatildeo qualquer entre tantas outras da obra ela seria uma ficccedilatildeo destituiacuteda da grande carga de realidade conferida por seu autor

Superaccedilatildeo natildeo eacute a simples acumulaccedilatildeo de poder muito menos eacute a evoluccedilatildeo de um estado para outro [melhor] ndash mas aleacutem de tudo eacute movimento do todo que se faz por meio do jogo de poder como ciclo de domiacutenio e submissatildeo ascensatildeo e decadecircncia que norteia o devir Superar eacute deste modo movimento que muitas vezes se daacute

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natildeo como um melhoramento de um determinado estado de vida mas como consequente e necessaacuteria degeneraccedilatildeo de um dos campos de concentraccedilatildeo de poder em prol do todo Destarte o vir a ser eacute aquilo que estaacute no primeiro plano da vida e nesse caso estaacute acima do ciclo de interatividade das forccedilas sendo o proacuteprio movimento de superaccedilatildeo em atuaccedilatildeo

Eacute por isso que Nietzsche parece natildeo conseguir conceber as ideias de forccedila vigor e resistecircncia como caracteriacutesticas daquilo que perdera seu dinamismo configurador A percepccedilatildeo de um fluxo coacutesmico parece sempre sobrepor todas as caracterizaccedilotildees apresentadas por sua obra acabando mesmo por abalar a confusa associaccedilatildeo entre vir a ser e devir Os dois conceitos tendem a ser compreendidos como sinocircnimos perfeitos e o proacuteprio Nietzsche por vezes parece natildeo fazer qualquer distinccedilatildeo entre eles Mas eacute fato que palavras no maacuteximo aproximam-se umas das outras em quesitos de significaccedilatildeo nunca existindo uma completa equivalecircncia entre terminologias que nos possibilitassem aferir uma sintomaacutetica substancial mas apenas similar e equivalente Da mesma forma a noccedilatildeo familiarizada de vir a ser parece natildeo dar conta da amplitude conceitual apresentada pelo pensamento nietzschiano sobretudo quando se observado o percurso de seu auto-esclarecimento

O devir natildeo tem o sentido de um simples ldquofluir de todas as coisasrdquo como acusara Heidegger ao afirmar que esse dado revelaria a aquisiccedilatildeo ldquopseudo-heracliacuteticardquo (HEIDEGGER 2010 p 270) de Nietzsche Dentro da obra nietzschiana o devir implica necessariamente a vontade de poder uma vez que eacute ldquoatraveacutes do devir enquanto vontade de poder que se configura a vida A vontade de poder eacute o que instaura valor atraveacutes do ver que potildee perspectivas como condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e de incremento de poderrdquo (CORDEIRO 2010 p 92) Por conseguinte o devir pode ser tido como um sinocircnimo ou

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conceito siacutentese da concepccedilatildeo de vida nietzschiana posto que expressa a mais iacutentima efetiva e afetiva realidade do ser

Eacute desta maneira que Nietzsche afirma no aforismo que o devir haacute de ser justificado a cada instante porque o princiacutepio de conservaccedilatildeo da vida eacute parte da pulsatildeo que impele o viver Mas como se disse a conservaccedilatildeo soacute pode ser observada como resultado da necessidade de descarregar forccedila e instituir poder ou seja da vontade de fortalecimento domiacutenio e expansatildeo do real O devir eacute o proacuteprio ciclo de autojustificaccedilatildeo que tem no princiacutepio da conservaccedilatildeo e expansatildeo seu instinto cardeal mas sempre atentando para o sentido do curso de fatalidade do viver O ciclo verbal da vida soacute se justifica como fenocircmeno que age em volta de si mesmo nada mais

Seja na sua unidade seja na multiplicidade de expressotildees o devir natildeo nutre qualquer valor a priori conquanto ainda eacute aquilo que instaura valor Mas tendo em vista o seu fluxo unitaacuterio Nietzsche diraacute que ele eacute em parte derrocada de um movimento anterior como que manifestaccedilatildeo de vida decadente mas ele eacute tambeacutem forccedila ascendente as vezes acumulada mas que aleacutem de tudo eacute alegre entusiasmada e violenta (15 [2] Iniacutecio de 1888 p 360) Natildeo obstante o conceito de devir parece envolver de forma complementar a ideia da vida ciacuteclica que Nietzsche tinha em vista desde a juventude e que natildeo se diferenciaria profundamente da ideia da vontade de poder especialmente quando referenciada pela teoria das forccedilas Isso nos possibilita falar com maior propriedade da concepccedilatildeo de devir como equivalecircncia conceitual da especulaccedilatildeo da vontade de poder dado que tomou forma no percurso de esclarecimento da obra nietzschiana mas que natildeo se limita a uma simples relaccedilatildeo sintomaacutetica

Partindo do vislumbre da iacutentima relaccedilatildeo entre devir e a especulaccedilatildeo nietzschiana percebe-se que o conceito natildeo soacute envolve as discorridas caracterizaccedilotildees que marcaram o

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auto-esclarecimento das teses ndash pulsatildeo ficcional caos guerra pluralidade na unidade superaccedilatildeo de si e vir a ser ndash acabando por findar com a teorizaccedilatildeo do eterno retorno esse que pode ser inferido como a caracterizaccedilatildeo temporal da vontade de poder Ainda no aforismo 38 [12] de 1885 Nietzsche diraacute que a vida procura incessantemente afirmar a si mesma abenccediloando a si ldquocomo aquilo que haacute de voltar eternamente como um devir que natildeo conhece nenhum tornar-se satisfeitordquo Natildeo eacute por menos que esse conceito possui papel de destaque dentro do seu projeto cosmoloacutegico especialmente no que diz respeito a dimensatildeo de confrontaccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo da modernidade

A vida como o fenocircmeno afirmador de si mesmo faz referecircncia primeiramente agrave constante tentativa de Nietzsche em retomar tudo aquilo que fora negado pela tradiccedilatildeo ocidental Pode-se afirmar que a resoluccedilatildeo postulada para o problema da ldquopossibilidade de se conhecer o mundordquo se apresenta como um delineamento especulativo das manifestaccedilotildees da vida no seu caraacuteter corrente [forccedilas] como dos seus limites [finitude das forccedilas e espaccedilo] modo de manutenccedilatildeo [guerra] modo de operaccedilatildeo [superaccedilatildeo de si] e fatalidade [pluralidade na unidade finitude pureza e caos] Esse eacute um esquema cosmoloacutegico marcado em uacuteltima instacircncia pelo signo conjunto do devir o que pressupotildee a submersatildeo na ciclicidade espaccedilo-temporal derivada ao menos em parte da admissatildeo da transitoriedade e finitude do mundo material como tambeacutem da eterna pulsatildeo existecircncia da vida

A vontade de poder eacute assim uma especulaccedilatildeo inconclusa que atenta para duas hipoacuteteses que natildeo alteram a tese geral Primeiramente ela destaca que natildeo existe qualquer essecircncia originaacuteria do mundo e mesmo que ldquoexistisserdquo tal essecircncia soacute poderia ser o simples devir ciacuteclico visto que a uacutenica realidade que nos eacute acessiacutevel manifesta-se como um infinito jogo de poder No segundo momento a tese procura lidar com a possibilidade de

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existecircncia de um conteuacutedo originaacuterio mas natildeo no sentido de um elemento suprassensiacutevel que antecedesse o devir mas sim de um abismo enigmaacutetico talvez ainda um abismo nadificador

Independentemente disso Nietzsche concluiraacute que natildeo existe qualquer essecircncia da vida apenas manifestaccedilatildeo da vontade isto eacute vida a se efetivar no seu curso de realidade A vontade de poder eacute movimento criador e reconfigurador do real movimento que se faz por meio do combate entre polos opostos de forccedilas que instituem a diversidade de formas perspectivas e interpretaccedilotildees no jogo de poder por consequecircncia impossibilitando qualquer estado de equiliacutebrio entre forccedilas Dessa forma a tese designa ldquoo conceito de uma relaccedilatildeo decodificada no horizonte da tensatildeordquo (MOURA 2005 p 197) eacute uma ideia que tem em vista o Pathos elementar ao qual todo o vir a ser coacutesmico resulta

Com a vontade de poder a existecircncia eacute determinada como unidade muacuteltipla ndash multiplicidade que se realiza sob um uacutenico horizonte o poder ndash um processo realizado por meio do movimento de diferenciaccedilatildeo motora onde a guerra eacute o mecanismo basilar do ciclo de tensatildeo e superaccedilatildeo Por conseguinte ao tomar por elementos de caracterizaccedilatildeo as noccedilotildees de forccedila finitude das forccedilas guerra superaccedilatildeo de si e ciclicidade temporal a tese implicaraacute numa caracterizaccedilatildeo da vida como devir ou seja natildeo do ser na sua essecircncia mas a sua manifestaccedilatildeo relacional

Nietzsche tinha em vista apresentar sua ideia como a ldquosoluccedilatildeordquo para todos os ldquoenigmasrdquo ou ainda uma ldquoluz para os ldquomais fortes mais desassombrados mais iacutensitos agrave meia-noiterdquo11 homens que estariam para aleacutem do tempo presente Sendo uma teoria dinacircmica a vontade de poder assume a proacutepria condiccedilatildeo interpretativa e por isso acaba

11 Recortes do jaacute citado aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885

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por se configurar como um discurso que se volta para um puacuteblico determinado O que fica evidente eacute que o projeto ambicionava assinalar as caracteriacutesticas manifestas daquilo que deveria subsistir como o correlato fenomecircnico da atividade interpretativa ou seja a possibilidade de uma nova concepccedilatildeo de mundo para aleacutem das sombras da teologia e do cientificismo moderno Outro fator de destaque eacute que a tese eacute genuinamente especulativa por isso eacute importante levar em conta que o desejo por fundamentaccedilatildeo cientiacutefica de Nietzsche era totalmente natural na Alemanha de 1870 a 1880

Ainda ao se falar de cosmologia eacute-se levado a concluir que Nietzsche insere-se necessariamente na tradiccedilatildeo como um metafiacutesico contudo a tese eacute apresentada como um projeto antimetafiacutesico Natildeo pretendemos avaliar aqui ateacute que ponto ela eacute ou natildeo metafiacutesica12 visto que nos falta espaccedilo para a avaliaccedilatildeo dessa inferecircncia Mas estamos em condiccedilotildees de entender que a vontade de poder manteacutem fortes laccedilos de proximidade com uma especulaccedilatildeo metafiacutesica tradicional ao se configurar como uma cosmologia filosoacutefica aquela ldquoque examina tais hipoacuteteses e estabelece especulaccedilotildees fundadas apenas em meacutetodos metafiacutesicosrdquo (SANTOS 1959 p 2008)Mas o que seria por fim a vontade de poder

Se tentarmos compreender Nietzsche a partir de seus proacuteprios textos perceberemos que a tese eacute o reconhecimento de um fenocircmeno maior no seu movimento de superaccedilatildeo de si mesmo ao abalar tudo o que a estagnaccedilatildeo ocidental erguera no decorrer da histoacuteria Como sabemos a observaccedilatildeo do fluxo natural da vida que implicara tambeacutem na observaccedilatildeo do proacuteprio corpo legou ao conceito vontade de poder muito de sua personalidade Partindo desse dado podemos perceber que Nietzsche se compreendia como parte constituinte da forccedila

12 Tese levantada pela primeira vez por Heidegger

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reconfiguraccedilatildeo e ascendecircncia do devir como admitiria em uma carta dirigida ao amigo Peter Gast de 1881 onde afirma ldquoeu com frequecircncia me vejo como o rabisco que um poder desconhecido traccedila no papel experimentando uma nova penardquo (Fim de agosto de 1881)

Por fim sem perder de vista a interpretaccedilatildeo do aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885 eacute preciso chamar a atenccedilatildeo para um dado conclusivo que nem sempre recebe a devida consideraccedilatildeo dos inteacuterpretes da obra o traacutegico ou dionisiacuteaco Esse elemento tem um lugar de destaque ao final da passagem ao declarar ldquoeste meu mundo dionisiacuteaco do criar eternamente a si mesmo do destruir eternamente a si mesmo este mundo misterioso da dupla voluacutepia este meu lsquoaleacutem de bem e malrsquordquo13 A referecircncia ao mundo dionisiacuteaco natildeo eacute um simples artifiacutecio literaacuterio destituiacutedo de significado muito menos um acidente justamente porque como esclarece Ruumldiger Safranski (1995) o ldquomundo dionisiacuteaco da vontade elementar eacute ao mesmo tempo o mundo heracliacutetico da guerra como pai de todas as coisasrdquo (2005 p 58)

Junto agrave claacutessica figura de representaccedilatildeo que eacute o dionisiacuteaco chega-se ao ponto conclusivo para um vislumbre geral da especulaccedilatildeo da vontade de poder a tese que para laacute de suas ambiccedilotildees reflete o ser perspectivo de Nietzsche como um espelho e por isso reflete tambeacutem o conteuacutedo velado de sua ideia A concepccedilatildeo de vida nietzschiana fala daquilo ldquoque o grego sob a designaccedilatildeo psycheacute (Ψυχή) de modo amplo e geral caracterizou como movimento que desde si mesmo move a si mesmordquo (FOGEL 2008 p 11) e talvez se aproxime mais da proacutepria noccedilatildeo de Physis (SAMPAIO 2008 p 143) caracteriacutestica da filosofia preacute-platocircnica O que Nietzsche faz ao identificar o real enquanto verbo criador e destruidor

13 Mais um recorte do jaacute citado aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885

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de si [devir] eacute retomar como paracircmetro de avaliaccedilatildeo uma cosmovisatildeo filosoacutefica arcaica mas precisamente preacute-platocircnica o mundo heracliacutetico da guerra como pai de todas as coisas

Nota de Esclarecimento

Satildeo de Nietzsche as obras sem indicaccedilatildeo de autor Abreviamos os tiacutetulos como segue ZA ndash Assim falou Zaratustra ABM ndash Para aleacutem do bem e do mal CI ndash Crepuacutesculo dos iacutedolos CP ndash Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos VP ndash A vontade de poder Forma de citaccedilatildeo Para os textos publicados por Nietzsche o algarismo romano indica a parte ou capiacutetulo o algarismo araacutebico indica a seccedilatildeo no caso de ZA e CI o algarismo romano indica a parte do livro seguida do tiacutetulo da passagem e do algarismo araacutebico que indica a seccedilatildeo

Para as anotaccedilotildees poacutestumas os algarismos araacutebicos seguidos da data indicam o fragmento poacutestumo e a eacutepoca em que foi redigida Quanto aos demais autores indicamos o autor e a data de publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo seguida da paacutegina

Referecircncias CARVALHO Daniel Felipe O silecircncio da natureza e o barulho

da moralidade Nietzsche e o problema da antropormofizaccedilatildeo in Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche

Robson Costa Cordeiro (Org) | 331

vol 6 p 59 ndash 56 Disponiacutevel em httptragicaorgartigosv6n1carvalhopdf Acesso em 10 de outubro de 2013

CORDEIRO Robson Costa Nietzsche e a vontade de poder como

arte uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa ndash PB Editora universitaacuteriaUFPB 2010

FOGEL Gilvan Apresentaccedilatildeo in Vontade de poder Traduccedilatildeo de

Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro ndash RJ Ed Contraponto 2008

GRANIER Jean Nietzsche Traduccedilatildeo Denise Boatman Porto

Alegre ndash RS LampPM Pocket 2011 HEIDEGGER Martin Nietzsche I Traduccedilatildeo Marco Antocircnio

Casanova Rio de Janeiro ndash RJ 1ordf Ed Forense Universitaacuteria 2010

_______ Nietzsche IITrad de Marco Antonio Casa Nova Rio de

Janeiro ndash RJ Forense Universitaacuteria 2007 JAEGER Werner Paideacuteia A formaccedilatildeo do Homem Grego Traduccedilatildeo

Artur M Parreira Satildeo Paulo ndash SP 3ordf Ed Martins Fontes 1994

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Companion to Nietzsche Online Disponiacutevel em httpuniversitypublishingonlineorgcambridgecompanionsebookjsfbid=CBO9781139000604 Cambridge University Press 2006

MARTON Scarlet Nietzsche das forccedilas coacutesmicas aos valores humanos

Belo Horizonte ndash MG Ed UFMG 2000 MOURA Carlos A R de Moura Nietzsche civilizaccedilatildeo e cultura

Satildeo Paulo ndash SP Martins Fontes 2005 - (Coleccedilatildeo Toacutepicos)

332 | Kierkegaard Nietzsche e Heidegger o pensamento contemporacircneo e a criacutetica agrave metafiacutesica

NIETZSCHE Friedrich O nascimento da trageacutedia Traduccedilatildeo J Guinsburg Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2007

____________________ A filosofia na era traacutegica dos gregos

Traduccedilatildeo Gabriel Valladatildeo Silva Porto Alegre ndash RS Ed LampPM Pocket 2011

__________________ Cinco prefaacutecios Traduccedilatildeo Pedro

Sussekind Rio de Janeiro ndash RJ Editora 7 Letras 1996 __________________ Humano demasiado humano Traduccedilatildeo

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2011

__________________ A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de

Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2012 __________________ Aurora Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza

Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2012 __________________ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2011

__________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2005

__________________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Editora Companhia das Letras 2010

__________________ Genealogia da moral uma polecircmica

Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2009

Robson Costa Cordeiro (Org) | 333

__________________ O anticristo e Ditirambos de Dioniacutesio Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2009

____________________ Ecce homo Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de

Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2008 ____________________ A vontade de poder Traduccedilatildeo Maacutercos

Sineacutesio Pereira Fernandes Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro ndash JR 1ordf Ed Contraponto 2008

____________________ Der Wille zur Macht Stuttgart ndash

Deustchland Ed Kroner 1996 ____________________ Despojos de uma trageacutedia Traduccedilatildeo

Ferreira da Costa Portugal ndash Porto Editora Porto 1944 ____________________ Fragmentos poacutestumos1885 ndash 1887 VI

Rio de Janeiro ndash RJ Ed EgnForense Universitaacuteria 2013 ____________________ Fragmentos poacutestumos 1887 ndash 1889 VII

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cosmoloacutegico Rio de Janeiro ndash RJ Ed Jorge Zahar 2006 PREacute-SOCRAacuteTICOS Os pensadores Traduccedilatildeo SOUZA Joseacute

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OLIVEIRA Jelson Roberto de Nietzsche e o Heraacuteclito que ri

solidatildeo alegria traacutegica e devir inocente Revista Veritas Vol 3 p 217-235 2010 Disponiacutevel em

334 | Kierkegaard Nietzsche e Heidegger o pensamento contemporacircneo e a criacutetica agrave metafiacutesica

httprevistaseletronicaspucrsbrojsindexphpveritasarticleview6263 Acesso em 25 de julho de 2009

SAFRANSKI Ruumldiger Nietzsche biografia de uma trageacutedia Trad de

Lya Luft 2ordf Ed Satildeo Paulo Geraccedilatildeo Editorial 2005 SANTOS Maacuterio Ferreira dos Ontologia e Cosmologia 3ordf Ed Satildeo

Paulo ndash SP Logos 1959 SAMPAIO Alan da Silva Origem do Ocidente a antiguidade grega no

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Page 2: Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger: O Pensamento

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BRUNO RICARDO A MALVINO 72

A INTRIacuteNSECA RELACcedilAtildeO ENTRE O AMOR FATI E A ARTE

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NOTAS SOBRE HERMENEcircUTICA EM HEIDEGGER E GADAMER DOIS SENTIDOS

DIFERENTES

ERNILDO STEIN 105

MARTIN HEIDEGGER LENDO FREDERICO NIETZSCHE

GILVAN FOGEL 127

A ESCRITA-GRITO DO LOUCO APROXIMACcedilOtildeES E RESSONAcircNCIAS DA FILOSOFIA DE

NIETZSCHE NA ESCRITA-VIDA DE ARTAUD

IKARO MAX BATISTA DE ARAUacuteJO 162

DA VONTADE DE PODER ENQUANTO ARTE NO PENSAMENTO DE FRIEDRICH

NIETZSCHE

JOSEPH ANDERSON PONTE CAVALCANTE LEITE 187

O PROBLEMA DA SUPERACcedilAtildeO DA METAFIacuteSICA NA CRIacuteTICA FENOMENOLOacuteGICA DE

HEIDEGGER

LUISMAR CARDOSO DE QUEIROZ 202

O SUJEITO A VERDADE E A CRIacuteTICA AO PENSAMENTO MODERNO

MAacuteRCIO JOSEacute SILVA LIMA 230

CONSIDERACcedilOtildeES SOBRE O CONCEITO DE EXISTEcircNCIA EM S A KIERKEGAARD

RAMON BOLIacuteVAR C GERMANO 245

NOBRE E ESCRAVO NA PERSPECTIVA DA VONTADE DE PODER NIETZSCHE E A

INTERPRETACcedilAtildeO DO HOMEM A PARTIR DA NOCcedilAtildeO DE VALOR

RAY RENAN SILVA SANTOS 273

HEIDEGGER E O CONCEITO DE FUSIS NO FRAGMENTO 16 DE HERAacuteCLITO ROBSON COSTA CORDEIRO 292

COSMOLOGIA DA VONTADE DE PODER DO PROJETO FILOSOacuteFICO Agrave FORMULACcedilAtildeO

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THIAGO GOMES DA SILVA NUNES 307

Apresentaccedilatildeo

Os textos que compotildeem o presente Caderno de Estudos de Fenomenologia e Hermenecircutica Kierkegaard Nietzsche e Heidegger O Pensamento Contemporacircneo e a Criacutetica agrave Metafiacutesica satildeo oriundos tanto do trabalho que vem sendo desenvolvido sob a minha coordenaccedilatildeo pelo Grupo de Pesquisa Corpo e Fenomenologia junto aos alunos de Graduaccedilatildeo e Poacutes-Graduaccedilatildeo do curso de Filosofia da UFPB como tambeacutem da parceria com o Grupo de Pesquisa Filosofia e Hermenecircutica coordenado pelo Prof Dr Miguel Antonio do Nascimento Com o intuito de divulgar a produccedilatildeo e promover o intercacircmbio resolvemos publicar alguns textos oriundos dos estudos que vem sendo realizados pelos discentes e pesquisadores dos respectivos Grupos de Pesquisa Recebemos ainda como colaboraccedilatildeo textos de dois dos principais estudiosos de Heidegger e Nietzsche no Brasil O do Prof Ernildo Stein intitulado Notas sobre Hermenecircutica em Heidegger e Gadamer dois sentidos diferentes e o do Prof Gilvan Fogel intitulado Martin Heidegger lendo Frederico Nietzsche Agradecemos imensamente a inestimaacutevel colaboraccedilatildeo dos dois professores e esperamos no futuro publicar outros nuacutemeros desse Caderno Queremos desenvolver essa breve apresentaccedilatildeo falando um pouco acerca do sentido da palavra estudo Esperamos assim justificar de algum modo o motivo do uso da expressatildeo Caderno de Estudos e natildeo Caderno de Pesquisas muito embora na verdade se trate aqui da apresentaccedilatildeo dos trabalhos dos Grupos de Pesquisa Etimologicamente a palavra estudo deriva do latim studium que significa empenho esforccedilo dedicaccedilatildeo no sentido de comprometer-se com um trabalho com uma tarefa No estudo portanto encontra-se o engajamento a aplicaccedilatildeo o cuidado necessaacuterio para se buscar e ir ao encalccedilo daquilo que se procura Mas o que se procura soacute surge cresce e se

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consuma no procurar O procurado desse modo natildeo eacute o que estaacute previamente delineado e antecipado e que pode vir a ser alcanccedilado a partir de uma metodologia de um conjunto de regras previamente determinadas como acontece na pesquisa O estudo como trabalho constitutivo da existecircncia humana fomenta no homem a conquista de sua liberdade e a determinaccedilatildeo de um modo muito proacuteprio de ser e de interpretar o real Para os gregos esse tipo de trabalho se denominava sxolh de onde deriva a nossa palavra escola1 A palavra sxolh contudo que hoje tem o sentido de oacutecio natildeo significa em seu sentido originaacuterio descanso e ociosidade Significa antes ater-se engajar-se na determinaccedilatildeo criadora de sua proacutepria identidade na construccedilatildeo de um caminho proacuteprio de pensar Eacute esse o sentido que estaacute presente na famosa sentenccedila de Aristoacuteteles que caracteriza o homem como to z=+on logon

e)xon ou seja como ldquoo animal que possui logosrdquo O verbo grego e)xw de onde deriva sxolh significa propriamente ater-se O que a sentenccedila procura dizer portanto eacute que o homem eacute o animal que se ateacutem ao logos e que nesse ater-se eacute propriamente homem O que se pretende com esse Caderno de Estudos eacute fomentar o exerciacutecio dessa atividade desse ater-se e pocircr-se no caminho do pensamento que jaacute se pocircs no nosso caminho Os textos aqui apresentados portanto pretendem apenas introduzir os caminhantes que satildeo os proacuteprios autores e tambeacutem os leitores na caminhada do pensar nos caminhos de floresta (Holzwege) que conforme dizia Heidegger satildeo caminhos que na maior parte das vezes acabam se perdendo no ainda natildeo-trilhado Mas eacute soacute na erracircncia que esses caminhos conduzem que o homem pode escapar do erro de seguir o jaacute trilhado e assim

1 Cf mostra o Frei Hermoacutegenes Harada em seu livro De Estudo Anotaccedilotildees Obsoletas p 12 e segs

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propriamente se encontrar ou seja pensar Zaratustra no discurso da virtude dadivosa jaacute alertava os seus disciacutepulos para essa necessidade ldquoAinda natildeo vos haviacuteeis procurado a voacutes mesmos entatildeo me achastes Assim falam todos os crentes por isso valem tatildeo pouco todas as crenccedilas Agora eu vos mando perder-vos e achar-vos a voacutes mesmordquo Quando nos referimos ao estudo estamos aqui procurando entendecirc-lo como empenho amor que o grego entendia como filia A filosofia como amor ao saber tem no procurado o saber natildeo algo exterior como um objeto erudito de estudo antes tem no procurado o que promove a proacutepria busca O que importa portanto natildeo eacute o movimento em direccedilatildeo ao pensamento como um lanccedilar-se a um objeto externo mas sobretudo aquilo que diz Kierkegaard em seu elogio do amor O voltar-se para si para o interior como consciecircncia de nosso estado sob o pensamento ou seja o saber ldquodo que se passa em si nesse exerciacutecio de pensamentordquo Isto contudo natildeo aponta para a interioridade da consciecircncia pois o saber ldquodo que se passa em si no exerciacutecio do pensamentordquo eacute o dar-se conta da presenccedila de um Todo Poderoso colaborador sem o qual o homem natildeo seria capaz de absolutamente nada Esse dar-se conta soacute pode ocorrer atraveacutes de um exerciacutecio que mostra que no momento em que somos capazes de tudo ou seja da suprema atividade que eacute o pensar acontece a revelaccedilatildeo de que na verdade natildeo somos capazes de nada Essa compreensatildeo eacute a mais difiacutecil pois no momento em que somos capazes de pensamento natildeo nos vemos como instrumentos do pensar mas como o sujeito que pode tudo inclusive determinaacute-lo e dominaacute-lo

Saber que natildeo se eacute capaz de nada eacute o supremo saber pois significa saber que soacute podemos ldquoserrdquo e tambeacutem pensar o que somos porque somos o lugar e a hora do acontecimento do Ser Significa portanto que natildeo somos capazes de nada sem o Ser ou seja que somos agrave medida

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que fazemos mas por outro lado que fazemos agrave medida que somos agrave medida que estamos na possibilidade para esse fazer Mas para poder assim pensar precisamos despertar para esse pensamento No entanto somos noacutes ao mesmo tempo que o despertamos esse verme dorminhoco que dorme em nosso leito E nisso se encontra o paradoxo de ser e pensar

O estudo portanto como empenho esforccedilo filia amor pelo saber eacute a atividade mais extenuante e a mais difiacutecil porque nos leva agrave confrontaccedilatildeo com esse paradoxo e eacute atraveacutes do seu exerciacutecio que o homem pode se dar conta de que soacute pode pensar propriamente conforme diz Kierkegaard ldquose aprender a despertar confiadamente para os pensamentosrdquo Os textos aqui apresentados satildeo esforccedilos na caminhada deste despertar e ser despertado

Joatildeo Pessoa 27 de Agosto de 2015

Robson Costa Cordeiro

Nietzsche e a Retoacuterica

Sobre a apoditicidade do discurso

Andreacute Felipe Gonccedilalves Correia1

1 Introduccedilatildeo

O trabalho em questatildeo tem por empenho interpretar a compreensatildeo de Nietzsche em torno da retoacuterica A obra mediante a qual a pesquisa se desdobra corresponde a uma compilaccedilatildeo de textos escritos no periacuteodo em que Nietzsche exercia a docecircncia na universidade de Basileia intitulada Da Retoacuterica Em uma passagem do primeiro texto da compilaccedilatildeo Nietzsche configura a retoacuterica como a forccedila (ldquoKraftrdquo) que suscita um sentido possiacutevel e faz valer mediante a persuasatildeo uma vivecircncia Enquanto tal forccedila a retoacuterica expressa uma espeacutecie de plasticidade (ldquoPlastizitaumltrdquo) no movimento interpretativo do real comportando a possibilidade de convencimento mesmo por falsas vias Contudo o que propriamente natildeo seria falseabilidade Seria possiacutevel ao desvelamento discursivo o pleno descortinar do veacuteu Caberia agrave linguagem a forccedila de acesso a epiacutelogos teleoloacutegicos Estas indagaccedilotildees suscitam o problema concernente agrave apoditicidade do discurso Supondo um inevitaacutevel malogro na obtenccedilatildeo de sustentaacuteculos metafiacutesicos por parte da linguagem perderia ela o seu vigor Ou seria justamente dessa limitaccedilatildeo que poderia emergir toda autenticidade do viver Para que possamos adentrar no acircmago dessas questotildees urge-nos uma meditaccedilatildeo em torno da linguagem

1 Mestrando do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba E-mail felgorreiahotmailcom

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Trecircs novas indagaccedilotildees se fazem necessaacuterias o que faz a linguagem Quem faz a linguagem O que eacute a linguagem Sucintamente responderiacuteamos agrave primeira dizendo que sua atividade (ldquoarterdquo) proacutepria eacute ldquointerpretarrdquo afetos (ldquoAffektenrdquo) a resposta agrave segunda recairia no homem agrave medida que eacute tomado e estimulado por essas afecccedilotildees e agrave terceira que eacute a retoacuterica Exige-se aqui por certo o desdobramento dessas asserccedilotildees Todavia seria esta a postura de Nietzsche ao referir-se agrave retoacuterica ldquoessa forccedila eacute ao mesmo tempo a essecircncia da linguagem esta reporta-se tatildeo pouco como a retoacuterica ao verdadeiro agrave essecircncia das coisas natildeo quer instruir (ldquobelehrenrdquo) mas transmitir a outrem (ldquoauf Andere uumlbertragenrdquo) uma emoccedilatildeo e uma apreensatildeo subjectivasrdquo (NIETZSCHE 1995 p 46) Se natildeo haacute linguagem que natildeo seja retoacuterica entatildeo cabe agrave retoacuterica todo o poder do discurso filosoacutefico e por conseguinte toda a verdade filosoacutefica Este percurso reflexivo desemboca portanto na relaccedilatildeo entre retoacuterica e verdade Ao situar a retoacuterica como o seio de onde brota a linguagem Nietzsche se nos apresenta como o precursor da virada retoacuterica e hermenecircutica O poder deste pensar faz oscilar todo anseio por discursos apodiacuteticos de cunho metafiacutesico preludiando o desenvolvimento da criacutetica agrave metafiacutesica que se desdobrou no seacuteculo XX Criacutetica esta que se debruccedilou sobre a problemaacutetica da linguagem como o preciacutepuo lugar (ldquotoposrdquo) mediante o qual poder-se-ia situar e configurar significaccedilotildees (ou interpretaccedilotildees) ao mundo Eacute manifesta a influecircncia que o pensamento nietzschiano exerceu sobre as meditaccedilotildees de Heidegger e Wittgenstein em torno da linguagem principalmente no segundo periacuteodo de ambos os pensadores A esses referecircncias concernentes ao problema da linguagem satildeo comumente suscitadas todavia sem a saliecircncia do estrito viacutenculo que tal problema tem para com a retoacuterica Eacute com esta aproximaccedilatildeo essencial que a obra de Nietzsche

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aparece-nos outrossim como o movimento de ldquoavant-garderdquo de pensadores da viragem retoacuterica como Toulmin e Perelman

Podemos averiguar reflexotildees de cunho aforismaacutetico em torno da linguagem em vaacuterias obras do chamado ldquoNietzsche da maturidaderdquo nelas jaacute se expressam um pensador ancorado no abismo (ldquoAbgrundrdquo) de sua autecircntica filosofia tal como se encontra nesta passagem de A Gaia Ciecircncia

Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforccedilo compreender que importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que satildeo A reputaccedilatildeo o nome e a aparecircncia o peso e a medida habituais de uma coisa o modo como eacute vista ndash mediante a crenccedila que as pessoas neles tiveram incrementada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa por assim dizer tornando-se o seu proacuteprio corpo a aparecircncia inicial termina quase sempre por tornar-se essecircncia e atua como essecircncia Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusatildeo para destruir o mundo tido por essencial a chamada lsquorealidadersquo (lsquoWirklichkeitrsquo) Somente enquanto criadores podemos destruir (NIETZSCHE 2012a sect58 p 90-1)

A proposta deste breve estudo eacute resgatar a fonte

literaacuteria-filosoacutefica de onde partiu essa reflexatildeo da maturidade Noacutes a encontraremos em uma seacuterie de textos de um jovem professor de filologia em Basileia escritos na segunda metade do seacuteculo XIX

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2 Histoacuteria da Retoacuterica e Retoacuterica da Histoacuteria Apesar das muacuteltiplas colocaccedilotildees filosoacuteficas e filoloacutegicas espalhadas por toda a compilaccedilatildeo uma exclamaccedilatildeo em particular atrai a nossa atenccedilatildeo ldquoA retoacuterica eacute republicanardquo O que isto quer dizer Em uacuteltima instacircncia ela estaacute a nos apontar uma exigecircncia de reflexatildeo para com a histoacuteria (ldquoGeschichterdquo)2 Natildeo no sentido de historiografia mas sim de eclosatildeo cultivadora A histoacuteria de um povo estaacute intimamente vinculada agraves muacuteltiplas formas de cultivo (ldquoZuumlchtungrdquo) que nela adquirem corpo vivecircncia Ao identificar retoacuterica e repuacuteblica Nietzsche estaacute em verdade fazendo referecircncia agrave cultura que fez valer a ambas a Antiguidade grega3

2 O termo ldquoGeschichterdquo eacute derivado do termo ldquoGeschehnisrdquo (acontecimento) vinculando-se tambeacutem ao verbo ldquogeschehenrdquo (acontecer) de sorte que o seu sentido originaacuterio estaria mais vinculado agrave noccedilatildeo de ldquoacontecimento histoacutericordquo e natildeo agrave de ldquociecircncia histoacutericardquo

(ldquoHistorierdquo)

3 Essa colocaccedilatildeo se faz valer agrave medida que consideramos natildeo a totalidade das cidades-estados da Heacutelade mas sim aquela que representou na eacutepoca (seacutec V aC) e representa para toda a posteridade o apogeu e centralidade cultural dos helenos a saber a cidade de Atenas Ao contraacuterio do que se imagina a adoccedilatildeo dos ideais democraacuteticos (ou republicanos) natildeo vigorou na maior parte da Heacutelade sendo Atenas um caso muito peculiar Apenas inserida em uma poliacutetica que dignificasse a forccedila do individual (e todos os muacuteltiplos recursos mediante os quais este poderia expressar-se) eacute que a retoacuterica poderia ganhar prestiacutegio e difusatildeo Sexto Empiacuterico em Contra os retoacutericos nos fornece um testemunho da hostilidade para com a retoacuterica em outras localidades do mundo grego sendo-lhe a principal opositora a cidade de Esparta ldquoMas no entanto todos os homens em todos os lugares caccedilaram a Retoacuterica por ser muito hostil tal como por exemplo o legislador cretense que proibiu aqueles que se orgulhavam de sua oratoacuteria de se estabelecerem em sua ilha e tambeacutem o espartano Licurgo que tornando-se um admirador de Tales de Creta introduziu a mesma lei entre os espartanos E por isso muitos anos depois os eacuteforos puniram um jovem que estudara Retoacuterica no estrangeiro quando do seu retorno alegando como causa da sua condenaccedilatildeo que ele

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Apenas em um contexto histoacuterico adequado eclodiria o acolhimento da forccedila retoacuterica Forccedila esta que mediante a persuasatildeo discursiva instaura a simultaneidade do viver e do falar O nomear traz agrave presenccedila o nomeado faz vigorar um sentido viacutevido Tal como consta em Hesiacuteodo ao ser tomado por receio quanto a pronuncia de bestas mitoloacutegicas ldquoOutros ainda da Terra e do Ceacuteu nasceram trecircs filhos enormes violentos natildeo nomeaacuteveis Coto Briareu e Giges assombrosos filhosrdquo (HESIacuteODO 2011 v47-9 p111) O canto (a linguagem miacutetica) inspirado pelas musas ldquodesvelardquo mundos nos quais o viver apreende e encarna modos de manifestaccedilotildees de si proacuteprio

Toda a educaccedilatildeo retoacuterica (nascida da oralidade) que se estendeu na Antiguidade helecircnica expressa o valor atribuiacutedo agrave palavra aquilo que Nietzsche chama de ldquoPoder-discorrerrdquo ldquoA pretensatildeo mais ilimitada de tudo poder como oradores ou como estilistas atravessa toda a Antiguidade de uma maneira para noacutes incompreensiacutevelrdquo (NIETZSCHE 1995 p80) Segue-se pois que a vigecircncia do poder mediante a persuasatildeo exige uma abertura histoacuterica assim como para que haja desenvolvimento do mesmo uma educaccedilatildeo retoacuterica Embora o liame entre retoacuterica e repuacuteblica refira-se em uacuteltima instacircncia agrave antiga Atenas a gecircnese da aceitaccedilatildeo mediante a palavra remonta a algo mais originaacuterio que fora esquecido no decurso histoacuterico do homem ocidental O desenvolvimento da retoacuterica pode ser visto em todo caso como consequecircncia

praticara um artificioso modo de falar para deixar Esparta confusa E os proacuteprios espartanos continuaram a detestar a Retoacuterica e a empregar o discurso que eacute simples e curtordquo (EMPIacuteRICO 2013 p 11-13) O apreccedilo e empenho para com os quesitos beacutelicos afastaram Esparta (e vaacuterias outras) do desdobramento intelectual e artiacutestico desenvolvidos em Atenas de modo que natildeo surpreende a ascensatildeo dos sofistas poetas e filoacutesofos nesta uacuteltima Em Atenas o acircmbito discursivo adquire variadas dimensotildees e isso devido agrave sua situaccedilatildeo histoacuterico-poliacutetica que cresce em simultaneidade com as ramificaccedilotildees discursivas (retoacutericas)

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de um trabalho de cultivo da fala da persuasatildeo pela palavra sob a foacutermula do ldquomythosrdquo Esta foacutermula por si jaacute eacute vigecircncia retoacuterica pois nela se daacute uma criaccedilatildeo persuasiva Uma cultura homogecircnea expressa tatildeo soacute o resultado comum de um convencimento um auditoacuterio similiforme emerge em todo caso como uma interpretaccedilatildeo de mundo que vinga No homem que vivesente o mito tal como vimos em Hesiacuteodo natildeo se entrevecirc a obsessatildeo por uma verdade histoacuterica (historiograacutefica) pois a verdade miacutetica natildeo permanece verdade quando se lhe retira o ldquoveacuteurdquo da persuasatildeo Persuasatildeo aqui denota a vivecircncia que se disponibiliza nas imagens miacuteticas isto eacute na interpretaccedilatildeo de mundo que ldquoco-moverdquo na emergecircncia histoacuterica Essa histoacuteria natildeo diz um esgotamento unilateral em detrimento de outros pontos oacuteticos mas sim a dinacircmica produtiva (ldquopoieacutesisrdquo) do acontecer que estaacute sempre em uma perspectiva contextual Uma verdade ldquoem sirdquo soaria despropositada agrave vivecircncia miacutetica Escreve Nietzsche ldquoa retoacuterica surge num povo que vive ainda em imagens miacuteticas e que ainda natildeo conhece a necessidade incondicionada da confianccedila na histoacuteria prefere ser persuadido a ser ensinadordquo (NIETZSCHE 1995 p27) A cultura miacutetica dos gregos adquire ramificaccedilotildees nomeadamente retoacutericas primeiramente no acircmbito da argumentaccedilatildeo juriacutedica outras possibilidades no que tange agrave expressatildeo da forccedila persuasiva se desdobram neste periacuteodo da ldquopoacutelisrdquo A partir daiacute a formaccedilatildeo do homem grego (ldquopaideiardquo) cresce simultaneamente agrave sua educaccedilatildeo retoacuterica A articulaccedilatildeo do discurso adquire novos patamares com a efervescecircncia poliacutetica que se desdobra apoacutes e durante a eacutepoca de Peacutericles (seacutec V aC) inclua-se aiacute as trageacutedias e os sofistas A abertura histoacuterica que se entreabre na ldquoaacutegorardquo fomenta a possibilidade de enaltecimento tambeacutem do indiviacuteduo (prerrogativa adquirida mediante a devida educaccedilatildeo retoacuterica) algo que natildeo retira necessariamente a

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homogeneidade do cultivo grego pois ldquoa devoccedilatildeo agrave oratoacuteria eacute o elemento mais tenaz da cultura grega e persiste atraveacutes de todo o decliacutenio destardquo (NIETZSCHE 1995 p79) Para Nietzsche o proacutelogo deste decliacutenio se daacute mediante a ascensatildeo do socratismo Agrave definiccedilatildeo da retoacuterica como ldquopeithos episteacutemerdquo (ciecircncia da persuasatildeo) atribuiacuteda aos sofistas Goacutergias e Isoacutecrates escreve Nietzsche que ldquoPlatatildeo vota-lhe um oacutedio imensordquo (NIETZSCHE 1995 p31) ndash nas palavras do proacuteprio Platatildeo (Soacutecrates) ldquoo que chamo de retoacuterica constitui parte de uma certa atividade que nada tem de nobrerdquo (PLATAtildeO 2007 463a p66) Nietzsche estaacute a falar da hierarquia instaurada por Platatildeo entre o ldquorhetorikoacutesrdquo (retoacuterico) e o ldquodidaktikoacutesrdquo (dialeacutetico) A ldquodidaacuteticardquo deste uacuteltimo visa agrave instruccedilatildeo que o homem miacutetico dispensa pois para a dialeacutetica platocircnica a preocupaccedilatildeo natildeo eacute o verossiacutemil (opinativointerpretativo) que vige no mito ou na argumentaccedilatildeo mas sim a verdade4 A ldquodoacutexardquo que expressa toda discursividade retoacuterica visa agrave adesatildeo de um auditoacuterio contextualizado ao passo que a

4 Na Repuacuteblica Platatildeo distingue dois tipos de discurso ldquohaacute duas espeacutecies de literatura uma verdadeira e outra falsardquo (PLATAtildeO 2010 376e p86) Este uacuteltimo corresponde ao mito No Goacutergias eacute possiacutevel evidenciar um paralelo entre ldquofalsidade miacuteticardquo e retoacuterica na passagem em que esta eacute definida como uma habilidade ldquopara produzir uma certa satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (PLATAtildeO 2007 462c p65) sem viacutenculo necessaacuterio para com o verdadeiro Em Fedro exclama Soacutecrates ldquose encontro algueacutem que se me afigura com a aptidatildeo de dirigir a vista para a unidade e a multiplicidade naturais sigo-lhe o rasto como se um deus ele fosse Quem for capaz de semelhante coisa ndash soacute Deus sabe se estou ou natildeo com a razatildeo ndash mas ateacute o presente dou-lhe o nome de dialeacuteticordquo (PLATAtildeO 2011 266c p159) de modo inverso os retoacutericos ldquodizem que natildeo haacute necessidade de levar a coisa tatildeo a seacuterio nem de ir pegar o assunto de muito longe e com tantos rodeios para ser bom orador natildeo haacute necessidade em absoluto de participar da verdade ao estudo da verossimilhanccedila eacute que precisa aplicar-se quem se propotildee falar de acordo com as regras do bem dizerrdquo (272e-273a p177) Temos de um lado a apreensatildeo do verdadeiro e de outro a persuasatildeo pelo verossiacutemil

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supressatildeo deste procedimento argumentativo intenta apoderar-se de princiacutepios inequiacutevocos A forma do discurso miacutetico-argumentativo perde em prestiacutegio pois natildeo visa agrave instruccedilatildeo (do verdadeiro) mas sim a ldquoseduccedilatildeo persuasivardquo Nietzsche expressa a ldquoperspectivardquo da dialeacutetica na seguinte formulaccedilatildeo

Os mitos dependem da pagkaacutetecirc paidiacutea (divertimento nobre) as composiccedilotildees retoacutericas tal como as composiccedilotildees escritas soacute satildeo fabricadas para agradar A verdade natildeo se expressa nem na forma escrita nem na forma retoacuterica Emprega-se o mito quando a brevidade do tempo impede um ensino cientiacutefico Invocar testemunhas eacute um procedimento (kunstgriff) retoacuterico5 (NIETZSCHE 1995 p32)

Tambeacutem Aristoacuteteles eacute posto como um vieacutes daquele socratismo mantendo a mesma tendecircncia no referencial agrave verdade A retoacuterica eacute tida como ldquodyacutenamisrdquo (potecircncia forccedila capacidade) que estrutura a persuasatildeo segundo o conveniente cabendo-lhe ldquoo universal em cada casordquo definiccedilatildeo esta que exige uma adaptaccedilatildeo ao auditoacuterio Segue-se disto a impossibilidade de um discurso retoacuterico universal pois todo paracircmetro de universalidade retoacuterica se disponibiliza em perspectiva ldquoacidentalmenterdquo A forccedila de tal discurso apresenta-se em seu limiar como uma ldquoendoxardquo6 (opiniatildeo de aceitaccedilatildeo geral) isentando-se por conseguinte de um rigor demonstrativo apodiacutetico

5 Completa Nietzsche dizendo que ldquoos mitos platocircnicos satildeo introduzidos por um apelo a testemunhasrdquo (NIETZSCHE 1995 p36) apoiados contudo em uma cultura filosoacutefica (dialeacutetica)

6 Em Toacutepicos (livro I) Aristoacuteteles configura o raciociacutenio dialeacutetico (ldquodialektikos syllogismosrdquo) diferentemente de Platatildeo sem um rigor epistecircmico ldquoO silogismo dialeacutetico eacute aquele no qual se raciocina a partir de opiniotildees de aceitaccedilatildeo geralrdquo (ARISTOacuteTELES 2010 p348) Estabelecendo assim um viacutenculo entre ldquodialektikeacuterdquo e ldquoendoxardquo

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(ldquoapoacutedeixisrdquo) Cabe agrave ldquoepisteacutemerdquo (a ciecircnciafilosofia enquanto conhecimento do universal) pensar a verdade Escreve Nietzsche ldquoAristoacuteteles diz que uma coisa se trata filosoficamente em funccedilatildeo da verdade dialeticamente em funccedilatildeo da aparecircncia ou do sucesso da opiniatildeo da doacutexa dos outros Poder-se-ia dizer o mesmo da retoacutericardquo (NIETZSCHE 1995 p35) Ao rebaixar a ldquodialektikeacuterdquo potildee Aristoacuteteles em seu lugar a ldquoepisteacutemerdquo mantendo a mesma hierarquia para com a retoacuterica No periacuteodo das escolas heleniacutesticas arrefece a exigecircncia por filosofias ldquokataphaacuteticasrdquo de cunho teoreacutetico Com a ascensatildeo do impeacuterio alexandrino satildeo erigidas escolas filosoacuteficas voltadas agrave dimensatildeo ldquopraacuteticardquo do pensar resgatando um vieacutes socraacutetico menos vinculado e mais criacutetico agrave filosofia especulativa (enquadra-se aqui o empenho pela ldquoataraxiacuteardquo assim como pela ldquoepocheacuterdquo dos ceacuteticos) Esse periacuteodo se estende ateacute a eacutepoca do limiar da republica romana na qual a asserccedilatildeo ldquoa retoacuterica eacute republicanardquo atinge o seu apogeu com Ciacutecero Com os romanos a retoacuterica eacute resgatada em seu viacutenculo poliacutetico e ornamentada positivamente na dimensatildeo do ldquoeu leacutegeinrdquo (bem dizer) trazendo uma exigecircncia preciacutepua para com a ldquoformardquo do discurso ndash de modo que o ldquobem pensarrdquo soacute poderia disponibilizar-se no ldquobem dizerrdquo7 Natildeo haacute aqui cisatildeo entre o filoacutesofo e o orador Diz Nietzsche que Ciacutecero ldquonunca concebeu a oposiccedilatildeo entre o verdadeiro filoacutesofo e o oradorrdquo (NIETZSCHE 1995 p38) Isto pode ser evidenciado em suas reflexotildees sobre a velhice ldquoEacute antes para o orador que eu temeria os inconvenientes da velhicerdquo (CIacuteCERO 2002 p26) Os cuidados devotados a esta satildeo

7 A ldquoformardquo natildeo eacute apenas um instrumento insuficiente do ldquoconteuacutedordquo ao contraacuterio o vigor deste se daacute enquanto preocupaccedilatildeo formal (o ldquogosto pela formardquo) ldquoAquele que acha a linguagem interessante em si eacute diferente daquele que nela apenas reconhece o meio (ldquoMediumrdquo) de pensamentos interessantesrdquo (NIETZSCHE 1995 p89)

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antes realizados tendo em vista a sauacutede retoacuterica do orador Ao passo que o acontecer deste uacuteltimo unicamente vem agrave tona como e enquanto exposiccedilatildeo histoacuterica As reflexotildees concernentes agrave histoacuteria neste periacuteodo inicial da obra nietzschiana tomam como referencial alguns apontamentos do pensamento hegeliano (ora criticando-os ora os acolhendo)8 Assim como em Hegel eacute possiacutevel estabelecer um paralelo entre ldquoHistoacuteria da Filosofiardquo e ldquoFilosofia da Histoacuteriardquo9 parece-nos possiacutevel traccedilar aqui uma muacutetua configuraccedilatildeo entre ldquoHistoacuteria da Retoacutericardquo e ldquoRetoacuterica da Histoacuteriardquo A retoacuterica se constitui nos trilhos da dinacircmica histoacuterica e a histoacuteria enquanto percurso que cultiva compreensotildees diz um procedimento retoacuterico ldquoa redaccedilatildeo retorisante da histoacuteriardquo (NIETZSCHE 1995 p39) Segue-se disto que agrave degenerescecircncia histoacuterico-cultural acompanha outrossim o proceder pejorativo para com a discursividade retoacuterica O apogeu deste decliacutenio

8 Em Ecce Homo (autobiografia escrita em 1888 no final de seu periacuteodo produtivo) o proacuteprio Nietzsche reconhece tal influecircncia em sua primeira obra O Nascimento da Trageacutedia (1872) ao dizer que ela ldquotem cheiro indecorosamente hegelianordquo (NIETZSCHE 2011b NT1 p59) Assim como na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva (1874) no capiacutetulo oitavo onde reflete a ldquoinfluecircncia desta filosofia a filosofia hegelianardquo (NIETZSCHE 2003 sect8 p72) Considerando que os textos contidos em Da Retoacuterica foram escritos neste periacuteodo germinal parece-nos importante apontar alguns paralelos entre Nietzsche e Hegel (estes seratildeo dispostos preponderantemente em notas explicativas)

9 Escreve Hegel ldquoEacute importante aqui revelar sobretudo a relaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia com a proacutepria ciecircncia da filosofia A histoacuteria da filosofia natildeo tem por conteuacutedo acontecimentos e ocorrecircncias exteriores mas eacute o desdobramento do conteuacutedo da proacutepria filosofia tal como aparece no campo da histoacuteria Mostrar-se-aacute a este respeito que a histoacuteria da filosofia estaacute em consonacircncia mais ainda coincide com a proacutepria ciecircncia da filosofiardquo (HEGEL 2012 p73)

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adquire expressatildeo na exigecircncia por ldquocientificidaderdquo (ldquoWissenschaftlichkeitrdquo) moderna10 3 O esforccedilo moderno e a criacutetica retoacuterica A histoacuteria do pensamento se caracteriza por muacuteltiplas viradas Com a derrocada do Impeacuterio Romano do

10 Apesar da preciacutepua ocupaccedilatildeo da filosofia hegeliana para com a sistematicidade filosoacutefica do absoluto nela a histoacuteria se estrutura como o proceder das concepccedilotildees ie como momentos de composiccedilatildeo da autoconsciecircncia Daiacute pensarmos a exigecircncia da produccedilatildeo histoacuterica da consciecircncia para consigo proacutepria procedimento este que disponibiliza compreensotildees de cunho ldquoperspectiviacutesticordquo mesmo que realizando a unidade de si reconciliando-se As inferecircncias histoacutericas ditam a si proacutepria a multiplicidade de sua unidade Com Hegel natildeo obstante a sua ldquoinspiraccedilatildeordquo moderna comeccedila a ldquorazatildeo histoacutericardquo desdobrada mediante criacuteticas aos seus predecessores modernos Diz Hegel ldquoDeve admitir-se como legiacutetima a exigecircncia de que uma histoacuteria ndash seja qual for o seu objetivo ndash narre os fatos sem parcialidade sem que por meio dela prevaleccedila um interesse ou fim particular Mas com o lugar comum de semelhante exigecircncia poreacutem natildeo se vai muito longe De fato a histoacuteria de um objeto estaacute intimamente conexa com a concepccedilatildeo que dele se faz Segundo tal concepccedilatildeo determina-se jaacute o que se considera importante e conveniente para o fim e a relaccedilatildeo entre o acontecido e o mesmo fim suscita uma seleccedilatildeo dos fatos que se devem narrar uma maneira de os compreender pontos de vista sob os quais se englobemrdquo (HEGEL 2012 p14) O acontecer histoacuterico expressa uma patente contradiccedilatildeo e neste sentido ela se assemelha agrave proacutepria retoacuterica sobre a qual diz Nietzsche ldquotem de se estar habituado a suportar as opiniotildees e os pontos de vista mais alheios e mesmo sentir um certo prazer na contradiccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1995 p27-8) Todavia a consideraccedilatildeo histoacuterica de Hegel natildeo depotildee a assunccedilatildeo da filosofia perante a retoacuterica ldquoA filosofia eacute a ciecircncia dos pensamentos necessaacuterios cuja essencial conexatildeo e sistema eacute o conhecimento do que eacute verdadeiro e portanto eterno e impereciacutevelrdquo (HEGEL 2012 p 25) A sistematicidade do absoluto visa a ldquoplena luminosidaderdquo mesmo em sua configuraccedilatildeo histoacuterica (ldquoensombrecidardquo) O que distingue Hegel e Nietzsche eacute o fundo teleoloacutegico que encontramos no primeiro e a natildeo persistecircncia de uma unidade substancial que conduz a dinacircmica histoacuterica no segundo Hegel potildee a filosofia como ciecircncia e Nietzsche a potildee como retoacuterica

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Ocidente e a deferecircncia para com o cristianismo se instaura gradativamente um novo modelo para o trabalho filosoacutefico modelo este que resgata o mesmo impulso socraacuteticoplatocircnico pela verdade A consequecircncia disso eacute o desprestigio para com a retoacuterica A discursividade dogmaacutetica do medievo expressa um momento da retoacuterica esquecida de si proacutepria devendo tal esquecimento agrave ausecircncia de uma meditaccedilatildeo em torno da linguagem A linguagem aqui se esquece de sua origem interpretativa (ldquometafoacutericardquo) e por conseguinte de sua ldquoraizrdquo retoacuterica Para adentrarmos na criacutetica nietzschiana agrave tradiccedilatildeo do pensamento no Ocidente (criacutetica retoacuterica por excelecircncia) eacute necessaacuterio que faccedilamos um breve incurso nos pilares do pensamento moderno

Difundiu-se largamente o veredito de que a modernidade fomentou uma espeacutecie de ldquocisatildeordquo para com a filosofia escolaacutestica precedente Poreacutem em que sentido sustentar tal asserccedilatildeo Dito suscintamente no sentido de decorrecircncia nesta eacutepoca moderna de uma trepidaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao tradicional impulso para o trabalho filosoacutefico O ldquoponto de partidardquo (ldquotoposrdquo) de toda a investigaccedilatildeo especulativa sofre uma severa modificaccedilatildeo O raciociacutenio eacute simples antes de qualquer inferecircncia que legitime a realidade objetiva de algo urge uma anaacutelise da legitimidade cognitiva daquele que infere acerca dos objetos Natildeo mais principiar das realidades objetivas como ldquodadasrdquo em si mesmas mas sim das condiccedilotildees e paracircmetros mediante os quais torna-se possiacutevel o conhecer Quais satildeo as implicaccedilotildees dessa virada Em primeiro lugar (diferentemente do que poderia advir de leituras apressadas) os problemas centrais no medievo tais como Deus alma e liberdade natildeo satildeo peremptoriamente descartados O que dela decorre eacute apenas uma ldquoprecauccedilatildeordquo atinente ao ldquoponto de partidardquo mais resoluto mediante o qual se desdobre a possibilidade de atingir um conhecimento seguro Os sustentaacuteculos teoloacutegicos da

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filosofia medieval cedem sua autoridade agrave desembocadura epistemoloacutegica Em segundo lugar tem-se o iniacutecio para o movimento cognitivo natildeo no objeto poreacutem no ldquosujeitordquo inquiridor

A inspiraccedilatildeo deste projeto intelectual adota a filosofia cartesiana como eixo tomando-a criticamente ou seguindo-lhe os passos pois todos os pensadores modernos foram seus leitores Descartes inicia seu pensamento a partir da duacutevida hiperboacutelica (ldquodoute hyperboliquerdquo) para chegar agrave constataccedilatildeo de que de tudo eacute possiacutevel duvidar agrave exclusatildeo de que aquele que estaacute a duvidar duvida e com isto inicia-se toda a filosofia do sujeito A certeza (ldquocertituderdquo) da qual se pode partir isto eacute o princiacutepio desta forma de pensar eacute o sujeito pensante o ldquoEurdquo (ldquoego cogitordquo) Escreve Descartes no Discurso do Meacutetodo

Notando que esta verdade eu penso logo existo era tatildeo firme e tatildeo certa que todas as mais extravagantes suposiccedilotildees dos ceacuteticos natildeo seriam capazes de abalar julguei que podia aceita-la sem escruacutepulo como o primeiro princiacutepio da filosofia que procurava (DESCARTES 1991 p46)

A filosofia cartesiana acende a idiossincrasia moderna a saber a ldquoexigecircncia de cientificidaderdquo que por sua vez passa a operar em toda a filosofia posterior Como testemunho temos a evidecircncia desta exigecircncia jaacute nas primeiras linhas do prefaacutecio agrave segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura quando Kant expotildee o objetivo da obra a saber averiguar ldquose a elaboraccedilatildeo dos conhecimentos que pertencem ao ofiacutecio da razatildeo estaacute ou natildeo no caminho seguro de uma ciecircnciardquo (KANT 2013 p25) Natildeo obstante as muacuteltiplas perspectivas filosoacuteficas desenvolvidas nesse periacuteodo este seria o espiacuterito coevo entre os modernos Um dos elementos que salta agrave reflexatildeo diz respeito agrave estiliacutestica do discurso A estiliacutestica oral (ldquopoder-

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discorrerrdquo) do mundo helecircnico eacute sobreposta pela estiliacutestica escrita (ldquosaber-escreverrdquo) do homem moderno A escrita que se efetiva sem a inspiraccedilatildeo sonora perde o caraacuteter efecircmero do dizer agrave medida que almeja cristalizaacute-lo ndash a oralidade (ou ldquovivacidaderdquo) que se faz presente nos textos antigos entra em ocaso Isto se deve ao descaso do espiacuterito moderno para com uma educaccedilatildeo retoacuterica ldquoNo fundo a educaccedilatildeo superior lsquoclaacutessicarsquo de hoje guarda ainda uma boa parte desta concepccedilatildeo antiga exceto que natildeo se propotildee como fim o discurso oral mas antes a sua imagem enfraquecida o saber-escreverrdquo (NIETZSCHE 1995 p80)

11 A inspiraccedilatildeo oral exibe a forccedila retoacuterica de sua histoacuteria perdecirc-la pressupotildee um esforccedilo que visa isentar a razatildeo da histoacuteria (e da retoacuterica)

Esta transfiguraccedilatildeo axioloacutegica do ldquodizerrdquo reflete o projeto cientificista de educaccedilatildeo cujo escopo reside na exatidatildeo discursiva independentemente de sua vigecircncia histoacuterica A rigidez da expressatildeo escrita eacute accedilatildeo de caacutelculo ie intenta assegurar paracircmetros de rigor natildeo controversos antes (e fora) de todo acontecer O ldquoEurdquo enquanto agente preacutevio e propiciador de toda atividade eacute posto como fundo (ldquoGrundrdquo) mediante o qual o real eacute organizado e lapidado A seriedade cientiacutefica como consequecircncia desta crenccedila na razatildeo almeja isentar a sua linguagem do ldquojogordquo que constitui a histoacuteria e a retoacuterica diferentemente dos gregos anteriores agrave ascensatildeo do

11 Em Aleacutem do bem e do mal Nietzsche exemplifica o arrefecimento do influxo oral na figura da cultura alematilde tomando-a como sintoma da estiliacutestica moderna do discurso ldquoO alematildeo natildeo lecirc em voz alta natildeo lecirc para os ouvidos mas apenas com os olhos ao fazecirc-lo potildee os ouvidos na gaveta O homem da Antiguidade quando lia ndash acontecia raramente ndash lia em voz alta tambeacutem para si mesmo as pessoas admiravam-se quando algueacutem lia baixo e secretamente perguntavam-se pelo motivo Em voz alta ou seja com todos os crescendos inflexotildees mudanccedilas de tom e variaccedilotildees de ritmo com que o mundo puacuteblico da Antiguidade se rejubilavardquo (NIETZSCHE 2012b sect247 p140)

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socratismo ldquoEra assim que se caracterizava a especificidade da vida helecircnica todas as atividades do entendimento da seriedade da vida da necessidade e mesmo do perigo satildeo concebidas como um jogordquo (NIETZSCHE 1995 p28-9) O jogo produz e exige daqueles que o cultivam uma atenccedilatildeo para com o seu desdobrar requer portanto uma obediecircncia (ldquoGehorsamrdquo)12 Obediecircncia para com o ldquodizerrdquo da proacutepria vida enquanto jogo que indica uma ldquopossibilidaderdquo de ser um ldquodestinordquo a ser cultivado O jogo se faz jogo enquanto atividadehistoacuteria sendo-lhe o ldquoEurdquo epiacutegono realizando-se no jogo e natildeo como causa do jogar Considerando que todo jogo se desdobra mediante uma linguagem entatildeo seria propiacutecio dizer que eacute a linguagem que constitui a ldquoconsciecircnciardquo e natildeo o contraacuterio Diz Nietzsche ldquoA linguagem natildeo eacute uma produccedilatildeo (Werk) consciente individual ou coletiva Todo o pensamento consciente soacute eacute possiacutevel com a ajuda da linguagemrdquo (NIETZSCHE 1995 p92) Haveria contudo uma linguagem que natildeo estivesse entrelaccedilada com a histoacuteria o jogo e a retoacuterica Em outros termos caberia agrave linguagem discursos apodiacuteticos Responde Nietzsche ldquoNatildeo existe de maneira nenhuma a lsquonaturalidadersquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual se pudesse apelar a linguagem ela mesma eacute o resultado de artes puramente retoacutericasrdquo (p44-5) Com esta reestruturaccedilatildeo criacutetica da retoacuterica a compreensatildeo de ldquosubjetividaderdquo enquanto estabelecimento preacutevio e a-histoacuterico declina Ela natildeo pode ser um ancoradouro metafiacutesico pois representa em uacuteltima instacircncia um ldquotoposrdquo um lugar (compreensatildeo) a partir do qual se estrutura um raciociacutenio A exigecircncia por certezas uacuteltimas se esvai quando todo o acircmbito do discurso eacute posto como desvelamento possiacutevel ndash vigecircncia interpretativa que se mostra ndash logo sem paracircmetros de universalidade ou

12 Em alematildeo a palavra ldquoGehorsamrdquo remete ao verbo ldquohoumlrenrdquo (ouvir) daiacute o viacutenculo para com a oralidade

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necessidade (como quer o rigor cientificista) De modo que ldquoa essecircncia plena das coisas nunca eacute apreendidardquo (NIETZSCHE 1995 p45) Tal ldquoessecircnciardquo natildeo diz respeito ao trabalho linguiacutestico O discurso moderno representa um vieacutes retoacuterico que natildeo se sabe enquanto tal Toda linguagem estaacute circunscrita agrave ldquodoacutexardquo Controversa (ldquodubiumrdquo) por base 4 ldquoPathosrdquo e ldquoEnganordquo Dedicamo-nos ateacute aqui agrave compreensatildeo da linguagem como uma atividade resultante da retoacuterica ocupando-se preponderantemente com a persuasatildeo e a interpretaccedilatildeo logo sem compromissos de cunho metafiacutesico a-histoacuterico Na criacutetica agrave modernidade tentamos expor por conseguinte o fracasso desta em isentar-se da racionalidade histoacuterica Nesse quadro criacutetico poder-se-ia apontar a diacutevida de Nietzsche para com a filosofia de Hegel agrave medida que esta inaugura a razatildeo histoacuterica A disposiccedilatildeo da consciecircncia (ou autoconsciecircncia) se daacute como e enquanto realizaccedilatildeo histoacuterica de modo a solicitar do pensador uma profunda anaacutelise dos desdobramentos do pensar e de sua tradiccedilatildeo Encontramos na seguinte passagem uma suacutemula desta reflexatildeo

A posse da racionalidade autoconsciente que nos pertence a noacutes e ao mundo atual natildeo surgiu imediatamente e despontou apenas do solo da atualidade mas eacute-lhe essencial ser uma heranccedila e de um modo mais definido o resultado do trabalho e decerto do trabalho de todas as geraccedilotildees passadas do gecircnero humano Assim como as artes da vida exterior a quantidade de meios e habilidades as instituiccedilotildees e haacutebitos da coexistecircncia social e poliacutetica satildeo um resultado da reflexatildeo da invenccedilatildeo e do infortuacutenio da vontade e realizaccedilatildeo da histoacuteria (HEGEL 2012 p18-9)

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Na medida em que a histoacuteria eacute posta como a dinacircmica que exprime sentidos e formas de vida possiacuteveis poder-se-ia perguntar agora acerca da fonte para o interpretar a ldquodoxardquo que vige na linguagem opina acerca do quecirc O ldquoprojeto homemrdquo que vingou na modernidade agrave medida que buscou a suficiecircncia da razatildeo almejou tambeacutem a supressatildeo de uma possiacutevel reatividade insuficiente da mesma ndash o ldquoEurdquo enquanto condiccedilatildeo estruturante do mundo (agente) natildeo poderia ser consequecircncia de um afeto de um ldquopathosrdquo Nietzsche anexa agrave criacutetica retoacuterica aleacutem do problema histoacuterico a submissatildeo da razatildeo perante os afetos ldquoa linguagem natildeo apreende coisas ou processos mas excitaccedilotildees (ldquoReiserdquo) natildeo restitui sensaccedilotildees (ldquoEmpfindungrdquo) mas somente coacutepias (ldquoAbbildungrdquo) das sensaccedilotildeesrdquo (NIETZSCHE 1995 p45) A linguagem interpreta afetos sensaccedilotildees Daiacute que no desvelamento linguiacutestico nunca haacute nada aleacutem de coacutepias e figuras possiacuteveis das sensaccedilotildees que assolam o homem13 Temos com isto um movimento artiacutestico por excelecircncia Poder-se-ia dizer ainda que a arte enquanto accedilatildeo de ldquodoacutexardquo agrave medida que natildeo visa cristalizaccedilotildees corresponde agravequele prazer na contradiccedilatildeo (nota 6) de modo a reconhecer e ansiar pelo ldquoenganordquo A avidez por uma arte ldquoobjetivardquo seria desmesura (ldquohybrisrdquo) para consigo proacutepria pois toda arte do discurso eacute retoacuterica Escreve Nietzsche ldquoDiferenccedila capital arte leal e desleal A chamada arte objetiva eacute a mais das vezes uma arte desleal Tambeacutem a

13 Em Aleacutem do bem e do mal Nietzsche nos oferece um testemunho semelhante ldquoQuais os grupos de sensaccedilotildees que dentro de uma alma despertam mais rapidamente tomam a palavra datildeo as ordens isso decide a hierarquia inteira de seus valores determina por fim a sua taacutebua de bens As valoraccedilotildees de uma pessoa denunciam algo da estrutura de sua alma e aquilo em que ela vecirc suas condiccedilotildees de vida sua autecircntica necessidaderdquo (NIETZSCHE 2012b sect268 p166) Entenda-se alma (ldquoSeelerdquo) como a dimensatildeo plural das relaccedilotildees afetivas ie como um jogo de interesses perspectiviacutesticos

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retoacuterica eacute mais leal porque reconhece que visa enganarrdquo (NIETZSCHE 1995 p97) Engano natildeo comporta aqui um sentido moral antes expressa uma criacutetica aos discursos com pretensotildees apodiacuteticas O dizer que ao dizer natildeo esgota o que diz natildeo diz certezas seu empenho natildeo eacute epistecircmico mas sim ldquoopinativordquo ldquoa linguagem eacute retoacuterica porque apenas quer transmitir uma doacutexa e natildeo uma episteacutemerdquo (NIETZSCHE 1995 p46) 5 ldquoTroposrdquo e ldquoUsusrdquo Poder-se-ia agora suscitar o ldquocomordquo e o ldquopara querdquo procede a linguagem Ela natildeo poderia proceder senatildeo como e para a linguagem ie como figuras do discurso (ldquotroposrdquo) e para um uso (ldquoususrdquo) As figuras retoacutericas interpretam afetos daiacute a compreensatildeo do discurso como figuraccedilatildeo pois todo sentido possiacutevel para o viver do homem eacute disponibilizado mediante artifiacutecios retoacutericos A arte retoacuterica ocupa-se com os valores e definiccedilotildees agrave medida que estes satildeo inseridos em uma vivecircncia histoacuterica Nietzsche compreende este trabalho artiacutestico como ldquodesignaccedilotildees improacutepriasrdquo e isto por serem ldquoenganosasrdquo ldquoEntre os mais importantes artifiacutecios da retoacuterica contam-se os tropos as designaccedilotildees improacuteprias Mas todas as palavras satildeo em si e desde o comeccedilo quanto agrave sua designaccedilatildeo troposrdquo (NIETZSCHE 1995 p46) Uma das maiores dificuldades que se nos apresenta quando adentramos nas reflexotildees de Nietzsche corresponde aos jogos para com os sentidos que determinadas palavras adquiriram no decurso da histoacuteria do pensamento Este artifiacutecio atesta o viacutenculo indissociaacutevel entre forma e conteuacutedo filosoacutefico (influecircncia de Ciacutecero jaacute

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presente entre os gregos14) Toda a suposta oposiccedilatildeo entre razatildeo e afeto apoditicidade e ldquodoacutexardquo verdade e engano apontam tatildeo soacute para a radicalidade transfiguradora da arte retoacuterica A figuraccedilatildeo do discurso natildeo comporta assim embasamento moral (dualista a-histoacuterico) mas sim artiacutestico Natildeo haveria outra forma de fazer valer um sentido senatildeo ldquopoeticamenterdquoldquometaforicamenterdquo ou seja criando a si proacutepria sem necessidades uacuteltimas Nietzsche contrapotildee o artista ao filoacutesofo agrave medida que este hostiliza a forccedila plaacutestica da arte

O prazer do belo discurso daacute-se o seu proacuteprio domiacutenio onde natildeo tem a ver com a necessidade O povo de artistas procura a sua respiraccedilatildeo quer fazer do discurso algo de verdadeiramente bem (etwas recht Gutes) Mas os filoacutesofos natildeo tiveram nenhum sentido para isso (natildeo perceberam praticamente nada da arte cuja vida vibra em torno deles como natildeo percebem da plaacutestica) o que produz uma violenta e inuacutetil hostilidade (NIETZSCHE 1995 p82)

Arte eacute figuraccedilatildeo e o mundo adquire sentido

figurativamente daiacute todo discurso ser figurado ldquotroposrdquo Em uacuteltima instacircncia estamos a dizer que ldquotudo eacute metaacuteforardquo A mais profunda abstraccedilatildeo filosoacutefica repousa ainda em figuraccedilotildees e natildeo em essecircncias ldquoOs abstrata provocam a ilusatildeo de que satildeo a essecircncia quer dizer a causa das propriedades quando eacute apenas na sequecircncia dessas propriedades que lhes atribuiacutemos uma existecircncia figuradardquo

14 Tal como expressa esta passagem de A Gaia Ciecircncia ldquoOh esses gregos Eles entendiam do viver Para isto eacute necessaacuterio permanecer valentemente na superfiacutecie na dobra na pele adorar a aparecircncia acreditar em formas em tons em palavras em todo Olimpo da aparecircncia Esses gregos eram superficiais ndash por profundidaderdquo (NIETZSCHE 2012a Pr sect4 p15)

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(NIETZSCHE 1995 p77) Estamos circunscritos agrave dimensatildeo do dizer logo jamais tocamos o ldquoinauditordquo15 Vislumbre sequer nos eacute disponibilizado para aleacutem da ldquodoacutexardquo De modo que a persuasatildeo mais fecunda mediante a linguagem natildeo ultrapassa a atividade retoacuterica O esquecimento desta atividade que convence por metaacuteforas fomenta a exigecircncia pelo inequiacutevoco e necessaacuterio16 A Coisa mesma (ldquodie Sache selbstrdquo) como diz Hegel eacute para Nietzsche seguindo os passos de Ciacutecero uma metaacutefora ldquoAs metaacuteforas satildeo de algum modo bens de empreacutestimo que se vatildeo buscar algures porque se natildeo tem a proacutepria coisardquo (p70)

De onde brotam entretanto esses referidos ldquobens de empreacutestimordquo Brotam da proacutepria linguagem enquanto dimensatildeo interpretativa dos afetos Escreve Nietzsche ldquoA linguagem nunca exprime nada na sua integridade mas exibe somente uma marca que lhe parece salienterdquo (NIETZSCHE 1995 p46) Essa marca (ldquoMerkmalrdquo) refere-se agrave vivecircncia da proacutepria linguagem agrave medida que se vincula ao viver histoacuterico do homem ie agrave dinacircmica dos afetos17 Embora natildeo exprima o ldquoserrdquo da coisa a linguagem

15 Em uma das conferecircncias intituladas A essecircncia da linguagem diz Heidegger ldquoUm lsquoeacutersquo se daacute onde se interrompe a palavrardquo (HEIDEGGER 2008 p171)

16 Em Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral obra da juventude encontramos o mesmo testemunho ldquoO que eacute portanto a verdade Uma multidatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias e antropomorfismos em resumo uma soma de relaccedilotildees humanas que foram realccediladas transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retoacuterica e que depois de um longo uso pareceram estaacuteveis canocircnicas e obrigatoacuterias aos olhos de um povo as verdades satildeo ilusotildees das quais se esqueceu que satildeo metaacuteforas gastas que perderam a sua forccedila sensiacutevel moeda que perdeu sua efiacutegie e que natildeo eacute considerada mais como tal mas apenas como metalrdquo (NIETZSCHE 2008 p4-5)

17 Nietzsche salienta e justifica a oralidade no mundo antigo como interpretaccedilatildeo dos afetos agrave medida que a vincula com a muacutesica ldquoA linguagem eacute feita de sons como a muacutesicardquo (NIETZSCHE 1995 p87) Muacutesica eacute aqui entendida como a dimensatildeo do ldquopathosrdquo ie do

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vive em comunhatildeo com o proacuteprio aparecer humano O ldquopara querdquo da linguagem recai por conseguinte na questatildeo do ldquoususrdquo 18

Uma cultura embevecida de si proacutepria com a dos helenos assim sentia-se devido agrave uniatildeo entre viver e dizer Todo aquele que natildeo estivesse inserido nessa experiecircncia grega era tido como baacuterbaro19 De modo que a vivecircncia miacutetica se dava com o ldquousordquo daquela uniatildeo Quem porventura natildeo se adequasse agraves marcas com que aquela uniatildeo era vivida usada incorreria em barbarismo em ldquoerrordquo Diz Nietzsche ldquoUma figura que natildeo encontre quem a aceite torna-se um erro Um erro retomado por um usus torna-se uma figurardquo (NIETZSCHE 1995 p48) Natildeo se estaacute a dizer contudo que o ldquousordquo grego eacute um ldquoacertordquo

sentimento e da atividade que ldquosofrerdquo o homem ldquoPodemos quase afirmar que eram menos liacutenguas de palavras do que liacutenguas de sentimentos em todo caso os sentimentos formavam as sonoridades e as palavras em cada povo segundo a sua individualidade o movimento (wallen) do sentimento trazia o ritmo Pouco a pouco a liacutengua separou-se da liacutengua das sonoridades (Tonsprache)rdquo (p86) A perda dessa dimensatildeo se daacute em crescente alavancada na modernidade agrave medida que tambeacutem a retoacuterica entra em decliacutenio

18 O ldquouso da linguagemrdquo problematiza a questatildeo da compreensatildeo ou ainda mais a da vivecircncia afetiva seja no acircmbito mais amplo das relaccedilotildees humanas (comunidades povos etc) ou mesmo em uma mais reduzida ou intimista (mais raras pessoais) Tal reflexatildeo eacute desenvolvida nas obras posteriores do filoacutesofo tal como consta nesta passagem de Aleacutem do bem e do mal ldquoPalavras satildeo sinais sonoros para conceitos mas conceitos satildeo sinais-imagens mais ou menos determinados para sensaccedilotildees recorrentes e associadas para grupos de sensaccedilotildees Natildeo basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos uns aos outros eacute preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espeacutecie de vivecircncias interiores eacute preciso enfim ter a experiecircncia em comum com o outrordquo (NIETZSCHE 2012b sect268 p165)

19 Esta experiecircncia representa a necessidade e autenticidade discursiva da vida entre os gregos ldquono conjunto os Gregos sentiam-se como os homens do discurso em oposiccedilatildeo aos aacuteglocircssoi (baacuterbaros) os natildeo-Gregosrdquo (NIETZSCHE 1995 p81)

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em sentido estrito mas que eacute um acerto (uma figuraccedilatildeo artiacutestica) agrave medida que uma interpretaccedilatildeo possiacutevel (metafoacuterica ldquoenganosardquo) eacute aderida e propicia uma experiecircncia comum de vida de histoacuteria20 A prerrogativa dos gregos se encontra na lucidez com que a vida entregou-se agrave linguagem e o ldquousordquo que enalteceu-se a ponto de inaugurar e cultivar artisticamente a linguagem O esplendor da antiguidade deve-se ao desvelamento retoacuterico que se deu sobre a proacutepria retoacuterica

Para Nietzsche a ldquopenuacuteriardquo e espanto inicial perante a insondabilidade com que o mundo continuamente se apresenta ao homem converte-se em ornamento mediante um ldquousordquo possiacutevel daquela uniatildeo Na esteira de Ciacutecero diz Nietzsche ldquoque o modo do discurso metafoacuterico nasceu da necessidade sob pressatildeo da indigecircncia e da perplexidade mas que depois foi seguida pela sua agradabilidaderdquo (NIETZSCHE 1995 p70) ndash A ldquonecessidaderdquo de uma interpretaccedilatildeo possiacutevel que faculte a vida entre homens21 Uma cultura se caracteriza por

20 Wittgenstein nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas ao tratar a linguagem como atividade que se disponibiliza no uso expressa algo semelhante ldquoQuando os filoacutesofos usam uma palavra ndash lsquosaberrsquo lsquoserrsquo lsquoobjetorsquo lsquoeursquo lsquoproposiccedilatildeorsquo lsquonomersquo ndash e almejam apreender a essecircncia da coisa devem sempre se perguntar esta palavra eacute realmente sempre usada assim na linguagem na qual tem o seu torratildeo natal ndash Noacutes conduzimos as palavras do seu emprego metafiacutesico de volta ao seu emprego cotidianordquo (WITTGENSTEIN 2009 sect116 p72)

21 Em todo caso uma questatildeo de valor ldquocomeacuterciordquo Escreve Nietzsche ldquoTodo o comeacutercio entre os homens consiste no seguinte que cada um deles possa ler na alma do outro e a liacutengua comum eacute a expressatildeo sonora de uma alma comum Quanto mais este comeacutercio for iacutentimo e sensiacutevel mais a liacutengua seraacute rica porque ela cresce e decai com essa alma coletiva Falar eacute no fundo a questatildeo que eu ponho ao meu semelhante para saber se ele tem a mesma alma que eu as mais antigas proposiccedilotildees parecem-me ter sido proposiccedilotildees interrogativasrdquo (NIETZSCHE 1995 p99)

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conseguinte como vigecircncia de ldquotroposrdquo Natildeo apenas uma cultura mas todo e qualquer ldquoauditoacuteriordquo

Em uacuteltima instacircncia um paracircmetro de ldquoagradabilidaderdquo requer uma adaptaccedilatildeo a um auditoacuterio ao ldquousordquo que neste vigora Falar corretamente natildeo eacute uma exigecircncia estritamente gramatical pois esta natildeo comporta vigor algum caso a desvinculemos de uma necessidade contextual ndash ldquoo baacuterbaro natildeo fala bem porque natildeo eacute gregordquo isto se daacute agrave medida que esta eacute uma asserccedilatildeo de um auditoacuterio grego Tem-se de considerar os ldquoseguintes criteacuterios para quem e diante de quem se fala em que momento em que lugar sobre que assuntordquo (NIETZSCHE 1995 p56) Natildeo haacute o incontextualizado O proacuteprio acolhimento de uma suposta incontextualizaccedilatildeo depende de ldquoaprovaccedilatildeordquo logo de uma contextualizaccedilatildeo De modo que a ldquouniversalidade da razatildeordquo mesmo a contragosto estaacute circunscrita a uma ldquohomologizaccedilatildeordquo a uma ldquocolheita comumrdquo (ldquohomolegeinrdquo) ndash como no exemplo dos gregos e baacuterbaros um universal eacute fruto do particular Segue-se disso uma criacutetica agrave proacutepria filosofia agrave medida que esta intenta apoderar-se de um discurso apodiacutetico ie de um ldquoauditoacuterio universalrdquo Natildeo reduzir-se-ia o lastro de toda filosofia agrave perseguiccedilatildeo por este auditoacuterio Tal como escreve Perelman ldquoUma argumentaccedilatildeo dirigida a um auditoacuterio universal deve convencer o leitor do caraacuteter coercivo das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta independente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo (PERELMAN 2005 p35)

Em todo caso ldquoresultado de artes puramente retoacutericasrdquo (NIETZSCHE 1995 p45)

6 Conclusatildeo No percurso aqui traccedilado tentou-se interpretar o modo como a criacutetica retoacuterica de Nietzsche nos serviria para

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pensar a proacutepria tradiccedilatildeo filosoacutefica Esta fora criticada em seu impulso claacutessico pela verdade pela essecircncia Todavia o proacuteprio Nietzsche diz que a retoacuterica eacute a essecircncia da linguagem Como compreender este impasse Heidegger se depara com o mesmo problema ldquoComo devemos questionar a linguagem se nossa relaccedilatildeo com a linguagem eacute confusa e em todo caso indeterminada Como devemos perguntar pela essecircncia se o que se chama essecircncia eacute em si mesmo discutiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2008 p134) Parece que todo empenho ldquokataphaacuteticordquo se mostra frustracircneo Todavia caso olhemos mais atentamente veremos que pensar a retoacuterica como a essecircncia da linguagem eacute uma questatildeo mais interrogativa do que afirmativa Escreve Nietzsche ldquoas mais antigas proposiccedilotildees parecem-me ter sido proposiccedilotildees interrogativasrdquo (NIETZSCHE 1995 p99) A pergunta pela essecircncia agrave medida que estaacute intimamente atada agrave retoacuterica (e agrave histoacuteria) se manteacutem sempre enquanto pergunta por exigir de si proacutepria um percurso uma experiecircncia da linguagem Essecircncia soacute pode ser pensada enquanto linguagem de modo que natildeo haacute essecircncia alguma que natildeo seja articulaccedilatildeo retoacuterica Nos serviria agora Wittgenstein ao dizer que ldquoA essecircncia se expressa na gramaacuteticardquo (WITTGEISNTEIN 2009 sect371 p158) A estrutura metafoacuterica de todo dizer manteacutem um abismo (ldquoAbgrundrdquo) para com asserccedilotildees de cunho ontoloacutegico Ao considerarmos que a retoacuterica natildeo se apoia em fundo (ldquoGrundrdquo) algum resta-nos compreendecirc-la como expressatildeo de abismo persuasatildeo que tem como esteio um interrogar Como bem aponta Heidegger ldquoA essecircncia ndash da linguagem Pelo ponto de interrogaccedilatildeo cai por terra tudo o que no tiacutetulo eacute presunccediloso e banalrdquo (HEIDEGGER 2008 p134) Em determinadas passagens da compilaccedilatildeo eacute possiacutevel detectar influecircncias remanescentes de Kant e Schopenhauer este ainda natildeo eacute o Nietzsche a ldquomarteladasrdquo

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da deacutecada de 1880 Todavia insinuaccedilotildees para esta eacutepoca jaacute se encontram nesses textos ldquojuvenisrdquo De modo que natildeo soaria estranho concluirmos com as palavras de Zaratustra ldquoe onde o ser humano natildeo estaria diante de abismos O proacuteprio ver natildeo eacute ndash ver abismosrdquo (NIETZSCHE 2011 p 149)22 Referecircncias ARISTOacuteTELES Oacuterganon Traduccedilatildeo de Edson Bini Bauru SP

Edipro 2ordf ed 2010 CIacuteCERO Marco Tuacutelio Saber envelhecer e A amizade

Traduccedilatildeo de Paulo Neves Porto Alegre LPampM 2002 DESCARTES Reneacute Discurso do Meacutetodo Traduccedilatildeo de J

Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 5ordf ed Satildeo Paulo Ed Nova Cultural 1991 ndash (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

EMPIacuteRICO Sexto Contra os retoacutericos Traduccedilatildeo de Rafael

Huguenin e Rodrigo Pinto de Brito Satildeo Paulo Editora Unesp 2013

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedette Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 1ordf Ed 2007

HEGEL GW Friedrich Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo Artur Moratildeo RJ Nova Fronteira 2012 HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo

de Marcia Saacute Cavalcante Schuback 4 ed ndash Petroacutepolis RJ Vozes Braganccedila Paulista SP Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco 2008

22 Da visatildeo e do enigma (ldquoVom Gesicht und Raumlthselrdquo) parte 1

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HESIacuteODO Teogonia Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo Paulo Ed Iluminuras 2011

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Traduccedilatildeo de

Fernando Costa Mattos 3ordfed ndash Petroacutepolis RJ Vozes Braganccedila Paulista SP Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco 2013

NIETZSCHE Friedrich Da Retoacuterica Traduccedilatildeo de Tito

Cardoso e Cunha Lisboa Ed Vega 1995 ___________________ Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva da utilidade e desvantagem da histoacuteria para a vida Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003 ndash (Conexotildees 20)

___________________ Sobre a verdade e a mentira no

sentido extramoral Traduccedilatildeo de Noeacuteli Correia de Melo Sobrinho Satildeo Paulo Ed Brasileira 2008

___________________ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo de

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

__________________ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar

de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordfEd Companhia de Bolso 2011b

__________________ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordf Ed Companhia de Bolso 2012a

___________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordfEd Companhia de Bolso 2012b

___________________ Saumlmtliche Werke Kritische

Studienausgabe in 15 Baumlnden Muumlnchen Deustscher Taschenbuch Verlag de Gruyter 1999

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PLATAtildeO Goacutergias Traduccedilatildeo de Edson Bini Bauru SP

Edipro 2007 (Diaacutelogos II) __________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da

Rocha Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 12ordf ed 2010

__________ Fedro Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Ed

ufpa Beleacutem 2011 PERELMAN Chaiumlm Tratado da Argumentaccedilatildeo Traduccedilatildeo

de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo 2 ed ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2005

TOULMIN S The Uses of Argument Cambridge University

Press 2008

WITTGENSTEIN Ludwig Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Traduccedilatildeo Marcos G Montagnoli revisatildeo da traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Emmanuel Carneiro Leatildeo 6ordf ed ndash Petroacutepolis Vozes 2009

Pensamento e Vontade como

Vontade de Poder na Filosofia

de Friedrich Nietzsche

Breno Dutra Serafim Soares1

O Surgimento de uma nova concepccedilatildeo de verdade

Haacute um escrito de Nietzsche que data de 1873 denominado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral no qual ele expotildee um conceito de verdade que aponta para o aspecto humano demasiado humano deste conceito Neste escrito Nietzsche escreve o seguinte acerca da verdade

Um exeacutercito moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos numa palavra uma soma de relaccedilotildees humanas que foram realccediladas poeacutetica e retoricamente transpostas e adornadas e que apoacutes uma longa utilizaccedilatildeo parecem a um povo consolidadas canocircnicas e obrigatoacuterias as verdades satildeo ilusotildees das quais se esqueceu que elas assim o satildeo metaacuteforas que se tornaram desgastadas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam seu troquel e agora satildeo levadas em conta apenas como metal e natildeo mais como moedas (VM I p 36)

Verdade e mentira pois devem ser entendidas nesse contexto natildeo mais como descriccedilotildees acuradas das

1 Doutorando em Filosofia pelo programa integrado de doutorado pelas Universidades Federais da Paraiacuteba Rio Grande do Norte e Pernambuco mestre em Filosofia pelo programa de mestrado da Universidade Federal da Paraiacuteba graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraiacuteba Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraiacuteba

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realidades mas como metaacuteforas cujo objetivo eacute facilitar a conservaccedilatildeo da espeacutecie Verdade ldquoeacute antropomoacuterfica de fio a pavio e natildeo conteacutem um uacutenico ponto sequer que fosse lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido deixando de lado o homemrdquo (VM I p 39) Ambas possuem o mesmo valor uma natildeo eacute ontologicamente superior agrave outra porque remete a um estudo do ser A condiccedilatildeo da verdade eacute a mesma da mentira Esta eacute uma forccedila de dissimulaccedilatildeo tanto quanto a verdade ela realiza a funccedilatildeo de manutenccedilatildeo da espeacutecie tatildeo bem quanto a outra Verdade e mentira podem ter um sentido moral mas natildeo extramoral como propotildee o tiacutetulo do escrito este sentido extramoral diz respeito justamente a uma possiacutevel compreensatildeo ontoloacutegica dos termos que eacute veemente negada por Nietzsche Isto porque ambas decorrem de erros de inferecircncias que natildeo tem correspondecircncia alguma com a realidade mas refletem o antropomorfismo do humano que simplifica e abstrai o fluxo perpeacutetuo do vir-a-ser em conceitos ldquotodo conceito surge pela igualaccedilatildeo do natildeo-igualrdquo (VM I p 35) que daacute uma feiccedilatildeo humana agraves coisas Natildeo haacute nada que possa ser denominado igual ou diferente tudo eacute completamente singular e individualizado e o conceito natildeo passa de uma generalizaccedilatildeo arbitraacuteria Estas generalizaccedilotildees arbitraacuterias geram por sua vez as qualidades ocultas com as quais distinguimos as coisas e as pessoas

Nietzsche exemplifica esse pensamento com o conceito de honestidade

Nada sabemos por certo a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse honestidade mas antes do mais de inuacutemeras accedilotildees individualizadas e por conseguinte desiguais que igualamos por omissatildeo do desigual e passamos a designar desta feita como accedilotildees honestas a partir delas formulamos finalmente uma qualitas occulta com o nome honestidade (VM I p 35-36)

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Eacute certo que se trata da percepccedilatildeo de um Nietzsche

relativamente jovem visto que o texto veio agrave tona em 1873 Poreacutem em uma obra mais tardia como Crepuacutesculo dos iacutedolos Nietzsche identifica razatildeo a uma metafiacutesica da linguagem Neste sentido a linguagem eacute proacutepria agrave criaccedilatildeo de iacutedolos porque ela simplifica de forma demasiada processos complexos que se passam no interior do indiviacuteduo Se em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral a linguagem jaacute natildeo representa a realidade de forma adequada em Crepuacutesculo dos iacutedolos ela eacute uma verdadeira criadora de entidades metafiacutesicas Senatildeo vejamos

a linguagem pertence por sua origem agrave eacutepoca da mais rudimentar forma de psicologia penetramos num acircmbito de cru fetichismo ao trazermos agrave consciecircncia os pressupostos baacutesicos da metafiacutesica da linguagem isto eacute da razatildeo (CI III ldquoA lsquorazatildeorsquo na filosofiardquo sect 5ordm p 28)

Nos dois volumes de aforismos que Nietzsche

denomina de Humano demasiado humano 1 e 2 (1878) observamos como uma criacutetica acerca do pensamento tradicional eacute efetuada em prol de um conhecimento traacutegico Este pode ser designado como uma reflexatildeo que procura elidir qualquer grandiloquecircncia por parte do ser humano em tudo que lhe diz respeito Nietzsche nos exorta a perceber como as concepccedilotildees tradicionais da metafiacutesica da religiatildeo e da moral satildeo pautadas por erros da razatildeo Estes por sua vez satildeo identificados a partir de um filosofar histoacuterico e de uma anaacutelise psicoloacutegica do humano O que estaacute em jogo aqui eacute uma confianccedila de que por traacutes das convicccedilotildees humanas haacute uma escolha inconsciente que o processo que nos leva a assumir determinadas posiccedilotildees acerca da vida eacute por demais complexo para ser reduzido a algo da ordem da consciecircncia

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A filosofia histoacuterica seraacute o meacutetodo de investigaccedilatildeo mais utilizado por Nietzsche natildeo somente neste periacuteodo como tambeacutem ao longo de toda sua obra Este meacutetodo teraacute por escopo elidir os preconceitos erigidos pela filosofia metafiacutesica dentre os quais encontramos aquele que Nietzsche vem a denominar como o ldquodefeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo qual seja justamente a falta de sentido histoacuterico (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Esse defeito leva o filoacutesofo a desconsiderar que tudo veio a ser que natildeo existem fatos eternos nem verdades absolutas (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Atraveacutes de seu filosofar histoacuterico Nietzsche trabalha com a ideia de que natildeo haacute um ser humano eterno mas sim um ser humano que veio a ser e que principalmente nos uacuteltimos quatro milecircnios natildeo sofreu grandes alteraccedilotildees em sua constituiccedilatildeo (HDH 1 I sect 2ordm p 16)

Para Nietzsche isso implica em dizer que a faculdade de cogniccedilatildeo natildeo pode ser considerada como estaacutetica mas como algo que veio de um longo processo no qual a linguagem se desenvolveu a partir de simplificaccedilotildees dos eventos ocorridos na natureza Nietzsche assevera que ldquodo periacuteodo dos organismos inferiores o homem herdou a crenccedila de que haacute coisas iguais (soacute a experiecircncia cultivada pela mais alta ciecircncia contradiz essa tese)rdquo (HDH 1 I sect 18 p 28) As crenccedilas no sujeito e no predicado na causalidade no livre-arbiacutetrio e nos postulados baacutesicos da loacutegica satildeo decorrentes de erros de raciociacutenio de generalizaccedilotildees e inferecircncias realizadas a partir de uma tendecircncia encontrada nos organismos inferiores (HDH 1 I sect 18 p 27) O problema segundo a oacutetica de Nietzsche eacute que a metafiacutesica se ocupa de questotildees como a substacircncia a relaccedilatildeo entre sujeito e objeto e a liberdade da vontade como se fossem algo da ordem do eterno e natildeo o resultado de uma longa e lenta evoluccedilatildeo dos organismos vivos Poder-se-ia pensar que o uso do termo ldquoerrordquo nos permite falar em correccedilatildeo e possivelmente em obtenccedilatildeo

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de uma verdade mais acertada acerca dos fenocircmenos Poreacutem isto seria um equiacutevoco porque o vocaacutebulo ldquoerrordquo natildeo eacute utilizado em um contexto epistemoloacutegico mas para expressar justamente a impossibilidade de fazermos uso tanto deste termo quanto do termo ldquoverdaderdquo num sentido objetivo Nietzsche usa o vocaacutebulo ldquoerrordquo (de forma talvez equivocada) para mostrar que todas as verdades natildeo passam de erros porque todas elas satildeo interpretaccedilotildees de tipos de vontade e natildeo descriccedilotildees acuradas do ser Pode-se dizer que a filosofia de Nietzsche estaacute para aleacutem do sentido ontoloacutegico de verdade que nela jaacute natildeo se trabalha com tal noccedilatildeo e que a palavra ldquoerrordquo deve sempre ser entendida como a superaccedilatildeo de tal paradigma Em suma o paradigma da verdade enquanto determinaccedilatildeo do ser jaacute natildeo eacute mais atuante o que opera agora eacute o paradigma do valor no qual todos os conceitos consistem em valores que se impotildeem segundo perspectivas de vida diversas

Eacute justamente a isso que Eugen Fink se refere quando relata que

Ele [Nietzsche] natildeo prova de modo nenhum a veracidade da religiatildeo ou da metafiacutesica para ele esta questatildeo eacute como se jaacute estivesse resolvida quando se mostra que existem tendecircncias vitais por detraacutes da vontade de verdade e que essas tendecircncias natildeo satildeo desinteressadas que visam agrave redenccedilatildeo e outras coisas semelhantes (1983 p 50)

Em Humano demasiado humano a verdade e a mentira

vecircm agrave tona como o resultado de configuraccedilotildees de vontade que necessitam de determinados valores para se sobressair perante as demais A verdade e a mentira natildeo possuem mais um aspecto esteacuteril e espiritual mas vital porque passam a ser consideradas como valores a serem assumidos pelo ser humano Por isso elas devem ser compreendidas em sua historicidade elas natildeo possuem status ontoloacutegico

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mas somente moral porque satildeo uacuteteis enquanto mantenedoras de determinado tipo de vida De agora em diante o pensador deve questionar esse dever para com a verdade objetivamente determinada ele deve investigar ateacute mesmo a obrigaccedilatildeo que temos para com a verdade Isto pode ser conferido a partir da leitura do aforismo ldquoProblema do dever para com a verdaderdquo no qual Nietzsche escreve o seguinte

O pensador vecirc tudo como tendo se tornado e tudo ldquotornadordquo como discutiacutevel eacute portanto o homem sem dever ndash na medida em que eacute apenas pensador Como tal entatildeo ele tambeacutem natildeo reconheceria o dever de enxergar e exprimir a verdade e natildeo teria esse sentimento ele pergunta de onde vem ela para onde pretende ir mas mesmo esse questionar parece questionaacutevel (HDH 2 AS sect 43 p 192)

Nietzsche natildeo nega que a noccedilatildeo de entendimento como concebida por Kant seja verdadeira poreacutem ele afirma que ela se baseia nestes erros da razatildeo e que ldquoa um mundo que natildeo seja nossa representaccedilatildeo as leis dos nuacutemeros satildeo inteiramente inaplicaacuteveis elas valem apenas no mundo dos homensrdquo (HDH 1 I sect 19 p 29) Certamente desde Kant a filosofia se pauta pela concepccedilatildeo de que eacute o intelecto que estabelece as regras a partir das quais podemos entender o mundo e natildeo o contraacuterio Poreacutem Nietzsche vai mais aleacutem nessa criacutetica para o filoacutesofo

aquilo que para noacutes homens se chama vida e experiecircncia gradualmente veio a ser estaacute pleno de vir a ser e por isso natildeo deve ser considerada uma grandeza fixa da qual se pudesse tirar ou rejeitar uma conclusatildeo acerca do criador (a razatildeo suficiente) (HDH 1 I sect 16 p 25)

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A vida natildeo pode ser considerada uma grandeza fixa isto por si soacute impede que elaboremos um juiacutezo acerca dela que natildeo seja injusto Quando pautamos a nossa relaccedilatildeo com a temporalidade fazendo uso de termos como ldquofenocircmenordquo temos uma recusa do vir-a-ser porque a estabilidade ligada ao conceito de fenocircmeno jaacute eacute em si um preconceito sobre a corrente contiacutenua da existecircncia Por isso Nietzsche assevera que ldquode agora em diante o filosofar histoacuterico eacute necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestiardquo (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Eacute necessaacuterio que nos livremos do dogmatismo que tambeacutem se configura neste filosofar que desconsidera a histoacuteria e busca uma verdade estanque para todos ldquoeacute preciso livrar-se do mau gosto de querer estar de acordo com muitosrdquo (ABM II sect 43 p 44) Em Humano demasiado humano ao tecer uma consideraccedilatildeo sobre o intelecto humano Nietzsche chega a afirmar que ldquoele apareceu ndash aparece pois ainda vivemos este periacuteodo ndash quando uma extraordinaacuteria longamente acumulada energia da vontade se transferiu excepcionalmente para fins intelectuais mediante a hereditariedaderdquo (HDH 1 V sect 234 p 148) Ou seja jaacute temos uma consideraccedilatildeo incipiente acerca da vontade e de como ela se desloca para outro campo que natildeo o da accedilatildeo para tornar possiacutevel a formaccedilatildeo do intelecto Este tema seraacute futuramente retomado sob a designaccedilatildeo de ldquovontade de verdaderdquo Em Para aleacutem do bem e do mal (1886) Nietzsche nos traraacute uma versatildeo amadurecida do tema ao apontar que nossas convicccedilotildees estatildeo envoltas por uma necessidade de conservaccedilatildeo e expansatildeo da vida portanto seria obtuso perquirirmos acerca de um juiacutezo utilizando termos como verdade e falsidade (ABM I sect 4ordm p 11)

Nesta obra ele expotildee a questatildeo da verdade a partir do problema do valor da verdade ldquoo que em noacutes aspira realmente agrave verdade De fato por longo tempo nos detivemos ante a questatildeo da origem dessa vontade ndash ateacute afinal parar completamente ante uma questatildeo ainda mais fundamental Noacutes questionamos o valor

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dessa vontaderdquo (ABM I sect 1ordm p 9) Jaacute em Humano demasiado humano Nietzsche trabalha com a ideia de que eacute necessaacuterio compreender que toda metafiacutesica ndash assim como os temores das religiotildees ndash eacute positiva para a humanidade e que noacutes avanccedilamos porque acreditamos em seus conceitos Contudo resta ainda perceber que toda metafiacutesica eacute um erro porque como dito acima adveacutem de uma seacuterie de inferecircncias que embora tenham respaldo na natureza satildeo decorrentes de uma simplificaccedilatildeo grosseira realizada pela nossa capacidade de representaccedilatildeo O surgimento de uma teoria do poder em A Gaia Ciecircncia A gaia ciecircncia (1882) eacute a obra de transiccedilatildeo na produccedilatildeo de Nietzsche Trata-se de uma obra dividida em cinco livros dos quais os trecircs primeiros foram escritos por volta de 1882 ao passo que os dois uacuteltimos datam de 1883 a 1886 ou seja foram elaborados num periacuteodo que corresponde ao de Assim falou Zaratustra e Para aleacutem do bem e do mal Por isso essa obra jaacute traz em seu bojo consideraccedilotildees sobre os conceitos de vontade de poder morte de Deus (niilismo) e eterno retorno do mesmo Nela tambeacutem eacute dada continuidade agrave cruzada de Nietzsche contra a moral e a consciecircncia de culpa No proacutelogo da obra que data de 1886 Nietzsche descreve o livro como um ldquodivertimento apoacutes demorada privaccedilatildeo e impotecircncia o juacutebilo da forccedila que retorna da renascida feacute num amanhatilde e no depois de amanhatilderdquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 1ordm p 9)

Ele nos remete aqui a sua condiccedilatildeo pessoal aduz que o momento de feitura da obra refletiu um periacuteodo de convalescenccedila Tendo em vista que para Nietzsche a filosofia de um autor natildeo pode ser dissociada de sua vida ldquotoda grande filosofia foi ateacute o momento a confissatildeo pessoal de seu autorrdquo (ABM I sect 6ordm p 12) natildeo nos parece absurdo que o pensamento que lhe surge sob a pressatildeo da

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doenccedila natildeo lhe seja alheio mas sirva para pocircr agrave prova a sua pessoa enquanto pensador Natildeo eacute por acaso que Nietzsche ainda no proacutelogo escreve o seguinte ldquosabemos agora para onde o corpo doente com a sua necessidade inconscientemente empurra impele atrai o espiacuteritordquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 11) Esta digressatildeo acerca da doenccedila e suas implicaccedilotildees sobre o pensamento pode parecer mera elucubraccedilatildeo mas tem consequecircncias importantes para o pensamento de Nietzsche Como ele mesmo disse a doenccedila potildee a prova seu pensamento permitindo-lhe considerar se em toda a filosofia

que potildee a paz acima da guerra toda eacutetica que apreende negativamente o conceito de felicidade toda metafiacutesica e fiacutesica que conhece um finale um estado final de qualquer espeacutecie todo anseio predominantemente esteacutetico ou religioso por um Aleacutem Ao-lado Acima Fora (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 11)

natildeo foi a doenccedila que inspirou o filoacutesofo Nietzsche vai mais longe nessa consideraccedilatildeo acerca

do papel da doenccedila no pensamento e chega mesmo a afirmar que a fronteira entre o pensar como produto da alma e as necessidades fisioloacutegicas como algo proacuteprio do corpo eacute algo ilusoacuterio e talvez algo inconscientemente forjado para proteger o caraacuteter objetivo da ideia e de tudo que diz respeito ao acircmbito do pensamento Talvez a histoacuteria do pensamento tenha sido ldquoapenas uma interpretaccedilatildeo do corpo e uma maacute-compreensatildeo do corpordquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 12) Nota-se a partir dessas consideraccedilotildees iniciais que Nietzsche natildeo distingue corpo e alma como haviam feito os pensadores anteriores a ele Distinccedilatildeo esta que funciona talvez como sintoma como forma de alienar o pensamento tornando-o puramente espiritual livrando-o de toda carga imposta pela frivolidade

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do corpo Afinal como Nietzsche aduz o pensamento pode muito bem ser apenas um disfarce para necessidades fisioloacutegicas Vemos assim como Nietzsche daacute continuidade ao pensamento esboccedilado em livros anteriores que remete o pensar a determinado tipo de vontade com o adendo de que em A gaia ciecircncia Nietzsche potildee o pensamento agrave prova descrevendo-o como ldquosintoma de determinados corposrdquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 12) O valor da verdade enquanto descriccedilatildeo acurada da totalidade do ser eacute posto em xeque ao mesmo tempo em que eacute mostrada sua importacircncia enquanto sintoma de sauacutede ou doenccedila ascensatildeo ou degeneraccedilatildeo da vida (GC ldquoProacutelogordquo sect 4ordm p 14-15) O resultado disso eacute que a verdade natildeo continua como verdade se lhe tiramos o veacuteu (GC ldquoProacutelogordquo sect 4ordm p 15) O valor atribuiacutedo agrave existecircncia pela metafiacutesica eacute descartado como resposta objetiva para a condiccedilatildeo humana natildeo possui valor algum quando tomado cientificamente Poreacutem como sintoma do corpo como sintoma do ecircxito ou do fracasso da potecircncia ou impotecircncia daquele que pensa eacute de suma importacircncia para a ciecircncia principalmente para a histoacuteria e a psicologia Segundo Nietzsche

ateacute a pessoa mais nociva pode ser a mais uacutetil no que toca agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie pois manteacutem em si ou por sua influecircncia em outras impulsos sem os quais a humanidade teria haacute muito se estiolado ou corrompido (GC I sect 1ordm p 51)

Eacute ilusoacuterio julgar as accedilotildees em boas ou maacutes de acordo

com sua contribuiccedilatildeo para a conservaccedilatildeo da espeacutecie pois ldquotudo eacute parte da assombrosa economia da conservaccedilatildeo da espeacutecierdquo (GC I sect 1ordm p 51) Afirmar que ldquoateacute a pessoa mais nociva pode ser a mais uacutetil no que toca agrave conservaccedilatildeo da espeacutecierdquo traz consequecircncias profundas para o estudo da moral Se ateacute mesmo os impulsos maus satildeo apropriados

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para o fim da manutenccedilatildeo da espeacutecie natildeo nos eacute mais possiacutevel julgar uma accedilatildeo como boa ou maacute utilizando como paracircmetro justamente a condiccedilatildeo de apropriada ou natildeo ao fim da espeacutecie (GC I sect 4ordm p 57)

A tiacutetulo de exemplo tomemos o estudo que Nietzsche faz da virtude da compaixatildeo Se tomarmos o sentido claacutessico que eacute atribuiacutedo agrave compaixatildeo esta virtude natildeo eacute tatildeo virtuosa assim Isto porque segundo o filoacutesofo a compaixatildeo natildeo exprime nada aleacutem da oportunidade para o aumento do poder daquele que se diz compassivo em relaccedilatildeo agravequele que eacute objeto da compaixatildeo Essa anaacutelise estaacute de acordo com o entendimento de Nietzsche de que todas as virtudes podem ser compreendidas a partir de uma teoria do sentimento de poder ldquoao fazer bem e fazer mal aos outros exercitamos neles o nosso poder ndash eacute tudo o que queremos nesse casordquo (GC I sect 13 p 64)

Temos no aforismo 13 de A gaia ciecircncia intitulado ldquoSobre a teoria do sentimento de poderrdquo uma formulaccedilatildeo incipiente do conceito de vontade de poder Embora este conceito venha a aparecer de forma mais evidente somente no aforismo 349 de A gaia ciecircncia ou seja no quinto livro da obra que teria sido acrescendo a esta cinco anos depois ndash jaacute no periacuteodo de Para aleacutem do bem e do mal ndash o aforismo 13 jaacute nos fornece indicaccedilotildees cruciais acerca do tema Este aforismo eacute de suma importacircncia para entender o conceito fundamental da obra de Nietzsche visto que ele traz em seu bojo a afirmaccedilatildeo de que as virtudes satildeo na verdade sacrifiacutecios ao nosso ldquodesejo de poderrdquo (GC I sect 13 p 64)

Nietzsche afirma que queremos o bem agravequeles que dependem de noacutes porque assim aumentamos o nosso sentimento de poder ao mesmo tempo pelo mesmo motivo nos mostramos belicosos para com os inimigos de nosso poder O sacrifiacutecio que fazemos no intuito de fazer o bem ou o mal natildeo altera o valor uacuteltimo das accedilotildees o que interessa aqui eacute a sensaccedilatildeo de aumento do poder (GC I sect 13 p 64) Neste aforismo jaacute encontramos tambeacutem

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esboccedilada a compreensatildeo da verdade como ldquovontade de verdaderdquo visto que a verdade eacute concebida do ponto de vista da posse ldquoQuem sente que estaacute lsquode posse da verdadersquo a quantas posses natildeo tem de renunciar para salvaguardar esta sensaccedilatildeordquo (GC I sect 13 p 64)

O que estaacute em jogo aqui eacute a renuacutencia de demais aspectos da vida em detrimento da posse da verdade Nietzsche salienta que a verdade estaacute relacionada ao poder daquele que a salvaguarda a sensaccedilatildeo de aumento de poder daquele que deteacutem a verdade eacute valiosa ao ponto deste renunciar a outras posses a ponto de se sacrificar por ela Em suma a sensaccedilatildeo de aumento do poder pode acarretar em sacrifiacutecios nos quais ateacute mesmo a vida deixa de ser um valor supremo o mais importante aqui eacute a sensaccedilatildeo de que nos sacrificamos pelo desejo de poder (GC I sect 13 p 64)

Segundo ele as virtudes satildeo ldquoprejudiciais aos que as possuem enquanto impulsos que neles vigoram de maneira muito aacuterida e violenta natildeo querendo que a razatildeo os conserve em equiliacutebrio com os demais instintosrdquo (GC I sect 21 p 70) Nietzsche chega mesmo a ser provocativo ao afirmar que aquele que possui genuinamente uma virtude eacute viacutetima dela (GC I sect 21 p 70) Isso porque as virtudes existem como expressatildeo de aumento ou decreacutescimo de poder Uma virtude plena trabalha contra o indiviacuteduo eacute prejudicial a este porque eacute chamada de boa em vista dos efeitos que pressupomos que tem para a sociedade e natildeo para o seu detentor (GC I sect 21 p 69-70)

Quando a sociedade elogia o virtuoso ela o faz diminuindo o seu poder ldquoo lsquoproacuteximorsquo louva o desinteresse porque dele retira vantagemrdquo (GC I sect 21 p 70) Vemos assim como a teoria do sentimento de poder surge para suprir o vaacutecuo deixado pela moral tradicional que segundo Nietzsche jaacute caducava Natildeo eacute mais a moral que determina o valor da virtude mas o sentimento de poder daquele que a deteacutem eacute a partir dela que Nietzsche pode afirmar que o elogio das virtudes eacute o elogio de algo nocivo porque reflete

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o elogio de ldquoimpulsos que destituem o homem do seu nobre amor proacuteprio e da forccedila para a suprema custoacutedia de si mesmordquo (GC I sect 21 p 70)

No quinto livro da obra mais precisamente no aforismo 344 Nietzsche tece consideraccedilotildees acerca da relaccedilatildeo da ciecircncia com a verdade afirmando que esta repousa numa crenccedila de que a verdade eacute necessaacuteria (GC V sect 344 p 235) Responder agrave pergunta sobre a necessidade da verdade de forma afirmativa revela somente uma crenccedila de que a verdade eacute mais necessaacuteria que todo o resto Tal resposta se mostra somente como uma convicccedilatildeo porque como diz Nietzsche natildeo demonstra a validade ontoloacutegica da verdade mas somente a crenccedila de que ela eacute mais uacutetil do que a mentira Afinal como salienta o filoacutesofo ldquoQue sabem vocecircs de antematildeo sobre o caraacuteter da existecircncia para poder decidir se a vantagem maior estaacute do lado de quem desconfia ou de quem confia incondicionalmenterdquo (GC V sect 344 p 235)

Novamente o tema da utilidade se faz presente e serve para minar a crenccedila na univocidade dos conceitos pois ldquose a verdade e a inverdade continuamente se mostrassem uacuteteisrdquo natildeo poderiacuteamos pressupor que haacute necessidade das ciecircncias somente porque nestas a verdade eacute buscada incondicionalmente (GC V sect 344 p 235) Nietzsche revela que a nossa feacute na ciecircncia repousa ainda numa crenccedila metafiacutesica de que a verdade eacute divina (GC V sect 344 p 236) Caso questionemos o valor da verdade questionamos tambeacutem o valor da ciecircncia quando abordamos o problema da verdade como vontade de verdade vontade de natildeo se deixar enganar voltamos a questatildeo para o campo da moral porque a remetemos ao problema da utilidade da mesma para a vida ldquolsquoPor que ciecircnciarsquo leva de volta ao problema moral para que moral quando vida natureza e histoacuteria satildeo lsquoimoraisrsquordquo (GC V sect 344 p 236)

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O erro natildeo estaacute em viver a partir de artigos de feacute mas sim em eternizar tais artigos de feacute glorificaacute-los como algo atemporal O erro estaacute em natildeo perceber que o proacuteprio erro pode ser uma condiccedilatildeo necessaacuteria agrave vida Se tivermos em mente que tais artigos de feacute natildeo correspondem agrave essecircncia do mundo mas consistem numa espeacutecie de antropomorfismo2 que tais artigos de feacute satildeo necessaacuterios agrave vida mas que natildeo podem ser elevados agrave condiccedilatildeo de verdade acerca da realidade porque decorrentes de inferecircncias infundadas acerca das coisas entatildeo talvez possamos viver de forma mais leve como espiacuteritos livres que fazem da experiecircncia consigo mesmos o seu mote de vida

A vida natildeo eacute argumento ndash Ajustamos para noacutes o mundo em que podemos viver ndash supondo corpos linhas superfiacutecies causas e efeitos movimento e repouso forma e conteuacutedo sem esses artigos de feacute ningueacutem suportaria hoje viver Mas isto natildeo significa que eles estejam provados A vida natildeo eacute argumento entre as condiccedilotildees para a vida poderia estar o erro (GC III sect 121 p 145)

A teoria do poder substitui a moral tradicional porque descreve as relaccedilotildees a partir da noccedilatildeo de acreacutescimo ou decreacutescimo de poder No aforismo 349 intitulado ldquoAinda a procedecircncia dos eruditosrdquo Nietzsche escreve que ao contraacuterio do que pensava Spinoza por exemplo a vida tende agrave expansatildeo do poder ela natildeo busca a autoconservaccedilatildeo mas a abundacircncia ldquona natureza natildeo

2 Este entendimento que tem nos artigos de feacute a realizaccedilatildeo de uma espeacutecie de antropomorfismo soacute prevalece enquanto o conceito de vontade de poder natildeo eacute claramente exposto e adotado por Nietzsche porque apoacutes isso as valoraccedilotildees seratildeo vistas como o resultado de tentativas de dominaccedilatildeo da vontade de poder e natildeo mais como algo posto por um sujeito cognoscente

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predomina a indigecircncia mas a abundacircncia o desperdiacutecio chegando mesmo ao absurdordquo (GC V sect 349 p 243-244) A vida natildeo gira em torno da conservaccedilatildeo Eacute certo que os seres viventes lutam pela existecircncia mas segundo Nietzsche a luta pela existecircncia natildeo eacute o objetivo da vida ldquoa luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderacircncia de crescimento e expansatildeo de poder conforme a vontade de poder que eacute justamente vontade de vidardquo (GC V sect 349 p 244)

A partir daqui toda consideraccedilatildeo acerca da vida toda valoraccedilatildeo seraacute o resultado da vontade de poder se manifestando sob determinada configuraccedilatildeo Afinal como Nietzsche salienta ldquoo fato de que algo precisa ser considerado verdadeiro eacute necessaacuterio natildeo o fato de que algo eacute verdadeirordquo (FP 9 [38] [28] do outono de 1887 p 291) Todo povo que vive avalia mas natildeo a partir de paracircmetros racionais de avaliaccedilatildeo Natildeo eacute propriamente o ser humano a partir de sua faculdade racional que potildee valores mas a vida em si mesma enquanto vontade de poder ldquoMuitas coisas satildeo mais estimadas pelo vivente do que a vida mesma mas no proacuteprio estimar fala ndash a vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Os valores natildeo podem ser compreendidos a partir da reacutegua estabelecida pela razatildeo cartesiana pois o uacutenico moacutevel da vontade de poder eacute o aumento do poder

Satildeo nossas necessidades que interpretam o mundo nossos impulsos e seus proacutes e contras Cada impulso eacute uma espeacutecie de despotismo cada um tem a sua perspectiva que ele gostaria de impor como norma a todos os outros impulsos (FP 7 [60] do final de 1886 ndash primavera de 1887 p 263)

Os filoacutesofos em sua busca pela verdade

manifestam uma vontade de poder enviesada que exige que tudo se torne pensaacutevel computaacutevel ldquoVontade de tornar

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pensaacutevel tudo o que existe assim chamo eu agrave vossa vontaderdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p108) Dessa forma o que caracteriza o ser humano natildeo eacute mais a capacidade para descrever a realidade em sua essecircncia transcendente como queria Platatildeo ou mesmo a capacidade para conhecer de uma maneira transcendental atraveacutes das formas a priori da sensibilidade do entendimento e da razatildeo como queria Kant mas a capacidade para criar valor porque todo dizer do ser humano manifesta o predomiacutenio de uma vontade de poder que natildeo pode ser mensurada em seu grau de veracidade mas somente a partir da forccedila com que a mesma se impotildee

Nossos valores satildeo inseridos interpretativamente nas coisas Haacute afinal um sentido em si O sentido natildeo eacute necessariamente sentido-relacional e perspectiva Todo sentido eacute vontade de poder (todos os sentidos relacionais podem ser resolvidos nela) (FP 2 [77] do outono de 1885 ndash outono de 1886 p 79)

Dizer que a vida eacute vontade de poder significa dizer

que tudo que vive busca ldquoantes de tudo dar vazatildeo a sua forccedilardquo (ABM I sect 13 p 19) Os filoacutesofos apresentam suas teses como se estas resultassem de ldquouma dialeacutetica fria pura divinamente imperturbaacutevelrdquo quando essas teses surgem de seu iacutentimo desejo tornado consciente (ABM I sect 5ordm p 12) Dessa forma as ldquoverdadesrdquo dos filoacutesofos natildeo passam de preconceitos que satildeo revestidos de razatildeo para se tornarem passiacuteveis de assimilaccedilatildeo pelos demais

No aforismo 347 intitulado ldquoOs crentes e sua necessidade de crerrdquo Nietzsche estabelece uma associaccedilatildeo inequiacutevoca entre os conceitos de vontade de poder e niilismo Ao escrever acerca do niilismo segundo o modelo de Satildeo Petersburgo que segundo ele consiste ldquona crenccedila na descrenccedila ateacute chegar ao martiacuterio por elardquo (GC V sect 347

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p 241) Nietzsche chega agrave conclusatildeo de que o niilismo esse desejo desenfreado pela feacute que natildeo eacute mais possiacutevel ocorre quando falta a vontade pois esta eacute o afeto de comando o emblema da forccedila A forccedila aqui consiste na capacidade de comandar a si mesmo e natildeo se deixar comandar ldquopor um deus um priacutencipe uma classe um meacutedico um confessor um dogma uma consciecircncia partidaacuteriardquo (GC V sect 347 p 241)

Neste sentido tanto o budismo quanto o cristianismo estatildeo ligados a um adoecimento ou afrouxamento da vontade O adoecimento da vontade propicia o advento da noccedilatildeo de dever porque o dever implica no comando no direcionamento da vontade por uma instacircncia superior ao indiviacuteduo quando este natildeo eacute mais capaz de comandar a si mesmo A feacute eacute justamente esse desiacutegnio esse direcionamento da vontade para um ldquouacutenico ponto de vista e sentimento que passa a predominarrdquo (GC V sect 347 p 241)

Nietzsche toma essa elucidaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o adoecimento da vontade e o surgimento da noccedilatildeo de dever como base para fazer uma distinccedilatildeo entre o espiacuterito livre e o crente O primeiro ao contraacuterio do crente que chega agrave convicccedilatildeo fundamental de que tem de ser comandado porque natildeo pode fazecirc-lo por si soacute tem prazer na autodeterminaccedilatildeo A forccedila do espiacuterito livre adveacutem da liberdade da vontade

Uma liberdade da vontade em que um espiacuterito se despende de toda crenccedila todo desejo de certeza treinado que eacute em se equilibrar sobre tecircnues cordas e possibilidade e em danccedilar ateacute mesmo agrave beira de abismos (GC V sect 347 p 241)

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A caracterizaccedilatildeo da vida como vontade de poder em Assim falou Zaratustra

Como relatado acima nas obras Humano demasiado humano Aurora e nas trecircs primeiras partes de A gaia ciecircncia eacute descoberto por Nietzsche algo bastante perturbador a verdade natildeo passa de metaacutefora Tudo que dizemos acerca do mundo natildeo passa de ldquoantropomorfismo esteacuteticordquo (GC III sect 109 p 136) Poreacutem ao mesmo tempo em que faz essa descoberta aterradora o filoacutesofo concebe de forma incipiente uma ldquoteoria do sentimento de poderrdquo Destarte a criacutetica do ldquoperiacuteodo positivistardquo natildeo pode ser simplesmente descartada pelo contraacuterio ela eacute de grande importacircncia na medida em que revela a Nietzsche que por traacutes de toda postulaccedilatildeo de valor haacute apenas a busca pelo poder

Temos nestas obras uma descoberta que se assemelha ao deus Jano da mitologia romana ela eacute bifrontal Por um lado a razatildeo eacute incapaz de tocar o tecido da realidade por outro toda descriccedilatildeo diz respeito agrave manutenccedilatildeo e expansatildeo da vida Como bem observa Tuumlrcke (1993 p 65)

O intelecto difamado como mentiroso eacute o mesmo que eacute festejado como artista o modo diverso de valoraacute-lo eacute um passar de uma teoria negativa para uma teoria positiva de conhecimento do desmascaramento do escandaloso defeito que lhe eacute inerente para a investigaccedilatildeo de como chegou a ter este defeito

Estaacute dado aqui o passo decisivo para a formulaccedilatildeo

do conceito de vontade de poder De fato embora esses escritos mostrem que as bases metafiacutesicas e morais de nossa civilizaccedilatildeo foram minadas de forma irreversiacutevel a ponto de nos legar o sentimento de vazio existencial eles

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servem para revelar a Nietzsche o caraacuteter fundamental da vida

A diferenccedila entre a criacutetica de Humano demasiado humano Aurora e A gaia ciecircncia e a criacutetica de Assim falou Zaratustra eacute que toda uma nova concepccedilatildeo acerca da existecircncia que vinha maturando ao longo destas obras se torna madura o suficiente para embasar uma proposta mais robusta para o problema da decadecircncia Embora seja impossiacutevel identificar a partir de paracircmetros estritamente racionais qualquer verdade acerca do mundo que nos rodeia toda verdade passa a ser entendida como uma ficccedilatildeo que permite a manutenccedilatildeo e desenvolvimento de determinada organizaccedilatildeo da vida social

Na quinta e uacuteltima parte de A gaia ciecircncia ao elaborar uma criacutetica acerca das filosofias que postulam a preservaccedilatildeo como instinto fundamental da vida jaacute nos eacute revelado de forma expliacutecita que a vida tende agrave expansatildeo do poder nada mais ldquoquerer preservar a si mesmo eacute expressatildeo de um estado indigente de uma limitaccedilatildeo do verdadeiro instinto fundamental da vida que tende agrave expansatildeo do poderrdquo (GC V sect 349 p 243-244) Por sua vez a passagem de Assim falou Zaratustra na qual Nietzsche estabelece consideraccedilotildees fundamentais acerca da vontade de poder eacute denominada ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo e consta do segundo livro da obra Nesta passagem o filoacutesofo faz Zaratustra enunciar o seguinte ldquoOnde encontrei seres vivos encontrei vontade de poder e ainda na vontade do servente encontrei a vontade de ser senhorrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 109)

Ainda na mesma passagem pouco mais agrave frente Zaratustra diraacute que a vida natildeo eacute ldquovontade de existecircnciardquo porque ldquoo que natildeo eacute natildeo pode querer mas o que se acha em existecircncia como poderia ainda querer existecircnciardquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Esse trecho revela a vontade de poder como vontade de superaccedilatildeo e natildeo de manutenccedilatildeo expotildee uma criacutetica agrave concepccedilatildeo de vontade

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como tendecircncia a permanecer na existecircncia Tanto essa concepccedilatildeo como essa criacutetica jaacute haviam sido expostas no aforismo 349 de A gaia ciecircncia Poreacutem haacute algo de novo aqui pois Zaratustra tambeacutem afirma que ldquoEste segredo a proacutepria vida me contou lsquoVecircrsquo disse lsquoeu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmorsquordquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110)

Neste sentido natildeo temos aqui um sujeito que conhece os atributos da vida mas a vida que se mostra a si mesma como vontade de poder Natildeo temos aqui uma consideraccedilatildeo de cunho antropoloacutegico pois natildeo eacute Zaratustra que enuncia que a vida natildeo eacute nada aleacutem de vontade de poder eacute a vida mesma que o diz ao profeta A partir daqui toda consideraccedilatildeo acerca da vida toda valoraccedilatildeo seraacute o resultado da vontade de poder se manifestando sob determinada configuraccedilatildeo Todo povo que vive avalia mas natildeo a partir de paracircmetros racionais de avaliaccedilatildeo Natildeo eacute propriamente o ser humano a partir de sua faculdade racional que potildee valores mas a vida em si mesmo enquanto vontade de poder Os valores natildeo podem ser compreendidos a partir da reacutegua estabelecida pela razatildeo cartesiana pois o uacutenico moacutevel da vontade de poder eacute o aumento do poder

Temos o abandono da oacutetica da subjetividade em prol da vontade de poder que possibilita a superaccedilatildeo da criacutetica da metafiacutesica da religiatildeo e da moral como resultado de mero antropomorfismo Natildeo eacute mais o ser humano enquanto sujeito que conhece e avalia mas a vontade de poder que se expressa no humano bem como em todas as coisas como luta por superaccedilatildeo Isso fica claro quando lemos o seguinte ldquoMuitas coisas satildeo mais estimadas pelo vivente do que a vida mesma mas no proacuteprio estimar fala ndash a vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Essa mudanccedila de paradigma se torna evidente quando percebemos como Nietzsche concebe a ldquoverdaderdquo preconizada pelos filoacutesofos como ldquovontade de verdaderdquo

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Os filoacutesofos em sua busca pela verdade manifestam uma vontade de poder enviesada que exige que tudo se torne pensaacutevel computaacutevel ldquoVontade de tornar pensaacutevel tudo o que existe assim chamo eu agrave vossa vontaderdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 108) Dessa forma o que caracteriza o ser humano natildeo seraacute mais a capacidade para descrever a realidade mas a capacidade para criar valor porque todo dizer seu manifesta o predomiacutenio de uma vontade de poder que natildeo pode ser mensurada em seu grau de veracidade mas somente a partir da forccedila que a mesma impotildee

Sob a perspectiva da vontade de poder o niilismo seraacute natildeo somente o resultado do pensamento ocidental ele passaraacute a ser a loacutegica interna desse pensamento que se desenvolve a partir da decadecircncia desde seu princiacutepio Isso se torna patente quando vemos Nietzsche afirmar em seu Crepuacutesculo dos iacutedolos que os dialeacuteticos natildeo satildeo livres para serem dialeacuteticos ldquoa racionalidade foi entatildeo percebida como salvadora nem Soacutecrates nem seus lsquodoentesrsquo estavam livres para serem ou natildeo racionais ndash isso era de rigueur [obrigatoacuterio] era seu uacuteltimo recursordquo (CI ldquoO problema de Soacutecratesrdquo sect 10 p 21-22)

Nietzsche ressalta que aquele tipo de argumentaccedilatildeo dialeacutetica a que se dedicava Soacutecrates era vista com maus olhos pela nobreza de Atenas Isto porque segundo ele

tambeacutem se desconfiava de toda essa exibiccedilatildeo dos proacuteprios motivos Coisas de respeito como homens de respeito natildeo trazem assim na matildeo os seus motivos Eacute indecoroso mostrar todos os cinco dedos Eacute de pouco valor aquilo que primeiramente tem de se provar (CI II ldquoO problema de Soacutecratesrdquo sect 5ordm p 19)

Ao somarmos esta criacutetica do pensador dialeacutetico que

busca enunciar razotildees para seu modo de agir agrave descriccedilatildeo

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do homem nobre como aquele que natildeo exibe os proacuteprios motivos que tem acima de tudo no pathos da distacircncia3 sua motivaccedilatildeo fundamental podemos compreender melhor o que seria o super-homem para Nietzsche

O que estaacute impliacutecito aqui eacute a noccedilatildeo de que a vontade de poder configura a forma como elaboramos a existecircncia Natildeo somos livres para assumirmos a perspectiva que supostamente adotamos na verdade a perspectiva que adotamos eacute o resultado de uma configuraccedilatildeo da vontade de poder que pode ser o resultado de forccedilas ativas ou reativas O adoecimento da vontade leva a uma configuraccedilatildeo da existecircncia que fomenta a fraqueza em vez da forccedila A vontade fraca eacute aquela que natildeo consegue lidar com os aspectos negativos da vida sem criar paliativos que a tornam menos dura mais palataacutevel Nessa perspectiva o advento da modernidade ndash com todas as inovaccedilotildees na forma de pensar que lhe satildeo proacuteprias ndash natildeo representa um avanccedilo em relaccedilatildeo agrave forma de pensar da Antiguidade e do Medievo A ciecircncia o sentido histoacuterico a democracia continuam sendo a expressatildeo de uma vontade fraca Tudo natildeo passa do resultado de ldquoinstintos ruins de naturezas doentesrdquo a que foi dado vazatildeo (EH ldquoPor que sou tatildeo inteligenterdquo sect 10 p 50)

A elaboraccedilatildeo de uma hierarquia de valores em Para aleacutem do Bem e do Mal

A descriccedilatildeo de uma ldquonobreza em geralrdquo pode ser encontrada em Para aleacutem do bem e do mal livro que se segue ao Zaratustra Nesta obra jaacute temos o exerciacutecio de um projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores que se traduz pela distinccedilatildeo entre a valoraccedilatildeo tiacutepica de uma vontade fraca (que

3 De acordo com Patrick Wotling (2013 p 35-36) pathos da distacircncia consiste no ldquodesejo passional de distacircncia que potildee os limites destinados a afastar aqueles que natildeo satildeo reconhecidos como lsquoparesrsquordquo

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se exprime pela foacutermula ldquobom e maurdquo) e aquela que Nietzsche considera forte ou seja nobre (pautada na foacutermula ldquobom e ruimrdquo) Esta obra conteacutem tambeacutem aforismos nos quais Nietzsche disserta a respeito do que ele denomina como a ldquorebeliatildeo escrava na moralrdquo cujo resultado eacute a substituiccedilatildeo da moral nobre por uma moral escrava

Para ele ldquoa alma nobre tem reverecircncia por si mesmardquo (ABM IX sect 287 p 174) A alma nobre eacute aquela impelida pelo egoiacutesmo ldquoela natildeo gosta de olhar lsquopara cimarsquo ndash mas sim adiante de maneira lenta e horizontal ou para baixo ndash ela sabe que se encontra no altordquo (ABM IX sect 265 p 165) Afinal ldquoo essencial numa aristocracia boa e satilde eacute que ela natildeo se sinta como funccedilatildeo (quer da realeza quer da comunidade) mas como seu sentido e suprema justificativardquo (ABM IX sect 258 p 154) Essa caracteriacutestica distingue o nobre do escravo porque este natildeo estabelece distinccedilotildees a partir de si mesmo de sua forccedila mas a partir do outro da supressatildeo da forccedila do outro

o olhar do escravo natildeo eacute favoraacutevel agraves virtudes do poderoso eacute ceacutetico e desconfiado tem finura na desconfianccedila frente a tudo lsquobomrsquo que eacute honrado por ele ndash gostaria de convencer-se de que nele a proacutepria felicidade natildeo eacute genuiacutena (ABM IX sect 260 p 158)

Ao longo dos livros que precedem Para aleacutem do bem e do mal vimos como Nietzsche mostra que a consciecircncia eacute uma faceta iacutenfima da atividade que se desenvolve no corpo humano como ela representa o instinto de rebanho que resulta da dificuldade do humano em sobreviver por si soacute no meio selvagem A consciecircncia se desenvolveu juntamente com a linguagem a partir de simplificaccedilotildees grosseiras mas necessaacuterias para que a besta homem pudesse sobreviver Esse tipo de consideraccedilatildeo visa mostrar que a linguagem possui utilidade para o humano mas este

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natildeo pode fazer uso dela para alcanccedilar o reino do supra-sensiacutevel onde supostamente reina a verdade Tal concepccedilatildeo da linguagem tambeacutem eacute mostrada por Nietzsche como o resultado de uma luta por domiacutenio como uma perspectiva de vida

Resta saber como Nietzsche pode fazer um julgamento tatildeo negativo dessa vontade de poder que se sublima em vontade de verdade a ponto de afirmar que ldquofilosofar eacute um atavismo de primeiriacutessima ordemrdquo (ABM I sect 20 p 24) Para tanto eacute necessaacuterio perceber que embora a vida seja vontade de poder ou seja acircnsia de domiacutenio haacute vontades fortes e fracas (ABM I sect 21 p 26) O que seria uma vontade fraca Tal vontade se apresentaraacute como aquela que deseja ldquoum punhado de lsquocertezarsquo a toda uma carroccedila de belas possibilidadesrdquo (ABM I sect 10 p 15) Uma vontade fraca deseja um significado para a vida dado de antematildeo natildeo suporta a abertura para possibilidades que eacute proacutepria da vida Talvez possamos compreender melhor uma vontade fraca a partir da vontade forte Esta pode ser denominada tambeacutem a partir da designaccedilatildeo espiacuterito livre o artista da vida capaz de compreender a imoralidade da vida e de se arriscar na tentativa do artificial em vez de buscar guarida no gosto pelo incondicional (ABM II sect 31 p 35)

A vontade forte natildeo se deixa levar por moralismos ela vivencia um periacuteodo extramoral no qual natildeo passa de ldquoum preconceito moral que a verdade tenha mais valor do que a aparecircnciardquo (ABM II sect 34 p 39) Nietzsche eacute provocativo ao afirmar que o filoacutesofo tem de agora em diante direito ao ldquomau caraacuteterrdquo (ABM II sect 34 p 38) sim ao mau caraacuteter porque ele natildeo mais avalia as accedilotildees com base na moral De fato se levarmos em consideraccedilatildeo que a proacutepria palavra ldquoaccedilatildeordquo jaacute eacute um preconceito que ela representa uma simplificaccedilatildeo grosseira dessa corrente contiacutenua na qual se desenrola a vida se considerarmos que o livre-arbiacutetrio eacute um anseio por nos sobrecarregar de responsabilidade (ABM I sect 21 p 25) se considerarmos que o oposto do livre-

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arbiacutetrio o ldquocativo-arbiacutetriordquo natildeo passa de um abuso da noccedilatildeo de causa e efeito quando existe somente vontade atuando sobre vontade (ABM II sect 21 p 25) entatildeo a vontade forte eacute aquela que se rebela contra a simplicidade da gramaacutetica a metafiacutesica do homem comum vislumbrando os conceitos como ldquoficccedilotildees convencionais para fins de designaccedilatildeo de entendimento natildeo de explicaccedilatildeordquo (ABM I sect 21 p 25-26) Tal vontade poderaacute ser taxada de ldquomau caraacuteterrdquo porque ela natildeo se pauta mais por este moralismo que resulta da accedilatildeo dominada pelo livre-arbiacutetrio porque ela natildeo mais carrega o fardo que resulta de tal raciociacutenio justamente o fardo da responsabilidade Para a vontade forte soacute haacute vontade atuando sobre vontade o mundo eacute visto como vontade de poder e nada mais (ABM II sect 36 p 40) Nietzsche natildeo nega que a sociedade gerada pela teacutecnica desenvolvida a partir da ciecircncia e em uacuteltima instacircncia pela metafiacutesica seja mais segura mais pacata mais fina em seus costumes No entanto isso natildeo significa necessariamente algo positivo ldquoesse homem das culturas tardias e das luzes veladas seraacute por via de regra um homem bem fraco sua aspiraccedilatildeo mais profunda eacute que um dia tenha fim a guerra que ele eacuterdquo (ABM V sect 200 p 86) Isso porque Nietzsche tambeacutem afirma que ldquoo sofrimento profundo enobrece coloca agrave parterdquo (ABM IX sect 270 p 169) Em outros termos a reaccedilatildeo em face ao sofrimento passa a ser o criteacuterio para avaliar o valor dos valores ldquoA hierarquia eacute quase que determinada pelo grau de sofrimento a que um homem pode chegarrdquo (ABM IX sect 270 p 169)

O que distingue os sofredores ndash pois todos somos sofredores ndash eacute sua relaccedilatildeo com o sofrimento se buscamos escapar do sofrimento em direccedilatildeo a um ser venturoso ou se consideramos o ser como suficientemente venturoso a ponto de ldquojustificar mesmo uma quantidade descomunal de sofrimentordquo (FP 14 [89] do comeccedilo do ano 1888 p 241) Haacute portanto dois tipos de sofredores os que sofrem de

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abundacircncia de vida e aqueles que sofrem de empobrecimento de vida (GC V sect 370 p 272)

O sentido do sofrimento assume assim papel fundamental no pensamento de Nietzsche Ele serve para estabelecer a linha divisoacuteria entre o que ele denomina como ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoconhecimento romacircnticordquo ou ldquopessimistardquo ldquoDecifra-se o problema eacute o problema do sentido do sofrimento ora um sentido cristatildeo ora um sentido traacutegicordquo (FP 14 [89] do comeccedilo do ano 1888 p 241) Os espiacuteritos niveladores defensores das ideias modernas formam fileiras para debelar o sofrimento por isso satildeo considerados romacircnticos fracos Da mesma forma a vontade que estabelece como paracircmetro avaliador o prazer e o desprazer que coloca a supressatildeo do sofrimento em primeiro plano revela seu caraacuteter fraacutegil adoecido

Afinal ldquohaacute problemas mais elevados do que dor prazer e compaixatildeo e toda filosofia que trate apenas disso eacute ingenuidaderdquo (ABM VII sect 225 p 118) Jaacute o conhecimento traacutegico eacute aquele que se permite ldquonatildeo soacute a visatildeo do terriacutevel e discutiacutevel mas mesmo o ato terriacutevel e todo luxo de destruiccedilatildeo decomposiccedilatildeo negaccedilatildeordquo (GC V sect 370 p 273) O conhecimento traacutegico consiste justamente em perceber que o sofrimento eacute inerente agrave vida mas natildeo somente consiste em concebecirc-lo como algo desejaacutevel ldquoVocecircs querem se possiacutevel ndash e natildeo haacute mais louco lsquopossiacutevelrsquo ndash abolir o sofrimento e quanto a noacutes ndash parece mesmo que nos o queremos ainda mais maior e pior do que jamais foirdquo (ABM VII sect 225 p 117) Conclusatildeo A figura do Uumlbermensch vem representar justamente a vontade que supera a si mesma capaz de moldar a vida a partir de sua forccedila capaz de realizar a transvaloraccedilatildeo de todos os valores ldquo() todo tipo de pessimismo e niilismo

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na matildeo dos mais fortes natildeo passa agora de um martelo e de um instrumento a mais com o qual eacute possiacutevel colocar um novo par de asasrdquo (FP 2 [101] do outono de 1885 ndash outono de 1886 p 91) O Uumlbermensch eacute um ser cuja criaccedilatildeo natildeo pode ser mensurada como certa ou errada a partir da ldquoreacutegua da razatildeordquo tendo em vista ser a razatildeo fruto de uma inversatildeo de valores que colocou em relevo as ldquopropriedades que servem para aliviar a existecircncia dos que sofremrdquo (ABM IX sect 260 p 158)

O Uumlbermensch eacute aquele indiviacuteduo capaz de interpretar a existecircncia mas natildeo a partir de um ponto de vista teoacuterico que tem no sujeito racional seu ponto de apoio O pensamento que se adequa a uma ordem de razotildees natildeo eacute capaz de compreender esse aspecto de toda criaccedilatildeo porque ele jaacute estaacute comprometido com a loacutegica da verdade Sendo assim toda criaccedilatildeo do Uumlbermensch eacute obra de arte e como tal eacute verdadeira em si mesma

A este respeito vale a pena citar Miguel Antonio do Nascimento que se expressa da seguinte maneira sobre o tema

Assim o que faz valer no valor natildeo eacute o dado efetivo mas o poder tornar efetivo dando ao ato cunho de criaccedilatildeo Nesta circunstacircncia de falta de um dado criar resulta necessariamente em criar do nada o sentido de sua proacutepria existecircncia tornando o ser humano seu proacuteprio para-aleacutem-de-si em elevaccedilatildeo (2004 p 310)

O Uumlbermensch representa o niilismo ativo a vontade de poder capaz de criar a partir do nada Natildeo nos eacute possiacutevel aventar Deus como conjectura porque Deus ultrapassa nossa capacidade criadora Para compreender isso basta observarmos o trecho do Zaratustra denominado ldquoNas ilhas bem-aventuradasrdquo no qual Nietzsche fala da

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impossibilidade da criaccedilatildeo de deuses mas na possibilidade de criaccedilatildeo do Uumlbermensch

Deus eacute uma conjectura mas eu quero que vossas conjecturas natildeo excedam vossa capacidade criadora Podeis criar um deus ndash Entatildeo natildeo me faleis de deuses Mas bem poderiacuteeis criar o Uumlbermensch (ZA II ldquoNas ilhas bem-aventuradasrdquo p 81)

Quando assumimos uma perspectiva teoloacutegica entendemos o ser humano como objeto de uma narrativa que o transcende natildeo como o sujeito detentor da forccedila (ou fraqueza) para se determinar enquanto criador de valores Sob uma perspectiva escatoloacutegica todos os valores que venham a ser criados jaacute estatildeo determinados de antematildeo como ldquobonsrdquo ou ldquomausrdquo pelos paracircmetros estabelecidos pelo Deus que nos criou Devemos portanto conjeturar a respeito do que natildeo estaacute fora dos limites de nossa capacidade criativa O Uumlbermensch surge assim como meta a ser alcanccedilada porque ele consiste numa expressatildeo cunhada por Nietzsche para a compreensatildeo poacutes-metafiacutesica da existecircncia ou seja para a compreensatildeo da histoacuteria ocidental como histoacuteria do niilismo

O Uumlbermensch assume essa histoacuteria como seu destino O conhecimento traacutegico consiste justamente em perceber que o sofrimento eacute inerente agrave vida mas natildeo somente consiste em concebecirc-lo como algo desejaacutevel ldquoVocecircs querem se possiacutevel ndash e natildeo haacute mais louco lsquopossiacutevelrsquo ndash abolir o sofrimento e quanto a noacutes ndash parece mesmo que noacutes o queremos ainda mais maior e pior do que jamais foirdquo (ABM VII sect 225 p 117) A vontade de poder possui assim uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com o niilismo O sentido mesmo da vontade de poder diz respeito agrave compreensatildeo de que a tradiccedilatildeo filosoacutefica chegou ao seu colapso ou seja revelou-se a natureza niilista de sua proposta O metro para

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a verdade eacute a capacidade para suportar esse destino e viver uma vida autecircntica apesar da ausecircncia de um fundamento uacuteltimo para a existecircncia Tomemos o trecho de Assim falou Zaratustra intitulado ldquoDa redenccedilatildeordquo como exemplo Trata-se do primeiro momento em que a temaacutetica do eterno retorno eacute focada nesta obra ainda que apenas indiretamente Nesta passagem do Zaratustra a relaccedilatildeo com a temporalidade eacute delineada a partir de duas concepccedilotildees adversas de redenccedilatildeo a redenccedilatildeo que liberta do tempo e a redenccedilatildeo que se daacute no tempo A primeira forma de redenccedilatildeo eacute proposta pelo ldquoespiacuterito de vinganccedilardquo contra o tempo que se caracteriza pela ldquoaversatildeo da vontade pelo tempo e seu lsquoFoirsquordquo (ZA II ldquoDa redenccedilatildeordquo p 133) O espiacuterito de vinganccedila eacute aquele que natildeo consegue estabelecer uma relaccedilatildeo saudaacutevel com a temporalidade com o correr do tempo e a impossibilidade da vontade de ldquoquerer para traacutesrdquo (ZA II ldquoDa redenccedilatildeordquo p 133)

O eterno retorno eacute o pensamento que reflete o grau maacuteximo de niilismo ou de ausecircncia de sentido tal doutrina desponta como o pensamento que natildeo admite sentido algum para o ser em geral porque potildee a repeticcedilatildeo eterna de tudo que haacute como condiccedilatildeo indeleacutevel e inelutaacutevel Se a histoacuteria do Ocidente eacute a histoacuteria da ascensatildeo do niilismo o eterno retorno eacute o pensamento que retira de maneira definitiva o veacuteu de sentido que poderia ser ainda atribuiacutedo agrave existecircncia por alguma interpretaccedilatildeo Mas isso eacute proposital porque Nietzsche entende que ldquoa medida de grau da forccedila da vontade eacute ateacute que ponto se pode prescindir de sentido nas coisas ateacute que ponto se suporta viver em um mundo sem sentidordquo (FP 9 [60] [46] do outono de 1887 p 302) Nota de Esclarecimento

Satildeo de Nietzsche as obras sem indicaccedilatildeo de autor Abreviamos os tiacutetulos como segue

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VM ndash Sobre verdade e mentira no sentido extramoral HDH 1 ndash Humano demasiado humano (v 1) HDH 2 OS ndash Humano demasiado humano (v 2) miscelacircnea de opiniotildees e sentenccedilas HDH 2 AS ndash Humano demasiado humano (v 2) o andarilho e sua sombra A ndash Aurora GC ndash A gaia ciecircncia ZA ndash Assim falou Zaratustra ABM ndash Para aleacutem do bem e do mal GM ndash Genealogia da moral CI ndash Crepuacutesculo dos iacutedolos AC ndash O anticristo CW ndash O caso Wagner EH ndash Ecce homo Forma de citaccedilatildeo Para os textos publicados por Nietzsche o algarismo romano indica a parte ou capiacutetulo o algarismo araacutebico indica a seccedilatildeo no caso de ZA e CI o algarismo romano indica a parte do livro seguida do tiacutetulo da passagem e do algarismo araacutebico que indica a seccedilatildeo no caso de GM o algarismo romano anterior ao araacutebico remete a uma das trecircs dissertaccedilotildees no caso de EH o algarismo araacutebico que se seguiraacute ao tiacutetulo do capiacutetulo indicaraacute a seccedilatildeo Para as anotaccedilotildees poacutestumas os algarismos araacutebicos seguidos da data indicam o fragmento poacutestumo e a eacutepoca em que foi redigida Quanto aos demais autores indicamos o autor e a data de publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo seguida da paacutegina

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Referecircncias NASCIMENTO Miguel Antonio do (2004) Sobre a criacutetica de

Nietzsche aos valores Ethica ndash Cadernos acadecircmicos v 11 n 1 e 2 p 283-311

NIETZSCHE Friedrich W A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo notas e

posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

_________ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

_________ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais

Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

_________ Crepuacutesculo dos iacutedolos ou Como se filosofa

com o martelo Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

_________ Fragmentos poacutestumos 1885-1887 volume VI

Trad de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

_________ Fragmentos poacutestumos 1887-1889 volume VII

Trad de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

_________ Humano demasiado humano um livro para

espiacuteritos livres volume I Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza 2 ed Satildeo Paulo Companhia de bolso 2005

_________ Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres volume II Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza 2 ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

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_________ Para aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de bolso 2005

Niilismo e Teacutecnica em

Heidegger

Bruno Ricardo A Malvino1

Introduccedilatildeo

Neste trabalho tentaremos traccedilar o quadro niilista

no qual Heidegger situa a sua compreensatildeo de teacutecnica moderna procurando compreender a caracterizaccedilatildeo da teacutecnica moderna como Ge-stell nas suas variadas caracteriacutesticas e determinaccedilotildees Em seguida exploraremos em que medida a Ges-stell representa para Heidegger o ldquosupremo perigordquo nomeadamente no texto ldquo A Questatildeo da Teacutecnica publicado em 1954 para assim investigarmos a relaccedilatildeo da teacutecnica com o niilismo no texto ldquoPara que Poetasrdquo de 1950 a fim de estabelecer pontes entre Nietzsche e o pensamento metafiacutesico nomeadamente a filosofia moderna Nesse sentido tentaremos articular como Heidegger interpreta as teorias da vontade de poder e do eterno retorno do mesmo como apoteoses (epifanias) do niilismo ou seja consumaccedilatildeo do caminho trilhado pela metafiacutesica desde as suas origens onde o ser eacute permanentemente confundido com a essecircncia que se encontra presente na totalidade do ente interpretando tambeacutem a vontade de poder e o Uumlbermensch nietzschiano como a transformaccedilatildeo do ego cogito de Descartes num ego volo a saber num Eu quero Em seu texto A essecircncia do Niilismo Heidegger faz a seguinte observaccedilatildeo sobre o niilismo e sua essecircncia

O niilismo eacute um movimento historial natildeo qualquer opiniatildeo ou doutrina representada por quem quer

1 Mestrando em Filosofia pela universidade Federal da Paraiacuteba

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que seja O niilismo move a histoacuteria segundo o modo de um processo fundamental quase natildeo reconhecido que se daacute no destino dos povos ocidentais Por isso o niilismo natildeo eacute tambeacutem somente uma manifestaccedilatildeo historial entre outras natildeo eacute somente uma corrente espiritual que ao lado de outras ao lado do cristianismo do humanismo e do iluminismo ocorre igualmente dentro da histoacuteria ocidental O niilismo eacute pensado em sua essecircncia muito mais o movimento fundamental da histoacuteria do ocidente Ele mostra algo que cala tatildeo fundo que seu desdobramento soacute pode ainda ter como consequecircncias cataacutestrofes mundiais O niilismo eacute o movimento historico-mundial dos povos da terra que entraram no acircmbito de poder da modernidade (HEIDEGGER 2000 p 6)

Na longa crise da grande filosofia posterior ao

sistema de Hegel Heidegger restitui-nos o sentido do que significa pensar em grande estilo natildeo soacute pela densidade de sua obra mas tambeacutem pela aguda sensibilidade que demonstrou diante dos principais problemas de nossa eacutepoca o arrefecimento da consciecircncia religiosa a crise dos valores a falta de confianccedila na razatildeo meramente instrumental o fim do absoluto e o fechamento do horizonte da teacutecnica Nesse sentido o fulcro da reflexatildeo de Heidegger eacute trazido agrave tona pelo pensamento de uma criacutetica da modernidade na qual o filoacutesofo questiona e investiga o modus operandi e o modo de pensar tecnoloacutegico no qual se consuma a metafiacutesica ou seja no modo como a natureza eacute trazida diante do homem moderno atraveacutes da representaccedilatildeo (Vor-stellung) pelo proacuteprio homem Ora o homem potildee o mundo diante de si como a objetualidade na sua totalidade movido por uma ldquovontade de vontaderdquo e potildee-se a si mesmo diante do mundo Nesse sentido para Heidegger o homem cultiva a natureza quando ela natildeo basta para responder agraves suas expectativas representativas

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Nesse processo denominado por Heidegger de Ereignis Acontecimento apropriativo o homem elabora coisas novas quando elas o incomodam inaugurando uma tecnicizaccedilatildeo da teacutecnica

A histoacuteria (Geschichte) compreendida por Heidegger como evento-apropriador (Ereignis) eacute uma verdade A verdade que em Ser e Tempo era entendida como (Aleacutetheia) agora a partir do vigorar da teacutecnica possui o sentido de ldquoacontecimento-apropriativo ou seja Ereignis Enquanto no desvelamento (aleacutetheia) se apresentava a ldquocoisa ela mesmardquo como fenocircmeno no acontecimento da teacutecnica se revela o desabrigar de todo misteacuterio O Ges-stell como essecircncia da teacutecnica tem o estatuto de verdade num sentido abrangente e totalizante eacute a verdade que se mostra natildeo como o que se mostra por si senatildeo como aquilo que se afirma por si eacute um acontecimento O que acontece essencialmente eacute o enquadramento de tudo sob a determinaccedilatildeo da representaccedilatildeo e do caacutelculo O algoritmo e o caacutelculo garantem a individuaccedilatildeo da coisa tornada objeto para um sujeito ou seja a representaccedilatildeo Tendo em vista que a representaccedilatildeo possui o caraacutecter de ser-sempre presente podemos entender o papel do homem no advento e manutenccedilatildeo da teacutecnica eacute da ldquonaturezardquo ou destino do homem corresponder a esse apelo teacutecnico Ele corresponde representando sem se dar conta de que ao representar ele natildeo apreende o mundo mas apenas visotildees imagens ou concepccedilotildees de mundo o mundo eacute objetivado Eacute no homem que o mundo se torna Imagem do Mundo

O termo Ges-stell eacute o termo utilizado por Heidegger para caracterizar o ponto culminante da modernidade e do pensamento metafiacutesico ou seja o modelo de racionalidade imperante no qual o pensamento se torna calculador privilegiando um modelo de

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racionalidade no qual o ser2 eacute pensado enquanto coisa ou seja maquinaria

Ao tornar impliacutecito que a tecnologia moderna e o pensamento metafiacutesico partilham da mesma essecircncia Heidegger avanccedila com uma estrateacutegia assente num argumento fundamental a tecnologia e o pensamento nietzschiano caracterizam o niilismo moderno e a superaccedilatildeo da tecnologia moderna soacute poderaacute ocorrer no cerne de uma superaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico Somente uma nova relaccedilatildeo com o ser pode superar a tecnologia moderna

Seraacute a tecnicidade a passagem histoacuterica para o teacutermino a derradeira queda do homem agrave condiccedilatildeo de animal tecnificado e que assim perde inclusive a animalidade originaacuteria que o ligava aos outros animais ou seraacute que ela pode ser tomada antes de mais nada como um abrigo e assim algo capaz de servir de fundamento para repensar e levar nossa existecircncia (Heidegger 2013 p 194)

Nesse contexto podem-se enquadrar as

enigmaacuteticas palavras que o pensador vai buscar em Houmllderlin que versam ldquoMas aiacute onde cresce o perigo aiacute tambeacutem vige aquilo que salvardquo3

Analisemos um pouco esses versos citados por Heidegger Diz o autor seguindo essa estrofe de Houmllderlin que o ldquoperigordquo presente no ponto culminar da metafiacutesica e da essecircncia da tecnologia moderna abre as portas para a sua proacutepria superaccedilatildeo A fazer jus a essa mesma ideia

2 O ser para Heidegger eacute o esquecido da Histoacuteria da Filosofia como metafiacutesica O ser eacute o acontecimento-apropriador (Ereignis) O ser eacute a diferenccedila ontoloacutegica entre ente e ser do ente (ente enquanto ente)

3 Heidegger Martin Caminhos de Floresta edCalouste Gubenkian p40 ldquo A salvaccedilatildeo teraacute de vir do lugar onde se daacute a viragem no interior da essecircncia dos mortaisrdquo

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Heidegger utiliza outra metaacutefora para dizer o mesmo quando afirma que o Ges-stell eacute essencialmente ambiacuteguo eacute uma cabeccedila de Jano por um lado corresponde agrave consumaccedilatildeo da metafiacutesica por outro anuncia a passagem da metafiacutesica a um outro pensamento o Ereignis4

Comeccedilaremos pois nas linhas que se seguem por tentar aprofundar de que forma o Ges-stell corresponde simultaneamente ao aacutepice da metafiacutesica que Heidegger faz coincidir com o pensamento nietzschiano e agrave essecircncia da tecnologia moderna Como se caracteriza e o que significa exatamente o Ges-stell Em seguida procuraremos entender em que medida o Ges-stell eacute o ldquoperigordquo ou seja tentaremos sintetizar no pensamento de Heidegger quais as determinaccedilotildees que fazem com que ele seja o perigo Por fim avanccedilaremos com uma interpretaccedilatildeo na qual se procuraraacute articular a questatildeo do ldquocrescimento daquilo que salvardquo relacionando-a com o conceito de Ereignis e com o que este poderaacute significar no contexto da problematizaccedilatildeo heideggeeriana sobre a teacutecnica O Ges-stell na essecircncia do pensamento Nietzschiano

Heidegger encontra na filosofia nietzschiana como se sabe a consumaccedilatildeo da metafiacutesica no seu percurso da filosofia ocidental iniciado por Platatildeo Para Heidegger Nietzsche eacute um pensador moderno que leva agraves ultimas consequecircncias o pensamento que se inaugurou com o cogito ergo sum de Descartes

4 Seminaacuterio sobre a conferecircncia Tempo e Ser (1962) in Heidegger Conferecircncias e escritos filosoacuteficos S Paulo Nova cultural 1991 p 221-241 onde se lecirc ldquoentre as formas epocais do ser e as transformaccedilotildees do ser no Ereignis situa-se o Ges-stel Este eacute por assim dizer - uma cabeccedila de Jano Pode significar ainda uma constituiccedilatildeo da vontade de vontade e assim ser compreendida como a extrema caracteriacutestica do ser Mas eacute ao mesmo tempo uma forma preacutevia do proacuteprio Ereignisrdquo

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A fim de estabelecer pontes entre Nietzsche e o pensamento metafiacutesico nomeadamente a filosofia moderna Heidegger recorre a uma dupla estrateacutegia nos extensos e inuacutemeros textos dedicados a esta questatildeo primeiramente argumenta que as teorias da vontade de poder e do eterno retorno do mesmo nada mais satildeo do que apoteoses (epifanias) e consumaccedilatildeo do caminho trilhado pela metafiacutesica desde as suas origens onde o ser eacute permanentemente confundido com a essecircncia que se encontra presente na totalidade do ente Em segundo lugar interpreta a vontade de poder e o Uumlbermensch nietzschiano como a transformaccedilatildeo do ego cogito de Descartes num ego volo a saber num Eu quero

Em conformidade com isto para Heidegger no pensamento nietzschiano tambeacutem o querer humano apenas pode existir agrave maneira do impor-se ou seja do forccedilar tudo de antematildeo antes mesmo de tudo dominar a entrar no seu domiacutenio Nesse sentido para ele o pensamento nietzschiano se volta em sua essecircncia para este querer a partir do qual tudo se torna agrave partida e em seguida de uma forma irresistiacutevel material de elaboraccedilatildeo que se impotildee A terra e a atmosfera tornam-se mateacuteria prima Desse modo o proacuteprio homem torna-se material que eacute colocado ao encargo dos objetivos propostos A instalaccedilatildeo incondicionada do impor-se tambeacutem incondicional da elaboraccedilatildeo propositada do mundo vai-se entatildeo configurando-se necessariamente nos moldes do mando humano num processo que surge da essecircncia oculta da teacutecnica

Na sua criacutetica a Nietzsche Heidegger traccedila assim o caminho e aponta as caracteriacutesticas daquilo que considera ser a metafiacutesica da presenccedila inaugurada com o eidos platocircnico Uma breve incursatildeo pela criacutetica heideggeriana agrave metafiacutesica nietzschiana torna-se fundamental para completar a caracterizaccedilatildeo do niilismo e do Ges-stell que

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recorde-se eacute tambeacutem a essecircncia da teacutecnica moderna Ora em que consiste a partilha de sua essecircncia

De fato contrariamente ao Ges-stell o Vor-stellen essecircncia da metafiacutesica moderna que se inicia a partir do subjetivismo cartesiano corresponde segundo Heidegger ao acircmbito da maacutexima objetividade isto eacute do surgimento do mundo como objeto Na sua criacutetica agrave modernidade Heidegger defende que com o cogito ergo sum de Descartes o homem torna-se doravante a proacutepria substacircncia das coisas transforma-se em sujeito a partir da auto-certeza que possui do seu proacuteprio eu e do seu poder de representar que eacute a base fundadora de toda a verdade realidade e valor As coisas tornam-se reais ou atuais apenas na medida em que satildeo objetivadas pelo sujeito cognoscente ldquoMais ainda a transformaccedilatildeo do homem em sujeito e do mundo em objeto eacute uma consequecircncia do estabelecimento da teacutecnica e natildeo o contraacuteriordquo (Heidegger 2002 p334)

No ponto que aqui nos interessa particularmente isto significa que o homem moderno colocou a si mesmo como substacircncia (res cogitans) das coisas ao mesmo tempo em que as reduziu ao estatuto de meras representaccedilotildees As coisas tornam-se reais ou atuais apenas na medida em que satildeo objetivaacuteveis e representaacuteveis pelo sujeito cognoscente Esse subjetivismo maacuteximo conhece seu aacutepice com a tendecircncia da humanidade para se fazer a Imagus Dei ou seja a Imagem de Deus entendido como o criador providencial que domina e calcula a totalidade da entidade como uma obra que ele produziu Nesta medida a identificaccedilatildeo do homem com Deus encontra sua consumaccedilatildeo no absolutismo esteacutetico nietzschiano que corresponde ao triunfo maacuteximo da vontade de poder segundo a doutrina que Heidegger atribui a Nietzsche a saber que tudo o que experienciamos eacute meramente o produto da vontade humana

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Natildeo que a totalidade do querer seja soacute por si o perigo mas antes o querer ele mesmo sob a forma do impor-se no interior do mundo que apenas eacute admitido como vontade O querer que quer a partir dessa vontade decidiu-se jaacute a mandar de um modo absoluto Com esta decisatildeo entrega-se prontamente agrave organizaccedilatildeo total Mas antes de tudo a proacutepria teacutecnica impede qualquer experiecircncia de sua essecircncia (Heidegger 2002 p339)

Ora essa atribuiccedilatildeo niilista de Heidegger ao pensamento nietzschiano partilha da mesma essecircncia Como vimos ambos se instituem como os domiacutenios privilegiados de esgotamento das possibilidades da metafiacutesica Assim o Ges-stell eacute um ponto de esgotamento da metafiacutesica mas eacute tambeacutem enquanto fim um novo comeccedilo Como ponto de esgotamento corresponde simultaneamente a uma transformaccedilatildeo e a um novo estaacutegio da relaccedilatildeo do homem com o ser que permanece ainda inquestionada

A essecircncia da teacutecnica potildee o homem a caminho do desencobrimento que sempre conduz o real de maneira mais ou menos perceptiacutevel agrave disponibilidade Pocircr a caminho significa destinar Por isso denominamos de destino a forccedila de reuniatildeo encaminhadora que potildee o homem a caminho de um desencobrimento Eacute pelo destino que se determina a essecircncia de toda histoacuteria A histoacuteria natildeo eacute um mero objeto da historiografia nem somente o exerciacutecio da atividade humana A accedilatildeo humana soacute se torna histoacuterica quando enviada por um destino5 E somente o que jaacute se destinou a uma representaccedilatildeo objetivante torna acessiacutevel como objeto o histoacuterico da historiografia isto eacute de uma ciecircncia Eacute daiacute que proveacutem a confusatildeo corrente

5 Cf Vom Wesen der Wahrheit 1930 na primeira ediccedilatildeo de 1943 p16s

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entre o histoacuterico e o historiograacutefico (Heidegger 2006 p27)

Assim a essecircncia da teacutecnica eacute um desvelamento um estatuir (stellen) um colocar-em-obra como tal um modo de destinaccedilatildeo do ser Mas o stellen do Ges-stell para aleacutem de evocar sua pertenccedila ao destino do ser possui caracteriacutesticas especiacuteficas que determinam seu modo mais proacuteprio como niilismo

Desse modo a metafiacutesica de Nietzsche eacute a consumaccedilatildeo o ponto culminante e o fim da metafiacutesica moderna porque com a maacutexima subjetividade transformada em perspectivismo a objetividade transforma-se tambeacutem em algo exclusivamente dependente da vontade de vontade do pensamento e da teacutecnica De fato para Heidegger apesar de ser tributaacuteria da concepccedilatildeo moderna de mundo a filosofia de Nietzsche vai mais longe Quando o ser e o real satildeo transformados em valores entramos no reino da subjetividade absoluta do perspectivismo total em que se anula a diferenccedila entre sujeito e objeto O mundo jaacute natildeo eacute concebido como um objeto representado por um sujeito Tudo se transforma em reserva permanente para garantir a conservaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo da vontade de poder Nesse sentido para Heidegger o ser foi transformado num valor ldquoO tornar constante a estabilidade da reserva permanente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria imposta pela proacutepria vontade de poder segura de si mesmardquo (Heidegger 2013 p 311)

Nesse ponto culminar a filosofia nietzschiana para Heidegger corresponde agrave maacutexima ocultaccedilatildeo do ser ou seja ao niilismo extremo No Ges-stell o ser como aleacutetheia encontra-se ausente Desse modo podemos dizer que com o Ges-stell eacute anulada qualquer outra hipoacutetese de desvelamento Essa eacute uma das razotildees porque o Ges-stell eacute o ldquosupremo perigordquo o Ges-stell reuacutene e concentra todas as formas de desencobrimento numa soacute isto eacute transforma

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todo e qualquer desvelamento num desvelamento provocante em que o real no qual o mundo eacute ordenado eacute intimidado a tornar-se apenas fundo disponiacutevel A verdade do ser que significa aleacutetheia retira-se sob o domiacutenio do Ges-stell No universo tecnoloacutegico moderno o desvelamento ocorre para fins uacutenicos desse proacuteprio desvelamento O caraacuteter encobridor e oculto eacute completamente esquecido Encontramo-nos no domiacutenio da ocultaccedilatildeo geral do ser somos apanhados nas malhas do niilismo

Ademais o Ges-stel a com-posiccedilatildeo eacute o ldquoperigordquo porque oculta quaisquer outras formas de desvelamento Mas o eacute tambeacutem e principalmente porque ao ocultar quaisquer outras formas de desvelamento oculta-se tambeacutem a si proacuteprio Diz Heidegger em A Questatildeo da Teacutecnica

Assim pois a com-posiccedilatildeo provocadora da ex-ploraccedilatildeo natildeo encobre apenas um modo anterior de desencobrimento a pro-duccedilatildeo mas tambeacutem o proacuteprio desencobrimento como tal e com ele o espaccedilo onde acontece em sua propriedade o desencobrimento isto eacute a verdade (Heidegger 2006 p30)

Ora na medida em que pertence ao

desvelamento o Ges-stell como qualquer outra forma de desvelamento tende para a ocultaccedilatildeo e por isso faz parte do ldquoperigordquo No entanto o Ges-stell natildeo representa apenas o perigo inerente agrave qualquer forma de desvelamento senatildeo o supremo ldquoperigo6rdquo Por quecirc

6 Isto quer dizer que o que eacute perigoso natildeo eacute a teacutecnica em si (as maacutequinas as automaccedilotildees a energia nuclear os computadores a biotecnologia) mas o destino de desvelamento do ser que rege a teacutecnica ndash porque mais perigoso que a bomba atocircmica eacute o esquecimento do Ser

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Porque o Ges-stell representa aquele modo ldquodestinalrdquo onde todos os engodos da metafiacutesica satildeo levados agraves suas uacuteltimas consequecircncias ou seja sobre a eacutegide e domiacutenio do Ges-stell os entes jaacute natildeo satildeo sequer concebidos como ldquoobjetosrdquo agrave maneira moderna Satildeo mero fundo disponiacutevel para o eterno retorno do mesmo

O perigo consiste na ameaccedila que diz respeito agrave essecircncia do homem na sua relaccedilatildeo com o proacuteprio Ser e natildeo em perigos casuais Este perigo eacute o Perigo Ele encobre-se no abismo para todos os entes Para ver o perigo e para o mostrar tecircm de existir aqueles mortais que chegam primeiro ao abismo[] A salvaccedilatildeo teraacute de vir do lugar onde se daacute a viragem no interior da essecircncia dos mortais

A essecircncia da teacutecnica e o ponto de consumaccedilatildeo da metafiacutesica equivalem a uma ameaccedila pendente sobre a liberdade humana considerada como a ldquoessecircncia da verdaderdquo ou seja a liberdade humana como aquele espaccedilo por onde o ser pode emergir fugindo ao fechamento do ente Num cenaacuterio onde a humanidade se encontra determinada pelo Ges-stell o ser estaacute totalmente ausente Sob esse pano de fundo o Uumlbermensch nietzschiano eacute perspectivado como um soldado tecnoloacutegico que luta exclusivamente pela manutenccedilatildeo do poder Desse modo o homem afasta-se definitivamente do ser arriscando-se a perder o espaccedilo da liberdade Ao perder a sua essecircncia o homem torna-se igual a qualquer ente que se encontra na natildeo ocultaccedilatildeo

Este eacute o retrato para Heidegger da metafiacutesica em sua culminaccedilatildeo Mas agrave luz da pretensatildeo de Heidegger tambeacutem acontece que o poder salvador chega no interior do perigo crescente Com o Ges-stell como vimos a metafiacutesica chega ao seu ponto de culminaccedilatildeo Mas eacute tambeacutem aiacute onde suas possibilidades se encontram esgotadas que Heidegger defende que o niilismo e a consumaccedilatildeo da metafiacutesica satildeo o preluacutedio para algo de novo ldquoSoacute quem se aventura de maneira pensante na

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extrema penuacuteria do niilismo consegue tambeacutem pensar o pensamento superador como o que impotildee uma viragem agrave penuacuteria e se mostra como necessaacuteriordquo (Heidegger 2010 p 341)

As reflexotildees de Heidegger sobre a teacutecnica foram escritas em meados do seacuteculo passado no culminar da tecnologia mecacircnica e no surgimento de tecnologias mais fluidas e natildeo mecacircnicas a energia atocircmica as tecnologias de informaccedilatildeo e de comunicaccedilatildeo O pensamento de Heidegger acompanha esse movimento de forma verdadeiramente uacutenica Nesse sentido antecipa as teorias poacutes-modernas O niilismo corroeu as verdades e enfraqueceu as religiotildees mas invalidou tambeacutem os dogmatismos e desacreditou as ideologias ensinando-nos assim a manter uma razoaacutevel prudecircncia do pensamento um paradigma de pensamento obliacutequo e prudente que nos torna capazes de navegar por entre os escolhos do mar da precariedade na viagem do vir-a-ser na transiccedilatildeo de uma cultura a outra A ideia de ordenaccedilatildeo fundo disponiacutevel reserva permanente colocaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo num fluxo constante em que toma o lugar de tudo a ideia de desaparecimento do objeto desmembramento e fragmentaccedilatildeo da experiecircncia do real antecipam grande parte da reflexatildeo poacutes-moderna sobre a nossa contemporaneidade Mas a absoluta novidade de Heidegger eacute que ele se recusa a pensar o atual em termos estritamente contemporacircneos Eacute no sentido original da palavra teacutecnica que se encontra a chave para a compreensatildeo da tecnologia contemporacircnea em sua dupla face de perigo e salvaccedilatildeo Eacute como ponto culminar da metafiacutesica da presenccedila constante que a tecnologia pode subitamente provocar uma ebuliccedilatildeo do real num movimento em que a presenccedila constante se transforma em permanente disponibilidade

Ora essa permanente disponibilidade tanto pode ser no sentido da integraccedilatildeo do caacutelculo global mas pode criar tambeacutem uma abertura em que subitamente o Ser

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como aleacutetheia se ilumina na compreensatildeo do sem-fundamento (Ab-grund) o abandono do pensamento metafiacutesico e niilista Nesse sentido ler Heidegger eacute acompanhar um pensamento que se pretende original um pensamento que se propotildee pensar fora dos quadros do pensamento calculador moderno eacute acompanhar o pensamento meditativo pelos trilhos da floresta negra em busca de pequenas clareiras

Referecircncias CASANOVA Marco Antocircnio Compreender Heidegger

Petroacutepolis Vozes 2009

CORDEIRO Robson Costa Nietzsche e a vontade de poder como arte uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Ed Universitaacuteria da ufpb 2010

GAOS Joseacute Introducioacuten a el Ser y el Tiempo de Martin Heidegger Meacutexico Ed Fondo de Cultura Econoacutemica 1996

HEIDEGGER Martin A determinaccedilatildeo histoacuterico-ontoloacutegica do niilismo In Nietzsche vol II Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Ed Forense Universitaacuteria 2007

___________________ A essecircncia do fundamento In Marcas do Caminho Trad de Ernildo Stein Petroacutepolis Vozes 2009

___________________ A essecircncia do niilismo In Nietzsche ndash Metafiacutesica e Niilismo Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2000

__________________ A palavra de Nietzsche ldquoDeus estaacute mortordquo Trad de Marco Antocircnio Casanova Satildeo Paulo Natureza Humana Vol 5(2) 471-526 jul-dez 2003

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__________________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2006

__________________ Hinos de Houmllderlin Trad de Lumir Nahodil Lisboa Instituto Piaget 2004

__________________ Loacutegica a pergunta pela essecircncia da linguagem Trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hoock Quadrado Lisboa Calouste Gulbekian 2008

__________________ O acontecimento apropriativo Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

__________________ O eterno retorno do mesmo In Nietzsche vol I Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2007

___________________ Ser e Tempo Trad de Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2012

___________________ O niilismo europeu In Nietzsche vol II Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Ed Forense Universitaacuteria 2007

______________ Para quecirc poetas in Caminhos de floresta Trad Bernhard Sylla e Vitor Moura Lisboa Calouste Gulbenkian 2002

LOPARIC Zeljko A escola de Kyoto e o perigo da teacutecnica Satildeo Paulo DWW Editorial 2009

POGGELER Otto A via do pensamento de Martin Heidegger Trad de Jorge Telles de Menezes Lisboa Instituto Piaget 2001

RUumlDIGER Francisco Martin Heidegger e a questatildeo da teacutecnica Porto Alegre Ed Sulinas 2006

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VOLPI Franco O niilismo Trad de A Vennuchi Satildeo Paulo Loyola 1999

A Intriacutenseca Relaccedilatildeo entre o

Amor Fati e a Arte

Eacutellida Jussara Silva Santos1

Quando a expressatildeo em latim amor fati que quer dizer ldquoamor ao destinordquo aparece nas obras do filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche ela natildeo se revela um pensamento capaz de instaurar um sentido que enriqueccedila a filosofia nietzschiana se natildeo estiver intrinsecamente ligado agraves demais doutrinas do filoacutesofo No entanto quando pensado em ligaccedilatildeo com as doutrinas da filosofia nietzschiana o pensamento do amor fati pode ser compreendido como aquele que traz uma noccedilatildeo fundamental no esclarecimento das mesmas como acontece com a doutrina do eterno retorno no qual o amor fati encontra um elemento oculto que dificulta a sua plena adesatildeo a saber o pensamento mais abissal que se refere ao eterno retorno da inutilidade

Em contrapartida quando ligado intrinsecamente agrave vontade de poder o amor fati eacute pensado desde uma ligaccedilatildeo de reciprocidade uma vez que a vontade de poder permite ao amor fati ser percebido como libertador desde a perspectiva de uma vontade criadora a qual eacute atingida a partir da ideacuteia do super homem Assim sendo o presente artigo busca apresentar o amor fati como o sentimento traacutegico que atraveacutes da arte como vontade de poder afirma a vida em todo seu aparecer como tambeacutem no que se manteacutem encoberto ou seja que abarca o cruel o sombrio do ilimitado do disforme do desmedido em seu movimento de apariccedilatildeo isto eacute no seu ganhar forma Como

1 Mestranda em Filosofia pela UFPB - Email eljussaragmailcom Bolsista PIBIC 20142015

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sentimento de afirmaccedilatildeo o amor fati procura superar a dualidade entre mundo verdade (suprassensiacutevel) e mundo aparente (sensiacutevel) A contraposiccedilatildeo entre mundo verdade e mundo aparente

A vida como vontade de poder eacute aquela que estaacute sempre por se fazer desde si mesma do nada e para o nada e desse modo natildeo possui lastro substrato ou finalidade alguma aleacutem da proacutepria ldquomostraccedilatildeordquo aleacutem do proacuteprio aparecer Nesse sentido o que a vida busca eacute sempre auto-superaccedilatildeo atraveacutes de um jogo entre mando e obediecircncia que lhe satildeo proacuteprios como tambeacutem da relaccedilatildeo com a morte no sentido de abrir matildeo daquilo que jaacute foi para dar lugar agravequilo que ainda estaacute por vir ou mesmo que precisa vir para que a vida possa vir a ser Sendo assim como afirma Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche a vida ldquoeacute ela proacutepria a construtora a organizadora que fixa formas para seguidamente as destruirrdquo (FINK 1983 p 19) e desse modo surge aqui uma integraccedilatildeo entre os deuses Apolo e Dioniacutesio como veremos mais adiante Por conseguinte diante desse caraacuteter cruel da vida da existecircncia de natildeo possuir substrato algum ou seja de natildeo possuir sentido ou ordem mas tatildeo somente um movimento perspectiviacutestico de apariccedilatildeo o homem se encontra como que tomado por uma necessidade de mentira para que possa suportar tal existecircncia

Que o homem precisa da mentira para ldquosobrepujarrdquo o caraacuteter cruel da existecircncia eacute o que Nietzsche procura mostrar na obra A vontade de poder que traz um apanhado de textos de anotaccedilotildees e fragmentos poacutestumos do filoacutesofo escritos na deacutecada de 1880 Por conseguinte eacute precisamente no sect853 I que tem como tiacutetulo A arte no Nascimento da trageacutedia que o filoacutesofo diz ldquoTemos necessidade da mentira para sobrepujarmos essa realidade

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essa ldquoverdaderdquo quer dizer para vivermosrdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Ou seja essa passagem sugere que para que a vida ou a existecircncia do homem natildeo venha a perecer ou dito de outro modo para que o homem possa suportar a existecircncia como sendo aquilo que se constitui atraveacutes de um movimento de auto-exposiccedilatildeo tal homem precisa dar um sentido para o seu viver portanto um sentido para o seu existir

Ora como vontade de poder vida se mostra como aquilo que estaacute sempre no empenho para vir agrave aparecircncia ou seja como um movimento de auto-exposiccedilatildeo Mostra-se assim como um modo de se fazer ver como uma perspectiva Nesse sentido vida se constitui no movimento de ldquomostraccedilatildeordquo que natildeo encontra esgotamento antes uma manifestaccedilatildeo dela mesma que natildeo cessa de mostrar-se de vaacuterios modos Natildeo obstante dar um sentido para a vida significa tatildeo somente sobrepor a este mundo outro mundo que natildeo seja devir isto eacute que possua um caraacuteter de ser

Por conseguinte eacute a partir da mentira que o homem encontra uma forma de sobrepujar a dura realidade da vida e do mundo como sendo nada aleacutem de vontade de poder no qual encontra um modo de ldquocrerrdquo na vida Ainda no sect853 I encontramos uma passagem que diz ldquoA metafiacutesica a moral a religiatildeo a ciecircncia foram consideradas neste livro tatildeo-somente como diferentes formas da mentira com seu auxiacutelio crecirc-se na vidardquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Nesse sentido tanto a metafiacutesica como a moral a religiatildeo e a ciecircncia satildeo apontadas por Nietzsche como diferentes formas do homem suportar a existecircncia ou seja satildeo valores criados pelo homem para constituir um mundo a partir do qual o viver seja suportaacutevel Todavia como afirma Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche ldquoa ltltmentiragtgt do intelecto proveacutem da impossibilidade de apreender conceptualmente a vida considerada natildeo no sentido bioloacutegico mas metafiacutesicordquo (1983 p 34) Isto eacute o

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mundo criado a partir da mentira prefigura uma vontade de viver que leva o homem a sustentar a vida atraveacutes de uma ilusatildeo a saber que haacute um mundo verdade que se sobrepotildee ao mundo aparente ao mundo sensiacutevel do devir

Natildeo obstante eacute dessa necessidade de sustentaccedilatildeo da vida dessa necessidade de encontrar um modo de suportar a existecircncia que surge a contraposiccedilatildeo entre o mundo verdade e o mundo aparente como aquilo que caracteriza o niilismo a metafiacutesica o platonismo Esse mundo verdade por sua vez eacute o mundo criado a partir da necessidade de sentido ou seja o mundo criado eacute aquele para o qual o homem estabelece um sentido uma meta um mundo que assume o caraacuteter de verdadeiro um mundo do ser o qual corresponde a uma unidade Desse modo o mundo criado eacute aquele que condena o caraacuteter contraditoacuterio que eacute proacuteprio da vida ou seja como ldquoa vida deve inspirar confianccedilardquo 2 com a criaccedilatildeo do mundo verdadeiro eacute constituiacutedo para a vida um caraacuteter de ser a partir do qual a vida eacute justificada Nesse sentido quando o homem se volta contra o caraacuteter transitoacuterio da vida criando para si um mundo suprassensiacutevel que justifique a vida se oferece para ele a partir dessa criaccedilatildeo como consequecircncia a feacute de modo que a vida nesse sentido parece crescer ou seja se intensificar como diz Nietzsche ldquoNos instantes em que o homem foi enganado em que ludidriou a si mesmo em que acreditou na vida oh como entatildeo esta cresceu nele Que encanto Que sentimento de poder Quanto triunfo de artista no sentimento de poderrdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426)

Portanto o modo de se constituir um mundo verdade que se sobrepotildee ao mundo cruel caoacutetico ao mundo do devir na medida em que prefigura um aspecto negativo que procura negar a vida eacute tambeacutem o que permite a sua conservaccedilatildeo e nesse sentido eacute tambeacutem para o

2 Cf Vontade de Poder 2008 sect 853 I p 426

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homem uma forma de conquistar poder ou seja isso eacute o que conduz o homem a um sentimento profundo de poder a partir do qual vida se volta contra ela mesma natildeo como um modo de buscar destruir a si mesma como uma forma de aniquilamento mas propriamente como uma forma de natildeo se deixar perecer Sendo assim essa forma de condenaccedilatildeo da vida no sentido de buscar atribuir-lhe um caraacuteter de ser um substrato - entendido enquanto apiedamento da vida - eacute o que propriamente a manteacutem

Por conseguinte a partir desse desejo ou melhor dessa vontade de negaccedilatildeo da vida o homem se insere em uma dimensatildeo que em sua essecircncia eacute profundamente criadora isto porque no movimento de negaccedilatildeo da vida se apresenta uma vontade que ainda que seja para negar a vontade de poder ao criar o mundo suprassensiacutevel o mundo verdade tambeacutem se apresenta como vontade criadora Ora se o que caracteriza aqui o niilismo eacute propriamente a negaccedilatildeo da vida e do devir que lhe eacute proacuteprio bem como a criaccedilatildeo de um aleacutem mundo ou seja um mundo verdade entatildeo o niilismo eacute tambeacutem profundamente criador

Desse modo tambeacutem o homem como aquele que cria valores que possam assegurar a vida e dar-lhe sentido tornando-a confiaacutevel eacute tambeacutem um ldquoartistardquo uma vez que inaugura realidades ainda que seja partindo da mentira Nesse sentido o homem ldquomentirosordquo ou seja aquele que encontra na mentira um modo de superaccedilatildeo da vida eacute o artista que cria valor para o qual a ldquometafiacutesica religiatildeo moral ciecircncia ndash todos satildeo apenas rebentos de sua vontade de arte de mentira de fuga diante da ldquoverdaderdquo de negaccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426)

Todavia para Nietzsche ldquohaacute apenas um uacutenico mundo e este eacute falso cruel contraditoacuterio sedutor sem sentidordquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Desse modo dizer que o mundo eacute sem sentido a partir do

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pensamento nietzschiano eacute dizer propriamente que natildeo possui sentido algum para aleacutem dele mesmo como aparecircncia ou seja como vontade de poder e nesse sentido em contraposiccedilatildeo ao mundo verdade - criado pelo homem - o mundo da aparecircncia natildeo apresenta caraacuteter de ser mas antes de devir Natildeo obstante o mundo do devir natildeo eacute um mundo ordenado antes ele eacute propriamente caos3

Ora a vontade de poder eacute sempre um querer vir agrave presenccedila e desse modo diz respeito ao conjunto de forccedilas ou melhor de impulsos que se combatem entre si que estatildeo sempre em confronto Natildeo obstante assim como a vida eacute um jogo de ldquomostraccedilatildeordquo que natildeo aspira nada a natildeo ser vir agrave aparecircncia ou seja aparecer tambeacutem o mundo como afirma Muumlller-Lauter em seu livro A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche ldquorevela-se como jogo e contra-jogo de forccedilas ou de vontades de poderrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 75) isto eacute como vontade de poder o mundo se revela como um jogo ininterrupto de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo do qual eacute constituiacutedo

Por conseguinte em se tratando ainda do que seria o mundo Nietzsche em uma citaccedilatildeo de novembro de 1887-marccedilo de 1888 escreve ldquoQue o mundo natildeo eacute em absoluto um organismo poreacutem caosrdquo (novembro de 1887-marccedilo 1888 11[74] KGW VIII 2 279 (VP 711) Essa passagem sugere que o mundo deve ser compreendido natildeo somente como sendo um ou seja como uma unidade e desse modo natildeo como ser como eacute caracterizado o mundo verdadeiro o mundo criado antes deve ser compreendido como sendo uma unidade que abarca o muacuteltiplo enquanto vontade de poder

3 Caos aqui natildeo deve ser compreendido no sentido de um estado de completa desordem que antecede a formaccedilatildeo do mundo e que tal formaccedilatildeo toma como ponto de partida mas de acordo com a interpretaccedilatildeo de Heidegger como ldquoaquilo que acossa corre e eacute movimentado aquilo cuja ordem estaacute velada cuja lei natildeo conhecemos imediatamenterdquo (HEIDEGGER 2010 p 440)

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Ou seja como foi dito anteriormente como vontade de poder o mundo prefigura uma multiplicidade de forccedilas que estaacute sempre em confronto umas com as outras que tem como finalidade tatildeo somente sua proacutepria apariccedilatildeo atraveacutes de um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Portanto o mundo aparente ou seja terreno se mostra como sendo contraditoacuterio devir e portanto caoacutetico Nesse sentido como afirma Muumlller Lauter ainda em seu livro A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche ldquoo mundo natildeo eacute um mundo orgacircnico mas mundo de ldquoorganismosrdquo o caos das organizaccedilotildees de poder se alterando permanentementerdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 120) Desse modo o mundo aparente eacute o mundo do devir do movimento de exposiccedilatildeo gratuita e portanto tatildeo somente um jogo inuacutetil de exposiccedilatildeo sobre ele mesmo

Natildeo obstante a partir da compreensatildeo do que foi dito acerca da contraposiccedilatildeo do mundo verdade e do mundo aparente vale salientar que o que Nietzsche quer mostrar eacute que soacute haacute um uacutenico mundo e que este eacute o mundo cruel contraditoacuterio que se mostra para o homem como sendo caoacutetico sombrio por natildeo possuir caraacuteter de unidade alguma antes uma manifestaccedilatildeo de forccedilas que o permite vir agrave aparecircncia que o permite se mostrar Nesse sentido o mundo criado isto eacute o mundo metafiacutesico natildeo passa de uma criaccedilatildeo do homem que busca dar um sentido para a vida sobrepondo a esse mundo sem sentido um mundo verdade que natildeo seja devir que natildeo seja em sua essecircncia contraditoacuterio Essa necessidade de mentira usada para ldquosobrepujarrdquo essa terriacutevel realidade eacute caracteriacutestica do homem niilista metafiacutesico platonista que precisando se sentir em um conforto atraveacutes de uma unidade que o governe sobrepotildee a este mundo um mundo do ldquoserrdquo o qual se mostra como um mundo que possui valores como unidade verdade e finalidade

Todavia para Nietzsche o mundo verdadeiro eacute o mundo cruel e natildeo o mundo metafiacutesico ou seja o mundo

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verdadeiro eacute aquele que se apresenta constituiacutedo atraveacutes de um jogo dionisiacuteaco que ao mesmo tempo em que cria tambeacutem destroacutei Em sua obra intitulada A Gaia Ciecircncia mais precisamente no livro III sect109 sobre o caraacuteter do mundo Nietzsche diz ldquoO caraacuteter geral do mundo no entanto eacute caos por toda a eternidade natildeo no sentido de ausecircncia de necessidade mas de ausecircncia de ordem divisatildeo forma beleza sabedoria e como quer que chamem nossos antropomorfismos esteacuteticosrdquo (NIETZSCHE 2001 sect 109 p 136) Desse modo quando ele diz que o mundo eacute caos natildeo devemos entender que o mundo se mostra como uma desorganizaccedilatildeo ou mesmo uma confusatildeo antes se mostra como aquilo que apresenta uma necessidade proacutepria enquanto um acontecer Ou seja o mundo como sendo caos se mostra atraveacutes de um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo sempre em retomada a partir do qual ele se mostra

Por conseguinte o mundo aparente eacute aquele que se mostra desde afeto e enquanto afeto se mostra para o homem como uma perspectiva que se abre Nesse sentido o afeto eacute o que permite ao homem perceber o real como um processo de apariccedilatildeo de brotaccedilatildeo Desse modo a aparecircncia se mostra como a forma originaacuteria da verdade e portanto estabelece para o mundo aparente enquanto aparecircncia o caraacuteter de ldquoverdaderdquo ou seja do real no seu aparecer Natildeo obstante eacute atraveacutes da arte mais precisamente a partir do fenocircmeno do traacutegico que a verdadeira natureza da realidade pode ser percebida isto eacute a arte eacute o que possibilita perceber vida como sendo tatildeo somente aparecircncia e do mesmo modo o mundo como um jogo ininterrupto do criar e do destruir

A arte como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida Na obra O Nascimento da Trageacutedia publicada em 1872 o mundo eacute decifrado a partir do fenocircmeno da arte

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pelo qual atraveacutes de categorias esteacuteticas se formula a visatildeo fundamental do ser Desse modo para Nietzsche a arte eacute colocada como a ldquotarefa suprema e a atividade propriamente metafiacutesica desta vidardquo4 a partir da qual se daacute o esclarecimento de modo metafiacutesico do conjunto de tudo o que existe ou seja do mundo Afirma Fink em seu livro A Filosofia de Nietzsche que ldquosoacute com os olhos da arte consegue o pensador mergulhar o seu olhar no coraccedilatildeo do mundordquo (FINK 1983 p18) Nesse sentido a arte eacute o que possibilita perceber a vida como sendo aparecircncia isto eacute como aquilo que natildeo possui nada de fundo substancial que esteja por traacutes mas tatildeo somente como aquilo que se auto-expotildee que se mostra Nesse sentido a vida se mostra como aquela que estaacute sempre se voltando para que possa constituir a si mesma e desse modo na mesma medida em que cria tambeacutem destroacutei mundos Como afirma Cordeiro em seu livro Nietzsche e a vontade de poder como arte uma leitura a partir de Heidegger ldquocada mundo criado eacute uma perspectiva de vida que se mostra que aparece eacute uma aparecircnciardquo (CORDEIRO 2010 p60)

Ora o mundo eacute vontade de poder e como vontade de poder prefigura essencialmente um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nesse sentido como mostra Heidegger em seu livro Nietzsche v I ldquoa partir da arte e como arte a vontade de poder se torna propriamente visiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2010 p67) e desse modo tambeacutem atraveacutes da arte a forccedila que promove a apariccedilatildeo do mundo toma forma no seu aparecer Sendo assim a arte eacute aquilo que consegue apreender a visatildeo traacutegica do mundo Para tanto a arte eacute necessariamente reconduzida por Nietzsche agravequela que seria a arte traacutegica grega isto porque na arte traacutegica grega surgem os elementos dionisiacuteaco e apoliacutenio como elementos que estatildeo sempre em oposiccedilatildeo um ao outro e desse modo

4 O Nascimento da Trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica prefaacutecio para Richard Wagner 2007 p 23

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prefiguram a oposiccedilatildeo entre o finito e o infinito ou seja aquilo que aparece como forma e o disforme que estatildeo presentes no processo de aparecer da vida de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo dos mundos Nesse sentido ldquoApolo simboliza o instinto plaacutestico ele eacute o deus da clareza da luz da medida da forma da composiccedilatildeo harmoniosa em contrapartida Dioacutenisos eacute o deus do caoacutetico e do desmedido do disforme do fluxo borbulhante da vidardquo (FINK 1983 p23)

Natildeo obstante o deus Apolo simboliza o sonho a partir do qual o homem pode construir todo o mundo da bela aparecircncia enquanto que o deus Dioniacutesio representa o ecircxtase ou seja aquilo que rompe com a individuaccedilatildeo Nesse sentido o impulso dionisiacuteaco representa o disforme da vida do mundo isto eacute a vida se mostra como transbordante como aquilo que eacute ilimitada como tatildeo somente possibilidade Apolo por sua vez surge como um impulso que limita daacute forma ou melhor atraveacutes do impulso apoliacuteneo a vida se mostra individualizada em formas e aparecircncias No entanto nesse mostrar-se nesse aparecer da vida do mundo o que se daacute natildeo eacute uma exclusatildeo do deus Dioniacutesio antes ele deve ser percebido como aquilo que estaacute encoberto em tudo o que aparece se mostra e que ao aparecer jaacute aparece como sendo Apolo Desse modo o que parece acontecer aqui eacute um acordo de paz entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco mas isso natildeo quer dizer propriamente que o confronto o querer sempre predominar de um sobre o outro acabe Por conseguinte eacute desse acordo de paz ou mesmo acasalamento que se daacute o nascimento da trageacutedia grega isto porque o grego possuiacutea uma ldquoserenojovialidaderdquo (Heiterkeit) que o permitia espelhar tanto o elemento de Apolo referente ao conjunto de imagens quanto o elemento de Dioniacutesio atraveacutes do coro representado na trageacutedia Desse modo como afirma Cordeiro o grego ldquoao permitir que ecoasse juntamente com o elemento apoliacuteneo o dionisiacuteaco representado pelo coro [] ele teria permitido junto ao que aparece aquilo

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que natildeo aparece mas que eacute fonte de todo aparecerrdquo (CORDEIRO 2010 p 6263)

Todavia natildeo eacute somente na trageacutedia que o grego conseguia expressar sua relaccedilatildeo com a vida com o mundo Tambeacutem atraveacutes da aparecircncia da obra de arte ele conseguia transfigurar todo o sofrimento como tambeacutem a dor da existecircncia Ora a dor da existecircncia a dor da vida diz respeito ao caraacuteter cruel de natildeo ter fundo algum de ser tatildeo somente possibilidade de ser ilimitada e por isso precisando sempre vir a ser delimitada ou seja adquirir forma Frente a esse caraacuteter cruel da existecircncia o homem grego atraveacutes da arte conseguia alcanccedilar um estado de tranquilidade ao dar para a vida formas e imagens No entanto como afirma Cordeiro

[] a arte natildeo deve ser compreendida como a obra de arte mas como a forccedila que impulsiona todo o criar e que faz surgir a obra natildeo como uma forma de fugir ou de encobrir o real naquilo que possui de terriacutevel e abissal Antes a arte deve ser compreendida como a forccedila que ao permitir a transfiguraccedilatildeo da dor primordial da existecircncia em arte natildeo encobre a dor mas a conduz para revelar-se conjuntamente com a obra criada (CORDEIRO 2010 p 63)

Desse modo a arte se mostra como ldquosinocircnimo da proacutepria criatividade da vidardquo (VATTIMO 2010 p 25) Por conseguinte essa concepccedilatildeo esteacutetica se mostra para o grego como uma redenccedilatildeo mas que no entanto natildeo prefigura uma fuga da realidade como faz o niilista A redenccedilatildeo aqui mencionada se daacute na proacutepria vontade por vontade ser um anseio fervoroso na proacutepria aparecircncia Nesse sentido ldquoa arte como vontade de aparecircncia eacute a figura suprema da vontade de poderrdquo (HEIDEGGER 2010 p 193) isto eacute a vontade a partir da arte se mostra como o

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movimento que eacute constitutivo e proacuteprio de todo aparecer Em sua obra A Filosofia de Nietzsche Fink afirma

Tal como o homem o artista-imitador experimenta pela criaccedilatildeo artiacutestica a redenccedilatildeo na obra do mesmo modo que na aparecircncia bela da obra de arte o sofrimento e a fealdade satildeo transfigurados o fundo criador do mundo atinge na aparecircncia bela das muacuteltiplas formas do existente finito a temporaacuteria tranquumlilidade da permanecircncia todavia o jogo do fundo primordial natildeo cria apenas tambeacutem destroacutei em todo o devir das coisas estaacute jaacute a semente do decliacutenio no prazer de engendrar e de amar palpita tambeacutem o prazer da morte do aniquilamento (FINK 1983 p32)

Por conseguinte nesse processo de apariccedilatildeo da arte como vontade de poder o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute somente aquilo que aparece antes o que eacute admirado ou ainda o que eacute contemplado eacute o movimento do sem fundo do caoacutetico vindo a forma sendo delimitado Nesse sentido o que a obra de arte mostra ao mesmo tempo em que reverencia eacute o processo pelo qual o disforme passa vindo a ganhar forma isto eacute vindo agrave aparecircncia Desse modo aquilo que aparece ganha sentido desde o que estaacute encoberto Nesse caso Apolo ao aparecer soacute aparece desde Dioniacutesio Sendo assim ldquosomente a arte garante e assegura a vida perspectivamente em sua vitalidade isto eacute nas possibilidades de sua elevaccedilatildeo e com efeito contra o poder da verdaderdquo (HEIDEGGER 2010 p 389) Natildeo obstante o elemento da arte eacute puramente o sensiacutevel ou seja a aparecircncia sensiacutevel Portanto a arte eacute o que possibilita ao homem afirmar o que a instauraccedilatildeo do mundo suprassensiacutevel condena a saber a dinacircmica perspectiviacutestica da vida Nesse sentido a arte seria a afirmaccedilatildeo do real no seu aparecer enquanto que a busca por uma verdade aleacutem

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da ldquoverdaderdquo como aparecircncia seria um modo de negaccedilatildeo do mundo do ldquoaquirdquo no qual a arte se encontra

O amor fati como afirmaccedilatildeo dos elementos apoliacuteneo e dionisiacuteaco

Vimos que a arte traacutegica a partir dos impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco eacute o que possibilita perceber vida no seu aparecer ou seja no movimento perspectiviacutestico da vida no seu vir agrave presenccedila no se deixar ver Do mesmo modo vimos que no movimento de apariccedilatildeo da arte como vontade de poder estaacute intriacutenseco tanto aquilo que se mostra como tambeacutem o que estaacute encoberto Desse modo compreender a arte traacutegica como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida eacute dizer propriamente que na arte e a partir da arte vida se revela como sendo em sua essecircncia tatildeo somente movimento para ser e do mesmo modo tatildeo somente aparecircncia Nesse sentido como afirma Nietzsche em O Nascimento da Trageacutedia ldquotoda a vida repousa sobre a aparecircncia a arterdquo (NIETZSCHE 2007 p 17) Portanto para Nietzsche a arte natildeo prefigura uma resignaccedilatildeo diante da vida a partir da qual o homem encontra um consolo diante do caraacuteter terriacutevel da existecircncia ao contraacuterio a arte eacute o que permite perceber o caraacuteter cruel da existecircncia mas natildeo negando e sim glorificando todo o terriacutevel o contraditoacuterio

Natildeo obstante a partir dessa compreensatildeo a ideia do traacutegico abarca um pensamento de natildeo somente assumir mas tambeacutem de afirmaccedilatildeo da existecircncia em todos os seus aspectos como se prefigura na expressatildeo amor fati Ora como foi dito anteriormente o objeto da arte eacute o sensiacutevel ou seja a arte deve ser compreendida como aquilo que possibilita a ldquomostraccedilatildeordquo da vontade de poder isto eacute o seu aparecer Desse modo a arte se revela como amor pelo sensiacutevel pela aparecircncia Nesse sentido amar para Nietzsche eacute querer Sendo assim como foi dito

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anteriormente afirmar que ldquoa arte como vontade de aparecircncia eacute a figura suprema da vontade de poderrdquo (HEIDEGGER 2010 p 193) seria o mesmo que dizer que a arte eacute amor pela aparecircncia Portanto o amor fati como amor ao destino entendido como um querer significa aqui querer a proacutepria vontade que aparece atraveacutes da arte como tambeacutem o necessaacuterio no seu movimento perscpectiviacutesitico de vir agrave aparecircncia de se mostrar

Por conseguinte o amor fati natildeo significa somente amar aquilo que se mostra no seu aparecer Antes ele expressa um querer que quer todo o movimento de apariccedilatildeo ou seja o que o amor fati afirma eacute tambeacutem aquilo que estaacute encoberto o disforme o ilimitado que impulsiona todo aparecer isto eacute afirma o movimento a partir do qual irrompe num ver numa perspectiva que se abre Nesse sentido ao levarmos em consideraccedilatildeo o que aqui foi apresentado o conceito do traacutegico a partir do pensamento nietzschiano abarca um pensamento que eacute capaz natildeo somente de assumir como tambeacutem de afirmar todo o movimento do que aparece e que no aparecer quer todo o movimento que se encontra ainda sombrio caoacutetico Desse modo o amor fati como o que afirma todo o terriacutevel da existecircncia eacute o que permite ao homem se voltar para esse caraacuteter terriacutevel e natildeo ver isso como resignaccedilatildeo antes como transbordamento superabundacircncia isto eacute ver isso como algo a ser louvado

Consequentemente o amor fati como aquilo que afirma o traacutegico se mostra como ldquouma foacutermula de afirmaccedilatildeo suprema nascida da abundacircncia da superabundacircncia um dizer Sim sem reservas ao sofrimento mesmo agrave culpa mesmo a tudo o que eacute estranho e questionaacutevel na existecircncia mesmordquo (NIETZSCHE 2008 p 60) Isto eacute o amor fati prefigura um modo de pensar ou dito de outro modo uma forma de perceber como tambeacutem de acolher tanto a criaccedilatildeo como a destruiccedilatildeo uma vez que ama que quer toda a inocecircncia do

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vir-a-ser Nesse sentido o amor fati natildeo condena ou nega antes aceita afirma o real como aquilo que eacute constituiacutedo no eterno movimento de aparecimento Como nos mostra Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche ldquoo sentimento traacutegico da vida eacute antes a aceitaccedilatildeo da vida a jubilosa adesatildeo tambeacutem ao horriacutevel e ao medonho agrave morte e ao decliacuteniordquo (FINK 1983 p 18) Dito isto o amor fati pode ser compreendido como esse sentimento traacutegico que afirma o eterno conflito entre o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco pois afirma que todas as formas ou aparecircncias finitas ldquosatildeo apenas ondas temporaacuterias na grande mareacute da vidardquo (FINK 1983 p 18)

Natildeo obstante para amar todo o movimento de vir agrave aparecircncia como tambeacutem para perceber o caraacuteter terriacutevel da existecircncia e natildeo se resignar diante disso eacute preciso jaacute estar tomado por amor ou seja por afeto Nesse sentido o afeto deve ser compreendido como o que se dispotildee ou seja ser afetado ou estar tomado pelo afeto eacute propriamente deixar a coisa - aqui a vontade de poder - aparecer em diferentes perspectivas Por conseguinte esse estar tomado por afeto diz respeito a uma disposiccedilatildeo que natildeo deve ser compreendida como subjetiva uma vez que aqui natildeo se pretende amar antes se eacute tomado pelo amor no sentido de ser tocado Em seu livro Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte uma leitura a partir de Heidegger Cordeiro ao falar do artista como aquele que estaacute tomado por um ldquoverrdquo interpreta esse estado de afecccedilatildeo do seguinte modo

O artista eacute aquele que traz em si de uma maneira muito proacutepria a vontade de ilusatildeo de aparecircncia Ele como criador deixa que no vazio do seu ser um mundo (uma perspectiva de ser) se molde e que nesse moldar-se vaacute definindo os contornos do seu eu Para isso ele precisa estar atento agrave ldquoescutardquo para assim poder ser tocado ldquoEscutarrdquo tem aqui o mesmo sentido que ldquoverrdquo Nenhum dos dois significa nada fisioloacutegico bioloacutegico ou psiacutequico O

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homem precisa ldquoescutarrdquo mas natildeo enquanto um eu uma consciecircncia que esteja agrave espera de um aviso de um anuacutencio Por mais estranho que pareccedila natildeo eacute o eu que ldquoescutardquo Antes para ldquoescutarrdquo eacute preciso sossegar o eu acalmar as suas pretensotildees de entidade livre autocircnoma (CORDEIRO 2010 p 74)

Por conseguinte a vivecircncia radical do amor fati se daacute para o homem no deixar que no vazio do seu ser a vida - que prefigura dor e o sofrimento por ser aquilo que precisa eternamente voltar a constituir a si mesmo - se mostre de diferentes perspectivas atraveacutes da arte como vontade de poder Natildeo obstante o homem para se deixar ser tomado pelo amor fati deve ser como o homem grego que mergulhou fundo na dor e que diante do sofrimento e do terriacutevel voltou-se para justificar isso como obra de arte natildeo somente aceitando mas afirmando a vida como aquilo que natildeo possui caraacuteter de ser Nesse sentido ao justificar a dor atraveacutes da obra de arte o grego expressou natildeo somente a sua dor como tambeacutem uma forma de glorificar o terriacutevel o horrendo Desse modo se daacute precisamente o amor fati como ldquoo dizer Sim agrave vida mesmo em seus problemas mais duros e estranhos a vontade de vida alegrando-se da proacutepria inesgotabilidade no sacrifiacutecio de seus mais elevados tipos ndash a isto chamei dionisiacuteacordquo (NIETZSCHE 2008 p 61)

Diante do que foi dito a arte se mostra como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida como aquilo que ela eacute a saber como aparecircncia como sendo sem fundo Nesse sentido a arte se mostra como aquilo que possibilita vida se mostrar ou seja aparecer Em sua obra A vontade de poder mais precisamente no sect853 II Nietzsche intensifica ainda mais a relaccedilatildeo da arte com a vida ao dizer

A arte e nada como a arte Ela eacute a grande possibilitadora da vida a grande sedutora para a

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vida o grande estimulante da vida A arte como uacutenica forccedila contraacuteria superior em oposiccedilatildeo a toda vontade de negaccedilatildeo da vida anticristatilde antibudista e antiniilista par excellence A arte como a redenccedilatildeo de quem conhece - daquele que vecirc e quer ver o caraacuteter temiacutevel e problemaacutetico da existecircncia do conhecedor [-] traacutegico A arte como a redenccedilatildeo do homem da accedilatildeo - daquele que natildeo apenas vecirc o caraacuteter terriacutevel e problemaacutetico da existecircncia mas antes o vive e quer vivecirc-lo do homem que eacute guerreiro traacutegico do heroacutei A arte como a redenccedilatildeo do sofredor - como caminho para estados nos quais o sofrer eacute querido transfigurado divinizado nos quais o sofrer eacute uma forma do grande arrebatamentordquo (NIETZSCHE 2008 p427 sect853 II)

Ora diante do que foi dito o amor fati eacute a expressatildeo maacutexima de afirmaccedilatildeo da vida e desse modo se opotildee a negaccedilatildeo da vida ou mesmo a qualquer busca por conforto por seguranccedila por ausecircncia de sofrimento antes natildeo somente permite ao homem reconhecer o caraacuteter cruel como tambeacutem abraccedila a vida enquanto fonte borbulhante isto eacute enquanto o delimitado ou ilimitado ganhando forma no aparecer no vir agrave presenccedila Portanto o amor fati permite ao homem perceber ldquoo mundo como uma obra de arte que daacute agrave luz a si mesma- -rdquo (NIETZSCHE 2008 sect796 p397) e desse modo estaacute intrinsecamente ligado agrave obra de arte mais precisamente a arte traacutegica tanto no que diz respeito ao aparecer como no proacuteprio criar Referecircncias AZEVEDO Vacircnia Dutra Um senatildeo diante da justificaccedilatildeo

eacutetica Amor fati em Nietzsche In Pontiacutefica Universidade Catoacutelica de Campinas Dissertatio [33] 113 ndash 145 inverno de 2011

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CORDEIRO Robson C Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte Uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Editora Universitaacuteria UFPB 2010

FINK Eugen A filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Lourenccedilo D Peixoto Lisboa Editorial Presenccedila 1983

NIEZTSCHE F W A Gaia Ciecircncia Trad P C L Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

___________ A Vontade de Poder Trad Marcos Siineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

___________ Assim Falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad M F Santos Petroacutepolis RJ Vozes 2007

___________ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad P C L Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

___________ O Nascimento da Trageacutedia ou Helenismo e Pessimismo Trad J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007

___________ Fragmentos Poacutestumos 1885-1887 Volume VI Trad Marco Antocircnio Casa Nova Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 2013

VATTIMO Gianni Diaacutelogo com Nietzsche ndash Ensaio 1961 -2000 Trad Silvana Cobucci Leite Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

RUBIRA Luiacutes O amor fati em Nieztsche Condiccedilatildeo Necessaacuteria para a Transvaloraccedilatildeo In Polymatheia ndash Revista de Filosofia Fortaleza vol IV N 6 2008 p 227 ndash 236

Notas sobre Hermenecircutica em

Heidegger e Gadamer

dois sentidos diferentes

Ernildo Stein

I

A questatildeo da relaccedilatildeo entre Heidegger e Gadamer

quantos estatildeo envolvidos com isso Jaacute se tentou tanto uma aproximaccedilatildeo e jaacute se multiplicaram os equiacutevocos quase ao infinito Os dois autores satildeo realmente dois mundos A gente faz uma espeacutecie de complementaccedilatildeo de um com o outro e isto eacute impossiacutevel Tenho um artigo sobre a diferenccedila entre os dois no meu livro Inovaccedilatildeo na filosofia Eacute muito concentrado e aborda um aspecto

Quando me despedi de Heidegger em dezembro de 1965 falei na minha tese e ele me disse se vocecirc quer falar do ciacuterculo hermenecircutico tem que falar com Gadamer Eu jaacute tinha lido Verdade e meacutetodo mas natildeo tinha entendido bem seu nuacutecleo No livro Hermenecircutica e Epistemologia publicado na comemoraccedilatildeo dos 50 anos da obra de Gadamer digo alguma coisa mas sobretudo traduzo aiacute um artigo de A De Waelhens que diz coisas importantes Devem-se tratar os dois autores como dois mundos e mesmo a Hermenecircutica nos dois tem sentido muito diferente Recebi um pequeno livro de entrevistas talvez as uacuteltimas de Gadamer a um ex-colega meu de doutorado na Alemanha Silvio Vieta em que este lembra a Gadamer uma frase de Heidegger Laacute em Heidelberg estaacute Gadamer querendo resolver tudo com a Hermenecircutica A reaccedilatildeo de Gadamer eacute clara mas sem muita surpresa

Lembro esses dois episoacutedios para se perceber como os dois filoacutesofos se relacionavam Era uma relaccedilatildeo

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respeitosa de mestre e disciacutepulo Mas os caminhos que terminaram seguindo natildeo coincidiam Eram dois mundos Mas eram amigos e criacuteticos ao mesmo tempo Heidegger tinha plena consciecircncia da imensidatildeo de sua obra e sabia que Gadamer tinha sido seu melhor disciacutepulo e que ele tinha levado adiante algo que Heidegger natildeo fizera apesar de ser consequecircncia de seu Ser e tempo Mas se isto que Gadamer fizera era estranho para Heidegger tambeacutem ao mesmo tempo era de consequecircncias novas e muito beneacuteficas para a tradiccedilatildeo da fenomenologia Hermenecircutica A ideia de Gadamer de ler a Hermenecircutica aplicada a toda a tradiccedilatildeo como historicidade do compreender - da verdade da arte da histoacuteria e da linguagem na cultura era genial mas natildeo trazia o impulso especulativo de Heidegger Sem Heidegger a Filosofia do seacuteculo vinte natildeo seria o que eacute Gadamer natildeo chegou a esta altura Mas ainda assim noacutes olhariacuteamos o mundo da cultura e da filosofia com muito menos forccedila e plenitude se natildeo houvesse Gadamer com sua Hermenecircutica filosoacutefica

Heidegger inaugurou um paradigma onde Gadamer encontrou um ambiente para a sua visatildeo Mas sem Gadamer talvez natildeo lecircssemos coisas de Heidegger como as lemos No entanto eacute claro que natildeo daacute para interpretar Heidegger a partir de Verdade e Meacutetodo Gadamer tem muito do neokantismo na sua Hermenecircutica E isto foi inovador Gadamer que Heidegger nem avaliou bem nos anos vinte foi no entanto muito maior filoacutelogo que Heidegger Conhecia muito mais grego mas Heidegger com seu grego fez muito mais filosofia E as filosofias dos dois satildeo muito diferentes justamente por isso E por isso tambeacutem a Hermenecircutica eacute muito diferente nos dois Heidegger fala da filosofia (ou fenomenologia) Hermenecircutica a filosofia eacute substantivo e a Hermenecircutica eacute adjetivo Gadamer substantiva a Hermenecircutica e acrescenta o adjetivo filosoacutefica E isto significa um abismo de diferenccedila por mais que as duas tenham algo em comum

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Quero clarear uma coisa que pouca gente vecirc e eacute essencial Nem Heidegger nem Gadamer se pode aplicar diretamente a campos determinados do conhecimento Mas olhamos diferente o conhecimento quando conhecemos os dois No fundo Gadamer trouxe a sua Hermenecircutica filosoacutefica como uma teoria geral da Hermenecircutica para todas as Hermenecircuticas das diversas aacutereas do conhecimento De Waelhens diria que Gadamer construiu uma Hermenecircutica das Hermenecircuticas de cada campo do conhecimento De outro modo cada interpretaccedilatildeo de um campo especiacutefico com sua Hermenecircutica deve seguir certas questotildees centrais que Gadamer desenvolveu como modo de tratamento em sua Hermenecircutica filosoacutefica Na sociologia natildeo fazemos Hermenecircutica filosoacutefica no direito tambeacutem natildeo O que fazemos eacute seguir passos que aprendemos e que se tornam importantes nas Hermenecircuticas particulares Gadamer nos mostra os cuidados que temos que ter quando interpretamos o direito na Hermenecircutica que fazemos no direito etc Portanto uma teoria geral da Hermenecircutica (por isso filosoacutefica) daacute diretrizes e consciecircncia histoacuterica para as Hermenecircuticas particulares

Radicalmente diferente eacute a Hermenecircutica em Heidegger Digamos assim ele quer fazer uma ontologia Hermenecircutica ou uma fenomenologia Hermenecircutica com a qual quer mostrar um sucedacircneo da metafiacutesica uma metafiacutesica natildeo absoluta uma metafiacutesica enraizada no ser humano um metafiacutesica como ciecircncia procurada (episteme zetoumene) e natildeo uma metafiacutesica como ontoteologia Vecirc-se a diferenccedila da intenccedilatildeo heideggeriana ele abrange toda a metafiacutesica com seu projeto de uma Hermenecircutica fenomenoloacutegica ou sua ontologia Hermenecircutica Por isso se deve ver a diferenccedila de projetos entre as duas Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer Contudo haacute algo que as aproxima eacute que Gadamer assume e reconhece o projeto heideggeriano e eacute dele que aprende o tipo de

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filosofia com a qual pode desenvolver a sua Hermenecircutica filosoacutefica Heidegger natildeo serve diretamente para aquilo que Gadamer pretende sua Hermenecircutica da Hermenecircutica ou melhor das Hermenecircuticas de todos os campos de saber que lidam com as humanidades com as filoloacutegicas e nelas incluindo ateacute a filosofia na medida em que lida com a linguagem Mas eacute claro que Heidegger lida com a linguagem em outro niacutevel na medida em que introduz uma dupla estrutura a estrutura apofacircntica e a estrutura Hermenecircutica A diferenccedila neste niacutevel entre Heidegger e Gadamer eacute de dimensatildeo ou de acircmbito ou de alcance Gadamer opera no paradigma que Heidegger instaurou e dele tem conhecimento e com isso produz seu Verdade e meacutetodo Pode-se ver a maior dimensatildeo que tem a obra de Heidegger diante de Gadamer E contudo na manhatilde em que este daria sua uacuteltima aula em Heidelberg ao se aposentar o primeiro que entrou na sala vindo de Freiburg foi Heidegger

II Tratava-se nesse texto de trazer algumas distinccedilotildees

para evitar certas superposiccedilotildees entre os dois autores Este eacute o melhor caminho para compreender a especificidade de ambos Haacute no entanto dois aspectos que devem ser mostrados e que significam levar adiante o trabalho com a Hermenecircutica O primeiro constitui o contexto em que se situa a grande revoluccedilatildeo de Heidegger no contexto da filosofia ocidental com a proposta de tentar responder a questatildeo fundamental Que eacute o ser qual o sentido do ser Em funccedilatildeo dela o filoacutesofo escreveu seu livro Ser e tempo Nele desenvolve a analiacutetica existencial introduz o meacutetodo fenomenoloacutegico hermenecircutico Mas o meacutetodo representa aqui um caminho a ser usado para introduzir de um lado a criacutetica ao dualismo da filosofia da modernidade e revelar como o viacutenculo entre ser e compreensatildeo implicava num

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novo conceito de mundo ligado ao ser humano enquanto ser-no-mundo o ser-aiacute (Dasein)

O ser-aiacute compreende o ser e na mesma medida se compreende a si mesmo Surge a questatildeo do ciacuterculo hermenecircutico e com ele se introduzia ao mesmo tempo uma questatildeo que desde sempre estava operando na questatildeo da linguagem

A distinccedilatildeo que Heidegger introduz entre a dimensatildeo apofacircntica e a dimensatildeo Hermenecircutica para dar conta de uma dupla estrutura da linguagem desvela um modo de ser ligado ao mundo o estar vinculado do ser-aiacute ao mundo praacutetico O compreender-se deste modo daacute agrave dimensatildeo Hermenecircutica uma caracteriacutestica existencial que iraacute atravessar toda a anaacutelise dos existenciais e com isto a linguagem recebe uma espeacutecie de compromisso com o modo de ser-no-mundo praacutetico Supera-se deste modo a forma puramente loacutegica de pensar a linguagem e o discurso Entatildeo tambeacutem a questatildeo do ser deixa de ser apenas uma questatildeo loacutegica Sem abandonar a forma loacutegico-analiacutetica ela traz o elemento existencial do Dasein como modo-de-ser-no-mundo para a linguagem Dessa maneira sempre que falamos operamos em dois niacuteveis o apofacircntico e o hermenecircutico Como no niacutevel cotidiano de comunicaccedilatildeo usamos a gramaacutetica com suas exigecircncias loacutegicas natildeo manifestamos a outra estrutura a Hermenecircutica Mas ela estaacute presente e nos liga como falantes ao mundo praacutetico Como ela sempre jaacute estaacute antecipada quando nos comunicamos pela gramaacutetica da loacutegica podemos falar de uma preacute-compreensatildeo em todo nosso discurso

Eacute ela que impede a gramaacutetica de ser puramente formal e de noacutes nos comunicarmos no vazio de um discurso positivo Levamos o hermenecircutico sempre conosco Podemos continuar falando mas essa preacute-compreensatildeo nos acompanha dando-nos a dimensatildeo que sustenta a linguagem loacutegica E eacute dela que ateacute precisamos para falar da dimensatildeo Hermenecircutica Todo nosso campo

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de conhecimento no entanto eacute tambeacutem hermenecircutico Podemos falar aqui tambeacutem de uma circularidade na medida em que natildeo saiacutemos de um campo da linguagem para o outro campo A dupla estrutura aponfacircntico-Hermenecircutica nos abriga existencialmente

Mostrar isto foi a grande revelaccedilatildeo de Ser e tempo Mas este mostrar percorre toda a analiacutetica existencial e eacute atravessado pela fenomenologia Hermenecircutica Quando falamos portanto em Hermenecircutica trazemos conosco todas as dimensotildees do ser-no-mundo que Heidegger mostrou com sua fenomenologia Hermenecircutica e existencial A diferenccedila ontoloacutegica a distinccedilatildeo entre ser e ente o proacuteprio ciacuterculo hermenecircutico ontoloacutegico em que compreendemos ser e nos compreendemos enquanto somos tudo isso soacute faz sentido se formos capazes de realizar em nosso modo de ser e de operar o modo hermenecircutico-existencial Desde sempre somos assim no mundo

Devemos portanto a Heidegger esta dimensatildeo nova que ele mostrou explicitamente A grandeza da intuiccedilatildeo e seu desenvolvimento em Verdade e meacutetodo foi possiacutevel porque Gadamer compreendeu esta dimensatildeo do pensamento de Heidegger Eacute por isso que natildeo falamos da Hermenecircutica filosoacutefica sem que Heidegger esteja presente E aqui comeccedila a proximidade praacutetica que liga nossas anaacutelises quando operamos nossas interpretaccedilotildees num acircmbito em que aproximamos Heidegger e Gadamer

Conveacutem aprofundarmos a questatildeo do ciacuterculo hermenecircutico que em nossos dias eacute considerada um elemento indiscutiacutevel se natildeo quisermos perder a dimensatildeo que necessariamente acompanha todo conhecimento quando estamos analisando a questatildeo da Hermenecircutica

Temos poreacutem a tendecircncia de atribuir agrave questatildeo do ciacuterculo uma espeacutecie de ponto uacuteltimo que basta aceitar para que o nosso discurso se possa desenvolver no contexto adequado No entanto mesmo aceitando a dupla estrutura

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do mundo da linguagem e tendo evitado o encolhimento de nosso dizer surpreende-nos a necessidade a de uma interpretaccedilatildeo de todo o quadro que formamos O ciacuterculo hermenecircutico eacute conhecimento mas natildeo envolve eventos objetos processos accedilotildees relaccedilotildees e pessoas como se fossem conteuacutedos garantidos pela representaccedilatildeo e por um sujeito Natildeo eacute simples entrar neste ambiente do ciacuterculo hermenecircutico

Somos levados pelo cotidiano de nosso falar a olhaacute-lo como o chatildeo de nossa experiecircncia da empiria No entanto a linguagem que se desenvolve para falar do ciacuterculo hermenecircutico e para alimentaacute-lo eacute filosoacutefica Natildeo aprendemos a falar de modo filosoacutefico sem que tenhamos entrado num espaccedilo em que renunciamos agrave gramaacutetica da objetivaccedilatildeo Mas se atingimos esta dimensatildeo que transcende o discurso dos objetos surpreende-nos a necessidade de saber pensar a condiccedilatildeo da relaccedilatildeo desta linguagem com o todo

Como nos relacionamos com o todo que se potildee no caminho Eacute claro que jaacute apreendemos que o ciacuterculo hermenecircutico surgiu com a fenomenologia e laacute Heidegger nos fala da compreensatildeo do ser e da compreensatildeo que temos de noacutes numa relaccedilatildeo reciacuteproca Aiacute acontece um todo Que todo eacute esse Eacute o todo de uma compreensatildeo e o todo de uma linguagem que diz A questatildeo que se insinua nasce justamente neste encontro Como afirmar este todo Pois se afirmo o todo estou fora dele e entatildeo natildeo eacute o todo Se no entanto estiver no todo nada dele posso dizer O que termino fazendo eacute uma narrativa de mim no todo Mas esta narrativa com que comeccedilo a me introduzir no todo estaacute fora do todo e entatildeo novamente o todo natildeo eacute o todo

Quando falamos no ciacuterculo hermenecircutico se introduz portanto o paradoxo que materializamos no exposto Temos que concluir que o ciacuterculo hermenecircutico eacute um todo com que operamos justamente para compensar a

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impossibilidade de afirmar um absoluto ou absolutos objetivados Mas ele somente pode estar neste lugar porque na filosofia natildeo lidamos com a compreensatildeo dos objetos nem com a compreensatildeo da totalidade dos objetos mas com o todo do nosso compreender

III

De maneira um tanto compacta apresentei o lugar

de origem da questatildeo da Hermenecircutica em Heidegger Com toda a tradiccedilatildeo da Escola Histoacuterica pelas costas depois de muitos anos de contato com a metafiacutesica e a ontologia da filosofia grega e medieval e das questotildees extraiacutedas das leituras de textos de Satildeo Paulo e outros autores da Escritura e de estudos dos neokantianos Heidegger se tornou assistente e interlocutor de Husserl

A entrada na Fenomenologia representou para Heidegger um modo novo de trabalho filosoacutefico com uma bagagem de conhecimento da tradiccedilatildeo ao contraacuterio de seu mestre Husserl que vinha da matemaacutetica e da loacutegica Tinha no entanto posto como subtiacutetulo a partir do segundo volume de suas Investigaccedilotildees loacutegicas ldquoFenomenologia do conhecimentordquo

Atento ao modo de investigaccedilatildeo de Husserl e tentando situar o meacutetodo fenomenoloacutegico no contexto de suas experiecircncias introduzira na aprendizagem com o mestre materiais muito diferentes Mas natildeo imaginemos que Heidegger natildeo tivesse sido impressionado com a questatildeo da intencionalidade e outras categorias que Husserl desenvolvera influenciado por Franz Brentano

Heidegger entretanto introduziria toda a sua experiecircncia da Histoacuteria da Filosofia na recepccedilatildeo e no estudo da filosofia Esta combinaccedilatildeo daria como resultado no comeccedilo um modo diferente de olhar os procedimentos da fenomenologia transcendental de Husserl para mais

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adiante introduzir materiais que conduziriam agrave fenomenologia Hermenecircutica

Vamos observar um tanto de fora esta combinaccedilatildeo e as modificaccedilotildees que foram sendo trazidas pelos interesses teoacutericos de Heidegger e entatildeo iremos perceber que muito cedo estavam aparecendo sinais de uma nova direccedilatildeo na Filosofia Eacute este desenvolvimento que denominarei de nascimento de um novo paradigma Natildeo tentarei descrever todos os elementos que significam e trazem motivos para esta passagem e nascimento de um paradigma Mas ouso adiantar que as condiccedilotildees para o nascimento do paradigma da fenomenologia Hermenecircutica estavam realmente se gestando

Tudo que em Husserl era essencial para seu trabalho e sua interpretaccedilatildeo passaria a ser visto e articulado de outro modo Assim a proacutepria ideia de intencionalidade de representaccedilatildeo de conhecimento de reflexatildeo a relaccedilatildeo sujeito e objeto tudo isso mudaria e tomaria outro sentido E seriam introduzidos vaacuterios novos termos jaacute muito cedo como vida mundo ser histoacuteria tempo ou termo husserlianos seriam transformados como transcendental reduccedilatildeo indicaccedilatildeo formal categoria

Pelo princiacutepio dos anos vinte Heidegger jaacute estava interpretando a seu modo autores e temas da nova fenomenologia e introduzira uma combinaccedilatildeo entre termos filosoacuteficos claacutessicos e novos conceitos As expressotildees que passam a predominar jaacute nos datildeo ideia de uma nova leitura uma nova interpretaccedilatildeo e um novo modo de pensar a Fenomenologia com temas novos Assim se chegaria agrave combinaccedilatildeo entre ontologia e fenomenologia e fenomenologia Hermenecircutica Estava se configurando uma nova gramaacutetica nova sintaxe e semacircntica proacuteprias Tudo poreacutem era conduzido por uma nova ideia de compreender transcendental e outros elementos que serviriam de moldura e bastidor para a linguagem que conduziria ao universo terminoloacutegico de Ser e tempo Estava sendo

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configurado um novo paradigma que conveacutem examinar um pouco

IV

A partir desta etapa a interpretaccedilatildeo de certos

claacutessicos da Histoacuteria da Filosofia usando seu modo novo de concepccedilatildeo do meacutetodo fenomenoloacutegico que o levara a uma atitude nova diante da Filosofia e de seus temas centrais Heidegger se fixa um objetivo ambicioso para sua anaacutelise O filoacutesofo quer retomar a questatildeo da filosofia que Platatildeo e Aristoacuteteles tinham posto e procurado responder em vatildeo QUE Eacute O SER Mas desde sempre e agora quando perguntamos pelo ser entramos em aporia confessa Platatildeo no diaacutelogo Sofista

Se as coisas satildeo assim Heidegger quer retomar a questatildeo na forma da pergunta pelo sentido do ser Para isso o filoacutesofo propotildee uma analiacutetica existencial guiado pelos procedimentos de seu meacutetodo fenomenoloacutegico Realiza uma exposiccedilatildeo provisoacuteria do meacutetodo e nela iraacute aparecer a distinccedilatildeo entre apofacircntico e hermenecircutico onde o tornado fenocircmeno se mostraraacute na superfiacutecie como fenocircmeno vulgar e na profundidade como fenocircmeno no sentido fenomenoloacutegico Entatildeo torna-se possiacutevel desenvolver a analiacutetica existencial que seraacute atravessada pela dupla estrutura a que acena o meacutetodo fenomenoloacutegico

Eacute preciso perguntar pelas estruturas existenciais que constituem o Dasein o ser no mundo e que aparecem ocultas nas estruturas existenciaacuterias do cotidiano Basicamente isto se constitui a partir da distinccedilatildeo entre ser e ente Geralmente estamos envolvidos pelo ocupar-nos com os entes e esquecemos o ser Daiacute o filoacutesofo passa a operar com a diacuteade velamento-desvelamento Esta vem pelo meacutetodo fenomenoloacutegico atravessa todas as dimensotildees do Dasein os existenciais e se ancora na diferenccedila ontoloacutegica Mas o filoacutesofo atravessa toda sua anaacutelise pelo

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velamento e desvelamento que iraacute tomar tambeacutem a forma do autecircntico e do inautecircntico na analiacutetica existencial dos existenciais Apesar de que o mais proacuteximo o ser sempre parece o mais longiacutenquo porque estamos envolvidos com a ocupaccedilatildeo com os entes que nos parecem o mais proacuteximo tendemos a este jogo em que temos que lutar contra a tendecircncia de confundir o proacuteximo com o longiacutenquo para natildeo esquecer o ser pelo ente

Poderiacuteamos ir mais longe mas para o bom entendedor a anaacutelise realizada revela porque a dimensatildeo Hermenecircutica a mais proacutexima (que nos parece a mais longiacutenqua) tende a ser esquecida pela dimensatildeo apofacircntica (na verdade a mais longiacutenqua) que nos parece a mais proacutexima Assim procedemos em todas as nossas formas de objetificaccedilatildeo e subjetivaccedilatildeo e temos apenas a Hermenecircutica para mostrar o engano do nosso modo de ser cotidiano jaacute que atraveacutes dela e da dupla estrutura que protege nossa linguagem de cair no positivo no apofacircntico na solidatildeo loacutegica

O mais importante de tudo que dissemos eacute que a Hermenecircutica estaacute ligada ao problema do ser Por isso a compreensatildeo do ser daacute esta densidade e sustenta a dimensatildeo uacutenica da Hermenecircutica Com a Hermenecircutica ligada agrave compreensatildeo do ser surge o caraacuteter duplo da interpretaccedilatildeo Interpretamos para compreender mas jaacute sempre compreendemos para interpretar A compreensatildeo do ser pelo Dasein eacute resultado da hegemonia ocircntico-ontologica do Dasein Eacute por isso que quando interpretamos jaacute sempre compreendemos este compreender eacute uma estrutura existencial do Dasein Esta a razatildeo porque podemos falar de uma preacute-compreensatildeo que antecipa qualquer interpretaccedilatildeo

Pelo que mostramos em nossa anaacutelise o paradigma heideggeriano se articula a partir de uma nova tentativa de resposta agrave questatildeo do ser E isto traz como consequecircncia ou como resultado da analiacutetica existencial uma vinculaccedilatildeo

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da compreensatildeo com o ser do Dasein e com o ser Heidegger mostra isto em suas anaacutelises do compreender em vaacuterios paraacutegrafos de Ser e tempo Eacute nessa linha de reflexatildeo que encontraremos as verdadeiras razotildees de o filoacutesofo ser o fundador de um novo paradigma que pode ser chamado de fenomenologia Hermenecircutica A Hermenecircutica que resulta deste paradigma eacute uma Hermenecircutica ontoloacutegica Nesta Hermenecircutica se fundam todas as Hermenecircuticas tambeacutem a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer

V

Podemos imaginar o volume de informaccedilatildeo que

traz um pensamento filosoacutefico que terminamos reconhecendo como um paradigma Natildeo se trata no entanto apenas de conhecimento ou de autores que foram estudados por Heidegger Nele como em alguns filoacutesofos ocidentais aos quais podemos atribuir o construccedilatildeo de um paradigma termina aparecendo uma posiccedilatildeo que nos leva a deslocar nossas eventuais convicccedilotildees fragmentaacuterias para um novo universo que tambeacutem torna inovadoras nossas formas de situar e representar o que pensamos

Quando Heidegger apela para o conceito de vida faacutetica que termina atravessando todos os elementos caracteriacutesticos do comeccedilo dos anos vinte ele natildeo apenas quer desconstruir as ontologias tradicionais que chama de ontologias da coisa O filoacutesofo jaacute antecipa a questatildeo do tempo a partir da temporalidade e da historicidade Com isso o modo de a filosofia apresentar a metafiacutesica como ontoteologia isto eacute como teoria do fundamento uacuteltimo eacute trazida para um modo de interrogar na finitude Isto significa que a filosofia deixa para traacutes o dualismo e dessa maneira a necessidade de buscar a totalidade pela reflexatildeo e pela subjetividade

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Esta aparente tarefa central que domina a filosofia moderna depende de uma compreensatildeo que precede o esquema sujeito-objeto que estaacute ligada a ontologia da finitude Temos assim a introduccedilatildeo da fenomenologia como Hermenecircutica da facticidade que seraacute a nova forma de perguntar pela questatildeo do ser

Desse modo a ontologia da finitude seraacute o caminho pelo qual a analiacutetica existencial levaraacute agrave desconstruccedilatildeo da metafiacutesica A proacutepria metafiacutesica se revelaraacute como uma ciecircncia procurada (segundo caminho de Aristoacuteteles) e natildeo uma ontoteologia (primeiro caminho de Aristoacuteteles) Desta maneira Heidegger seguiraacute o desenvolvimento da pergunta pelo sentido do ser pelo meacutetodo da fenomenologia Hermenecircutica

Realizaraacute a analiacutetica existencial para mostrar a necessidade de superar o dualismo cartesiano renovando a questatildeo da compreensatildeo expondo a triacuteplice estrutura do Dasein como modo de ser no mundo ser adiante de si mesmo ser junto das coisas e jaacute ser em que constituem o cuidado que eacute o ser do Dasein A temporalidade como existecircncia decaiacuteda e facticidade seraacute o sentido do cuidado A temporalidade seraacute entatildeo o sentido do ser do ser-aiacute Uma vez exposta a temporalidade que envolve todos os existenciais o filoacutesofo se propotildee pensar o tempo como horizonte do sentido do ser Ainda que tenhamos visto um miacutenimo do todo que constitue os diversos aspectos do paradigma heideggeriano que sustenta sua visatildeo de compreensatildeo e Hermenecircutica jaacute eacute possiacutevel ver como o filoacutesofo pretende apresentar sua visatildeo criacutetica dos paradigmas metafiacutesicos

Vamos nos servir de Manfredo Arauacutejo para resumir as consequecircncias da criacutetica A concentraccedilatildeo da reflexatildeo na historicidade vai tornar impossiacutevel qualquer tentativa de estabelecer o comeccedilo absoluto para o pensamento cuja pressuposiccedilatildeo baacutesica eacute o abismo entre sujeito e objeto o que leva agrave pergunta fundamental Como chegar afinal ao

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mundo Para essa pressuposiccedilatildeo o conhecimento eacute uma atividade da mente um aparato cognitivo distinto do mundo e que se preenche com material cognosciacutevel atraveacutes dos sentidos Esta posiccedilatildeo trabalha com um duplo dualismo um dualismo interno entre sensibilidade e espiritualidade e um dualismo externo entre mente e mundo Para Heidegger essa questatildeo baacutesica natildeo se potildee porque sujeito e objeto jaacute estatildeo sempre abrangidos pela dimensatildeo originaacuteria o ser Nessa perspectiva Heidegger rompe com a epistemologizaccedilatildeo que caracterizou a filosofia moderna e repotildee a ontologia no centro da Filosofia (Manfredo Arauacutejo de Lima ldquoTeoria do ser primordial como tarefa suprema de uma filosofia sistemaacutetico-estrutural In Siacutentese Belo Horizonte v 39 n 123 p 53-79 p 58 janabr 2012)

Como vimos antes Gadamer se situa com sua Hermenecircutica filosoacutefica dentro do paradigma heideggeriano O que significa isto Natildeo precisamos situar-nos em nenhum paradigma Mas podemos estar situados num paradigma sem o sabermos de maneira clara No caso de Gadamer o autor analisa os aspectos que o ligam a Heidegger e tambeacutem mostra certas questotildees que o ultrapassam e separam dele O filoacutesofo por exemplo diz explicitamente que se inspirou sobretudo no conceito de facticidade agora aplicada agrave cultura fora da analiacutetica existencial de Heidegger Natildeo eacute tema de sua obra a questatildeo do ser a questatildeo da temporalidade a questatildeo da transcendentalidade Nem mesmo lhe interessava a questatildeo geral da metafiacutesica e um novo projeto da questatildeo do ser e seu sentido

No entanto haacute por outro lado muitos elementos que lembram o paradigma heideggeriano A historicidade da compreensatildeo a ampliaccedilatildeo da questatildeo da Hermenecircutica e sobretudo a ideia da dupla estrutura da linguagem Em resumo tambeacutem Gadamer se move na dimensatildeo aleacutem do

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dualismo moderno Talvez deva ser lembrada sobretudo a questatildeo da finitude e a questatildeo da preacute-compreensatildeo

Se aqui lembramos como Gadamer se aproxima do paradigma heideggeriano e como se separa isto jaacute mostra que pensamos que o filoacutesofo natildeo apresenta um paradigma proacuteprio ainda que tenha uma originalidade insuperaacutevel Talvez natildeo possamos compreender a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer sem a Filosofia Hermenecircutica de Heidegger O filoacutesofo no entanto explorou com sua obra um universo que marcaraacute nosso tempo e ocupa um lugar decisivo para entendermos como nos situamos na nossa cultura Ele nos mostra como devemos trabalhar com as Hermenecircuticas dos diversos campos do saber sobretudo os que lidam com a linguagem

Creio que as duas Hermenecircuticas dos dois pensadores tem uma complementaridade que ainda natildeo foi pensada Natildeo sei se podemos pensar Gadamer sem Heidegger mas certamente Gadamer abriu um pensamento novo e deu agraves intuiccedilotildees heideggerianas um sentido com nova amplitude

VI

Ateacute agora fizemos uma excursatildeo atraveacutes da

paisagem da Hermenecircutica na filosofia Mas o interesse era iluminar a proximidade e a distacircncia das Hermenecircuticas em Heidegger e Gadamer Entramos na anaacutelise por uma seacuterie de consideraccedilotildees que terminaram nos levando agrave questatildeo do paradigma na filosofia e sua funccedilatildeo baacutesica para darmos conta do modo melhor de proceder para chegar ao nuacutecleo de uma filosofia As conclusotildees foram claras e mostraram que em Heidegger haacute um paradigma em movimento e que a questatildeo da Hermenecircutica a partir da fenomenologia Hermenecircutica eacute o lugar em que se alimenta a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer

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Era importante perceber como atraveacutes da Hermenecircutica em Heidegger Gadamer deu forma ao nuacutecleo fundamental de sua Hermenecircutica que denominou de filosoacutefica Natildeo podemos aplicar um paradigma filosoacutefico diretamente a outro paradigma filosoacutefico Os paradigmas tem sua longa seacuterie de elementos que lhes datildeo autonomia Mas isso natildeo os faz viver se articulando sem um constante diaacutelogo com o pensamento em geral Jaacute vimos como a questatildeo central da fenomenologia Hermenecircutica se comensura com o projeto heideggeriano de investigar o sentido do ser e portanto de se empenhar nas questotildees centrais da metafiacutesica

Heidegger usou os recursos mais sugeridos do que desenvolvidos de seu meacutetodo que deveria ter sido explicitado mais amplamente para tomar a forma de um quadro teoacuterico adequado a seu projeto de perguntar pelo sentido do ser atraveacutes da analiacutetica existencial

Gadamer desenvolveu sua Hermenecircutica sem um projeto que deveria dar conta de um projeto de universalidade como o projeto heideggeriano Natildeo se pode no entanto afirmar que Verdade e meacutetodo natildeo tenha um objetivo universal que foi desenvolvendo com seus recursos teoacutericos As intenccedilotildees que conduziam suas etapas teoacutericas eram relativamente definidas Dar conta de uma verdade natildeo apenas proposicional da arte da histoacuteria e da linguagem representava uma dimensatildeo nova no contexto de toda filosofia Isto jaacute possuiacutea uma envergadura teoacuterica e especulativa que atingia todo o espectro da filosofia Haacute algo inteiramente diferente nesta Hermenecircutica denominada filosoacutefica e isto deveria levar a produzir efeitos em todos os campos em que se trabalhava com interpretaccedilatildeo

Para ir direto ao problema a profunda inovaccedilatildeo com a ideia da historicidade da compreensatildeo e seus elementos complementares dava-se atraveacutes dos efeitos que dela deveriam resultar para todos os campos do

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conhecimento sobretudo aqueles referidos agrave linguagem e aspectos com ela vinculados incluindo nisto tambeacutem agrave filosofia

Depois da consciecircncia histoacuterica vinculada com nosso modo de compreender natildeo conseguimos mais reduzir nosso lidar com a linguagem como se a dimensatildeo loacutegico-analiacutetica tivesse a uacuteltima palavra As intenccedilotildees da Hermenecircutica faziam dela uma Hermenecircutica filosoacutefica porque ela deveria ter consequecircncias regradoras para todos os campos particulares da interpretaccedilatildeo

Haacute algo de um objetivo filoloacutegico nesta Hermenecircutica que procura chegar aos mecanismos da historicidade da compreensatildeo em todas as esferas da cultura sobretudo quando se opera com a linguagem E eacute nesta direccedilatildeo que Gadamer atinge todos os que trabalham com o conhecimento em que os textos tecircm consequecircncias para o pensamento as escolhas e as decisotildees Tudo estaacute mergulhado numa dimensatildeo histoacuterica que natildeo se esgota por causa da historicidade da compreensatildeo

Natildeo se trata de dar conta de um projeto filosoacutefico simplesmente mas de mostrar como funcionamos nos nossos discursos em dois niacuteveis em que a loacutegica natildeo esgota o sentido porque ele vem carregado e marcado pela tradiccedilatildeo Heidegger faz ver aspectos de todo o universo a que Gadamer se dedica mas a sua Hermenecircutica natildeo vigia os processos de compreensatildeo de nossa cultura no movimento da historicidade A Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer vem ao nosso encontro quando esquecemos o acontecer da historicidade no nosso conhecimento nos diversos campos do saber e isto eacute tambeacutem tarefa da filosofia No entanto eacute mais que isso ela se transforma em Hermenecircutica da Hermenecircutica(ou melhor das Hermenecircuticas)

No caso de Heidegger Ser e tempo suscitou bem outra reaccedilatildeo Tratava-se de um campo ontoloacutegico

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Quando se encontraram estudiosos da antropologia da psicologia da psicanaacutelise da teologia e da literatura com a concepccedilatildeo e as categorias centrais da analiacutetica existencial de Ser e tempo a reaccedilatildeo foi quase imediata Abrira-se um campo de categorias e uma instigante sucessatildeo de aspectos que eram absolutamente novos e contudo parecia que estes campos do conhecimento estavam esperando por estas temaacuteticas novas e pelo repertoacuterio conceitual extremamente sugestivo

Na psicologia e sobretudo na psicanaacutelise e na psiquiatria natildeo foram incorporados muitos conceitos de Ser e tempo mas parecia que o ser humano podia ser repensado a partir do Dasein e assim se teria dado um salto para as teorias destas aacutereas e para a compreensatildeo da cliacutenica

Natildeo parecia tatildeo relevante a questatildeo da Hermenecircutica renovada na analiacutetica existencial mas antes os conteuacutedos que ela trazia Os psiquiatras e os psicanalistas descobriam no aprofundamento do estudo da analiacutetica existencial uma grande ampliaccedilatildeo da compreensatildeo do ser humano Tambeacutem Heidegger e outros filoacutesofos estavam muito interessados nos efeitos de suas teorias nas hipoacuteteses com que trabalhava a comunidade dos estudiosos da alma humana

Ficaram famosos os estudos de Binswanger que tentou mesmo escrever um livro ao estilo de Ser e tempo do ponto de vista psiquiaacutetrico No encontro referido no comeccedilo Heidegger por sua vez falava com muito entusiasmo para mim dos cursos que dava na cliacutenica de Medard Boss em Zollikon na Suiacuteccedila

Interesses reciacuteprocos aproximaram Heidegger e Bultmann que chegou a reescrever a questatildeo da concepccedilatildeo da revelaccedilatildeo por influecircncia de Ser e tempo num livro com o sugestivo tiacutetulo Crer e compreender (Glauben und Verstehen)

Mas o que nos interessou ao longo de nossas consideraccedilotildees era a questatildeo da Hermenecircutica Confesso que a questatildeo do compreender e da interpretaccedilatildeo a partir

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de Heidegger foi muitas vezes encoberta pela questatildeo ontoloacutegica na filosofia e pelo estudo dos existenciais nas ciecircncias humanas Somente Binswanger valorizou a compreensatildeo para a psiquiatria E diversos estudiosos das ciecircncias humanas valorizaram o meacutetodo fenomenoloacutegico

Mas foi a publicaccedilatildeo de Verdade e meacutetodo que deu novo impulso ao problema hermenecircutico Toda a estrutura do livro e as trecircs partes sobre a verdade da arte da histoacuteria e da linguagem anunciavam uma nova dimensatildeo da Hermenecircutica No entanto penso que foi a questatildeo da compreensatildeo e da historicidade do compreender que teve influecircncia teoacuterica no campo das ciecircncias humanas mas muito aleacutem da epistemologia Gadamer mesmo suscita no livro um interesse pela Hermenecircutica pelas importantes referecircncias agrave Hermenecircutica biacuteblica juriacutedica e teoloacutegica Mas convenhamos se toda a obra de Gadamer nos leva a desenvolver e aplicar a Hermenecircutica no conhecimento humano sobretudo nas ciecircncias humanas e principalmente naquelas que lidam com a linguagem isto se daacute atraveacutes do acontecer

Penso que podemos ver a Hermenecircutica de Gadamer como o grande guarda-chuva da interpretaccedilatildeo e da compreensatildeo no campo da linguagem Tenho que chamar atenccedilatildeo para o que eacute decisivo na temaacutetica da Hermenecircutica em Gadamer que Verdade e meacutetodo natildeo trata de uma Hermenecircutica que seja uma estrutura ou faccedila parte de uma estrutura que possa ser comparada a estruturas que outros campos do conhecimento apresentam A obra toda se configura como uma exposiccedilatildeo de todos os elementos que compotildeem o conhecimento humano como um acontecer Eacute por isso que Verdade e meacutetodo nos traz uma dimensatildeo o acontecer da historicidade que abrange todos os elementos com que opera a interpretaccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico na aacuterea de humanas

Chegamos ao ponto em que parecem colidir as Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer No entanto o

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que haacute eacute uma aproximaccedilatildeo Nela temos que manter Heidegger como o lugar originante da Hermenecircutica e Gadamer como aquele autor que soube pelo imenso conhecimento trazer a dimensatildeo do acontecer da cultura humana onde muitas formas de conhecimento operam com a Hermenecircutica Em Heidegger a Hermenecircutica estaacute ligada ao Dasein como um existencial que atravessa o meacutetodo fenomenoloacutegico Gadamer estaacute envolvido na articulaccedilatildeo do elemento hermenecircutico na historicidade do compreender que acontece em todo o conhecimento humano

VII

Nossa anaacutelise se estendeu por exigecircncia da clareza

que temos que encontrar neste campo da Hermenecircutica onde a dispersatildeo se infiltra justamente por tratar de um dos acircmbitos fundamentais que envolvem o homem a linguagem Natildeo resta duacutevida que dela tratam os estudiosos de diversos campos desde o empiacuterico passando pelo formal atravessando a anaacutelise linguiacutestica e entrando nas diversas formas de abordagem pela filosofia Na Histoacuteria da Filosofia a tradiccedilatildeo Hermenecircutica representa uma evoluccedilatildeo histoacuterica que se enraiacuteza no seacuteculo 19 Mas foi pela Escola histoacuterica alematilde que a procura de um fundamento filosoacutefico para o conhecimento histoacuterico levou ateacute a Hermenecircutica como forma de afirmaccedilatildeo de um campo especiacutefico que seria uma alternativa de meacutetodo para as ciecircncias humanas Meacutetodo hermenecircutico primeiro e progressivamente tomando forma de um campo de estudos que podemos chamar um acircmbito hermenecircutico marcado pelo compreender Como jaacute vimos este compreender se amplia ateacute tornar-se um modo de ser um existencial que atravessa a linguagem

Natildeo precisamos voltar aos problemas que surgem no confronto entre analiacutetico e hermenecircutico Temos apenas

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que levar em conta que a virada analiacutetica na filosofia acordou para o uso hermenecircutico na questatildeo da linguagem

Primeiro a descoberta de que a exclusividade da abordagem analiacutetica dos discursos podia ser facilmente posta em duacutevida A dimensatildeo da compreensatildeo se impunha em muitos campos das ciecircncias humanas e revelaria pela preacute-compreensatildeo um universo em que sempre nos moviacuteamos

Fazia-se presente nesta Hermenecircutica a superaccedilatildeo da relaccedilatildeo sujeito-objeto que era o traccedilo dominante da metafiacutesica objetivista e que levava agraves questotildees do dualismo no conhecimento

A partir da consciecircncia de que a Hermenecircutica representava um amplo campo de tratamento de nosso conhecimento pelas obras de Heidegger e Gadamer a abordagem das ciecircncias humanas passou por uma grande mudanccedila

Certamente tinha que ser descoberto que a reviravolta analiacutetico-linguiacutestica mostrava que havia uma linguagem entre noacutes e o objeto Mas esta reviravolta natildeo era apenas loacutegico-semacircntica como erroneamente se acreditava O nosso conhecimento jaacute se constitui num modo de ser de caraacuteter pragmaacutetico que Heidegger denominaria uma relaccedilatildeo praacutetica com os entes que conhecemos e com nosso ser A Hermenecircutica vinha a ser o espaccedilo para ampliar um modo de estarmos envoltos na linguagem pelo nosso modo de ser no mundo Mais radical A linguagem eacute a casa do ser (Heidegger) A questatildeo que fica eacute a que nos conduz desde o comeccedilo de nossa anaacutelise que Hermenecircutica como em que medida e com que consequecircncias podemos abordar nos diversos campos do conhecimento

Jaacute fizemos algumas referecircncias a esta questatildeo em passagens anteriores Mas eacute uacutetil chamar atenccedilatildeo para o fato de que a Hermenecircutica marca presenccedila por toda parte Nem sempre se define de maneira adequada de que

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Hermenecircutica se trata Quanto agraves Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer tambeacutem haacute dificuldades para definir o espaccedilo e as formas de operar com elas Em nossa anaacutelise mostrou-se a dificuldade de separaacute-las e podemos agora dizer que em geral natildeo existe o cuidado suficiente na aplicaccedilatildeo

Temos ainda o grande problema das condiccedilotildees dos autores que fazem a experiecircncia com a Hermenecircutica em seus campos de teorizaccedilatildeo com sua especialidade Quanto de filosofia conhecem em que tipo de paradigma filosoacutefico se movimentam o que esperam de resultados para melhorar ou consolidar os campos em que atuam Em geral o uso da Hermenecircutica produz conflitos entre teorias que jaacute estatildeo enraizadas em pressupostos filosoacuteficos porque se pressupotildeem paradigmas com dificuldades na aproximaccedilatildeo

Martin Heidegger lendo

Frederico Nietzsche

Gilvan Fogel

Quem tem uma meta ( um fitoldquoein Zielrdquo) e um herdeiro este no tempo certo quer a morte para o herdeiro e a meta ndash Assim Falava Zaratustra I Da morte livre

1 Eacute possiacutevel que em buscando entender e

explicitar a contemporaneidade Nietzsche tenha sido o interlocutor mais proacuteximo mais imediato de Heidegger E como Nietzsche aparece se mostra para Heidegger Como Heidegger lecirc Nietzsche De cara poreacutem marquemos neste diaacutelogo Frederico Nietzsche passa a chamar-se vontade de poder Vontade de poder eacute como Nietzsche a certa altura de sua lida filosoacutefica passa a nomear a realidade primeira elementar ou imediata que ele vecirc experimenta e tambeacutem denomina vida Vida eacute o movimento espontacircneo gratuito portanto sem razatildeo alguma para ser ou natildeo ser de irromper de vir agrave ou para a luz isto eacute aparecer e assim pocircr-se e impor-se Este assim imperar enquanto e como espontacircneo aparecer eacute o poder Esta banalidade esta trivialidade eacute um grande pensamento uma grande visatildeo ou sacada ― enfim uma grande experiecircncia inspirada nos gregos inauguradora fundadora de uma trajetoacuteria de um percurso ou de uma histoacuteria de pensamento a saber o de Nietzsche o pensamento de vida enquanto e como vontade de poder E grande aqui estaacute dizendo radical essencial Bem a isso a tal experiecircncia ou sacada segundo o proacuteprio Nietzsche para melhor dizecirc-la e formulaacute-la portanto para melhor pensar o acontecimento vida Nietzsche denomina vontade de poder Antes vontade para o poder ― ldquoWille zur Machtrdquo E por que vontade

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Heidegger lendo vontade de poder inicialmente faz uso de um meacutetodo nietzschiano o da caricatura ou seja o uso de caricaturar isto eacute de exagerar (com medida) para tornar visiacutevel Ver entrever ler entreler o sinal o aceno o sintoma e aiacute entatildeo exagerar para vir agrave luz para tornar-se visiacutevel Assim segundo este meacutetodo Nietzsche isto eacute vontade de poder se torna a uacuteltima palavra o uacuteltimo nome da metafiacutesica Mas com que direito isso eacute feito O que eacute visto entrevisto lido entrelido O uacuteltimo metafiacutesico quer dizer o uacuteltimo (o mais recente melhor o recentemente mais essencial mais radical) a ver a compreender e a postular toda articulaccedilatildeo e compreensatildeo de toda e qualquer realidade possiacutevel a partir de um fundamento constituiacutedo que atua que opera como causa como agente como sujeito Isso eacute de iniacutecio e grosso modo metafiacutesica Mas ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo quer tambeacutem e principalmente dizer o filoacutesofo o pensador que justo pela via de seu pensamento leva e eleva esta tradiccedilatildeo do fundamento da vontade de fundamento (ieacute igualmente de verdade pois trata-se aqui de verdade do fundamento e de fundamento da verdade) agrave sua cumulaccedilatildeo agrave sua plenificaccedilatildeo ou melhor consumaccedilatildeo Ou seja o filoacutesofo o pensador que esvazia completamente esta tradiccedilatildeo porque a enche toda a cumula maximamente isto eacute faz com que ela possa venha a poder tudo que ela pode poder No caso tal fundamento assim constituiacutedo eacute a vontade entendida como vontade de (para o) poder onde poder se torna o poder de controle de asseguramento de caacutelculo enfim o modo proacuteprio de ser da teacutecnica moderna Natildeo ― isso eacute demais Nietzsche vendo e pensando isso e assim Eacute demais Eacute erro E se natildeo eacute miopia ou coisa de vesgo deve ser maacute vontade Logo Nietzsche que eacute o mais contundente e agudo criacutetico de sujeito de substacircncia de causalidade de eu seja psicoloacutegico seja transcendental Isso esta fala de Heidegger eacute desvio eacute erro e com laivos de

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maacute vontade de maacute feacute Mas vamos agrave caricatura Concedamos-lhe um creacutedito

Lendo Nietzsche Heidegger vecirc e acentua isto eacute para evidenciar ou tornar visiacutevel exagera superdimensiona na caricatura o modo como a tradiccedilatildeo vindo agrave fala hoje aqui e agora ou seja enquanto e como noacutes herda Nietzsche isto eacute como a tradiccedilatildeo que eacute essencialmente a metafiacutesica hoje interpreta ou se apropria de Nietzsche Ouccedila-se de vontade de poder Interpretar eacute sempre apropriar E a-propriar eacute sempre trazer ou levar para um proacuteprio No caso eacute o proacuteprio que eacute a metafiacutesica ou seja a sua identidade o seu modo de ser que eacute ver entender articular e expor o que quer que seja desde a necessidade do fundamento entendido e definido como fundamento inconcusso e este como causa e esta como substacircncia ou sujeito E o modo como na modernidade cartesiana este fundamento se concretiza eacute o modo do sujeito ou da sujetidade do eu do cogito que pode que precisa ser lido e entendido como vontade no sentido da exposiccedilatildeo ou melhor da auto-exposiccedilatildeo desta sujetidade autocircnoma que em se expondo ou se objetivando de tudo se apropria e se apodera (interpreta) e assim tudo iguala ou nivela a si proacutepria A este processo metafiacutesico de compreensatildeo e de definiccedilatildeo ou determinaccedilatildeo de realidade a modernidade denomina constituiccedilatildeo objetivaccedilatildeo Melhor constituiccedilatildeo ou estruturaccedilatildeo como ou desde accedilatildeo ou atividade do sujeito (eu consciecircncia autocircnoma) Justo esta accedilatildeo ou atividade do sujeito chama-se objetivaccedilatildeo ou a colocaccedilatildeo do real como objeto ou objetividade E a esta accedilatildeo ou atividade deste sujeito do sujeito moderno denomina-se igualmente vontade agrave medida que este processo de constituiccedilatildeoobjetivaccedilatildeo marca o eu quero como accedilatildeo ou atividade do cogito do ego cogito ― ego cogito = ego volo Vontade aqui eacute pois a accedilatildeo a atividade do eu transcendental (consciecircncia autocircnoma) se expondo se objetivando e agrave medida que assim constitui

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toda e qualquer realidade como objetividade diz eu (transcendental subjetividade autocircnoma vontade) quero

Neste horizonte desde esta perspectiva ou interesse (o mundo moderno) eacute ouvida isto eacute eacute interpretada ou apropriada a fala de vontade de poder A vontade entendida como a accedilatildeo ou a atividade constituidora e objetivadora do eu ou da consciecircncia autocircnoma (o sujeito moderno) eacute a oacutetica o sentido a partir do(a) qual tudo para a modernidade eacute visto estruturado ― sub-visto e sub-entendido Ainda caricaturando eacute mais ou menos como se a modernidade o cartesianismo ― isto eacute noacutes ― ao ouvir a fala nietzschiana de vida como vontade de (para o) poder dissesse ldquoAh este Nietzsche eacute dos nossos Eacute nosso par Falemos conversemos inter parisrdquo

Desde este lugar ou interesse esta tradiccedilatildeo este ldquoenvio histoacutericordquo na fala de Heidegger ouve a seguinte pergunta posta por Nietzsche pela boca do Zaratustra ldquoQuem deve ser o senhor da Terrardquo1 E imediatamente toda empertigada e peito estufado quase que em grito proclama ldquoEurdquo A esta tradiccedilatildeo absolutamente natildeo interessa isto eacute natildeo vecirc natildeo ouve natildeo pode ver e ouvir o possiacutevel outro registro o possiacutevel outro horizonte (de salto de passagem ou ultra-passagem) a possiacutevel outra musa que fala que ecoa e que ressoa na resposta de Zaratustra agrave sua proacutepria pergunta e que eacute senhor da Terra seraacute haacute de ser aquele ldquoque ouvir que obedecer ao sentido da Terrardquo ldquoAquele que permanecer fiel agrave Terrardquo2

ldquoTerra O que eacute isso Natildeo interessardquo Melhor ldquoA Terra sou eu Eu quero Isto eacute em constituindo em objetivando eu uso eu aproprio eu igualo eu nivelo Eu agrave medida que substacircncia sujeito sou o senhor quer dizer o dono o proprietaacuteriordquo Eu aqui estaacute pois dizendo a compreensatildeo metafiacutesica transformada em euconsciecircncia

1 Cf Assim falava Zaratustra IV O canto do noctiacutevago n4

2 Cf Assim falava Zaratustra Proacutelogo n 3

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autocircnomo(a) (isso eacute Descartes e o novo o novo modo de ser da modernidade) e que assim vai entoando o seu refratildeo narciacutesico tal como se vecirc e se ouve em ldquoCantate du Narcisserdquo de Paul Valeacutery e que se faz uma extraordinaacuteria chave hermenecircutica para esta mesma modernidade Este canto este refratildeo eacute como o chumbo derretido que vai sendo lenta e homeopaticamente vertido gota a gota pingado em nossos ouvidos de homens de hoje e de agora Como Na voz na cantilena da teacutecnica da teacutecnica moderna da tecno-ciecircncia ou da tecnologia Vontade de para o poder

Heidegger lendo entrelendo Nietzsche desde a tradiccedilatildeo que o herda que o recebe ou recepciona vecirc isso ou assim Para evidenciar para tornar visiacutevel agrave Klee calca decalca exagera e exacerba esta linha desta caricatura (nota em caricatura em arte mais se calca se decalca se exagera e se exacerba quanto mais leve e fino e sutil eacute o traccedilo a matildeo) de tal modo que vai chegar a esta extravagante afirmaccedilatildeo alienada e louca se natildeo estulta eou de maacute feacute aos ouvidos de um nietzschiano poacutes-moderno agrave la lettre com a doutrina do super-homem (do Uumlbermensch) o cogito cartesiano chega agrave sua extrema dominaccedilatildeo Super-homem aqui natildeo deve ser ouvido como possiacutevel para aleacutem do homem entenda-se para aleacutem do humanismo greco-cristatildeo e entatildeo para aleacutem do animal racional Natildeo Super-homem Uumlbermensch agora e aqui e assim fala do homem moderno o cartesiano o da autonomia do eu ou da consciecircncia poreacutem super-dimensionado (o ldquohomem unidimensionalrdquo de Marcuse) que entatildeo se faz maximamente isto eacute como tipo ou estrutura ldquolrsquohomme reacutevolteacuterdquo e ldquobiacutepede ingratordquo na forma da caricatura dostoievskiana Formas exacerbadas e pueris do homem moderno mais uma vez do tipo cartesiano agora enlevado e embevecido consigo mesmo sob a eacutegide do esplendor do monumentalismo e do gigantismo pex de Raskolnikov (seu Colombo seu Napoleatildeo) em Crime e Castigo ou de Kiriacutelov em Os Democircnios O modelo o archeacute-tipo eacute Kiriacutelov o matador de Deus e que assim no estertor

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da vontade rebelada (pura puerilidade do homem sem transcendecircncia) inverte a metafiacutesica no desespero e na exacerbaccedilatildeo do ldquoagora eu sou Deusrdquo ldquoagora eu querordquo Culmina e cumula o ego cogito = ego volo isto eacute o super-homem na visatildeo caricata ainda de Dostoievski e que eacute o retrato em ponto maior do homem moderno cartesiano iluminista Heidegger no rastro no eco no vaacutecuo de Dostoievski lecirc assim Heidegger ainda eacute maiusculamente dostoievskiano3 quando em Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica fala de um grave aspecto do niilismo europeu enquanto e como a despotenciaccedilatildeo do espiacuterito ldquodie Entmachtung des Geistesrdquo (perda de forccedila perda de poder do espiacuterito seu esvaziamento) agrave medida que hoje o espiacuterito se transformou em inteligecircncia em intelecto4 Isto a saber tal transformaccedilatildeo perfaz o nuacutecleo do diagnoacutestico dostoievskiano da Europa moderna do iluminismo ou do faustianismo europeu A ldquomeia ciecircnciardquo como diz com grande desprezo um personagem dostoievskiano em Os Democircnios

Eacute assim nesta direccedilatildeo que vontade de poder revigorada como retomada ou repeticcedilatildeo do igual no eterno retorno do igual isto eacute da proacutepria vontade enquanto e como o moderno ego cogito = ego volo ― enfim nesta direccedilatildeo e assim eacute que a modernidade se querendo a si proacutepria em insistente revigoramento ou revitalizaccedilatildeo de revolta (lrsquohomme reacutevolteacute) e de ingratidatildeo (ldquoo biacutepede ingratordquo)

3 Natildeo se estaacute aqui como acima de modo geral a insinuar ou a marcar alguma ldquoinfluecircnciardquo nova e desconhecida ouvida talvez em alguma alcova () de Dostoievski sobre Heidegger (ele o conhecia e muito bem segundo testemunho natildeo de alcova de Gadamer) e accedilular a acribia e a sanha da pesquisa a favor ou contra com documentos comprovaccedilotildees ocorrecircncias Ah ocorrecircncias Absolutamente este natildeo eacute o caso Nada do espiacuterito dos idiotas da objetividade Por que para que este desgaste Natildeo sejamos tolos e nem perdulaacuterios

4 Heidegger M Einfuumlhrung in die Metaphysik Max Niemeyer Tuumlbingen 1976 S 34 e 35 Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica Tempo Brasileiro Rio 1978 paacuteg 71 e 72 trad ECLeatildeo

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in hoc signo pois que a vontade se faz vontade de vontade (assim interpreta Heidegger o eterno retorno enfatizando o interesse moderno cartesiano) e molda e modela a essecircncia da teacutecnica moderna isto eacute da tecno-logia onde este ldquoloacutegosrdquo eacute o moderno o da autonomia do eu ou da consciecircncia transfigurada em vontade igualadora e niveladora de tudo ldquoNivelar montanhas aplainar tudo eacute um grande pensamentordquo diz e proclama Stawroguin isto eacute o gecircnio do mal (em ldquoOs Democircniosrdquo) o gecircnio da modernidade cartesio-iluminista faustiana na funda profunda compreensatildeo dostoievskiana com a qual comunga Heidegger

Eacute neste contexto nesta fervura hermenecircutica que na leitura aguda de Heidegger a modernidade precisava da fala de vontade de poder para ela proacutepria melhor se entender agrave medida que ela por esta via em auto-interpretaccedilatildeo desta mesma modernidade viesse toda agrave tona agrave luz em se concretizando ou se realizando como dona como senhora da Terra5 ldquoEu quero Eu querordquo ― esta

5Aristoacuteteles em Met I mutatis mutandis faz uma semelhante leitura dos preacute-socraacuteticos Uma leitura teleoloacutegica na qual ou desde a qual o comeccedilo archeacute se explicita se expotildee todo na sua cumulaccedilatildeo e assim vem agrave compreensatildeo tal como antes natildeo era possiacutevel No caso Aristoacuteteles retro-olhando para os preacute-socraacuteticos e constatando que todos queriam compreender a physis mas natildeo sendo eles capazes de formular este problema da physis isto eacute do movimento a partir da e como a articulaccedilatildeo das quatro causas na teoria por ele elaborada na sua Fiacutesica ― assim Aristoacuteteles diz insinua que ele a partir de sua teoria da causalidade estava em condiccedilotildees de entender os preacute-socraacuteticos melhor do que eles foram capazes de se entender do que eles podiam se entender a si proacuteprios ― ldquode certo modo esta foi a fala de todos por outro lado jamaisrdquo (Met I 10 993ordf)

Assim Heidegger lendo vontade de poder desde e como a proacutepria moderna metafiacutesica da subjetividade se apropria de tal doutrina a metafiacutesica dana vontade que se quer a si proacutepria mostra que assim eacute possiacutevel a esta modernidade se entender melhor do que ateacute entatildeo sem tal nome ou formulaccedilatildeo se entendia podia se entender Vontade de poder foi pois o nome o conceito que faltava agrave modernidade agrave contemporaneidade agrave metafiacutesica em sua consumaccedilatildeo ou cumulaccedilatildeo para que ela proacutepria se

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eacute sua fala seu grito sua convulsatildeo e seu espasmo enquanto e como nivelamento achatamento de toda a Terra segundo a bitola do seu querer da sua vontade A vontade a metafiacutesica moderna se faz teacutecnica e atua opera como intelecto (inteligecircncia) caacutelculo isto eacute controle e (auto) asseguramento E isso eacute nisso constitui-se poder ― o poder6 Este poder se torna o alvo a meta da vontade do querer de todo querer E assim como teacutecnica (= metafiacutesica na sua cumulaccedilatildeo) a vontade se faz senhora dona da Terra Tal como queria Descartes um saber uma ciecircncia ldquoque assim nos torna mestres e senhores possuidores da

fizesse mais clara para si mesma e desde si mesma Ela em se lendo em se interpretando (apropriando) na e desde a vontade de poder cumula-se ou consuma-se como exerciacutecio de gnoti seautoacuten do conhece-te a ti mesmo tal como Hegel via especulativamente (e natildeo moralmente) a filosofia ocidental a fenomenologia do espiacuterito ou a histoacuteria da experiecircncia da consciecircncia enquanto e como a histoacuteria do verdadeiro

Trata-se sim no caso de Heidegger de uma leitura de uma interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ainda que nada hegeliana Isto eacute tanto para Heidegger quanto para Nietzsche natildeo se trata de uma teleologia do verdadeiro [da consciecircncia do desdobramento (ldquoEntwicklungrdquo) da consciecircncia] mas antes do erro ― da histoacuteria de um erro diz Nietzsche Ou se se quer sim teleologia do verdadeiro (da consciecircncia para a auto-consciecircncia da subjetividade para ela proacutepria como vontade de vontade) poreacutem enquanto e como a teleologia de um erro a saber a proacutepria consciecircncia o proacuteprio verdadeiro (ldquodas Wahrerdquo na fala de Hegel) pois a consciecircncia o eu sujeito eacute erro o erro moderno O que Nietzsche chama histoacuteria de um erro eacute a mesma histoacuteria que Hegel denomina histoacuteria do verdadeiro de ldquodas Wahrerdquo Sim a mesma mas vista desde um outro lugar desde um outro horizonte (vida como vontade de poder) uma vez que ldquoum erro natildeo pode ser reconhecido como tal desde o solo do proacuteprio errordquo estaacute dito no Posfaacutecio a O Nascimento da Trageacutedia Sim a mesma histoacuteria mas que agora em virtude deste outro lugar deste outro interesse ou horizonte converte-se na histoacuteria de um erro porque eacute a do verdadeiro

6 Hoje tende-se a entender poder todo poder a partir do coletivo do social melhor do poliacutetico pois hoje impera a poliacutetica total o politicismo integral Sinal dos tempos Mas isso a saber poliacutetica total tambeacutem eacute teacutecnica Sobretudo isso eacute teacutecnica ― ciberneacutetica

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naturezardquo7 isto eacute da Terra E o que eacute a Terra O sentido da Terra Isso diz subdiz a modernidade o homem ou o tipo sem transcendecircncia todo soberba ― isso natildeo interessa A Terra sou eu Eu quero Assim fala assim grita a hybris moderna isto eacute a grima a sanha que somos ― intelecto (inteligecircncia) caacutelculo controle (auto) asseguramento A vontade do para o poder Este horizonte este pavoroso interesse se apropria se apodera de Nietzsche e assim vai usando e ab-usando deda vontade de poder Heidegger lecirc vecirc isso e com a lente de aumento da caricatura evidencia mostra torna este fenocircmeno visiacutevel Este fenocircmeno a saber a cumulaccedilatildeo da modernidade como cumulaccedilatildeo da metafiacutesica enquanto e como teacutecnica moderna que se expotildee enquanto e como vontade de vontade ― a vontade de (para o) poder intelecto controle caacutelculo certeza auto-asseguramento na da Terra Eacute assim que a metafiacutesica moderna se lecirc ou seja se interpreta a si mesma no pensamento de vida como vontade de (para o) poder Mas o que eacute a Terra

2 Nietzsche escreveu ldquoMeu gecircnio estaacute em minhas

ventas ― Mein Genie ist in meinen Nuumlsternrdquo8 Parecircntese ldquoNuumlsternrdquo satildeo ventas e natildeo ldquonarinasrdquo ldquoNarinardquo eacute coisa chique coisa fina Haacute ateacute aquela ldquogratilde-fina de narinasrdquo ― ah deixa praacute laacute No caso satildeo ventas mesmo Coisa meio muito de bicho que Nietzsche aqui agrave forccedila do estilo da forma quer enfatizar Fechemos o parecircntese Mas isso quer dizer ele sente no ar ele fareja Seguindo agora a este meacutetodo ldquodas ventasrdquo e natildeo mais o da caricatura Heidegger ocupando-se de Nietzsche sente no ar cheira fareja subjetivismo voluntarismo um certo heroiacutesmo um certo gigantismo da vontade Coisa insinuada velada Estranho

7 Cf Descartes Discours de La meacutethode La Renaissance Du Livre Paris 1935 sixiegraveme partie p 59

8 Cf Ecce Homo Por que sou um destino nr 1

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chamar ldquovontaderdquo ao movimento espontacircneo livre gratuito de pura doaccedilatildeo que eacute a vida a doadora plaacutecida Por que para que vontade se eacute inteiramente de graccedila sem querer Haacute algo de estranho no ar Foi mais ou menos seguindo a este meacutetodo que no Hamlet pela boca de Marcelo vai ser dito ldquoHaacute algo de podre no reino da Dinamarcardquo9 Bem mas Heidegger natildeo diz ldquoeu cheirordquo e nem ldquoeu farejordquo Ele diz ldquoescutordquo Mas aqui (eacute porque na filosofia e na Cavalaria Andante tudo eacute agraves avessas tudo eacute de cabeccedila para baixo) ldquocheirarrdquo ldquofarejarrdquo e ldquoescutarrdquo dizem o mesmo Que mesmo Eacute o meacutetodo o caminho ou a via que natildeo eacute o(a) ldquoda provardquo o(a) da demonstraccedilatildeo se se entende sob demonstraccedilatildeo o procedimento loacutegico-dedutivo argumentativo Hoje para se fazer uma tal prova uma tal demonstraccedilatildeo tambeacutem muito se recorre agrave pesquisa muitas vezes subentendida como esta peacuterola que eacute o levantamento o inventaacuterio e a enumeraccedilatildeo estuacutepida e tediosa das ldquoocorrecircnciasrdquo ― como se pensamento acontecesse pudesse acontecer em um escritoacuterio de contabilidade fazendo balancete Este farejar ou escutar revela algo que soacute se daacute agravequele que muito e bem frequenta no caso um pensamento um pensador Trata-se de ler como Nietzsche cobrava que ele proacuteprio fosse lido com paciecircncia vacum ruminando10 E este negoacutecio de paciecircncia vacum eacute coisa bem de suabo ldquoMuito frequentarrdquo ldquopaciecircncia vacumrdquo isto eacute dele do pensamento ou do pensador muito se ocupar muito preacute-ocupar-se lenta e longamente Sobretudo isso sem pressa O que aqui estaacute em questatildeo diria diz Nietzsche ldquonatildeo tem pressardquo ldquoA coisa o problema natildeo tem pressa ― em plena eacutepoca do trabalho da pressa somos amigos do lentordquo11 Assim com desde este

9 Hamlet I 4

10 Cf Nietzsche Aurora Prefaacutecio n 5

11 Cf Nietzsche Idem

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paciente e lento passa com agudeza e finura com perspicaacutecia a entre-ver a entre-ler isto eacute comeccedila a sacar a perceber ― a cheirar a farejar e isso eacute o ouvir ― tudo que estaacute silenciado calado retraiacutedo velado mas justamente assim vigorosa decisiva ou essencialmente presente atuante isto eacute co-pensando co-falando co-escrevendo Mais ou menos assim o meacutedico lecirc escuta ausculta os sintomas Nietzsche igualmente natildeo disse que ldquoo filoacutesofo eacute o meacutedico da humanidaderdquo Mas seguindo este meacutetodo Heidegger entre-lecirc e entre-vecirc ― ouve ― o co- ou sub-pensado o co- ou sub-dito o co- ou sub-falado E quanto a isso disso natildeo haacute prova demonstraccedilatildeo objetiva clara loacutegica indiscutiacutevel Aquela de acabar com o papo Ah isso eacute subjetivismo puro Quem assim objeta poreacutem quer objetivismo isto eacute jaacute fala desde o cacircnone desde a bitola sujeito x objeto O procedimento de Heidegger assim como tambeacutem o de Nietzsche natildeo eacute objetivo porque tambeacutem natildeo eacute natildeo pode ser subjetivo E isso porque subjetivo x objetivo objetivo x subjetivo haacute muito desde sempre no pensamento de Heidegger (ldquoSer e Tempordquo) se tornou caduco Trata-se de um modo de ser ― o da vida o do Dasein ― no qual esta disjunccedilatildeo ou confronto natildeo entra natildeo pode entrar Natildeo tem vez Natildeo cabe Natildeo eacute natildeo pode ser medida criteacuterio E isso desde que se fez evidecircncia que o homem e o real se fazem se datildeo enquanto e como Dasein (abertura ek-stase vida presenccedila) e este enquanto e como ser-no-mundo isto eacute inserccedilatildeo ciacuterculo afeto Neste contexto a medida o criteacuterio eacute sim o farejar o escutar E escuta eacute corpo Corpo e pensamento Melhor corpo como pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Assim se daacute assim se faz corpo Corpo e pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Talvez melhor pensamento como e desde corpo Isso eacute muito eacute demasiado nietzschiano Ser-no-mundo eacute escuta ― de sentido de mundo de loacutegos E isso eacute corpo Assim cresce espessa-se pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Mas

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deixemos isso na menccedilatildeo soacute na menccedilatildeo pois isso este tema jaacute eacute outra musa

Mas Heidegger lendo Nietzsche ― dele ocupando-se longa e lentamente grave radical e essencialmente ― fareja ouve subjetividade metafiacutesica da subjetividade no seu estertor na sua cumulaccedilatildeo ou plenificaccedilatildeo Algo que ele natildeo vecirc natildeo fareja natildeo ouve pex em Houmllderlin pois este jaacute teria feito a travessia deste deserto ― a metafiacutesica como moderno voluntarismo e sua cumulaccedilatildeo como niilismo Houmllderlin cronologicamente atraacutes no entanto jaacute deu jaacute teria dado um passo mais agrave frente mais radical mais essencial isto eacute mais a caminho de essecircncia ou de gecircnese E aqui um passo mais agrave frente quer dizer voltou mais afundou mais perpassou mais a vontade de fundamento e de verdade e assim atravessou ultrapassou conquistou ― o sem fundo o a-bysso de todo fundo de todo fundamento ou de toda vontade de fundamento (= metafiacutesica) Aqui ainda e ainda seguindo aquele agraves avessas proacuteprio da filosofia e do pensamento avanccedila aquele que mais funda e mais essencialmente volta retorna quer dizer repete retoma gecircnese ― comeccedilo ldquoAnfangrdquo ldquoarcheacuterdquo E nisso e assim nesta viagem de solavancos e sobressaltos retoma repete volta aquele que paacutera E vamos parar por aqui Depois voltamos a isso A verdade eacute que com este procedimento em questatildeo estaacute uma sinceridade proacutepria e real de autecircntico caminho de autecircntica experiecircncia

Heidegger pois lendo Nietzsche ocupado grave funda lenta e longamente neste percurso frequentando todos os interstiacutecios e meandros desta viagem fareja ouve um ranccedilo Claro aqui sempre neste mundo agraves avessas tambeacutem se ouve ranccedilo e natildeo soacute se cheira ou se degusta Este ranccedilo poreacutem eacute necessaacuterio absolutamente necessaacuterio e essencial (geneacutetico) isto eacute constitutivo e proacuteprio do movimento de cumulaccedilatildeo da hora de plenificaccedilatildeo ou cumulaccedilatildeo Marginais da experiecircncia (e marginal de

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experiecircncia eacute marginal de evidecircncia pois experiecircncia eacute evidecircncia) de um caminho gente sem paciecircncia diria Nietzsche veem num tal ranccedilo algo menor algo negativo uma deficiecircncia quando natildeo um insulto ou um denegrimento ldquoUacuteltimo metafiacutesicordquo Aos ouvidos destes marginais isso soa como insulto caluacutenia como se metafiacutesica fosse um insulto uma calunia coisa feia ― aids hanseniacutease Mas isso eacute coisa de pequeno de quem natildeo faz natildeo fez e se recusa a fazer um caminho Sim um caminho Metafiacutesica eacute coisa grande essencial humana demasiado humana a tal ponto que Nietzsche quando experimentava a sua mais solitaacuteria solidatildeo no tempo e na hora de cumulaccedilatildeo laacute pelos idos de 1888 em carta a Carl Fuchs escrita desde Turin a certa altura diz ldquominha velha moradia de veratildeo Sils-Maria a Alta Engadina m i n h a paisagem tatildeo distante tatildeo apartada da vida tatildeo metafiacutesica Como tudo se afasta se distancia Como tudo vai entredistanciando-se entreafastando-se Como a vida se faz silenciosa parada E ainda natildeo se eacute velho Somente filoacutesofo Somente agrave margem agrave parte Somente comprometidamente agrave parterdquo12 Somente metafiacutesico estaacute ele dizendo Somente agrave parte agrave margem isto eacute agrave distacircncia necessaacuteria para poder ver para a coisa fazer-se visiacutevel ― este eacute o compromisso o comprometimento meta-fiacutesico por excelecircncia A distacircncia com a qual e desde a qual os deuses veem e a teoria se faz A metafiacutesica eacute tambeacutem isso ela daacute tambeacutem e sobretudo isso Ou seja ela tambeacutem e sobretudo daacute o lugar e a hora irremediaacuteveis do homem agrave parte agrave margem ― comprometidamente agrave parte agrave margem Mas deixemos isso tambeacutem soacute na menccedilatildeo

E na hora em que preparava um prefaacutecio para algo que poderia ter se tornado um livro A Vontade de Poder ele

12 Cf Nietzsche F Werke IV Briefe (1861-1889) Carl Hanser Verlag Ulm 1977 herausg Karl Schlechta paacuteg 879880 Turin den 14 April 1888

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vai dizer ldquoAquele que aqui toma a palavra natildeo fez ateacute agora outra coisa senatildeo entrar afundar em si (ldquosich besinnenrdquo pensar-se refletir-se) como um filoacutesofo e um solitaacuterio por instinto que tem sua forccedila no ser agrave parte agrave margem na paciecircncia na demora no recuo e no retrair-serdquo De novo neste agrave parte agrave margem fora distante ― nisso mais uma vez estaacute reivindicando seu lugar sua paacutetria sua paisagem ― a metafiacutesica E ratificando este ldquouacuteltimordquo como fim e como cumulaccedilatildeo de caminho vai ainda dizer de si mesmo ldquo[aquele que aqui toma a palavra] como o primeiro niilista consumado da Europa que poreacutem jaacute viveu o proacuteprio niilismo ateacute o fim que o tem atraacutes de si de baixo de si fora de sirdquo13 ― aleacutem de si ldquoO primeiro niilista consumado da Europardquo diz o mesmo que o ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo Isso eacute condiccedilatildeo absoluta condiccedilatildeo para toda e qualquer superaccedilatildeo ― para toda e qualquer ultrapassagem virada Eacute preciso esgotar saturar exaurir Isso e assim eacute consumaccedilatildeo plenificaccedilatildeo Aiacute e assim se enche toda a histoacuteria da metafiacutesica (leia-se agora vontade de fundamento como vontade de verdade pois assim a moderna metafiacutesica se compreende se vecirc se quer Assim como vontade que se quer a moderna metafiacutesica cumpre seu destino de distacircncia mesmo de desfazer a distacircncia que o homem eacute14) justamente porque aiacute e assim ela se esvazia toda uma

13 Cf KGW VIII-2 11[411] S 432 A Vontade de Poder Prefaacutecio n3 Contraponto Rio 2008 paacuteg 23

14 Este desfazer a distacircncia a distacircncia que o homem eacute anulaacute-la eliminaacute-la ― principalmente isso eacute o projeto ou a vontade moderna a metafiacutesica moderna E isso agrave medida que ela promove e realiza o tempo a histoacuteria do tipo culpado e revoltado ― o biacutepede ingrato Eacute o sujeito moderno a autonomia do eu ou da consciecircncia apagando querendo apagar e desfazer esta constitutiva distacircncia agrave medida que se faz sujeito absoluto ideia absoluta que eacute quando transcendecircncia quando toda e qualquer diferenccedila eacute anulada na absoluta congruecircncia entre sujeito e objeto A oposiccedilatildeo eacute superada [ieacute instala-se e instaura-se a ldquoabsoluta congruecircnciardquo (Hegel)] pela anulaccedilatildeo da diferenccedila no e pelo poder absoluto do sujeito ― leia-se da autonomia do eu da consciecircncia que eacute que se toma como absoluta substacircncia Assim creio pode deve ser lido

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vez que assim ela natildeo pode mais nada porque pocircde tudo que podia poder De tanto encher-se cumular-se de tanto poder enfim se esvazia toda por isso e graccedilas a isso ― natildeo pode mais nada Vira crianccedila Isto eacute Uumlbermensch para aleacutem do homem do humanismo greco-cristatildeo do ldquoanimal racionalrdquo

Heidegger estaacute lendo sub-lendo ouvindo tudo isso pois soacute aiacute e assim jaacute eacute jaacute estaacute acontecendo tambeacutem virada isto eacute a passagem para um outro registro para um outro tocircnus para uma outra tecircmpera vital Tambeacutem Nietzsche se vecirc se sabe neste ponto de virada e sabe do ambiacuteguo (do duplo da duplicidade) deste lugar e desta hora Nietzsche sobretudo Nietzsche experimentou viveu o extraordinaacuterio o estraccedilalhador do ambiacuteguo desta hora deste tempo Aiacute assim e por isso ele enlouqueceu A loucura de Nietzsche eacute sua extra-ordinaacuteria experiecircncia de seu proacuteprio pensamento (o mesmo aconteceu a Houmllderlin outro explorador do escuro da noite desta hora deste tempo) do destino (= envio histoacuteria) do pensamento ocidental isto eacute da ldquoloacutegicardquo15 do niilismo ou da metafiacutesica pois niilismo eacute o nome para dizer a ldquoloacutegicardquo isto eacute necessaacuterio destino envio ou histoacuteria da metafiacutesica enquanto e como vontade de do fundamento Soacute gente ldquoruim da cabeccedilardquo soacute os ldquoidiotas da objetividaderdquo acreditam que Nietzsche tenha enlouquecido por conta de alguma siacutefilis contraiacuteda em algum bordel Por isso ele se diz tambeacutem um ldquopalhaccedilordquo um ldquobufatildeordquo um ldquoHanswurstrdquo Por isso ele com estranha clarividecircncia vai se referir agrave vontade de poder como ldquouma nova fixaccedilatildeo

o final delirante (principalmente o capiacutetulo 3 da terceira seccedilatildeo) de A Ciecircncia da Loacutegica de Hegel

15 Cf KGW idem A Vontade de Poder op Cit nr 4 paacuteg 24 onde se lecirc ldquopois o niilismo eacute a loacutegica de nossos grandes valores e ideais pensada ateacute o fim ― porque precisamos experimentar (pensar) o niilismo ateacute o fimrdquo Ou seja eacute preciso eacute absolutamente preciso ser o ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo Uacuteltimo e primeiro aqui perfazem um uacutenico e mesmo limiar um uacutenico e mesmo instante A mesma hora

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(ldquoFixierungrdquo) do conceito vidardquo16 Heidegger ouve estas coisas e as evidencia as exagera para tornar visiacutevel e assim evidencia a natureza a iacutendole do tempo que somos da eacutepoca que herda isto eacute que interpreta e apropria Nietzsche-vontade de poder

O Zaratustra poreacutem tem coisa Ele eacute o ldquonon plus ultrardquo Tudo que o precede diz Nietzsche eacute preparaccedilatildeo para ele Ele eacute ldquoo simrdquo O ldquogrande simrdquo E tudo que lhe sucede eacute ldquonatildeordquo Pode ser ldquonatildeordquo Depois do Zaratustra tudo praticamente tudo eacute ldquonatildeordquo pode ser ldquonatildeordquo a partir do ldquosimrdquo do grande ldquosimrdquo A partir daiacute do Zaratustra tudo eacute tudo pode ser ldquoa marteladasrdquo ldquona porradardquo Tudo tem tudo pode ter ou levar o subtiacutetulo de ldquoO Crepuacutesculo dos Iacutedolosrdquo ou seja ldquoComo se filosofa a marteladasrdquo E estranho no proacuteprio Zaratustra vontade de poder vai se embaccedilando se esfumando ainda que justo no Zaratustra ela tenha vindo toda agrave tona agrave evidecircncia ― aliaacutes justamente por isso graccedilas a isso se esfuma se esvai Em horas em instantes cruciais a fala nem eacute mais de vontade de poder pois parece esta se exauriu se esvaziou se fez supeacuterflua Entatildeo fala-se por exemplo de ldquoSem vozrdquo (ldquoOhne Stimmerdquo) de ldquoSem nomerdquo (ldquoder Namenloserdquo) de ldquodeus desconhecidordquo (ldquoder unbekannte Gottrdquo) Talvez seja por isso que Nietzsche vendo ouvindo entrevendo e entreouvindo esta metamorfose e cumulaccedilatildeo por volta de 1887 em uma anotaccedilatildeo que deveria servir de base para alguns ldquoprefaacutecios e posfaacuteciosrdquo fazendo um retrospecto por alguns de seus escritos vai dizer do Zaratustra ldquoPara com meu filho Zaratustra exijo respeito (ldquoEhrfurchtrdquo terser diante dele um temor nobre) e somente a uns poucos deve ser permitido ouvi-lo auscultaacute-lo (ldquoihm zuzuhoumlrenrdquo) Quanto a mim lsquoseu pairsquo poreacutem ― pode-se rir tal como eu mesmo o

16 Cf KGW VIII-1 p 321 A Vontade de Poder opcit nr 617 p 316

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faccedilo aliaacutes ambos pertencem agrave minha alegria agrave minha felicidaderdquo17

O Zaratustra o primeiro perfeito niilista europeu portanto aquele que tem em si todo o perfazimento do niilismo da histoacuteria que eacute o niilismo Tal perfazimento atravessamento eacute perfeiccedilatildeo (ldquoenteacutelecheiardquo) Eacute assim que ele eacute aquele que tem o niilismo atraacutes de si dentro de si aleacutem de si Aquele no qual desde o qual e como o qual jaacute se deu se daacute ldquoviradardquo O Nietzsche quando ri de si ele ri de vontade de poder18 Afinal Nietzsche eacute vontade de poder

17 Cf Nietzsche F KGW VIII-1 6[4] p 240

18 O riso eacute uma categoria no pensamento de Nietzsche e principalmente no Zaratustra Tal como a escuta isto eacute o corpo o riso eacute uma conditio sine qua non para entendecirc-los ― ao Zaratustra e a Nietzsche de modo geral Condiccedilatildeo para se entender a hora e o lugar deste pensamento desta experiecircncia histoacuterica Kant de modo lapidar na Criacutetica do Juiacutezo assim definiu o riso ldquoO riso eacute um afeto que resulta (que se daacute a partir de) da suacutebita transformaccedilatildeo de uma tensa espera (expectativa) em nadardquo (KUk sect 54 S 225 ndash Felix Meiner Verlag Hamburg 1974 S 190) Pergunta-se qual a grande espera qual a tensa expectativa que de repente se desfaz em nada e desde a qual entatildeo irrompe explode o riso na boca de Zaratustra-Nietzsche Lembremos Zaratustra natildeo eacute uma pessoa um indiviacuteduo natildeo eacute um personagem natildeo eacute uma tresloucada fantasia ele eacute a encarnaccedilatildeo (concretizaccedilatildeo) do pensamento do Ocidente que agora e aqui se faz vida pensada e compreendida desde e como vontade de poder-eterno retorno E tal pensamento sendo a encarnaccedilatildeo de tal desdobramento da histoacuteria da filosofia ocidental eacute vive na tensatildeo na espera ou na expectativa maior de verdade isto eacute de fundo de fundamento ― de vontade de fundo de fundamento enquanto e como vontade de verdade E eacute isso ― tal expectativa tal espera ou tal tensatildeo ― que de repente depois de todo o percurso de Zaratustra sua viagem isto eacute sua repeticcedilatildeo ou re-tomada da histoacuteria do Ocidente no e como seu decliacutenio ― enfim assim de repente num salto (ieacute subitamente) isso tal tensa espera se desfaz em nada Salta irrompe o proacuteprio nada como o fundo o fundamento da vontade de fundo e de fundamento E isso faz brotar faz explodir um grande riso despojado e despejado Des-fechado destampado aberto Sim uma baita gargalhada no do Zaratustra-Nietzsche Natildeo cabe aqui agora discutir e elaborar esta questatildeo esta extraordinaacuteria questatildeo do riso no pico no cume da experiecircncia da viagem do Zaratustra Isso natildeo cabe numa nota Fica a insinuaccedilatildeo e a sugestatildeo do tema decisivo

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Uma vez feita esta nova-uacuteltima ldquofixaccedilatildeo do conceito vidardquo ― para que serve mais Esgotou saturou Encheu Agora trans-borda Sobra Sobra tanto que jaacute natildeo presta para mais nada Jogue-se fora Eacute super-fluo Eacute demais Na vida o que eacute demais eacute para ser descartado jogado fora pois se natildeo intoxica envenena Esquecimento eacute ldquovis ativardquo ― eacute forccedila eacute vida Estaraacute aiacute dentro uma grande memoacuteria Uma memoacuteria que brota desde dentro de esquecimento do maior esquecimento Houmllderlin experimentou o brilho desta noite e o Hipeacuterion proclamou ldquoHaacute daacute-se um esquecimento de toda a vida de toda a existecircncia um emudecimento de todo nosso ser e eacute onde se estaacute tal como se tiveacutessemos tudo encontrado Haacute daacute-se um emudecimento um esquecimento de toda nossa vida de toda nossa existecircncia e eacute onde se estaacute tal como se tiveacutessemos tudo perdido uma noite de nossa alma onde nenhum brilho de uma estrela onde sequer um fogo-faacutetuo nos iluminardquo19 E isso eacute uma grande lembranccedila Eacute isso eacute esta estranha lembranccedila esta insoacutelita recordaccedilatildeo que ecoa que ressoa tal como eco tal como ressonacircncia de abismo ― de nada do nada do fundo da vida no pensamento de Nietzsche e de Heidegger Ambos parados celebram em

crucial para o pensamento-experiecircncia da virada da superaccedilatildeo do homem da metafiacutesica como a experiecircncia alegre jovial (a gaia ciecircncia) da e na aquiescecircncia do abissal do a-bysso Portanto a experiecircncia a evidecircncia da gratuidade de vida de existecircncia desde nada para nada Agrave guisa de fecho a esta longa nota lembramos esta liacutetica passagem do Zaratustra A fala eacute do homem mais asqueroso ― ele diz ldquoZaratustra vocecirc eacute um puto (ldquoDu bist ein Schelm) Uma coisa eu sei e aprendi de vocecirc oacute Zaratustra quem quer matar da maneira mais radical (ldquower am gruumlndlichsten toumlten Will) este ri Natildeo com ira natildeo com oacutedio (ldquoZornrdquo) se mata mas com riso ― assim falaste um dia Oacute Zaratustra tu velado (ldquoDu Verborgenerrdquo) ― tu destruidor sem oacutedio tu perigoso santo ― tu eacutes um putordquo (Assim Falava Zaratustra IV A festa do burro 1)

19 Cf Houmllderlin F Hipeacuterion ou o Eremita na Greacutecia tomo I livro I Forense Rio de Janeiro 2012 p 71 trad Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback

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cuidadosa escuta em auscultaccedilatildeo o brilho desta noite a fala deste silecircncio a eloquecircncia deste emudecimento20 Recordaccedilatildeo de abismo ― isso eacute uma grande recordaccedilatildeo Essencial inauguradora sempre reinauguradora ― fundamental Quando Heidegger fala de pensar como recordar e de pensar como agradecer natildeo seria isso mais ou menos isso que estaria em questatildeo a saber pensar como co-pensar este abisso recordar este abissal em tudo que se pensa se diz se fala Co-ver isso este modo de ser e esta experiecircncia em tudo que se vecirc Pensar como recordar natildeo seria sempre a cada passo recordar isso trazer sempre de novo para o coraccedilatildeo este modo de ser esta experiecircncia

3 Agora uma vez ldquoesquecidardquo a coisa isto eacute o

nome vontade de poder vamos agrave coisa mesma ― ldquodireckt zur Sache selbstrdquo Ocupemo-nos da ldquocoisardquo inteiramente sem nome ― de ldquoder Namenloserdquo21 Crua ― crua e nua No osso Por que para que chamar ldquovontaderdquo agravequilo que se daacute sem porquecirc e sem para quecirc Por que Para que este nome Bem mas antes e qual eacute a ldquocoisardquo isto eacute qual

20 Eacute isso sobretudo isso que escuto como eco como ressonacircncia e reverberaccedilatildeo no testemunho de ldquoBeitraumlgerdquo II justamente intitulado ldquoDer Anklangrdquo (Ressonacircncia reverberaccedilatildeo eco e tambeacutem lembranccedila)

21 Cf Assim Falava Zaratustra III Do grande anseio ― ldquoo Sem Nome (lsquoder Namenlosersquo ― obs Nietzsche diz ldquoder Namenloserdquo e natildeo como mais seria de se esperar ldquodas Namenloserdquo) para o qual somente cantos futuros encontraratildeo nomerdquo Heidegger em A Caminho da Linguagem fala do propoacutesito de deixar seu ldquocaminho de pensamento no sem nome ― um meinen Denkweg im Namenlosen zu lassenrdquo (Cf A Caminho da Linguagem Vozes 2003 p 96 Trad MC Schuback) E em Ensaios e conferecircncias ao se ocupar do comentaacuterio de um verso de Houmllderlin vai falar de ldquoo deus desconhecidordquo der unbekannte Gott que eacute resguardado como tal ao se revelar no velamento e como velamento ― eacute isso mesmo a essecircncia do misteacuterio (Cf Ensaios e Conferecircncias Vozes 2002 p 174 trad MC Schuback) Essas menccedilotildees visam tatildeo soacute marcar que ambos os pensadores caminham sim o mesmo caminho vivem sim a mesma hora

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realmente a questatildeo Qual realmente o problema Isso eacute seraacute o nosso tempo a nossa hora Talvez que isso seja uma coisa miacutenima insignificante Faz-se poreacutem grande por ser o imperativo da hora do tempo Do nosso tempo da nossa hora Soacute isso eacute preciso Nosso tema nosso problema seraacute herdar o proacuteprio desse nosso tempo dessa nossa hora Ser contemporacircneo de si mesmo eacute sempre uma difiacutecil tarefa Natildeo basta ser coetacircneo Isso eacute faacutecil porque inevitaacutevel Mas ser um verdadeiro um autecircntico contemporacircneo ― como Herdando E Herdando o que precisa ser herdado ― nosso tempo nossa hora Heidegger foi um tal herdeiro O desafio eacute que igualmente noacutes tambeacutem o sejamos Herdar autenticamente ser verdadeiramente herdeiro eacute o modo como realizamos nosso modo de ser irrevogavelmente histoacuterico

E qual o nosso tema Como a partir de que precisamos herdar o nosso tempo Como nosso tempo se nos envia nos chega O modo como o nosso tempo nos chega estaacute sempre a dizer o modo como o real nos eacute legado E eacute assim como o real que aqui e agora nos eacute legado que a filosofia precisa herdar isto eacute eacute assim que ela precisa insistir em ser filosofia promover-se e desse modo se concretizar como histoacuteria Ser contemporacircnea de si mesma E nosso tema nosso problema eacute o fim da modernidade o fim do cartesianismo o fim da razatildeo Nosso Mas isso jaacute eacute velho Jaacute foi de Nietzsche jaacute foi de Heidegger Sim e continua nosso pois este continua sendo nosso tempo nossa hora Em filosofia em histoacuteria um tempo uma hora uma eacutepoca ― isso dura muito Eacute um longo tempo longa duraccedilatildeo ou persistecircncia e que no entanto perfaz um instante Eacute sim o tempo de um instante E este tempo este instante eacute uma travessia cujo tempo de atravessamento natildeo eacute registrado no reloacutegio no calendaacuterio Ateacute um dois seacuteculos mas sempre um instante ― um aion

O fim da modernidade o fim da razatildeo O que eacute como eacute razatildeo No contexto ou no horizonte da

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modernidade do cartesianismo podemos dizer um modo de organizar a realidade isto eacute de tornar realidade realidade que se faz desde trecircs princiacutepios ou seja seguindo ou obedecendo basicamente a trecircs princiacutepios o de identidade o de natildeo contradiccedilatildeo e o de razatildeo suficiente O que quer que venha a se organizar a se compor ou a se estruturar sem violar a qualquer um destes princiacutepios diz-se eacute racional O projeto moderno de matematizaccedilatildeo do real eacute o projeto de antecipar numericamente estes trecircs princiacutepios isto eacute de algum modo tornaacute-los nuacutemeros ou seja sob o modo da antecipaccedilatildeo possibilitaacute-los e tornaacute-los vigentes enquanto e como quantificaccedilatildeo isto eacute enquanto e como caacutelculo Este procedimento como um todo perfaz a ideia de fundamento de fundamentar ou de lanccedilar boas bases Eacute esta a fundamentaccedilatildeo moderna E caacutelculo calcular aqui natildeo estaacute se referindo somente a uma operaccedilatildeo mental de natureza loacutegico-dedutiva uma demonstraccedilatildeo nestes tracircmites Caacutelculo aqui se refere principalmente a um contar com isto eacute ser ou ter instaurar ou criar condiccedilotildees preacutevias (via matematizaccedilatildeo ou antecipaccedilatildeo numeacuterica) para poder contar com ou seja previamente estabelecer condiccedilotildees de certeza ― de controle de seguranccedila de asseguramento ou melhor de auto-asseguramento Assim por esta via eacute concretizado o meacutetodo o caminho ou a proposta de rota de percurso do cartesianismo que potildee e impotildee a certeza como medida como criteacuterio de verdade isto eacute de realidade

Nosso tempo nossa eacutepoca experimenta o estertor deste projeto deste programa Eacute hoje a vigecircncia da teacutecnica o domiacutenio ou a dominaccedilatildeo da informatizaccedilatildeo como o deliacuterio do nuacutemero da numeraccedilatildeo do caacutelculo do controle e do asseguramento O impeacuterio do diacutegito Haacute algo de podre no reino da Dinamarca pois eacute fato que natildeo haacute vida sem um certo coeficiente de certeza mas eacute igualmente fato que natildeo haacute vida que possa se fazer soacute desde e como certeza Morte atrofia cristalizaccedilatildeo paralisaccedilatildeo

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Nietzsche jaacute tendo sido esta loacutegica ateacute o fim (pois esta eacute a loacutegica do niilismo a loacutegica da histoacuteria do Ocidente)22 vai cartesianamente isto eacute de maneira simples e clara contundente luacutecida e ateacute jocosamente fazendo trocadilho com a liacutengua alematilde para evidenciar uma radicaliacutessima experiecircncia do tempo do nosso tempo ― enfim olhando retro-olhando contemplando a histoacuteria da vontade de verdade da vontade de fundo e de fundamento ele vai dizer ldquoMan geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden gehtrdquo23 Traduz-se ldquoAfunda-se (ieacute vai-se a pique sucumbe-se) quando sempre se vai sempre se quer ir ao fundo aos fundamentos isto eacute aos princiacutepios agraves causasrdquo Isso eacute dito com laivos de riso de sorriso maroto Heidegger eacute meio muito caturro natildeo eacute muito de rir Ao inveacutes disso ele faz a exegese a deduccedilatildeo desta fala de Nietzsche Deduccedilatildeo isto eacute a minuciosa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica desta extraordinaacuteria experiecircncia Isso acontece por exemplo no seu curso do semestre de inverno 195556 em Freiburg intitulado ldquoO Princiacutepio de razatildeordquo ou o ldquoPrinciacutepio de fundamentordquo ― ldquoDer Satz vom Grundrdquo Satildeo treze aulas Um extraordinaacuterio percurso Percurso Aquilo natildeo anda Eacute um espantoso exerciacutecio do mesmo no parado como parado Mais intenso ― natildeo tatildeo intenso quanto aquilo soacute uma natureza morta soacute uma maccedilatilde soacute uma laranja de Ceacutezanne Sim e tal como uma tal natureza morta nada mais intenso nada mais concentrado mais compacto e tambeacutem nada mais transluacutecido nada mais diaacutefano nada mais liacutempido e limpo e inocente do que aquilo E isso aquilo eacute a histoacuteria do evidenciar-se do sem razatildeo do princiacutepio de razatildeo do sem fundo do princiacutepio do fundamento Tanta razatildeo tanto fundamento tanta vontade de fundo de

22 ldquoporque o niilismo eacute a loacutegica de nossos grandes valores e ideais pensada ateacute o fimrdquo ― KGW VIII-2 11[411] S 432 ou A Vontade de Poder Contraponto Rio de Janeiro 2008 paacuteg 24

23 KGW VIII-2 11[6] S 252

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fundamento e de verdade ― ora por que Para que Por que tanta ingratidatildeo Natildeo haacute razatildeo para tanta razatildeo natildeo haacute fundamento para tanta fundamentaccedilatildeo E isso e esta constataccedilatildeo sem nenhum lamento sem nenhuma maacutegoa sem culpa Uma contida serena alegria Alegria e becircnccedilatildeo Alegria becircnccedilatildeo e gratidatildeo Redime-se o biacutepede ingrato Nada ― evoeacute Mais uma vez Mais uma vez e sempre Mais uma vez e sempre o que eacute dom daacutediva doaccedilatildeo Pura gratuidade Muito obrigado

E Heidegger paacutera por aiacute Por aiacute jaacute parou jaacute parara Nietzsche Ele enlouqueceu ele perdeu a razatildeo perdeu peacute e fundo e fundamento aiacute Aiacute nesta hora neste lugar Neste tempo ― sim o nosso tempo Aiacute nesta passagem nesta travessia daacute vau Seremos capazes de uma tal perda Seremos capazes de uma tal conquista Seremos capazes de sermos contemporacircneos de noacutes mesmos herdeiros do que se nos envia do que se impotildee que seja herdado ― a saber o nosso tempo o nosso tema Na corrida isto eacute no percurso que eacute a histoacuteria da filo-sofia da vontade de saber Nietzsche e Heidegger parece chegam empatadiacutessimos O photochart define o empate Teria sido isso uma corrida de cavalo Este tal de Ocidente esta tal de Europa seria algo como um hipoacutedromo Nietzsche nesta liccedila no meio desta refrega ― a histoacuteria do Ocidente da Europa ― e chegando a este ponto de culminaccedilatildeo (a hora de perder a razatildeo) considera que aqui agora ldquocom o maior esforccedilo da reflexatildeo eacute preciso superar a metafiacutesicardquo [ldquomit houmlchster Anspannung seiner Besonnenheit die Metaphysik (zu) uumlberwindenrdquo] e que aqui agora ldquofaz-se necessaacuterio um movimento para traacutes um retro-movimento de voltardquo (ldquoeine R uuml c k l auml u f i g e B e w e g u n g)rdquo para o qual soacute poucos muito poucos estatildeo preparados e dispostos ― a saber os dispostos ou aptos agrave maior tensatildeo ou ao maior esforccedilo da meditaccedilatildeo ― ldquodie houmlchster Anspannung der Besonnenheitrdquo E conclui ldquopois aqui tal como no hipoacutedromo() faz-se necessaacuterio dar a volta por sobre o fim

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da raiardquo24 ― isto eacute entatildeo assim re-percorrecirc-la re-tomando-a ou repetindo-a desde este ponto de cumulaccedilatildeo de virada Isso eacute decliacutenio ldquoUntergangrdquo ou seja o movimento que tal como o sol se faz para baixo para o fundo procurando tal como o sol iluminar ldquoo mundo de baixordquo o ldquoUnterweltrdquo ao fim do dia que eacute o Ocidente Assim Nietzsche experimenta e pensa virada o movimento de dar fundo ao fundo ao fundamento do Ocidente a metafiacutesica afundando abismando-se ― pois quem sempre vai ao fundo este a-funda ldquoMan geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden gehtrdquo O fundo o fundamento o comeccedilo ou archeacute natildeo tem fundo natildeo tem fundamento razatildeo de ser ou ateacute de natildeo ser Eacute salto e no salto gratuidade pura gratuidade O a-bysso o abissal

Heidegger fincado neste mesmo lugar e nesta mesma hora ― o lugar e a hora de perder a razatildeo o fundo o fundamento a verdade ― fala da necessidade ldquodo passo atraacutesrdquo ldquoder Schritt zuruumlckrdquo e formula ldquoO passo atraacutes de volta move-se desde dentro da metafiacutesica em direccedilatildeo agrave essecircncia da metafiacutesicardquo25 isto eacute em direccedilatildeo ao sem fundo da vontade de fundamento ao sem razatildeo do princiacutepio de razatildeo Heidegger paacutera aiacute A verdade eacute que aiacute neste ponto comeccedila e acaba o pensamento de Heidegger Ser e Tempo comeccedila aiacute ― jaacute comeccedila aiacute Mas viu-se esta eacute tambeacutem a casa de Nietzsche sua estalagem na viagem que eacute o Ocidente sua histoacuteria Aiacute Nietzsche tal como Heidegger paacutera e escuta ldquoO Zaratustra eacute o renascimento da arte do ouvir ― um pressuposto para elerdquo26 Parar e escutar ― 24 Nietzsche F Humano demasiado humano I nr 20 Eacute preciso ler a iacutentegra deste extraordinaacuterio aforismo A uacuteltima frase eacute de difiacutecil traduccedilatildeo pois de refinada cunhagem em alematildeo Ela soa ldquoum das Ende der Bahn herumzubiegenrdquo

25 Cf Heidegger M Die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik em Identitaumlt und Differenz Neske Tuumlbingen 1976 S 41

26 Cf Ecce Homo Por que escrevo tatildeo bons livros Assim falava Zaratustra n 1

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isso eacute ldquobesinnenrdquo ldquoBesinnungrdquo ou seja entrar afundar no sentido ateacute mesmo e sobretudo no sem sentido do sentido ― o a-bysso ― e isso eacute meditar Tal escuta tal meditaccedilatildeo eacute corpo se fazendo corpo A grande razatildeo E isso corpo se fazendo corpo eacute pensar Bem mas isso de ouvir como pensar eacute Heidegger quem fala Mas pensar como corpo se fazendo corpo desde e como ouvir isso tambeacutem eacute Heidegger27 E o mesmo Nietzsche que no Ecce Homo diz ser a arte do ouvir o pressuposto para se ler o Zaratustra escreveu igualmente em pleno tempo de geraccedilatildeo do Zaratustra ldquoAssim como a natureza natildeo procede segundo fins assim deveria o pensador natildeo pensar segundo fins isto eacute nada buscar nada querer provar ou contradizer mas tal como numa peccedila musical ouvir auscultar ele teria uma impressatildeo do quanto ou do quatildeo pouco ouviurdquo28 Pensar eacute ouvir Eacute fazer com que corpo se faccedila corpo isto eacute eacute entrar eacute afundar no sentido na hora E isso parado Natildeo eacute hora de avanccedilo de progresso O avanccedilo o progresso jaacute o foi do espiacuterito da consciecircncia da razatildeo ― a filo-sofia Isso eacute a vontade de saber de verdade Mais do que vontade cobiccedila avidez A hora agora eacute outra O imperativo agora eacute outro Parar Parar esperar escutar Afundar Ir sim ao fundo Quem sempre vai ao fundo aos fundamentos agrave verdade ― este afunda Aparece irrompe mostra-se e faz-se visiacutevel o a-byssal Como Mostrar-se do abismo do abissal Sim eacute a evidecircncia da presenccedila de uma ausecircncia ― enquanto e como ausecircncia E sem afatilde e sem sanha e sem vontade de luz de presenccedila Sem lamento sem acusaccedilatildeo sem falta ou como deficiecircncia carecircncia A clareza do escuro O brilho da noite Uma evidecircncia escura e do escuro No mais fundo no mais profundo esquecimento uma lembranccedila uma

27 A respeito de escuta e corpo cf Heidegger M Zollikoner Seminare Vittorio Klostermann Frankfurt 1994 S 1256 Seminaacuterios de Zollikon Vozes Petroacutepolis 2001 p 1234

28 Cf Nietzsche F KGW V-1 4[73] S S 447

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recordaccedilatildeo de nada de nada Assim seja Ameacutem Que becircnccedilatildeo Pura doaccedilatildeo Pura gratuidade Muito obrigado

Neste ponto nesta hora no imperativo desta hora parar eacute progredir Isto eacute parar aqui agora eacute assumir a hora e avanccedilar nela quer dizer nela afundar Numa socircfrega e desenfreada corrida para frente isto eacute na escalada do progresso do espiacuterito (= histoacuteria da filosofia da metafiacutesica) ― aiacute quem paacutera no e graccedilas ao simples fato de parar no e graccedilas ao puro e simples fato de ter ganho a disposiccedilatildeo ou a preacute-disposiccedilatildeo de parar (haacute daacute-se aiacute jaacute um salto) rompe com o impetuosismo de avanccedilar de progredir Passo atraacutes movimento de volta isso eacute parada eacute parar Imperativo de nosso tempo Na experiecircncia e na evidecircncia deste tempo desta hora Nietzsche escreve ldquoPressuposiccedilatildeo coragem paciecircncia nenhum lsquoretornorsquo tambeacutem nenhum afatilde ou furor de adiante para frenterdquo29 Quando Nietzsche na citaccedilatildeo fala de ldquonenhum retornordquo (ldquoRuumlckkehrrdquo) eacute no sentido de nenhum iacutempeto de voltar retornar entendido ou subentendido agora natildeo no sentido da volta como decliacutenio que aqui acima enfatizamos mas no sentido de ardor nostaacutelgico saudosista e salviacutefico de renascimento de redenccedilatildeo no e como anelo por restauraccedilatildeo de tradiccedilatildeo perdida dos bons e velhos valores perdidos esquecidos desvalorizados (grosso modo a metafiacutesica os valores tradicionais da ciecircncia da religiatildeo do cristianismo) Tal retorno tal renascimento costuma ser tiacutepico nestas horas de perda ― coisa tiacutepica de nostaacutelgicos saudosistas conservadores ― sim eunucos Mas tambeacutem nada praacute frente nada de pesquisa com o propoacutesito de preencher alguma lacuna e assim esclarecer resolver um problema premente do saber da ciecircncia Natildeo A hora eacute de parada O tempo eacute de espera Paciecircncia Sem ardecircncias sem iacutempetos de progresso assanhado ou de regresso nostaacutelgico Tempo hora de espera e de escuta Isso eacute coragem Isso eacute a

29 KGW VIII-1 7[54] S 321 ou A Vontade de Poder opcit nr 617 p 317

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verdadeira assunccedilatildeo da hora do tempo Paradoxalmente isso mesmo a saber o passo atraacutes a parada ― justo este tempo de passagem e de virada eacute tempo eacute hora de decliacutenio de ldquoUnter-gangrdquo a descida ao fundo para assim retomar o fundo do fundo ou do fundamento que entatildeo se evidencia (a experiecircncia da hora evidencia isso e assim) como o sem fundo o a-byssal Comeccedilo (archeacute) eacute suacutebito i-mediato sem fundo sem porquecirc ou para quecirc ― a-byssal Espera e escuta ― sobretudo a atitude de escuta isto eacute de sintonia e de sincronia de consanguinidade com a coisa com a questatildeo mostra revela este sem fundo de todo fundo o sem fundamento de todo fundamento A gratuidade e na gratuidade a inocecircncia o sem querer Sem fundo sem Deus de graccedila puro dom gratuidade Este ponto de culminaccedilatildeo esta plenitude este zecircnite do dia que eacute o Ocidente (a Europa a filosofia a vontade de luz) a evidecircncia proporcionada pela experiecircncia de decliacutenio ― esta eacute a situaccedilatildeo de passagem de transiccedilatildeo enfim a ponte sobre a qual estaacute sobre a qual eacute Zaratustra Aiacute sua casa sua morada seu lugar A casa a morada o lugar do tempo da hora Haacute que habitaacute-la moraacute-la Assim seja Amor fati Incipit Zaratustra

E neste ponto comeccedila Heidegger Comeccedila e acaba Incipit Ser e Tempo Aiacute nesta hora neste tempo ― aiacute sim alfa e ocircmega Eacute o imperativo do tempo da hora Cada filosofia cada pensamento e cada filoacutesofo ou pensador tem seu tempo sua hora seu imperativo ou sua necessidade Na assunccedilatildeo de tal imperativo de tal necessidade estaacute a sua liberdade Heidegger foi este herdeiro Por isso contemporacircneo ― e natildeo soacute um mero coetacircneo que eacute soacute da mesma idade ― de seu tempo E assim por isso colocando e re-cordando esta hora este lugar e esta tarefa de espera e de escuta ― a tarefa posta e imposta pela parada pelo tempo de parar ― definindo seu lugar e sua hora Heidegger abre seu programa de trabalho de vida apoacutes cumprido o intransferiacutevel percurso de Ser e Tempo intitulado ldquoContribuiccedilotildees para a Filosofia (do evento ou do

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acontecimento apropriante)rdquo dizendo a hora eacute de passagem de transiccedilatildeo (ldquoZeitalter des Uumlbergangsrdquo) o tempo a hora eacute ldquode uma transformaccedilatildeo ou transfiguraccedilatildeo de essecircncia do homem que passa de ldquoanimal rationalerdquo para Da-sein30 isto eacute para homem entendido enquanto e como ser-no-mundo (abertura ek-stase e nisso e assim presenccedila) ou seja a passagem e a re-tomada da evidecircncia do a-byssal de transcendecircncia ou de doaccedilatildeo de irrupccedilatildeo gratuita Aiacute e assim a Terra a paacutetria ― a Terra do homem dos homens lembrando e parafraseando Saint Eacutexupeacutery

Eacute o mesmo lugar a mesma hora a mesma casa de Nietzsche Eacute Uumlber-gang eacute um ir por sobre transiccedilatildeo passagem (ponte Bruumlcke) que eacute um ir ao e para o fundo Unter-gang decliacutenio a-fundar Eacute o ponto o posto de guarda do Zaratustra a passagem (ldquoUumlbergangrdquo) a ponte (ldquoBruumlckerdquo) homem-superhomem (ldquoMensch-Uumlbermenschrdquo) O homem isto eacute o homem do humanismo greco-cristatildeo isto eacute o ldquoanimal rationalerdquo e o para-aleacutem-do-homem greco-cristatildeo em ultra-passagem e superaccedilatildeo do homem (ldquoanimal rationalerdquo) o que Nietzsche pensa desde e como vida corpo ― crianccedila Nietzsche e Heidegger estatildeo na mesma hora na mesma viagem no mesmo desafio E aiacute nesta hora neste lugar ambos param precisam parar pois este eacute o imperativo da hora do tempo Aiacute montar guarda Parar guardar velar Sim na escuta e na espera desde espera e escuta em vigiacutelia resistir suportar Guardar velar Haacute aiacute sim coisa de burro De burro e de camelo Eacute no deserto eacute desde dentro do deserto que vem que se faz que se daacute transformaccedilatildeo transfiguraccedilatildeo virada ou passagem para um outro registro

30 Cf Heidegger M Beitraumlge zur Philosophie (Vom Ereignis) Vittorio Klostermann Frankfurt 1989 GA Band 65 S 3 A passagem de Heidegger reza ldquoim Zeitalter des Uumlbergangs was einem Wesenswandel des Menschen aus dem lsquovernuumlnftigen Tierrsquo (animal rationale) in das Da-sein gleichkommtrdquo

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ou outra regecircncia ― metanoacuteia A hora eacute esta o tempo eacute este ― parar esperar ouvir

Esclareccedilamos um pouco aqui nesta hora e neste posto neste poacutertico um pouco de teimosia de caturrice ― isso eacute bom Coisa de suabo que Nietzsche em algum lugar com humor detectava em Hegel conterracircneo suabo de Heidegger Eacute algo do tipo da tecircmpera de Ceacutezanne que em carta a Zola natildeo hesita em se dizer ldquoSou pesado lento e burrordquo Isso eacute uma tecircmpera um tempero e um tempo O tempo O nosso tempo Se acharmos a imagem de Ceacutezanne meio pesada meio agressiva pode-se pedir que aqui agora se seja um pouco mineiro Eacute lembrando uma fala de Guimaratildees Rosa a respeito da mineirice Em algum lugar31 ele fala do mineiro do tipo mineiro meio capiau meio matuto como um cara que vai devagarzinho picando o fumo de rolo no covo da matildeo e matutando vai assim ldquofazendo a contabilidade da metafiacutesicardquo e ponderando sempre matutando ldquoque agitar-se natildeo eacute agirrdquo Uma admiraacutevel capacidade de resistecircncia de suportaccedilatildeo agrave monotonia

Somos seremos capazes desta paciecircncia Seremos dignos herdeiros Para tanto poreacutem eacute preciso jaacute ter conseguido a condiccedilatildeo para ser nesta espera nesta escuta neste matutar melhor neste meditar nesta meditaccedilatildeo ― ldquoBesinnungrdquo Eacute preciso jaacute ter perdido a pressa do nosso tempo que na vida do espiacuterito antes do intelecto chama-se pesquisa Essa eacute nossa agitaccedilatildeo Claro isso natildeo eacute accedilatildeo pois natildeo eacute a paciecircncia da espera e da escuta desde as quais com as quais ldquouma essecircncia uma forccedila eacute levada agrave sua cumulaccedilatildeo ou perfeiccedilatildeo enteacutelecheiardquo32 Para tanto eacute preciso jaacute ter perdido a pressa isto eacute a sanha a hybris Paradoxal absolutamente paradoxal mas para saltar eacute preciso jaacute ter saltado eacute preciso

31 Cf Rosa Guimaratildees Minas Gerais em Ave Palavra Joseacute Olympio Rio 1978 paacuteg 217 e seg

32 Cf Heidegger M Sobre o humanismo abertura do texto

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jaacute ter entrado na impulsatildeo do salto Mas a pressa a sanha que na vida do espiacuterito tornado inteligecircncia ou intelecto se faz se fez pesquisa ― isso eacute a marca do tempo a essecircncia de um tempo o nosso que estaacute se cumulando que estaacute vindo agrave perfeiccedilatildeo enquanto e como histoacuteria da metafiacutesica enquanto e como histoacuteria da razatildeo teacutecnica O fruto estaacute enchendo-se todo Eacute esta essecircncia que estaacute vindo agrave cumulaccedilatildeo E diz Nietzsche a coisa natildeo tem pressa E continua ldquofalamos e escrevemos de modo tal que aquele que tem pressa eacute levado ao desespero agrave desesperaccedilatildeordquo33

4 A confusatildeo eacute geral Mal-entendido um

verdadeiro quiproquoacute Eruditamente um ldquoquid pro quordquo tomando uma coisa pela outra e a outra pela uma Comeccedilou-se a falar a respeito da leiturainterpretaccedilatildeo de Nietzsche por parte de Heidegger A expectativa era que se esclarecesse alguma coisa a respeito deste tema A certa altura comeccedilou-se a misturar tudo a ponto de parecer que se estaacute a dizer que Heidegger e Nietzsche satildeo ldquoa mesma coisardquo ― a noite escura em que todos os gatos satildeo pardos A verdade eacute que se comeccedilou falando de Heidegger e (+) Nietzsche e de repente este ldquoerdquo (+) foi abolido e sobrou soacute um problema que este sim eacute comum e constitui um mesmo seja para Nietzsche seja para Heidegger ― seja para noacutes Passagem transiccedilatildeo ponte virada ― outro registro outra regecircncia A hora o tempo que precisam tambeacutem ser os nossos No Zaratustra ouvimos ldquoQuem tem uma meta (ldquoein Zielrdquo) e um herdeiro este no tempo certo quer a morte para o herdeiro e a metardquo34 Importante decisivo eacute o problema satildeo os problemas ― isso precisa fazer-se meta Nomes Autores e autorias Sejamos nobres e dignos Haacute que ter meta e que aconteccedila o herdeiro Que cresccedilam e apareccedilam meta e herdeiro pois

33 Cf Nietzsche F Aurora Proacutelogo nr 5

34 Assim Falava Zaratustra I Da morte livre (voluntaacuteria)

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A filosofia tem ou eacute autores nomes doutrinas Ou antes interessa deve interessar sobretudo os problemas e natildeo os autores nomes Autorias Afinal nesta hora de passagem de virada eacute Nietzsche ou Heidegger Quem tem razatildeo Ora mas a hora natildeo eacute justamente de perder a razatildeo de natildeo ter razatildeo Aqui agora quem tiver razatildeo estaacute carregado demais sobrecarregado ― um burro traacutegico ldquoAgraves vez quem num tem razatildeo eacute qui taacute cum elardquo disse em algum lugar em alguma hora um catrumano um meio muito louco meio virado ― meio muito iluminado E esta aqui e agora eacute a hora segundo a qual quem natildeo tem razatildeo eacute que estaacute com ela E como dizem ainda louco mesmo eacute quem perde tudo menos a razatildeo Agrave luz disso ateacute jaacute convocaram uma Cruzada para ressuscitar o Quixote O Louco35 Nietzsche Heidegger ― eles em boa hora no tempo certo perderam a razatildeo a verdade ldquoO novo em nosso atual posicionamento em relaccedilatildeo agrave filosofia eacute uma convicccedilatildeo que nenhuma eacutepoca jamais teve o fato que noacutes natildeo temos a verdade Todos os homens anteriores tinham a verdade mesmo os ceacuteticosrdquo36 escreveu Nietzsche se autodiagnosticando Tambeacutem Heidegger natildeo tem mais a verdade o fundamento a razatildeo Ele assim como Nietzsche ganhou sua hora seu tempo Foi herdeiro ― bom digno herdeiro Foi contemporacircneo de si mesmo A hora continua a mesma o tempo eacute o mesmo ― sejamos contemporacircneos de noacutes mesmos Sejamos herdeiros bons herdeiros em boa hora E a hora o tempo eacute de parar Parar esperar escutar Um tempo e uma hora em que se impotildee que nos enchamos de nada ― o nada do fundo do fundamento da razatildeo E natildeo haacute pressa A coisa natildeo tem pressa Natildeo cabe pesquisa ― natildeo eacute o caso Superaccedilatildeo do homem superaccedilatildeo da metafiacutesica virada ― quem tem

35 Cf Unamuno M de Vida de Don Quijote y Sancho Espasa-Calpe SA Madrid 1975

36 Cf KGW V-1 3[19] S382

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razatildeo Eacute Heidegger ou Nietzsche Ora isso natildeo interessa Natildeo eacute o caso Por que para que registro de nascimento ou atestado de oacutebito Por que para que direito autoral Registro no ECAD Fiscalizaccedilatildeo Natildeo eacute bom natildeo ter vergonha de ser de ldquoescuro nascimentordquo ldquoOacuterfatildeo de papel passadordquo eacute o soacute que soacute se vecirc nesta Terra na Terra dos homens Esta certidatildeo a Terra lavra esse papel ela passa

Mais ou menos pelos comeccedilos de 1888 cheio de muito silecircncio Nietzsche escreve a seguinte anotaccedilatildeo que devemos considerar gravemente ldquoYo me sucedo a mi mismo ― digo eu tal como aquele velho em Lope de Vega sorrindo pois tal como ele eu pura e simplesmente natildeo mais sei o quatildeo velho jaacute sou e o quatildeo jovem ainda sereirdquo37

E Heidegger num curso sobre Schelling falando do fracasso deste disse ldquoNietzsche o uacutenico pensador essencial depois de Schelling fracassou em sua obra A Vontade de poder Mas estes dois grandes fracassos (Schelling e Nietzsche) destes dois grandes pensadores natildeo eacute nenhuma falha e nada negativo Ao contraacuterio Eacute o sinal do advento de algo totalmente outro o raio de um novo comeccedilordquo E continua logo abaixo ldquoNietzsche certa vez na eacutepoca de sua criaccedilatildeo mais intensa e de sua mais profunda solidatildeo escreveu em um exemplar de seu livro Aurora os seguintes versos como dedicatoacuteria

Quem um dia tem muito a anunciar e a proclamar Este silencia muito e fundo em si (lsquoSchweigt Viel in sich hineinrsquo) Quem um dia tem de fazer espoucar o raio Este precisa por muito tempo ser nuvem (1883)rdquo38

37 Cf KGW VIII-2 11[22] S 256

38 Cf Heidegger M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der Menschlichen Freiheit (1809) Max Niemeyer Tuumlbingen 1971 S 4

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Num fracasso num grande fracasso haacute sempre uma conquista uma grande conquista Grande isto eacute radical essencial E isso tambeacutem por ser a experiecircncia e a evidecircncia de quem percorreu um caminho proacuteprio ― proacuteprio ieacute necessaacuterio e assim cunhando modelando a proacutepria liberdade Soacute os grandes e os soacutes os solitaacuterios (ldquoAs matildeos do solitaacuterio erram menosrdquo disse Rilke) fracassam grandemente quer dizer essencial visceral e vitalmente Fundamente Grande insistamos aqui natildeo eacute grandatildeo gigante ― eacute soacute sincero proacuteprio Isso costuma ser ateacute muito pequeno ― discreto soacutebrio recatado silencioso Pobre Toda leitura toda interpretaccedilatildeo nietzschiana de Heidegger eacute a homenagem e o tributo de um herdeiro O herdeiro de um fito de uma meta de um destino isto eacute de um envio histoacuterico De uma liberdade que se faz Assim pois se herda e se homenageia necessidade e liberdade Honra-se assim a coisa a questatildeo Isso e soacute isso importa isto eacute pesa Eacute coisa de quem tem olhos e coraccedilatildeo mansos agradecidos Nietzsche-Heidegger ― isso eacute uma uacutenica e mesma viagem uma uacutenica e mesma experiecircncia ldquoErfahrungrdquo Uma soacute hora Soacute isso importa soacute isso interessa

Vejamos a coisa assim Sejamos faccedilamo-nos agrave altura da coisa de uma coisa grande de uma hora grande que tambeacutem eacute que tambeacutem precisa ser a nossa Ponhamo-nos agrave sua altura vejamo-la desde o seu lugar proacuteprio Lugar e hora proacuteprios ldquoCoisas grandes exigem que delas se fale com grandeza ou que se calerdquo39 De uma coisa de toda e qualquer coisa fala-se com grandeza quando nos colocamos agrave sua altura isto eacute no seu lugar e na sua hora e entatildeo desde aiacute realmente a partir da proacutepria coisa da proacutepria questatildeo se fala se diz Isso eacute ser justo com as coisas com a coisa Honraacute-la

Petroacutepolis 15 de julho de 2013

39 Cf KGW VIII-3 15[118] S 271 ou 18[12] S 335 ou Vontade de Poder opcit n 1 paacuteg 23

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APEcircNDICE (Na verdade advertecircncia preacutevia) Questotildees a considerar Por que Heidegger interpreta Nietzsche tal como interpreta Isto eacute o que ele quer com esta sua interpretaccedilatildeo Eacute preciso esclarecer como ponto de partida certos pressupostos Coisas meio muito acacianas isto eacute que seriam solenemente endossadas pelo conselheiro Acaacutecio Poreacutem noblesse oblige a) Heidegger natildeo eacute ingecircnuo e nem idiota ou retardado mental Esta observaccedilatildeo se faz importante pois com frequecircncia satildeo feitas consideraccedilotildees e objeccedilotildees agrave interpretaccedilatildeo heideggeriana que nos levam a sub-por que ele seja ingecircnuo ou estuacutepido Heidegger segundo tais consideraccedilotildees fica parecendo um M Homais ou talvez um M Jourdain b) Heidegger natildeo eacute mal-intencionado mau-caraacuteter ieacute pex ele natildeo interpreta Nietzsche subestimando-o para que entatildeo ele Heidegger se superestime Ou seja ele natildeo potildee Nietzsche para baixo para entatildeo ele subir em cima e aparecer Isso seria pequeno mesquinho No caso isso natildeo eacute medida Por exemplo ele natildeo fala de Nietzsche como ldquoo uacuteltimo metafiacutesicordquo como se isso fosse um insulto um denegrimento uma deficiecircncia ou insuficiecircncia (coisa estulta feia e menor) para entatildeo ele aparecer como o primeiro natildeo metafiacutesico ou poacutes-metafiacutesico isto eacute como o primeiro redimido ou ressurgido dentre os mortos na e da histoacuteria

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Feita esta limpeza de terreno este acerto de rumo voltemos a perguntar Por que Heidegger interpreta Nietzsche tal como interpreta O que ele quer com isso isto eacute com tal interpretaccedilatildeo Estas consideraccedilotildees devem nortear a leitura do texto que precede Isso eu tentei dizer no texto

A Escrita-Grito do Louco

Aproximaccedilotildees e ressonacircncias da

filosofia de Nietzsche na escrita-

vida de Artaud

Ikaro Max Batista de Arauacutejo1

Quanto mais longe se vai mais pessoal e uacutenica se torna a vida A obra de arte eacute a expressatildeo necessaacuteria irrefutaacutevel definitiva dessa realidade uacutenica Nisso reside a ajuda prodigiosa que ela daacute agravequele que eacute forccedilado a produzi-la Isso explica de modo certo que devemos nos prestar agraves provas mais extremas (Carta de Rainer Maria Rilke)

Certamente a escrita pesa largamente no destino de alguns espiacuteritos Haacute sempre algo de incocircmodo ou de anormal na alma de quem escreve quase como se a constituiccedilatildeo neuroloacutegica deles fosse de outra natureza e tipo Esses homens os homens das letras os ldquohomens inteligentesrdquo (DOSTOIEacuteVSKI 1989 p11) contrapostos ao ldquohomem de accedilatildeordquo satildeo esses sofredores que possuem uma hiper-consciecircncia (ou consciecircncia hipertrofiada) que como uma faca na carne os estrangulam no momento oportuno e o dissuadem de atingirem de pronto seus objetivos colocando para eles questotildees impertinentes intoleraacuteveis mas ao seu ver extremamente necessaacuterias para a vida O homem de accedilatildeo ldquofundamentalmente uma criatura

1 Graduado como bacharel no curso Filosofia pela UFPB com a monografia intitulada ldquoA muacutesica como arte da reconstruccedilatildeo da cultura traacutegica em Nietzscherdquo orientando do Prof Dr Robson Costa Cordeiro Faz parte do Grupo de Pesquisa na aacuterea de esteacutetica filosoacutefica hermenecircutica e metafiacutesica

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limitadardquo cuja consciecircncia eacute ldquouma porccedilatildeo igual agrave metade ou agrave quarta parte de que eacute concedida ao homem culto de nosso seacuteculo XIXrdquo (Ibidem p14) natildeo tecircm entraves ou crises quanto agraves suas reais funccedilotildees e necessidades cotidianas Ele natildeo as coloca em questatildeo ou sob o microscoacutepio de qualquer saber mais preciso e desconfiado

Alguns espiacuteritos malogram em sua busca pela felicidade como eacute tida e difundida no senso comum Satildeo homens fundamentalmente doentes e em aberta hybris com o ambiente e consigo mesmos No entanto natildeo deixa de ser curioso e interessante como tais espiacuteritos nesse excruciante duelo em que sozinhos chegam a escancarar a nudez da situaccedilatildeo humana a sua real ausecircncia de fundo e de pontos de apoio soacutelidos atingem uma beleza de expressatildeo e de pensamento que torna todo o percurso infernal de suas vidas um detalhe da paisagem de suas descobertas essenciais

Nosso intento aqui natildeo seraacute ignorar a vida decerto mas jogar algumas luzes e projetar as sombras para uma apreciaccedilatildeo teatral do que a vida e a filosofia do pensador alematildeo Friedrich Nietzsche trouxe de estiacutemulo e abriu caminhos para o que o ator poeta e escritor francecircs Antonin Artaud viria a desenvolver tanto em vida quanto em obra Natildeo apenas em termos de verve e beleza ou termos de carnalidade expressiva mas em monstruosas dimensotildees de fuacuteria destrutiva e densidade de formulaccedilatildeo nos leva a aproximar as obras de pensamento compostas por Antonin Artaud e por Friedrich Nietzsche E fundamentalmente descaminhos do que era tido por instituiacutedo soacutelido e ldquoverdadeirordquo nos saberes e poderes modernos desde a fundaccedilatildeo da ciecircncia ocidental por Soacutecrates e Platatildeo

De onde vem a necessidade - esse turbulento imperativo - que leva tanto Nietzsche quanto Artaud a explodirem em lava incandescente enquanto escrevem Tem-se a impressatildeo de que ambos escrevem com uma fuacuteria

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indecorosa como se fossem dilapidar as folhas em branco fazecirc-las em pedaccedilos e senti-las sangrar sob suas penas Tanto um quanto outro queriam que suas obras fossem vivas ou fossem sua proacutepria vida O proacuteprio Nietzsche acabou por ser conhecido como o que constituiu primordialmente uma ldquofilosofia da vidardquo (FINK 1983 p9) Eacute por tal motivo que por exemplo sempre se tornou problemaacutetico classificaacute-los em gecircneros literaacuterios preacute-definidos O que os tornou facilmente alvo de mentecaptos obcecados com ideias antigas e paraliacuteticas Ao se deparar em 1888 com um criacutetico que o acusa de ldquomau estilordquo e ldquosem gosto para o fazer literaacuteriordquo Nietzsche em 10 de fevereiro responde natildeo sem ironia

O Senhor Spitteler tem uma inteligecircncia fina e agradaacutevel () ele fala apenas de Aesthetica meus problemas foram apenas deixados de lado ndash incluindo aiacute minha pessoa [] ldquoas frases curtas funcionam menos aindardquo (e eu burro que sou imaginei que desde os primoacuterdios do mundo ningueacutem tivesse dominado como eu a frase lapidar testemunha meu Zaratustra) [] meu interlocutor soacute tem olhos para o estilo aliaacutes um mau estilo e lamenta afinal que suas esperanccedilas no Nietzsche escritor tenham por conta disso se reduzido de maneira significativa Farei eu pois ldquoliteratura (ASTOR 2013 p249)

lsquoFarei pois ldquoliteraturardquorsquo Natildeo Pois ldquoeu natildeo sou

homem eu sou dinamiterdquo (NIETZSCHE 2008 p144) escreveria Nietzsche em 1888 em sua autobiografia literaacuteria E uma dinamite ou um divisor de consciecircncias ndash portador de uma ldquocrise como jamais houve outra na terrardquo - definitivamente natildeo pode fazer mera ldquoliteraturardquo e sim escrever atraveacutes de cataclismos apocalipses acontecimentos tsunacircmicos tatildeo enigmaacuteticos quanto a proacutepria natureza do caos

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Tanto Artaud quanto Nietzsche satildeo autores fascinantes rebeldes transgressores brilhantemente armados de intelectos profundos e de sensibilidade iacutempar No entanto apesar de alguma distacircncia que os separa e de caminhos diversos no campo da arte ou da escolha filosoacutefica penetramos em subterracircneos nos quais podemos apreender e sentir uma confluecircncia para aleacutem da derrocada psicoloacutegica dos dois grandes homens Os dois foram extremados niilistas inicialmente de inspiraccedilotildees romacircnticas pessimistas e traacutegicas E filosofaram com a vida vivenciando carnalmente as suas ideias Como se jaacute conhece tanto Artaud quanto Nietzsche foram julgados por seus contemporacircneos considerados loucos ainda em vida e morreram privados da razatildeo Anos depois eacute que suas obras foram revisitadas revistas criticamente e o tempo passou a validar muito de suas previsotildees

Percebemos nos dois autores que a acircnsia de transformar o mundo estava conectada com a vontade interior de levaacute-lo de volta as suas origens Anterior mesmo a qualquer divisatildeo elementar entre abstraccedilatildeo e efetividade valores sexo ou mesmo papeacuteis sociais Enquanto Nietzsche pensa especificamente nos traacutegicos gregos e nos pensadores preacute-socraacuteticos nos quais o mito era o horizonte que permeava e unificava as accedilotildees a religiatildeo a intuiccedilatildeo e o pensamento se davam por imagens Artaud volta-se para os siacuterios babilocircnicos e os povos orientais mais primitivos Em sua obra sobre o imperador assiacuterio de Roma Heliogaacutebalo Artaud remonta ao espetaacuteculo de confronto entre os princiacutepios masculinos e femininos e a tentativa de fundi-los de modo anaacuterquico e pederaacutestico empreendido pelo proacuteprio imperador Artaud quer reorganizar e reestruturar o homem para que sua vida ultrapasse o ldquoponto de ausecircncia e de inanidaderdquo (BLANCHOT 2005 p54) que fratura seu ser e seu pensamento Uma recusa sangrenta da metafiacutesica e do vazio do homem Almeja evacuar o organismo a deacutebil organizaccedilatildeo orgacircnica deficiente para resgatar o corpo

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originaacuterio do homem antes da Queda o corpo-sem-oacutergatildeos um corpo puro de intensidades e desejos que estaacute sempre no limiar-absoluto Artaud aquele que abomina o homem deus a histoacuteria e que restitui agrave vida o estado de potecircncia pura

Quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse macaco de uma vez por todas e jaacute ningueacutem acredita mais em deus todos acreditam cada vez mais no homem Assim agora eacute preciso emascular o homem Como () Colocando-o de novo pela uacuteltima vez na mesa de autoacutepsia para refazer sua anatomia O homem eacute enfermo e mal construiacutedo Temos que nos decidir a desnudaacute-lo para raspar esse animaluacuteculo que o corroacutei mortalmente deus e juntamente com deus os seus oacutergatildeos Se quiserem podem meter-me numa camisa de forccedila mas natildeo existe coisa mais inuacutetil que um oacutergatildeo (ARTAUD pp 41-42)

Artaud completa seu argumento dizendo que soacute quando conseguirem livrar o homem de seus oacutergatildeos e do ldquodeus-microacutebiordquo eacute que o teratildeo libertado de seus automatismos e da guerra interna em que natildeo existe hierarquia alguma Assim ldquopoderatildeo ensinaacute-lo a danccedilar agraves avessas como no deliacuterio dos bailes populares e esse avesso seraacute seu verdadeiro lugarrdquo (Ibidem p42)

Podemos assim agrave priori encontrarmos pontos de aproximaccedilatildeo entre os dois condenaccedilatildeo de nossa civilizaccedilatildeo da decadecircncia o rechaccedilo da metafiacutesica a criacutetica da religiatildeo e da moral consideradas como uma arma dos deacutebeis contra os fortes a confianccedila na arte e o teatro como regeneraccedilatildeo da cultura uma experiecircncia de polifonia do lsquoeursquo atraveacutes da experimentaccedilatildeo de diversos estilos de escrita a determinaccedilatildeo da vida como crueldade e a provaccedilatildeo da loucura

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Toda essa filosofia de Artaud estaacute radicalmente perpassada pelas descobertas tanto de Nietzsche quanto de Schopenhauer muito embora a implicaccedilatildeo do primeiro nos interesse mais aqui E eacute nessa crueldade ontoloacutegica nessa indiferenccedila cruel da natureza que iremos detectar e fazermos a primeira experiecircncia de ligar umbilicalmente o pensamento de Artaud com a experiecircncia originaacuteria de Nietzsche Percebemos uma imensa afinidade de gestos literaacuterios e filosoacuteficos entre eles O pensamento de Nietzsche desnuda a alma humana escancara suas ilusotildees e as destroacutei sem piedade e tambeacutem traz o corpo agrave tona como o maior misteacuterio da filosofia Artaud reconhece isso e certamente pode ter sido inspirado O trabalho de esquartejamento do modo de vida mitigado pelo Ocidente iniciado em Nietzsche parece ter continuidade na obra e vida de Artaud Procuraremos entender como isso se deu

A Crueldade Ontocoacutesmica do Vir-a-Ser A crueldade aparece como princiacutepio de base

afirmado tanto em Nietzsche quanto em Artaud em vaacuterias de suas obras Se olharmos por exemplo a argumentaccedilatildeo nietzschiana sobre os impulsos esteacuteticos da natureza que se manifestam no homem iremos nos deparar com o dionisiacuteaco considerado como pulsatildeo elementar baacuterbara que teve que ser absorvida pelos gregos antigos Jaacute em sua primeira obra de 1872 O Nascimento da Trageacutedia Nietzsche atraveacutes de um meacutetodo de introvisatildeo nada ortodoxo chega a admitir a existecircncia de dois impulsos que atravessam a histoacuteria da arte e da psicologia dos antigos gregos o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco

O dionisiacuteaco teria sido a base originaacuteria do pessimismo helecircnico tornado popular atraveacutes da sabedoria

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de Sileno (NIETZSCHE 2003 p36)2 Eacute o que aparece em termos de mais arcaico contemporacircneo ou mesmo anterior agrave paideacuteia grega e a formaccedilatildeo cultural oliacutempica advinda de Homero e Hesiacuteodo Nietzsche com formaccedilatildeo filoloacutegica e filoacutesofo da suspeita como mais tarde seraacute conhecido ausculta o passado grego com um ouvido afinado para detectar a verdade dos instintos helecircnicos e desconfia do que a tradiccedilatildeo esteacutetica e filoloacutegica toma por verdade No fundo desconfiava que o que estava incrustado como uma sombra no saber metafiacutesico da verdade era a posiccedilatildeo favoraacutevel e natildeo questionada da moral particularmente da moral cristatilde religiosa que era uma crenccedila comum e partilhada pelos teoacutelogos e filoacutesofos desde a Idade Medieval ateacute a moderna

Abrir espaccedilo para o dionisiacuteaco seria portanto perigoso no tocante a questionar a formaccedilatildeo da moral dentre os antigos e como isso foi legado ao Ocidente inteiro E efetivamente Nietzsche embora nesse primeiro momento natildeo se ocupe diretamente da moral cristatilde enquanto negadora da vida (Ibidem p19)3 posteriormente

2 ldquoReza a antiga lenda que o Rei Midas perseguiu na floresta durante longo tempo sem conseguir captura-lo o saacutebio Sileno o companheiro de Dioniacutesio Quando por fim ele veio a cair em suas matildeos perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferiacutevel para o homem Obstinado e imoacutevel o democircnio calava-se ateacute que forccedilado pelo rei prorrompeu finalmente por entre um riso amarelo nestas palavras - Estirpe miseraacutevel e efecircmera filhos do acaso e do tormento Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar natildeo ouvir O melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter nascido natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

3 Em Tentativa de Autocriacutetica ldquoela (a obra) jaacute denuncia um espiacuterito que um dia qualquer que seja o perigo se poraacute contra a interpretaccedilatildeo e a significaccedilatildeo morais da existecircnciardquo ou ldquordquoTalvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendor antimoral seja no precavido e hostil silecircncio com que no livro se trata o cristianismo ndash o cristianismo como a mais extravagante figuraccedilatildeo do tema moral que a humanidade chegou ateacute agora a escutarrdquo

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se aprofundaraacute nesta criacutetica retirando mais essa ilusatildeo do homem ocidental

No livro Nietzsche explica como os gregos tiveram que lutar contra seus impulsos autodestrutivos e pessimistas para obter o pleno domiacutenio de si e como para isso tiveram que criar uma projeccedilatildeo apoliacutenea sobre si mesmos e sua cultura Daiacute teriam se originado os deuses oliacutempicos como esse esplendor de forccedila e coragem como esse ideal a alcanccedilar na vida excelente e corajosa Mesmo poreacutem com essa criaccedilatildeo mito-poeacutetica ainda tinham que lidar com a potecircncia dionisiacuteaca vinda dos baacuterbaros estrangeiros Uma potecircncia que destruiacutea as formas individuais que celebrava o caos com festas sangrentas com orgias sexuais com pilhagens e saques de povos e tribos A loucura o transe a infacircmia a despersonalizaccedilatildeo a violecircncia desmedidas eram o efeito devastador desta tirania instintiva que ameaccedila os gregos em sua proacutepria cultura vinda dos lados vinda dos outros povos e paiacuteses e do mais recocircndito deles proacuteprios colocando em risco a confianccedila que tinham a respeito de seus destinos Apolo era o escudo metafiacutesico apropriado para manter em pleno funcionamento e em estado estabilizado a poacutelis grega

Nietzsche faz o trabalho do arqueoacutelogo de uma guerra psicoloacutegica que se trava no seio da cultura helecircnica identifica no desenvolvimento dos periacuteodos da arte grega a predominacircncia ora do apoliacuteneo ora do dionisiacuteaco e tambeacutem os momentos em que por meio da arte se lanccedilava ldquoaparentemente a ponterdquo (Ibidem p27) entre um e outro lanccedilando-se em periacuteodos amenos de paz A forma artiacutestica que Nietzsche considera o perfeito balanccedilo entre os impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos se daacute na formaccedilatildeo da trageacutedia aacutetica na qual o fundo dionisiacuteaco ndash a Vontade ou o Em-si na filosofia schopenhauriana inspirada em Kant - levando o coro de saacutetiros ao transe e agrave encenaccedilatildeo riacutetmica simbolizava ldquonuma descarga de imagensrdquo o vasto mundo sonoro dionisiacuteaco Aqui haacute o nascimento comum da muacutesica

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com a poesia e o teatro Como cabeccedilas da hydra essas artes surgem da vontade que se manifesta no fundo da vida do mesmo corpo vivo do mundo que se manifesta no homem como natureza estetizada O dionisiacuteaco base fundamental do mundo se expressa e se redime de sua intensa contradiccedilatildeo e sofrimento por meio da aparecircncia apoliacutenea O mundo diz Nietzsche em ldquoA Gaia Ciecircnciardquo seraacute entatildeo esteticamente justificaacutevel

Encontraremos em Artaud esse pensamento radicalizado de tal forma que a sua compreensatildeo do teatro o Teatro da Crueldade eacute capaz de fazer ldquorenovar o sentido da vidardquo e que vida aqui ldquonatildeo se trata () do exterior dos fatos mas dessa espeacutecie de centro fraacutegil e turbulento que as formas natildeo alcanccedilamrdquo (ARTAUD 2006 p8) Ora natildeo seria esse ldquocentro fraacutegil e turbulentordquo esse Uno-Primordial da esfera dionisiacuteaca de que nos fala Nietzsche Eacute bem provaacutevel que sim embora Artaud tenha uma concepccedilatildeo de vida e de mundo voltada para ldquouma identificaccedilatildeo maacutegica com essas formas4rdquo na qual uma cultura autecircntica e violentamente egoiacutesta ou interessada se perfaz A busca de Artaud por uma linguagem que ldquorompa a linguagem para tocar na vidardquo o busca a refazer toda a ideia de teatro do Ocidente E eacute sobre isso que iremos falar no proacuteximo ponto

O Teatro da Crueldade e o Refazer a Vida No prefaacutecio de sua obra O Teatro e seu Duplo Artaud

faz uma menccedilatildeo ao que seria a verdadeira cultura e sua relaccedilatildeo com a vida Assim ele escreve ldquoA verdadeira cultura age por sua exaltaccedilatildeo e sua forccedila e o ideal europeu da arte visa lanccedilar o espiacuterito numa atitude separada da forccedila e que assiste agrave sua exaltaccedilatildeo Eacute uma ideia preguiccedilosa inuacutetil e que a curto prazo engendra a morte (Ibidem p6)rdquo

4 Ibidem p 6

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Artaud assim como Nietzsche olha para o cidadatildeo burguecircs meacutedio de postura passiva e mentalmente provinciano cristatildeo assolado pelo teacutedio pelo trabalho e vecirc nele a personificaccedilatildeo da morte em vida Vecirc que o homem que consome a cultura o faz em seus intervalos diaacuterios ou depois da sua vida de trabalho de sua rotina exasperante e que a cultura o serve nesta mesma paralisia na qual o homem natildeo participa mais como membro ativo de ritual algum A cultura moderna na qual estatildeo inseridos ambos eacute uma cultura de consumo que engendra a morte que arrefece as potecircncias proacuteprias e criadoras do homem que o vicia em assistir sua vida passivamente

Artaud assim como Nietzsche assume entatildeo o papel de revolucionar essa cultura a partir da invocaccedilatildeo das forccedilas e da magia viva do homem dentro da esfera da arte Nietzsche havia visto em Wagner esse ponto de convergecircncia e transmutaccedilatildeo da cultura do gado passivo em um renascimento da cultura traacutegica a partir da muacutesica e do drama wagneriano Artaud poreacutem vai mais longe ao querer descartar a possibilidade ocidental do teatro que eacute ainda o teatro do drama psicoloacutegico que tem sua hierarquia de gestos e accedilotildees baseadas ou reduzidas ao texto Ele inventa assim a sua contraproposta radical ao teatro que chafurda na crise da representaccedilatildeo o seu Teatro da Crueldade Artaud explica em uma carta o que significa ldquocrueldaderdquo em sua boca

A crueldade natildeo foi acrescentada a meu pensamento ela sempre viveu nele mas eu precisava tomar consciecircncia dela Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida de rigor coacutesmico e de necessidade implacaacutevel no sentido gnoacutestico de turbilhatildeo de vida que devora as trevas no sentido da dor fora de cuja necessidade inelutaacutevel a vida natildeo consegue se manter o bem eacute desejado eacute o resultado de um ato o mal eacute permanente (Ibidem p119)

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Em outras palavras literalmente Artaud quer dizer

que ldquoa vida eacute crueldaderdquo mas tambeacutem que ldquonatildeo existe crueldade sem consciecircnciardquo A crueldade da vida pertence entatildeo ao ser consciente ao homem Um animal mesmo carniacutevoro e violento natildeo eacute em nada cruel do contraacuterio eacute natural e aceitaacutevel A distinccedilatildeo entre crueldade natural ou inocente e uma crueldade perversa se daacute atraveacutes da intencionalidade consciente do uso das forccedilas para provocar o puro mal para poluir e destruir a vida em sua base mesmo E aqui mais uma vez haacute uma concordacircncia entre Nietzsche e Artaud a maior crueldade do homem se daacute atraveacutes da moral da moralidade dos costumes e da consciecircncia que o fazem voltar-se contra si proacuteprio e contra seus semelhantes

Essa uacuteltima seria caracterizada pela maldade dos fracos e desfavorecidos ou o sistema da moral que consiste em uma inversatildeo da crueldade da vida contra ela mesma Segundo Nietzsche em sua Genealogia da Moral tal operaccedilatildeo de inversatildeo foi originariamente operada pelos fracos e escravos que queriam levar o forte a sentir remorso por sua condiccedilatildeo de forte a desprezar sua proacutepria natureza

Artaud entra em conflito aberto contra esse mundo falso dos valores e busca em seu teatro a sublevaccedilatildeo das forccedilas vitais originaacuterias do homem e sonha com um teatro que ldquorefaccedila a vidardquo buscando na linguagem fiacutesica ldquomiacutemica natildeo corrompidardquo o gesto extremamente preciso que funcione como ruptura da cadeia loacutegica de significaccedilatildeo que tenciona e aprisiona os corpos e espiacuteritos As potecircncias vulcacircnicas originaacuterias da criaccedilatildeo humana devem voltar ao centro da vida ao centro do palco da vida moderna O gesto do ator natildeo pode submeter-se a nenhuma ordem discursiva preestabelecida todo o conteuacutedo sintaacutetico e semacircntico teleoloacutegico estaacute suspenso da hierarquia da cena mas ao contraacuterio compor uma linguagem inaugural espeacutecie de hieroacuteglifo vivo para ser decifrado pelo

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espectador em pura liberdade de fruiccedilatildeo e participaccedilatildeo As palavras seratildeo apagadas do palco da crueldade apenas na medida em que se impotildee como ordenamentos como categorizaccedilotildees e classificaccedilotildees taxativas Artaud busca recompor o teatro reconfigurando a accedilatildeo e o gesto adormecido em cada som e palavra Quer trazer a carne da palavra agrave tona a imanecircncia pura do verbo a nudez dos sentidos nem que pra isso ele tenha que se alienar da proacutepria liacutengua

eu natildeo tenho mais a minha liacutengua () nada de palavra nada de espiacuterito nada () natildeo esperem que eu nomeie esse tudo que eu lhes diga em quantas partes ele se divide que lhes diga seu peso () ah esses estados que nunca satildeo nomeados essas situaccedilotildees eminentes da alma ah esses intervalos do espiacuterito (ARTAUD 2006 p20) 5

O que ele quer eacute ldquoa formaccedilatildeo de uma realidade a

irrupccedilatildeo ineacutedita de um mundordquo num teatro que ldquodeve nos dar esse mundo efecircmero mas verdadeiro este mundo tangente ao realrdquo que seraacute ldquoele proacuteprio este mundo ou noacutes dispensaremos o teatrordquo (Ibidem p30) O efeito de tal teatro no espectador deve algo entre ldquoa anguacutestia o sentimento de culpabilidade a vitoacuteria a saciedaderdquo de modo que ele seraacute ldquosacudido e ficaraacute arrepiado com o dinamismo interior do espetaacuteculordquo e que tal dinamismo ldquoestaraacute em relaccedilatildeo direta com as anguacutestias e preocupaccedilotildees de toda a sua vidardquo O teatro entatildeo para refazer a vida deveraacute possuir essa ressonacircncia interior profunda esse caraacuteter de gravidade ldquonatildeo eacute ao espiacuterito ou aos sentidos dos espectadores que nos dirigimos mas a toda sua existecircnciardquo (Ibidem p31)

5O Pesa-Nervos In Linguagem e Vida p20

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Cada espetaacuteculo deveraacute se tornar entatildeo uma reencenaccedilatildeo coacutesmica do drama da proacutepria vida tal qual seria possiacutevel ver com Nietzsche a partir da trageacutedia de Dioniacutesio no qual a fatalidade seraacute permanentemente evocada como uma espeacutecie de acontecimento que exigiraacute do puacuteblico a adesatildeo iacutentima Essa seraacute a sua tarefa absoluta e levaacute-la a cabo seraacute ter ldquopersuadido (o puacuteblico) de que somos capazes de fazecirc-los gritarrdquo (Ibidem p34)

Claro que tal proposta natildeo poderia ter passado em sua eacutepoca sem polecircmicas Os primeiros a se manifestarem abertamente contra foram os proacuteprios companheiros de Artaud que entatildeo ainda estava fazendo parte do movimento surrealista na deacutecada de 20 ao que Breacuteton em seu Segundo Manifesto do Surrealismo denuncia Artaud e seu ldquoideal de teatro () que era organizar espetaacuteculos que pudessem rivalizar em beleza com as batidas da poliacutecia (Ibidem p 89)6rdquo

As tentativas poreacutem de pocircr em praacutetica as ideias do Teatro da Crueldade no Teatro Alfred Jarry idealizado por Artaud natildeo deram certo Suas montagens natildeo foram bem-sucedidas em termos de puacuteblico e criacutetica e as tecnologias da eacutepoca natildeo favoreciam ao que hoje eacute muito mais faacutecil e praacutetico fazer do que em sua eacutepoca Assim Artaud passa a abandonar a ideia de reconstruir propriamente o teatro para reconstruir a vida usando a si mesmo como molde estilizando e abrindo como campo esteacutetico sua proacutepria existecircncia atraveacutes de sua vida puacuteblica e de suas obras (ou jatos de sangue literaacuterio) enquanto campo de combate Artaud abandona o teatro depois de seu fracasso ao tentar colocar a metafiacutesica em cena Seu teatro natildeo conseguiria atingir a dimensatildeo cataacutertica porque o mundo moderno das maacutequinas jaacute natildeo era mais capaz de metafiacutesica

6Nota citada na p 30 referecircncia da ediccedilatildeo francesa do Manifestes du surreacutealisme Andreacute Breton Ideacutees nrf 1965 p89

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Obra como Espaccedilo da Reinvenccedilatildeo e de Combate

A escrita artaudiana eacute uma mescla de gritos e sussurros laacutegrimas espermaacuteticas urina sangue secircmen que trituram torturam o corpo e produzem uma escrita de fogo e carne queimada flutuando como um bezerro sacrificado na superfiacutecie ensanguentada numa produccedilatildeo de marcas escarificaccedilotildees no corpo e natildeo paacuteginas Marca como a lei lei como a escrita sobre o corpo corpo como o aleacutem da crueldade (LINS 1999 p10)

A linguagem em Artaud estaacute totalmente identificada

com a vida Linguagem-bomba linguagem-evasatildeo holocausto-do-espiacuterito ferida-da-liacutengua Natildeo buscando teleologia ou abstraccedilotildees salvadoras chafurdando na proacutepria limitaccedilatildeo e ampliando-a ao campo do indefinido do intraduziacutevel A linguagem-bomba de Artaud eacute uma viagem pelas veias pelas escarificaccedilotildees pelos bueiros do ser pelos esgotos da alma uma danccedila apopleacutetica no abismo A palavra explode como chicote nos textos do imprevisiacutevel e revolucionaacuterio Artaud Ele natildeo quer nada pronto delimitado esperado nada nascido Renega ateacute o absurdo vai ateacute o vazio ectoplaacutesmico espectral retira a palavra da tensatildeo referente-referenciado signo-significante Asfixia a semacircntica anterior o apriori do campo das significaccedilotildees Artaud busca no corpo a origem da liacutengua e da expressatildeo No proacuteprio Nietzsche vamos encontrar que a linguagem eacute a especializaccedilatildeo de determinados afetos E a linguagem comeccedila pela poesia pelo canto pelo gesto que busca dimensionar-se para atingir a expressatildeo de determinados instintos

Resta-nos considerar a linguagem enquanto produto do instinto tal como ocorre entre as abelhas ndash nos formigueiros etc O instinto no entanto natildeo eacute o resultado da reflexatildeo consciente e

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tampouco a mera consequecircncia da organizaccedilatildeo corporal [] O instinto eacute a bem dizer inseparaacutevel do mais profundo iacutentimo de um ser (NIETZSCHE apud BARROS 2007 p49)

A relaccedilatildeo do expressar do buscar uma liacutengua uma

expressatildeo estaacute entatildeo no campo do padecer do sofrer do migrar para si dentro do proacuteprio do sofrimento Essa auto-exposiccedilatildeo eacute perpassada pelo fora o tempo inteiro ao mesmo tempo em que retira de si toda as marcas do que foi impresso culturalmente no proacuteprio indiviacuteduo Artaud e no indiviacuteduo Nietzsche Eacute uma relaccedilatildeo que busca se purificar mas para isso passa pela convalescenccedila que eacute a total perda de apoio num exterior concreto ou numa verdade absoluta imposta de fora A iacutentima ligaccedilatildeo entre sofrer e pensar entre doenccedila e pensamento tambeacutem estende uma rede de irmandade entre Nietzsche e Artaud Sabe-se da constante condiccedilatildeo convalescente de Nietzsche desde seus anos em Basileacuteia ateacute a eclosatildeo da euforia de Turim7 A sua convalescenccedila em Basileacuteia teve fundamental importacircncia no sentido de Nietzsche despertar para como sua vida normatizada enquanto professor de Universidade era inautecircntica ndash ldquoum desviordquo - em relaccedilatildeo a sua real tarefa Podemos entatildeo identificar o papel decisivo que teve a enfermidade em um despertar da tarefa do pensamento do questionamento radical da criacutetica corrosiva e da transgressatildeo de Nietzsche em relaccedilatildeo agrave vida e agraves instituiccedilotildees de sua eacutepoca

Nietzsche busca expressar o vir-a-ser com intensificados jogos poeacuteticos com a linguagem desaprisionada buscando se contrapor aos modelos metafiacutesicos-conceituais conceitos-prisotildees do pensamento

7 A respeito de biografias interessantes de Nietzsche indicamos a considerada a maior biografia do filoacutesofo o livro Nietzsche de Curt Paul Janz (Biografia em 3 tomos [1978-1979] Paris Galimard) e a de Dorian Astor Nietzsche Porto Alegre ndash RS LPampM)

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como diraacute Artaud A nomadologia8 escrita ou nomadologia dos signos eacute tambeacutem agenciamento criativo da praacutetica de pensamento tanto em Nietzsche quanto em Artaud Ao longo da obra do filoacutesofo alematildeo nos deparamos com obras que operam sob o estilo dissertativo (a exemplo de O Nascimento da Trageacutedia Genealogia da Moral) no estilo aforiacutestico (Para Aleacutem do Bem e do Mal Humano Demasiado Humano Crepuacutesculo dos Iacutedolos etc) panfletos (Consideraccedilotildees Extemporacircneas) uma espeacutecie de saga poeacutetica em forma de novela paroacutedica (Assim Falou Zaratustra) escritos autobiograacuteficos (Ecce homo) aleacutem de obras no estilo poeacutetico e ditiracircmbico Sem mencionar a vastiacutessima obra feita de seus fragmentos poacutestumos com apontamentos vetores de pensamento estrateacutegias e indicaccedilotildees guardadas de maneira desordenada sistematicamente agrave margem de suas publicaccedilotildees oficiais Artaud jaacute reconhecido por sua policromia artiacutestica produz textos sobre cinema poesia criacutetica literaacuteria roteiros peccedilas esboccedila projetos de performance atua pinta e desenha Natildeo afeito a um caminho seguro e normativo Artaud acima de tudo experimenta Eacute a experiecircncia que eacute constitutiva de seu pensamento de sua praacutetica como poeta pensador e ator E a experiecircncia dos dois do pensamento se depara efetivamente sempre em aporias ou em limiares que se tornam acontecimentos ou experiecircncias-limite E tal experiecircncia retira da autonomia da vontade do sujeito o seu espaccedilo privilegiado e transcendental de escolha de sentido de determinaccedilatildeo categorial E tal busca leva o pensador ao polo do viver que se intensifica numa direccedilatildeo oposta ao mero existir da maioria conformada e acomoda na prisatildeo da liacutengua do conceito-padratildeo do corpo condicionado pelas regras loacutegico-civilizadas

8 Termo utilizado por Gilles Deleuze e Guatarri em sua obra Mil Platocirc Vol 5 Por conta do espaccedilo e do propoacutesito do artigo evitarei explicar o conceito

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Pois a humanidade natildeo quer se dar ao trabalho de viver de entrar nesse acotovelamento natural das forccedilas que compotildeem a realidade a fim de extrair dela um corpo que nenhuma tempestade poderaacute mais consumir Ela sempre preferiu contentar-se muito simplesmente em existir Quanto agrave vida eacute no gecircnio do artista que ela tem o haacutebito de ir procura-la () para arrancar o fato de viver agrave ideacuteia de existir9 (ARTAUD 2006 p284)

Eacute Blanchot que nos lembra que Artaud ldquonunca

aceitaraacute o escacircndalo de um pensamento separado da vidardquo nem mesmo quando estaacute em devir puramente entregue agrave experiecircncia mais radical e direta quando ele vive e sofre a separaccedilatildeo e a ausecircncia tanto de um quanto doutro Eacute essa experiecircncia do limite de sua potecircncia e impotecircncia quando seu pensamento estaacute a um passo atraacutes dele como um ideal devorador e imperturbaacutevel projetando uma nebulosa e a vertigem do Vazio como possibilidade a que se agarra e nega radicalmente

Por que Artaud e Nietzsche estatildeo buscando essa Experiecircncia-limite Por que estatildeo perseguindo ldquocom a sede infinita da almardquo esse cataclismo do sujeito cartesiano e da loacutegica em prol de uma intuiccedilatildeo selvagem da pura imagem e do viver sem as marcas do jaacute dado ldquoAs sensaccedilotildees estatildeo mortasrdquo nos diz Artaud O que as matou foi o excesso de falso racionalismo e de teacutecnicas na vida moderna Contra isso Artaud encarna uma maacutequina de guerra que anseia vigorar diante do sufocamento do corpo e do espiacuterito no Ocidente ldquoPois bem Eacute minha fraqueza e minha absurdidade querer escrever a qualquer preccedilo e me exprimir Sou um homem que sofreu muito do espiacuterito e por isso tenho o direito de falarrdquo (ARTAUD apud

9 Ensaio intitulado ldquoVan Gogh O suicidado da sociedaderdquo In Linguagem e Vida

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BLANCHOT 2005 p51) Encarna assim uma vida devotada agrave guerra contra as representaccedilotildees engendra um devir revolucionaacuterio que faz eco agrave transvaloraccedilatildeo proposta por Nietzsche para aleacutem do bem e do mal

Artaud grita em febre Estaacute na abstinecircncia do pensamento Em suas cartas ao editor Jacques Rivieacutere fala sobre ldquoa impossibilidade de pensar que eacute o pensamentordquo Natildeo eacute apenas uma dificuldade metafiacutesica eacute o arrebatamento de uma dor de uma sombra imensa que o perpassa e se avoluma como ldquoausecircncia de voz pra gritarrdquo Ele sente na pele que a ldquofacilidade profundardquo para exprimir a ldquototalidade imediatardquo lhe foi arrancada e esmagada na alma que ldquono momento mesmo que a alma se dispotildee a organizar sua riqueza suas descobertas () uma vontade superior e maleacutevola ataca a (sua) alma como um vitriolordquo e introduz no centro dele a afirmaccedilatildeo de um perpeacutetuo sequestro que se torna o seu mais proacuteprio como sua verdadeira natureza A sua poesia versa sobre essa falha essa lacuna esse buraco no pensamento que o aflige A escrita de Artaud cobre e relata visceralmente a experiecircncia do bloqueio que o faz ldquoser pela metade pensar pela metade sentir pela metaderdquo

Um dos traccedilos fundamentais da obra de Nietzsche

eacute cada vez mais que sua obra avanccedila e desenvolve uma experiecircncia de si mesmo que aparece como uma transgressatildeo dos valores Um exemplar fundamental se daacute em sua proacutepria autobiografia Ecce Homo tatildeo bem analisada por ANDRADE (2008) Nietzsche contesta os pilares da normalidade desvinculando-a da sauacutede Uma descriccedilatildeo exemplar dessa experiecircncia de si mesmo eacute dada por Nietzsche em uma carta escrita para Karl Fuchs em 14 de dezembro de 1887

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Na Alemanha preocupa-se muito com as minhas lsquoexcentricidadesrsquo mas como nunca souberam onde estaacute o meu centro ser-lhes-aacute difiacutecil encontrar a verdade de quando e onde tenho sido lsquoexcecircntricorsquo ateacute agora Por exemplo o ter sido filoacutelogo foi qualquer coisa situada inteiramente fora do meu centro o que natildeo quer dizer que isso haja sido mau Assim tambeacutem me parece agora uma excentricidade o fato de ter sido wagneriano Esta uacuteltima foi uma experiecircncia sobremaneira perigosa e agora que vejo que natildeo me afundei por levaacute-la ateacute o final eacute que me apercebo do sentido que teve para mim Foi a prova mais forte a que pude submeter o meu caraacutecter Depois pouco a pouco vai-nos disciplinando e conduzindo ateacute agrave unidade o mais iacutentimo que possuiacutemos Aquela paixatildeo que durante muito tempo natildeo tem nome aquecircle trabalho de que se eacute involuntariamente missionaacuterio consegue salvar-nos de tocircda a dispersatildeo (NIETZSCHE 1944 p 341)

Nietzsche recusa a norma como o centro

organizador de onde irradia a sua individualidade Deste modo a norma aparece como um desvio de si mesmo desvio daquela sua tarefa particular para a qual foi (auto) disciplinado e que lhe restituiu como um resultado (e natildeo como um pressuposto) sua unidade e individualidade O que Nietzsche busca antes eacute a dissonacircncia e o muacuteltiplo A filosofia nietzschiana natildeo eacute um sistema que estaacute no museu da histoacuteria das ideias poreacutem um discurso que provoca o nosso mais profundo interior Nietzsche costumava dizer que escrevia para si mesmo mas sempre se povoando de contrapostas almas ldquoSomos feitos de muitas almas numa soacuterdquo que poderia ser visto como essa relaccedilatildeo interna entre as vaacuterias vontades de potecircncia que nos habitam e nos formam Ao fazer experimentaccedilotildees consigo mesmo Nietzsche convida-nos a pensarmos as nossas proacuteprias experiecircncias Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Haacute

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que se entender o que Nietzsche indica como ldquopara todosrdquo e ao mesmo tempo ldquopara ningueacutemrdquo ldquoMas isso eacute contraditoacuterio Logo impossiacutevelrdquo diz-nos o claacutessico silogismo aristoteacutelico Isso eacute desconstruiacutedo atraveacutes da polifonia de registros buscados por Nietzsche que contempla o caos criador que o perpassa e o constitui os diversos niacuteveis de afetos e vontades de potecircncia que se relacionam ora uns ora outros tocando acordes diversos na sua alma de forma perspectivistica gerando tipos intensos diversos e contrapostos de interpretaccedilotildees A dessingularizaccedilatildeo gera a multiplicidade ampliada a diversidade expressiva amplia o espectro de percepccedilotildees e saberes que vatildeo formar o que Nietzsche ao hierarquizar de acordo com a vida vai chamar de grande estilo Para tal conceito achamos de grande valia o que nos diz Nietzsche citado em BARROS (2012 p 32) ldquoAssenhorar-se do caos que se eacute forccedilar o seu caos a se tornar forma tornar-se necessidade na forma [] eis aqui a grande ambiccedilatildeordquo

O grande estilo em Artaud corresponderia a algo como ldquose perder para se ganharrdquo seria o desencontro consigo num perpeacutetuo autoengendramento algo que ele descobriu na Danccedila do Rito do Peiote entre os iacutendios taraumaras Atraveacutes de uma ldquoviagem aos confins do inconsciente alojando-se como uma ferida na liacutengua na sua erracircncia agrave procura do Absoluto da Verdade do Serrdquo ele cairia no natildeo-ser partiria em busca do Impossiacutevel purificado da origem-prisatildeo

Dois caminhos diversos intensificados de formas parecidas e diferentes ndash anaacutelogas ateacute certo ponto - mas que desembocaram no mesmo destino a loucura

Nietzsche apesar de todo seu lado problemaacutetico e

doentio buscou atingir a grande sauacutede que tanto falou em seus uacuteltimos escritos principalmente em sua inquietaccedilatildeo

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pelo grande estilo Artaud enquanto poeta dramaturgo e ator encarnou suas obras e personagens tal qual quando agiu em Paris nos anos 30 como se fosse Heacuteliogaacutebalo em Roma durante seu cruel impeacuterio No fim da vida Nietzsche assinava suas cartas como ldquoDioniacutesiordquo ldquoJuacutelio Ceacutesarrdquo ou ldquoO Crucificadordquo Ambos ampliaram perspectivas e apontaram o raio de suas provocaccedilotildees e questionamentos para o que ainda era o nosso tempo por assim dizer no seu uacutetero de gestaccedilatildeo Ambos tambeacutem sucumbiram na luta Nietzsche lutando contra sua enfermidade durante infernais onzes anos nos quais parentes de maacute-feacute conjugadas com antissemitas utilizaram o espoacutelio do filoacutesofo de maneira mundialmente catastroacutefica Artaud passa pelo calvaacuterio o verdadeiro inferno de internaccedilatildeo em internaccedilatildeo que chega a durar cerca de uma deacutecada Sainte-Anne Quatre-Mares Ville-Eacutevrard Cheacutezal-Beacutenoit Rodez Chega a passar fome e fica no esquecimento ateacute 1943 quando seu ex-companheiro de tempos surrealistas Robert Desnos o transfere para Rodez e aos cuidados do Dr Gaston Ferdiegravere eacute estimulado a escrever e a desenhar isso natildeo impede o psiquiatra de aplica-los frequentes sessotildees de eletrochoque

Em 1946 terminada a guerra intelectuais de destaque mobilizam-se para tirar Artaud de Rodez e garantir sua subsistecircncia Grava o seu uacuteltimo escacircndalo em 1948 Para acabar com o julgamento de Deus uma peccedila de imprecaccedilatildeo onde escarra no organismo como doenccedila imputada por Deus para dominar o homem para moldaacute-lo controla-lo para parasitar sua liacutengua seus pensamentos e sua sensibilidade Em 1949 ele morre perto do peacute de sua cama estrangulado no reto pelo cacircncer Seu grito reverberando a anguacutestia o isolamento e a marginalizaccedilatildeo em vida ndash bem como sua genialidade ndash chega a noacutes e nos toca no acircmago junto com a provocaccedilatildeo do filoacutesofo dionisiacuteaco que tambeacutem natildeo buscava nada aleacutem do que

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intensificar sua potecircncia e seu cruel e incendiaacuterio ldquoapetite de vidardquo

A uacuteltima provocaccedilatildeo que me passa na cabeccedila ao pensar nesses dois e em como sua cumplicidade alieniacutegena ndash natildeo em termos de filiaccedilatildeo pois nem Nietzsche queria ldquoseguidoresrdquo nem Artaud queria ser inautecircntico e devedor de algo ou algueacutem - me parece perceptiacutevel eacute seraacute que poderiacuteamos ver na obra tardia de Artaud ndash a sua vida ndash a encarnaccedilatildeo do tipo de vida ldquojustificada esteticamenterdquo por Nietzsche Referecircncias ANDRADE Daniel Pereira Para Aleacutem da Loucura e da

Normalidade Nietzsche contra a recepccedilatildeo psiquiaacutetrica In Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 27 p 279-301 juldez 2008

ASTOR Dorian Nietzsche Trad Gustavo de Azambuja Feix 1ordf ed- Porto Alegre RS LPampM 2013

ARTAUD Antonin O Teatro e seu duplo Trad Texeira Coelho 3ordf ed ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

_______________ Linguagem e Vida Org e Trad J Guinsburg Silvia Fernandes Telesi Antocircnio Mercado Neto Regina Correa Rocha e Seacutergio Saacutelvia Coelho 3ordf reimpr Da 1ordf ed ndash Satildeo Paulo Perspectiva 2006

________________ Escritos de um louco Ed Coletivo Sabotagem Disponiacutevel online wwwsabotagemcjbnet (sem data e sem creacuteditos de traduccedilatildeo)

BARROS Fernando de Moraes O Pensamento Musical de Nietzsche 1ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2007

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_________________________ Nietzsche ouvinte de Chopin em busca do ldquogrande estilordquo In Estudos Nietzsche Curitiba v 3 n 1 p 31-48 janjun 2012 p31-48

BARROS Wagner de Resenha de ANDRADE Daniel Pereira Nietzsche a experiecircncia de si como transgressatildeo (loucura e normalidade) In Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 26 p 203-210 janjun 2008

BLANCHOT Maurice O livro por vir Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Martins Fontes 2005

DETIENNE Marcel Dioniso a ceacuteu aberto Trad Carmem Cavalcanti 1ordf ed Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1988

DIAS Rosa Maria Nietzsche vida como obra de arte 1ordf ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011

DOSTOacuteIEVSKI Fioacutedor Notas do Subterracircneo Trad Moacir Werneck de Castro Editora Bertrand Brasil Rio de Janeiro ndash RJ 1989

DELEUZE Gilles Conversaccedilotildees Trad Peacuteter Paacutel Pelbart 1ordf ed Satildeo Paulo Ed 34 1992

_______________ GUATARRI Feacutelix Mil platocircs capitalismo e esquizofrenia Vol1 Trad Aureacutelio Guerra Neto e Ceacutelia Pinto Costa Rio de Janeiro Ed 34 1995

______________ GUATARRI Feacutelix Mil platocircs capitalismo e esquizofrenia Vol5 Trad Peteacuter Pal Peacutelbart e Janice Caiafa Ed 34 ndash Rio de Janeiro 1997

DUMOULIEacute Camille Nietzsche y Artaud pensadores de la crueldad In Instantes y Azares Escrituras nietzscheanas ndeg 4-5 Ediciones La Cebra 2007 Buenos Aires Agentina p 15-30

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________________Antonin Artaud e o Teatro da Crueldade Trad Sylvie Lins In Revista da Aacuterea de Liacutengua e Literatura Francesa UNESP Satildeo Paulo Breacutesil n 11 2010 P 63-74

FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Duarte Peixoto 1ordf ed Lisboa Editorial Presenccedila 1983

FOUCAULT Michel A Microfiacutesica do Poder 8ordf ed Org e Trad Roberto Machado ndash Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1989

GROSSMAN Eveacutelyne Antonin Artaud Un insurgeacute du corps Ed Deacutecouvertes Gallimard Litteacuterature Paris 2006

HAYMAN Ronald Nietzsche Nietzsche e suas vozes Trad Scarlett Marton 1ordf ed Satildeo Paulo Editora UNESP 2000

LINS Daniel Artaud o artesatildeo do corpo-sem-oacutergatildeos 1ordm ed EdRelume Dumaraacute ndash Rio de Janeiro 1999

NIETZSCHE Friedrich O Nascimento da Trageacutedia ou Helenismo e Pessimismo Trad J Guinsburg 2ordf ed 7ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

___________________ A Gaia Ciecircncia Trad Paulo Ceacutesar de Souza 6ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 2011

__________________ A Visatildeo Dionisiacuteaca do Mundo Trad Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes Maria Cristina dos Santos de Souza 1ordf ed 2ordf tiragem Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

__________________ Despojos de uma trageacutedia (cartas ineacuteditas) Traduccedilatildeo de Ferreira da Costa Porto Editora Educaccedilatildeo Nacional 1944

__________________ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

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_________________ Ecce Homo de como a gente se torna o que a gente eacute Trad Marcelo Backes Porto Alegre LPampM 2003

_________________ A Vontade de Poder Trad de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

RILKE Rainer Maria Cartas a um jovem poeta Trad Pedro Suumlssekind 1ordf ed Editora LampPM Pocket Porto Alegre 2009

Da Vontade de Poder enquanto

Arte no Pensamento de Friedrich

Nietzsche

Joseph Anderson Ponte Cavalcante Leite1

1 Vida como Impulso para Criaccedilatildeo Para Nietzsche vontade de poder eacute o conceito que

diz vida eacute o conceito a partir do qual tudo deve ser dito na existecircncia no mundo Vontade de poder eacute o termo nietzschiano que pronuncia a realidade do real o que implica na inexistecircncia de um fundamento substancial que engendre na vida um estado de ser estaacutetico cristalizado e imutaacutevel Pois vontade de poder eacute vontade para poder eacute vontade para se constituir a partir daquilo que ainda pode ser Nesse sentido o real eacute compreendido desde a incessante dinacircmica regida pelo anseio de busca para ser de busca para se constituir anseio este fundamental para o movimento proacuteprio da vida o movimento proacuteprio da vontade A exuberacircncia da vida estaacute no ininterrupto movimento para ser na vontade para ser aquilo que ainda natildeo eacute mostrando-se desde formas muacuteltiplas de manifestaccedilatildeo da vontade de poder Aquilo que brota que irrompe na realidade brota como princiacutepio que visa apenas a mostraccedilatildeo gratuita que visa apenas aparecer Tal princiacutepio como vontade de poder natildeo cessa em seu movimento de mostraccedilatildeo engendrando o aparecimento de muacuteltiplas formas perspectiviacutesticas de se fazer ver da vida

1 Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraiacuteba Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Paraiacuteba Membro do grupo de pesquisa cadastrado no Cnpq Corpo e Fenomenologia

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do real Desta maneira vida eacute apontada como o eterno retorno da vontade de poder A realidade eacute o eterno retorno do mesmo que se configura como vontade de poder Como nos enfatiza Gianni Vattimo ldquoa vontade de potecircncia representa a essecircncia do mundo como Nietzsche o vecirc enquanto o eterno retorno eacute sua existecircncia e realizaccedilatildeordquo (VATTIMO 2010 p 6-7) sendo o eterno retorno um fato e como tal ldquoenuncia uma necessaacuteria estrutura da realidaderdquo (VATTIMO 2010 p 8)

No discurso do Superar-se a si mesmo da obra Assim Falou Zaratrusta Nietzsche nos apresenta de acordo com seu pensamento entrelaccedilado com o princiacutepio da vontade de poder o que determina o modo de ser de todo vivente Em tal discurso vida se mostra a partir do jogo de mando e obediecircncia no qual estes dois atos estatildeo intimamente relacionados ao que Nietzsche declara como escuta O termo ldquoescutardquo aqui natildeo estaacute relacionado apenas com uma interpretaccedilatildeo fisioloacutegica de uma das faculdades dos cinco sentidos mas ganha um significado extraordinaacuterio na medida em que diz respeito agrave abertura para o transcendente a abertura de ser tocado e afetado por aquilo que deve ser Escutar a vida eacute ter o poder de ser afetado por aquilo que se destina desde vontade de poder para a inauguraccedilatildeo de uma nova realidade Para o homem efetivar sua destinaccedilatildeo eacute preciso que mande em si desde a obediecircncia agravequilo que foi presenteado pela vida a partir da escuta do afeto

Nesse sentido aqui estaacute o cerne da criaccedilatildeo o cerne do acontecer artiacutestico pois artista se revela para Nietzsche como aquele que cria desde sua abertura para a escuta daquilo que vida presenteia como possibilidade de aparecimento de uma nova realidade sendo esta algo que jaacute se deu silenciosamente jaacute se destinou O artista deve estar na escuta da possibilidade do irromper da vida deve estar na abertura para a vida que se manifesta perspectivistacamente de maneira diferenciada de modos de

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ser desde vontade de poder Deste modo para Nietzsche artista natildeo diz respeito somente agravequele que eacute afetado pelos atos de musicar esculpir poetar ou pintar artista natildeo diz respeito somente agravequele ligado agraves belas-artes mas o que diz artista aqui se caracteriza por aquele que eacute tomado pelo poder da arte por aquele que eacute afetado pela forccedila de estar na abertura na escuta da criaccedilatildeo de uma nova realidade presenteada pela vida a partir de modos diferenciados de se manifestar constituindo-se juntamente com a vida de maneira proacutepria destinal

Inicialmente vamos partir do fragmento 853 da obra A Vontade de poder que constitui um comentaacuterio que Nietzsche escreve acerca da concepccedilatildeo de arte apresentada em sua obra O Nascimento da Trageacutedia No comeccedilo da primeira parte de tal fragmento Nietzsche atenta para sua concepccedilatildeo de mundo exposta em O Nascimento da Trageacutedia evidenciando o mundo natildeo desde uma contraposiccedilatildeo entre mundo aparente e mundo verdadeiro mas atribuindo a este mundo aparente contraditoacuterio e cruel o caraacuteter de verdadeiro Daqui segue-se o pensamento de que o mundo eacute propriamente esse acontecer sem sentido sem fundamento o que o torna cruel e terriacutevel

Para suportar essa vida de exposiccedilatildeo gratuita constituiacuteda desde o que jaacute foi exposto a partir da vontade de poder que natildeo visa coisa alguma a natildeo ser aparecer o homem encontra alternativa na mentira Assim Nietzsche aponta para a necessidade da mentira para fazer com que o homem suporte a realidade do mundo sem fim sem sentido sem fundamento ldquoO fato de que a mentira seja necessaacuteria para o viver pertence a esse caraacuteter terriacutevel e problemaacutetico da existecircnciardquo (NIETZSCHE 2008 p 426) Eacute pela mentira que o homem pode atribuir um lastro que o possibilite aguentar o viver conferindo uma significaccedilatildeo a este conferindo um motivo pelo qual viver um motivo que forneccedila assim um fundamento uma confianccedila um asseguramento Mas de que mentira Nietzsche estaacute a falar

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A histoacuteria do homem ocidental eacute perpassada pela criaccedilatildeo de tais tipos de mentira que atribuem crenccedila na vida que fazem com que a realidade da existecircncia seja confiaacutevel Como tipos dessas mentiras Nietzsche aponta para a metafiacutesica a moral a religiatildeo e a ciecircncia Aqui o homem mentiroso eacute o artista pois a partir da mentira manifestada haacute a criaccedilatildeo de uma nova realidade haacute a inauguraccedilatildeo de um ser para a existecircncia

Apesar de designar tais manifestaccedilotildees como mentiras na compreensatildeo de que estas negam a vida em sua natureza proacutepria de vontade de poder Nietzsche natildeo deixa de afirmar que as mesmas retiram seu fundamento da proacutepria vontade de poder Como foi dito vontade de poder eacute o conceito que diz realidade e mesmo quando ela se manifesta de maneira a negar tal realidade ainda assim eacute de tal vontade que a negaccedilatildeo retira seu vigor A dinacircmica proacutepria da vida eacute o jogo para a apariccedilatildeo mesmo que tal apariccedilatildeo faccedila-se mostrar mentirosa em relaccedilatildeo ao que a vida tem de mais proacuteprio O homem teve que ser artista para a partir de vontade de poder criar modos de realidade que o presenteasse como consolo fazendo com que ele resistisse agrave sua existecircncia como sem fundamento algum como sem sentido como apenas vontade para poder O advento da metafiacutesica da religiatildeo da moral e da ciecircncia eacute devido agrave capacidade artiacutestica criadora da vida que fornece uma perspectiva para o homem sendo nesse sentido uma perspectiva que engendra a fuga do homem do seu ser proacuteprio como nada ser uma perspectiva que afeta o homem como vontade de arte permitindo que ele negue a vida em sua natureza mais proacutepria como vontade de poder atraveacutes da criaccedilatildeo de realidades seguras e confiaacuteveis

ldquoA vida deve inspirar confianccedilardquo a tarefa posta dessa maneira eacute imensa Para resolvecirc-la o homem precisa ser jaacute por natureza um mentiroso precisa ser mais do que tudo um artista E ele eacute isto

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tambeacutem metafiacutesica religiatildeo moral ciecircncia ndash todos satildeo apenas rebentos de sua vontade de arte de mentira de fuga diante da ldquoverdaderdquo de negaccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 426)

Nesse querer atribuir agrave vida um lastro que a faccedila ser

suportaacutevel confiaacutevel o homem termina por ser dentre todos os entes aquele que almeja a dominaccedilatildeo da vida De acordo com Nietzsche o homem partilha essa faculdade de criaccedilatildeo com tudo aquilo que se constitui no real jaacute que vida mundo eacute vontade de poder Sendo partiacutecipe da dinacircmica da vida como vontade de poder o homem se manifesta como o ente artiacutestico por excelecircncia tendo que sempre superar a si mesmo na abertura da criaccedilatildeo de novas realidades Eacute pela mentira pela atribuiccedilatildeo de um mundo alheio ao que lhe eacute proacuteprio que o homem pretende saciar sua vontade de poder natildeo apenas para suportar mas controlar a maneira como deve ser compreendida a realidade a maneira como deve ser a existecircncia

Mesmo ludibriando-se com a mentira que o faz crer na vida mesmo aqui o homem eacute aquele que eacute glorificado pela vida como artista eacute aquele afetado pelo sentimento de poder da criaccedilatildeo Como pronuncia Nietzsche ldquoE sempre que o homem se alegra eacute sempre o mesmo em sua alegria alegra-se como artista saboreia-se como poder saboreia a mentira como seu poderrdquo (NIETZSCHE 2008p 426) Vida em sua dinacircmica proacutepria eacute a manifestaccedilatildeo do aparecer gratuito de todas as coisas tendo o homem como co-autor maior na medida em que este inaugura a partir de pontos de vistas presenteados pela proacutepria vida novas realidades atribuiacutedas de sentidos e fundamentaccedilotildees O proacuteprio niilismo europeu eacute intensamente criador em sua manifestaccedilatildeo de negar a vida como vontade de poder

O niilismo europeu eacute visto por Nietzsche como a loacutegica que perpassa a histoacuteria do homem ocidental sendo tal loacutegica caracterizada pelo dizer ldquonatildeordquo agrave vida em sua

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natureza proacutepria de ser vontade de poder de ser vontade para ser aquilo que ainda natildeo eacute de natildeo ser nada que tenha fundamento uacuteltimo cristalizado que forneccedila um sentido pelo qual o homem possa se assegurar O homem ao se deparar com esta natureza da vida como vontade de poder eacute afetado por rebeldia contra a vida procurando estipular valores que lhe sejam alheios mas que contudo venham a lhe fornecer um sentido

Ora satildeo os supremos valores impostos agrave vida que conferem sentido e movem o viver A humanidade procura criar valores para conferir sentido agrave vida no entanto tais valores natildeo satildeo proacuteprios do viver O homem rebelado natildeo suporta que a vida seja sem fundamento criando valores que ofereccedilam para a mesma o sentido confortaacutevel que lhe falta pois para o homem a vida natildeo pode ser sem valor sem sentido Tal sentido no entanto eacute estabelecido a partir de algo alheio ao que eacute proacuteprio do viver criado fora da dinacircmica da vida como esforccedilo para ser Sendo a vida como exposto por Nietzsche eterna retomada do lanccedilar-se no por se fazer retorna sempre como querer ser retorna como aquilo que precisa ser Desta forma ao abraccedilar o querer estabelecer sentido e fundamento desde algo que se encontra fora do jogo gratuito e sem sentido de auto exposiccedilatildeo da vida o homem se torna prisioneiro da dinacircmica proacutepria do niilismo reconhecendo que os supremos valores estabelecidos se transformam em ruiacutena se transformam em um esforccedilo em vatildeo diante do mais supremo movimento da vida que natildeo permite a cristalizaccedilatildeo de um fundamento uacuteltimo O desespero e a melancolia tomam o homem ocidental no momento em que este reconhece que a vida eacute sem sentido mas que no entanto aos olhos de tal homem natildeo deveria ser

O que deve ser destacado aqui eacute que mesmo esses valores que surgem desde um impulso de dizer natildeo agrave vida na pretensatildeo de impor para ela um caraacuteter de ser estaacutetico surgem desde o que a vida eacute como vontade de poder Eacute a

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proacutepria vontade de poder em sua dinacircmica de criaccedilatildeo de perspectivismos que fornece tais pontos oacuteticos como refuacutegio para a vida que definha por natildeo suportar ser sem fundamento ser sem sentido Assim podemos exemplificar isto com o que Nietzsche nos apresenta como ideal asceacutetico em sua terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral indicando que tal ideal que promove o niilismo ao estabelecer valor desde a postulaccedilatildeo de um mundo suprassensiacutevel em contraposiccedilatildeo ao mundo aparente e real impondo agrave vida um fundamento alheio um fundamento que natildeo existe eacute um ideal que representa uma ldquovontade de nadardquo como afirma Brusotti em seu artigo Ressentimento e Vontade de Nada

Nesse sentido o que o asceacutetico natildeo suporta eacute a natureza da vida de nada ser e para consolar-se de tal natureza acaba arrogantemente postulando de qualquer maneira algo que lhe confira sentido agrave vida Como afirma Nietzsche em Genealogia da Moral ldquo no fato de o ideal asceacutetico haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana o seu horror vacui [horror ao vaacutecuo] ele precisa de um objetivo ndash e preferiraacute ainda querer o nada a nada quererrdquo (NIETZSCHE 2009 p 80) Portanto para o homem asceacutetico niilista eacute preferiacutevel querer um mundo fictiacutecio e mentiroso que lhe confira alguma seguranccedila do que afirmar a proacutepria natureza de nada ser substancialmente Mas o que deve ganhar destaque aqui eacute justamente essa capacidade de criaccedilatildeo de realidade que o ideal asceacutetico fornece Ao fazer surgir um sentido o ideal asceacutetico promove a vontade de ainda se sentir vivo promove a conservaccedilatildeo daquele que natildeo aceita a vida como luta para constituir-se presenteando aqueles que tecircm o ideal asceacutetico como fundamento um sentido para viver Aqui o querer asceacutetico ainda promove acircnimo pois querer o nada ainda se revela como um querer Como nos mostra Muumlller-Lauter para se firmar nesse mundo ideal fictiacutecio o

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ideal asceacutetico tambeacutem teve que ser afetado por forccedila tambeacutem teve que advir de uma vontade criadora

Por um lado vida se nega na praacutexis asceacutetica Pois esta eacute somente uma ponte para uma outra forma de existecircncia oposta agrave vida Nesse contexto precisa-se de forccedila para ldquoestancar as fontes de forccedilardquo Assim aqui domina a aversatildeo agrave vida Por outro lado poreacutem o ideal asceacutetico representa um ldquoartifiacutecio de conservaccedilatildeo da vidardquo Pois se a vida eacute apenas ponte entatildeo eacute preciso que se edifique e se fixe nela O sacerdote asceacutetico atraveacutes da potecircncia de seu desejo ldquode ser outro de estar em outro lugarrdquo fica aprisionado justamente nesta vida Com isso ldquoesse negador pertence agraves enormes forccedilas conservadoras e afirmadoras da vidardquo (MUumlLLER-LAUTER 2009 p 130)

Assim a vontade negadora da vida a vontade de

nada do fictiacutecio e mentiroso eacute como afirma Brusotti ldquoum faute de mieux por falta de uma vontade melhorrdquo (BRUSOTTI 2000 p 6) O que implica que toda vida se baseia desde uma interpretaccedilatildeo de sentido desde uma maneira de atribuir valor presenteado pela proacutepria vida como vontade de poder a partir de um ponto oacutetico Como salienta Gianni Vattimu ldquotoda forma de vida precisa de uma verdade de um sistema de condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e desenvolvimento projetado em uma interpretaccedilatildeo do mundordquo (VATTIMO 2010 p 244)

Desta maneira tomando o ideal asceacutetico como exemplo de uma manifestaccedilatildeo propriamente niilista o niilismo aqui surge como sendo tambeacutem advindo do que vida eacute como vontade para poder impulso intensamente criador na medida em que manifesta a inauguraccedilatildeo de novas realidades calcadas em fins e fundamentos uacuteltimos o que atribui sentido agrave vida No entanto como visto tal sentido eacute atribuiacutedo desde a crenccedila em uma realidade alheia

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ao que vida eacute propriamente como vontade de poder A manifestaccedilatildeo de fenocircmenos como metafiacutesica religiatildeo ciecircncia e etc representa a manifestaccedilatildeo da vontade de poder que nega a si mesmo para a sua conservaccedilatildeo Para Nietzsche a vontade de poder por excelecircncia encontra sua apariccedilatildeo na arte pois esta tem seu vigor ao afirmar a vida assim como ela eacute como vontade para poder 2 Vontade de Poder como Arte A Vontade de Poder

por Excelecircncia Como visto para Nietzsche vida eacute vontade de

poder em seu eterno retorno eacute dinacircmica de apariccedilatildeo que se mostra desde diferentes perspectivas na criaccedilatildeo de realidades que visam o seu proacuteprio incremento a sua auto-superaccedilatildeo Neste sentido vontade de poder eacute aquilo que possibilita o aparecer da realidade da vida mesmo que tal mostraccedilatildeo manifeste uma negaccedilatildeo da proacutepria vida Diferentemente do niilismo que manifesta justamente esse impulso criador advindo da vontade de poder que se volta contra ela mesma para a sua conservaccedilatildeo Nietzsche aponta para a arte o caraacuteter de supremacia da vontade de poder Mas em que medida Nietzsche atribui esse caraacuteter para a arte

Para Nietzsche seria atraveacutes da arte que o homem poderia dar-se conta do que vida eacute em seu ser proacuteprio do que vida eacute como dinacircmica de mostraccedilatildeo de perspectivas que natildeo cessam de aparecer de vida como vontade de poder em eterna retomada natildeo tendo fundamento uacuteltimo substancial nem um sentido ou finalidade mas tendo como uacutenico empenho o aparecer gratuito para incrementar-se em novas apariccedilotildees Arte aqui seria aquilo que mostraria ao homem a vida em sua transparecircncia Assim nos explica Cordeiro ldquoSer transparente tem o sentido portanto de deixar vida aparecer torna-se visiacutevel atraveacutes de si como sendo perspectiva como o que natildeo cessa de aparecer e que

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tem sempre de retornar como aparecircnciardquo (CORDEIRO 2010 p 105-206) Desta forma eacute pela manifestaccedilatildeo da arte que se mostra aquilo que a vida tem como encoberto como silenciado

O caraacuteter de vida como aquilo que natildeo tem fundamento algum como abissal sem fundo eacute pela arte manifestado mostrado Ao se deparar com o fenocircmeno artiacutestico o homem pode perceber a vida como aquilo que se mostra gratuitamente na criaccedilatildeo de novas realidades de novas apariccedilotildees de ser Eacute pelo artista que vida se mostra como aquilo que originariamente ela eacute ou seja como um jogo que ganha forma com aquilo que fundamenta e possibilita as vaacuterias formas distintas de aparecer Ganhar forma eacute ganhar manifestaccedilatildeo de ser eacute ser a mostraccedilatildeo da perspectiva que se presenteou E como dito tal perspectiva tal valor soacute eacute por aquilo que estaacute velado em toda mostraccedilatildeo por aquilo que eacute vontade para poder ser tal manifestaccedilatildeo

Para Nietzsche o ver do filoacutesofo como artista eacute o ver do que fundamenta eacute o ver daquilo que estaacute por traacutes de toda apariccedilatildeo eacute o ver que vecirc aquilo que estaacute oculto velado e silenciado em todo aparecer Ao se fazer com a coisa manifestada o artista aparece como aquele que possibilita o dar-se conta de que tal coisa eacute apenas um ponto oacutetico uma perspectiva presenteada pela vida na intenccedilatildeo de tatildeo somente aparecer se mostrar brotar Eacute nesse sentido que arte eacute o que possibilita a transparecircncia da vida em se mostrar em sua dinacircmica mais proacutepria em sua essecircncia mais iacutentima como nada como o que natildeo corresponde a nada que subjaz como o que eacute somente vontade para poder

Eacute no acontecer do artista que se percebe um arqueacutetipo do que vida eacute originalmente Eacute na arte que se daacute criaccedilatildeo produccedilatildeo de criaccedilotildees A vida como a grande possibilitadora de criaccedilotildees da realidade encontra na arte a manifestaccedilatildeo mais proacutepria de si A vida como esta que

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incessantemente insiste em criar e recriar a si mesma incrementa-se ganha forccedila justamente nesse movimento de criaccedilotildees diferenciadas do mesmo O artista como aquele que estaacute aberto para o abandono do jaacute constituiacutedo na escuta do que eacute inaugural exemplifica o comportamento criador da vida que se cria e se recria na medida em que acontece na medida em que se mostra perspectivisticamente O artista eacute aquele que abandona o jaacute criado para voltar-se para um novo processo criador para uma nova inauguraccedilatildeo de modos de ver para uma nova possibilidade de manifestaccedilatildeo da realidade Desta maneira Nietzsche aponta para a vontade de poder como arte a suprema vontade de poder pois eacute aquela que possibilita ao homem perceber o proacuteprio caraacuteter de tudo o que existe como vontade como possibilidade de mostraccedilatildeo No fragmento 796 de A Vontade de Poder Nietzsche pronuncia ldquoO mundo como obra de arte que daacute a luz a si mesma - -rdquo (NIETZSCHE 2008 p 397) Mundo se constitui por um poder de forccedila criadora por um poder que eacute artiacutestico Vida ldquoeacuterdquo desde uma forccedila criadora forccedila que se desperdiccedila no impulso de pura e simplesmente brotar aparecer se mostrar Mundo diz respeito agrave criaccedilatildeo gratuita de realidades de modos de ver de vontades para ser que se manifestam desde a mesma forccedila criadora insistente em desperdiccedilar-se no seu tomar-se aparecircncia E eacute nesse desperdiacutecio que vida ganha sua interpretaccedilatildeo mais vigorosa pois natildeo visa nada aleacutem de seu proacuteprio movimento natildeo visa nada aleacutem de si mesma e de sua gratuidade se afirmando em juacutebilo de si em acircnsia e prazer de si e em nada mais que isso

Assim a vontade de poder como arte eacute a vontade de poder que representa a afirmaccedilatildeo da vida o proacuteprio acircnimo Eacute pela arte que se percebe o movimento da vontade que se contrapotildee a todo impulso de negaccedilatildeo da vida a todo impulso que obriga agrave vida a um caraacuteter de dever ser A vontade de poder como arte eacute a vontade de poder que se

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manifesta como o oposto ao niilismo Na segunda parte do fragmento 853 de A Vontade de Poder Nietzsche apresenta ldquoa arte como a uacutenica forccedila contraacuteria superior em oposiccedilatildeo a toda vontade de negaccedilatildeo da vida anticristatilde antibudista e antiniilista par excellencerdquo (NIETZSCHE 2008 p 427) A arte se contrapotildee ao niilismo por desde o jaacute afirmado representar o caraacuteter proacuteprio de criaccedilatildeo da vida por afirmar a vida como abandono do jaacute constituiacutedo para a inauguraccedilatildeo de uma nova realidade O niilismo como impulso negador da vida ao impor a esta uma natureza de ser substancial imutaacutevel e permanente se depara com a arte que o coloca como uma das maneiras pela qual vida aparece

O acontecer do niilismo se confronta com a arte que o aponta como uma das obras artiacutesticas da vida como vontade de poder Desta maneira o niilismo europeu eacute superado pelo reconhecimento e a afirmaccedilatildeo da vida como um nada que artisticamente cria valores para tatildeo somente brotar irromper O niilismo associado agrave arte eacute uma nova forma de niilismo natildeo sendo mais um negador da vida na criaccedilatildeo de valores e sentidos alheios a esta que desembocam em um pathos do em- vatildeo em descrenccedila naquilo que em um momento forneceu crenccedila na vida mas tal forma de niilismo associado agrave arte eacute aquele que reconhece a vida como um nada afirmando esse nada como aquilo que possibilita a criaccedilatildeo de novos valores que natildeo seratildeo vistos como o uacuteltimo sentido da realidade mas como modos de apariccedilatildeo possibilitados pelo caraacuteter artiacutestico e criador da vida como vontade de poder

Ainda no fragmento 853 agora na quarta parte Nietzsche ainda mostra a relaccedilatildeo de arte e verdade declarando ldquoque a arte tem mais valor que a verdaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 427) Eacute preciso ressaltar aqui que a verdade da qual Nietzsche estaacute falando diz respeito agrave verdade metafiacutesica substancial que procura determinar o ser das coisas o substrato uacuteltimo da realidade Ter mais valor

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significa ter mais capacidade de engendrar pontos de vista a partir do que a vida presenteia Como afirma Heidegger em sua obra Caminhos de Floresta no texto A Palavra de Nietzsche ldquoDeus morreurdquo o valor como esse ponto de visatildeo presenteado pela vida ldquo eacute posto sempre por e para um verrdquo (HEIDEGGER 2002 p 263) Entatildeo valor eacute uma perspectiva doada pela proacutepria vida

Sendo vida vontade de poder que anseia incessantemente para criar e doar tais modos de ver diferenciadamente atentamos para a verdade metafiacutesica o caraacuteter de ser uma dessas manifestaccedilotildees da vida como vontade Nesse sentido eacute o poder artiacutestico da vida que possibilita a criaccedilatildeo de crenccedila em uma verdade metafiacutesica Natildeo eacute o homem que desde suas postulaccedilotildees antropomoacuterficas concebe um caraacuteter de verdade agrave vida Antes eacute a proacutepria vida que se mostra e se permite ver desde tal valor O que permite ao homem a accedilatildeo de conferir valor natildeo retira vigor do proacuteprio homem mas desde o que a vida eacute em sua natureza mais proacutepria desde o que a vida eacute como vontade de poder em seu eterno retorno impulsivo para a criaccedilatildeo de uma nova realidade para em seu caraacuteter artiacutestico inaugurar verdades

Eacute soacute atraveacutes da arte que o homem encontra representaccedilatildeo daquilo que eacute vida em sua natureza proacutepria Atraveacutes da arte o homem pode perceber a vida em sua originalidade em sua incessante vontade para poder vir a ser exaltando a vida em sua exposiccedilatildeo gratuita e sem sentido sem fim ou fundamento abraccedilando a vida em seu ser devir que nada assegura como um lastro uacuteltimo preacute-constituiacutedo que almeja tatildeo somente brotar aparecer recriar realidades Eacute atraveacutes da arte que o homem pode entatildeo perceber aquilo que estaacute por traacutes de tudo o que aparece

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Conclusatildeo Desde o que foi exposto podemos aqui apontar

para um dos maiores problemas da filosofia de Nietzsche em seu olhar diante do que aparece como possibilidade de futuro da humanidade o niilismo europeu Ao falar de niilismo Nietzsche o faz afirmando que este representa a loacutegica de toda histoacuteria do homem ocidental a partir da tradiccedilatildeo do platonismo da metafiacutesica atestando que o advento de tal movimento soacute poderaacute ser sentido nos seacuteculos XX e XXI Para Nietzsche nossa contemporaneidade eacute marcada por tal advento que representa a queda dos supremos valores a descrenccedila nisso que o ser humano tem como vida justamente por ser pelo niilismo que o homem engendra valores e expectativas agrave vida mas de maneira improacutepria

O caminho traccedilado pela humanidade pode ser descrito a partir daqui como o que aponta para um cansaccedilo um desgosto com a vida Nietzsche nos apresenta a arte como forccedila contraacuteria a esse niilismo Eacute pela arte que o homem pode reconhecer a natureza proacutepria da vida de natildeo ser nada que possa cabalmente definida nada que possa ganhar imposiccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo de realidade imutaacutevel A vida por ela mesma insiste em retornar como vontade como impulso para se constituir desde novas apariccedilotildees Eacute pela arte que o homem abraccedila a condiccedilatildeo de participar dessa dinacircmica que parte do abissal que parte do natildeo-fundamento Tal dinacircmica que anseia por manifestaccedilotildees gratuitas manifestaccedilotildees que se inspiram apenas para manifestar Abraccedilar a natureza proacutepria da realidade de ser vontade eacute afirmar que o proacuteprio niilismo representa mais uma de suas maneiras de apariccedilatildeo que pode ser superada pela afirmaccedilatildeo da gratuidade de novas apariccedilotildees

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Referecircncias BRUSOTTI Marco Ressentimento e Vontade de Nada

Traduccedilatildeo de Ernani Chaves In Cadernos Nietzsche 8 p 3-34 2000

CORDEIRO Robson C Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte Uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Editora Universitaacuteria UFPB 2010

HEIDEGGER Martin A palavra de Nietzsche ldquoDeus morreurdquo in Caminhos de Floresta Traduccedilatildeo de Alexandre Franco de Saacute Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

MUumlLLER-LAUTER Wolfgang Nietzsche sua Filosofia dos Antagonismos e os Antagonismos de sua Filosofia Traduccedilatildeo de Clademir Araldi Satildeo Paulo Editora Unifesp 2009

NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Trad de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

___________________ Assim Falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1995

___________________ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

___________________ Genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009

VATTIMO Gianni Diaacutelogo com Nietzsche ndash Ensaios 1961-200 Traduccedilatildeo de Silvana Cobucci Leite Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

O problema da superaccedilatildeo da

metafiacutesica na criacutetica

fenomenoloacutegica de Heidegger

Luismar Cardoso de Queiroz1

O periacuteodo que compreende os anos iniciais da

atividade filosoacutefica de Heidegger natildeo deve ser encarado como um estaacutegio esquecido no caminho do seu pensamento As diferenccedilas que demarcam o pensamento heideggeriano ndash pensamento que se estende por mais de meio seacuteculo ndash satildeo apenas nuances de um mesmo elemento que natildeo perde em nada a sua forccedila de determinaccedilatildeo Para demonstrar o modo como aquilo que emerge nos anos iniciais se manteve decisivo durante o percurso de sua filosofia Heidegger ao caracterizar a trajetoacuteria de sua obra cita um verso de Houmllderlin que diz ldquoPois assim como iniciastes permaneceraacutesrdquo (HEIDEGGER apud STEIN 2001 p 300)

Como sabemos o princiacutepio elementar em funccedilatildeo do qual se move a filosofia de Heidegger desde o seu inicio eacute o problema do ser Em toda extensatildeo de sua obra eacute impossiacutevel delimitarmos um momento de pensamento que natildeo esteja sob a forccedila de atraccedilatildeo desta questatildeo O fervor com que Heidegger atacou o academicismo filosoacutefico de sua eacutepoca eacute uma consequecircncia direta da intensidade com que buscou recolocar uma questatildeo que segundo ele fora esquecida pela tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental e que no iniacutecio do seacuteculo XX a questatildeo jaacute alcanccedilara o niacutevel maacuteximo de sua demissatildeo Heidegger afirma nas primeiras linhas de ldquoSer e Tempordquo que mesmo em meio a uma eacutepoca onde ldquose

1 Doutorando pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN

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arrogue o progresso de afirmar novamente a lsquometafiacutesicarsquordquo (HEIDEGGER 2005 p 27) o fato eacute que a questatildeo que deu focirclego primordial agrave filosofia no Ocidente caiu no esquecimento A tentativa de recolocar de modo proacuteprio esta questatildeo natildeo significa meramente repetir o projeto da metafiacutesica tradicional que inevitavelmente se concretizou como um modo de encobrimento de seu elemento originaacuterio Nisto incorreu tambeacutem a cultura filosoacutefica de sua eacutepoca que na tentativa de superar a metafiacutesica tradicional se enveredou no mesmo desvio essencial

Heidegger portanto como toda grande personalidade na histoacuteria da filosofia suscita alternativas que intencionam apresentar um ponto de convergecircncia para a discussatildeo de problemas aparentemente solucionados mas que conservam a profundidade de complicaccedilotildees tatildeo urgentes que podem decidir o futuro da filosofia O elemento que viraacute agrave tona no pensamento de Heidegger e que permaneceraacute pensado durante a trajetoacuteria de sua filosofia jaacute desde o seu princiacutepio esboccedila uma reaquisiccedilatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica Este elemento assume uma seacuterie de designaccedilotildees tais como ldquovida faacuteticardquo ldquoeu histoacutericordquo ldquocoisa primordialrdquo ldquoexperiecircncia faacutetica da vidardquo ldquofacticidaderdquo ldquoDaseinrdquo entretanto todos buscam ressaltar o solo originaacuterio a partir do qual se torna possiacutevel uma recapitulaccedilatildeo da questatildeo do ser bem como uma plausiacutevel superaccedilatildeo da metafiacutesica

Em todas as fases do pensamento ontoloacutegico de Heidegger eacute possiacutevel constatarmos tentativas de acesso agrave originaacuteria dimensatildeo do sentido do ser Isto torna evidentemente possiacutevel um intercacircmbio de noccedilotildees fenomenoloacutegicas entre o pensamento do jovem Heidegger e os momentos posteriores de sua filosofia Evidentemente este intercacircmbio de noccedilotildees eacute regulado pela consideraccedilatildeo de que a diversidade de noccedilotildees eacute causada pela alteraccedilatildeo dos mecanismos conceituais que sob a tentativa de uma interpretaccedilatildeo do ser estatildeo sempre em processo de

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remodelaccedilatildeo Esta diversidade de caminhos de pensamento explica-se pelo fato de a proacutepria linguagem em seus elementos constitutivos se encontrar encharcada pela conceptualidade ontoloacutegica da tradiccedilatildeo Neste sentido procurar pocircr em explicitaccedilatildeo a fugaz dimensatildeo dos fenocircmenos originaacuterios eacute vivenciar o quebrantamento constante da linguagem Deste modo o presente artigo visa apresentar o modo como a criacutetica filosoacutefica de Heidegger traz agrave tona a possibilidade de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Introduziremos uma noccedilatildeo provisoacuteria de superaccedilatildeo da metafiacutesica como tambeacutem indicaremos um direcionamento para a realizaccedilatildeo dessa superaccedilatildeo Faremos isto atraveacutes de uma analise que coloca em intercacircmbio noccedilotildees fenomenoloacutegicas que se localizam tanto no pensamento do jovem Heidegger (periacuteodo que compreende sua aproximaccedilatildeo com a compreensatildeo faacutetica da vida cristatilde) como tambeacutem no periacuteodo que procede ldquoSer e Tempordquo periacuteodo no qual Heidegger potildee em tematizaccedilatildeo o problema de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica e a histoacuteria do ser

Primeiro procuraremos demonstrar de que modo o caraacuteter paradigmaacutetico da racionalidade justifica a necessidade de superaccedilatildeo da metafiacutesica Nesse sentido veremos o modo como sob a efusatildeo das noccedilotildees constitutivas da hermenecircutica da facticidade a realizaccedilatildeo de uma economia onto-teoloacutegica no pensamento do jovem Heidegger possibilita uma alternativa para escapar do solipsismo da racionalidade metafiacutesica Em segundo lugar analisaremos o modo como a criacutetica heideggeriana empreende uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Assim encontraremos natildeo uma criacutetica que se volta contra a metafiacutesica mas um pensamento que coloca em exposiccedilatildeo o solo primordial da metafiacutesica Em terceiro veremos o modo como a compreensatildeo da diferenccedila ontoloacutegica jaacute evocada nos anos iniciais da filosofia de Heidegger sob a noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica da vida tonifica o pensamento

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que supera a racionalidade metafiacutesica Por uacuteltimo demonstraremos a necessidade de uma reexposiccedilatildeo do caraacuteter problemaacutetico do ser possibilitando uma tematizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial que pensada nos termos da experiecircncia faacutetica da vida confirma a criacutetica fenomenoloacutegica como um ldquopocircr-se a caminhordquo na direccedilatildeo de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica

1 A problemaacutetica da superaccedilatildeo da metafiacutesica

A tentativa de superaccedilatildeo da metafiacutesica efetuada

durante o seacuteculo XVIII pelos positivistas natildeo representa simplesmente a tentativa de transpor uma doutrina filosoacutefica mas superar aquela modalidade de pensamento que abarcava a compreensatildeo da realidade na tradiccedilatildeo filosoacutefica O que se almejava suplantar era a proacutepria racionalidade metafiacutesica que embrenhada profundamente nas produccedilotildees culturais do Ocidente encontrava-se em descompasso com o programa proposto pela nova ciecircncia

O periacuteodo de transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o seacuteculo XX eacute marcado por um mal-estar cultural que inevitavelmente seria somatizado pela eclosatildeo das duas Grandes Guerras Mundiais O modelo de racionalidade pautado nos ideais iluministas acabara de adquirir um amargor insuportaacutevel para os espiacuteritos ceacuteticos daqueles que haveriam de definir a orientaccedilatildeo cultural do pensamento contemporacircneo A respeito desta turbulecircncia espiritual Gadamer demonstra a inquietaccedilatildeo que naqueles dias colocou em suspense o modelo de racionalidade iluminista dizendo

[] natildeo haacute como se espantar com o fato de os espiacuteritos liacutederes desse tempo terem se perguntado o que havia de falso nessa crenccedila na ciecircncia nessa crenccedila na humanizaccedilatildeo e no policiamento do mundo falso no suposto desenvolvimento da

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sociedade para o progresso e para a liberdade (GADAMER 2012 p 238)

A proacutepria racionalidade havia tomado consciecircncia

de seu caraacuteter paradigmaacutetico bem como de suas limitaccedilotildees ndash o que implicava necessariamente na urgecircncia de sua superaccedilatildeo A ldquobelle epoacutequerdquo iluminada pelo esplendor da mentalidade cientiacutefico-racional se desmantelara completamente junto com amarras espirituais que a sustentavam Entretanto como poderia a razatildeo encontrar os caminhos da superaccedilatildeo de si mesma Natildeo seria isto um inevitaacutevel contrassenso uma autotraiccedilatildeo Natildeo incorreria o pensamento racional naquele mesmo equiacutevoco que acusa Hegel ter cometido a filosofia transcendental ou seja ldquonatildeo querer entrar nrsquoaacutegua antes de ter aprendido a nadarrdquo (HEGEL 1995 p 109) Como eacute possiacutevel a razatildeo superar-se sem se reiterar na superaccedilatildeo Como se colocar em busca de um fundamento para aleacutem da racionalidade cientiacutefica se a proacutepria dinacircmica transcendente do ldquopara aleacutemrdquo eacute imanente agrave atividade racional

Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX perante a agonia apocaliacuteptica que afligia a Europa a atividade filosoacutefica passara a assumir uma tonalidade milenarista Urgia a necessidade de se encontrar uma alternativa redentora que fosse capaz de desbancar de uma vez por todas o impeacuterio da racionalidade metafiacutesica Em contrapartida a comunidade filosoacutefica alematilde atraveacutes do movimento neokantiano havia elegido a filosofia de Kant como modelo de orientaccedilatildeo na busca de um fundamento capaz de sustentar a validade do conhecimento cientiacutefico Este fundamento a despeito do qual as escolas de Marburgo e Baden haveriam de travar uma intensa discussatildeo significava muito mais do que um fundamento epistemoloacutegico representava no fundo em tempos como aqueles um porto seguro em meio agrave instabilidade espiritual vivenciada pela cultura europeacuteia A dimensatildeo aberta pelo

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idealismo transcendental apresentava-se como uma fonte rica e adequada para as diversas apropriaccedilotildees neokantianas que intencionavam a obtenccedilatildeo de uma efetiva virada no processo do conhecimento Ora o que representava esta virada se natildeo o vir agrave tona daquela certeza indubitaacutevel do sujeito cartesiano Procurava-se de fato um eixo de sustentaccedilatildeo para a realidade cognitiva O que demonstrava claramente o quanto a atividade filosoacutefica permanecia apesar dos inuacutemeros esforccedilos retida agrave esfera paradigmaacutetica da racionalidade metafiacutesica da qual desejava se libertar A proacutepria necessidade metodoloacutegica de um fundamento uacuteltimo de um princiacutepio puro e absoluto confirmava o predomiacutenio da racionalidade metafiacutesica Heidegger declara a ineficaacutecia do projeto neokantiano ao afirma que

O neokantismo (Nartorp) inverteu o processo simplesmente da lsquoobjetivaccedilatildeorsquo (conhecimento da objetualidade) e alcanccedilou assim a lsquosubjetivaccedilatildeorsquo (a qual deve apresentar psicoloacutegica e filosoficamente o processo) Nisso a objetualidade apenas eacute transferida do objeto em sujeito o conhecer enquanto conhecer permanece poreacutem o mesmo fenocircmeno natildeo esclarecido (HEIDEGGER 2010 p 15)

Alcanccedilar o conhecer enquanto conhecer ou seja

esclarecer o conhecer em processo representa a via de fuga para o dilema apresentado por Hegel dilema esse que expressa o predomiacutenio absoluto da esfera da racionalidade O projeto neokantiano bem como toda a criacutetica agrave metafiacutesica que se desenvolve a partir do seacuteculo XIX falha ao natildeo ter em conta o que afirma Heidegger em ldquoSer e Tempordquo dizendo

Toda ideia de ldquosujeitordquo ndash a menos que tenha sido depurada por uma preacutevia determinaccedilatildeo ontoloacutegica fundamental ndash continua pondo ontologicamente na

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partida o subjectum (ύποχείμενον) por mais enfaacutetica que seja a oposiccedilatildeo ocircntica agrave ldquosubstancializaccedilatildeo da almardquo ou agrave ldquocoisificaccedilatildeo da consciecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 151)

A colocaccedilatildeo de um subjectum no ponto de partida

ou seja a colocaccedilatildeo de algo subjacente de algo que estaacute na base e portanto como estacircncia de sustentaccedilatildeo jaacute implica num deslocamento do pensamento para fora daquela perspectiva da realizaccedilatildeo do conhecer em processo A tendecircncia de projetar um fundamento uacuteltimo para aleacutem ou para aqueacutem da razatildeo cientiacutefica jaacute por si soacute reitera a forma de racionalidade que se quer superar Do mesmo modo o

termo grego ύποχείμενον cujo sentido expressa ldquoo que estaacute agrave matildeordquo e com isso disponiacutevel ao uso ressalta ainda mais o caraacuteter preacute-dominante da racionalidade metafiacutesica Eacute submetendo a si que o paradigma da racionalidade metafiacutesica estrutura toda compreensibilidade do real Natildeo eacute por menos que a famosa maacutexima do idealismo hegeliano publicada em sua ldquoFilosofia do Direitordquo onde se diz que ldquoO que eacute racional eacute efetivo e o que eacute efetivo eacute racionalrdquo proponha com tanta veemecircncia que o limite da realidade eacute delimitado pelo conceito Para Heidegger Hegel eacute o ponto de culminacircncia de toda a experiecircncia ontoloacutegica inaugurada pelos gregos e perpassada por toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica Deste modo a maacutexima hegeliana representa muito mais do que uma tese perioacutedica ela sintetiza o caraacuteter essencial da racionalidade ocidental onde em sintonia com esta nada poderaacute existir se natildeo for idecircntica a si mesma

Esta reclusatildeo solipsista da razatildeo ocidental perpetua o impeacuterio de sua solidatildeo absoluta A proacutepria alteridade sob a insiacutegnia da representaccedilatildeo eacute produto de seus processamentos endoacutegenos Descartes havia encontrado na indubitabilidade do cogito pensante um ponto de apoio seguro para resgataacute-lo das incertezas da contingecircncia sensiacutevel Entretanto natildeo foi capaz de perceber que jaacute

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estava agrave mercecirc de um outro ldquogecircnio malignordquo um de natureza ainda mais sublime Destarte uma criacutetica agrave racionalidade metafiacutesica deveria levar em consideraccedilatildeo a ldquoingenuidade dos filoacutesofosrdquo (NIETZSCHE 2010 p 31) ndash como denuncia Nietzsche ndash perante a genialidade da razatildeo paradigmaacutetica como condiccedilatildeo fundamental da histoacuteria da filosofia ocidental Eacute neste sentido que Heidegger iraacute assumi-la considerando o pensamento que sempre de novo reitera um subjectum como condiccedilatildeo inerente ao existir humano

O projeto de superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica empreendido a partir do seacuteculo XIX em diante natildeo foi capaz de realizar suas pretensotildees Natildeo porque natildeo haja um caminho plausiacutevel para tal projeto mas sim porque ao inveacutes de se propor um determinado conteuacutedo quumliditativo deve-se antes analisar a proacutepria postura do pensamento que impotildee este conteuacutedo Deste modo eacute pela compreensatildeo da racionalidade que se abre o caminho de acesso agrave dimensatildeo do conhecer em sua realizaccedilatildeo Tendo em vista essa meta Heidegger em seus primeiros anos prescinde da proacutepria ideia de fundamentaccedilatildeo ndash contexto fundador ndash e propotildee o desalentador natildeo-lugar da experiecircncia faacutetica da vida que posteriormente em ldquoSer e Tempordquo se configuraria no vazio radical do Dasein Soacute nesta dimensatildeo segundo Heidegger seria possiacutevel uma autecircntica inversatildeo no processo do conhecimento Pois na experiecircncia faacutetica da vida eacute que se manteacutem em confronto aquilo do que a vida foge sob a forma da reclusatildeo solipsista da razatildeo absoluta ndash o impeacuterio da razatildeo eacute uma fuga da inquietante situaccedilatildeo existencial humana

Poder e dissimulaccedilatildeo satildeo marcas profundas da racionalidade ocidental Ela domina para poder dissimular a inquietaccedilatildeo de fundo da situaccedilatildeo existencial humana Heidegger declara na ldquoIntroduccedilatildeo agrave Fenomenologia da Religiatildeordquo que a vida busca asseguramentos contra a inquietaccedilatildeo do histoacuterico Ora o que seriam estes

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ldquoasseguramentosrdquo Satildeo os contextos de fundamentaccedilatildeo que se destilam da historicidade da vida a partir da dinacircmica de pensamento que Heidegger caracteriza como queda na experiecircncia faacutetica da vida Esta dinacircmica perpassa toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica e isto fica ainda mais claro quando ressaltamos a necessidade intriacutenseca agrave reflexatildeo metafiacutesica de colocar para si mesma uma finalidade Os asseguramentos satildeo postos pela reflexatildeo teoacuterica-objetivante uma postura de pensamento imanente agrave racionalidade ocidental Nessa postura de pensamento os fenocircmenos satildeo desarraigados da brutalidade de sua condiccedilatildeo primordial Sob o peso inquietante da vida a racionalidade metafiacutesica responde com um ldquooacutedio gnoacutesticordquo agrave concretude histoacuterica que se expressa eloquumlentemente na elaboraccedilatildeo das formas puras e imutaacuteveis ndash verdades eternas

Entretanto Heidegger encontra esta medianidade faacutetica da vida realizada na experiecircncia religiosa do cristianismo primitivo E eacute precisamente ali na vida sob o abalo da feacute que ele capta os mecanismos conceituais capazes de elucidar a fugaz esfera da experiecircncia faacutetica da vida Os primeiros anos de Heidegger em Friburgo satildeo caracterizados por uma forte economia onto-teoloacutegica que consistia no influxo de categorias existenciais subjacentes agrave experiecircncia religiosa do cristianismo e o originariamente filosoacutefico Sob a tese de que ldquoo cristianismo primitivo vive (ou ensina) a temporalidaderdquo Heidegger destaca a partir da existencialidade cristatilde categorias preacute-cognitivas que resistentes agrave tendecircncia de queda na facticidade possibilitam um ponto de escape para reclusatildeo solipsista da racionalidade metafiacutesica Atraveacutes do influxo onto-teoloacutegico Heidegger possibilitou a abertura de um horizonte permeado por uma experiecircncia de pensamento inteiramente nova que reconquistando o que outrora fora reconhecido sob o conveniente tiacutetulo de irracional condiciona a realizaccedilatildeo de uma autecircntica transcendecircncia Pois o horizonte que se abre sob o influxo onto-teoloacutegico

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eacute aquele que se encontra sob o ponto cego da racionalidade teoacuterica-objetivante Entretanto eacute deste mesmo ponto que profusivamente emana toda atividade intelectiva A economia onto-teoloacutegica ao manter o pensamento em constante tensatildeo com o histoacuterico rompe o solipsismo da racionalidade ocidental abrindo-a para uma autecircntica heterogeneidade ou seja a experiecircncia do absolutamente e absurdamente outro Mesmo desdenhando dos meacutetodos e proposiccedilotildees de Spengler2 Heidegger afirma na ldquoIntroduccedilatildeo agrave Fenomenologia da Religiatildeordquo que este pressentiu numa dimensatildeo exclusivamente histoacuterica aquilo de que carece a filosofia Spengler afirma

Eis o que falta ao pensador ocidental e o que natildeo deveria faltar justamente a ele a compreensatildeo da natureza histoacuterica-relativa das suas conclusotildees que natildeo passam da expressatildeo de um modo singular de ser e somente dele O pensador ocidental carece do conhecimento dos inevitaacuteveis limites que restringem a validez de suas afirmaccedilotildees Ignora que suas ldquoverdades inabalaacuteveisrdquo e suas ldquopercepccedilotildees eternasrdquo satildeo verdadeiras soacute para ele e eternas unicamente do ponto de vista da sua visatildeo de mundo Natildeo se recorda do dever de sair de sua esfera para procurar outras verdades criadas com a mesma certeza por homens de culturas diferentes o que seria indispensaacutevel para que uma filosofia do futuro se pudesse completar Precisamente isso significa compreender o linguajar das formas histoacutericas e do mundo vivo (SPENGLER 1973 p 41)

2 Heidegger acredita que a filosofia da historia proposta por Spengler esteve desprovida daquilo que lhe seria essencial ou seja o histoacuterico em seu caraacuteter originaacuterio Isto foi apenas pressentido mas natildeo tematizado Para Heidegger o projeto filosoacutefico de Spengler eacute um locus a non lucendo ou seja algo cuja essecircncia natildeo corresponde ao que o nome sugere (Cf ZIMMERNAM 1990 p 27)

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2 A criacutetica heideggeriana e a superaccedilatildeo da metafiacutesica A questatildeo que aqui nos referimos eacute a questatildeo do

ser A retomada desta questatildeo primordial da filosofia que faraacute Heidegger revitalizar a tradiccedilatildeo se daraacute sob uma espeacutecie de paradigma inteiramente novo De fato a obliquidade da compreensatildeo inaugurada pela fenomenologia ontoloacutegica do jovem Heidegger se apresenta de forma tatildeo atiacutepica que concebecirc-la sob a forma de um novo paradigma jaacute nos coloca no interior da tradicional loacutegica que se quer suplantar Modificar o centro gravitacional da metafiacutesica natildeo implica necessariamente em uma transformaccedilatildeo substancial desta De fato o sistema permaneceraacute sempre o mesmo em meio agraves diversas reconfiguraccedilotildees natildeo importando quais mudanccedilas ocorram em seu centro quumliditativo Com isso o caraacuteter ineacutedito da filosofia heideggeriana natildeo se define pelo acreacutescimo de um novo eixo temaacutetico no corpo historiograacutefico da literatura filosoacutefica Antes caracteriza-se pela problematizaccedilatildeo das condiccedilotildees determinantes do sistema metafiacutesico Deste modo natildeo se trata exclusivamente de uma novidade mas de uma redescoberta Trata-se de repetir o que desde os antigos gregos se manteacutem inquietante e que durante toda historia espiritual do Ocidente foi encoberto com respostas

Neste redescobrir coloca-se em foco a plataforma originaacuteria do pensamento metafiacutesico donde se desarraiga os paradigmas da filosofia ocidental Se voltar para esta plataforma eacute destacar o centro ex-cecircntrico da metafiacutesica3

3 Este centro ex-cecircntrico natildeo nos absorve numa egocentricidade apropriante ao inveacutes disso nos arremessa sempre para fora de modo que nesta ex-pulsatildeo simultaneamente o ente se tematiza e encobre sua fonte originaacuteria Este centro ex-cecircntrico se daacute no nosso ser-aiacute mais imediato e a partir dele se desgarra o pensar e dizer objetivantes os quais operam uma ldquofixaccedilatildeo do permanenterdquo

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Ou seja o fundamento sem fundo que nunca pode dispor-se objetivamente como centro antes resistindo a toda contemplaccedilatildeo desvia de si os olhares teoreacuteticos condensando-os em objetividades metafiacutesicas Ora estas objetividades metafiacutesicas constituem o desvelamento fundante do conhecimento objetivo cuja orientaccedilatildeo da objetivaccedilatildeo do que se tematiza dirige-se para o ente e natildeo para o ser Neste movimento de objetivaccedilatildeo o pensar se fecha para o que se desvela originariamente Entretanto este desvio do pensamento tem sua ocorrecircncia e resultado uacuteltimo enraizados no solo originaacuterio da metafiacutesica que segundo Heidegger eacute a verdade do ser Neste sentido mesmo o modo de ser encobridor ainda permanece ligado ao elemento originaacuterio da metafiacutesica Destaquemos aqui uma passagem da conferecircncia de 1949 intitulada como ldquoIntroduccedilatildeo a lsquoO que eacute Metafiacutesicarsquordquo onde Heidegger demonstra com clareza esta ligaccedilatildeo

Pelo fato de a metafiacutesica interrogar o ente enquanto ente ela permanece junto ao ente e natildeo se volta para o ser enquanto ser Como a raiz da aacutervore ela [a metafiacutesica] envia todas as seivas e forccedilas para o tronco e os ramos A raiz se espalha pelo solo para que a aacutervore dele [o solo] surgida possa crescer e abandonaacute-lo A aacutervore da filosofia surge do solo onde se ocultam as raiacutezes da metafiacutesica O solo e o chatildeo satildeo sem duacutevida alguma o elemento no qual a raiz da aacutervore se essencia O crescimento da aacutervore poreacutem jamais seraacute capaz de assimilar em si o chatildeo de suas raiacutezes de tal forma que desapareccedila como algo arboacutereo na aacutervore Pelo contraacuterio as raiacutezes se perdem no solo ateacute as uacuteltimas radiacuteculas O chatildeo eacute chatildeo para a raiz dentro dele ela se esquece em favor da aacutervore Tambeacutem a raiz ainda pertence agrave aacutervore mesmo que a seu modo se entregue ao elemento do solo Ela [a metafiacutesica] dissipa seu elemento e a si mesma pela aacutervore Como raiz ela natildeo se volta para o solo ao menos natildeo de modo tal

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como se fosse sua essecircncia desenvolver-se apenas para si mesma neste elemento Provavelmente tambeacutem o solo natildeo eacute tal elemento sem que o perpasse a raiz (HEIDEGGER 2008 p 378)

A aacutervore da filosofia soacute pode crescer no abandono

do solo da verdade desencobridora do ser Entretanto mesmo em seu abandono permanece necessariamente nutrida e arraigada no solo originaacuterio do ser Eacute no elemento originaacuterio do solo do ser que a histoacuteria do pensamento Ocidental enquanto esquecimento do ser se essencia A proacutepria metafiacutesica enquanto raiz da aacutervore ao se espalhar pelo solo esquece a si mesma em sua profundidade um esquecimento que favorece diretamente o desenvolvimento da aacutervore Com isso foi o esquecimento essencial da metafiacutesica que nutriu continuamente o espiacuterito ocidental O que identificamos como cultura ocidental eacute fruto deste esquecimento Por isso mesmo eacute que a metafiacutesica em sua expansatildeo dissipa seu elemento e a si mesma em prol do crescimento da aacutervore De fato o abandono do solo eacute necessaacuterio para a ldquoconservaccedilatildeo e consistecircncia da vida humanardquo (HEIDEGGER 2008 p 82)

Por isso mesmo a criacutetica heideggeria natildeo compreende a si mesma como uma novidade mas como uma rememoraccedilatildeo do princiacutepio primordial perante o qual toda novidade jaacute se encontra de antematildeo superada A criacutetica se volta para o in-significado (ou seja aquilo que antecede originariamente a significacircncia do mundo) buscando explicitar o que se manteacutem in-diferente em meio agrave multiformidade do real Entretanto com que dignidade a filosofia de Heidegger evoca para si a capacidade de trazer agrave tona o que a si mesmo se desfoca em toda manifestaccedilatildeo ocircntica Como pode Heidegger garantir que a sua criacutetica agrave tradiccedilatildeo tambeacutem natildeo esteja secretamente sujeita agravequele ldquodestinamento essencial da metafiacutesicardquo que se caracteriza pela omissatildeo de seu solo originaacuterio

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Toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica em sua saga pelo ser comportou-se apenas com o ente Sua incapacidade natildeo consiste numa demissatildeo temaacutetica da questatildeo Pois ldquoa metafiacutesica expressa o ser constantemente e nas mais diversas modulaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER 2008 p 382) O problema do ser sempre inspirou a partir de uma profundidade originaacuteria o pensamento representacional da metafiacutesica Entretanto a incapacidade da metafiacutesica consiste em seu modo de interpretaccedilatildeo e portanto o problema da filosofia torna-se um problema de meacutetodo A reformulaccedilatildeo do meacutetodo resulta diretamente de uma reconsideraccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica entre ser e ente Ao buscar enunciar o ser a metafiacutesica sempre tinha em vista o ente na totalidade E deste modo ao desvelar o ente o ser mesmo que ilumina e condiciona a manifestaccedilatildeo do ente era velado por um pensamento que sucumbe na resposta

A criacutetica heideggeriana busca sujeitar o pensamento ao acircmbito proacuteprio da verdade do ser A superaccedilatildeo da metafiacutesica natildeo representa para Heidegger de modo algum a extinccedilatildeo dela Antes com esta superaccedilatildeo o que se busca eacute a conservaccedilatildeo de seu elemento fundamental bem como a elevaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico para o interior do acircmbito desencobridor do ser A metafiacutesica natildeo eacute abolida antes eacute confirmada Heidegger descreve bem a natureza desta superaccedilatildeo dizendo

Um pensamento que pensa a verdade do ser natildeo se contenta mais em verdade com a metafiacutesica mas um tal pensamento natildeo pensa contra a metafiacutesica Para voltarmos agrave imagem anterior ele natildeo arranca a raiz da filosofia Ele lhe cava o chatildeo e lhe lavra o solo A metafiacutesica permanece a primeira instacircncia da filosofia Ela natildeo alcanccedila poreacutem a primeira instacircncia do pensamento No pensamento da verdade do ser a metafiacutesica eacute superada (HEIDEGGER 2008 p 379)

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Entretanto como pode o pensamento mover-se na dimensatildeo da verdade do ser sem que se cristalize numa especulaccedilatildeo representacional velando de novo sua dimensatildeo originaacuteria Um caminho em direccedilatildeo agrave superaccedilatildeo da metafiacutesica soacute seraacute devidamente encontrado se o pensamento ndash ao resistir agrave tendecircncia essencial de representar o ente num movimento de objetivaccedilatildeo ndash manter-se a si mesmo pensante numa postura de docilidade para com o ser (uma ldquoquietude fascinadardquo) Ou seja numa ldquoadmiraccedilatildeo acolhedorardquo ou mesmo num ldquoatentar em uma escuta obediente ao que aparecerdquo (HEIDEGGER 2008 p 84) Isto eacute se esforccedilar por manter-se no dizer silencioso do ldquoaiacuterdquo ndash o aberto do ser Este eacute o acircmbito profundo do silecircncio essencial a respeito do qual afirma Nietzsche ldquoali tudo fala mas nada eacute ouvidordquo (NIETZSCHE 2014 p 176) pois se ouve com a violecircncia do ldquoouvir abstratamenterdquo (HEIDEGGER 1977 p 19) Nesta abertura os ldquocacarejosrdquo dos sons objetivantes cessam tornando-se oportuno o ldquosentar-se em silecircncio no ninho para chocar os ovosrdquo (NIETZSCHE 2014 p 176)

E o que representa esta figura senatildeo o pocircr em curso e deixar vir a ser o que se apresenta Gadamer iraacute reinterpretar este pensamento pensante que se potildee na escuta do ser e que possibilita a superaccedilatildeo da metafiacutesica como o ldquoverdadeiro ouvirrdquo (GADAMER (A) p 671) da experiecircncia hermenecircutica que tambeacutem eacute ldquoverdadeiro meacutetodordquo (Op cit p 673) Segundo ele sob a tutela deste pensamento que se potildee na escuta ldquonos entregamos por completo agrave forccedila do pensar e natildeo deixamos valer as ideacuteias e opiniotildees que pareciam loacutegicas e naturaisrdquo (Idem) Este eacute a postura de pensamento que se deixa levar pelo acontecimento do proacuteprio ser Heidegger apresenta uma clara distinccedilatildeo entre a experiecircncia especulativa hermenecircutica do pensar pensante e o modo de pensar representacional na seguinte descriccedilatildeo

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A experiecircncia cotidiana das coisas em sentido amplo nem eacute objetivante nem eacute uma objetivaccedilatildeo Quando por exemplo sentados no jardim alegramo-nos com as rosas em flor natildeo fazemos da rosa objeto e nem mesmo alguma coisa que se encontra contraposta ou seja algo tematicamente representado Quando em um dizer silencioso entrego-me ao vermelho brilhante da rosa e medito sobre o ser vermelho da rosa esse ser-vermelho natildeo eacute objeto nem eacute coisa nem eacute algo que se contrapotildee como rosa em flor A rosa estaacute no jardim balanccedila para laacute e para caacute ao sabor do vento Jaacute o ser-vermelho da rosa natildeo estaacute no jardim e nem pode balanccedilar ao sabor do vento Todavia penso e falo do ser-vermelho quando o nomeio Assim realiza-se um pensar e um dizer que de modo algum produz objetivaccedilatildeo (HEIDEGGER 2008 p 83)

Na contramatildeo do extravio do pensamento

objetivante podemos perceber a partir da citaccedilatildeo acima uma postura de pensamento que rompe com a loacutegica representacional da metafiacutesica Sob esta loacutegica tradicional o sentido do ser eacute interpretado segundo o modo de ser da presenccedila constante A loacutegica do pensamento objetivante perpassa a metafiacutesica tradicional poreacutem natildeo apenas ela a criacutetica moderna agrave metafiacutesica tambeacutem sucumbe perante esta loacutegica O projeto anti-metafiacutesico da filosofia moderna que encontra na criacutetica positivista seu expoente maacuteximo ao preconizar a aboliccedilatildeo da antiga metafiacutesica e apresentar a ciecircncia como uacutenico caminho capaz de conduzir o homem agrave experiecircncia fundamental da verdade natildeo apenas eacute perpassado pela loacutegica representacional da metafiacutesica como tambeacutem leva a cabo na orientaccedilatildeo objetivante de seu pensamento teacutecnico-cientificista o esquecimento do ser

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3 A diferenccedila ontoloacutegica na experiecircncia faacutetica da vida Vimos como o jovem Heidegger em um periacuteodo

decisivo do desenvolvimento de seu pensamento recorre agrave experiecircncia religiosa do cristianismo originaacuterio com o intuito de subsidiar a tarefa de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Neste sentido tornou-se possiacutevel vislumbrar o proacuteprio conceito e necessidade de uma superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica Depois disto tambeacutem indicamos que a proacutepria retomada da questatildeo ou do caraacuteter problemaacutetico do ser jaacute de certo modo antecipa este movimento de superaccedilatildeo ndash isto pode ser ilustrado por uma declaraccedilatildeo de Kant que diz ldquoSaber aquilo que se deve racionalmente indagar jaacute por si prova exuberacircncia de entendimento e sabedoriardquo (KANT 2014 p 70) Sendo assim para efeito de conclusatildeo procuraremos agora demonstrar o modo como a experiecircncia faacutetica da vida ao inveacutes de ser uma resposta ociosa que parte do absurdo de uma pergunta impensada constitui-se um caminho pelo qual se coloca de novo em marcha o pensar essencial da filosofia

Se pensarmos a superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica que se efetua na experiecircncia faacutetica da vida sob a luz da diferenccedila ontoloacutegica poderemos dispor de um acesso agrave dinacircmica de superaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico Com isto haveremos de ratificar por meio de uma sintonizaccedilatildeo com resultados posteriores agrave hermenecircutica da facticidade o modo como a experiecircncia faacutetica da vida promove uma experiecircncia de pensamento que atinge o elemento fundamental da metafiacutesica Veremos que ao se considerar a noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica da vida a partir de seu engajamento com a distinccedilatildeo ontoloacutegica a problemaacutetica do ser eacute reassumida em toda a sua intensidade

Em vista disso procuraremos promover um esclarecimento provisoacuterio do sentido da formulaccedilatildeo

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ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo Iremos apenas acentuar aquilo que na evocaccedilatildeo desta diferenccedila ressalta o caraacuteter originaacuterio da experiecircncia faacutetica da vida Em seguida explicitaremos a proacutepria noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica e o modo como tal experiecircncia pode efetuar a superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica

O emprego da expressatildeo ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo remonta ao inicio da deacutecada de 20 quando o jovem Heidegger ainda estava completamente absorto na elaboraccedilatildeo de uma hermenecircutica da facticidade O fato da ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo ter sido engendrada no seio do pensamento hermenecircutico o qual refletia a auto-compreensatildeo faacutetica do ser-aiacute existente eacute decisivo para ressaltarmos a forccedila de superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica na experiecircncia faacutetica da vida Pois se a reconsideraccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica potildee em quadro o desvio da racionalidade metafiacutesica de seu elemento fundamental a experiecircncia faacutetica da vida pode ser caracterizada como uma tentativa de retorno em meio agrave diferenccedila ontoloacutegica Por conseguinte postulamos que na experiecircncia faacutetica da vida encontra-se radicada a possibilidade da diferenccedila ontoloacutegica Eacute na esfera desta experiecircncia que o poder distinguir imanente agrave essecircncia proacutepria do ser-aiacute encontra a forccedila riacutetmica de sua estrutura dinacircmica

Retomemos aqui de modo provisoacuterio a compreensatildeo heideggeriana da noccedilatildeo de diferenccedila ontoloacutegica A distinccedilatildeo entre ocircntico e ontoloacutegico eacute o que delimita a essecircncia desta noccedilatildeo de diferenccedila Com o termo ldquoocircnticordquo Heidegger demarca o caraacuteter distintivo do ente perante o ser que por sua vez tem seu estatuto caracterizado sob o tiacutetulo de ldquoontoloacutegicordquo Esta distinccedilatildeo natildeo eacute meramente proposicional Ela visa antes de tudo explicitar uma condiccedilatildeo fundamental do nosso ser-aiacute cotidiano Conforme o testemunho de Gadamer Heidegger havia declarado que ldquoEssa distinccedilatildeo natildeo eacute de modo algum

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feita por noacutesrdquo (HEIDEGGER apud GADAMER 2007 p 92) Na verdade a diferenccedila ontoloacutegica apresenta um caraacuteter eminentemente faacutetico pois como declara Gadamer ldquonosso pensamento se encontra desde o princiacutepio sobre o caminho da diferenciaccedilatildeo do ente em seu serrdquo (Idem) Ou seja noacutes nos encontramos sempre nesta diferenccedila A todo momento nos relacionamos com este ou aquele ente ldquocomo se estiveacutessemos presos ao domiacutenio do enterdquo (HEIDEGGER 2008 p 120) Entretanto em nossa lida cotidiana com os entes que espontaneamente nos vecircm ao encontro somos sub-repticiamente perpassados por uma vaga e mediana compreensatildeo do ser Eacute no ente que o ser se desvela e por isto mesmo eacute que o ente espontaneamente se daacute Esta dadidade do ente (condiccedilatildeo de ser aiacute dado) confirma o caraacuteter faacutetico da diferenciaccedilatildeo do ente em seu ser A tensatildeo distintiva entre ente e ser em meio a nossa lida cotidiana eacute faacutetica e antecede as designaccedilotildees proposicionais

Na vivenciabilidade faacutetica desta diferenccedila ndash ao passo que algo se distancia no ocultamento de uma compreensatildeo mediana (o ser) ndash um despontar tem lugar Este caraacuteter faacutetico da diferenccedila seraacute posteriormente assumido por Heidegger como ldquoabertura do serrdquo ou mesmo como ldquoacontecimento apropriativordquo (GADAMER 2007 p 93) Nesta tensatildeo da diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica onde estaacute em jogo o ocultamento e desocultamento do ser o ldquoo mundo mundardquo (conforme a linguagem hermenecircutica do jovem Heidegger) Com a recolocaccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica nos deparamos com o proacuteprio fundamento da essecircncia do Dasein ou seja com o seu ser e estar na transcendecircncia Eacute neste sentido que declara Heidegger

Se entretanto por outro lado o elemento distintivo do ser-aiacute reside no fato de se relacionar com ente compreendendo o ser entatildeo o poder distinguir no qual a diferenccedila ontoloacutegica se torna faacutetica deve ter fincado a raiz de sua proacutepria

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possibilidade no fundamento da essecircncia do ser-aiacute A este da diferenccedila ontoloacutegica designamos jaacute nos antecipando transcendecircncia do ser-aiacute (HEIDEGGER 2008 p 146)

Tendo em vista portanto a disposiccedilatildeo da diferenccedila

ontoloacutegica na dimensatildeo da experiecircncia faacutetica o que Heidegger denomina como ocircntico visa designar a regiatildeo de abertura do ente seu ldquoacircmbito revelador natildeo predicativordquo Com isso a possibilidade de toda predicaccedilatildeo vaacutelida em nosso ser cotidiano estaacute enraizada nesta abertura preacute-predicativa que Heidegger denomina de verdade ocircntica Eacute nesta abertura ocircntica que a verdade da enunciaccedilatildeo (entendida como adequaccedilatildeo e conformidade da coisa com o conhecimento) tatildeo necessaacuteria para sustentaccedilatildeo do edifiacutecio das ciecircncias positivas encontra sua possibilidade radical

Entretanto esta abertura ocircntica eacute por sua vez iluminada e conduzida por uma compreensatildeo do ser Segundo Heidegger ldquoDesvelamento do ser eacute o que primeiramente possibilita a manifestaccedilatildeo do ente Esse desvelamento como verdade sobre o ser eacute chamado verdade ontoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2008 p 143) Esta compreensatildeo do ser natildeo eacute produto de uma conceituaccedilatildeo por isso mesmo eacute preacute-ontoloacutegica ou preacute-conceptual Toda e qualquer tentativa de conceituaccedilatildeo do ser parte do proacuteprio cerne da compreensatildeo preacute-ontoloacutegica Isto se daacute quando o ser preacute-ontologicamente compreendido eacute tematizado e problematizado pela proacutepria compreensatildeo preacute-ontoloacutegica Tais tentativas de conceituaccedilatildeo do ser engendram os ldquoconceitos fundamentaisrdquo das ciecircncias pois acabam por delimitar um campo especiacutefico ldquocomo aacuterea de objetivaccedilatildeo por meio do conhecimento cientiacuteficordquo (HEIDEGGER 2008 p 144)

Para Heidegger os niacuteveis e modulaccedilotildees da verdade ontoloacutegica que se estendem entre a compreensatildeo preacute-

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ontoloacutegica e as tentativas de conceituaccedilatildeo do ser traem ldquoa riqueza daquilo que como verdade originaacuteria fundamenta toda verdade ocircnticardquo (HEIDEGGER 2008 p 145) Esta traiccedilatildeo que ao mesmo tempo eacute fuga do solo originaacuterio eacute decisiva para constituiccedilatildeo das ciecircncias positivas Sendo precisamente esse renitente desvio do elemento autenticamente ontoloacutegico a condiccedilatildeo formadora do pensamento ocidental Eacute neste sentido que Spengler ao identificar na civilizaccedilatildeo o uacuteltimo estaacutegio de uma cultura define tal estaacutegio como ldquodecrepitude espiritualrdquo e ldquometroacutepole petrificada petrificanterdquo Ora eacute por intermeacutedio da petrificaccedilatildeo da verdade do ser que a civilizaccedilatildeo ocidental lanccedilou a pedra angular do conhecimento cientiacutefico A petrificaccedilatildeo da compreensatildeo preacute-ontoloacutegica do ser possibilita o comportamento para com o ente em sua abertura ocircntica O modo como o pensamento escoa da experiecircncia ontoloacutegica fundamental para uma compreensatildeo ocircntica do ser demarca o desvio que seraacute superado na experiecircncia faacutetica da vida Este desvio ontoloacutegico que no acircmbito da experiecircncia faacutetica da vida eacute caracterizado como a queda na facticidade eacute o que define o esquecimento do ser pela racionalidade metafiacutesica Tal desvio eacute caracterizado por Heidegger em ldquoSer e Tempordquo quando este afirma que

O ser dos entes natildeo ldquoeacuterdquo em si mesmo um outro ente O primeiro passo filosoacutefico na compreensatildeo do problema do ser consiste em ldquomithoacuten tina diegeisthairdquo ldquoNatildeo contar estoacuteriasrdquo significa natildeo determinar a proveniecircncia do ente como um ente reconduzindo a um outro ente como se o ser tivesse o caraacuteter de um ente possiacutevel (HEIDEGGER 2005 p 32)

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4 O problema do ser e o acesso agrave dimensatildeo primordial

A tentativa de nos colocarmos no limiar do

problema do ser (atividade que Heidegger caracteriza como elaborar a colocaccedilatildeo da questatildeo) eacute determinante para compreendermos a intensidade com que a experiecircncia faacutetica da vida responde agrave problemaacutetica ontoloacutegica Para Heidegger a tradiccedilatildeo natildeo apenas faltou com a resposta mas acima de tudo foi incapaz de pensar a questatildeo ou mesmo de sofrer sua inquietaccedilatildeo O caraacuteter problemaacutetico do ser que outrora deu focirclego ao despertar da atitude questionante dos antigos pensadores gregos foi emudecido pelos escombros da excessiva especulaccedilatildeo teoacuterica-objetivante da tradiccedilatildeo filosoacutefica Sendo assim a recolocaccedilatildeo da questatildeo e re-estabelecimento da situaccedilatildeo problemaacutetica face ao ente em seu ser nos instala na esfera da escuta essencial situaccedilatildeo onde se faz antecipadamente presente aquilo que se questiona na questatildeo ndash o ser Estando pois assim situados ndash postados na esfera da escuta essencial ndash eacute que poderemos nos colocar sob o influxo da afliccedilatildeo gerada pela problematicidade do ente em seu ser A despeito deste niacutevel de experiecircncia do pensamento fonte fecunda de todo autecircntico filosofar Nietzsche expressa atraveacutes de seu Zaratustra o seguinte

Oacute solidatildeo Solidatildeo paacutetria minha Quatildeo terna e bem aventurada me fala a tua voz Noacutes natildeo interrogamos um ao outro natildeo reclamamos um ao outro passamos um ao outro aberto por portas abertas Pois contigo tudo eacute aberto e claro e mesmo as horas correm aqui com peacutes mais leves De fato no escuro o tempo eacute mais pesado que na luz Aqui se abrem para mim as palavras e as arcas de palavras de todo ser todo o ser quer vir a ser

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palavra todo vir-a-ser quer comigo aprender a falar (NIETZSCHE 2014 p 176)

Esta paacutetria caracteriza o solo da experiecircncia

ontoloacutegica primordial donde se desarraiga as tendecircncias do comportamento teoacuterico-destemporalizante Sob o peso do desamparo que se impotildee nesta esfera da escuta essencial as palavras da erudiccedilatildeo cientiacutefica-objetivante ndash palavras que estropiam a visatildeo originaacuteria dos fenocircmenos ndash satildeo dissipadas E na clarividecircncia desta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial onde a face problemaacutetica do ser se desvela a luz da racionalidade paradigmaacutetica eacute obliterada e a fugaz temporalidade eacute sentida com pernas de chumbo Apenas sob o influxo de uma experiecircncia de tal niacutevel eacute que o pensamento estaraacute preparado para ldquopocircr-se a caminhordquo ou seja estaraacute preparado para caminhar nas ldquocercanias do serrdquo (HEIDEGGER 2008 p 357)

Por isso para compreendermos a experiecircncia faacutetica da vida como alternativa de acesso agrave questatildeo fundamental da filosofia eacute mister delinearmos aquela situaccedilatildeo de sintonia com a problemaacutetica ontoloacutegica a partir da qual poderemos nos esquivar daquela conceptualidade dogmaacutetica da tradiccedilatildeo que dispensou o caraacuteter problemaacutetico do ser

Em ldquoSer e Tempordquo o trabalho de uma elaboraccedilatildeo da colocaccedilatildeo da questatildeo do ser nos remete imediatamente agrave necessidade de tornar transparente o ser daquele que questiona ou seja o Dasein 4 No periacuteodo que compreende os anos de Friburgo o constructo Dasein tal como o encontramos em ldquoSer e Tempordquo ainda natildeo havia sido plenamente tematizado o que natildeo implica dizer que os seus

4 Sobre isto afirma Heidegger ldquoA colocaccedilatildeo expliacutecita e transparente da questatildeo sobre o sentido do ser requer uma explicaccedilatildeo preacutevia e adequada de um ente (pre-senccedila) no tocante a seu serrdquo (HEIDEGGER 2005 p 33)

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elementos constitutivos jaacute natildeo estivessem plenamente concebidos Eacute sob a dimensatildeo da experiecircncia faacutetica da vida que a explicitaccedilatildeo do Dasein seraacute antecipada nos anos que compreendem o pensamento do jovem Heidegger A experiecircncia faacutetica da vida nos fornece um protoacutetipo daquela mesma ldquodepuraccedilatildeo ontoloacutegica da subjetividaderdquo (cf HEIDEGGER 2005 p 82) que o Dasein concretizaraacute em ldquoSer e Tempordquo Por intermeacutedio de uma tal depuraccedilatildeo que em si mesma consiste numa criacutetica fenomenoloacutegica agrave transcendentalidade eacute que o questionamento do ser obteacutem sua orientaccedilatildeo ou seja abre-se um horizonte de visualizaccedilatildeo preacutevia do procurado na questatildeo do ser A experiecircncia da problematicidade do ser eacute tatildeo originaacuteria quanto o elemento problemaacutetico Deste modo em consonacircncia com o jovem Heidegger um autecircntico questionamento ontoloacutegico soacute pode ser possiacutevel quando proveacutem de um inquietante situar-se na esfera da compreensibilidade faacutetica da vida O desvelar da face problemaacutetica do ser e a partir disto a colocaccedilatildeo de sua questatildeo por si soacute jaacute nos coloca na dimensatildeo da experiecircncia faacutetica da vida Pois o despertar da questatildeo fundamental jaacute traz consigo a dimensatildeo preacute-compreensiva da resposta

A experiecircncia faacutetica da vida eacute apresentada pelo jovem Heidegger como alternativa que responde a questatildeo fundamental ignorada pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e deste modo apresenta-se como caminho para superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica [A metafiacutesica sempre tangenciou mas natildeo foi capaz de acessar a dimensatildeo originaacuteria da filosofia] O proacuteprio delineamento da situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial onde o ser se desvela como problema jaacute implica numa superaccedilatildeo Compreender o problema do ser eacute estar situado sob o influxo da inquietaccedilatildeo que o proacuteprio ser gera a partir de seu caraacuteter problemaacutetico

Entatildeo de que modo podemos elucidar a situaccedilatildeo na qual o problema fundamental da filosofia se torna latente Que situaccedilatildeo eacute esta que aqui nos referimos

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Falamos haacute pouco de uma ldquosituaccedilatildeo ontoloacutegico-existencialrdquo e com isto jaacute pressupomos a ordem e a natureza desta situaccedilatildeo As designaccedilotildees ldquoontoloacutegicordquo e ldquoexistencialrdquo satildeo tautoloacutegicas no contexto do pensamento heideggeriano Pois para Heidegger o ontoloacutegico eacute o existencial e o existencial eacute o ontoloacutegico Entretanto a niacutetida tautologia da foacutermula ldquoontoloacutegico-existencialrdquo visa resguardar as designaccedilotildees de seu comum emprego no contexto das teorias tradicionais O ontoloacutegico-existencial delimita a situaccedilatildeo a partir da qual brota o problema do ser E portanto delimita a situaccedilatildeo-limite que abarca a compreensatildeo mediana do ser constitutiva do ser-aiacute existente ndash a preacute-compreensatildeo do ser eacute uma determinaccedilatildeo essencial da existecircncia Esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial ateacute onde sabemos natildeo eacute partilhada por nenhum outro ente a natildeo ser o ente que noacutes mesmos somos ente que eacute atingido pelo problema do ser Em ldquoSer e Tempordquo podemos observar o modo como Heidegger faz uma alusatildeo a esta situaccedilatildeo

Enquanto procura o questionamento necessita de uma orientaccedilatildeo preacutevia do procurado Para isso o sentido do ser jaacute nos deve estar de alguma maneira disponiacutevel Jaacute se aludiu noacutes nos movemos sempre numa compreensatildeo do ser Eacute dela que brota a questatildeo expliacutecita do sentido do ser e a tendecircncia para o seu conceito Noacutes natildeo sabemos o que diz ldquoserrdquo Mas jaacute quando perguntamos o que eacute ldquoserrdquo noacutes nos mantemos numa compreensatildeo do eacute sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse ldquoeacuterdquo Noacutes nem sequer conhecemos o horizonte em que poderiacuteamos apreender e fixar-lhe o sentido Essa compreensatildeo do ser vaga e mediana eacute um fato (HEIDEGGER 2005 p 31)

Esta situaccedilatildeo-limite que segundo Heidegger tem

forccedila de lanccedilar luz sobre o ser-aiacute vivente (HEIDEGGER

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2008 p 21) eacute uma situaccedilatildeo antinocircmica Nela o ser natildeo se apresenta de modo inteiramente desconhecido mas em contrapartida como algo completamente inapreensiacutevel Esta situaccedilatildeo radical na qual sempre nos movemos em cada ocasiatildeo constitutiva de nosso ser-aiacute cotidiano traz agrave tona a convocaccedilatildeo de recolocarmos a pergunta pelo ser Esta convocaccedilatildeo natildeo eacute uma temaacutetica de investigaccedilatildeo artificialmente produzida pela curiosidade acadecircmica Ao inveacutes disto eacute um problema que emerge do nosso ser-aiacute mais profundo Heidegger apresenta como epiacutegrafe de ldquoSer e Tempordquo o modo como a filosofia grega na figura de Platatildeo vivencia a fundo esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial A epiacutegrafe relata o estado de aporia de Platatildeo perante o caraacuteter problemaacutetico do ser Nela encontramos o seguinte relato

[] pois eacute evidente que de haacute muito sabeis o que propriamente quereis designar quando empregais a expressatildeo lsquoentersquo Outrora tambeacutem noacutes julgaacutevamos saber agora poreacutem caiacutemos em aporia (PLATAtildeO apud HEIDEGGER 2005 p 24)

O regresso operado pelo pensamento

fenomenoloacutegico agrave situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial visa uma introvisatildeo na dimensatildeo do viver faacutetico do ser-aiacute existente que o jovem Heidegger caracterizaraacute como experiecircncia faacutetica da vida Por meio deste posicionamento metodoloacutegico o caraacuteter fugaz e obscuro da compreensatildeo faacutetica se tornaraacute expliacutecito Na experiecircncia faacutetica da vida se delimita o acircmbito de auto-compreensatildeo da facticidade a uacutenica situaccedilatildeo a partir da qual o mundo fenomecircnico se desvela em toda a sua originariedade Esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial constitutiva do ser-aiacute faacutetico eacute uma linha tecircnue entre a morte e a vida do autecircntico filosofar Pois eacute a partir desta dimensatildeo faacutetica e situaccedilatildeo antinocircmica que eclodem as tendecircncias de obscurecimento e

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impedimento de explicitaccedilatildeo da facticidade A fenomenologia se depara com o desafio de compreender os fenocircmenos sem desgarra-los de sua dimensatildeo originaacuteria A vida faacutetica deve ser elucidada sem que o pensamento se condense em objetividades ndash uma compreensatildeo que natildeo deixa rastros Este eacute aquele posicionamento metodoloacutegico que Nietzsche ratifica na figura de Zaratustra dizendo ldquoQuando chegou tua hora mais silenciosa e te arrastou para longe de ti mesmo quando falou num malvado sussurro lsquoFala e te despedaccedilarsquordquo (NIETZSCHE 2014 p 175)

Referecircncias GADAMER Hans-Georg Verdade e Meacutetodo I traccedilos

fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica Trad Flaacutevio Paulo Meurer Petroacutepolis Vozes 2004

______________ (A) Verdade e Meacutetodo II complementos e iacutendices Trad Flaacutevio Paulo Meurer Petroacutepolis Vozes 2004

_______________ Hermenecircutica em retrospectiva Heidegger em retrospectiva Vol 1 Trad Marco Antocircnio Casanova 2 ed Petroacutepolis Vozes 2007

HEIDEGGER Martin Fenomenologia da Vida Religiosa Trad bras Enio Paulo Giachine Jairo Ferrandin Renato Kirchner Petroacutepolis Vozes 2010

_______________ Marcas do Caminho Trad bras Enio Paulo Ernildo Stein Petroacutepolis Vozes 2008

_______________ Ser e Tempo Trad bras Fausto Castilho Campinas Editora da Unicamp Petroacutepolis Vozes 2012

_______________ Ser e Tempo ndash Parte I Trad bras Maacutercia de Saacute Cavalcante Petroacutepolis Vozes 2005

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_______________ A origem da obra de arte Trad Maria da Conceiccedilatildeo Costa Lisboa Ediccedilotildees 70 1977

HEGEL Georg Wilhelm Friedrich Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas A ciecircncia da Loacutegica Vol 1 Trad Paulo Meneses Joseacute Machado Satildeo Paulo Loyola 1995

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Trad Manuela Pinto dos Santos Alexandre Fradique Morujatildeo 8 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2013

NIETZSCHE Friedrich Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2014

SPENGLER Oswald A decadecircncia do Ocidente Trad Herbert Caro Rio de Janeiro Zahar 1973

STEIN Ernildo Compreensatildeo e finitude estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana Ijuiacute Unijuiacute 2001

ZIMMERMAN Michael E Heideggerrsquos confrontation with modernity technology politics and art Indiana Indiana University Press 1990

O Sujeito a Verdade e a Criacutetica

ao Pensamento Moderno

Maacutercio Joseacute Silva Lima1

Introduccedilatildeo

O pensamento moderno eacute profundamente marcado pela questatildeo do ldquosujeitordquo ou seja o cogito cartesiano responsaacutevel pela accedilatildeo do pensar no homem Este pensamento eacute inaugurado no seacuteculo XVII por Reneacute Descartes que em suas Meditaccedilotildees Metafiacutesicas apresenta ao mundo a res cogitans que em oposiccedilatildeo agrave res extensa determina a atividade do pensamento Assim sendo seguindo ainda a dualidade socraacutetico-platocircnica (sensiacutevel-inteligiacutevel) o pensamento moderno potildee o homem numa situaccedilatildeo cujo limite eacute marcado pela relaccedilatildeo bipolar entre uma coisa que pensa e uma coisa palpaacutevel que se mensura que se observa e que possui extensatildeo

Mais tarde Immanuel Kant vai de certa forma afirmar que em mateacuteria de conhecimento esse sujeito que pensa que para ele contudo natildeo eacute uma res cogitans poderaacute realizar representaccedilotildees acerca da extensatildeo do objeto conhecidocognosciacutevel Em outras palavras esta consciecircncia presente no homem e capaz de pensar o objeto poderaacute fazerrealizar representaccedilotildees do fenocircmeno ndash mesmo que fique de fora o conhecimento sobre o nuacutemeno a coisa em si Levando em consideraccedilatildeo o raciociacutenio de Descartes e Kant acerca da accedilatildeo humana percebemos que para ambos o homem eacute possuidor de uma consciecircncia capaz de representar o mundo externo Essa consciecircncia portanto permite ao homem a constituiccedilatildeo do ldquoeurdquo pois

1 Doutorando pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN

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enquanto sujeito ele pode manipular o mundo externo e representar o fenocircmeno

Por conseguinte o sentido que orienta o pensamento moderno eacute o cartesiano Nele a realidade eacute dividida em dois grandes polos o acircmbito do sujeito e o acircmbito do objeto O sujeito por sua vez eacute a substacircncia ativa e nele o homem eacute identificado com o cogito com a coisa pensante Por sua vez o homem enquanto ente que pensa encontra-se marcado pela autonomia e pode ser capaz responsaacutevel e senhor da sua accedilatildeo Daiacute entatildeo este ente que pensa e que possui autonomia pode enfim representar Neste sentido ldquoa representaccedilatildeo eacute na verdade um voltar-se do ldquocogitordquo sobre si mesmo que assim se re-toma e entatildeo re-apresenta o objeto segundo o modo de ser do sujeitordquo (FOGEL 2009 p 66) O sujeito como medida de todas as coisas

Em plena Modernidade partiu de Martin Heidegger filoacutesofo do seacuteculo XX uma anaacutelise contundente e ao mesmo tempo intrigante acerca deste tema No segundo volume de sua obra dedicada a Nietzsche Heidegger disserta acerca da autonomia do sujeito moderno Para tanto inicia seu pensamento refletindo sobre a famosa sentenccedila de Protaacutegoras ldquoO homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo que elas satildeo das que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo (PROTAacuteGORAS apud HEIDEGGER 2007 p100) A sentenccedila seria entatildeo uma comprovaccedilatildeo do pensamento cartesiano na antiguidade Estaria o sofista Protaacutegoras assumindo uma posiccedilatildeo do homem enquanto sujeito que age sobre todas as coisas Vejamos as reflexotildees heideggerianas sobre o caso

Para Heidegger ldquocairiacuteamos em um engano fatiacutedicordquo ao tentar compreender a sentenccedila de Protaacutegoras aos moldes do pensamento cartesiano Na Modernidade acreditamos que temos acesso ao ente simplesmente pelo

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fato do ldquoeurdquo ndash o cogito enquanto sujeito que pensa ndash poder representar o objeto No entanto este modo de compreensatildeo ignora aquilo que se encontra na dimensatildeo do desvelamento do ente Poreacutem o ente muitas vezes compreendido como objeto estaacute para o homem enquanto Dasein como aquilo que se desvela aquilo que estaacute no acircmbito do aberto Para que o homem consiga representar aquilo que estaacute posto diante de si eacute preciso pois um acontecimento mais originaacuterio algo que pressupunha desvelamento

Eacute nesta perspectiva que o homem se torna a medida de todas as coisas uma vez que eacute nesta dimensatildeo do real que ele eacute tomado por aquilo que acredita representar Neste caso natildeo eacute ele quem ldquomederdquo todas as coisas no sentido de mensurar quantificar e agir sobre elas como a ciecircncia moderna faz O que a sentenccedila mostra eacute que o homem estaacute na ldquomedidardquo de todas as coisas ou seja pelo e atraveacutes do desvelamento o homem eacute tocado por todas as coisas A autonomia do sujeito aqui jaacute eacute um evento secundaacuterio Natildeo haacute um sentido que seja juiz nem dos outros entes enquanto objeto nem de seu ser enquanto consciecircncia autocircnoma ldquoO modo como Protaacutegoras define a relaccedilatildeo do homem com o ente eacute apenas uma circunscriccedilatildeo acentuada do desvelamento do ente na totalidade agrave respectiva esfera da experiecircncia do mundordquo (HEIDEGGER 2007 p 103)

Segundo o filoacutesofo alematildeo na sentenccedila de Protaacutegoras o ldquoeurdquo eacute determinado por meio de seu pertencimento ao desvelamento do ente Eacute aquilo que se desvela que aparece e se desencobre do ente que o sujeito por assim dizer pode conhecer Haacute portanto o cunho essencial do vir agrave presenccedila do ente diante do homem que natildeo subjaz a este vir agrave presenccedila e portanto natildeo eacute sujeito A verdade (aletheacuteia) possui o caraacuteter de desvelamento pois trata natildeo de uma adequaccedilatildeo do intelecto agrave coisa (veritas est adaequatio intellectus et rei) mas tatildeo somente algo proacuteprio e

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constitutivo daquilo que eacute desvelado A ldquomedidardquo de que trata a sentenccedila apresenta o sentido proacuteprio de moderaccedilatildeo a saber moderaccedilatildeo do desvelamento moderaccedilatildeo daquilo que se desvela como ente para o homem

Esta seria a maneira grega de se compreender o homem na sentenccedila de Protaacutegoras natildeo como um sujeito de quem todas as coisas dependem Natildeo como um sujeito capaz e responsaacutevel por ldquomedirrdquo ldquomoderarrdquo todo o objeto mas como um ente (Dasein) que lanccedilado ao mundo nele estaacute pelo desvelamento na medida de todas as coisas Vecirc-se por aiacute que a posiccedilatildeo metafiacutesica moderna se apresenta de forma diferente da posiccedilatildeo metafiacutesica dos gregos Para estes a concepccedilatildeo de um sujeito autocircnomo tal qual como conhecemos na Modernidade era inexistente O guerreiro por exemplo que em batalha guerreava natildeo lutava por autonomia proacutepria mas porque Ares o guiava O mancebo quando apaixonado acreditava assim estar pelo efeito devastador de Eros O proacuteprio Soacutecrates afirmava possuir um Daemon uma espeacutecie de gecircnio pessoal que lhe orientava Ou seja sempre estavam agrave medida de algo exterior a eles Este algo exterior Heidegger chama o que se desvela o ser

A partir do pensamento cartesiano o conceito de ldquosujeitordquo ndash antes Hypokeimenon depois Subiectum ndash encontra-se essencialmente ligado ao homem e justamente nesta perspectiva os demais entes se transformam em objetos desse homemsujeito Agora diferentemente de outrora o Subiectum natildeo eacute mais o nome nem o conceito utilizado para definir os entes animais plantas pedra O Subiectum transformara-se em Sujeito e o sujeito concerne agravequilo que eacute atribuiccedilatildeo do homem enquanto fundamento de todo o representar Aqui o conhecer adquire tambeacutem uma nova compreensatildeo pois na perspectiva cartesiana conhecer eacute aquilo que de forma indubitaacutevel eacute representado pelo sujeito Para isso torna-se importante a existecircncia do meacutetodo (methodus) ldquonome para o pro-cedimento assegurador e

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conquistador que se abate sobre o ente a fim de asseguraacute-lo como objeto para o sujeitordquo (HEIDEGGER 2007 p 127)

Com o homem sendo essencialmente ldquosujeitordquo capaz de representar os entes enquanto objeto e a ldquoverdaderdquo sendo compreendida enquanto uma certeza derivada da accedilatildeo calculadora este mesmo homem passa a ter uma relaccedilatildeo de conquista e de assenhoramento com o mundo circundante Aqui a sentenccedila de Protaacutegoras possui um valor diferente daquele estabelecido pelo modo grego de pensar No modo cartesiano eacute o homem quem atribui o padratildeo de medida Eacute ele quem determina ldquoa partir de si e em direccedilatildeo a si mesmordquo aquilo que pode ser considerado acerca do mundo enquanto objeto Entretanto Heidegger nos chama atenccedilatildeo para o fato de que o homem moderno natildeo seja considerado como um mero ldquoeu egoiacutesta isoladordquo mas um ldquosujeitordquo lanccedilado a caminho do caacutelculo e da representaccedilatildeo ilimitada do ente

Portanto com base no exposto podemos demonstrar o modo como Heidegger distingue as representaccedilotildees metafiacutesicas fundamentais no pensamento de Protaacutegoras e de Descartes Segundo ele

1 Para Protaacutegoras o homem eacute determinado em seu ser-proacuteprio por meio da pertinecircncia agrave esfera daquilo que eacute desvelado Para Descartes o homem eacute determinado enquanto si proacuteprio por meio da retomada do mundo no representar do homem 2 Para Protaacutegoras a entidade do ente eacute ndash no sentido da metafiacutesica grega ndash o presentar-se no desvelado Para Descartes a entidade significa representidade por meio do e para o sujeito 3 Para Protaacutegoras a verdade significa desvelamento daquilo que se presenta Para Descartes a certeza da representaccedilatildeo que se re-presenta e assegura

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4 Para Protaacutegoras o homem eacute a medida de todas as coisas no sentido da restriccedilatildeo comedida agrave esfera do desvelamento e aos limites do velado Para Descartes o homem eacute a medida de todas as coisas no sentido da presunccedilatildeo da supressatildeo dos limites da representaccedilatildeo em direccedilatildeo a certeza que se assegura de si O padratildeo de medida submete tudo aquilo que pode valer como sendo ao caacutelculo da representaccedilatildeo (HEIDEGGER 2007 p 128)

A criacutetica ao Eu-sujeito como causa da accedilatildeo Anterior ao pensamento de Heidegger na primeira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral Nietzsche nos assevera que eacute sob a seduccedilatildeo da linguagem que entendemos ndash ou mal entendemos ndash que em todo atuar atua um atuante Segundo ele no entanto natildeo haacute um ator por traacutes do ato Desse modo eacute somente sob a seduccedilatildeo da linguagem que podemos dizer por exemplo que o raio brilha visto que o raio (o corisco) natildeo eacute um sujeito que antecede o brilhar (o claratildeo) Natildeo existe um substrato um ldquoserrdquo que atua e faz acontecer (NIETZSCHE 2009 p 33) O agente pelo qual compreendemos na Modernidade a saber um sujeito que pratica a accedilatildeo eacute apenas uma ldquoficccedilatildeordquo que acrescentamos agrave accedilatildeo A accedilatildeo jaacute eacute tudo Noacutes modernos duplicamos a accedilatildeo pois a tratamos como causa e efeito

E assim se comporta a nossa ciecircncia Acreditamos que no seu desenvolver-se haacute uma causa e um efeito ou seja um sujeito e um objeto que reage a tal accedilatildeo Mas de fato natildeo eacute isso que ocorre De acordo com Nietzsche o eu-sujeito que age que pensa e que faz acontecer eacute somente uma construccedilatildeo gramatical criada pela linguagem Eacute aquilo que ele denomina como uma ldquocrenccedila da nossa razatildeordquo Em A Vontade de Poder o sujeito eacute apontado como uma invenccedilatildeo ldquonatildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais

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inventado posto por traacutesrdquo (NIETZSCHE 2008 sect 481 p 260)

O sujeito eacute entatildeo o inteacuterprete que noacutes modernos pomos por traacutes da interpretaccedilatildeo Esta accedilatildeo se refere ao proacuteprio pensar Ao pensar acreditamos que exista um eu como causa desse pensar Pensamos que o pensamento parte de uma autonomia da consciecircncia que decide o que pensar como pensar e quando pensar Acostumamos-nos a proceder desse modo todavia para Nietzsche ldquopor mais que essa ficccedilatildeo possa agora ser costumeira e indispensaacutevel ndash isso somente natildeo prova nada contra o seu caraacuteter fictiacutecio uma crenccedila pode ser condiccedilatildeo da vida e apesar disso ser falsardquo (NIETZSCHE 2008 sect 483 p 260) Contudo eacute no paraacutegrafo 484 da mesma obra que o filoacutesofo traacutegico aguccedila sua criacutetica chegando ao cartesianismo ou seja ao modelo de pensamento cartesiano que entende que por traacutes de todo ato inclusive o ato de pensar haja um eu um sujeito que seja a causa da accedilatildeo2 Assim Nietzsche utiliza a palavra latina Cartesius para se referir a Descartes ao declarar que ldquopelo caminho de Cartesius natildeo se chega a algo absolutamente certo mas soacute a um fato de uma crenccedila muito forterdquo (NIETZSCHE 2008 sect 484 p 261) Por isso ao pensar imaginamos que haja um pensante por traacutes ndash penso logo existo (cogito ergo sum) ndash postulamos a crenccedila em uma substacircncia a priori em algo que subjaz ao pensar entretanto ao mesmo tempo somos acolhidos por uma crenccedila Como jaacute foi dito anteriormente esta crenccedila para Nietzsche proveacutem de uma accedilatildeo formulada pelo nosso haacutebito gramatical A constituiccedilatildeo da nossa linguagem definida a partir da relaccedilatildeo sujeitopredicado remete para todo fazer um agente causador Foi esta maneira gramatical de pensar que levou o homem (enquanto o sujeito que age

2 Embora Descartes nunca houvesse utilizado em suas Meditaccedilotildees a palavra sujeito

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o eu consciente) a ldquoagirrdquo sobre a natureza (encarada nas matildeos do sujeito como um objeto) e a interpretar-se como a medida de todas as coisas Passamos a compreender o mundo a partir da loacutegica do sujeito e objeto aquele que age e pratica a accedilatildeo e aquilo que sofre a accedilatildeo que eacute resultado da accedilatildeo e que pode ser algo observaacutevel mensuraacutevel e manipulaacutevel E assim se comporta o homem moderno sobretudo naquilo que concerne agrave atividade cientiacutefica Nessa perspectiva Nietzsche vai dizer que o sujeito eacute a terminologia que nossa crenccedila gramatical construiu para fundamentar uma unidade subjacente que determina o real A partir dessa unidade subjacente acreditamos ser capazes de descrever a realidade e atribuir a ela valor de verdade Achamos que estamos agrave frente de todas as coisas Somos impelidos a imaginar que como agente causador podemos comandar a natureza determinaacute-la e fazecirc-la se comportar conforme nossas accedilotildees

ldquoSujeitordquo ldquoobjetordquo ldquopredicadordquo ndash essas separaccedilotildees foram feitas e agora recobrem como esquemas todos os fatos que aparecem A falsa observaccedilatildeo fundamental eacute a de que creio que sou eu quem faz algo que sofre algo quem ldquotemrdquo algo quem ldquotemrdquo uma propriedade (NIETZSCHE 2008 sect 549 p 284)

Nietzsche ainda pergunta se a crenccedila no conceito de sujeito e predicado natildeo seria uma grande tolice O sujeito como causa natildeo seria um deliacuterio Para ele natildeo possuiacutemos nenhuma experiecircncia de uma causa O que ocorre eacute que esse conceito causa nasce da convicccedilatildeo subjetiva de que noacutes somos a causa Quando falamos caminhamos levantamos o braccedilo acreditamos que somos a causa Entretanto para Nietzsche isso incorre em erro em mal entendido pois procuramos erroneamente um agente para a causa para o fazer e para o acontecer

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ldquoCausardquo natildeo acontece em absoluto no tocante a alguns casos em que nos pareceu dada a partir dos quais a representamos como compreensatildeo do acontecer estaacute provado o auto-engano Nosso ldquoentendimento de um acontecerrdquo consiste em que um sujeito inventado eacute responsabilizado pelo fato de que algo tenha acontecido e de como aconteceu (NIETZSCHE 2008 sect 551 p 285)

Em Aleacutem do Bem e do Mal Nietzsche ainda faz as

seguintes indagaccedilotildees ldquoDe onde retiro o conceito de pensar Por que acredito em causa e efeito O que me daacute o direito de falar em um Eu como causa e por fim de um Eu como causa de pensamentordquo (NIETZSCHE 2005 sect 16 p 21) Jaacute no paraacutegrafo seguinte o filoacutesofo alematildeo reafirma que isso eacute supersticcedilatildeo De acordo com ele acreditar em um sujeito que controla seus proacuteprios pensamentos eacute pura supersticcedilatildeo uma vez que o pensamento vem quando ele quer e natildeo quando eu quero Nesse caso o sujeito eu natildeo eacute a condiccedilatildeo do predicado penso (NIETZSCHE 2005 sect 17 p 22)

O pensar e consequentemente o agir proveacutem natildeo de uma autonomia do sujeito de um eu que pensa ou que pratica uma determinada accedilatildeo Para que se decirc pensamento e accedilatildeo eacute preciso que se decirc primeiramente afecccedilatildeo ou seja um afeto (pathos) que leve o homem a obedecer A obediecircncia soacute se daacute na escuta que eacute proacutepria do afeto Estar na escuta eacute estar disponiacutevel para a afecccedilatildeo para o instante extraordinaacuterio em que a vida nos toca e nos faz sentir como agentes causadores Eacute soacute mediante a afecccedilatildeo que podemos produzir pensamentos praticar a accedilatildeo e ateacute mesmo achar que somos o eu-sujeito responsaacutevel pela causa de tudo

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A questatildeo da verdade As noccedilotildees modernas de sujeito e objeto levaram-nos a compreender a verdade como o que eacute proacuteprio e constitutivo daquilo que se pode observar mensurar e quantificar A verdade se apresentou como o resultado de uma operaccedilatildeo realizada por meio de um meacutetodo capaz de descrever de forma minuciosa aquilo que se estaacute verificando Se antes a verdade consistia naquilo que era definido pelo pensamento metafiacutesico agora jaacute na Modernidade o que prevalece eacute aquilo que concerne agrave atividade cientiacutefica As ldquoverdadesrdquo passaram por meio da anaacutelise cientiacutefica a serem comprovadas legitimadas e validadas Houve entatildeo uma inversatildeo de criteacuterios O que antes era tarefa da metafiacutesica agora eacute campo das ciecircncias O que cabia agrave reflexatildeo agrave contemplaccedilatildeo e agrave deduccedilatildeo definir agora eacute objeto da anaacutelise meticulosa da observaccedilatildeo empiacuterica e da descriccedilatildeo cientiacutefica E para tanto foi de fundamental importacircncia as noccedilotildees modernas de sujeito e objeto Um sujeito capaz de pensar e de agir de forma independente autocircnomo que se julgasse liberto de preconceitos capaz de manipular o objeto e extrair dele todos os seus misteacuterios Mas seria a ciecircncia moderna capaz de descrever a realidade e retirar dela sua verdade Em que consiste a verdade Seria a verdade o produto de uma metodologia Natildeo seria a verdade um valor que atribuiacutemos agraves coisas Concluiacutemos que sim O proacuteprio Nietzsche no paraacutegrafo 481 de A Vontade de Poder quando diz que ldquonatildeo haacute fatos soacute interpretaccedilotildeesrdquo oferece-nos subsiacutedios para sustentar a hipoacutetese de que aquilo que fundamenta a verdade na era moderna pode estar profundamente ligado ao contexto cultural de uma eacutepoca A verdade pode estar inserida no acircmbito das atividades culturais e como tal receber criteacuterios

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de valores que determinam natildeo apenas a verdade mas tambeacutem a falsidade o bem e o mal o melhor e o pior

Mas o que dizer das verdades apresentadas explicadas e comprovadas pela ciecircncia moderna como por exemplo a lei da gravidade ou o movimento dos astros O que dizer daquilo que a ciecircncia informa acerca do planeta terra dos ecossistemas e da anatomia humana Haveria uma verdade legiacutetima naquilo que as ciecircncias declaram Para responder novamente recorremos agravequilo que estaacute ligado agrave cultura3 Eacute o modo de pensar e de agir de uma eacutepoca e de um povo quem define os criteacuterios de verdades Assim sendo verdades que jaacute foram apresentadas pela proacutepria ciecircncia jaacute chegaram a ser reavaliadas a exemplo da exclusatildeo de Plutatildeo da categoria de planeta do nosso sistema solar Mas haveria entatildeo verdades absolutas Falar de verdades absolutas eacute buscar explicaccedilotildees acerca daquilo que fundamenta o real Esse eacute o papel da filosofia desde suas origens na Greacutecia Antiga a busca pelo fundamento daquilo que rege o real Todavia para formular seus conceitos os filoacutesofos foram afetados tambeacutem pela cultura de sua eacutepoca Assim as verdades filosoacuteficas foram elaboradas a partir de conceitos proacuteprios mas que de alguma forma foram influenciados pela cultura A razatildeo filosoacutefica ao longo de toda histoacuteria da filosofia buscou alcanccedilar a verdade absoluta do real mas pouco percebeu que todos os conceitos formulados sobre tal verdade tiveram como pano de fundo a influecircncia cultural No Craacutetilo Platatildeo diz que verdadeiro eacute o discurso que diz as coisas como satildeo Jaacute seu contraponto a saber o

3 Cultura eacute aqui compreendida como o conjunto de modos de vida regras e comportamento adquiridos pelo homem a partir de sua convivecircncia em sociedades Satildeo os costumes haacutebitos linguagens e conhecimentos desenvolvidos por um determinado povo em um determinado lugar e em uma determinada eacutepoca

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falso eacute aquele que diz as coisas como natildeo satildeo A grande questatildeo desta sentenccedila estaacute contida justamente no seu discurso Dizer por meio do discurso o que as coisas satildeo ou natildeo satildeo e daiacute extrair sua veracidade requer a formulaccedilatildeo de juiacutezos e os juiacutezos por sua vez satildeo determinados e construiacutedos culturalmente Nesse caso o discurso sobre a verdade daquilo que eacute ou natildeo eacute prefigura uma tomada de posiccedilatildeo que desde jaacute muito antes eacute estabelecida pela cultura Tambeacutem Aristoacuteteles certa vez mencionou que quando negamos aquilo que eacute e afirmamos aquilo que natildeo eacute incorremos no falso Em contrapartida ao afirmarmos aquilo que eacute e negarmos aquilo que natildeo eacute estamos no acircmbito da verdade Entretanto para negarmos ou afirmarmos algo necessitamos de toda uma gama de experiecircncias que soacute pode nos ser transmitida culturalmente Isto quer dizer que a verdade ou a falsidade das coisas dependem do juiacutezo que eacute formado sobre elas Tal juiacutezo por sua vez proveacutem daquilo que absorvemos de forma cultural atraveacutes da histoacuteria Em outras palavras queremos dizer que ao sermos lanccedilados ao mundo somos situados num ponto do tempo e do espaccedilo e com isso de forma involuntaacuteria absorvemos os costumes os haacutebitos o pensamento a linguagem o comportamento as crenccedilas e o raciociacutenio que nos levam a elaborar criteacuterios de verdades O sujeito que ao observar mensurar e descrever o objeto delimita sua falsidade ou sua verdade jaacute se encontra contagiado por uma carga cultural que determina sua posiccedilatildeo diante da verdade E o que estaria por traacutes disso tudo A abertura a afecccedilatildeo Pela abertura o homem eacute afetado por criaccedilatildeo Em seguida ele passa a criar modos de vida costumes haacutebitos conhecimentos linguagem Tambeacutem surgem novas interpretaccedilotildees perspectivas e valores e satildeo justamente estes valores que iratildeo delimitar os criteacuterios utilizados por um determinado grupo social para definir aquilo que eacute

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compreendido como verdade Neste sentido falar de verdade tal como a compreendemos na Modernidade eacute falar de um juiacutezo pois esta verdade implica uma natildeo-verdade e quando afirmamos uma ou outra o que estaacute por traacutes da nossa decisatildeo eacute aquilo que nos foi passado pela cultura de um tempo de um povo e de um lugar em que estamos inseridos No fundo natildeo somos noacutes que decidimos acerca da verdade seja a partir de nossa autonomia como sujeitos ou a partir de uma verdade absoluta que nos eacute revelada Apenas somos influenciados pela nossa cultura e a partir dela interpretamos as coisas e a chamamos de falsas ou verdadeiras O que jaacute eacute um evento secundaacuterio Consideraccedilotildees finais

Ao que parece a autonomia do sujeito ainda continua sendo uma temaacutetica natildeo superada Filoacutesofos contemporacircneos na linha de Nietzsche e Heidegger como Foucault Derrida e Deleuze permaneceram nessa criacutetica do sujeito ndash autocircnomo dominador e calculador do real ndash e foram por vezes denominados poacutes-modernos Por outro lado a proposta de compreender o homem como sujeito dotado da capacidade de representar impulsionou a forma como muitos refletiram sobre a metafiacutesica moderna O bom de tudo isso talvez seja a natildeo superaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico pois atraveacutes do choque de ideias e da accedilatildeo dialeacutetica do pensamento a filosofia permanece viva para o surgimento e criaccedilatildeo de novas reflexotildees e como diria o proacuteprio Nietzsche novas perspectivas

No que se refere agrave verdade concluiacutemos que esta se encontra profundamente ligada agrave questatildeo cultural Eacute a cultura de uma eacutepoca e de um povo quem determina os criteacuterios de verdades a serem seguidos como referencial Foi assim na Antiguidade na Idade Meacutedia e agora na Modernidade ndash ou Poacutes-modernidade Acreditamos que eacute o

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modo de pensar de uma eacutepoca que influencia diretamente na forma como pensamos Eacute a partir daiacute que elaboramos por meio de perspectivas aquilo que nos aparece como a verdade ndash mesmo que com o passar dos tempos tal verdade caia em desuso

Isso no entanto natildeo se afasta daquilo que Heidegger nos apresentou como desvelamento O desvelamento eacute aquilo que proporciona o desenvolvimento da cultura de onde a partir dela proveacutem os valores de verdades A uacutenica diferenccedila eacute que aquilo que compreendemos por verdade jaacute eacute tambeacutem um fenocircmeno secundaacuterio causado pelo desvelamento Neste caso haacute uma verdade (aleacutetheia) por traacutes de nossa verdade Haacute um desvelamento que nos leva culturalmente a formar os criteacuterios de nossas verdades Referecircncias DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Traduccedilatildeo de Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) FOGEL Gilvan Que eacute filosofia filosofia como exerciacutecio de finitude Aparecida-SP Ideias amp letras 2009 HEIDEGGER Martin Nietzsche II Traduccedilatildeo de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2007 KANT Immanuel Criacutetica da razatildeo pura Traduccedilatildeo de Valeacuterio Rohden e Udo Baldur Moosburger Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

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NIETZSCHE Friedrich Wilhelm A genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das letrascompanhia de bolso 2009 ___________________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das letrascompanhia de bolso 2005 ___________________________ A vontade de poder Traduccedilatildeo de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

Consideraccedilotildees sobre o Conceito

de Existecircncia em S A

Kierkegaard

Ramon Boliacutevar C Germano1

Introduccedilatildeo Natildeo seria fora de propoacutesito parafraseando o

proacuteprio Kierkegaard em sua dissertaccedilatildeo2 falar em um conceito de existecircncia constantemente referido a Kierkegaard Poderiacuteamos ateacute ir mais longe e dizer que se o conceito de ironia entrou no mundo com Soacutecrates o conceito de existecircncia fez sua entrada na contemporaneidade com Kierkegaard Natildeo eacute a toa que o epiacuteteto de ldquopai do existencialismordquo foi colado agraves costas do filoacutesofo como que para zombar de seu esforccedilo ndash assim como nas escolas os alunos mais perversos colam nas costas de outro sem que este o perceba um pedaccedilo de papel com a expressatildeo ldquochute-merdquo para que entatildeo possam chutaacute-lo

O fato eacute que embora Kierkegaard talvez natildeo seja o ldquopai do existencialismordquo sua obra natildeo pode ser pensada fora de seu esforccedilo em direccedilatildeo agrave existecircncia Natildeo se pode negar sem que essa negaccedilatildeo ldquoviolente o fenocircmenordquo que a obra deste autor engolfa-se na existecircncia concreta e a partir dela dirige-se ao indiviacuteduo singular ao ldquohomem de boa vontaderdquo que nos Discursos Edificantes eacute chamado de ldquomeu leitorrdquo e de ldquomeu refuacutegiordquo

Com isso estamos convencidos de que todo e qualquer percurso pela obra de Kierkegaard em muito

1 Doutorando em Filosofia (UFPB-UFPE-UFRN)

2 O Conceito de Ironia constantemente referido a Soacutecrates (KIERKEGAARD 2010b)

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ganharia se compreendesse a existecircncia natildeo soacute como pano de fundo mas como o palco onde tudo se daacute Com efeito toda a sua atividade de escritor parece orientar-se rumo agrave afirmaccedilatildeo da existecircncia ldquopartindo do filosoacutefico do sistemaacutetico para chegar ao simples isto eacute ao existencialrdquo (KIERKEGAARD 2002 p 127) 3

Neste trabalho devemos lanccedilar um olhar mais detido sobre o conceito de existecircncia numa tentativa de elucidaccedilatildeo filosoacutefica do conceito mesmo a partir da compreensatildeo preacutevia da existecircncia como devir e como inter-esse Mas jaacute comeccedilamos no risco de errar Pois quando absorvemos a existecircncia no conceito quando tratamos a existecircncia conceitualmente o que fazemos eacute de fato falsificar a existecircncia transformando-a em algo diferente do que ela de fato eacute Pois o que realmente importa na existecircncia natildeo eacute o ato de pensaacute-la mas o ato de existir nela Em todo caso como natildeo deixamos de existir enquanto pensamos nosso trabalho eacute legiacutetimo e justificado ndash desde que tenhamos sempre em mente que a existecircncia soacute pode ser tratada ldquoexistencialmenterdquo isto eacute que ao tratarmos dela precisamos permanecer continuamente atentos ao fato de que noacutes que investigamos e pensamos ao mesmo tempo existimos e que como tais devemos pensar como existentes e natildeo como seres fantaacutesticos que como gosta de dizer Kierkegaard querem viver sub specie aeterni

Na primeira parte introduzimos a reflexatildeo sobre a existecircncia a partir da correlaccedilatildeo entre os conceitos de devir e liberdade Em seguida (ponto 2) analisamos a determinaccedilatildeo

3 Sempre que possiacutevel citamos as traduccedilotildees de Kierkegaard para o portuguecircs sobretudo as do professor e tradutor Aacutelvaro Luiz M Valls Como ainda estamos distantes de uma ediccedilatildeo das obras completas em nossa liacutengua tivemos que traduzir algumas passagens a partir da ediccedilatildeo digital criacutetica dos Soslashren Kierkegaards Skrifter (SKS) disponiacutevel no siacutetio httpsksdkforsideindholdasp Sempre referenciamos essas traduccedilotildees com a abreviatura ldquoSKSrdquo seguida do nordm do volume e da marcaccedilatildeo da paginaccedilatildeo dos Soslashren Kierkegaards Skrifter

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da existecircncia como interesse para entatildeo passarmos agrave exposiccedilatildeo da existecircncia como negatividade e esforccedilo continuado (ponto 3)

1 Devir e liberdade no Interluacutedio das Migalhas

Filosoacuteficas

O opuacutesculo intitulado Migalhas Filosoacuteficas4 a despeito de seu tom despretensioso eacute de longe uma das obras mais influentes do corpus kierkegaardiano Dizemos ldquoinfluenterdquo natildeo pelo fato de ela ter causado alguma impressatildeo nos leitores da eacutepoca em que foi publicada longe disso mas por ter lanccedilado as bases do problema geral de toda a obra5 ao mesmo tempo em que condicionaria a elaboraccedilatildeo de um dos textos mais relevantes ndash para natildeo dizer a obra capital ndash da produccedilatildeo de Kierkegaard qual seja o Poacutes-Escrito Conclusivo Natildeo Cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas

4 As Migalhas Filosoacuteficas ou um bocadinho de filosofia foram publicadas em 13 de junho1844 cinco dias antes da publicaccedilatildeo de O Conceito de Anguacutestia e dos Prefaacutecios Para as Migalhas Kierkegaard criou um pseudocircnimo Johannes Climacus que mais tarde reapareceria como o autor do Poacutes-Escrito Conclusivo Natildeo Cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas (1846) Climacus natildeo eacute um pseudocircnimo como os demais Ele possui uma biografia uma personalidade e uma psicologia proacuteprias de modo que ateacute poderiacuteamos trataacute-lo como uma personagem Em Johannes Climacus ou De Omnibus Dubitandum Est encontra-se uma descriccedilatildeo de sua vida desde a infacircncia passando pela juventude ateacute o desenvolvimento de suas proacuteprias reflexotildees filosoacuteficas Climacus se declara um pensador incapaz de servir ao Sistema Daiacute o tiacutetulo ironicamente despretensioso de seu opuacutesculo que natildeo pretende ser um sistema de filosofia mas simples Migalhas Filosoacuteficas O tiacutetulo da obra faz referecircncia a uma passagem do Hippias Maior de Platatildeo onde se lecirc ldquondash Mas Soacutecrates que pensas de nossa discussatildeo Como disse haacute pouco satildeo aparas e migalhas de argumentos reduzidos a pedacinhosrdquo (304a)

5 Sobre a enunciaccedilatildeo desse problema conferir Ponto de Vista do meu trabalho como autor (SKS 16) Em portuguecircs KIERKEGAARD 2002 pp 31-32 41 55

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Apesar do papel central desempenhado pelos cinco breves capiacutetulos que formam as Migalhas natildeo nos concentraremos aqui no ldquoexperimento teoacutericordquo de Climacus nem abordaremos os temas do paradoxo absoluto do disciacutepulo contemporacircneo e do disciacutepulo de segunda matildeo O que nos interessa eacute antes uma parte do ensaio que intermedeia os capiacutetulos IV e V e que Climacus resolveu chamar de Interluacutedio Trata-se de um ldquoparecircnteserdquo complexo no qual o tom filosoacutefico se torna mais acentuado do que no restante da obra o que jaacute se pode depreender do seu tiacutetulo que reza ldquoO Passado eacute mais Necessaacuterio do que o Futuro Ou o possiacutevel ao se tornar real tornou-se por isso mais necessaacuterio do que erardquo Ora tais perguntas jaacute indicam que o problema em questatildeo diz respeito agrave relaccedilatildeo entre possibilidade e realidade de um lado e necessidade do outro donde se percebe que o que estaacute em jogo aqui eacute em primeiro lugar a questatildeo metafiacutesica da inter-relaccedilatildeo das categorias modais (possibilidade realidade e necessidade)

A primeira parte do ensaio ndash objeto de nosso interesse aqui ndash introduz a discussatildeo sobre as categorias de modalidade a partir de um questionamento sobre a mudanccedila que caracteriza o vir a ser ou o devir (Tilblivelse) Pergunta o autor ldquoComo eacute que muda o que vem a ser ou qual eacute a mudanccedila (kinesis) proacutepria do devirrdquo (KIERKEGAARD 2008 p 105) Ora a dificuldade inicial consiste no seguinte se aquilo que vem a ser na medida em que deveacutem muda essencialmente entatildeo natildeo eacute isto mesmo que vem a ser mas se por outro lado natildeo se altera quando vem a ser entatildeo natildeo vem a ser propriamente Com outras palavras eacute preciso que haja uma mudanccedila no devir do contraacuterio natildeo seraacute devir nenhum mas natildeo uma mudanccedila na essecircncia do que deveacutem pois neste caso natildeo deveacutem mas deixa de ser o que eacute incorrendo-se assim numa μετάβασις

εἰς ἄλλο γένος (passagem para outro gecircnero)

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Assim sendo se aquilo que vem a ser precisa mudar mas natildeo em sua essecircncia Climacus precisa afirmar que ldquoesta mudanccedila [a mudanccedila do devir] natildeo eacute entatildeo mudanccedila na essecircncia (Vaeligsen) mas no ser (Vaeligren) eacute a mudanccedila do natildeo-ser para o serrdquo (SKS 4 273) No entanto este natildeo-ser que eacute abandonado pelo que vem a ser precisa tambeacutem ser existir6 do contraacuterio a mudanccedila torna-se uma ilusatildeo Entatildeo completa Climacus ldquoMas um tal ser que contudo eacute natildeo-ser eacute a possibilidade e um ser que eacute ser eacute o ser real ou a realidade e a mudanccedila do devir eacute a passagem da possibilidade agrave realidaderdquo (KIERKEGAARD 2008 p 106)

Portanto existe uma mudanccedila no ser que eacute passagem da possibilidade para a realidade sem que haja mudanccedila na essecircncia7 Mas como essa passagem acontece Sua mudanccedila seria necessaacuteria Seu movimento aconteceria na necessidade Com outras palavras o devir se daacute por necessidade ou o necessaacuterio pode devir Segundo Climacus ldquoTodo vir-a-ser eacute um padecer e o necessaacuterio natildeo pode padecer natildeo pode padecer a paixatildeo da realidade que consiste em que o possiacutevel () mostre-se como nada no instante em que vem a ser real pois a possibilidade eacute nadificada pela realidaderdquo (Id Ibid p 106) O necessaacuterio portanto natildeo pode devir e ldquoa uacutenica coisa que natildeo pode devir eacute o necessaacuterio porque o necessaacuterio eacuterdquo (Id Ibid p 106) Embora essa distinccedilatildeo entre o devir e o necessaacuterio possa parecer supeacuterflua ndash afinal natildeo eacute coisa difiacutecil notar que o necessaacuterio natildeo pode incluir em si a possibilidade caracteriacutestica do devir jaacute que eacute uma necessidade ndash o que

6 Cf KIERKEGAARD 2008 p 106

7 Talvez importe lembrar apenas a tiacutetulo de referecircncia que os dois primeiros livros da Ciecircncia da Loacutegica de Hegel em sua primeira parte (A Loacutegica Objetiva) satildeo intitulados respectivamente de ldquoA Doutrina do Serrdquo e ldquoA Doutrina da Essecircnciardquo

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estaacute por traacutes desta distinccedilatildeo eacute justamente a concepccedilatildeo segundo a qual o possiacutevel ao se tornar real tornar-se-ia por isso mais necessaacuterio do que era antes de ter-se efetivado Tal concepccedilatildeo embora erroneamente atribuiacuteda a Hegel remonta na verdade agrave Analiacutetica dos Conceitos de Kant mais precisamente agrave taacutebua das categorias assim como apresentada na Criacutetica da Razatildeo pura (B95) 8 Como se sabe para Kant a terceira categoria de cada grupo eacute resultante da unidade das outras duas precedentes Como ele mesmo escreve em B 110 ldquoHaacute sempre em cada classe um nuacutemero igual de categorias a saber trecircs () Acrescente-se a isso que a terceira categoria resulta sempre da ligaccedilatildeo da segunda com a primeira da sua classe (KANT 2001 p 114) Na classe da modalidade aparecem como primeira e segunda categorias a possibilidade (Moumlglichkeit) e a existecircncia (Dasein) sendo a terceira a necessidade (Notwendigkeit)9 No entender de Kant (B 111) ldquoa necessidade natildeo eacute mais do que a existecircncia dada pela proacutepria possibilidaderdquo (Id Ibid p 114) Eacute por isso que Climacus apoacutes diferenciar a necessidade das outras categorias modais pode perguntar ldquoEntatildeo a necessidade natildeo eacute a unidade de possibilidade e de realidaderdquo (KIERKEGAARD 2008 p 107) E responde da seguinte maneira ldquoPossibilidade e realidade natildeo satildeo diferentes na essecircncia mas no serrdquo (Id Ibid p 107) A afirmaccedilatildeo eacute simples mas diz muito Por um lado se a possibilidade e a realidade natildeo satildeo diferentes na essecircncia

8 Jon Stewart no capiacutetulo intitulado ldquoMartensenrsquos Doctrine of Immanence and Kierkegaardrsquos Transcendence in the Philosophical Fragmentsrdquo (STEWART 2003 p 336 em diante) mostra como a criacutetica de Climacus remonta agrave posiccedilatildeo kantiana e se dirige particularmente agrave Martensen e natildeo propriamente a Hegel

9 Com mais precisatildeo na classe da modalidade as categorias aparecem em pares Moumlglichkeit ndash Unmoumlglichkeit Dasein ndash Nichtsein Notwendigkeit ndash Zufaumllligkeit (B 106)

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entatildeo a passagem da primeira para a segunda natildeo constitui uma mudanccedila essencial de modo que o possiacutevel ao se tornar real natildeo se tornou por isso mais necessaacuterio do que era isto eacute diferente de si mesmo essencialmente Por outro lado se possibilidade e realidade satildeo diferentes no ser sua unidade tampouco pode resultar na necessidade uma vez que esta eacute uma determinaccedilatildeo da essecircncia (a essecircncia do necessaacuterio consiste em ser) e uma mudanccedila no ser (a passagem da possibilidade agrave realidade) natildeo pode resultar numa mudanccedila na essecircncia sem que incorramos novamente

numa μετάβασις εἰς ἄλλο γένος Com isso afirma-se em primeiro lugar que a realidade em sendo o que eacute natildeo eacute diferente na essecircncia da possibilidade ou seja a mesma contingecircncia que caracteriza o possiacutevel de maneira essencial tambeacutem deve valer para a realidade efetiva Em segundo lugar se a mudanccedila do devir eacute a passagem da possibilidade agrave realidade tal mudanccedila natildeo pode acontecer pela ou na necessidade jaacute que esta eacute absoluta e essencialmente diferente do possiacutevel e do real A implicaccedilatildeo eacute clara ldquoA mudanccedila do devir eacute a realidade a passagem acontece pela liberdade Nenhum devir eacute necessaacuterio () Todo devir acontece em liberdade natildeo por necessidaderdquo (Id Ibid p 108) Assim Climacus introduz no devir a determinaccedilatildeo da liberdade e com isso afasta daquilo que vem a ser ndash do passado que deveio do presente que deveacutem e do futuro que haacute de devir ndash a determinaccedilatildeo da necessidade Mas falar do devir como um movimento que acontece pela liberdade implica em compreendecirc-lo no interior de uma ambiguidade que engendra incerteza ou para lembrar a expressatildeo de Haufniensis10 que ldquofaz nascer anguacutestiardquo Vejamos isso de maneira mais detida Em sendo a passagem do natildeo-ser para o ser da possibilidade para a realidade o devir ndash enquanto

10 Heterocircnomo autor de O Conceito de Anguacutestia

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acontecimento na liberdade ndash conserva em si sempre a marca da contingecircncia daquilo que poderia natildeo ser ou daquilo que no que estaacute sendo natildeo eacute Trata-se da incerteza proacutepria do devir que natildeo eacute mais incerta no futuro do que no passado ou seja se aquilo que haacute de vir eacute incerto pois pode muito bem natildeo devir tambeacutem aquilo que deveio eacute igualmente incerto pois ao vir a ser natildeo se torna mais necessaacuterio do que era antes de devir Existe portanto uma negatividade proacutepria do devir que natildeo pode ser confundida com a positividade do necessaacuterio Segundo Climacus a incerteza do devir eacute dupla ldquoo nada do-que-natildeo-estaacute-sendo e a possibilidade anulada que eacute ao mesmo tempo a aboliccedilatildeo de toda outra possibilidaderdquo (Id Ibid p 118) Sendo assim a certeza do devir estaacute sempre em contradiccedilatildeo com uma incerteza essencial de modo que esta ambiguidade entre certeza e incerteza eacute a caracteriacutestica distintiva do devir O Interluacutedio natildeo vai aleacutem no tratamento especiacutefico da noccedilatildeo de devir Importa lembrar que o recorte feito por noacutes aqui se insere em uma discussatildeo muito mais ampla e que demandaria uma anaacutelise mais detalhada da obra desde que nosso objetivo fosse contextualizar a questatildeo do devir no acircmbito do problema geral das Migalhas11 Mas como o que visamos aqui eacute antes de mais uma referecircncia pontual agrave noccedilatildeo de devir ndash tendo em vista sua relaccedilatildeo com a existecircncia ndash parece-nos suficiente o que foi dito ateacute o momento como introduccedilatildeo do tema No que segue ndash ao refletimos sobre a compreensatildeo da existecircncia como interesse junto agraves anaacutelises posteriores da negatividade da existecircncia ndash a compreensatildeo do devir e de sua relaccedilatildeo com a existecircncia naturalmente se tornaraacute mais evidente Por ora eacute suficiente natildeo perdermos de vista a jaacute referida correlaccedilatildeo entre o

11 Um tratamento mais criacutetico da questatildeo pode ser encontrado no texto jaacute referido de Jon Steward (STEWART 2003 p 336 em diante) Para um tratamento mais expositivo conferir (HOWLAND 2006 pp 157-172)

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devir e a liberdade (enquanto determinaccedilatildeo fundamental do devir) o que implica em uacuteltima instacircncia na incerteza objetiva enquanto caraacuteter distintivo daquilo que vem a ser Que o indiviacuteduo existente enquanto existente estaacute continuamente em devir e por conseguinte na incerteza proacutepria do devir eacute o que veremos ao longo deste texto Passemos entatildeo ao segundo ponto sem perdermos de vista que as anaacutelises aqui visam a uma compreensatildeo mais clara do conceito de existecircncia

2 Existecircncia e (eacute) Inter-esse

Por volta do ano de 1843 ndash ano da publicaccedilatildeo de

sua primeira obra ndash Kierkegaard esboccedilara em seus papeacuteis privados os pontos de um ensaio metodoloacutegico de ampla abrangecircncia e que a nosso ver esclarece de maneira bastante pontual uma distinccedilatildeo que acompanharaacute a sua obra como um todo O esboccedilo aparece assim

Sobre os conceitos de Esse e Inter-esse Um ensaio metodoloacutegico As diferentes ciecircncias devem ser ordenadas de acordo com os diferentes modos como acentuam o ser e como a relaccedilatildeo para com o ser lhes daacute vantagens reciacuteprocas

Ontologia Sua certeza eacute absoluta ndash aqui pensamento e ser satildeo um mas em contrapartida essas ciecircncias satildeo hipoteacuteticas

Matemaacutetica

Ciecircncia-Existencial (SKS 27 271)

A primeira coisa que chama nossa atenccedilatildeo neste esboccedilo metodoloacutegico eacute o fato de Kierkegaard intitulaacute-lo de

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ldquoSobre os conceitos de Esse e Inter-esserdquo ao mesmo tempo em que omite esses termos no corpo do ldquoensaiordquo apenas falando no correspondente dinamarquecircs para Esse qual seja Vaeligren (Ser) sem se pronunciar diretamente sobre o Inter-esse Eacute preciso entatildeo buscar os significados nas entrelinhas pois tambeacutem aqui Kierkegaard se pronuncia de maneira indireta o que se pode muito bem notar pela omissatildeo da explicaccedilatildeo daquilo que ele mesmo chama de Existentiel-Videnskab (CiecircnciaSaber-Existencial) Ora a primeira conclusatildeo que podemos tirar deste esboccedilo eacute justamente a de que a ontologia e a matemaacutetica se contrapotildeem agrave ciecircncia-existencial segundo o modo em que as primeiras e a segunda acentuam o ser Pois bem se o esboccedilo quer ser um ensaio metodoloacutegico sobre os conceitos de Esse e de Inter-esse tudo indica na direccedilatildeo de que a ontologia e a matemaacutetica estatildeo inseridas no domiacutenio do Esse enquanto a ciecircncia-existencial no acircmbito do Inter-esse Isso porque somos levados a ler este esboccedilo ndash e o leitor haacute de concordar conosco neste ponto ndash como a exposiccedilatildeo de duas vias distintas de relaccedilatildeo para com o ser tais que a compreensatildeo de uma eacute esclarecida pela sua diferenciaccedilatildeo frente agrave outra Sendo assim a explicaccedilatildeo dada agrave primeira divisatildeo (Ontologia e Matemaacutetica) parece servir de base para a compreensatildeo da ciecircncia-existencial embora natildeo tenhamos elementos seguros para simplesmente deduzir a explicaccedilatildeo desta uacuteltima a partir de uma inversatildeo da primeira Como veremos a elucidaccedilatildeo do que aqui eacute chamado de ciecircncia-existencial depende antes de tudo da compreensatildeo da existecircncia mesma e do modo como podemos pensaacute-la Natildeo eacute uma tarefa faacutecil O proacuteprio Climacus jaacute havia dito no Poacutes-Escrito que a existecircncia eacute uma coisa muito difiacutecil de lidar Seria um consolo se pudeacutessemos desmenti-lo e mostrar que a existecircncia eacute coisa muito faacutecil de lidar mas receamos que Climacus esteja certo e que a tarefa natildeo seja coisa simples Em todo caso nosso esforccedilo aqui deve ser o de lidar com a existecircncia e ao fazecirc-lo

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mostrar a dificuldade da lida como a dificuldade proacutepria da existecircncia Se algumas passagens do percurso textual se mostrarem agrave primeira vista ligeiramente confusas com o avanccedilo da discussatildeo certamente ficaratildeo mais bem esclarecidas claro desde que natildeo se tornem ainda mais confusas Partamos pois de uma distinccedilatildeo apresentada em uma conhecida nota de rodapeacute das Migalhas Filosoacuteficas entre dois modos de se acentuar o ser como ser de fato e como ser ideal Ao discutir uma afirmaccedilatildeo de Espinosa segundo a qual quanto mais perfeita uma coisa eacute tanto mais existecircncia e necessidade envolve e vice-versa Climacus escreve

Ele [Espinosa] explica perfectio por realitas esse de modo que quanto mais perfeito algo eacute mais ele eacute poreacutem sua perfeiccedilatildeo consiste em ter mais esse isto quer dizer entatildeo que quanto mais algo eacute tanto mais eacute [] O que estaacute faltando aqui eacute uma distinccedilatildeo entre ser de fato e ser ideal O uso em si e por si nada claro de se falar em mais ou menos ser e consequentemente em graus de realidade ou do ser torna-se ainda mais confuso quando aquela distinccedilatildeo acima natildeo eacute feita () Em relaccedilatildeo ao ser fatual natildeo tem nenhum sentido falar de mais ou menos ser Uma mosca se ela eacute tem tanto ser quanto o deus () pois quanto ao ser de fato vale a dialeacutetica de Hamlet ser ou natildeo-ser O ser de fato eacute totalmente indiferente agrave diversidade de toda e qualquer definiccedilatildeo essencial e tudo que existe participa do ser sem ciuacuteme mesquinho e participa no mesmo grau Idealmente o caso eacute bem diferente isto eacute totalmente certo Mas no momento em que eu falo de ser no sentido ideal natildeo mais falo do ser mas da essecircncia (KIERKEGAARD 2008 p 67)

Climacus mostra primeiramente como a confusatildeo entre ser de fato (faktisk Vaeligren) e ser ideal (ideel Vaeligren) leva Espinosa a falar em mais ou menos ser ou em graus de

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realidade ou de existecircncia o que natildeo se pode aplicar ao ser de fato isto eacute agravequilo que simplesmente por estar aiacute jaacute eacute o que eacute Ora ao tratar dos termos em questatildeo de maneira indistinta Espinosa acaba por conceber o ser de fato idealmente incorrendo em um mal-entendido que impede que a verdadeira dificuldade se apresente Com efeito ao ser concebido idealmente natildeo eacute mais do ser de fato que se fala mas da ldquoideiardquo ou do ldquoconceitordquo de ser de fato quer dizer fala-se do concreto de maneira abstrata e assim abre-se matildeo do concreto Por isso Climacus pode afirmar que quando se fala de ser no sentido ideal natildeo se fala mais do ser mas sim de algo outro isto eacute da essecircncia (uma idealidade) Outra citaccedilatildeo essa dos Papiper12 poderaacute nos ajudar a compreender melhor o que estaacute em questatildeo aqui Segundo Kierkegaard

O que confunde toda a ideia de ldquoessecircnciardquo na loacutegica eacute que a atenccedilatildeo natildeo eacute dada ao fato de que ela opera continuamente com o ldquoconceitordquo existecircncia Mas o ldquoconceitordquo existecircncia eacute uma idealidade e a dificuldade eacute apenas se existecircncia eacute absorvida no conceito Assim Spinoza pode estar certo essentia involvit existentiam a saber o conceito-existecircncia ou seja existecircncia na idealidade Por outro lado Kant estaacute certo em dizer ldquoExistecircncia natildeo adiciona nenhum predicado a um conceitordquo K pensa manifestamente na existecircncia como natildeo sendo absorvida no conceito a existecircncia empiacuterica Em todas as relaccedilotildees de idealidade vale que essentia eacute existentia ndash se de outro modo o seu uso eacute vaacutelido aqui

12 Os Papirer satildeo os ldquopapeacuteisrdquo deixados por Kierkegaard ndash comentaacuterios pessoais esboccedilos notas ensaios etc etc Satildeo uma peccedila importante na constituiccedilatildeo do corpus autoral de Kierkegaard Os Papirer revelam nuances que os textos publicados inevitavelmente omitem

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A afirmaccedilatildeo leibniziana Se Deus eacute possiacutevel ele eacute necessaacuterio estaacute totalmente certa Nada eacute acrescentado a um conceito se ele tem existecircncia ou natildeo eacute uma questatildeo de completa indiferenccedila ele realmente tem existecircncia isto eacute existecircncia-conceito existecircncia ideal (SKS 22 433 NB 14)

Estaacute claro que a principal distinccedilatildeo feita aqui eacute entre a existecircncia de fato por um lado e a ldquoexistecircncia-conceitordquo a existecircncia compreendida idealmente por outro Trata-se a nosso ver da mesma distinccedilatildeo entre ser de fato e ser ideal embora apresentada em outros termos Importa neste caso que natildeo se confunda a existecircncia ideal com a existecircncia concreta ndash ou natildeo se tome o ser de fato como ser ideal Com efeito tratada a partir desta indistinccedilatildeo a dificuldade natildeo se pode apresentar Ao se confundir ser de fato e ser ideal a existecircncia acaba sendo concebida abstratamente ou seja essecircncia e existecircncia passam a se corresponder mas de modo que a existecircncia aqui eacute compreendida abstratamente como existecircncia ideal No entanto a determinaccedilatildeo puramente ideal da existecircncia pode muito bem corresponder agrave essecircncia mas natildeo pode ser confundida com a existecircncia concreta Eacute o que Kierkegaard pretende mostrar quando afirma que o mote de Espinosa essentia involvit existentiam estaacute correto desde que aqui se compreenda por ldquoexistecircnciardquo a existecircncia na idealidade absorvida no conceito ou seja existecircncia no pensamento (Tanke-Existents) Mas essa existecircncia ideal ainda eacute existecircncia no sentido proacuteprio do termo E que ldquosentido proacutepriordquo seria esse Tais questionamentos nos remetem de fato agrave dificuldade sobre a qual Espinosa natildeo quis se pronunciar Isso porque ao ser concebida idealmente a existecircncia perde seu traccedilo distintivo que aleacutem de lhe dar o seu ldquosentido proacutepriordquo mostra ao mesmo tempo qual eacute a verdadeira dificuldade Devemos entatildeo nos concentrar neste

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traccedilo distintivo da existecircncia a fim de compreendermos esta dificuldade Para tanto faccedilamos uma referecircncia inicial ao opuacutesculo publicado postumamente sob o tiacutetulo Johannes Climacus ou De Omnibus Dubitandum Est13 onde a existecircncia eacute definida como consciecircncia e interesse No primeiro capiacutetulo da Pars Secunda o autor investiga como deve ser definida e existecircncia para que seja possiacutevel duvidar A questatildeo leva-o diretamente agrave busca da possibilidade ideal da duacutevida na consciecircncia ou seja precisava descobrir como a consciecircncia deveria ser para que fosse possiacutevel ao sujeito duvidar Com isso o texto identifica a existecircncia com a consciecircncia a busca de como deve ser definida a existecircncia para que seja possiacutevel duvidar leva o autor a defini-la indiretamente como consciecircncia A pergunta entatildeo recai sobre esta uacuteltima como deve ser definida a consciecircncia para que seja possiacutevel duvidar A reposta obviamente deve ser uma elucidaccedilatildeo do que o autor entende por consciecircncia e por conseguinte ndash jaacute que consciecircncia e existecircncia aparecem como sinocircnimos ndash do que se entende aqui por existecircncia Ali podemos ler o seguinte ldquoA imediatidade eacute a realidade a linguagem eacute a idealidade a consciecircncia eacute a contradiccedilatildeo No momento em que anuncio a realidade surge a contradiccedilatildeo pois o que eu digo eacute a idealidaderdquo (KIERKEGAARD 2003 p 108) Haacute portanto dois acircmbitos distintos o da realidade cuja forma eacute a imediatidade e o da idealidade que eacute mediatidade (palavra linguagem) A consciecircncia natildeo eacute nenhum dos dois separadamente mas a contradiccedilatildeo ldquoA realidade natildeo eacute a consciecircncia a idealidade tampouco e contudo a consciecircncia natildeo existe sem ambas e esta contradiccedilatildeo eacute o ser da consciecircncia e sua essecircnciardquo (Id Ibid p 110) Note-se que a consciecircncia natildeo eacute uma simples relaccedilatildeo mas uma relaccedilatildeo cuja forma eacute a contradiccedilatildeo Se se anula a

13 SKS 15 13-53

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contradiccedilatildeo anula-se com ela a consciecircncia Aleacutem disso a consciecircncia natildeo se identifica simplesmente com a reflexatildeo jaacute que esta eacute pressuposto daquela ldquoa reflexatildeo eacute a possibilidade da relaccedilatildeo a consciecircncia eacute a relaccedilatildeo cuja forma primeira eacute a contradiccedilatildeordquo (Id Ibid p 111) A reflexatildeo determina a dicotomia ndash por exemplo realidade e idealidade ndash enquanto a consciecircncia eacute sempre tricotocircmica jaacute que consiste na relaccedilatildeo contraditoacuteria e natildeo em cada uma das partes separadamente

A reflexatildeo eacute a possibilidade da relaccedilatildeo Isso tambeacutem pode ser expresso da seguinte forma a reflexatildeo eacute desinteressada A consciecircncia ao contraacuterio eacute a relaccedilatildeo e portanto o interesse dualidade que se exprime inteiramente e com concisa ambiguidade na palavra interesse (interesse) (Id Ibid p 113)

A consciecircncia portanto eacute um ldquoserrdquo (esse) ldquoentrerdquo (inter) Trata-se da expressatildeo de uma dualidade ou de uma ambiguidade essencial que relaciona de modo contraditoacuterio elementos que tendem a negar-se mutuamente A idealidade e a realidade a finitude e a infinitude o eterno e o temporal satildeo inter-relacionados de modo que a forma dessa relaccedilatildeo eacute a proacutepria contradiccedilatildeo Sendo assim a resposta dada agrave questatildeo que intitula o capiacutetulo a saber ldquoComo deve ser definida a existecircncia para que seja possiacutevel duvidarrdquo eacute esta a existecircncia eacute inter-esse Justamente porque eacute interesse a existecircncia traz em si a possibilidade da duacutevida que se sustenta naquela contradiccedilatildeo essencial Se a existecircncia natildeo fosse interesse mas um esse qualquer entatildeo natildeo poderiacuteamos falar em duacutevida ou em incerteza pois de fato teriacuteamos uma certeza firme (o esse) Mas como o esse da existecircncia eacute um inter-esse o que existe aiacute eacute um confronto um embate no qual nenhuma das partes pode sobrepor-se agrave outra sem ser ao mesmo tempo sobreposta Significa que a certeza fica suspensa na contradiccedilatildeo e entatildeo a duacutevida torna-se possiacutevel

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E com isso nos aproximamos daquela dificuldade da qual falaacutevamos acima Em sendo interesse a existecircncia eacute uma dificuldade para o existente por este ser composiccedilatildeo do eterno e do temporal do ideal e do real do finito e do infinito etc situada na existecircncia Note-se que aqui natildeo se trata obviamente da existecircncia meramente fatual como o estar aiacute de uma rocha ou uma rosa mas da existecircncia strictu sensu existecircncia que eacute interesse para o existente Com isso fica claro que falar em uma existecircncia ideal eacute abrir matildeo da dificuldade proacutepria da existecircncia Como diziacuteamos para Climacus o mote de Espinosa essentia involvit existentiam baseia-se na compreensatildeo abstrata da existecircncia isto eacute na existecircncia absorvida no conceito ou seja existecircncia no pensamento (Tanke-Existents) Agrave nossa pergunta se essa existecircncia ideal ainda eacute existecircncia no sentido proacuteprio podemos muito bem responder que natildeo pois compreendida como uma existecircncia no pensamento a existecircncia natildeo eacute mais interesse mas ldquoexistecircnciardquo desinteressada Ora no momento em que a existecircncia eacute absorvida no conceito tornando-se uma idealidade produz-se entatildeo uma outra coisa que natildeo eacute mais a existecircncia jaacute que esta como temos visto natildeo eacute a idealidade mas a relaccedilatildeo de idealidade e realidade cuja forma eacute a contradiccedilatildeo Sendo assim o problema de se conceber a existecircncia como uma determinaccedilatildeo puramente abstrata eacute que ldquona linguagem da abstraccedilatildeo nunca aparece aquilo que constitui a dificuldade da existecircncia e do existenterdquo (SKS 7 247) 14 Isso porque a abstraccedilatildeo prescinde do concreto do

14 Atualmente (2015) temos disponiacutevel em portuguecircs apenas a primeira parte do Poacutes-Escrito Conclusivo natildeo cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas de Johannes Climacus O professor e tradutor Aacutelvaro Valls gentilmente nos cedeu parte de sua traduccedilatildeo do segundo volume que ao que tudo indica natildeo tarda em ter sua primeira ediccedilatildeo Utilizamos a traduccedilatildeo ineacutedita de Valls como fonte de apoio para algumas passagens da

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devir do interesse da existecircncia e portanto ldquoda dificuldade do existente por este ser composiccedilatildeo do eterno e do temporal situada na existecircnciardquo (SKS 7 247) Para usar os termos da discussatildeo feita acima diriacuteamos que a dificuldade consiste em apreender o ser de fato e introduzir a idealidade (o ser ideal) na esfera do ser de fato15 afirmando assim a contradiccedilatildeo que a existecircncia eacute A tendecircncia em pensar a existecircncia sob o aspecto da eternidade (sub specie aeligterni) implica na abstraccedilatildeo da dificuldade de pensaacute-la dentro da contradiccedilatildeo que lhe eacute essencial Mais ainda o simples fato de fazer da existecircncia um objeto do pensamento quer dizer o simples fato de pensaacute-la constitui jaacute uma dificuldade Com efeito pensar a existecircncia em abstraccedilatildeo eacute o mesmo que superaacute-la ou anulaacute-la ldquoPensando-a eu a supero e entatildeo natildeo a pensordquo (SKS 7 281) Mas e se aquele que pensa estiver existindo Note-se que neste caso a dificuldade retorna uma vez que ldquoa existecircncia os coloca juntos pois o pensante existerdquo (Idem) Significa dizer que seu pensamento natildeo eacute de todo desprovido de existecircncia afinal natildeo eacute o pensamento de um ser puramente ideal mas de um sujeito existente que pensa Pensar a existecircncia eacute entatildeo superaacute-la mas como aquele

segunda parte do Poacutes-Escrito Assim embora as traduccedilotildees que seguem sejam nossas precisamos reconhecer que sem o aval do texto de A Valls natildeo estariacuteamos seguros quanto agraves nossas proacuteprias traduccedilotildees jaacute que nosso conhecimento do dinamarquecircs de Kierkegaard eacute incipiente

15 Na nota citada acima Climacus mostra essa contradiccedilatildeo de maneira ainda mais intensa ao dizer que ldquoa dificuldade consiste em chegar a apreender o ser de fato e introduzir dialeticamente a idealidade de Deus na esfera do ser de fatordquo (KIERKEGAARD 2008 p 67) A dificuldade aqui eacute maior justamente porque Deus eacute a idealidade suprema que enquanto tal tem a necessidade Introduzir essa idealidade na esfera do ser de fato natildeo constitui apenas uma dificuldade mas algo que de tatildeo contraditoacuterio chega a ser um absurdo Obviamente o que estaacute em jogo aqui eacute a realidade do Deus encarnado No Poacutes-Escrito Climacus refere-se agrave ldquocategoria do absurdordquo como traccedilo distintivo do cristianismo (Cf KIERKEGAARD 2013 p 216)

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que pensa existe ndash e natildeo pode prescindir do existir para pensar ndash esse seu pensamento ainda conserva uma ligaccedilatildeo inexoraacutevel com a existecircncia Climacus expressa isso dizendo que ldquoa existecircncia juntou o pensar com o existirrdquo e que por isso mesmo haacute dois acircmbitos o da abstraccedilatildeo e o da realidade Mas a dificuldade estaacute no fato de que a realidade natildeo pode ser expressa na linguagem da abstraccedilatildeo ldquoA realidade [Virkeligheden] eacute um inter-esse entre a unidade hipoteacutetica da abstraccedilatildeo de pensar e serrdquo (SKS 7 286) Aqui precisamos apurar nossa atenccedilatildeo Climacus refere-se agrave unidade entre ser e pensar ndash expressatildeo fundamental da filosofia hegeliana ndash como uma unidade hipoteacutetica da abstraccedilatildeo A realidade pelo contraacuterio eacute o inter-esse em meio a ser e pensar e portanto natildeo eacute nem o puro pensar nem o puro ser (que satildeo o mesmo) mas justamente o momento (real) da separaccedilatildeo de ser e pensar Na existecircncia a identidade ideal de pensar e ser eacute cindida ldquoum ser humano pensa e existe e a existecircncia separa pensamento e ser os manteacutem afastados um do outro em sucessatildeordquo (SKS 7 303) No pensamento abstrato daacute-se algo diferente pensar e ser satildeo um soacute mas precisamente porque aqui se abstrai da existecircncia Como explica Climacus

A afirmaccedilatildeo filosoacutefica da identidade entre ser e pensar eacute exatamente o oposto do que parece ser eacute a expressatildeo de que o pensamento deixou completamente a existecircncia que emigrou e encontrou um sexto continente onde eacute absoluto e autossuficiente na identidade absoluta do pensamento e do ser (SKS 7 302)

Sendo assim o puro pensar natildeo guarda relaccedilatildeo com a existecircncia mas tenta a todo tempo abstrair do fato de que o ser humano enquanto sujeito existente estaacute em contiacutenuo devir e interessado em sua proacutepria existecircncia Natildeo gostariacuteamos de ir aleacutem nesta discussatildeo mas importa salientar que existe

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aqui uma criacutetica especiacutefica agrave pretensatildeo da filosofia hegeliana que ao iniciar com o puro pensar pretende a partir daiacute incluir a existecircncia no Sistema Por ora basta que estejamos atentos ao fato de que sendo inter-esse a existecircncia constitui um estado intermediaacuterio no qual a certeza objetiva do pensar abstrato eacute posta de lado como fantasmagoria restando agravequele que existe a incerteza da vida terrena sua inconclusividade e negatividade Eacute o que veremos logo em seguida Antes uma uacuteltima palavra sobre o ldquoensaio metodoloacutegicordquo com o qual abrimos nossa discussatildeo Depois do que foi exposto torna-se mais claro que o que ali era chamado de Ciecircncia-Existencial corresponde ao saber que se volta natildeo para a identidade de pensar e ser (Ontologia e matemaacutetica) mas para o Inter-esse enquanto um estado intermediaacuterio no qual ser e pensar permanecem separados Tal saber natildeo se caracteriza por um pensamento abstrato mas por um ldquopensamento concretordquo que enquanto tal natildeo alcanccedila a certeza absoluta mas em contrapartida natildeo eacute hipoteacutetico Tal ldquociecircnciardquo deve ter sua forma de pensar proacutepria de modo a repercutir em si o interesse proacuteprio da existecircncia E aquele que no acircmbito deste saber existencial se diz ldquopensadorrdquo natildeo pode excluir a existecircncia do seu pensamento mas precisa ser um pensador subjetivo existente

3 Incerteza objetiva e negatividade a existecircncia

como esforccedilo continuado

Vimos acima como o devir enquanto passagem da possibilidade para a realidade ndash ou como um movimento que acontece pela liberdade ndash eacute em si mesmo indeterminaccedilatildeo inconclusividade negatividade que angustia numa palavra eacute de todo incerto Dizer que o sujeito existente estaacute continuamente vindo a ser equivale a

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dizer que ele eacute livre e que se angustia16 de modo que a existecircncia enquanto devir traz sempre consigo o negativo algo que escapa agrave apreensatildeo objetiva algo que natildeo possui certeza positiva que pode natildeo ser o que Climacus tentou expressar quando falava em um ldquonada do-que-natildeo-estaacute-sendordquo De igual modo em sendo inter-esse a existecircncia eacute em si mesma contraditoacuteria suspendendo todo saber positivo sobre si mesma e deixando o sujeito existente entregue agrave incerteza e agrave negatividade sem garantias objetivas

No Poacutes-Escrito Climacus serve-se por analogia do Eros do Banquete platocircnico para definir a natureza da existecircncia Escreve ele

De acordo com Platatildeo Penuacuteria e Recurso geraram portanto Eros cuja natureza eacute formada a partir de ambos Mas o que eacute a existecircncia Eacute aquela crianccedila que foi gerada pelo infinito e o finito pelo eterno e o temporal e que por isso estaacute continuamente esforccedilando-se (KIERKEGAARD 2013 p 96)

Estaacute claro que a analogia confirma o que diziacuteamos

acima a existecircncia eacute o engendramento de contraacuterios uma siacutentese estabelecida em tensatildeo constante e que enquanto tal exige do existente um esforccedilo sempre renovado na lida com essa situaccedilatildeo criacutetica17 Enquanto composiccedilatildeo do eterno e do temporal do finito e do infinito a existecircncia guarda em si uma negatividade cujo fundamento reside justamente nesta siacutentese contraditoacuteria Ora se o eterno vem a ser no tempo ou se o infinito une-se ao finito na existecircncia cada contraacuterio nega-se mutuamente de modo

16 Sobre a relaccedilatildeo entre devir liberdade e anguacutestia Cf O Conceito de Anguacutestia (KIERKEGAARD 2010a)

17 Em A Doenccedila para Morte Anti-Climacus define a situaccedilatildeo do homem ndash considerado como espiacuterito Selv ndash explicitamente como uma situaccedilatildeo criacutetica (Cf SKS 11 141)

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que toda certeza positiva eacute posta em suspenso conforme mostra Climacus

A negatividade que haacute na existecircncia ou melhor a negatividade do sujeito existente (que o seu pensamento deve repercutir essencialmente em uma forma adequada) funda-se na siacutentese do sujeito no fato de ele ser um espiacuterito infinito existente A infinitude e o eterno satildeo a uacutenica certeza mas desde que esta estaacute no sujeito estaacute na existecircncia e a primeira expressatildeo para isso eacute seu engano e a imensa contradiccedilatildeo de que o eterno vem a ser de que ele surge (Id Ibid p 85)

A negatividade do sujeito existente funda-se portanto na siacutentese no interesse do sujeito isto eacute no fato de que o homem eacute um ldquoespiacuterito infinito existenterdquo Note-se ldquoinfinitordquo e ldquoexistenterdquo o que constitui a tensatildeo contraditoacuteria Ao falar nestes termos Climacus enfatiza primeiramente a situaccedilatildeo interessada do sujeito existente cuja forma eacute uma ldquoimensa contradiccedilatildeordquo Mas essa contradiccedilatildeo perceba-se eacute justamente a de que o eterno deveacutem ou seja eacute a contradiccedilatildeo proacutepria do devir E o que fundamenta aquela negatividade eacute precisamente essa ldquoimensa contradiccedilatildeordquo pois nela a certeza objetiva torna-se suspeita ou aparece como engano (Svig) Eacute este engano que constitui a negatividade pois nele aquilo que seria certo torna-se suspeito afinal estaacute comprometido numa contradiccedilatildeo Em relaccedilatildeo a isso um exemplo dado pelo autor eacute esclarecedor o sujeito existente eacute eterno mas ao mesmo tempo enquanto existente eacute temporal ndash siacutentese devir interesse Pois bem o que torna a infinitude suspeita o seu engano eacute que a possibilidade da morte (a finitude) estaacute sempre presente a todo o instante ldquoToda confianccedila positiva estaacute entatildeo posta sob suspeitardquo (KIERKEGAARD 2013 p 85) A possibilidade da morte impossibilita qualquer certeza positiva em relaccedilatildeo agrave infinitude pois na

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finitude a infinitude torna-se uma possibilidade que enquanto tal relaciona-se essencialmente com o porvir e que por conseguinte eacute algo completamente incerto Em outras palavras quando o eterno vem a ser (deveacutem) o que se obteacutem natildeo eacute o eterno sub specie aeterni mas o eterno sob o aspecto da contradiccedilatildeo cuja expressatildeo eacute o porvir Como escreve Climacus ldquoquando eu junto a eternidade e o devir natildeo obtenho sossego mas porvirrdquo (SKS 7 280) Mas o porvir eacute justamente a morada da possibilidade onde tudo eacute incerto Ora tal incerteza notemos bem eacute a insiacutedia da infinitude e do eterno na existecircncia Para nos aproveitarmos da analogia com o Banquete diriacuteamos que a infinitude eacute aquilo que nunca podemos assegurar definitivamente mas que soacute pode ser assegurada por um esforccedilo incessante de retomada e de conquista reiterada ndash o que a natureza de Eros (filho de Penia e Poros) expressa muito bem Mas embora seja a insiacutedia da infinitude essa incerteza objetiva eacute ao mesmo tempo a forma de expressatildeo da infinitude na existecircncia quer dizer sua insiacutegnia Significa que o eterno a infinitude soacute pode se expressar no devir de maneira objetivamente incerta como algo que escapa agrave apreensatildeo objetiva do sujeito existente e que soacute pode ser assegurado pelo empenho da subjetividade existente18 Esse empenho ou esforccedilo do sujeito existente pode ser

18 Aqui precisariacuteamos de um esclarecimento que os limites de nosso trabalho natildeo permitem oferecer Por enquanto basta que fique claro que a incerteza objetiva em relaccedilatildeo a algo ndash por exemplo agrave imortalidade ndash natildeo pode ser superada objetivamente como se atraveacutes de algum meio objetivo (uma investigaccedilatildeo uma prova uma demonstraccedilatildeo) tal incerteza se tornasse mais certa ou menos incerta do que eacute Pelo contraacuterio a certeza da imortalidade soacute pode existir para a subjetividade mas de tal forma que a incerteza objetiva seja mantida e sustentada pela paixatildeo da subjetividade paixatildeo essa que natildeo quer extirpar a incerteza mas que crecirc apesar da incerteza objetiva Assim o peso eacute posto na subjetividade

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muito bem designado pela palavra paixatildeo Nesse sentido faccedilamos uma citaccedilatildeo mais longa que ilustra bem o que aqui queremos destacar a saber que a existecircncia na incerteza objetiva e na negatividade que lhe satildeo proacuteprias exige do sujeito existente um esforccedilo continuado ou uma paixatildeo viva Diz Climacus

O existir () natildeo pode prescindir da paixatildeo () Muitas vezes pensei como se poderia levar um homem agrave paixatildeo Pensei entatildeo se eu poderia montaacute-lo num cavalo e fazer este desembestar no mais selvagem galope ou ainda melhor a fim de fazer surgir a paixatildeo se eu pudesse tomar um homem que quisesse chegar a um lugar o mais raacutepido possiacutevel (portanto jaacute algo apaixonado) e montaacute-lo num cavalo que mal pudesse andar e no entanto o existir eacute assim quando se estaacute consciente dele Ou se numa carroccedila de um cocheiro que de outra maneira natildeo pudesse chegar agrave paixatildeo se atrelassem um Peacutegaso e um Pangareacute e se lhe dissesse ldquoVai avante jaacuterdquo ndash aiacute eu acho que conseguiria E assim eacute o existir quando se estaacute consciente dele A eternidade como aquele cavalo alado eacute infinitamente raacutepida a temporalidade eacute um pangareacute e o existente eacute o cocheiro quando a existecircncia natildeo deve ser o que se costuma chamar de existecircncia pois nesse caso o existente natildeo seria o cocheiro mas um camponecircs becircbado deitado e dormindo na carroccedila e que deixa os cavalos por conta proacutepria Entenda-se ele tambeacutem guia ele tambeacutem eacute cocheiro e da mesma forma talvez haja muitos que ndash tambeacutem existem (SKS 7 283-4)

A paixatildeo entatildeo eacute um esforccedilo constante de manutenccedilatildeo19 da tensatildeo que a proacutepria existecircncia eacute A

19 Usamos a palavra em seu sentido etimoloacutegico de ldquoato de segurar ou sustentar com a matildeordquo o que combina com a imagem dos dois cavalos

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eternidade e a temporalidade ndash tais como um Peacutegaso e um rocim atrelados ao mesmo carro ndash precisam ser sustentadas ambas sem que uma seja mantida em detrimento da outra Assim a paixatildeo consiste em permanecer na temporalidade e ao mesmo tempo sem abrir matildeo da temporalidade colocar-se eternamente aleacutem da temporalidade Natildeo se trata de tornar-se eterno como se natildeo se estivesse na temporalidade nem tampouco de agarrar-se agrave temporalidade em detrimento do eterno Eacute preciso primeiro tomar consciecircncia de que se existe e que em se tratando da existecircncia a dificuldade eacute viver na tensatildeo e natildeo existir como se natildeo houvesse contradiccedilatildeo ou como se esta tivesse sido superada Como escreve Climacus ldquoMas existir de verdade ou seja penetrar sua existecircncia com consciecircncia e ao mesmo tempo eternamente colocar-se aleacutem da existecircncia e ainda presente nela e ainda assim no devir isso eacute realmente difiacutecilrdquo (SKS 7 281) Para expressar essa paixatildeo que eacute esforccedilo continuado Climacus serve-se de uma imagem tomada de Lessing cujo valor representativo nos obriga a citaacute-la na iacutentegra Diz Lessing

Se Deus me oferecesse fechada em Sua matildeo direita toda a verdade e em Sua matildeo esquerda o impulso uacutenico sempre animado para a verdade embora com o acreacutescimo de me enganar sempre e eternamente e me dissesse Escolhe ndash eu me prostraria com humildade ante Sua matildeo esquerda e diria Pai daacute-me pois a verdade pura eacute de fato soacute para Ti e mais ningueacutem (KIERKEGAARD 2013 p 110)

pois se trata de sustentar com as matildeos as reacutedeas de ambos sem largaacute-los deixando-os por si soacutes ndash assim com a eternidade e a temporalidade

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O meacuterito de Lessing aqui eacute justamente o de falar como um indiviacuteduo que estaacute consciente de sua existecircncia O impulso uacutenico sempre animado [den einzigen immer regen Trieb] aponta para a inconclusividade ou incompletude da existecircncia Se a verdade pura eacute de fato soacute para Deus cabe ao existente seguir no esforccedilo continuado para ou em direccedilatildeo agrave verdade de modo que esta para o existente seraacute justamente esse impulso uacutenico ou esse esforccedilo constante e natildeo simplesmente um objeto que ele enfim conhece Eacute isso que Lessing pretende enfatizar quando reforccedila que Deus junto com o impulso uacutenico para a verdade acrescentaria um veto um impedimento mantenedor desse impulso ndash como que um ldquoenganordquo que manteria o impulso sempre vivo e animado Com outras palavras o meacuterito de Lessing eacute o de refletir subjetivamente sobre a verdade ou seja pensar a verdade em sua relaccedilatildeo com o sujeito existente natildeo como um objeto mas como a apropriaccedilatildeo que aqui aparece nos termos de um impulso uacutenico e vibrante O esforccedilo continuado eacute por assim dizer a uacutenica maneira pela qual o sujeito existente pode se relacionar com a verdade Dito isto um novo passo precisaria ser dado qual seja aquele que partindo da centralidade da existecircncia recoloca a questatildeo filosoacutefica da verdade a partir de outros termos Eacute o que Climacus faraacute cuidadosamente na segunda parte do Poacutes-Escrito e que seraacute por ele mesmo identificado como sua tese a saber que a subjetividade a interioridade eacute a verdade Satildeo questotildees que demandam esforccedilos futuros de investigaccedilatildeo e que excedem os limites deste trabalho Conclusatildeo O percurso que ora concluiacutemos talvez tenha cumprido a funccedilatildeo modesta a que se prestava isto eacute introduzir algumas das questotildees centrais as quais a compreensatildeo de existecircncia de Kierkegaard se mantem atrelada Importa no entanto que faccedilamos ainda um

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uacuteltimo comentaacuterio a respeito do que foi apresentado ateacute aqui A con-diccedilatildeo existencial eacute contra-diccedilatildeo Assim conseguimos enunciar a tensatildeo paradoxal que se afirma e persiste na compreensatildeo de existecircncia de Kierkegaard Natildeo se trata de afirmar ndash como vez por outra se costuma fazer ndash que o homem eacute mera indeterminaccedilatildeo ou que natildeo haacute uma condiccedilatildeo uma essecircncia ou uma natureza humana que o homem precisa fazer-se a si mesmo porque nasce completamente indeterminado que sua existecircncia precede temporalmente a sua essecircncia e assim por diante Todas satildeo compreensotildees possiacuteveis mas nenhuma parece ser a de Kierkegaard Com efeito o que ele pretende eacute antes retesar e natildeo afrouxar a tensatildeo contraditoacuteria Por isso o homem tem uma condiccedilatildeo ndash poderiacuteamos dizer possui uma essecircncia ndash mas essa condiccedilatildeo eacute em si mesma contradiccedilatildeo ndash ou a sua essecircncia eacute em si mesma existecircncia ndash o que provoca uma crise aguda na relaccedilatildeo Ora tal situaccedilatildeo criacutetica desassossega fazendo com que o existente debata-se desesperadamente para desfazer-se da contradiccedilatildeo que ele mesmo eacute Mas tal como um noacute de escota ndash que quanto mais puxamos para desatar tanto mais ele se retesa e prende mas quando relaxamos a tensatildeo ele entatildeo afrouxa e desata ndash assim tambeacutem eacute a existecircncia quanto mais tentamos nos desvencilhar da contradiccedilatildeo que ela mesma eacute tanto mais nos vemos desesperadamente atados Para que a tensatildeo natildeo oprima talvez o existente precise aprender a entregar-se Com isso concluiacutemos com uma ldquodeixardquo para que possa entrar em cena uma obra natildeo mais de Climacus mas de Anti-Climacus20 qual seja A Doenccedila para a Morte Nela o caraacuteter criacutetico da existecircncia eacute acentuado a partir de outros termos Abordaacute-la eacute tarefa para outra ocasiatildeo

20 Outro Heterocircnomo de Kierkegaard Anti-Climacus assina A Doenccedila para a Morte (1849) e Tirociacutenio no Cristianismo (1850)

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Referecircncias HOWLAND Jacob Kierkegaard and Socrates A Study in

Philosophy and Faith Cambridge Cambridge University Press 2006

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Traduccedilatildeo de

Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo (introduccedilatildeo) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001

KIERKEGAARD Soslashren A Soslashren Kierkegaards Skrifer (SKS versatildeo 181 2014) httpsksdkforsideindholdasp

________ Poacutes-Escrito Conclusivo natildeo-cientiacutefico agraves

Migalhas Filosoacuteficas Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2013

________ O Conceito de Anguacutestia traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls

Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2010a

________ O Conceito de Ironia constantemente referido a Soacutecrates traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2010b

________ Migalhas Filosoacuteficas ou um bocadinho da

filosofia de Johannes Cliacutemacus traduccedilatildeo de Aacutelvaro Luiz Montenegro Valls e Ernani Reichmann notas de Aacutelvaro Luiz Montenegro Valls Editora Vozes Petroacutepolis 2008

________ Johannes Climacus ou Eacute preciso duvidar de

tudo Traduccedilatildeo de Siacutelvia Saviano Sampaio e Aacutelvaro Luiz Montenegro Valls Prefaacutecios e notas de Jacques Lafarge 1ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

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________ Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra de Escritor introduccedilatildeo de Jean Burn traduccedilatildeo de Joatildeo Gama ndash Ediccedilotildees 70 Lisboa Portugal 2002

STEWART Jon Kierkegaardrsquos Relations to Hegel Reconsidered Cambridge Cambridge University Press 2003

Nobre e Escravo na Perspectiva

da Vontade de Poder Nietzsche

e a interpretaccedilatildeo do homem a

partir da noccedilatildeo de valor

Ray Renan Silva Santos1

1 Avaliaccedilatildeo e gecircnese dos valores Na filosofia de Nietzsche o significado de valor

(ldquoWertrdquo) estaacute associado ao que ele entende por avaliaccedilatildeo (ldquoAuswertungrdquo) ldquoSomente haacute valor graccedilas agrave avaliaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1987 p 75)2 A avaliaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo mediante a qual o homem cria valores Valor por sua vez diz respeito agrave essecircncia do homem ao modo como o homem se constitui enquanto tal Zaratustra diz que ldquosem a avaliaccedilatildeo seria vazia a noz da existecircnciardquo3 isso porque eacute atraveacutes dela que o proacuteprio valor da existecircncia tem a sua origem Seria a existecircncia agrave parte da avaliaccedilatildeo do homem vazia e desprovida de sentido Que implicaccedilatildeo a mais tem o sentido de avaliar Eacute dito por Nietzsche (2013 p 291) que ldquonas avaliaccedilotildees se expressam condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e crescimentordquo O que significa ldquoconservaccedilatildeo e crescimentordquo

Conservar-se eacute o modo a partir do qual o homem luta para sobreviver Essa luta poreacutem tem um caraacuteter peculiar que diz respeito somente ao homem pois este eacute o uacutenico ente que avalia e atribui valor agraves coisas Eacute a partir das

1Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da

Paraiacuteba (UFPB)

2De mil e um fitos primeira parte

3De mil e um fitos primeira parte

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avaliaccedilotildees que se constitui ldquocrescimentordquo no sentido de que conforme o homem se manteacutem atraveacutes do valor sua vida tem com isso um acrescimento um ldquoa mais de poderrdquo

Avaliar eacute necessariamente valorar e o ato de valorar eacute tambeacutem um ato de criar Mas o que de fato constitui uma avaliaccedilatildeo Para que possamos ter um direcionamento de tal compreensatildeo analisemos a seguinte frase de Zaratustra ldquoNenhum povo poderia viver se antes natildeo avaliasse o que eacute bom e o que eacute maurdquo (NIETZSCHE 1987 p 74)4 Aqui a noccedilatildeo de avaliar estaacute correspondendo aos valores bom e mau Assim a noccedilatildeo de valor que estaacute atrelada agrave avaliaccedilatildeo deveraacute ser definida agrave medida que compreendermos que implicaccedilotildees tem bom e mau

Na citaccedilatildeo mencionada a avaliaccedilatildeo diz respeito a algo que faz parte da dinacircmica proacutepria do viver ela eacute o que exprime o conteuacutedo proacuteprio da existecircncia humana que surge atraveacutes do valor Avaliar o que eacute bom e o que eacute mau significa atribuir valores agraves accedilotildees O valor de uma determinada accedilatildeo eacute o que constitui o modo proacuteprio da vida do homem e a vida por sua vez se caracteriza como um movimento que se faz presente atraveacutes de valor assim o homem daacute sentido agrave sua proacutepria vida conforme cria valores tais valores satildeo definidos por ele como sendo bom e mau O que aparece aqui como elemento importante eacute o fato de que eacute o homem que cria os valores O valor natildeo existe como em si e por si o homem valora agrave medida da avaliaccedilatildeo sendo esta uacuteltima resultado de muacuteltiplos afetos que se apropriam dele O valor entatildeo eacute sempre relativo ao homem isto eacute valor eacute o que exprime a atividade propriamente do homem e o diferencia dos outros entes O ato de valorar designa a criaccedilatildeo a partir da qual a vida se mostra em seu incessante movimento de brotaccedilatildeo Todavia o homem e a accedilatildeo valorativa estatildeo em uma

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relaccedilatildeo com a realidade esta no sentido de uma forccedila que diz a vida em sua totalidade

A caracterizaccedilatildeo do sentido nietzschiano de ldquovalorrdquo ao mesmo tempo em que aponta para a essecircncia do homem exprime essa essecircncia em um modo de perspectiva Valor portanto eacute o que se faz presente em todos os homens poreacutem em graus distintos A manifestaccedilatildeo de perspectivas diferentes eacute referente aos impulsos que por sua vez satildeo diferentes entre si Natildeo haacute nenhum impulso ou forccedila no mundo que possa ter sua equivalecircncia em igualdade pois tudo eacute distinto tudo carrega diferenccedila Esse elemento distintivo faz com que as forccedilas estejam em um conflito hieraacuterquico pois ldquocada pulsatildeo eacute uma espeacutecie de ambiccedilatildeo despoacutetica (Herrschsucht) cada uma tem a sua perspectiva perspectiva que a pulsatildeo gostaria de impor como norma para todas as outras pulsotildeesrdquo (NIETZSCHE 2008a sect 481 p 260) Dessa forma natildeo eacute difiacutecil concluir que o valor de bom para um povo pode natildeo ter o mesmo valor para outro daiacute a frase de Zaratustra ldquoNunca um vizinho compreendeu o outro sempre a sua alma admirou-se da insacircnia e da malvadez do vizinhordquo 5

A valoraccedilatildeo (ldquoWertschaumltzungrdquo) sendo um ato necessaacuterio para a condiccedilatildeo de conservaccedilatildeo da vida tem a ver com uma forccedila um impulso que condiciona o homem a criar valores tal impulso eacute o que Nietzsche chama de vontade de poder Assim acha-se aqui a relaccedilatildeo entre bom e mau dita anteriormente relativa a essa vontade de poder que eacute o que condiciona o homem a criar Haacute que se perguntar poreacutem acerca do significado proacuteprio de vontade de poder Em A vontade de poder eacute dito que ldquoEste mundo eacute a vontade de poder ndash e nada aleacutem disso E tambeacutem voacutes mesmos sois essa vontade de poder ndash e nada aleacutem dissordquo (NIETZSCHE 2008a sect 1067 p 513) Quando Nietzsche diz que o mundo eacute vontade de poder com isso ele exprime

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a dinacircmica e o movimento do mundo como sendo essa vontade6 A expressatildeo no alematildeo Wiile zur Macht que significa literalmente vontade para poder indica vontade direcionada ao poder isto eacute constituiacuteda atraveacutes do poder Todos os acontecimentos do mundo satildeo vontade de poder No homem essa vontade se manifesta atraveacutes da valoraccedilatildeo portanto ele soacute vem a se constituir enquanto pertencente agrave condiccedilatildeo de valorar

Em Genealogia da moral Nietzsche direciona a origem do conceito de ldquobomrdquo como tendo se desenvolvido a partir de uma classe dominante e privilegiada Do mesmo modo o conceito de ldquoruimrdquo teria surgido a partir dessa mesma classe Sendo assim eacute bom tudo aquilo que condiz com o caraacuteter de homem nobre superior e guerreiro eacute ruim tudo aquilo contraacuterio ao nobre isto eacute comum inferior e escravo Eacute neste sentido que eacute dito por Nietzsche que

[] em toda parte ldquonobre ldquoaristocraacuteticordquo no sentido social eacute o conceito baacutesico a partir do qual necessariamente se desenvolveu ldquobomrdquo no sentido de ldquoespiritualmente nobrerdquo ldquoaristocraacuteticordquo de ldquoespiritualmente bem-nascidordquo ldquoespiritualmente privilegiadordquo um desenvolvimento que sempre

6Na citaccedilatildeo mencionada apesar do emprego do artigo ldquoardquo para indicar ldquovontade de poderrdquo esta natildeo diz respeito agrave noccedilatildeo de ldquounidaderdquo no sentido de uma organizaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo do todo pois o mundo eacute para Nietzsche constituiacutedo por muacuteltiplas vontades de modo que natildeo haacute a vontade de poder como unidade que comporta a multiplicidade dos acontecimentos do mundo mas sim vontades de poder enquanto constituintes da totalidade do mundo O uso do artigo dessa forma eacute referente ao sentido da ldquoqualidaderdquo do mundo como ldquoo todordquo ldquoa realidaderdquo mas estes sendo entendidos como multiplicidade desordenada Ainda a respeito da frase mencionada Muumlller-Lauter (1997 p 82-83-84) diz ldquoO todo em sua variedade eacute designado com o nome lsquoa vontade de poderrsquo A que remete aqui o emprego do singular Com ele Nietzsche exprime que a vontade de poder eacute a uacutenica qualidade que se deixa encontrar seja o que for que consideremosrdquo

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corre paralelo agravequele outro que faz ldquoplebeurdquo ldquocomumrdquo ldquobaixordquo transformar-se finalmente em ldquoruimrdquo (NIETZSCHE 2009 p 18)

Encontra-se dessa forma uma problemaacutetica no que diz respeito a uma transformaccedilatildeo conceitual de ldquobomrdquo Essa transformaccedilatildeo conceitual estaacute relacionada agrave reviravolta agrave inversatildeo dos valores morais ou para dizer de outro modo ela diz respeito agrave ldquotresvaloraccedilatildeo dos valoresrdquo (ldquoUmwertung der Wertrdquo)7 No que concerne a tal transformaccedilatildeo conceitual Nietzsche faz primeiramente uma anaacutelise acerca de tais conceitos em sua proacutepria liacutengua no alematildeo Em alematildeo a palavra schlecht (ldquoruimrdquo) que permite a derivaccedilatildeo do termo schlicht (ldquosimplesrdquo) designava o homem comum inferior e em oposiccedilatildeo ao homem nobre Essa anaacutelise continua ainda com a origem de tais conceitos na liacutengua grega e no latim No grego κακός (ldquomaurdquo) era o termo para designar o homem plebeu em

oposiccedilatildeo ao ἀγαθός (ldquobomrdquo) no latim malus (ldquomaurdquo) era a palavra empregada para indicar o homem inferior de classe baixa fraco e plebeu em oposiccedilatildeo ao bonus (ldquobomrdquo) que por sua vez dizia respeito ao homem guerreiro de discoacuterdia superior

Embora essas indicaccedilotildees em referecircncia aos diferentes tipos de homem possam ter um sentido de ordem social eacute preciso que compreendamos o homem caracterizado ldquotambeacutem segundo um traccedilo tiacutepico do caraacuteterrdquo ressalta Nietzsche (2009 p19) pois ldquoeacute este caso que aqui nos interessardquo Assim eacute necessaacuterio elucidarmos aqui a distinccedilatildeo fundamental a respeito das concepccedilotildees de nobre e escravo bem como os motivos histoacutericos atraveacutes dos quais o

7Em algumas editoras a expressatildeo ldquoUmwertungrdquo eacute traduzida por ldquotransvaloraccedilatildeordquo O uso aqui de ldquotresvaloraccedilaordquo eacute devida agrave escolha da editora da obra Genealogia da Moral que por sua vez traduz a expressatildeo dessa maneira

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sentido originaacuterio dos valores correspondentes a ambos sofreu alteraccedilotildees

11 Moral de nobre e moral de escravo Para podermos definir com mais clareza o que diz

respeito agrave moral de nobre eacute preciso nos atermos ao que Nietzsche chama de ldquotraccedilo tiacutepico do caraacuteterrdquo Nobre e escravo satildeo dois conceitos para designar o modo como a moral eacute entendida em sua gecircnese portanto satildeo conceitos que expressam avaliaccedilatildeo e valoraccedilatildeo em forma de princiacutepio Em sentido propriamente filosoacutefico nobre e escravo satildeo duas dimensotildees ontoloacutegicas atraveacutes das quais a vida se mostra Eacute nesse sentido originaacuterio do valor que Nietzsche nos indica os conceitos de bom e ruim como inicialmente provindo da classe nobre este ao corresponder agrave vida em seu instinto espontacircneo e cego considera-se bom porque cumpre o papel de pertencimento ao movimento mediante o qual a vida se destina para ele o escravo eacute considerado ruim pelo nobre porque ao natildeo corresponder com a vida em sua forma de irrupccedilatildeo ele nega esse caraacuteter com ressentimento Portanto trata-se aqui da condiccedilatildeo proacutepria e essencial do homem O homem nobre sendo tambeacutem um homem guerreiro de discoacuterdia tem como caracteriacutestica de seu modo de ser a coragem Ele eacute homem de destemor com sede de domiacutenio e imposiccedilatildeo de sua forccedila eacute tambeacutem um homem que natildeo guarda maacutegoas nem rancor de seu inimigo pois mesmo seu inimigo sendo a sua imagem de contraste ele somente o despreza mas sem o sentimento de vinganccedila e ressentimento Sobre essa peculiaridade do homem nobre Nietzsche diz

[] por vezes natildeo reconhece a esfera por ele desprezada a do homem comum do povo baixo por outro lado considere-se que o afeto do desprezo do olhar de cima para baixo do olhar

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superiormente a supor que falseie a imagem do desprezado em todo caso estaraacute muito longe do falseamento com que o oacutedio estranhado a vinganccedila do impotente atacaraacute ndash in efiggie naturalmente ndash a do seu adversaacuterio (NIETZSCHE 2009 p 26)

Segundo o modo de valoraccedilatildeo nobre ldquobomrdquo eacute o impulso vital que se apropria dele eacute a vida em sua condiccedilatildeo originaacuteria eacute o fluxo do vir-a-ser destituiacutedo de interrupccedilotildees Logo ldquoruimrdquo segundo essa mesma concepccedilatildeo eacute tudo aquilo que natildeo constitui a vida desde a vontade inerente ao homem eacute o deixar com que a fraqueza constitua a vida eacute deixar-se conduzir pelo passado ou futuro e natildeo vivenciar o instante (ldquoAugenblickrdquo) que eacute a uacutenica garantia da vida tal como se destina para o homem Instante eacute aqui o reconhecimento e acolhimento do tempo como unidade do passado presente e futuro em uma eclosatildeo contiacutenua sem que haja oposiccedilatildeo entre ambos Desse modo podemos perceber com mais clareza donde se origina o conceito de ldquobomrdquo quando relacionado ao que Nietzsche chama de traccedilo tiacutepico do caraacuteter O sentido de valor na moral nobre estaacute relacionado ao ldquobomrdquo esse bom estaacute relacionado agrave maneira como se constitui sua vontade que eacute livre e espontacircnea essa vontade eacute o que constitui propriamente sua felicidade

Por outro lado a designaccedilatildeo do valor no sentido da moral escrava estaacute relacionada ao ldquoBemrdquo que condiz com a perspectiva da moral cristatilde o bem assim eacute o que permite o homem agir deste ou daquele modo pois ele eacute o princiacutepio por meio do qual as accedilotildees devem ser guiadas logo a vontade aqui eacute suprimida por um valor esse valor eacute tambeacutem um meio a partir do qual se deve seguir para alcanccedilar a felicidade a felicidade no entanto somente eacute possiacutevel num outro mundo jaacute que o valor de ldquoBemrdquo de acordo com a concepccedilatildeo cristatilde estaacute relacionado a um mundo suprassensiacutevel ndash daiacute a expressatildeo do termo ldquoescravordquo utilizada por Nietzsche o modo de ser escravo implica ser

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escravo de um ideal de um valor colocado como acima de si mesmo e da proacutepria vida

Como a natureza do homem nobre eacute dizer ldquosimrdquo agraves suas forccedilas espontacircneas em consequecircncia disso uma vez que suas forccedilas constituem um domiacutenio pode ser o caso de ser criada uma aristocracia uma classe favorecida um status social dominante em que haveraacute outra classe desfavorecida ndash a do homem escravo Este eacute o sentido ldquosecundaacuteriordquo da compreensatildeo de nobre e escravo pois eacute o caraacuteter que exprime a constituiccedilatildeo originaacuteria de ambos Ora sendo o homem escravo o desfavorecido segundo Nietzsche o que iraacute constituir sua vida seraacute o ressentimento para com os nobres por isso a moral de escravo eacute definida por Nietzsche como reativa A moral do escravo tambeacutem pode ser caracterizada como a moral judaico-cristatilde daiacute a figura do homem escravo ter atributos como de homem compassivo humilde fraco oprimido etc O homem escravo natildeo age a partir de si mesmo ele reage a partir de outrem Ele age em vista da utilidade da accedilatildeo ele precisa assegurar que sua accedilatildeo natildeo seraacute algo de prejudicial a si proacuteprio e por isso se torna escravo de um ideal de um valor de ldquobomrdquo criado por ele mesmo e postulado como em si e como determinante do mundo O sentido de bom aqui estaacute centrado na fraqueza numa espeacutecie de querer que a vida esteja em estabilidade em meio ao movimento incessante ldquoMaurdquo segundo esse modo de valorar seria toda a dinacircmica de conflito irrupccedilatildeo e destruiccedilatildeo pertencentes agrave vida Neste sentido a moral eacute utilizada como forma de combater o caraacuteter antagocircnico e conflituoso da existecircncia Poreacutem esse combate consiste em um recuo em uma rejeiccedilatildeo daquilo que faz parte da constituiccedilatildeo do viver Essa rejeiccedilatildeo pode ser melhor compreendida quando associada agravequilo que eacute designado por Nietzsche como ldquoressentimentordquo

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A rebeliatildeo escrava na moral comeccedila quando o proacuteprio ressentimento se torna criador e gera valores o ressentimento dos seres aos quais eacute negada a verdadeira reaccedilatildeo a dos atos e que apenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeo (NIETZSCHE 2009 p 26)

Ressentimento eacute o que possibilita a criaccedilatildeo de valores da moral escrava Mas natildeo somente isso o ressentimento eacute tambeacutem o modo atraveacutes do qual o escravo conserva sua vida Todavia no ressentir-se ldquoa verdadeira reaccedilatildeordquo eacute negada porque nela natildeo se manifesta a accedilatildeo que eacute desejada mas apenas o desejo da accedilatildeo O escravo natildeo estaacute na condiccedilatildeo de poder criar valores que correspondam ao devir (rdquoWerdenrdquo) por isso o uacutenico modo de se conservar eacute reagindo agrave mudanccedila e agrave efemeridade do mundo Assim ele reage criando valores que falsificam o vir-a-ser em detrimento de uma estabilidade que forneccedila garantia para a existecircncia

Na anaacutelise genealoacutegica dos valores Nietzsche nos chama atenccedilatildeo para o aspecto histoacuterico das guerras judaico-romanas O romano seria se quisermos traccedilar uma relaccedilatildeo mais precisa o povo mais privilegiado e por isso tambeacutem o povo nobre o judeu entatildeo seria o povo de sacerdotes o povo escravo O termo ldquoressentimentordquo eacute de grande importacircncia para o entendimento do caraacuteter do povo judeu Se por um lado o homem nobre na medida em que sendo um homem de guerra natildeo se ressentia de seus inimigos pelo simples fato de desprezaacute-los por outro o homem escravo carrega consigo um ressentimento uma sede de vinganccedila contra seus inimigos os nobres Como se sabe o povo judeu pode ser definido tambeacutem como o povo cristatildeo pois eacute dele que proveacutem o cristianismo Quando a Judeia assume o poder ao conquistar a vitoacuteria contra Roma uma nova moralidade se impotildee como dominante por parte dos escravos daiacute a frase inicial sobre ldquoa rebeliatildeo

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escrava na moralrdquo O que fundamenta essa moral eacute o ressentimento e eacute esse ressentimento que cria os valores estabelecidos como condutores da vida O importante aqui no que concerne ao termo ldquovalorrdquo eacute que ele tem um sentido diferente do que vem a ser ldquovalorrdquo na moral de nobre

Com isto logo se faz perceber a distinccedilatildeo entre moral de nobre e moral de escravo A moral de escravo que se constitui a partir do ressentimento eacute a moral dos cristatildeos8 que ldquoapenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeordquo uma vez que deixam o ldquocastigordquo aos seus inimigos para Deus Assim o valor antiacutepoda ao ldquobemrdquo eacute denominado de ldquomalrdquo ndash ambos valores que natildeo se encontravam estabelecidos na cultura de um modo geral para o homem Por conseguinte todo o modelo da cultura e da civilizaccedilatildeo ocidental vem a ganhar uma expressatildeo diferente da que antes se apresentara Essa mudanccedila eacute o que vem a ser a inversatildeo dos valores morais por parte dos judeus Nietzsche diz

Nada do que na terra se fez contra ldquoos nobresrdquo ldquoos poderososrdquo ldquoos senhoresrdquo ldquoos donos do poderrdquo eacute remotamente comparaacutevel ao que os judeus contra eles fizeram os judeus aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas atraveacutes de uma radical tresvaloraccedilatildeo dos valores deles ou seja por um ato da mais vinganccedila espiritual (NIETZSCHE 2009 p 23)

8 A relaccedilatildeo entre a jaacute mencionada ldquorebeliatildeo escrava na moralrdquo e a instauraccedilatildeo do cristianismo no Ocidente exprime uma mesma concepccedilatildeo ldquoA verdade da primeira dissertaccedilatildeo eacute a psicologia do cristianismo o nascimento do cristianismo do espiacuterito do ressentimento natildeo como se crecirc do ldquoespiacuteritordquo ndash um antimovimento em sua essecircncia a grande revolta contra a dominaccedilatildeo dos valores nobresrdquo (NIETZSCHE 2008b p 93)

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A vitoacuteria do povo judeu contra o povo romano desencadeou uma manifestaccedilatildeo invertida dos valores morais que por seu turno caracterizou o padratildeo da cultura ocidental O que antes era visto como fraco inferior e ruim passou a ser visto como forte superior e bom se antes o que caracterizava a bondade do homem juntamente com seu poder era o modo como ele se impunha como guerreiro posteriormente o que passou a ser propagado como bom foi o ideal do homem compassivo fraco e oprimido sendo este ideal uma forma de o homem voltar-se contra a proacutepria vida A impotecircncia do homem paradoxalmente passou a ser sua forccedila pois o que constituiacutea o homem ldquoforterdquo agora era a promessa de outro mundo transcendente e suprassensiacutevel onde ele seria recompensado por todas as opressotildees que sofreu no mundo ldquoterrestrerdquo e posteriormente regozijar-se-ia na eterna e soberana paz Essa eacute a perspectiva do cristianismo a promessa de Deus segundo a qual o ceacuteu seraacute dos oprimidos dos que sofrem dos que satildeo humilhados dos que satildeo compassivos Quando o plano dos valores morais foi invertido pelos judeus o que passou a predominar foram os valores judaico-cristatildeos de acordo com os princiacutepios biacuteblicos do Novo Testamento

Esses ideais satildeo as leis que constituiacuteram e constituem ateacute hoje a histoacuteria da civilizaccedilatildeo ocidental Dessa forma a vinganccedila como antes fora mencionada eacute deixada para um futuro ndash que os cristatildeos chamam de ldquojuiacutezo finalrdquo ndash o que aparece aqui como uma vontade da vontade e natildeo propriamente a vontade ldquoVontade da vontaderdquo consiste em vontade rebelada contra si proacutepria e uma vez que a vontade de poder em seu curso natural eacute constituiacuteda atraveacutes da espontaneidade e do fluir da pulsaccedilatildeo o querer e

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a accedilatildeo satildeo apenas um soacute ato quantum de impulso corresponde a quantum de forccedila9

O que eacute importante salientar eacute que tanto a valoraccedilatildeo nobre quanto a do escravo fazem mostrar o modo proacuteprio como a vontade de poder se destina ao homem Isto pode ser visto de maneira impliacutecita em tal passagem do Zaratustra ldquoOutrora os povos suspendiam por cima de si uma taacutebua do bem O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer criaram juntos para si essas taacutebuasrdquo (NIETZSCHE 1987 p 75) A conotaccedilatildeo do termo ldquoamorrdquo nos indica o que vem a ser vontade de poder Eacute a vontade de poder que cria atraveacutes do homem em seu avaliar as taacutebuas de valores Ora isto significa que a existecircncia de diferentes morais natildeo tem seu meacuterito uacutenica e exclusivamente no homem pois este natildeo eacute propriamente livre no sentido de ter um livre-arbiacutetrio e de ser plenamente capaz de escolher qual caminho seguir por uma autonomia da consciecircncia ldquoO homem natildeo eacute a consequecircncia de uma intenccedilatildeo proacutepriardquo (NIETZSCHE 2000 p 50)10 O homem natildeo eacute condicionado a criar valores por uma forccedila que eacute propriamente dele no sentido de pertencer ao seu ldquointeriorrdquo mas sim por muacuteltiplas vontades que estatildeo no mundo de modo a constituiacute-lo Vontade de poder eacute o que condiciona o mando e a obediecircncia as apreciaccedilotildees de valor nobre e escravo

Como vimos o caraacuteter do homem nobre eacute definido por Nietzsche como ativo ao passo que o caraacuteter do escravo eacute definido como passivo Tal caracterizaccedilatildeo pode ser melhor compreendida a partir da seguinte citaccedilatildeo

9 ldquoUm quantum de forccedila equivale a um mesmo quantum de impulso vontade atividade ndash melhor nada mais eacute senatildeo este mesmo impulso este mesmo querer e atuarrdquo (NIETZSCHE 2009 p 33)

10Os quatro grandes erros

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Que eacute ldquopassivordquo resistir e reagir Ser obstruiacutedo no movimento que se projeta para frente portanto um agir da resistecircncia e da reaccedilatildeo Que eacute ldquoativordquo Lanccedilar-se em direccedilatildeo ao poder (NIETZSCHE 2013 5 (64) p 176)

A conotaccedilatildeo de passivo estaacute relacionada ao que

Nietzsche chama de resistir e reagir Mas o que significa resistir e reagir Eacute a condiccedilatildeo atraveacutes da qual o ser passivo se conserva A reaccedilatildeo eacute referente ao movimento proacuteprio do mundo que por sua vez designa um incessante fluxo de forccedilas ela eacute uma forccedila contraacuteria a esse fluxo Em resistindo tal eacute o modo como aquele que reage preserva sua vida Esse modo de preservar a vida constitui uma ldquoobstruccedilatildeordquo de si proacuteprio no que tange agraves forccedilas instintivas e ativas da condiccedilatildeo espontacircnea da vida Obstruir-se significa natildeo aceitar a vida e reagir ao movimento que lhe eacute proacuteprio Reaccedilatildeo poreacutem exprime ao mesmo tempo de onde ela proveacutem a saber da vida Natildeo haacute uma forccedila que condiciona a reaccedilatildeo que seja distinta do que natildeo eacute reaccedilatildeo Pode-se afirmar inclusive que tudo eacute ldquoaccedilatildeordquo no sentido de que tudo proveacutem do mesmo ndash vontade de poder ndash que se manifesta de modos distintos Esse elemento de distinccedilatildeo a partir do qual a vontade se manifesta eacute o que caracteriza accedilatildeo e reaccedilatildeo A accedilatildeo relacionada ao que Nietzsche chama de ldquoativordquo eacute um pertencimento do homem ao que condiciona sua atividade a reaccedilatildeo diz respeito a uma rejeiccedilatildeo do que condiciona todo acontecimento Todavia o homem natildeo pode reagir atraveacutes de outro condicionamento porque tudo eacute vontade de poder

Por outro lado o que significa propriamente ldquoativordquo Eacute a forma com que o homem se direciona ao poder isto eacute ao inesgotaacutevel retorno ao poder Poder-se-ia poreacutem objetar mas uma vez que tudo proveacutem de uma mesma forccedila tudo natildeo estaria direcionado ao poder A

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resposta seria sim e natildeo Sim porque agrave medida que accedilatildeo e reaccedilatildeo provecircm da vontade de poder ambas soacute se constituem enquanto direcionadas a essa vontade por outro lado natildeo porque o direcionar-se ao poder como maneira ativa caracteriza um dizer ldquosimrdquo portanto um querer uma aceitaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo tal como se manifesta aceitaccedilatildeo esta que natildeo ocorre na reaccedilatildeo

12 Vontade de poder como movimento de auto superaccedilatildeo

Para que possamos compreender com mais clareza

o sentido proacuteprio de vontade de poder tomemos como exemplo a seguinte citaccedilatildeo ldquoUma taacutebua de tudo o que eacute bom estaacute suspensa por cima de cada povo Vede eacute a taacutebua do que ele superou eacute a voz de sua vontade de poderrdquo (NIETZSCHE 1987 p 74)11 Cada povo tem seu modo de conceber e portanto valorar o que eacute bom Aquilo que eacute bom para um povo eacute o que eacute colocado como valor superior O bom proveacutem de um esforccedilo de direcionar-se para poder valorar esforccedilo que eacute condicionado por vontade de poder Tal vontade se constitui como um movimento de superaccedilatildeo de si mesma essa superaccedilatildeo se caracteriza como uma forccedila incontrolaacutevel provinda de um impulso constituinte da vida Superar a si mesmo a partir da concepccedilatildeo da vontade de poder significa romper com o atual para se realizar em uma nova dinacircmica de ser daiacute a afirmaccedilatildeo de que ldquomas um poder mais forte uma nova superaccedilatildeo nasce de vossos valores ela faz romperem-se o ovo e a casca do ovordquo (NIETZSCHE 1987 p 128)12 ldquoRomper o ovo e casca do ovordquo tem relaccedilatildeo com a maneira atraveacutes da qual a vida irrompe com o atual e se apropria do homem fazendo surgir uma nova perspectiva

11De mil e um fitos primeira parte

12Do superar si mesmo segunda parte

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Na seguinte passagem de Assim falou Zaratustra o conceito de vontade de poder eacute definido assim ldquoCom os vossos valores e palavras do bem e o do mal exerceis poder oacute voacutes que estabeleceis valoresrdquo (NIETZSCHE 1987 p 128)13 A essecircncia do homem consiste em exercer poder atraveacutes dos valores Como foi dito antes os valores de bom e mau satildeo os valores que o homem avalia como necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da vida Essa conservaccedilatildeo consiste em avaliar o que eacute de valor superior e o que eacute de valor inferior para si proacuteprio Na frase aqui citada nos aparece os termos bem e mal Contextualmente esses termos correspondem imediatamente agravequeles outros isto eacute bom e mau Bom e mau tecircm relaccedilatildeo com bem e mal ambos no sentido da moralidade cristatilde Nietzsche natildeo define a moral de nobre como tendo essa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo e sim em uma relaccedilatildeo entre bom e ruim O bom como derivaccedilatildeo de um princiacutepio universal ndash o bem ndash e o mau como derivaccedilatildeo tambeacutem de um valor universal ndash o mal ndash seriam modos de avaliaccedilatildeo da moral de escravo14 Em Aleacutem do bem e do mal eacute dito que

A moral dos escravos eacute essencialmente uma moral de utilidade Aqui estaacute o foco de origem da famosa

13Do superar si mesmo segunda parte

14Essa distinccedilatildeo pode ser um pouco mais esclarecida na seguinte citaccedilatildeo ldquoEste lsquoruimrsquo de origem nobre e aquele lsquomaursquo que vem do caldeiratildeo do oacutedio insatisfeito ndash o primeiro uma criaccedilatildeo posterior secundaacuteria cor complementar o segundo o original o comeccedilo o autecircntico feito na concepccedilatildeo de uma moral escrava ndash como satildeo diferentes as palavras lsquomaursquo e lsquoruimrsquo ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de lsquobomrsquordquo (NIETZSCHE 2009 p 28-29) O elemento que se estaacute a destacar eacute a diferenciaccedilatildeo entre a maneira de avaliar nobre e a escrava Assim como o ldquoruimrdquo (ldquoschlechtrdquo) do nobre natildeo corresponde ao ldquomaurdquo (ldquoboumlserdquo) da moral do escravo tambeacutem o ldquobomrdquo (ldquogutrdquo) do nobre eacute totalmente distinto do ldquobomrdquo (ldquogutrdquo) do escravo Embora seja utilizada a mesma palavra para indicar o bom o sentido e o conteuacutedo do valor eacute outro

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oposiccedilatildeo ldquobomrdquo e ldquomaurdquo ndash no que eacute mau se sente poder e periculosidade uma certa terribilidade sutileza e forccedila que natildeo permite o desprezo Logo segundo a moral dos escravos o ldquomaurdquo inspira medo segundo a moral dos senhores eacute precisamente o ldquobomrdquo que desperta e quer despertar medo enquanto o homem ldquoruimrdquo eacute sentido como despreziacutevel (NIETZSCHE 2005 p 158)

Na perspectiva de Nietzsche a pergunta pelo significado dos valores morais soacute pode ser respondida sob a compreensatildeo do elemento da origem de tais valores A vontade de poder enquanto forccedila que se destina incontrolavelmente para o homem aparece como esse elemento que natildeo apenas eacute criador da moral mas tambeacutem distintivo A filosofia de Nietzsche enquanto criacutetica dos valores se estabelece como uma criacutetica do valor dos valores Isto nos indica que eacute preciso uma anaacutelise acerca da criaccedilatildeo dos valores Essa criaccedilatildeo tem como ponto de partida uma origem a partir da qual todos os valores dela provecircm essa origem por sua vez eacute o valor dos valores

O elemento criador dos valores eacute a avaliaccedilatildeo a avaliaccedilatildeo no entanto natildeo se confunde com os valores visto que ela eacute o elemento originaacuterio do valor dos valores O filoacutesofo francecircs Gilles Deleuze (1976 p 4) ao interpretar essa relaccedilatildeo entre avaliar e valorar escreve ldquoAs avaliaccedilotildees referidas a seu elemento natildeo satildeo valores mas maneiras de ser modos de existecircncia daqueles que julgam e avaliam servindo precisamente de princiacutepios para os valores em relaccedilatildeo aos quais eles julgamrdquo Avaliaccedilotildees como ldquomaneiras de serrdquo se referem agrave vontade de poder como manifestaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo da existecircncia

Quando associamos essa relaccedilatildeo entre avaliar e valorar agraves perspectivas do nobre e do escravo percebemos que estes natildeo satildeo valores mas meios atraveacutes dos quais se constituem a origem do valor dos valores de ambas as

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morais O elemento diferencial dos valores eacute o sentimento de distacircncia conforme podemos analisar na seguinte citaccedilatildeo ldquoEnquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma jaacute de iniacutecio a moral escrava diz Natildeo a um lsquoforarsquo um lsquooutrorsquo um lsquonatildeo-eursquo ndash e este Natildeo eacute seu ato criadorrdquo (NIETZSCHE 2009 p 26)

O elemento diferencial dos valores se encontra na diferenccedila das forccedilas que se exprimem enquanto valoraccedilatildeo da proacutepria forccedila Como essas forccedilas estatildeo em conflito umas com as outras e assim possuem entre si uma hierarquia por conseguinte os valores que provecircm dessas forccedilas tambeacutem iratildeo se caracterizar como distantes entre si Assim todo valor predominante e superior a outro estaacute numa relaccedilatildeo com uma forccedila predominante e superior a outra forccedila Multiplicidade de vontades constituem lutas entre si acircnsia por mais poder e por domiacutenio portanto constituem hierarquia e consequentemente distinccedilatildeo A distinccedilatildeo eacute sempre relativa ao grau de poder exercido pela vontade ldquoA quantidade de poder que tu eacutes decide sobre a distinccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2008a sect 858 p 431) Conclusatildeo

Esta anaacutelise acerca do fundamento do valor leva-

nos a mergulhar dentro da problemaacutetica nietzschiana dos valores Uma primeira pergunta que se pode fazer eacute se um valor eacute a expressatildeo de uma forccedila que o avalia enquanto tal o que existe por traacutes de uma coisa quando esta ainda natildeo foi avaliada A resposta para esta pergunta seria que nada existe Por traacutes de uma coisa natildeo avaliada e portanto natildeo valorada existe uma realidade destituiacuteda de valor que eacute somente puro devir Assim quando pensamos a realidade como um todo percebemos esse todo como essencialmente vazio de significado e sentido O que daacute significado ao todo eacute o ato de avaliaacute-lo pois eacute a partir dessa avaliaccedilatildeo que se tem a origem dos valores que lhe atribuem

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sentido Nem o todo nem os atos de valoraacute-lo possuem valores em si os proacuteprios atos fazem parte do todo logo todo e qualquer valor eacute criaccedilatildeo proveniente daquele que cria ldquo uma accedilatildeo em si eacute totalmente vazia de valor tudo depende de quem a fazrdquo (NIETZSCHE 2008a sect 292 p 168)

Com isto logo percebemos o ponto culminante da concepccedilatildeo nietzschiana de mundo uma vez que o todo eacute essencialmente desprovido de valor a realidade das coisas tanto natildeo possui verdade como natildeo possui relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre valores A verdade e a oposiccedilatildeo entre valores surgem agrave medida que o homem as cria Valores satildeo perspectivas que por sua vez satildeo interpretaccedilotildees da vontade de poder com relaccedilatildeo agrave realidade pois ldquoTodas as vontades de poder ex-potildeem interpretamrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 124) Assim nos diferentes valores encontramos diferentes interpretaccedilotildees referentes ao que se mostra pois ldquoNossos valores satildeo introduzidos nas coisas pela interpretaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2008a sect 590 p 310) Referecircncias DELEUZE Gilles Nietzsche e a filosofia Trad Ruth Joffily

Dias e Edmundo Fernandes Dias Rio de Janeiro Editora Rio 1976

MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A doutrina da vontade de poder em Nietzsche Trad de Oswaldo Giacoia Junior Satildeo Paulo ANNABLUME 1997

NIETZSCHE Friedrich Wilhelm A vontade de poder Trad Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Morais Rio de Janeiro Contraponto 2008a

___________________________ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Cesar Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2005

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___________________________ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1987

___________________________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Trad Marco Antonio Casa Nova Rio de Janeiro 2000

___________________________ Ecce homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2008b

___________________________ Fragmentos Poacutestumos Volume VI Trad Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 2013

___________________________ Genealogia da moral Trad Paulo Cesar Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2009

Heidegger e o conceito de fusij

no fragmento 16 de Heraacuteclito

Robson Costa Cordeiro1

Na preleccedilatildeo que realizou no semestre de veratildeo de 1843 intitulada A origem do pensamento ocidental Heraacuteclito Heidegger procura a partir do fragmento 16 de Heraacuteclito verificar o que constitui o a-se-pensar originaacuterio Originaacuterio para Heidegger remete agrave origem do pensamento Eacute preciso contudo distinguir origem de comeccedilo A origem o princiacutepio natildeo eacute algo que comeccedila entra em vigor e fica para traacutes como o que agora eacute apenas passado O princiacutepio nunca perde o vigor e estaacute sempre por vir Em Hinos de Houmllderlin Heidegger deixa isso claro

lsquoComeccedilorsquo ― eacute alguma coisa diferente de lsquoprinciacutepiorsquo Uma nova condiccedilatildeo meteoroloacutegica por exemplo comeccedila com uma tempestade mas o seu princiacutepio eacute a total alteraccedilatildeo das condiccedilotildees atmosfeacutericas que atua previamente Comeccedilo eacute aquilo com que algo se inicia o princiacutepio eacute aquilo de onde algo se origina (HEIDEGGER 1999 p 3)

Em Hinos de Houmllderlin Heidegger comeccedila analisando o poema Germacircnia E o que significa falar no contexto da anaacutelise desse poema de comeccedilo Heidegger comeccedila com o poema Germacircnia para chegar ao princiacutepio agrave origem pois eacute somente partindo de um iniacutecio que se pode chegar ou mesmo se indicar a origem Quando fala origem do pensamento ocidental Heidegger natildeo estaacute falando do seu

1 Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba Coordenador do Grupo de Pesquisa Corpo e Fenomenologia E-mail robsonccordeirobolcombr

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comeccedilo como de uma determinada sentenccedila de um pensador que em uma determinada data teria feito comeccedilar o pensamento ocidental O que ele estaacute procurando indicar eacute que a partir da fala de um determinado pensador (como seria o caso da fala de Heraacuteclito no fragmento 16) se poderia chegar ou entatildeo indicar a origem fazer a experiecircncia da origem do pensamento ocidental No caminho que constitui essa experiecircncia conforme estaacute

insinuado no fragmento 16 Heidegger encontra a fusij

enquanto misteacuterio do ser Mas o que procura Heidegger ao regressar aos gregos natildeo eacute um retorno ao que foi pensado na aurora da nossa histoacuteria anteriormente ao decliacutenio do pensamento metafiacutesico com Platatildeo Segundo Zarader uma possibilidade mais clara consistiria ldquoem compreender o movimento heideggeriano como um reenvio natildeo ao pensamento do comeccedilo mas ao seu impensadordquo (sd p 348) Tratar-se-ia segundo ela da ldquopaciente explicitaccedilatildeo de uma questatildeo que nos interpela em silecircncio desde a manhatilde de nosso destino e que nos interpela tanto mais fortemente quanto nunca lhe demos ouvidosrdquo (Id Ibid p 348) Decerto que isso soacute pode ser feito a partir do texto da liacutengua no caso a grega na qual a origem foi inscrita A origem se distingue do comeccedilo porque eacute a partir da origem que o comeccedilo pocircde ser o que ele foi As palavras de origem pois satildeo as palavras que ldquopronunciadas no comeccedilo foram em parte iluminadas pelo pensamento em parte deixadas na sombra do impensadordquo (Id Ibid p 348) De onde vem o poder do pensamento de Heraacuteclito para ainda nos inquietar apoacutes mais de 25 seacuteculos De modo algum devido ao caraacuteter atemporal ou eterno do seu pensamento Segundo Carneiro-Leatildeo ldquoa atualidade de Heraacuteclito emerge e brota da proacutepria vigecircncia histoacuterica do seu pensamentordquo (2010 p 153) Eacute por ser histoacuterico que o pensamento de Heraacuteclito fez histoacuteria pois remete para a proacutepria dinacircmica da histoacuteria como o que nos interpela no

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silecircncio do seu resguardo Em seu primeiro soneto a Orfeu Rilke falou do movimento de elevaccedilatildeo e brotaccedilatildeo de realidade quando tudo silenciou quando conforme ele anuncia ldquono silecircncio unacircnime nasceu novo princiacutepio gesto e transformaccedilatildeordquo (RILKE 2000 p 21) Novo princiacutepio na verdade estaacute se referindo ao velho antiquiacutessimo princiacutepio que eacute o que sempre volta a principiar em toda inauguraccedilatildeo de realidade Mas o velho por sempre voltar a principiar eacute sempre o novo o mais jovial cheio de vitalidade e plenitude Por isso por nunca cessar de principiar eacute sempre novo princiacutepio novo gesto e nova transformaccedilatildeo Eacute isto o que procuraremos pensar a partir do fragmento 16 de Heraacuteclito que reza to mh du=non pote pw=j a)=n tij laqoi Heidegger coloca o fragmento 16 como o primeiro no sentido daquele que toca o nuacutecleo dominante daquilo que constitui para os primeiros pensadores dentre eles Heraacuteclito o a-se-pensar originaacuterio Desse modo ele natildeo segue a claacutessica divisatildeo dos fragmentos conforme foi estabelecida por Diels A sua primeira traduccedilatildeo para o fragmento eacute a seguinte ldquoComo algueacutem poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez jaacute natildeo declina A traduccedilatildeo segundo Heidegger natildeo precisa ser literal mas fiel agrave palavra do pensador Portanto natildeo se trata de uma mera justaposiccedilatildeo de palavras quase mecacircnica mas sim de poder vislumbrar a partir da totalidade da sentenccedila o poder de nomeaccedilatildeo e conjunccedilatildeo das palavras Enquanto interpretaccedilatildeo a traduccedilatildeo consiste em conduzir para uma outra margem desconhecida que se encontra do outro lado do rio largo e amplo que eacute aquilo que se tem de pensar originariamente a fusij como o misteacuterio do ser Atraveacutes da traduccedilatildeo Heidegger pretende passar para a outra margem do rio procurando pensar o impensado nas palavras do pensador grego conduzindo assim o pensamento agrave sua rememoraccedilatildeo (Andenken) que sendo rememoraccedilatildeo do impensado eacute ao mesmo tempo impulso

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para o novo para o futuro (Vordenken) Portanto eacute a partir da provocaccedilatildeo suscitada pelo pensador originaacuterio que Heidegger pensa natildeo somente o impensado das suas palavras mas tambeacutem o proacuteprio destino de sua eacutepoca como a eacutepoca do predomiacutenio teacutecnico e do pensamento calculador em que os deuses estatildeo foragidos e em que a fusij torna-se mundo manipulaacutevel e objetivaacutevel pelo sujeito Heidegger considera que soacute o pensamento originaacuterio traz em si encoberto um tesouro que permanece impensaacutevel e que desde esse estar encoberto propicia ser cada vez melhor compreendido o que significa dizer ser compreendido de maneira diferente da literal A interpretaccedilatildeo realiza o que silencia na palavra literal trazida pela traduccedilatildeo e eacute por isso que mesmo na proacutepria liacutengua eacute preciso que se traduza Com a traduccedilatildeo desse modo se pretende compreender melhor aquilo que jaacute foi compreendido pelo proacuteprio autor Mas na verdade ldquoesse compreender melhor natildeo eacute nunca o meacuterito do inteacuterprete mas o presente do interpretadordquo (HEIDEGGER 1994 p 64) Nietzsche tambeacutem jaacute tinha pensado algo parecido no contexto do seu pensamento acerca da vontade de poder ao colocar e procurar responder ao seguinte questionamento ldquoEacute afinal necessaacuterio ainda pocircr o inteacuterprete por traacutes da interpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia hipoacuteteserdquo (NIETZSCHE 1980 sect 481 p 337)

O fragmento 16 se encontra em uma passagem do Pedagogo de Clemente de Alexandria que viveu entre 160-220 dc Segundo Heidegger Clemente de Alexandria utiliza esse fragmento para sustentar um pensamento teoloacutegico e pedagoacutegico como comentaacuterio agrave seguinte passagem do livro primeiro dos oraacuteculos de Isaiacuteas profeta de Israel ldquoAi daqueles que procuram esconder-se de Javeacute para ocultar seus proacuteprios projetos Agem nas trevas dizendo lsquoQuem nos vecirc Quem nos conhecersquordquo (ISAIacuteAS 29 15-16) Em seu comentaacuterio Clemente de Alexandria procura mostrar que eacute

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possiacutevel esconder-se da luz sensiacutevel do sol mas natildeo da claridade do olho inteligiacutevel de Deus que segundo o Evangelho de Mateus (66) ldquovecirc no escondidordquo

Em Os trabalhos e os dias Hesiacuteodo (v 267) mostra que o olho de Zeus tambeacutem vecirc tudo ldquoO olho de Zeus que tudo vecirc e assim tudo saberdquo (panta i)dwn Dioj o)fqalmoj

kai panta nohsaj) (HESIacuteODO 1991 p 43) Para Hegel na culminaccedilatildeo do pensamento moderno o que era inicialmente inacessiacutevel e obscuro deve ser trazido para a luz de um saber incondicional O projeto do seu sistema eacute acabar com todo resquiacutecio de obscuridade conforme mostra a conclusatildeo de sua preleccedilatildeo inaugural na universidade de Heidelberg em 28 de outubro de 1816

A essecircncia do universum inicialmente escondida e encoberta natildeo possui forccedila para opor resistecircncia agrave coragem do conhecimento ela (a essecircncia do universum) deve-se abrir-se diante dele (do pensamento da filosofia) e pocircr diante de seus olhos a sua riqueza e a sua profundidade deixando-se por ele aproveitar (Apud HEIDEGGER 1994 p 29-30)

Diante disso a pergunta decisiva para Heidegger

seria Por que o universo isto eacute o absoluto natildeo tem em si forccedila alguma de resistecircncia em afirmar a sua essecircncia velada diante do poder explorador do conhecimento metafiacutesico A resposta segundo ele seria porque a vontade de mostrar-se eacute a essecircncia do absoluto e este seria o pressuposto do sistema-Enciclopeacutedia de Hegel (HEIDEGGER 2007 p 145) O que temos agora de fazer eacute pocircr em questatildeo a relaccedilatildeo da sentenccedila de Heraacuteclito com as interpretaccedilotildees de Clemente de Alexandria e Hegel A sentenccedila eacute to mh du=non

pote pw=j a)=n tij laqoi (ldquoComo algueacutem poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez jaacute natildeo declina) A sentenccedila coloca uma pergunta embora decirc a impressatildeo agrave

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primeira vista de que se trata de uma pergunta retoacuterica que apenas reforccedilaria o sentido de uma afirmaccedilatildeo

Mas por que a tendecircncia eacute ver na sentenccedila uma afirmaccedilatildeo velada em forma de pergunta e natildeo uma autecircntica genuiacutena pergunta Parece ser pelo fato de que sempre jaacute partimos do pressuposto de que a essecircncia tem o sentido de luz presenccedila seja a luz do olho inteligiacutevel de Deus do qual natildeo poderiacuteamos nunca nos esconder seja a luz do poder revelador do espiacuterito absoluto A estrutura da sentenccedila eacute a seguinte De iniacutecio nos temos to mh du=non

pote (ldquoo que jaacute natildeo declinardquo) Entretanto natildeo eacute dito o que eacute isso que nunca declina A suspeita que persiste nas interpretaccedilotildees vigentes eacute considerar o que jaacute natildeo declina como uma espeacutecie de observador que nada deixa escapar e que estaacute sempre a espreitar o homem como foi o caso da interpretaccedilatildeo que Clemente de Alexandria fez a partir da sentenccedila de Heraacuteclito e da poesia de Hesiacuteodo Ou entatildeo se considera o que nunca declina no sentido do espiacuterito absoluto como o fez Hegel cuja vontade de mostrar-se seria a sua proacutepria essecircncia

Em seguida o fragmento diz pw=j a)=n tij (ldquocomo algueacutem poderiardquo) No tij no algueacutem estaacute implicado o homem embora tambeacutem natildeo esteja dito o que eacute ser homem Por fim tambeacutem eacute dito no final do fragmento laqoi (estar encoberto) Duas perguntas parecem entatildeo impor-se 1) Quem eacute o homem este algueacutem sobre quem se fala de algo que jaacute natildeo declina O que eacute isto que jaacute natildeo declina diante do qual o homem natildeo poderia manter-se encoberto O fragmento pergunta de maneira essencial pelo pw=j (como) isto eacute pelo modo como o homem poderia manter-se encoberto face ao que nunca declina Mas ao falar ldquoface ao que nunca declinardquo parece que estamos falando ldquodianterdquo de um observador de um ser que tudo observa e que nada deixa escapar To mh du=non pote (ldquoo que jaacute natildeo declinardquo) desse modo parece indicar um

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substrato um ente uma essecircncia no sentido de algo que estaacute sempre presente tudo observando sabendo e vendo

A expressatildeo to mh du=non pote remete para uma experiecircncia com o verbo dunein que estaacute ligado ao verbo duw que significa aprofundar mergulhar O sol no poente mergulha no mar e aiacute declina mas o seu declinar natildeo eacute o seu aniquilamento Pensado de modo grego de acordo com o sentido do verbo dunein declinar significa o desaparecer da presenccedila como modo de sair e penetrar no que se encobre No entanto segundo Heidegger isso eacute algo bem diferente do modo como noacutes modernamente compreendemos o declinar entendendo-o como aniquilar-se natildeo ser mais Pensado de modo grego ao contraacuterio ele mostra que ldquodeclinar eacute antes lsquoumrsquo ser ou ateacute mesmo o ser O declinar eacute um tornar-se encoberto e um encobrimento em grego lanqanw laqwrdquo (HEIDEGGER 1994 p 50) O desaparecer da presenccedila para Heraacuteclito natildeo significa deixar de ser ou de vigorar mas entrar em latecircncia como o que possibilita o espaccedilo de toda vigecircncia O vigente natildeo eacute soacute o presente o presentemente presente mas tambeacutem o passado e o futuro nos quais vigora natildeo a patecircncia do presente mas a latecircncia do ausente

As palavras fundamentais da sentenccedila portanto satildeo du=non (o que declina) e laqoi (o encobrimento) Mas o fragmento de Heraacuteclito natildeo fala de um decliacutenio e sim de algo que natildeo declina E ao falar do que natildeo declina Heraacuteclito natildeo estaacute pensando o mesmo que Hegel ao falar do Universo do Absoluto cuja essecircncia eacute vontade de mostrar-se A diferenccedila radical parece residir no seguinte Enquanto que para Heraacuteclito eacute o homem que natildeo pode manter-se encoberto face ao que nunca declina para Hegel o que se descobre eacute o que natildeo pode resistir ao poder de conquista do homem

A questatildeo essencial para Heidegger natildeo eacute procurar saber o que eacute aquilo que natildeo declina pois isto jaacute pressupotildee que estamos pensando de maneira comum E por que

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Porque segundo ele to d=u=non natildeo tem um sentido inequiacutevoco sendo o seu significado de natureza ambiacutegua devido ao caraacuteter do particiacutepio grego To d=u=non eacute o particiacutepio presente ativo do verbo dunw Conforme mostra Heidegger particiacutepio eacute a traduccedilatildeo romana da expressatildeo grega h( metoxh que significa a participaccedilatildeo o ter parte em Como termo teacutecnico da gramaacutetica grega h( metoxh diz respeito agrave forma verbal que participa compartilha tanto do nome e do substantivo como do modo de ser do verbo e da accedilatildeo sendo assim verbo e nome ao mesmo tempo

To d=u=non portanto natildeo significa primordialmente uma coisa que se potildee declina mas um processo a accedilatildeo de declinar Meta (que com o genitivo significa com em companhia de) e e)xw (tenho possuo) formam a estrutura da palavra metoxh acentuando o caraacuteter de participaccedilatildeo de companhia entre o ter e o ser o que mostra segundo Carneiro-Leatildeo que em tudo que se tem ldquoeacute preciso ser o que se tem para se poder ter de modo criadorrdquo Desse modo segundo ele revela-se que ldquoeacute o verbo que sustenta o substantivordquo (CARNEIRO-LEAtildeO 2010 p 176) Portanto quando a preocupaccedilatildeo fundamental eacute questionar acerca do que eacute aquilo que natildeo declina eacute porque a pergunta jaacute se move a partir da distinccedilatildeo claacutessica entre ser e agir substacircncia e acidente coisa e atividade sujeito e processo ou seja a partir da pressuposiccedilatildeo de que toda accedilatildeo eacute accedilatildeo de um sujeito E poderia ser diferente Poderia haver accedilatildeo sem sujeito

Para o modo de pensar moderno decerto que natildeo Se natildeo haacute subjetividade sem objetividade ou vice-versa ou seja se subjetividade-objetividade constituem um processo isto contudo natildeo significa que o processo seja algo constituiacutedo pelo sujeito ou o objeto ou entatildeo pelo sujeito e objetos juntos em uma dialeacutetica E por que natildeo Porque sujeito e objeto e toda dialeacutetica de constituiccedilatildeo se formam a partir do processo constituinte (CARNEIRO-LEAtildeO 2010 p 168) Isto parece indicar uma prioridade do

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processo da accedilatildeo do verbo com relaccedilatildeo ao nome ao sujeito Essa relaccedilatildeo entre verbo e nome aparece conforme mostramos acima no particiacutepio grego e eacute utilizando o particiacutepio que os pensadores gregos se referem ao ser de tudo o que estaacute sendo como a questatildeo fundamental da filosofia Em Metafiacutesica Aristoacuteteles coloca a questatildeo desse modo ti to o)n que equivale agrave questatildeo tij h( ou)sia (ARISTOacuteTELES 1990 1028 b4 p 322) No iniacutecio do livro G ele fala que haacute uma ciecircncia que contempla o ente enquanto ente )Estin e)pisthmh tij h( qewrei+ to o)n $)= o)n (Id Ibid 1003 a21-22 p 150)

Sendo particiacutepio de ei=)nai to ouml)n o sendo o que estaacute sendo eacute uma delimitaccedilatildeo do real em sua realizaccedilatildeo isto eacute na perspectiva de ser e realizar-se Portanto ao falar de to ouml)n o sendo os pensadores estatildeo procurando pensar a partir dele o ei=)nai o ser que eacute sempre mais antigo do que tudo que estaacute sendo isto eacute do que todo real Mas a partir dessa referecircncia agrave questatildeo fundamental da metafiacutesica conforme foi colocada por Aristoacuteteles eacute preciso fazer o paralelo com a questatildeo essencial do fragmento 16 de Heraacuteclito Levando essa necessidade em conta uma questatildeo parece impor-se Como poderia to d+u+non (o que declina) e to o)n (o que estaacute sendo) dizerem o mesmo Para isso natildeo seria preciso que ser e desaparecer fossem o mesmo Aleacutem disso o fragmento de Heraacuteclito fala de to

mh du=non pote e natildeo de to d+u+non Sendo o que nunca declina estaria to mh du=non em uma estreita aproximaccedilatildeo com o que o pensamento metafiacutesico pensou acerca do ser Sendo o que nunca declina o ser soacute poderia entatildeo ser pensado como o que sempre ldquoeacuterdquo ou seja como o que sempre vigora aparece Seria desse modo que Heraacuteclito tambeacutem teria pensado o ser

Conforme mostramos acima o declinar pensado de modo grego eacute bem mais lsquoumrsquo ser ou ateacute mesmo o ser Sendo assim natildeo significa um deixar de ser ou de vigorar mas um entrar em latecircncia como o que possibilita toda

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vigecircncia O declinar o pocircr-se e desaparecer portanto satildeo tambeacutem modos de ser e de realizar-se do real assim como o nada que parece ir de encontro a todo ente No decliacutenio e no desaparecimento no nada estaacute pensado de maneira originaacuteria o ser o misteacuterio da fusij

To mh du=non pote nomeia a fusij Mas como se no fragmento 16 Heraacuteclito sequer utiliza essa palavra Sendo o que nunca declina a fusij eacute o contiacutenuo fugir agrave ocultaccedilatildeo Mas a fuga natildeo tem o sentido de exclusatildeo daquilo de que se foge mas atribuiccedilatildeo de uma resistecircncia que precisa a cada vez ser vencida Isto Heidegger procura deixar claro atraveacutes do rigor da interpretaccedilatildeo que ele faz do fragmento quando mostra que Heraacuteclito utiliza o adveacuterbio mh que apesar de ser um termo negativo distingue-se contudo de ou) pois natildeo eacute mera negaccedilatildeo A expressatildeo mh ― pote no meio da qual estaacute du=non torna segundo Heidegger o sentido verbal-temporal de du=non plaacutestico como aquilo que a cada vez precisa furtar-se agrave forccedila de ocultaccedilatildeo O mh ― pote ldquojaacute natildeordquo ldquoa cada vezrdquo indica um resistir que tira a sua forccedila daquilo ao que resiste e que traz em si mesmo a ocultaccedilatildeo a qual resiste como o que faz parte de sua proacutepria constituiccedilatildeo

Dando mais um polimento na traduccedilatildeo Heidegger diz em lugar de ldquoo que a cada vez jaacute natildeo declinardquo ldquoo que nunca declinardquo A partir disso ele conclui que a traduccedilatildeo quase obriga a dizer ldquoo surgimento incessanterdquo ldquopois aquilo que nunca eacute um decliacutenio deve ser um surgimento incessanterdquo (HEIDEGGER 1994 p 87) A conexatildeo entre to mh du=non pote e fusij parece agora ter ficado mais clara No entanto se observarmos o fragmento 123 fusij

kruptesqai filei= parece haver uma contradiccedilatildeo pois como a fusij poderia ser ldquoum surgimento incessanterdquo (to

mh du=non pote) se ldquoama ocultar-serdquo (kruptesqai filei) Decerto que aqui natildeo podemos nos voltar para o

exame dos passos detalhados dados por Heidegger em sua interpretaccedilatildeo do fragmento 123 Vamos somente mostrar

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alguns nexos entre os dois fragmentos no sentido de procurar expor que essa aparente contradiccedilatildeo que constitui o misteacuterio da fusij no fragmento 123 como amor ao ocultamento jaacute se encontra presente no fragmento 16 Para que isso seja devidamente compreendido eacute preciso

primeiro entender o sentido da palavra filei A partir do

seu modo particular de compreender essa palavra Heidegger procura mostrar a relaccedilatildeo essencial da fusij (o surgimento incessante) com o ocultamento (kruptesqai) ao traduzir o fragmento do seguinte modo ldquoO surgimento favorece o encobrimentordquo

Filei=n tem agora o sentido de favor e favorecer Com isso Heidegger procura mostrar que o surgimento favorece o encobrimento e que o encobrimento assim favorecido vigora na proacutepria essecircncia do surgimento Do mesmo modo em se fechando o fechamento favorece o surgimento Eacute a partir da unidade originariamente unificante do favor que se pode pensar a fusij Mas de que modo podemos pensar que esse nexo entre surgimento e ocultamento jaacute estaria presente no fragmento 16 de Heraacuteclito

O favor o favorecer (filei=n) propicia o combate (polemoj) como aquilo que a fusij deve travar para emergir do proacuteprio retiro de onde ela proveacutem A fusij soacute pode ser eclosatildeo ldquosurgimento incessanterdquo porque surge constantemente do velamento Precisa desse modo se inclinar para o velamento favorecendo-o visto que o velamento eacute a uacutenica coisa capaz de garantir a sua eclosatildeo O ldquosurgimento incessanterdquo desse modo como o ldquonunca declinarrdquo natildeo significa natildeo ter relaccedilatildeo nenhuma com a ocultaccedilatildeo mas ao contraacuterio conforme diz o proacuteprio Heidegger ldquoO nunca entrar no encobrimento eacute o surgir duradouro desde o encobrir-serdquo (HEIDEGGER 2009 p 268)

Embora possamos dizer que ao desvelamento pertence o velamento eacute difiacutecil contudo dizer qual eacute a

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natureza deste pertencer Decerto que Heraacuteclito natildeo o entendia como sendo da ordem da sucessatildeo temporal A natureza desse pertencimento constitui o proacuteprio misteacuterio do ser No surgimento incessante na eclosatildeo a partir de si reina um retraimento sem o qual a fusij natildeo poderia vigorar Sendo a essecircncia unificadora da fusij filei=n indica natildeo apenas uma relaccedilatildeo mas a inclinaccedilatildeo a partir da qual o desvelamento e o velamento concedem um ao outro a possibilidade de ser o que cada um eacute Filei=n polemoj e a(rmonia satildeo palavras utilizadas para pensar essa articulaccedilatildeo para designar o conflito e o simultacircneo abrigo de eclosatildeo e ocultaccedilatildeo um no outro

Eacute o mesmo que pensar junto guerra e paz inverno e veratildeo dia e noite conforme mostra o fragmento 67 de Heraacuteclito Mas com isso ele natildeo estaacute querendo dizer que a contradiccedilatildeo inerente ao muacutetuo pertencer eacute superada devido ao caraacuteter de sucessatildeo temporal ou entatildeo que tudo estaacute continuamente a alterar-se e que nada perdura Antes estaacute pensando De nenhum lado como tal podes fixar-te pois eacutes transportado pela luta dos contraacuterios para o lado oposto O que perdura eacute a harmonia invisiacutevel como tensatildeo dos movimentos contraacuterios Se de acordo com o fragmento 53 ldquoa guerra eacute pai de todas as coisasrdquo eacute preciso entender que guerra luta natildeo eacute desavenccedila e mera inquietude mas o confronto entre os poderes essenciais do ser

Atraveacutes desse confronto ― conforme mostra Houmllderlin que foi um dos primeiros a descobrir a importacircncia de Heraacuteclito como grande pensador antes mesmo de Nietzsche e Heidegger ― os homens se evidenciam enquanto homens e os deuses enquanto deuses uns contra os outros e por isso em iacutentima harmonia Como poderia haver a luta o combate para emergir do velamento se natildeo houvesse o favorecimento (filei=) do velamento como algo que a proacutepria fusij impotildee para si A harmonia como o manter reunido em tensatildeo aquilo que

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tende a opor-se eacute o divino O que eacute mantido reunido em tensatildeo eacute o favorecimento do velamento e o combate para dele emergir como dois poderes essenciais do ser Manter reunido em tensatildeo esses dois poderes constitui o enigma da relaccedilatildeo entre filei (o favor) e polemoj (o combate) E de onde vem o viacutecio em querer resolver o enigma em querer postular uma compreensatildeo de ser fora de toda contradiccedilatildeo como o que apenas ldquoeacuterdquo ou seja como o que ldquoeacuterdquo apenas surgimento unidade do que sempre estaacute presente

Essa era tambeacutem uma preocupaccedilatildeo de Houmllderlin conforme podemos ver no epigrama intitulado ldquoRaiz de todo malrdquo (Apud HEIDEGGER 2009 p 187) ldquoSer reunido eacute divino e bomrdquo dizia ele E na sequecircncia do epigrama o poeta pergunta ldquode onde vem entatildeo esse viacutecio dentre os homens de que soacute o um e o uno sejardquo (Id Ibid p 187) Este viacutecio que tambeacutem podemos chamar de u(brij que indica o privileacutegio do surgimento fundamenta-se no privileacutegio do ente Isto por seu lado decorre da proacutepria essecircncia da fusij que eacute ambiacutegua Na sua ambiguidade ela eacute por um lado surgimento brotaccedilatildeo aparecimento e o que aparece no surgimento eacute o proacuteprio ente Desse modo em decorrecircncia de sua proacutepria ambiguidade a fusij encaminha a ocultaccedilatildeo para o ocultamento O viacutecio a u(brij desse modo embora seja do homem adveacutem da proacutepria fusij constituindo a essecircncia da metafiacutesica

Mas por outro lado o apagar das chamas da u(brij como o serenar do viacutecio eacute a revelaccedilatildeo do jogo de mundo da luta dos contraacuterios como ambiguidade que natildeo pode ser superada A revelaccedilatildeo como o que surge aparece eacute sempre tambeacutem um ente Mas devido agrave ambiguidade caracteriacutestica da fusij pode revelar o ser de toda revelaccedilatildeo E se eacute verdade que Heraacuteclito chegou a observar os jogos das crianccedilas o que entatildeo se revelou para ele foi algo que ningueacutem jamais observara ldquoO jogo da grande crianccedila universal Zeusrdquo (NIETZSCHE 1999 p 834) Zeus

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brincando de criar e destruir jogando inocentemente o jogo de pedras nunca saciado sempre despertado de novo pelo impulso do jogo construindo e derrubando montinhos de areia agrave beira-mar Na verdade natildeo eacute Zeus quem joga Zeus eacute o tempo o jogo e por isso a proacutepria imagem da divindade Diante de tatildeo bela imagem o desperto o sabedor o que algum dia viveu um instante extraordinaacuterio conforme anunciava Nietzsche deveria dizer ldquoNunca vi coisa mais divinardquo E para que entatildeo deus ser substacircncia e todas as imagens do um e do impereciacutevel se jaacute temos o jogo a fusij como jogo do mundo Referecircncias ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Trad de Valentin Garciacutea Yebra

Madrid Editorial Gredos 1990 BIacuteBLIA SAGRADA Traduccedilatildeo de Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balancin Satildeo Paulo Paulus 1990 CARNEIRO-LEAtildeO Emmanuel O pensamento originaacuterio no

fragmento 16 de Heraacuteclito In Filosofia grega ndash uma introduccedilatildeo Teresoacutepolis Daimon Editora 2010

HEIDEGGER Martin Aletheacuteia (Heraacuteclito fragmento 16) In

Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2002b

___________________ ldquopoeticamente o homem habitardquo

In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2002b

__________________ Hegel Traduccioacuten de Dina V Picotti

C Buenos Aires Prometeo Libros 2007 ___________________ Heraacuteclito Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute

Cavalcante Schuback Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

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___________________ Heraklit Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 1994

___________________ Hinos de Houmllderlin Traduccedilatildeo de

Lumir Nahodil Lisboa Instituto Piaget sd ___________________ Houmllderlins Hymnen lsquoGermanienrsquo

und lsquoder Rheinrsquo Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 1999

___________________ Vortraumlge und Aufsaumltze Stuttgart

Klett-Cotta 2009 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo de Mary de

Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Iluminuras 1991 NIETZSCHE Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos

gregos Traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade Lisboa Ediccedilotildees 70 1987

NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Trad de

Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

NIETZSCHE Friedrich Der Wille zur Macht Stuttgart

Alfred Kroumlner Verlag 1980 ____________________ Die Philosophie im tragischen

Zeitalter der Griechen In Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe I Muumlnchen Deustscher Taschenbuch Verlag de Gruyter 1999

RILKE Rainer Maria Sonetos a Orfeu e elegias de Duiacuteno

Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2000

ZARADER Marleacutene Heidegger e as palavras de Origem

Traduccedilatildeo de Joatildeo Duarte Lisboa Instituto Piaget 2001

Cosmologia da Vontade de

Poder Do Projeto Filosoacutefico agrave

Formulaccedilatildeo de uma Concepccedilatildeo

de Vida

Thiago Gomes da Silva Nunes1

Nietzsche jaacute havia declarado em Assim falou Zaratustra ldquoExaminai cuidadosamente se natildeo penetrei no coraccedilatildeo da vida e ateacute nas raiacutezes de seu coraccedilatildeo Onde encontrei seres vivos encontrei vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de sirdquo p 108 ndash 110) Em Aleacutem do bem e do mal afirmara que temos de ldquofazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como a uacutenicardquo (BM ldquoDos preconceitos dos filoacutesofosrdquo sect 36 p 39 ndash 40) Natildeo eacute por menos que Nietzsche eacute considerado um pensador profundamente engajado agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica dado que a sua obra aproxima-se sob muitos aspectos de um projeto metafiacutesico2 Sobretudo quando busca a compreensatildeo de todas as dimensotildees da vida ndash e de ldquotodo acontecer mecacircnico na medida em que nele age uma forccedilardquo esta sendo ldquojustamente forccedila de vontade efeito da vontaderdquo (BM ldquoDos preconceitos dos filoacutesofosrdquo sect 36 p 39 ndash 40) ndash como expressotildees de uma pulsatildeo elementar

1 Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraiacuteba (UEPB) Mestre pela Universidade Federal da Paraiacuteba (UFPB) Atualmente eacute doutorando pelo programa integrado de poacutes-graduaccedilatildeo da UFPB junto com a UFRN e UFPE

2 Nesses termos a interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger continua sendo a principal referecircncia a conferir a Nietzsche o semblante de um metafiacutesico engajado agrave tradiccedilatildeo ocidental

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Como se sabe Nietzsche ambicionava reconduzir todos os resultados ateacute o momento obtidos pelo esclarecimento filosoacutefico e cientiacutefico para a compreensatildeo de um uacutenico e mesmo fenocircmeno a vida como manifestaccedilatildeo da vontade de poder

Mas antes de qualquer julgamento do hipoteacutetico ldquoteor metafiacutesicordquo subjacente ao esquema cosmoloacutegico nietzschiano eacute preciso obter um olhar de conjunto da vontade de poder enquanto especulaccedilatildeo filosoacutefica Para isso faz-se necessaacuterio utilizar os fragmentos poacutestumos datados dos uacuteltimos anos de atividade luacutecida de Nietzsche geralmente considerado o seu periacuteodo de maior maturidade e produtividade3 Destaco com isso o aforismo 38 [12] datado do veratildeo de 1885 como consta na ediccedilatildeo criacutetica dos escritos poacutestumos organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari Esse fragmento nos apresenta a mais completa declaraccedilatildeo nietzschiana de que a sua perspectiva eacute aleacutem de tudo uma entre tantas existentes assumindo portanto a condiccedilatildeo de corporificaccedilatildeo perspectivista da vontade de poder e com isso a sua consequente condiccedilatildeo de fluidez Considerando a integridade da passagem facilmente se deduziria como o pensamento poacutestumo de Nietzsche eacute de indiscutiacutevel valor para a compreensatildeo de sua obra como um todo Vejamos entatildeo o fragmento

Sabeis voacutes tambeacutem o que eacute para mim ldquoo mundordquo Devo mostraacute-lo em meu espelho Este mundo uma imensidatildeo de forccedila sem comeccedilo sem fim uma firme brocircnzea grandeza de forccedila que natildeo se torna maior natildeo se torna menor natildeo se consome soacute se transforma e como um todo eacute de imutaacutevel grandeza um orccedilamento domeacutestico sem gastos e

3 De maneira geral considera-se que a fase de maturidade da obra nietzschiana se inicia com a publicaccedilatildeo de Assim falou Zaratustra em 1883 mas os principais fragmentos poacutestumos que marcam o periacuteodo vatildeo de 1885 ateacute 1889

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sem perdas mas do mesmo modo sem crescimento sem ganhos encerrado pelo ldquonadardquo como por seu limite nada que se desvaneccedila nada desperdiccedilado nada infinitamente extenso mas sim como forccedila determinada posto em um determinado espaccedilo natildeo em um lugar que fosse algures ldquovaziordquo antes como forccedila em toda parte como jogo de forccedila ao mesmo tempo uno e vaacuterio acumulando-se aqui e ao mesmo tempo diminuindo acolaacute um mar em forccedilas tempestuosas e afluentes em si mesmas sempre se modificando sempre refluindo com anos imensos de retorno com vazante e montante de suas configuraccedilotildees expelindo das mais simples agraves mais complexas do mais calmo mais inteiriccedilo mais frio ao mais incandescente mais selvagem para o que mais contradiz a si mesmo e depois de novo da plenitude voltando ao lar do mais simples a partir do jogo das contradiccedilotildees de volta ateacute o prazer da harmonia afirmando a si mesmo ainda nessa igualdade de suas vias e anos abenccediloando a si mesmo como aquilo que haacute de voltar eternamente como um devir que natildeo conhece nenhum tornar-se satisfeito nenhum fastio nenhum cansaccedilo - este meu mundo dionisiacuteaco do criar eternamente a si mesmo do destruir eternamente a si mesmo este mundo misterioso da dupla voluacutepia este meu ldquoaleacutem de bem e malrdquo sem fim se natildeo haacute um fim na felicidade do ciacuterculo sem vontade se natildeo haacute boa vontade no anel que torna a si mesmo ndash voacutes quereis um nome para este mundo Uma soluccedilatildeo para todos os seus enigmas Uma luz tambeacutem para voacutes oacute mais esconsos mais fortes mais desassombrados mais iacutensitos agrave meia-noite Este mundo eacute a vontade de poder ndash nada aleacutem disso E tambeacutem voacutes mesmos sois essa vontade de poder ndash e nada aleacutem disso (38 [12] Junho ndash julho de 1885 p 212 ndash 213)4

4 Tomamos como referecircncia bibliograacutefica para este aforismo a

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Eacute importante lembrar que Nietzsche natildeo conseguiu fundamentar a tese da vontade de poder ldquocientificamenterdquo como almejava o que colabora para a futura compreensatildeo da sua ideia como um projeto metafiacutesico5 Independente disso a edificaccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana parece se desenvolver ao inverter a metodologia filosoacutefica considerada ateacute o momento tradicional buscando suplantar as bases de pensamento ocidental e portanto a modernidade vivenciada pelo proacuteprio Nietzsche6 No segundo momento ele procurou afirmar tudo aquilo que foi negado pela tradiccedilatildeo o que significaria dizer que o seu projeto se desenvolve rumo a uma afirmaccedilatildeo incondicional da pluralidade de faces contradiccedilotildees e ciclo dinacircmico de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo do real ou seja tudo aquilo que foi negado pela metafiacutesica ocidental

Eacute desta forma que logo no iniacutecio no aforismo Nietzsche retoma a metaacutefora do espelho jaacute utilizada em outras passagens para referenciar o caraacuteter perspectivista

coletacircnea de textos poacutestumos Sabedoria para depois de amanhatilde organizada por Heinz Friedrich e traduzida para o portuguecircs por Karina Jannini Contudo optei pela traduccedilatildeo do mesmo aforismo feita por Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes como consta na polecircmica coletacircnea A vontade de poder da editora Contraponto Justificamos a escolha pela qualidade desta uacuteltima dado que ela se apresenta com maior fluidez de leitura que a primeira por mais que isso acabe por tocar no problema centenaacuterio em volta da coletacircnea de textos

5 Eacute de se pensar tambeacutem ateacute que ponto a filosofia em si jaacute natildeo eacute metafiacutesica em ato Dado que uma das principais caracteriacutesticas carregadas pelo pensamento filosoacutefico eacute o alto niacutevel de abstraccedilatildeo de consideraccedilotildees que por mais que tomem como base o ldquorealrdquo ainda natildeo se aplicam ao proacuteprio todo filosofar eacute assim uma arquitetocircnica metafoacuterica que atesta este caraacuteter transcendente do ser humano

6 Tal como as ideias de ldquofato linearidade temporal progresso e racionalizaccedilatildeo do realrdquo verdadeiros estandartes do iluminismo assimilados pela cultura cientificista do seacuteculo XIX

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de sua concepccedilatildeo de vida ndash ldquoSabeis voacutes tambeacutem o que eacute para mim lsquoo mundorsquo Devo mostraacute-lo em meu espelhorsquordquo ndash designando com isso que a vontade de poder eacute uma ldquointerpretaccedilatildeo natildeo textordquo no sentido de um texto-mundo isto eacute da vida enriquecida pela possibilidade da interpretaccedilatildeo Parece-nos oacutebvio que o conhecimento eacute fruto da vida sobretudo ao se destacar a atividade interpretativa e por isso a existecircncia de ldquoum texto originalrdquo tornar-se-aacute o ldquopostulado loacutegico de toda interpretaccedilatildeordquo mesmo que ningueacutem conheccedila ldquoesse texto original inferido Assim acontece com a essecircncia inferida do mundordquo (SAFRANSKI 2005 p146) Diante da pluralidade de perspectivas acerca do mundo a vida aparece como um imenso texto destituiacutedo de significado a priori sem comeccedilo e sem fim sem qualquer fundamento que natildeo seja o proacuteprio ciclo de efetividade do viver

Mas se todo o conhecimento humano resume-se agrave atividade interpretativa da proacutepria vida podemos perguntar o que qualifica a especulaccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana em detrimento de outras tantas interpretaccedilotildees do real Nesse ponto eacute preciso atentar que Nietzsche natildeo deixa de admitir que existam ldquoboasrdquo e ldquomaacutesrdquo interpretaccedilotildees ou seja aquelas com grande forccedila vital em prejuiacutezo daquelas naturalmente decadentes nos termos de uma foacutermula que poderiacuteamos apresentar como ldquomais forccedilardquo ou ldquomenos forccedilardquo Uma boa interpretaccedilatildeo de mundo no sentido de manifestar-se como expressatildeo de forccedila vital seria caracterizada pelo vigor que envolve os aspectos dinacircmicos e contraditoacuterios da vida Em suma a boa interpretaccedilatildeo eacute aquela que assinala e assume o devir sem quaisquer traccedilos de ressentimento Jaacute uma interpretaccedilatildeo decadente expressa-se pela tiacutepica tentativa de cristalizaccedilatildeo do ser conforme as foacutermulas de racionalizaccedilatildeo oferecidas pela tradiccedilatildeo definindo o espiacuterito limitado da modernidade ocidental que se guia pela vontade de verdade essa que natildeo deixa de ser uma face interpretativa

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da proacutepria vida mas que se apresenta nos termos da decadecircncia vital

Sendo assim a concepccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana institui-se sob os termos de uma teoria dinacircmica que assume os caraacutecteres da mutabilidade fluidez e contradiccedilatildeo do viver procurando sempre inverter a loacutegica da metafiacutesica ocidental ao postular que sua tese origina-se daquilo que foi considerado uma deficiecircncia pela tradiccedilatildeo O mesmo raciociacutenio havia sido apresentado parcialmente em Aleacutem do bem e do mal recebendo maior atenccedilatildeo em Genealogia da moral (1887) onde Nietzsche analisa que tudo aquilo que fora classificado como mal nefasto e belicoso pela tradiccedilatildeo ocidental na verdade diz respeito a uma seacuterie de aspectos ascendentes do viver as forccedilas de configuraccedilatildeo mutabilidade e renovaccedilatildeo a dimensatildeo artiacutestica e ascendente da vida

Subsequentemente Nietzsche revelou que o substrato da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental essa que negara por tanto tempo o devir na verdade eacute a proacutepria decadecircncia vital como manifestaccedilatildeo subsequente do horror ao viver sentido por uma classe de indiviacuteduos Sendo assim a postulaccedilatildeo do ldquoaleacutem mundordquo metafiacutesico ndash o mundo ideal ndash eacute entendida por ele como o desague de um processo contiacutenuo e milenar Nesses termos a crenccedila no mundo verdadeiro natildeo seria assim um simples deliacuterio humano mas sim derivaccedilatildeo de uma incapacidade pois o ldquonatildeo-poder-contradizer comprova uma incapacidade natildeo uma lsquoverdadersquordquo (14 [152] Comeccedilo de 1888 p 301) As crenccedilas metafiacutesicas surgiriam assim como artifiacutecios ficcionais com fins de conservaccedilatildeo de faces de vida em deterioraccedilatildeo metalinguagem que acabaria se convertendo em verdadeiras figuras de dominaccedilatildeo A verdade seria assim concebida por Nietzsche como a manifestaccedilatildeo do proacuteprio medo da impotecircncia de criaccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo do viver isto eacute como expressatildeo de decadecircncia vital contraposta agraves faces juvenis poderosas e artiacutesticas da vida

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A crenccedila na faculdade da razatildeo como criteacuterio chave de apreensatildeo do real teria sido o fenocircmeno que alterou radicalmente os rumos tomados pelo Ocidente Mas a irocircnica descoberta de Nietzsche eacute a de que tudo o que foi veementemente negado pela tradiccedilatildeo metafiacutesica pode ainda ser caracterizado nos termos daquilo que identificou como a expressatildeo visceral e ascendente da vida seu lado artiacutestico mudanccedila vir a ser multiplicidade oposiccedilatildeo contradiccedilatildeo forccedila guerra e destruiccedilatildeo mas aleacutem de tudo poder de criaccedilatildeo Essas definiccedilotildees trazem agrave tona o quadro geral traccedilado pelo desenvolvimento da especulaccedilatildeo nietzschiana e que trabalharia agora com a noccedilatildeo de ldquoforccedilardquo termo adotado da fiacutesica moderna Nietzsche buscava atribuir agrave visatildeo cientiacutefica do mundo uma pulsatildeo interna insaciaacutevel quase que metafiacutesica7 a partir da percepccedilatildeo de ldquoquanta

7 Geralmente se entende que a associaccedilatildeo do termo metafiacutesica ao pensamento nietzschiano tem por implicaccedilatildeo necessaacuteria a vinculaccedilatildeo com a filosofia heideggeriana o que definitivamente natildeo eacute o presente caso De fato a atribuiccedilatildeo do conceito de metafiacutesica a Nietzsche comeccedila com Heidegger mais precisamente nos dois volumes dedicados agrave anaacutelise da obra nietzschiana datados de 1936 e 1940 Heidegger atribui ao pensamento nietzschiano o sentido da concretizaccedilatildeo uacuteltima de um projeto filosoacutefico que tomara forma a partir de Platatildeo nos termos de uma maquinaria metafiacutesica de dominaccedilatildeo da natureza A vontade de poder seria esta expressatildeo maacutexima de justificaccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo sem fim por parte do Ocidente e Heidegger se propotildee a retomar a cosmovisatildeo preacute-platocircnica ndash talvez ateacute heracliacutetica ndash para o pensamento filosoacutefico com fins de superar a cultura ocidental Contudo natildeo visamos aqui atribuir agrave vontade de poder e ao pensamento nietzschiano a alcunha heideggeriana posto que partimos de uma compreensatildeo mais objetiva e ampla de metafiacutesica Neste sentido entendemos por metafiacutesica a elevaccedilatildeo de um corpo teoacuterico ou mesmo de um juiacutezo ndash o que Aristoacuteteles denominara por substacircncia ndash ao acircmbito universal como que a prerrogativa de fundamentaccedilatildeo do conhecimento humano entendimento que perpassa de forma geral a obra de Kant Ao final da sua obra Nietzsche traccedila um gecircnero de epistemologia filosoacutefica significativamente distinta das tradicionais teorias do conhecimento mas esse aspecto do pensamento nietzschiano seraacute abordado ao final do presente texto

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dinacircmicosrdquo (14 [79] Comeccedilo do ano de 1888 p 235) em plena atuaccedilatildeo Ele tinha em vista uma relaccedilatildeo coacutesmica entre forccedilas para as quais nada mais existiria que outras quantidades dinacircmicas de forccedilas como um ciclo de oposiccedilotildees

A noccedilatildeo de forccedila surge como a designaccedilatildeo do caraacuteter corrente do mundo expressando o dinamismo do real ao pressupor e uniformizar uma seacuterie de caracterizaccedilotildees cosmoloacutegicas apresentadas no decorrer da obra nietzschiana Pode-se dizer que as forccedilas agora compotildeem a realidade da vida natildeo apenas no sentido estrito da mateacuteria mas como um tipo de pulsatildeo criadora do proacuteprio mundo material ou ainda como agente inerente e determinante do mesmo Desta maneira as forccedilas satildeo a proacutepria vontade de poder ou pelo menos o caraacuteter dinacircmico e fracionado do ciclo de interatividade do jogo do viver Dentro desta estrutura de especulaccedilatildeo o novo conceito natildeo se diferencia essencialmente da concepccedilatildeo de poder mas o complementa ao corporificaacute-lo com um conteuacutedo intuitivo derivado da fiacutesica moderna Nietzsche tinha por objetivo despir sua tese de possiacuteveis vestes ontoloacutegicas que pudessem lhe ser associadas levantando ateacute a possibilidade de fundamentaccedilatildeo cientiacutefica da ideia mas diferentemente da fiacutesica da eacutepoca ele se furtou do entendimento de uma estrutura previsiacutevel de leis

Quando se observa a abrangecircncia da ideia de forccedila conclui-se que ela eacute uma das caracterizaccedilotildees mais significativas da especulaccedilatildeo nietzschiana Sobretudo quando eacute observado que todas as definiccedilotildees anteriormente apresentadas seratildeo entendidas agora como semblantes manifestos de um mundo composto e regido pelo ciclo de interaccedilatildeo das forccedilas Vir a ser pulsatildeo ficcional caos guerra e superaccedilatildeo de si satildeo concepccedilotildees que se manifestam aqui como dimensotildees fronteiriccedilas da interaccedilatildeo unitaacuteria do ciclo de oposiccedilotildees da vida A vida em si seria manifestaccedilatildeo de forccedila e a forccedila por conseguinte eacute aquilo que procura

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afrontar e subjugar o que lhe faz oposiccedilatildeo seja por meio de alianccedilas seja por uma transformaccedilatildeotransfiguraccedilatildeo muacutetua com fins de superaccedilatildeo das oposiccedilotildees Mas para que uma forccedila continue sendo o que ela eacute torna-se necessaacuterio o erro o engano a ilusatildeo de seus fins particulares a vigecircncia de um ldquoegoiacutesmordquo ficcional que tudo deseja superar e envolver

Compreende-se assim que eacute natural a uma coalizaccedilatildeo de forccedilas ansiar por uma ilusoacuteria supremacia coacutesmica desejo que na verdade diz respeito agrave vitalidade manifesta em atuaccedilatildeo tudo que vive deseja e se continua a desejar eacute porque vive Chega-se agrave conclusatildeo que natildeo pode existir fenocircmeno literalmente oposto agrave forccedila visto que nesses termos a uacutenica realidade da vida eacute o proacuteprio jogo de forccedilas ou melhor a pluralidade constitutiva da vida eacute o resultado do ciclo de forccedilas poder em processo de superaccedilatildeo de si em detrimento de poder em decadecircncia vital processo muacutetuo de triunfo e extinccedilatildeo que colabora para um uacutenico transcurso vital Por isso a vida eacute um fenocircmeno que deve ser entendido sob a dimensatildeo do ciclo de criaccedilatildeo e extinccedilatildeo o jogo de forccedilas como o desmembramento necessaacuterio de um curso de superaccedilatildeo coacutesmica

A vida eacute assim uma brocircnzea grandeza de forccedila indiferente agrave fraqueza humana indiferente a qualquer gecircnero de decadecircncia vital consequentemente insensiacutevel a todos os ideais que marcaram o projeto de cultura ocidental Eacute desta forma que a ideia da vontade de poder se estabelece sob o liame da forccedila pois reconhece e se funda na ideia do jogo de poder consideraccedilatildeo que significa assumir o real como um resultado dinacircmico de um contiacutenuo processo de superaccedilatildeo de si mesmo No fim das contas Nietzsche diraacute que o ldquoacontecimento propriamente articulado transcorre abaixo de nossa consciecircncia as seacuteries que vecircm agrave tona e a sucessatildeo de sentimentos pensamentos etc [] satildeo sintomas do acontecimento propriamente

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ditordquo (1 [60] Outono de 1885 ndash Iniacutecio do ano de 1886 p 16 ndash 17) ou seja do instinto elementar

A consciecircncia humana como expressatildeo de vida soacute atuaria superficialmente nos termos de uma ldquounidade reflexivardquo dado que o ldquoeurdquo ou o ldquoindiviacuteduordquo nada mais seriam que manifestaccedilotildees superficiais de uma multiplicidade de forccedilas em atuaccedilatildeo Ainda assim pensar a vontade de poder nos termos de uma unidade vital soacute eacute possiacutevel por meio da percepccedilatildeo de um jogo de forccedilas que tudo envolve e por isso crescer progredir e viver tomam sempre como base um jogo que se alimenta da derrota extinccedilatildeo e decadecircncia de outros quanta dinacircmicos A teoria das forccedilas confere agrave concepccedilatildeo de vida de Nietzsche o caraacuteter do jogo de poder um combate sem qualquer rumo que natildeo seja o simples poder no sentido anteriormente exposto de um curso de superaccedilatildeo contiacutenuo como semblante do devir

A vida eacute assim o fenocircmeno que busca a si mesmo e as forccedilas satildeo o conteuacutedo caoacutetico e dinacircmico do seu ciclo de superaccedilatildeo Natildeo existe qualquer meta ou desenvolvimento no jogo de forccedilas da vida porque o devir eacute o fim em si o que implica dizer que natildeo haacute limite conclusatildeo ou estado de perfeiccedilatildeo que lhe seja aspirado Tendo por base de raciociacutenio a multiplicidade de manifestaccedilotildees que compotildeem a dinacircmica da vida entende-se que metas e finalidades soacute tem sentido dentro de determinados quadros de atuaccedilatildeo quando se eacute observado o campo perspectiviacutestico e ficcional que lhes eacute de fundamental importacircncia ao exerciacutecio do poder

Com isso a vida eacute concebida como um eterno combate entre forccedilas opostas centros de concentraccedilatildeo de poder coalizotildees de forccedila que lutam em prol de mais poder Dessa maneira nunca poderia existir um tipo de estado de equiliacutebrio coacutesmico simplesmente porque a proacutepria conquista jaacute estabelece um novo jogo de tensatildeo com prazo limitado considerando que a fatalidade do cosmos eacute a sua

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condiccedilatildeo de instabilidade e mutabilidade Mas eacute aiacute que nos deparamos com mais uma aparente contradiccedilatildeo do pensamento nietzschiano por um lado a vida eacute concebida como jogo de forccedilas o que acarreta na admissatildeo do caraacuteter contraditoacuterio e caoacutetico do ser Contudo as oposiccedilotildees natildeo existiriam em si pois expressam apenas graus distintos de forccedila que aparecem como oposiccedilotildees em determinados momentos dentro de campos perspectiviacutesticos delimitados por uma seacuterie ininterrupta de fatores

Nietzsche jaacute havia frisado que a identificaccedilatildeo de contradiccedilotildees geralmente diz respeito a um gecircnero de pensamento que natildeo consegue lidar com os aspectos paradoxais da vida Mas natildeo pretendemos com isso justificar todas as contradiccedilotildees da obra nietzschiana mas apenas destacar que parte dessas diz respeito agrave busca pela superaccedilatildeo das limitaccedilotildees do pensamento loacutegico e objetivante da tradiccedilatildeo ocidental O que Nietzsche entende por conhecimento eacute um fenocircmeno essencialmente ficcional e nesse caso expressatildeo do senso de conservaccedilatildeo posto que a ldquoutilidade da conservaccedilatildeo natildeo uma necessidade qualquer teoacuterico-abstrata de natildeo ser enganado encontra-se como motivaccedilatildeo por detraacutes do desenvolvimento dos oacutergatildeos do conhecimentordquo (14 [122] Comeccedilo do ano de 1888 p 273)

O pensamento tradicional que elege na loacutegica racionalista o alvitre da cultura ocidental passa a ser o alvo do empreendimento nietzschiano dado que esse corpo especulativo subsiste ainda como um esquema imageacutetico basilar agrave loacutegica de domiacutenio dos fracos sobre os fortes raciociacutenio equivalente agravequilo que havia teorizado em Genealogia da moral Tornava-se necessaacuterio assim superar a forma linear baixa e decadente de ver e viver do Ocidente elegendo no dinamismo do real o ponto de partida para uma nova sociedade Deste modo a vontade de poder seria um projeto essencialmente filosoacutefico que manteacutem um diaacutelogo com a ciecircncia moderna mas que natildeo almeja menos

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que reconfigurar as formas de ver e viver do tiacutepico homem ocidental

Se por um lado a vida eacute composta pela dinacircmica dos ciclos de oposiccedilatildeo por outro Nietzsche nos diz que as oposiccedilotildees natildeo existem em si Isso significa afirmar que o jogo de poder soacute existe como meio de transformaccedilatildeo e superaccedilatildeo da vontade como processo de desmembramento necessaacuterio ao ciclo unitaacuterio de superaccedilatildeo A luta eacute a esfera relacional do jogo de forccedilas do cosmos mas antes de tudo ela eacute o instrumento de manutenccedilatildeo da proacutepria vida e por isso natildeo existem oposiccedilotildees em si mas apenas manifestaccedilotildees do processo de manutenccedilatildeo do devir

A imprecisa e dinacircmica unidade elementar apenas se transforma alimentando-se de si mesma no seu ciclo de forccedilas posto que eacute um orccedilamento domeacutestico sem perdas e ganhos consequentemente sem valor metas ou fins que natildeo digam respeito ao uacutenico sentido do jogo de forccedilas o proacuteprio poder Sendo assim o devir natildeo busca nada que natildeo seja o proacuteprio devir o que significa que a vida natildeo se eleva ou decai apenas se transforma O nada se encerra como o seu limite porque o devir eacute aquilo que busca a si mesmo Em prol de quecirc De ldquonadardquo que natildeo seja claro o proacuteprio devir A vida eacute assim movimento que natildeo visa mais que a superaccedilatildeo de si mesmo movimento que busca mais movimento isto eacute processo de exposiccedilatildeo gratuita sem qualquer motivaccedilatildeo maior que o simples vir a ser esbanjamento de forccedila no incremento do poder em prol de mais poder

Vida eacute movimento de exposiccedilatildeo gratuita que tem no poder a justificaccedilatildeo do ciclo de interatividade do viver o que implica sempre em dizer que a pulsatildeo de superaccedilatildeo do ser natildeo se origina da fome da escassez ou da pobreza Torna-se necessaacuterio entatildeo destacar que Nietzsche preserva parcialmente ldquodois pensamentos baacutesicos de Darwin de um lado a doutrina da evoluccedilatildeo na concepccedilatildeo especial da doutrina das origens de outro lado a ideia da luta pela

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existecircncia como impulso do desenvolvimento evolucionistardquo (SAFRANSKI 2005 p 243) Mas descartando a noccedilatildeo de linearidade evolutiva no sentido de um melhoramento do vivente8 ele diraacute que a luta natildeo aparece como expressatildeo da simples vontade de viver compreensatildeo subjacente agrave teoria da evoluccedilatildeo mas antes da riqueza exuberacircncia e absurdo esbanjamento imotivado de poder porque ldquoquando se luta luta-se pelo poderrdquo (CI ldquoIncursotildees de um extemporacircneordquo sect14 p 71)

O processo de superaccedilatildeo da vida natildeo eacute passiacutevel de previsatildeo ele natildeo nasce de uma necessidade fugaz do vivente pois a vida quer dar vazatildeo agrave forccedila de ser e a conservaccedilatildeo eacute apenas uma expressatildeo dessa aspiraccedilatildeo Vida eacute expressatildeo da vontade que se revela como eterna luta sendo assim manifestaccedilatildeo da convergecircncia de forccedilas com vistas agrave suplantaccedilatildeo inevitaacutevel de um determinado ponto de estagnaccedilatildeo que Nietzsche tende a compreender como face de decadecircncia Isso implica afirmar que a ascensatildeo de uma ou mais formas de vida ou seja de um campo de concentraccedilatildeo de forccedila em detrimento de outro natildeo eacute necessariamente seletiva como diria Darwin mas eacute apenas o resultado subsequente do ciclo de interaccedilatildeo das forccedilas no percurso de superaccedilatildeo Esse fenocircmeno poderia ser observado sob dois acircngulos distintos primeiramente do poder predominante em vigecircncia e que tende agrave derrocada

8 Natildeo poderia Nietzsche aceitar a linearidade da teoria evolucionista por mais que esse acircmbito de pensamento tenha se pautado na noccedilatildeo de seleccedilatildeo natural a partir de Charles Robert Darwin (1809 ndash 1882) e o maior argumento contra essa teoria vigora no proacuteprio homem Eacute preciso ter em vista que o raciociacutenio nietzschiano eacute majoritariamente antropoloacutegico como poderia o homem moderno debilitado fisicamente e espiritualmente simbolizar uma evoluccedilatildeo bioloacutegica quando comparado ao estereoacutetipo do homem antigo Que seleccedilatildeo natural haveria de existir se os fracos e decadentes perpetuaram-se ao longo dos tempos enquanto os poderosos alvitres da aristocracia haviam sido tragados pelo caos da histoacuteria

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se estagnado no segundo do dinamismo configurador e potencializador impliacutecito agrave coalizatildeo de forccedilas em ascensatildeo para ser Dois estaacutegios distintos mas complementares dado que fazem referecircncia a um uacutenico e mesmo fenocircmeno o devir

Dessa forma Nietzsche seraacute obrigado a admitir que a constituiccedilatildeo pulsional do ser ndash os quanta dinacircmicos ndash eacute no miacutenimo limitada e transitoacuteria afinal de contas do que se alimentaria um fenocircmeno que pudesse crescer infinitamente As forccedilas satildeo limitadas por sua proacutepria constituiccedilatildeo vital como tambeacutem pela inexistecircncia de algo fora do jogo de poder subsequentemente pela inexistecircncia de algo que natildeo tenha por caracteriacutesticas vitais a limitaccedilatildeo e a finitude Ora se o cosmos ldquopode ser pensado como grandeza determinada de forccedila e como nuacutemero determinado de centros de forccedila [] entatildeo se segue daiacute que ele tem de percorrer um nuacutemero calculaacutevel de combinaccedilotildees no grande jogo de dados de sua existecircnciardquo (14 [188] Comeccedilo do ano de 1888 p 338) A finitude das forccedilas acaba por conceder agrave totalidade do mundo o caraacuteter da transitoriedade mas a limitaccedilatildeo desse acircmbito natildeo resulta na restriccedilatildeo do devir propriamente dito afinal de contas a vida se transforma passa mas nunca ldquocomeccedilourdquo

Lembremos que natildeo existe qualquer meta ou desenvolvimento no jogo de forccedilas da vida isso porque o devir eacute o fim em si mesmo o que implica na dissoluccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de limite conclusatildeo9 ou estado de

9 Como jaacute foi dito essa ideia foi carregada pela cultura judaico-cristatilde a partir da referecircncia de um iniacutecio dos tempos e de um estado conclusivo expresso sobretudo pela revelaccedilatildeo do apocalipse o que seria o fim dos tempos O livro biacuteblico intitulado Apocalipse conhecido como ldquolivro das revelaccedilotildeesrdquo eacute o uacuteltimo do Novo Testamento e eacute atribuiacutedo ao apostolo Joatildeo A concepccedilatildeo espaccedilo-temporal linear advinda do cristianismo seria transmitida ao cientificismo moderno que ateacute hoje expressa um anseio por melhoras e aperfeiccediloamentos como se inconscientemente ndash ou mesmo conscientemente se levado em conta o conceito de Espiacuterito Absoluto de Hegel ndash postulasse um estado final de

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perfeiccedilatildeo O principal argumento levantado por Nietzsche contra qualquer teoria que levante a hipoacutetese de um desenvolvimento linear do cosmos seraacute a de que o devir natildeo pode desaguar simplesmente no nada ou pelo menos encerrar-se em um estado final porque se tivesse de ser esse estado a muito teria chegado

Temos aqui mais uma vez dados distintos que aparentam entrar em conflito de um lado a ideia de um devir eterno e incessante do outro a atual convicccedilatildeo de que a essecircncia constitutiva do mundo ndash as forccedilas ndasheacute transitoriedade e finitude A associaccedilatildeo entre um curso de tensatildeo insaciaacutevel com a ideia da finitude das forccedilas concederaacute agrave concepccedilatildeo de vida nietzschiana o caraacuteter ciacuteclico que seraacute desenvolvido a partir da doutrina do eterno retorno do mesmo Em um tempo admitidamente ldquoinfinito cada possiacutevel combinaccedilatildeo seria algum dia alcanccedilada mais ainda ela seria alcanccedilada infinitas vezes E como todas as combinaccedilotildees ainda efetivamente possiacuteveis precisariam ter sido percorridas entre cada ldquocombinaccedilatildeordquo e seu proacuteximo lsquoretornorsquordquo (14 [188] Comeccedilo do ano de 1888 p 338 ndash 339) admite-se aqui um jogo entre finitude do espaccedilo e infinitude temporal isto eacute finitude constitutivas das forccedilas e infinitude do ciclo do devir

A vida se nutre da proacutepria finitude no sentido de que as forccedilas alimentam-se umas das outras ldquoum orccedilamento domeacutestico sem gastos e sem perdas mas do mesmo modo sem crescimento sem ganhosrdquo Viver eacute assim um curso ciacuteclico de interatividade fatal agrave manutenccedilatildeo do todo finitude que colabora com a eternidade de um movimento coacutesmico Nietzsche dialoga com o princiacutepio da

perfeiccedilatildeo um ideal de vida fomentado pelos benefiacutecios da ldquoevoluccedilatildeordquo da humanidade Nietzsche denominaria esse processo como o culto agrave ldquosombra de Deusrdquo da mesma forma que a sombra de Buda havia sido cultuada por seacuteculos numa caverna (GC sect 108 p 126)

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conservaccedilatildeo de energia10 da fiacutesica moderna que entende que a quantidade de poder que se tem ao final de um determinado processo eacute o mesmo que o inicia e por isso a conservaccedilatildeo da vida exige o eterno retorno do mesmo como processo ciacuteclico do jogo de interatividade de forccedilas [limitadas] envolvidas por curso temporal [infinito]

Mas ainda haacute um semblante determinante para a compreensatildeo da teoria das forccedilas evocado pelo eterno retorno do mesmo ele eacute a total impossibilidade de uma forccedila ser aquilo que ela natildeo eacute como que a limitaccedilatildeo do poder de atuaccedilatildeo da vida A necessidade dos mesmos fenocircmenos dentro de um curso cosmoloacutegico natildeo eacute um simples determinismo do real mas eacute apenas a expressatildeo de que natildeo eacute possiacutevel agrave vida natildeo ser ou melhor natildeo eacute possiacutevel agrave vida ser aquilo que ela natildeo eacute Nesse caso tecircm-se a vontade de poder como instacircncia referencial para se pensar o ciclo de forccedilas e o retorno do mesmo como expressatildeo maior desse curso a percepccedilatildeo temporal da vontade de poder Se levado em conta a ideia entenderemos que o viver natildeo poderaacute se manifestar de outra forma que natildeo seja o eterno e insaciaacutevel desejo por poder A repeticcedilatildeo de uma seacuterie subsequente de fenocircmenos num ciclo ininterrupto de forccedilas soacute poderaacute ser entendida como a eterna manifestaccedilatildeo da vontade que tudo envolve Portanto uma face de vida ldquoeacuterdquo necessariamente e nesse caso ela eacute vontade de poder natildeo havendo qualquer outra opccedilatildeo agrave vida que natildeo seja manifestar-se nos termos da vontade de poder

Ao se observar a loacutegica subsequente agrave admissatildeo dessa concepccedilatildeo de vida entenderemos que para

10 O princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia de Julius Robert von Mayer fiacutesico e meacutedico de origem alematilde entende que a energia inerente a um determinado processo sempre eacute constante ou seja que a energia natildeo eacute criada muito menos tem um fim mas que se transforma Mayer natildeo tinha em vista o movimento ciacuteclico do cosmos foi Nietzsche acrescentou isso a partir dos seus estudos da literatura cientiacutefica materialista (SAFRANSKI 2005 p 210)

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Nietzsche o viver natildeo possui um curso de determinaccedilatildeo radical similar agrave fiacutesica moderna Ele apenas aplica no seu filosofar uma ratificaccedilatildeo teoacuterica nos termos da proacutepria tese uma vez que a ideia da vontade que tudo envolve e determina acaba por se caracterizar como um conceito de orientaccedilatildeo reflexiva Neste sentido toda expressatildeo de vida por mais singela e aparentemente desprovida de quaisquer ambiccedilotildees ainda esconde no seu iacutentimo o ansiar elementar que perfaz o viver Falamos aqui de um jogo de tensatildeo e do eterno retorno como expressatildeo temporal da vontade de poder deixando de lado outras possiacuteveis leituras Em vista disso a admissatildeo da ciclicidade temporal junto agrave finitude das forccedilas impotildee a perspectiva da repeticcedilatildeo consecutiva do ciclo de forccedilas e natildeo de vicissitudes esteacutetico-fenomecircnicas como jaacute se pensou

Mas antes de adentrar os aspectos reflexivos que originaram o eterno retorno devemos observar um ponto de destaque do conceito Se a luta coacutesmica tem por implicaccedilatildeo necessaacuteria a superaccedilatildeo de si mesma pode-se perguntar por que natildeo haveria evoluccedilatildeo na vida ou progressatildeo na histoacuteria humana Diferentemente da noccedilatildeo de desenvolvimento linear que marcou o pensamento ocidental a superaccedilatildeo de si vislumbrada por Nietzsche concentra-se na ideia do Devir como um primado epistemoloacutegico o que por si estaacute em contraposiccedilatildeo a tudo aquilo que pensa estar cristalizado no tempo e espaccedilo Mas se a ideia do Devir fosse concebida como uma caracterizaccedilatildeo qualquer entre tantas outras da obra ela seria uma ficccedilatildeo destituiacuteda da grande carga de realidade conferida por seu autor

Superaccedilatildeo natildeo eacute a simples acumulaccedilatildeo de poder muito menos eacute a evoluccedilatildeo de um estado para outro [melhor] ndash mas aleacutem de tudo eacute movimento do todo que se faz por meio do jogo de poder como ciclo de domiacutenio e submissatildeo ascensatildeo e decadecircncia que norteia o devir Superar eacute deste modo movimento que muitas vezes se daacute

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natildeo como um melhoramento de um determinado estado de vida mas como consequente e necessaacuteria degeneraccedilatildeo de um dos campos de concentraccedilatildeo de poder em prol do todo Destarte o vir a ser eacute aquilo que estaacute no primeiro plano da vida e nesse caso estaacute acima do ciclo de interatividade das forccedilas sendo o proacuteprio movimento de superaccedilatildeo em atuaccedilatildeo

Eacute por isso que Nietzsche parece natildeo conseguir conceber as ideias de forccedila vigor e resistecircncia como caracteriacutesticas daquilo que perdera seu dinamismo configurador A percepccedilatildeo de um fluxo coacutesmico parece sempre sobrepor todas as caracterizaccedilotildees apresentadas por sua obra acabando mesmo por abalar a confusa associaccedilatildeo entre vir a ser e devir Os dois conceitos tendem a ser compreendidos como sinocircnimos perfeitos e o proacuteprio Nietzsche por vezes parece natildeo fazer qualquer distinccedilatildeo entre eles Mas eacute fato que palavras no maacuteximo aproximam-se umas das outras em quesitos de significaccedilatildeo nunca existindo uma completa equivalecircncia entre terminologias que nos possibilitassem aferir uma sintomaacutetica substancial mas apenas similar e equivalente Da mesma forma a noccedilatildeo familiarizada de vir a ser parece natildeo dar conta da amplitude conceitual apresentada pelo pensamento nietzschiano sobretudo quando se observado o percurso de seu auto-esclarecimento

O devir natildeo tem o sentido de um simples ldquofluir de todas as coisasrdquo como acusara Heidegger ao afirmar que esse dado revelaria a aquisiccedilatildeo ldquopseudo-heracliacuteticardquo (HEIDEGGER 2010 p 270) de Nietzsche Dentro da obra nietzschiana o devir implica necessariamente a vontade de poder uma vez que eacute ldquoatraveacutes do devir enquanto vontade de poder que se configura a vida A vontade de poder eacute o que instaura valor atraveacutes do ver que potildee perspectivas como condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e de incremento de poderrdquo (CORDEIRO 2010 p 92) Por conseguinte o devir pode ser tido como um sinocircnimo ou

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conceito siacutentese da concepccedilatildeo de vida nietzschiana posto que expressa a mais iacutentima efetiva e afetiva realidade do ser

Eacute desta maneira que Nietzsche afirma no aforismo que o devir haacute de ser justificado a cada instante porque o princiacutepio de conservaccedilatildeo da vida eacute parte da pulsatildeo que impele o viver Mas como se disse a conservaccedilatildeo soacute pode ser observada como resultado da necessidade de descarregar forccedila e instituir poder ou seja da vontade de fortalecimento domiacutenio e expansatildeo do real O devir eacute o proacuteprio ciclo de autojustificaccedilatildeo que tem no princiacutepio da conservaccedilatildeo e expansatildeo seu instinto cardeal mas sempre atentando para o sentido do curso de fatalidade do viver O ciclo verbal da vida soacute se justifica como fenocircmeno que age em volta de si mesmo nada mais

Seja na sua unidade seja na multiplicidade de expressotildees o devir natildeo nutre qualquer valor a priori conquanto ainda eacute aquilo que instaura valor Mas tendo em vista o seu fluxo unitaacuterio Nietzsche diraacute que ele eacute em parte derrocada de um movimento anterior como que manifestaccedilatildeo de vida decadente mas ele eacute tambeacutem forccedila ascendente as vezes acumulada mas que aleacutem de tudo eacute alegre entusiasmada e violenta (15 [2] Iniacutecio de 1888 p 360) Natildeo obstante o conceito de devir parece envolver de forma complementar a ideia da vida ciacuteclica que Nietzsche tinha em vista desde a juventude e que natildeo se diferenciaria profundamente da ideia da vontade de poder especialmente quando referenciada pela teoria das forccedilas Isso nos possibilita falar com maior propriedade da concepccedilatildeo de devir como equivalecircncia conceitual da especulaccedilatildeo da vontade de poder dado que tomou forma no percurso de esclarecimento da obra nietzschiana mas que natildeo se limita a uma simples relaccedilatildeo sintomaacutetica

Partindo do vislumbre da iacutentima relaccedilatildeo entre devir e a especulaccedilatildeo nietzschiana percebe-se que o conceito natildeo soacute envolve as discorridas caracterizaccedilotildees que marcaram o

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auto-esclarecimento das teses ndash pulsatildeo ficcional caos guerra pluralidade na unidade superaccedilatildeo de si e vir a ser ndash acabando por findar com a teorizaccedilatildeo do eterno retorno esse que pode ser inferido como a caracterizaccedilatildeo temporal da vontade de poder Ainda no aforismo 38 [12] de 1885 Nietzsche diraacute que a vida procura incessantemente afirmar a si mesma abenccediloando a si ldquocomo aquilo que haacute de voltar eternamente como um devir que natildeo conhece nenhum tornar-se satisfeitordquo Natildeo eacute por menos que esse conceito possui papel de destaque dentro do seu projeto cosmoloacutegico especialmente no que diz respeito a dimensatildeo de confrontaccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo da modernidade

A vida como o fenocircmeno afirmador de si mesmo faz referecircncia primeiramente agrave constante tentativa de Nietzsche em retomar tudo aquilo que fora negado pela tradiccedilatildeo ocidental Pode-se afirmar que a resoluccedilatildeo postulada para o problema da ldquopossibilidade de se conhecer o mundordquo se apresenta como um delineamento especulativo das manifestaccedilotildees da vida no seu caraacuteter corrente [forccedilas] como dos seus limites [finitude das forccedilas e espaccedilo] modo de manutenccedilatildeo [guerra] modo de operaccedilatildeo [superaccedilatildeo de si] e fatalidade [pluralidade na unidade finitude pureza e caos] Esse eacute um esquema cosmoloacutegico marcado em uacuteltima instacircncia pelo signo conjunto do devir o que pressupotildee a submersatildeo na ciclicidade espaccedilo-temporal derivada ao menos em parte da admissatildeo da transitoriedade e finitude do mundo material como tambeacutem da eterna pulsatildeo existecircncia da vida

A vontade de poder eacute assim uma especulaccedilatildeo inconclusa que atenta para duas hipoacuteteses que natildeo alteram a tese geral Primeiramente ela destaca que natildeo existe qualquer essecircncia originaacuteria do mundo e mesmo que ldquoexistisserdquo tal essecircncia soacute poderia ser o simples devir ciacuteclico visto que a uacutenica realidade que nos eacute acessiacutevel manifesta-se como um infinito jogo de poder No segundo momento a tese procura lidar com a possibilidade de

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existecircncia de um conteuacutedo originaacuterio mas natildeo no sentido de um elemento suprassensiacutevel que antecedesse o devir mas sim de um abismo enigmaacutetico talvez ainda um abismo nadificador

Independentemente disso Nietzsche concluiraacute que natildeo existe qualquer essecircncia da vida apenas manifestaccedilatildeo da vontade isto eacute vida a se efetivar no seu curso de realidade A vontade de poder eacute movimento criador e reconfigurador do real movimento que se faz por meio do combate entre polos opostos de forccedilas que instituem a diversidade de formas perspectivas e interpretaccedilotildees no jogo de poder por consequecircncia impossibilitando qualquer estado de equiliacutebrio entre forccedilas Dessa forma a tese designa ldquoo conceito de uma relaccedilatildeo decodificada no horizonte da tensatildeordquo (MOURA 2005 p 197) eacute uma ideia que tem em vista o Pathos elementar ao qual todo o vir a ser coacutesmico resulta

Com a vontade de poder a existecircncia eacute determinada como unidade muacuteltipla ndash multiplicidade que se realiza sob um uacutenico horizonte o poder ndash um processo realizado por meio do movimento de diferenciaccedilatildeo motora onde a guerra eacute o mecanismo basilar do ciclo de tensatildeo e superaccedilatildeo Por conseguinte ao tomar por elementos de caracterizaccedilatildeo as noccedilotildees de forccedila finitude das forccedilas guerra superaccedilatildeo de si e ciclicidade temporal a tese implicaraacute numa caracterizaccedilatildeo da vida como devir ou seja natildeo do ser na sua essecircncia mas a sua manifestaccedilatildeo relacional

Nietzsche tinha em vista apresentar sua ideia como a ldquosoluccedilatildeordquo para todos os ldquoenigmasrdquo ou ainda uma ldquoluz para os ldquomais fortes mais desassombrados mais iacutensitos agrave meia-noiterdquo11 homens que estariam para aleacutem do tempo presente Sendo uma teoria dinacircmica a vontade de poder assume a proacutepria condiccedilatildeo interpretativa e por isso acaba

11 Recortes do jaacute citado aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885

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por se configurar como um discurso que se volta para um puacuteblico determinado O que fica evidente eacute que o projeto ambicionava assinalar as caracteriacutesticas manifestas daquilo que deveria subsistir como o correlato fenomecircnico da atividade interpretativa ou seja a possibilidade de uma nova concepccedilatildeo de mundo para aleacutem das sombras da teologia e do cientificismo moderno Outro fator de destaque eacute que a tese eacute genuinamente especulativa por isso eacute importante levar em conta que o desejo por fundamentaccedilatildeo cientiacutefica de Nietzsche era totalmente natural na Alemanha de 1870 a 1880

Ainda ao se falar de cosmologia eacute-se levado a concluir que Nietzsche insere-se necessariamente na tradiccedilatildeo como um metafiacutesico contudo a tese eacute apresentada como um projeto antimetafiacutesico Natildeo pretendemos avaliar aqui ateacute que ponto ela eacute ou natildeo metafiacutesica12 visto que nos falta espaccedilo para a avaliaccedilatildeo dessa inferecircncia Mas estamos em condiccedilotildees de entender que a vontade de poder manteacutem fortes laccedilos de proximidade com uma especulaccedilatildeo metafiacutesica tradicional ao se configurar como uma cosmologia filosoacutefica aquela ldquoque examina tais hipoacuteteses e estabelece especulaccedilotildees fundadas apenas em meacutetodos metafiacutesicosrdquo (SANTOS 1959 p 2008)Mas o que seria por fim a vontade de poder

Se tentarmos compreender Nietzsche a partir de seus proacuteprios textos perceberemos que a tese eacute o reconhecimento de um fenocircmeno maior no seu movimento de superaccedilatildeo de si mesmo ao abalar tudo o que a estagnaccedilatildeo ocidental erguera no decorrer da histoacuteria Como sabemos a observaccedilatildeo do fluxo natural da vida que implicara tambeacutem na observaccedilatildeo do proacuteprio corpo legou ao conceito vontade de poder muito de sua personalidade Partindo desse dado podemos perceber que Nietzsche se compreendia como parte constituinte da forccedila

12 Tese levantada pela primeira vez por Heidegger

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reconfiguraccedilatildeo e ascendecircncia do devir como admitiria em uma carta dirigida ao amigo Peter Gast de 1881 onde afirma ldquoeu com frequecircncia me vejo como o rabisco que um poder desconhecido traccedila no papel experimentando uma nova penardquo (Fim de agosto de 1881)

Por fim sem perder de vista a interpretaccedilatildeo do aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885 eacute preciso chamar a atenccedilatildeo para um dado conclusivo que nem sempre recebe a devida consideraccedilatildeo dos inteacuterpretes da obra o traacutegico ou dionisiacuteaco Esse elemento tem um lugar de destaque ao final da passagem ao declarar ldquoeste meu mundo dionisiacuteaco do criar eternamente a si mesmo do destruir eternamente a si mesmo este mundo misterioso da dupla voluacutepia este meu lsquoaleacutem de bem e malrsquordquo13 A referecircncia ao mundo dionisiacuteaco natildeo eacute um simples artifiacutecio literaacuterio destituiacutedo de significado muito menos um acidente justamente porque como esclarece Ruumldiger Safranski (1995) o ldquomundo dionisiacuteaco da vontade elementar eacute ao mesmo tempo o mundo heracliacutetico da guerra como pai de todas as coisasrdquo (2005 p 58)

Junto agrave claacutessica figura de representaccedilatildeo que eacute o dionisiacuteaco chega-se ao ponto conclusivo para um vislumbre geral da especulaccedilatildeo da vontade de poder a tese que para laacute de suas ambiccedilotildees reflete o ser perspectivo de Nietzsche como um espelho e por isso reflete tambeacutem o conteuacutedo velado de sua ideia A concepccedilatildeo de vida nietzschiana fala daquilo ldquoque o grego sob a designaccedilatildeo psycheacute (Ψυχή) de modo amplo e geral caracterizou como movimento que desde si mesmo move a si mesmordquo (FOGEL 2008 p 11) e talvez se aproxime mais da proacutepria noccedilatildeo de Physis (SAMPAIO 2008 p 143) caracteriacutestica da filosofia preacute-platocircnica O que Nietzsche faz ao identificar o real enquanto verbo criador e destruidor

13 Mais um recorte do jaacute citado aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885

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de si [devir] eacute retomar como paracircmetro de avaliaccedilatildeo uma cosmovisatildeo filosoacutefica arcaica mas precisamente preacute-platocircnica o mundo heracliacutetico da guerra como pai de todas as coisas

Nota de Esclarecimento

Satildeo de Nietzsche as obras sem indicaccedilatildeo de autor Abreviamos os tiacutetulos como segue ZA ndash Assim falou Zaratustra ABM ndash Para aleacutem do bem e do mal CI ndash Crepuacutesculo dos iacutedolos CP ndash Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos VP ndash A vontade de poder Forma de citaccedilatildeo Para os textos publicados por Nietzsche o algarismo romano indica a parte ou capiacutetulo o algarismo araacutebico indica a seccedilatildeo no caso de ZA e CI o algarismo romano indica a parte do livro seguida do tiacutetulo da passagem e do algarismo araacutebico que indica a seccedilatildeo

Para as anotaccedilotildees poacutestumas os algarismos araacutebicos seguidos da data indicam o fragmento poacutestumo e a eacutepoca em que foi redigida Quanto aos demais autores indicamos o autor e a data de publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo seguida da paacutegina

Referecircncias CARVALHO Daniel Felipe O silecircncio da natureza e o barulho

da moralidade Nietzsche e o problema da antropormofizaccedilatildeo in Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche

Robson Costa Cordeiro (Org) | 331

vol 6 p 59 ndash 56 Disponiacutevel em httptragicaorgartigosv6n1carvalhopdf Acesso em 10 de outubro de 2013

CORDEIRO Robson Costa Nietzsche e a vontade de poder como

arte uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa ndash PB Editora universitaacuteriaUFPB 2010

FOGEL Gilvan Apresentaccedilatildeo in Vontade de poder Traduccedilatildeo de

Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro ndash RJ Ed Contraponto 2008

GRANIER Jean Nietzsche Traduccedilatildeo Denise Boatman Porto

Alegre ndash RS LampPM Pocket 2011 HEIDEGGER Martin Nietzsche I Traduccedilatildeo Marco Antocircnio

Casanova Rio de Janeiro ndash RJ 1ordf Ed Forense Universitaacuteria 2010

_______ Nietzsche IITrad de Marco Antonio Casa Nova Rio de

Janeiro ndash RJ Forense Universitaacuteria 2007 JAEGER Werner Paideacuteia A formaccedilatildeo do Homem Grego Traduccedilatildeo

Artur M Parreira Satildeo Paulo ndash SP 3ordf Ed Martins Fontes 1994

MAGNUS Bernard and HIGGINS Kathleen M The Cambridge

Companion to Nietzsche Online Disponiacutevel em httpuniversitypublishingonlineorgcambridgecompanionsebookjsfbid=CBO9781139000604 Cambridge University Press 2006

MARTON Scarlet Nietzsche das forccedilas coacutesmicas aos valores humanos

Belo Horizonte ndash MG Ed UFMG 2000 MOURA Carlos A R de Moura Nietzsche civilizaccedilatildeo e cultura

Satildeo Paulo ndash SP Martins Fontes 2005 - (Coleccedilatildeo Toacutepicos)

332 | Kierkegaard Nietzsche e Heidegger o pensamento contemporacircneo e a criacutetica agrave metafiacutesica

NIETZSCHE Friedrich O nascimento da trageacutedia Traduccedilatildeo J Guinsburg Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2007

____________________ A filosofia na era traacutegica dos gregos

Traduccedilatildeo Gabriel Valladatildeo Silva Porto Alegre ndash RS Ed LampPM Pocket 2011

__________________ Cinco prefaacutecios Traduccedilatildeo Pedro

Sussekind Rio de Janeiro ndash RJ Editora 7 Letras 1996 __________________ Humano demasiado humano Traduccedilatildeo

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2011

__________________ A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de

Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2012 __________________ Aurora Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza

Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2012 __________________ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2011

__________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2005

__________________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Editora Companhia das Letras 2010

__________________ Genealogia da moral uma polecircmica

Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2009

Robson Costa Cordeiro (Org) | 333

__________________ O anticristo e Ditirambos de Dioniacutesio Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2009

____________________ Ecce homo Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de

Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2008 ____________________ A vontade de poder Traduccedilatildeo Maacutercos

Sineacutesio Pereira Fernandes Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro ndash JR 1ordf Ed Contraponto 2008

____________________ Der Wille zur Macht Stuttgart ndash

Deustchland Ed Kroner 1996 ____________________ Despojos de uma trageacutedia Traduccedilatildeo

Ferreira da Costa Portugal ndash Porto Editora Porto 1944 ____________________ Fragmentos poacutestumos1885 ndash 1887 VI

Rio de Janeiro ndash RJ Ed EgnForense Universitaacuteria 2013 ____________________ Fragmentos poacutestumos 1887 ndash 1889 VII

Rio de Janeiro ndash RJ Ed EgnForense Universitaacuteria 2012 NOVELLO Maacuterio O que eacute cosmologia a revoluccedilatildeo do pensamento

cosmoloacutegico Rio de Janeiro ndash RJ Ed Jorge Zahar 2006 PREacute-SOCRAacuteTICOS Os pensadores Traduccedilatildeo SOUZA Joseacute

Cavalcante de ALMEIDA Anna Lia Amaral de CAVALCANTE Iacutesis Lana Borges CAVALCANTE Maria Conceiccedilatildeo Martins KUHNEN Remberto Francisco FILHO Rubens Rodrigues Torres MOURA Carlos Alberto Ribeiro de STEIN Ernildo BARROS Heacutelio Leite de DEVEGILI Arnildo BARROS Mary Amazonas Leite de FLOR Paulo Frederico REGIS Wilson Regis Satildeo Paulo ndash SP 2ordf Ed Abril Cultural 1978

OLIVEIRA Jelson Roberto de Nietzsche e o Heraacuteclito que ri

solidatildeo alegria traacutegica e devir inocente Revista Veritas Vol 3 p 217-235 2010 Disponiacutevel em

334 | Kierkegaard Nietzsche e Heidegger o pensamento contemporacircneo e a criacutetica agrave metafiacutesica

httprevistaseletronicaspucrsbrojsindexphpveritasarticleview6263 Acesso em 25 de julho de 2009

SAFRANSKI Ruumldiger Nietzsche biografia de uma trageacutedia Trad de

Lya Luft 2ordf Ed Satildeo Paulo Geraccedilatildeo Editorial 2005 SANTOS Maacuterio Ferreira dos Ontologia e Cosmologia 3ordf Ed Satildeo

Paulo ndash SP Logos 1959 SAMPAIO Alan da Silva Origem do Ocidente a antiguidade grega no

jovem Nietzsche Ijuiacute ndash RS Ed Inijuiacute 2008 VATTIMO Gianni Diaacutelogo com Nietzsche Trad de Silvana

Cobucci Leite Satildeo Paulo ndash SP Martins Fontes 2010

Page 3: Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger: O Pensamento

KIERKEGAARD

NIETZSCHE e

HEIDEGGER

O Pensamento

Contemporacircneo e a

Criacutetica agrave Metafiacutesica

Robson Costa Cordeiro

(Orgs)

φ

Direccedilatildeo editorial Agemir Bavaresco

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Arte de capa Victoria Siemer

A regra ortograacutefica usada foi prerrogativa de cada autor

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Seacuterie Filosofia e Interdisciplinaridade - 59

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

CORDEIRO Robson Costa (Org)

Kierkegaard Nietzsche e Heidegger O Pensamento Contemporacircneo e a Criacutetica agrave

Metafiacutesica [recurso eletrocircnico] Robson Costa Cordeiro (Org) -- Porto Alegre RS

Editora Fi 2016

334 p

ISBN - 978-85-5696-064-1

Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg

1 Kierkegaard 2 Nietzsche 3 Heidegger 4 Metafiacutesica 5 Hermenecircutica

I Tiacutetulo II Seacuterie

CDD-100

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Filosofia 100

Sumaacuterio

APRESENTACcedilAtildeO 9

NIETZSCHE E A RETOacuteRICA SOBRE A APODITICIDADE DO DISCURSO

ANDREacute FELIPE GONCcedilALVES CORREIA 13

PENSAMENTO E VONTADE COMO VONTADE DE PODER NA FILOSOFIA DE

FRIEDRICH NIETZSCHE

BRENO DUTRA SERAFIM SOARES 40

NIILISMO E TEacuteCNICA EM HEIDEGGER

BRUNO RICARDO A MALVINO 72

A INTRIacuteNSECA RELACcedilAtildeO ENTRE O AMOR FATI E A ARTE

EacuteLLIDA JUSSARA SILVA SANTOS 87

NOTAS SOBRE HERMENEcircUTICA EM HEIDEGGER E GADAMER DOIS SENTIDOS

DIFERENTES

ERNILDO STEIN 105

MARTIN HEIDEGGER LENDO FREDERICO NIETZSCHE

GILVAN FOGEL 127

A ESCRITA-GRITO DO LOUCO APROXIMACcedilOtildeES E RESSONAcircNCIAS DA FILOSOFIA DE

NIETZSCHE NA ESCRITA-VIDA DE ARTAUD

IKARO MAX BATISTA DE ARAUacuteJO 162

DA VONTADE DE PODER ENQUANTO ARTE NO PENSAMENTO DE FRIEDRICH

NIETZSCHE

JOSEPH ANDERSON PONTE CAVALCANTE LEITE 187

O PROBLEMA DA SUPERACcedilAtildeO DA METAFIacuteSICA NA CRIacuteTICA FENOMENOLOacuteGICA DE

HEIDEGGER

LUISMAR CARDOSO DE QUEIROZ 202

O SUJEITO A VERDADE E A CRIacuteTICA AO PENSAMENTO MODERNO

MAacuteRCIO JOSEacute SILVA LIMA 230

CONSIDERACcedilOtildeES SOBRE O CONCEITO DE EXISTEcircNCIA EM S A KIERKEGAARD

RAMON BOLIacuteVAR C GERMANO 245

NOBRE E ESCRAVO NA PERSPECTIVA DA VONTADE DE PODER NIETZSCHE E A

INTERPRETACcedilAtildeO DO HOMEM A PARTIR DA NOCcedilAtildeO DE VALOR

RAY RENAN SILVA SANTOS 273

HEIDEGGER E O CONCEITO DE FUSIS NO FRAGMENTO 16 DE HERAacuteCLITO ROBSON COSTA CORDEIRO 292

COSMOLOGIA DA VONTADE DE PODER DO PROJETO FILOSOacuteFICO Agrave FORMULACcedilAtildeO

DE UMA CONCEPCcedilAtildeO DE VIDA

THIAGO GOMES DA SILVA NUNES 307

Apresentaccedilatildeo

Os textos que compotildeem o presente Caderno de Estudos de Fenomenologia e Hermenecircutica Kierkegaard Nietzsche e Heidegger O Pensamento Contemporacircneo e a Criacutetica agrave Metafiacutesica satildeo oriundos tanto do trabalho que vem sendo desenvolvido sob a minha coordenaccedilatildeo pelo Grupo de Pesquisa Corpo e Fenomenologia junto aos alunos de Graduaccedilatildeo e Poacutes-Graduaccedilatildeo do curso de Filosofia da UFPB como tambeacutem da parceria com o Grupo de Pesquisa Filosofia e Hermenecircutica coordenado pelo Prof Dr Miguel Antonio do Nascimento Com o intuito de divulgar a produccedilatildeo e promover o intercacircmbio resolvemos publicar alguns textos oriundos dos estudos que vem sendo realizados pelos discentes e pesquisadores dos respectivos Grupos de Pesquisa Recebemos ainda como colaboraccedilatildeo textos de dois dos principais estudiosos de Heidegger e Nietzsche no Brasil O do Prof Ernildo Stein intitulado Notas sobre Hermenecircutica em Heidegger e Gadamer dois sentidos diferentes e o do Prof Gilvan Fogel intitulado Martin Heidegger lendo Frederico Nietzsche Agradecemos imensamente a inestimaacutevel colaboraccedilatildeo dos dois professores e esperamos no futuro publicar outros nuacutemeros desse Caderno Queremos desenvolver essa breve apresentaccedilatildeo falando um pouco acerca do sentido da palavra estudo Esperamos assim justificar de algum modo o motivo do uso da expressatildeo Caderno de Estudos e natildeo Caderno de Pesquisas muito embora na verdade se trate aqui da apresentaccedilatildeo dos trabalhos dos Grupos de Pesquisa Etimologicamente a palavra estudo deriva do latim studium que significa empenho esforccedilo dedicaccedilatildeo no sentido de comprometer-se com um trabalho com uma tarefa No estudo portanto encontra-se o engajamento a aplicaccedilatildeo o cuidado necessaacuterio para se buscar e ir ao encalccedilo daquilo que se procura Mas o que se procura soacute surge cresce e se

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consuma no procurar O procurado desse modo natildeo eacute o que estaacute previamente delineado e antecipado e que pode vir a ser alcanccedilado a partir de uma metodologia de um conjunto de regras previamente determinadas como acontece na pesquisa O estudo como trabalho constitutivo da existecircncia humana fomenta no homem a conquista de sua liberdade e a determinaccedilatildeo de um modo muito proacuteprio de ser e de interpretar o real Para os gregos esse tipo de trabalho se denominava sxolh de onde deriva a nossa palavra escola1 A palavra sxolh contudo que hoje tem o sentido de oacutecio natildeo significa em seu sentido originaacuterio descanso e ociosidade Significa antes ater-se engajar-se na determinaccedilatildeo criadora de sua proacutepria identidade na construccedilatildeo de um caminho proacuteprio de pensar Eacute esse o sentido que estaacute presente na famosa sentenccedila de Aristoacuteteles que caracteriza o homem como to z=+on logon

e)xon ou seja como ldquoo animal que possui logosrdquo O verbo grego e)xw de onde deriva sxolh significa propriamente ater-se O que a sentenccedila procura dizer portanto eacute que o homem eacute o animal que se ateacutem ao logos e que nesse ater-se eacute propriamente homem O que se pretende com esse Caderno de Estudos eacute fomentar o exerciacutecio dessa atividade desse ater-se e pocircr-se no caminho do pensamento que jaacute se pocircs no nosso caminho Os textos aqui apresentados portanto pretendem apenas introduzir os caminhantes que satildeo os proacuteprios autores e tambeacutem os leitores na caminhada do pensar nos caminhos de floresta (Holzwege) que conforme dizia Heidegger satildeo caminhos que na maior parte das vezes acabam se perdendo no ainda natildeo-trilhado Mas eacute soacute na erracircncia que esses caminhos conduzem que o homem pode escapar do erro de seguir o jaacute trilhado e assim

1 Cf mostra o Frei Hermoacutegenes Harada em seu livro De Estudo Anotaccedilotildees Obsoletas p 12 e segs

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propriamente se encontrar ou seja pensar Zaratustra no discurso da virtude dadivosa jaacute alertava os seus disciacutepulos para essa necessidade ldquoAinda natildeo vos haviacuteeis procurado a voacutes mesmos entatildeo me achastes Assim falam todos os crentes por isso valem tatildeo pouco todas as crenccedilas Agora eu vos mando perder-vos e achar-vos a voacutes mesmordquo Quando nos referimos ao estudo estamos aqui procurando entendecirc-lo como empenho amor que o grego entendia como filia A filosofia como amor ao saber tem no procurado o saber natildeo algo exterior como um objeto erudito de estudo antes tem no procurado o que promove a proacutepria busca O que importa portanto natildeo eacute o movimento em direccedilatildeo ao pensamento como um lanccedilar-se a um objeto externo mas sobretudo aquilo que diz Kierkegaard em seu elogio do amor O voltar-se para si para o interior como consciecircncia de nosso estado sob o pensamento ou seja o saber ldquodo que se passa em si nesse exerciacutecio de pensamentordquo Isto contudo natildeo aponta para a interioridade da consciecircncia pois o saber ldquodo que se passa em si no exerciacutecio do pensamentordquo eacute o dar-se conta da presenccedila de um Todo Poderoso colaborador sem o qual o homem natildeo seria capaz de absolutamente nada Esse dar-se conta soacute pode ocorrer atraveacutes de um exerciacutecio que mostra que no momento em que somos capazes de tudo ou seja da suprema atividade que eacute o pensar acontece a revelaccedilatildeo de que na verdade natildeo somos capazes de nada Essa compreensatildeo eacute a mais difiacutecil pois no momento em que somos capazes de pensamento natildeo nos vemos como instrumentos do pensar mas como o sujeito que pode tudo inclusive determinaacute-lo e dominaacute-lo

Saber que natildeo se eacute capaz de nada eacute o supremo saber pois significa saber que soacute podemos ldquoserrdquo e tambeacutem pensar o que somos porque somos o lugar e a hora do acontecimento do Ser Significa portanto que natildeo somos capazes de nada sem o Ser ou seja que somos agrave medida

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que fazemos mas por outro lado que fazemos agrave medida que somos agrave medida que estamos na possibilidade para esse fazer Mas para poder assim pensar precisamos despertar para esse pensamento No entanto somos noacutes ao mesmo tempo que o despertamos esse verme dorminhoco que dorme em nosso leito E nisso se encontra o paradoxo de ser e pensar

O estudo portanto como empenho esforccedilo filia amor pelo saber eacute a atividade mais extenuante e a mais difiacutecil porque nos leva agrave confrontaccedilatildeo com esse paradoxo e eacute atraveacutes do seu exerciacutecio que o homem pode se dar conta de que soacute pode pensar propriamente conforme diz Kierkegaard ldquose aprender a despertar confiadamente para os pensamentosrdquo Os textos aqui apresentados satildeo esforccedilos na caminhada deste despertar e ser despertado

Joatildeo Pessoa 27 de Agosto de 2015

Robson Costa Cordeiro

Nietzsche e a Retoacuterica

Sobre a apoditicidade do discurso

Andreacute Felipe Gonccedilalves Correia1

1 Introduccedilatildeo

O trabalho em questatildeo tem por empenho interpretar a compreensatildeo de Nietzsche em torno da retoacuterica A obra mediante a qual a pesquisa se desdobra corresponde a uma compilaccedilatildeo de textos escritos no periacuteodo em que Nietzsche exercia a docecircncia na universidade de Basileia intitulada Da Retoacuterica Em uma passagem do primeiro texto da compilaccedilatildeo Nietzsche configura a retoacuterica como a forccedila (ldquoKraftrdquo) que suscita um sentido possiacutevel e faz valer mediante a persuasatildeo uma vivecircncia Enquanto tal forccedila a retoacuterica expressa uma espeacutecie de plasticidade (ldquoPlastizitaumltrdquo) no movimento interpretativo do real comportando a possibilidade de convencimento mesmo por falsas vias Contudo o que propriamente natildeo seria falseabilidade Seria possiacutevel ao desvelamento discursivo o pleno descortinar do veacuteu Caberia agrave linguagem a forccedila de acesso a epiacutelogos teleoloacutegicos Estas indagaccedilotildees suscitam o problema concernente agrave apoditicidade do discurso Supondo um inevitaacutevel malogro na obtenccedilatildeo de sustentaacuteculos metafiacutesicos por parte da linguagem perderia ela o seu vigor Ou seria justamente dessa limitaccedilatildeo que poderia emergir toda autenticidade do viver Para que possamos adentrar no acircmago dessas questotildees urge-nos uma meditaccedilatildeo em torno da linguagem

1 Mestrando do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba E-mail felgorreiahotmailcom

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Trecircs novas indagaccedilotildees se fazem necessaacuterias o que faz a linguagem Quem faz a linguagem O que eacute a linguagem Sucintamente responderiacuteamos agrave primeira dizendo que sua atividade (ldquoarterdquo) proacutepria eacute ldquointerpretarrdquo afetos (ldquoAffektenrdquo) a resposta agrave segunda recairia no homem agrave medida que eacute tomado e estimulado por essas afecccedilotildees e agrave terceira que eacute a retoacuterica Exige-se aqui por certo o desdobramento dessas asserccedilotildees Todavia seria esta a postura de Nietzsche ao referir-se agrave retoacuterica ldquoessa forccedila eacute ao mesmo tempo a essecircncia da linguagem esta reporta-se tatildeo pouco como a retoacuterica ao verdadeiro agrave essecircncia das coisas natildeo quer instruir (ldquobelehrenrdquo) mas transmitir a outrem (ldquoauf Andere uumlbertragenrdquo) uma emoccedilatildeo e uma apreensatildeo subjectivasrdquo (NIETZSCHE 1995 p 46) Se natildeo haacute linguagem que natildeo seja retoacuterica entatildeo cabe agrave retoacuterica todo o poder do discurso filosoacutefico e por conseguinte toda a verdade filosoacutefica Este percurso reflexivo desemboca portanto na relaccedilatildeo entre retoacuterica e verdade Ao situar a retoacuterica como o seio de onde brota a linguagem Nietzsche se nos apresenta como o precursor da virada retoacuterica e hermenecircutica O poder deste pensar faz oscilar todo anseio por discursos apodiacuteticos de cunho metafiacutesico preludiando o desenvolvimento da criacutetica agrave metafiacutesica que se desdobrou no seacuteculo XX Criacutetica esta que se debruccedilou sobre a problemaacutetica da linguagem como o preciacutepuo lugar (ldquotoposrdquo) mediante o qual poder-se-ia situar e configurar significaccedilotildees (ou interpretaccedilotildees) ao mundo Eacute manifesta a influecircncia que o pensamento nietzschiano exerceu sobre as meditaccedilotildees de Heidegger e Wittgenstein em torno da linguagem principalmente no segundo periacuteodo de ambos os pensadores A esses referecircncias concernentes ao problema da linguagem satildeo comumente suscitadas todavia sem a saliecircncia do estrito viacutenculo que tal problema tem para com a retoacuterica Eacute com esta aproximaccedilatildeo essencial que a obra de Nietzsche

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aparece-nos outrossim como o movimento de ldquoavant-garderdquo de pensadores da viragem retoacuterica como Toulmin e Perelman

Podemos averiguar reflexotildees de cunho aforismaacutetico em torno da linguagem em vaacuterias obras do chamado ldquoNietzsche da maturidaderdquo nelas jaacute se expressam um pensador ancorado no abismo (ldquoAbgrundrdquo) de sua autecircntica filosofia tal como se encontra nesta passagem de A Gaia Ciecircncia

Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforccedilo compreender que importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que satildeo A reputaccedilatildeo o nome e a aparecircncia o peso e a medida habituais de uma coisa o modo como eacute vista ndash mediante a crenccedila que as pessoas neles tiveram incrementada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa por assim dizer tornando-se o seu proacuteprio corpo a aparecircncia inicial termina quase sempre por tornar-se essecircncia e atua como essecircncia Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusatildeo para destruir o mundo tido por essencial a chamada lsquorealidadersquo (lsquoWirklichkeitrsquo) Somente enquanto criadores podemos destruir (NIETZSCHE 2012a sect58 p 90-1)

A proposta deste breve estudo eacute resgatar a fonte

literaacuteria-filosoacutefica de onde partiu essa reflexatildeo da maturidade Noacutes a encontraremos em uma seacuterie de textos de um jovem professor de filologia em Basileia escritos na segunda metade do seacuteculo XIX

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2 Histoacuteria da Retoacuterica e Retoacuterica da Histoacuteria Apesar das muacuteltiplas colocaccedilotildees filosoacuteficas e filoloacutegicas espalhadas por toda a compilaccedilatildeo uma exclamaccedilatildeo em particular atrai a nossa atenccedilatildeo ldquoA retoacuterica eacute republicanardquo O que isto quer dizer Em uacuteltima instacircncia ela estaacute a nos apontar uma exigecircncia de reflexatildeo para com a histoacuteria (ldquoGeschichterdquo)2 Natildeo no sentido de historiografia mas sim de eclosatildeo cultivadora A histoacuteria de um povo estaacute intimamente vinculada agraves muacuteltiplas formas de cultivo (ldquoZuumlchtungrdquo) que nela adquirem corpo vivecircncia Ao identificar retoacuterica e repuacuteblica Nietzsche estaacute em verdade fazendo referecircncia agrave cultura que fez valer a ambas a Antiguidade grega3

2 O termo ldquoGeschichterdquo eacute derivado do termo ldquoGeschehnisrdquo (acontecimento) vinculando-se tambeacutem ao verbo ldquogeschehenrdquo (acontecer) de sorte que o seu sentido originaacuterio estaria mais vinculado agrave noccedilatildeo de ldquoacontecimento histoacutericordquo e natildeo agrave de ldquociecircncia histoacutericardquo

(ldquoHistorierdquo)

3 Essa colocaccedilatildeo se faz valer agrave medida que consideramos natildeo a totalidade das cidades-estados da Heacutelade mas sim aquela que representou na eacutepoca (seacutec V aC) e representa para toda a posteridade o apogeu e centralidade cultural dos helenos a saber a cidade de Atenas Ao contraacuterio do que se imagina a adoccedilatildeo dos ideais democraacuteticos (ou republicanos) natildeo vigorou na maior parte da Heacutelade sendo Atenas um caso muito peculiar Apenas inserida em uma poliacutetica que dignificasse a forccedila do individual (e todos os muacuteltiplos recursos mediante os quais este poderia expressar-se) eacute que a retoacuterica poderia ganhar prestiacutegio e difusatildeo Sexto Empiacuterico em Contra os retoacutericos nos fornece um testemunho da hostilidade para com a retoacuterica em outras localidades do mundo grego sendo-lhe a principal opositora a cidade de Esparta ldquoMas no entanto todos os homens em todos os lugares caccedilaram a Retoacuterica por ser muito hostil tal como por exemplo o legislador cretense que proibiu aqueles que se orgulhavam de sua oratoacuteria de se estabelecerem em sua ilha e tambeacutem o espartano Licurgo que tornando-se um admirador de Tales de Creta introduziu a mesma lei entre os espartanos E por isso muitos anos depois os eacuteforos puniram um jovem que estudara Retoacuterica no estrangeiro quando do seu retorno alegando como causa da sua condenaccedilatildeo que ele

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Apenas em um contexto histoacuterico adequado eclodiria o acolhimento da forccedila retoacuterica Forccedila esta que mediante a persuasatildeo discursiva instaura a simultaneidade do viver e do falar O nomear traz agrave presenccedila o nomeado faz vigorar um sentido viacutevido Tal como consta em Hesiacuteodo ao ser tomado por receio quanto a pronuncia de bestas mitoloacutegicas ldquoOutros ainda da Terra e do Ceacuteu nasceram trecircs filhos enormes violentos natildeo nomeaacuteveis Coto Briareu e Giges assombrosos filhosrdquo (HESIacuteODO 2011 v47-9 p111) O canto (a linguagem miacutetica) inspirado pelas musas ldquodesvelardquo mundos nos quais o viver apreende e encarna modos de manifestaccedilotildees de si proacuteprio

Toda a educaccedilatildeo retoacuterica (nascida da oralidade) que se estendeu na Antiguidade helecircnica expressa o valor atribuiacutedo agrave palavra aquilo que Nietzsche chama de ldquoPoder-discorrerrdquo ldquoA pretensatildeo mais ilimitada de tudo poder como oradores ou como estilistas atravessa toda a Antiguidade de uma maneira para noacutes incompreensiacutevelrdquo (NIETZSCHE 1995 p80) Segue-se pois que a vigecircncia do poder mediante a persuasatildeo exige uma abertura histoacuterica assim como para que haja desenvolvimento do mesmo uma educaccedilatildeo retoacuterica Embora o liame entre retoacuterica e repuacuteblica refira-se em uacuteltima instacircncia agrave antiga Atenas a gecircnese da aceitaccedilatildeo mediante a palavra remonta a algo mais originaacuterio que fora esquecido no decurso histoacuterico do homem ocidental O desenvolvimento da retoacuterica pode ser visto em todo caso como consequecircncia

praticara um artificioso modo de falar para deixar Esparta confusa E os proacuteprios espartanos continuaram a detestar a Retoacuterica e a empregar o discurso que eacute simples e curtordquo (EMPIacuteRICO 2013 p 11-13) O apreccedilo e empenho para com os quesitos beacutelicos afastaram Esparta (e vaacuterias outras) do desdobramento intelectual e artiacutestico desenvolvidos em Atenas de modo que natildeo surpreende a ascensatildeo dos sofistas poetas e filoacutesofos nesta uacuteltima Em Atenas o acircmbito discursivo adquire variadas dimensotildees e isso devido agrave sua situaccedilatildeo histoacuterico-poliacutetica que cresce em simultaneidade com as ramificaccedilotildees discursivas (retoacutericas)

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de um trabalho de cultivo da fala da persuasatildeo pela palavra sob a foacutermula do ldquomythosrdquo Esta foacutermula por si jaacute eacute vigecircncia retoacuterica pois nela se daacute uma criaccedilatildeo persuasiva Uma cultura homogecircnea expressa tatildeo soacute o resultado comum de um convencimento um auditoacuterio similiforme emerge em todo caso como uma interpretaccedilatildeo de mundo que vinga No homem que vivesente o mito tal como vimos em Hesiacuteodo natildeo se entrevecirc a obsessatildeo por uma verdade histoacuterica (historiograacutefica) pois a verdade miacutetica natildeo permanece verdade quando se lhe retira o ldquoveacuteurdquo da persuasatildeo Persuasatildeo aqui denota a vivecircncia que se disponibiliza nas imagens miacuteticas isto eacute na interpretaccedilatildeo de mundo que ldquoco-moverdquo na emergecircncia histoacuterica Essa histoacuteria natildeo diz um esgotamento unilateral em detrimento de outros pontos oacuteticos mas sim a dinacircmica produtiva (ldquopoieacutesisrdquo) do acontecer que estaacute sempre em uma perspectiva contextual Uma verdade ldquoem sirdquo soaria despropositada agrave vivecircncia miacutetica Escreve Nietzsche ldquoa retoacuterica surge num povo que vive ainda em imagens miacuteticas e que ainda natildeo conhece a necessidade incondicionada da confianccedila na histoacuteria prefere ser persuadido a ser ensinadordquo (NIETZSCHE 1995 p27) A cultura miacutetica dos gregos adquire ramificaccedilotildees nomeadamente retoacutericas primeiramente no acircmbito da argumentaccedilatildeo juriacutedica outras possibilidades no que tange agrave expressatildeo da forccedila persuasiva se desdobram neste periacuteodo da ldquopoacutelisrdquo A partir daiacute a formaccedilatildeo do homem grego (ldquopaideiardquo) cresce simultaneamente agrave sua educaccedilatildeo retoacuterica A articulaccedilatildeo do discurso adquire novos patamares com a efervescecircncia poliacutetica que se desdobra apoacutes e durante a eacutepoca de Peacutericles (seacutec V aC) inclua-se aiacute as trageacutedias e os sofistas A abertura histoacuterica que se entreabre na ldquoaacutegorardquo fomenta a possibilidade de enaltecimento tambeacutem do indiviacuteduo (prerrogativa adquirida mediante a devida educaccedilatildeo retoacuterica) algo que natildeo retira necessariamente a

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homogeneidade do cultivo grego pois ldquoa devoccedilatildeo agrave oratoacuteria eacute o elemento mais tenaz da cultura grega e persiste atraveacutes de todo o decliacutenio destardquo (NIETZSCHE 1995 p79) Para Nietzsche o proacutelogo deste decliacutenio se daacute mediante a ascensatildeo do socratismo Agrave definiccedilatildeo da retoacuterica como ldquopeithos episteacutemerdquo (ciecircncia da persuasatildeo) atribuiacuteda aos sofistas Goacutergias e Isoacutecrates escreve Nietzsche que ldquoPlatatildeo vota-lhe um oacutedio imensordquo (NIETZSCHE 1995 p31) ndash nas palavras do proacuteprio Platatildeo (Soacutecrates) ldquoo que chamo de retoacuterica constitui parte de uma certa atividade que nada tem de nobrerdquo (PLATAtildeO 2007 463a p66) Nietzsche estaacute a falar da hierarquia instaurada por Platatildeo entre o ldquorhetorikoacutesrdquo (retoacuterico) e o ldquodidaktikoacutesrdquo (dialeacutetico) A ldquodidaacuteticardquo deste uacuteltimo visa agrave instruccedilatildeo que o homem miacutetico dispensa pois para a dialeacutetica platocircnica a preocupaccedilatildeo natildeo eacute o verossiacutemil (opinativointerpretativo) que vige no mito ou na argumentaccedilatildeo mas sim a verdade4 A ldquodoacutexardquo que expressa toda discursividade retoacuterica visa agrave adesatildeo de um auditoacuterio contextualizado ao passo que a

4 Na Repuacuteblica Platatildeo distingue dois tipos de discurso ldquohaacute duas espeacutecies de literatura uma verdadeira e outra falsardquo (PLATAtildeO 2010 376e p86) Este uacuteltimo corresponde ao mito No Goacutergias eacute possiacutevel evidenciar um paralelo entre ldquofalsidade miacuteticardquo e retoacuterica na passagem em que esta eacute definida como uma habilidade ldquopara produzir uma certa satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (PLATAtildeO 2007 462c p65) sem viacutenculo necessaacuterio para com o verdadeiro Em Fedro exclama Soacutecrates ldquose encontro algueacutem que se me afigura com a aptidatildeo de dirigir a vista para a unidade e a multiplicidade naturais sigo-lhe o rasto como se um deus ele fosse Quem for capaz de semelhante coisa ndash soacute Deus sabe se estou ou natildeo com a razatildeo ndash mas ateacute o presente dou-lhe o nome de dialeacuteticordquo (PLATAtildeO 2011 266c p159) de modo inverso os retoacutericos ldquodizem que natildeo haacute necessidade de levar a coisa tatildeo a seacuterio nem de ir pegar o assunto de muito longe e com tantos rodeios para ser bom orador natildeo haacute necessidade em absoluto de participar da verdade ao estudo da verossimilhanccedila eacute que precisa aplicar-se quem se propotildee falar de acordo com as regras do bem dizerrdquo (272e-273a p177) Temos de um lado a apreensatildeo do verdadeiro e de outro a persuasatildeo pelo verossiacutemil

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supressatildeo deste procedimento argumentativo intenta apoderar-se de princiacutepios inequiacutevocos A forma do discurso miacutetico-argumentativo perde em prestiacutegio pois natildeo visa agrave instruccedilatildeo (do verdadeiro) mas sim a ldquoseduccedilatildeo persuasivardquo Nietzsche expressa a ldquoperspectivardquo da dialeacutetica na seguinte formulaccedilatildeo

Os mitos dependem da pagkaacutetecirc paidiacutea (divertimento nobre) as composiccedilotildees retoacutericas tal como as composiccedilotildees escritas soacute satildeo fabricadas para agradar A verdade natildeo se expressa nem na forma escrita nem na forma retoacuterica Emprega-se o mito quando a brevidade do tempo impede um ensino cientiacutefico Invocar testemunhas eacute um procedimento (kunstgriff) retoacuterico5 (NIETZSCHE 1995 p32)

Tambeacutem Aristoacuteteles eacute posto como um vieacutes daquele socratismo mantendo a mesma tendecircncia no referencial agrave verdade A retoacuterica eacute tida como ldquodyacutenamisrdquo (potecircncia forccedila capacidade) que estrutura a persuasatildeo segundo o conveniente cabendo-lhe ldquoo universal em cada casordquo definiccedilatildeo esta que exige uma adaptaccedilatildeo ao auditoacuterio Segue-se disto a impossibilidade de um discurso retoacuterico universal pois todo paracircmetro de universalidade retoacuterica se disponibiliza em perspectiva ldquoacidentalmenterdquo A forccedila de tal discurso apresenta-se em seu limiar como uma ldquoendoxardquo6 (opiniatildeo de aceitaccedilatildeo geral) isentando-se por conseguinte de um rigor demonstrativo apodiacutetico

5 Completa Nietzsche dizendo que ldquoos mitos platocircnicos satildeo introduzidos por um apelo a testemunhasrdquo (NIETZSCHE 1995 p36) apoiados contudo em uma cultura filosoacutefica (dialeacutetica)

6 Em Toacutepicos (livro I) Aristoacuteteles configura o raciociacutenio dialeacutetico (ldquodialektikos syllogismosrdquo) diferentemente de Platatildeo sem um rigor epistecircmico ldquoO silogismo dialeacutetico eacute aquele no qual se raciocina a partir de opiniotildees de aceitaccedilatildeo geralrdquo (ARISTOacuteTELES 2010 p348) Estabelecendo assim um viacutenculo entre ldquodialektikeacuterdquo e ldquoendoxardquo

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(ldquoapoacutedeixisrdquo) Cabe agrave ldquoepisteacutemerdquo (a ciecircnciafilosofia enquanto conhecimento do universal) pensar a verdade Escreve Nietzsche ldquoAristoacuteteles diz que uma coisa se trata filosoficamente em funccedilatildeo da verdade dialeticamente em funccedilatildeo da aparecircncia ou do sucesso da opiniatildeo da doacutexa dos outros Poder-se-ia dizer o mesmo da retoacutericardquo (NIETZSCHE 1995 p35) Ao rebaixar a ldquodialektikeacuterdquo potildee Aristoacuteteles em seu lugar a ldquoepisteacutemerdquo mantendo a mesma hierarquia para com a retoacuterica No periacuteodo das escolas heleniacutesticas arrefece a exigecircncia por filosofias ldquokataphaacuteticasrdquo de cunho teoreacutetico Com a ascensatildeo do impeacuterio alexandrino satildeo erigidas escolas filosoacuteficas voltadas agrave dimensatildeo ldquopraacuteticardquo do pensar resgatando um vieacutes socraacutetico menos vinculado e mais criacutetico agrave filosofia especulativa (enquadra-se aqui o empenho pela ldquoataraxiacuteardquo assim como pela ldquoepocheacuterdquo dos ceacuteticos) Esse periacuteodo se estende ateacute a eacutepoca do limiar da republica romana na qual a asserccedilatildeo ldquoa retoacuterica eacute republicanardquo atinge o seu apogeu com Ciacutecero Com os romanos a retoacuterica eacute resgatada em seu viacutenculo poliacutetico e ornamentada positivamente na dimensatildeo do ldquoeu leacutegeinrdquo (bem dizer) trazendo uma exigecircncia preciacutepua para com a ldquoformardquo do discurso ndash de modo que o ldquobem pensarrdquo soacute poderia disponibilizar-se no ldquobem dizerrdquo7 Natildeo haacute aqui cisatildeo entre o filoacutesofo e o orador Diz Nietzsche que Ciacutecero ldquonunca concebeu a oposiccedilatildeo entre o verdadeiro filoacutesofo e o oradorrdquo (NIETZSCHE 1995 p38) Isto pode ser evidenciado em suas reflexotildees sobre a velhice ldquoEacute antes para o orador que eu temeria os inconvenientes da velhicerdquo (CIacuteCERO 2002 p26) Os cuidados devotados a esta satildeo

7 A ldquoformardquo natildeo eacute apenas um instrumento insuficiente do ldquoconteuacutedordquo ao contraacuterio o vigor deste se daacute enquanto preocupaccedilatildeo formal (o ldquogosto pela formardquo) ldquoAquele que acha a linguagem interessante em si eacute diferente daquele que nela apenas reconhece o meio (ldquoMediumrdquo) de pensamentos interessantesrdquo (NIETZSCHE 1995 p89)

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antes realizados tendo em vista a sauacutede retoacuterica do orador Ao passo que o acontecer deste uacuteltimo unicamente vem agrave tona como e enquanto exposiccedilatildeo histoacuterica As reflexotildees concernentes agrave histoacuteria neste periacuteodo inicial da obra nietzschiana tomam como referencial alguns apontamentos do pensamento hegeliano (ora criticando-os ora os acolhendo)8 Assim como em Hegel eacute possiacutevel estabelecer um paralelo entre ldquoHistoacuteria da Filosofiardquo e ldquoFilosofia da Histoacuteriardquo9 parece-nos possiacutevel traccedilar aqui uma muacutetua configuraccedilatildeo entre ldquoHistoacuteria da Retoacutericardquo e ldquoRetoacuterica da Histoacuteriardquo A retoacuterica se constitui nos trilhos da dinacircmica histoacuterica e a histoacuteria enquanto percurso que cultiva compreensotildees diz um procedimento retoacuterico ldquoa redaccedilatildeo retorisante da histoacuteriardquo (NIETZSCHE 1995 p39) Segue-se disto que agrave degenerescecircncia histoacuterico-cultural acompanha outrossim o proceder pejorativo para com a discursividade retoacuterica O apogeu deste decliacutenio

8 Em Ecce Homo (autobiografia escrita em 1888 no final de seu periacuteodo produtivo) o proacuteprio Nietzsche reconhece tal influecircncia em sua primeira obra O Nascimento da Trageacutedia (1872) ao dizer que ela ldquotem cheiro indecorosamente hegelianordquo (NIETZSCHE 2011b NT1 p59) Assim como na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva (1874) no capiacutetulo oitavo onde reflete a ldquoinfluecircncia desta filosofia a filosofia hegelianardquo (NIETZSCHE 2003 sect8 p72) Considerando que os textos contidos em Da Retoacuterica foram escritos neste periacuteodo germinal parece-nos importante apontar alguns paralelos entre Nietzsche e Hegel (estes seratildeo dispostos preponderantemente em notas explicativas)

9 Escreve Hegel ldquoEacute importante aqui revelar sobretudo a relaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia com a proacutepria ciecircncia da filosofia A histoacuteria da filosofia natildeo tem por conteuacutedo acontecimentos e ocorrecircncias exteriores mas eacute o desdobramento do conteuacutedo da proacutepria filosofia tal como aparece no campo da histoacuteria Mostrar-se-aacute a este respeito que a histoacuteria da filosofia estaacute em consonacircncia mais ainda coincide com a proacutepria ciecircncia da filosofiardquo (HEGEL 2012 p73)

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adquire expressatildeo na exigecircncia por ldquocientificidaderdquo (ldquoWissenschaftlichkeitrdquo) moderna10 3 O esforccedilo moderno e a criacutetica retoacuterica A histoacuteria do pensamento se caracteriza por muacuteltiplas viradas Com a derrocada do Impeacuterio Romano do

10 Apesar da preciacutepua ocupaccedilatildeo da filosofia hegeliana para com a sistematicidade filosoacutefica do absoluto nela a histoacuteria se estrutura como o proceder das concepccedilotildees ie como momentos de composiccedilatildeo da autoconsciecircncia Daiacute pensarmos a exigecircncia da produccedilatildeo histoacuterica da consciecircncia para consigo proacutepria procedimento este que disponibiliza compreensotildees de cunho ldquoperspectiviacutesticordquo mesmo que realizando a unidade de si reconciliando-se As inferecircncias histoacutericas ditam a si proacutepria a multiplicidade de sua unidade Com Hegel natildeo obstante a sua ldquoinspiraccedilatildeordquo moderna comeccedila a ldquorazatildeo histoacutericardquo desdobrada mediante criacuteticas aos seus predecessores modernos Diz Hegel ldquoDeve admitir-se como legiacutetima a exigecircncia de que uma histoacuteria ndash seja qual for o seu objetivo ndash narre os fatos sem parcialidade sem que por meio dela prevaleccedila um interesse ou fim particular Mas com o lugar comum de semelhante exigecircncia poreacutem natildeo se vai muito longe De fato a histoacuteria de um objeto estaacute intimamente conexa com a concepccedilatildeo que dele se faz Segundo tal concepccedilatildeo determina-se jaacute o que se considera importante e conveniente para o fim e a relaccedilatildeo entre o acontecido e o mesmo fim suscita uma seleccedilatildeo dos fatos que se devem narrar uma maneira de os compreender pontos de vista sob os quais se englobemrdquo (HEGEL 2012 p14) O acontecer histoacuterico expressa uma patente contradiccedilatildeo e neste sentido ela se assemelha agrave proacutepria retoacuterica sobre a qual diz Nietzsche ldquotem de se estar habituado a suportar as opiniotildees e os pontos de vista mais alheios e mesmo sentir um certo prazer na contradiccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1995 p27-8) Todavia a consideraccedilatildeo histoacuterica de Hegel natildeo depotildee a assunccedilatildeo da filosofia perante a retoacuterica ldquoA filosofia eacute a ciecircncia dos pensamentos necessaacuterios cuja essencial conexatildeo e sistema eacute o conhecimento do que eacute verdadeiro e portanto eterno e impereciacutevelrdquo (HEGEL 2012 p 25) A sistematicidade do absoluto visa a ldquoplena luminosidaderdquo mesmo em sua configuraccedilatildeo histoacuterica (ldquoensombrecidardquo) O que distingue Hegel e Nietzsche eacute o fundo teleoloacutegico que encontramos no primeiro e a natildeo persistecircncia de uma unidade substancial que conduz a dinacircmica histoacuterica no segundo Hegel potildee a filosofia como ciecircncia e Nietzsche a potildee como retoacuterica

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Ocidente e a deferecircncia para com o cristianismo se instaura gradativamente um novo modelo para o trabalho filosoacutefico modelo este que resgata o mesmo impulso socraacuteticoplatocircnico pela verdade A consequecircncia disso eacute o desprestigio para com a retoacuterica A discursividade dogmaacutetica do medievo expressa um momento da retoacuterica esquecida de si proacutepria devendo tal esquecimento agrave ausecircncia de uma meditaccedilatildeo em torno da linguagem A linguagem aqui se esquece de sua origem interpretativa (ldquometafoacutericardquo) e por conseguinte de sua ldquoraizrdquo retoacuterica Para adentrarmos na criacutetica nietzschiana agrave tradiccedilatildeo do pensamento no Ocidente (criacutetica retoacuterica por excelecircncia) eacute necessaacuterio que faccedilamos um breve incurso nos pilares do pensamento moderno

Difundiu-se largamente o veredito de que a modernidade fomentou uma espeacutecie de ldquocisatildeordquo para com a filosofia escolaacutestica precedente Poreacutem em que sentido sustentar tal asserccedilatildeo Dito suscintamente no sentido de decorrecircncia nesta eacutepoca moderna de uma trepidaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao tradicional impulso para o trabalho filosoacutefico O ldquoponto de partidardquo (ldquotoposrdquo) de toda a investigaccedilatildeo especulativa sofre uma severa modificaccedilatildeo O raciociacutenio eacute simples antes de qualquer inferecircncia que legitime a realidade objetiva de algo urge uma anaacutelise da legitimidade cognitiva daquele que infere acerca dos objetos Natildeo mais principiar das realidades objetivas como ldquodadasrdquo em si mesmas mas sim das condiccedilotildees e paracircmetros mediante os quais torna-se possiacutevel o conhecer Quais satildeo as implicaccedilotildees dessa virada Em primeiro lugar (diferentemente do que poderia advir de leituras apressadas) os problemas centrais no medievo tais como Deus alma e liberdade natildeo satildeo peremptoriamente descartados O que dela decorre eacute apenas uma ldquoprecauccedilatildeordquo atinente ao ldquoponto de partidardquo mais resoluto mediante o qual se desdobre a possibilidade de atingir um conhecimento seguro Os sustentaacuteculos teoloacutegicos da

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filosofia medieval cedem sua autoridade agrave desembocadura epistemoloacutegica Em segundo lugar tem-se o iniacutecio para o movimento cognitivo natildeo no objeto poreacutem no ldquosujeitordquo inquiridor

A inspiraccedilatildeo deste projeto intelectual adota a filosofia cartesiana como eixo tomando-a criticamente ou seguindo-lhe os passos pois todos os pensadores modernos foram seus leitores Descartes inicia seu pensamento a partir da duacutevida hiperboacutelica (ldquodoute hyperboliquerdquo) para chegar agrave constataccedilatildeo de que de tudo eacute possiacutevel duvidar agrave exclusatildeo de que aquele que estaacute a duvidar duvida e com isto inicia-se toda a filosofia do sujeito A certeza (ldquocertituderdquo) da qual se pode partir isto eacute o princiacutepio desta forma de pensar eacute o sujeito pensante o ldquoEurdquo (ldquoego cogitordquo) Escreve Descartes no Discurso do Meacutetodo

Notando que esta verdade eu penso logo existo era tatildeo firme e tatildeo certa que todas as mais extravagantes suposiccedilotildees dos ceacuteticos natildeo seriam capazes de abalar julguei que podia aceita-la sem escruacutepulo como o primeiro princiacutepio da filosofia que procurava (DESCARTES 1991 p46)

A filosofia cartesiana acende a idiossincrasia moderna a saber a ldquoexigecircncia de cientificidaderdquo que por sua vez passa a operar em toda a filosofia posterior Como testemunho temos a evidecircncia desta exigecircncia jaacute nas primeiras linhas do prefaacutecio agrave segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura quando Kant expotildee o objetivo da obra a saber averiguar ldquose a elaboraccedilatildeo dos conhecimentos que pertencem ao ofiacutecio da razatildeo estaacute ou natildeo no caminho seguro de uma ciecircnciardquo (KANT 2013 p25) Natildeo obstante as muacuteltiplas perspectivas filosoacuteficas desenvolvidas nesse periacuteodo este seria o espiacuterito coevo entre os modernos Um dos elementos que salta agrave reflexatildeo diz respeito agrave estiliacutestica do discurso A estiliacutestica oral (ldquopoder-

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discorrerrdquo) do mundo helecircnico eacute sobreposta pela estiliacutestica escrita (ldquosaber-escreverrdquo) do homem moderno A escrita que se efetiva sem a inspiraccedilatildeo sonora perde o caraacuteter efecircmero do dizer agrave medida que almeja cristalizaacute-lo ndash a oralidade (ou ldquovivacidaderdquo) que se faz presente nos textos antigos entra em ocaso Isto se deve ao descaso do espiacuterito moderno para com uma educaccedilatildeo retoacuterica ldquoNo fundo a educaccedilatildeo superior lsquoclaacutessicarsquo de hoje guarda ainda uma boa parte desta concepccedilatildeo antiga exceto que natildeo se propotildee como fim o discurso oral mas antes a sua imagem enfraquecida o saber-escreverrdquo (NIETZSCHE 1995 p80)

11 A inspiraccedilatildeo oral exibe a forccedila retoacuterica de sua histoacuteria perdecirc-la pressupotildee um esforccedilo que visa isentar a razatildeo da histoacuteria (e da retoacuterica)

Esta transfiguraccedilatildeo axioloacutegica do ldquodizerrdquo reflete o projeto cientificista de educaccedilatildeo cujo escopo reside na exatidatildeo discursiva independentemente de sua vigecircncia histoacuterica A rigidez da expressatildeo escrita eacute accedilatildeo de caacutelculo ie intenta assegurar paracircmetros de rigor natildeo controversos antes (e fora) de todo acontecer O ldquoEurdquo enquanto agente preacutevio e propiciador de toda atividade eacute posto como fundo (ldquoGrundrdquo) mediante o qual o real eacute organizado e lapidado A seriedade cientiacutefica como consequecircncia desta crenccedila na razatildeo almeja isentar a sua linguagem do ldquojogordquo que constitui a histoacuteria e a retoacuterica diferentemente dos gregos anteriores agrave ascensatildeo do

11 Em Aleacutem do bem e do mal Nietzsche exemplifica o arrefecimento do influxo oral na figura da cultura alematilde tomando-a como sintoma da estiliacutestica moderna do discurso ldquoO alematildeo natildeo lecirc em voz alta natildeo lecirc para os ouvidos mas apenas com os olhos ao fazecirc-lo potildee os ouvidos na gaveta O homem da Antiguidade quando lia ndash acontecia raramente ndash lia em voz alta tambeacutem para si mesmo as pessoas admiravam-se quando algueacutem lia baixo e secretamente perguntavam-se pelo motivo Em voz alta ou seja com todos os crescendos inflexotildees mudanccedilas de tom e variaccedilotildees de ritmo com que o mundo puacuteblico da Antiguidade se rejubilavardquo (NIETZSCHE 2012b sect247 p140)

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socratismo ldquoEra assim que se caracterizava a especificidade da vida helecircnica todas as atividades do entendimento da seriedade da vida da necessidade e mesmo do perigo satildeo concebidas como um jogordquo (NIETZSCHE 1995 p28-9) O jogo produz e exige daqueles que o cultivam uma atenccedilatildeo para com o seu desdobrar requer portanto uma obediecircncia (ldquoGehorsamrdquo)12 Obediecircncia para com o ldquodizerrdquo da proacutepria vida enquanto jogo que indica uma ldquopossibilidaderdquo de ser um ldquodestinordquo a ser cultivado O jogo se faz jogo enquanto atividadehistoacuteria sendo-lhe o ldquoEurdquo epiacutegono realizando-se no jogo e natildeo como causa do jogar Considerando que todo jogo se desdobra mediante uma linguagem entatildeo seria propiacutecio dizer que eacute a linguagem que constitui a ldquoconsciecircnciardquo e natildeo o contraacuterio Diz Nietzsche ldquoA linguagem natildeo eacute uma produccedilatildeo (Werk) consciente individual ou coletiva Todo o pensamento consciente soacute eacute possiacutevel com a ajuda da linguagemrdquo (NIETZSCHE 1995 p92) Haveria contudo uma linguagem que natildeo estivesse entrelaccedilada com a histoacuteria o jogo e a retoacuterica Em outros termos caberia agrave linguagem discursos apodiacuteticos Responde Nietzsche ldquoNatildeo existe de maneira nenhuma a lsquonaturalidadersquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual se pudesse apelar a linguagem ela mesma eacute o resultado de artes puramente retoacutericasrdquo (p44-5) Com esta reestruturaccedilatildeo criacutetica da retoacuterica a compreensatildeo de ldquosubjetividaderdquo enquanto estabelecimento preacutevio e a-histoacuterico declina Ela natildeo pode ser um ancoradouro metafiacutesico pois representa em uacuteltima instacircncia um ldquotoposrdquo um lugar (compreensatildeo) a partir do qual se estrutura um raciociacutenio A exigecircncia por certezas uacuteltimas se esvai quando todo o acircmbito do discurso eacute posto como desvelamento possiacutevel ndash vigecircncia interpretativa que se mostra ndash logo sem paracircmetros de universalidade ou

12 Em alematildeo a palavra ldquoGehorsamrdquo remete ao verbo ldquohoumlrenrdquo (ouvir) daiacute o viacutenculo para com a oralidade

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necessidade (como quer o rigor cientificista) De modo que ldquoa essecircncia plena das coisas nunca eacute apreendidardquo (NIETZSCHE 1995 p45) Tal ldquoessecircnciardquo natildeo diz respeito ao trabalho linguiacutestico O discurso moderno representa um vieacutes retoacuterico que natildeo se sabe enquanto tal Toda linguagem estaacute circunscrita agrave ldquodoacutexardquo Controversa (ldquodubiumrdquo) por base 4 ldquoPathosrdquo e ldquoEnganordquo Dedicamo-nos ateacute aqui agrave compreensatildeo da linguagem como uma atividade resultante da retoacuterica ocupando-se preponderantemente com a persuasatildeo e a interpretaccedilatildeo logo sem compromissos de cunho metafiacutesico a-histoacuterico Na criacutetica agrave modernidade tentamos expor por conseguinte o fracasso desta em isentar-se da racionalidade histoacuterica Nesse quadro criacutetico poder-se-ia apontar a diacutevida de Nietzsche para com a filosofia de Hegel agrave medida que esta inaugura a razatildeo histoacuterica A disposiccedilatildeo da consciecircncia (ou autoconsciecircncia) se daacute como e enquanto realizaccedilatildeo histoacuterica de modo a solicitar do pensador uma profunda anaacutelise dos desdobramentos do pensar e de sua tradiccedilatildeo Encontramos na seguinte passagem uma suacutemula desta reflexatildeo

A posse da racionalidade autoconsciente que nos pertence a noacutes e ao mundo atual natildeo surgiu imediatamente e despontou apenas do solo da atualidade mas eacute-lhe essencial ser uma heranccedila e de um modo mais definido o resultado do trabalho e decerto do trabalho de todas as geraccedilotildees passadas do gecircnero humano Assim como as artes da vida exterior a quantidade de meios e habilidades as instituiccedilotildees e haacutebitos da coexistecircncia social e poliacutetica satildeo um resultado da reflexatildeo da invenccedilatildeo e do infortuacutenio da vontade e realizaccedilatildeo da histoacuteria (HEGEL 2012 p18-9)

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Na medida em que a histoacuteria eacute posta como a dinacircmica que exprime sentidos e formas de vida possiacuteveis poder-se-ia perguntar agora acerca da fonte para o interpretar a ldquodoxardquo que vige na linguagem opina acerca do quecirc O ldquoprojeto homemrdquo que vingou na modernidade agrave medida que buscou a suficiecircncia da razatildeo almejou tambeacutem a supressatildeo de uma possiacutevel reatividade insuficiente da mesma ndash o ldquoEurdquo enquanto condiccedilatildeo estruturante do mundo (agente) natildeo poderia ser consequecircncia de um afeto de um ldquopathosrdquo Nietzsche anexa agrave criacutetica retoacuterica aleacutem do problema histoacuterico a submissatildeo da razatildeo perante os afetos ldquoa linguagem natildeo apreende coisas ou processos mas excitaccedilotildees (ldquoReiserdquo) natildeo restitui sensaccedilotildees (ldquoEmpfindungrdquo) mas somente coacutepias (ldquoAbbildungrdquo) das sensaccedilotildeesrdquo (NIETZSCHE 1995 p45) A linguagem interpreta afetos sensaccedilotildees Daiacute que no desvelamento linguiacutestico nunca haacute nada aleacutem de coacutepias e figuras possiacuteveis das sensaccedilotildees que assolam o homem13 Temos com isto um movimento artiacutestico por excelecircncia Poder-se-ia dizer ainda que a arte enquanto accedilatildeo de ldquodoacutexardquo agrave medida que natildeo visa cristalizaccedilotildees corresponde agravequele prazer na contradiccedilatildeo (nota 6) de modo a reconhecer e ansiar pelo ldquoenganordquo A avidez por uma arte ldquoobjetivardquo seria desmesura (ldquohybrisrdquo) para consigo proacutepria pois toda arte do discurso eacute retoacuterica Escreve Nietzsche ldquoDiferenccedila capital arte leal e desleal A chamada arte objetiva eacute a mais das vezes uma arte desleal Tambeacutem a

13 Em Aleacutem do bem e do mal Nietzsche nos oferece um testemunho semelhante ldquoQuais os grupos de sensaccedilotildees que dentro de uma alma despertam mais rapidamente tomam a palavra datildeo as ordens isso decide a hierarquia inteira de seus valores determina por fim a sua taacutebua de bens As valoraccedilotildees de uma pessoa denunciam algo da estrutura de sua alma e aquilo em que ela vecirc suas condiccedilotildees de vida sua autecircntica necessidaderdquo (NIETZSCHE 2012b sect268 p166) Entenda-se alma (ldquoSeelerdquo) como a dimensatildeo plural das relaccedilotildees afetivas ie como um jogo de interesses perspectiviacutesticos

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retoacuterica eacute mais leal porque reconhece que visa enganarrdquo (NIETZSCHE 1995 p97) Engano natildeo comporta aqui um sentido moral antes expressa uma criacutetica aos discursos com pretensotildees apodiacuteticas O dizer que ao dizer natildeo esgota o que diz natildeo diz certezas seu empenho natildeo eacute epistecircmico mas sim ldquoopinativordquo ldquoa linguagem eacute retoacuterica porque apenas quer transmitir uma doacutexa e natildeo uma episteacutemerdquo (NIETZSCHE 1995 p46) 5 ldquoTroposrdquo e ldquoUsusrdquo Poder-se-ia agora suscitar o ldquocomordquo e o ldquopara querdquo procede a linguagem Ela natildeo poderia proceder senatildeo como e para a linguagem ie como figuras do discurso (ldquotroposrdquo) e para um uso (ldquoususrdquo) As figuras retoacutericas interpretam afetos daiacute a compreensatildeo do discurso como figuraccedilatildeo pois todo sentido possiacutevel para o viver do homem eacute disponibilizado mediante artifiacutecios retoacutericos A arte retoacuterica ocupa-se com os valores e definiccedilotildees agrave medida que estes satildeo inseridos em uma vivecircncia histoacuterica Nietzsche compreende este trabalho artiacutestico como ldquodesignaccedilotildees improacutepriasrdquo e isto por serem ldquoenganosasrdquo ldquoEntre os mais importantes artifiacutecios da retoacuterica contam-se os tropos as designaccedilotildees improacuteprias Mas todas as palavras satildeo em si e desde o comeccedilo quanto agrave sua designaccedilatildeo troposrdquo (NIETZSCHE 1995 p46) Uma das maiores dificuldades que se nos apresenta quando adentramos nas reflexotildees de Nietzsche corresponde aos jogos para com os sentidos que determinadas palavras adquiriram no decurso da histoacuteria do pensamento Este artifiacutecio atesta o viacutenculo indissociaacutevel entre forma e conteuacutedo filosoacutefico (influecircncia de Ciacutecero jaacute

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presente entre os gregos14) Toda a suposta oposiccedilatildeo entre razatildeo e afeto apoditicidade e ldquodoacutexardquo verdade e engano apontam tatildeo soacute para a radicalidade transfiguradora da arte retoacuterica A figuraccedilatildeo do discurso natildeo comporta assim embasamento moral (dualista a-histoacuterico) mas sim artiacutestico Natildeo haveria outra forma de fazer valer um sentido senatildeo ldquopoeticamenterdquoldquometaforicamenterdquo ou seja criando a si proacutepria sem necessidades uacuteltimas Nietzsche contrapotildee o artista ao filoacutesofo agrave medida que este hostiliza a forccedila plaacutestica da arte

O prazer do belo discurso daacute-se o seu proacuteprio domiacutenio onde natildeo tem a ver com a necessidade O povo de artistas procura a sua respiraccedilatildeo quer fazer do discurso algo de verdadeiramente bem (etwas recht Gutes) Mas os filoacutesofos natildeo tiveram nenhum sentido para isso (natildeo perceberam praticamente nada da arte cuja vida vibra em torno deles como natildeo percebem da plaacutestica) o que produz uma violenta e inuacutetil hostilidade (NIETZSCHE 1995 p82)

Arte eacute figuraccedilatildeo e o mundo adquire sentido

figurativamente daiacute todo discurso ser figurado ldquotroposrdquo Em uacuteltima instacircncia estamos a dizer que ldquotudo eacute metaacuteforardquo A mais profunda abstraccedilatildeo filosoacutefica repousa ainda em figuraccedilotildees e natildeo em essecircncias ldquoOs abstrata provocam a ilusatildeo de que satildeo a essecircncia quer dizer a causa das propriedades quando eacute apenas na sequecircncia dessas propriedades que lhes atribuiacutemos uma existecircncia figuradardquo

14 Tal como expressa esta passagem de A Gaia Ciecircncia ldquoOh esses gregos Eles entendiam do viver Para isto eacute necessaacuterio permanecer valentemente na superfiacutecie na dobra na pele adorar a aparecircncia acreditar em formas em tons em palavras em todo Olimpo da aparecircncia Esses gregos eram superficiais ndash por profundidaderdquo (NIETZSCHE 2012a Pr sect4 p15)

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(NIETZSCHE 1995 p77) Estamos circunscritos agrave dimensatildeo do dizer logo jamais tocamos o ldquoinauditordquo15 Vislumbre sequer nos eacute disponibilizado para aleacutem da ldquodoacutexardquo De modo que a persuasatildeo mais fecunda mediante a linguagem natildeo ultrapassa a atividade retoacuterica O esquecimento desta atividade que convence por metaacuteforas fomenta a exigecircncia pelo inequiacutevoco e necessaacuterio16 A Coisa mesma (ldquodie Sache selbstrdquo) como diz Hegel eacute para Nietzsche seguindo os passos de Ciacutecero uma metaacutefora ldquoAs metaacuteforas satildeo de algum modo bens de empreacutestimo que se vatildeo buscar algures porque se natildeo tem a proacutepria coisardquo (p70)

De onde brotam entretanto esses referidos ldquobens de empreacutestimordquo Brotam da proacutepria linguagem enquanto dimensatildeo interpretativa dos afetos Escreve Nietzsche ldquoA linguagem nunca exprime nada na sua integridade mas exibe somente uma marca que lhe parece salienterdquo (NIETZSCHE 1995 p46) Essa marca (ldquoMerkmalrdquo) refere-se agrave vivecircncia da proacutepria linguagem agrave medida que se vincula ao viver histoacuterico do homem ie agrave dinacircmica dos afetos17 Embora natildeo exprima o ldquoserrdquo da coisa a linguagem

15 Em uma das conferecircncias intituladas A essecircncia da linguagem diz Heidegger ldquoUm lsquoeacutersquo se daacute onde se interrompe a palavrardquo (HEIDEGGER 2008 p171)

16 Em Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral obra da juventude encontramos o mesmo testemunho ldquoO que eacute portanto a verdade Uma multidatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias e antropomorfismos em resumo uma soma de relaccedilotildees humanas que foram realccediladas transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retoacuterica e que depois de um longo uso pareceram estaacuteveis canocircnicas e obrigatoacuterias aos olhos de um povo as verdades satildeo ilusotildees das quais se esqueceu que satildeo metaacuteforas gastas que perderam a sua forccedila sensiacutevel moeda que perdeu sua efiacutegie e que natildeo eacute considerada mais como tal mas apenas como metalrdquo (NIETZSCHE 2008 p4-5)

17 Nietzsche salienta e justifica a oralidade no mundo antigo como interpretaccedilatildeo dos afetos agrave medida que a vincula com a muacutesica ldquoA linguagem eacute feita de sons como a muacutesicardquo (NIETZSCHE 1995 p87) Muacutesica eacute aqui entendida como a dimensatildeo do ldquopathosrdquo ie do

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vive em comunhatildeo com o proacuteprio aparecer humano O ldquopara querdquo da linguagem recai por conseguinte na questatildeo do ldquoususrdquo 18

Uma cultura embevecida de si proacutepria com a dos helenos assim sentia-se devido agrave uniatildeo entre viver e dizer Todo aquele que natildeo estivesse inserido nessa experiecircncia grega era tido como baacuterbaro19 De modo que a vivecircncia miacutetica se dava com o ldquousordquo daquela uniatildeo Quem porventura natildeo se adequasse agraves marcas com que aquela uniatildeo era vivida usada incorreria em barbarismo em ldquoerrordquo Diz Nietzsche ldquoUma figura que natildeo encontre quem a aceite torna-se um erro Um erro retomado por um usus torna-se uma figurardquo (NIETZSCHE 1995 p48) Natildeo se estaacute a dizer contudo que o ldquousordquo grego eacute um ldquoacertordquo

sentimento e da atividade que ldquosofrerdquo o homem ldquoPodemos quase afirmar que eram menos liacutenguas de palavras do que liacutenguas de sentimentos em todo caso os sentimentos formavam as sonoridades e as palavras em cada povo segundo a sua individualidade o movimento (wallen) do sentimento trazia o ritmo Pouco a pouco a liacutengua separou-se da liacutengua das sonoridades (Tonsprache)rdquo (p86) A perda dessa dimensatildeo se daacute em crescente alavancada na modernidade agrave medida que tambeacutem a retoacuterica entra em decliacutenio

18 O ldquouso da linguagemrdquo problematiza a questatildeo da compreensatildeo ou ainda mais a da vivecircncia afetiva seja no acircmbito mais amplo das relaccedilotildees humanas (comunidades povos etc) ou mesmo em uma mais reduzida ou intimista (mais raras pessoais) Tal reflexatildeo eacute desenvolvida nas obras posteriores do filoacutesofo tal como consta nesta passagem de Aleacutem do bem e do mal ldquoPalavras satildeo sinais sonoros para conceitos mas conceitos satildeo sinais-imagens mais ou menos determinados para sensaccedilotildees recorrentes e associadas para grupos de sensaccedilotildees Natildeo basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos uns aos outros eacute preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espeacutecie de vivecircncias interiores eacute preciso enfim ter a experiecircncia em comum com o outrordquo (NIETZSCHE 2012b sect268 p165)

19 Esta experiecircncia representa a necessidade e autenticidade discursiva da vida entre os gregos ldquono conjunto os Gregos sentiam-se como os homens do discurso em oposiccedilatildeo aos aacuteglocircssoi (baacuterbaros) os natildeo-Gregosrdquo (NIETZSCHE 1995 p81)

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em sentido estrito mas que eacute um acerto (uma figuraccedilatildeo artiacutestica) agrave medida que uma interpretaccedilatildeo possiacutevel (metafoacuterica ldquoenganosardquo) eacute aderida e propicia uma experiecircncia comum de vida de histoacuteria20 A prerrogativa dos gregos se encontra na lucidez com que a vida entregou-se agrave linguagem e o ldquousordquo que enalteceu-se a ponto de inaugurar e cultivar artisticamente a linguagem O esplendor da antiguidade deve-se ao desvelamento retoacuterico que se deu sobre a proacutepria retoacuterica

Para Nietzsche a ldquopenuacuteriardquo e espanto inicial perante a insondabilidade com que o mundo continuamente se apresenta ao homem converte-se em ornamento mediante um ldquousordquo possiacutevel daquela uniatildeo Na esteira de Ciacutecero diz Nietzsche ldquoque o modo do discurso metafoacuterico nasceu da necessidade sob pressatildeo da indigecircncia e da perplexidade mas que depois foi seguida pela sua agradabilidaderdquo (NIETZSCHE 1995 p70) ndash A ldquonecessidaderdquo de uma interpretaccedilatildeo possiacutevel que faculte a vida entre homens21 Uma cultura se caracteriza por

20 Wittgenstein nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas ao tratar a linguagem como atividade que se disponibiliza no uso expressa algo semelhante ldquoQuando os filoacutesofos usam uma palavra ndash lsquosaberrsquo lsquoserrsquo lsquoobjetorsquo lsquoeursquo lsquoproposiccedilatildeorsquo lsquonomersquo ndash e almejam apreender a essecircncia da coisa devem sempre se perguntar esta palavra eacute realmente sempre usada assim na linguagem na qual tem o seu torratildeo natal ndash Noacutes conduzimos as palavras do seu emprego metafiacutesico de volta ao seu emprego cotidianordquo (WITTGENSTEIN 2009 sect116 p72)

21 Em todo caso uma questatildeo de valor ldquocomeacuterciordquo Escreve Nietzsche ldquoTodo o comeacutercio entre os homens consiste no seguinte que cada um deles possa ler na alma do outro e a liacutengua comum eacute a expressatildeo sonora de uma alma comum Quanto mais este comeacutercio for iacutentimo e sensiacutevel mais a liacutengua seraacute rica porque ela cresce e decai com essa alma coletiva Falar eacute no fundo a questatildeo que eu ponho ao meu semelhante para saber se ele tem a mesma alma que eu as mais antigas proposiccedilotildees parecem-me ter sido proposiccedilotildees interrogativasrdquo (NIETZSCHE 1995 p99)

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conseguinte como vigecircncia de ldquotroposrdquo Natildeo apenas uma cultura mas todo e qualquer ldquoauditoacuteriordquo

Em uacuteltima instacircncia um paracircmetro de ldquoagradabilidaderdquo requer uma adaptaccedilatildeo a um auditoacuterio ao ldquousordquo que neste vigora Falar corretamente natildeo eacute uma exigecircncia estritamente gramatical pois esta natildeo comporta vigor algum caso a desvinculemos de uma necessidade contextual ndash ldquoo baacuterbaro natildeo fala bem porque natildeo eacute gregordquo isto se daacute agrave medida que esta eacute uma asserccedilatildeo de um auditoacuterio grego Tem-se de considerar os ldquoseguintes criteacuterios para quem e diante de quem se fala em que momento em que lugar sobre que assuntordquo (NIETZSCHE 1995 p56) Natildeo haacute o incontextualizado O proacuteprio acolhimento de uma suposta incontextualizaccedilatildeo depende de ldquoaprovaccedilatildeordquo logo de uma contextualizaccedilatildeo De modo que a ldquouniversalidade da razatildeordquo mesmo a contragosto estaacute circunscrita a uma ldquohomologizaccedilatildeordquo a uma ldquocolheita comumrdquo (ldquohomolegeinrdquo) ndash como no exemplo dos gregos e baacuterbaros um universal eacute fruto do particular Segue-se disso uma criacutetica agrave proacutepria filosofia agrave medida que esta intenta apoderar-se de um discurso apodiacutetico ie de um ldquoauditoacuterio universalrdquo Natildeo reduzir-se-ia o lastro de toda filosofia agrave perseguiccedilatildeo por este auditoacuterio Tal como escreve Perelman ldquoUma argumentaccedilatildeo dirigida a um auditoacuterio universal deve convencer o leitor do caraacuteter coercivo das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta independente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo (PERELMAN 2005 p35)

Em todo caso ldquoresultado de artes puramente retoacutericasrdquo (NIETZSCHE 1995 p45)

6 Conclusatildeo No percurso aqui traccedilado tentou-se interpretar o modo como a criacutetica retoacuterica de Nietzsche nos serviria para

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pensar a proacutepria tradiccedilatildeo filosoacutefica Esta fora criticada em seu impulso claacutessico pela verdade pela essecircncia Todavia o proacuteprio Nietzsche diz que a retoacuterica eacute a essecircncia da linguagem Como compreender este impasse Heidegger se depara com o mesmo problema ldquoComo devemos questionar a linguagem se nossa relaccedilatildeo com a linguagem eacute confusa e em todo caso indeterminada Como devemos perguntar pela essecircncia se o que se chama essecircncia eacute em si mesmo discutiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2008 p134) Parece que todo empenho ldquokataphaacuteticordquo se mostra frustracircneo Todavia caso olhemos mais atentamente veremos que pensar a retoacuterica como a essecircncia da linguagem eacute uma questatildeo mais interrogativa do que afirmativa Escreve Nietzsche ldquoas mais antigas proposiccedilotildees parecem-me ter sido proposiccedilotildees interrogativasrdquo (NIETZSCHE 1995 p99) A pergunta pela essecircncia agrave medida que estaacute intimamente atada agrave retoacuterica (e agrave histoacuteria) se manteacutem sempre enquanto pergunta por exigir de si proacutepria um percurso uma experiecircncia da linguagem Essecircncia soacute pode ser pensada enquanto linguagem de modo que natildeo haacute essecircncia alguma que natildeo seja articulaccedilatildeo retoacuterica Nos serviria agora Wittgenstein ao dizer que ldquoA essecircncia se expressa na gramaacuteticardquo (WITTGEISNTEIN 2009 sect371 p158) A estrutura metafoacuterica de todo dizer manteacutem um abismo (ldquoAbgrundrdquo) para com asserccedilotildees de cunho ontoloacutegico Ao considerarmos que a retoacuterica natildeo se apoia em fundo (ldquoGrundrdquo) algum resta-nos compreendecirc-la como expressatildeo de abismo persuasatildeo que tem como esteio um interrogar Como bem aponta Heidegger ldquoA essecircncia ndash da linguagem Pelo ponto de interrogaccedilatildeo cai por terra tudo o que no tiacutetulo eacute presunccediloso e banalrdquo (HEIDEGGER 2008 p134) Em determinadas passagens da compilaccedilatildeo eacute possiacutevel detectar influecircncias remanescentes de Kant e Schopenhauer este ainda natildeo eacute o Nietzsche a ldquomarteladasrdquo

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da deacutecada de 1880 Todavia insinuaccedilotildees para esta eacutepoca jaacute se encontram nesses textos ldquojuvenisrdquo De modo que natildeo soaria estranho concluirmos com as palavras de Zaratustra ldquoe onde o ser humano natildeo estaria diante de abismos O proacuteprio ver natildeo eacute ndash ver abismosrdquo (NIETZSCHE 2011 p 149)22 Referecircncias ARISTOacuteTELES Oacuterganon Traduccedilatildeo de Edson Bini Bauru SP

Edipro 2ordf ed 2010 CIacuteCERO Marco Tuacutelio Saber envelhecer e A amizade

Traduccedilatildeo de Paulo Neves Porto Alegre LPampM 2002 DESCARTES Reneacute Discurso do Meacutetodo Traduccedilatildeo de J

Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 5ordf ed Satildeo Paulo Ed Nova Cultural 1991 ndash (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

EMPIacuteRICO Sexto Contra os retoacutericos Traduccedilatildeo de Rafael

Huguenin e Rodrigo Pinto de Brito Satildeo Paulo Editora Unesp 2013

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedette Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 1ordf Ed 2007

HEGEL GW Friedrich Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo Artur Moratildeo RJ Nova Fronteira 2012 HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo

de Marcia Saacute Cavalcante Schuback 4 ed ndash Petroacutepolis RJ Vozes Braganccedila Paulista SP Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco 2008

22 Da visatildeo e do enigma (ldquoVom Gesicht und Raumlthselrdquo) parte 1

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HESIacuteODO Teogonia Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo Paulo Ed Iluminuras 2011

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Traduccedilatildeo de

Fernando Costa Mattos 3ordfed ndash Petroacutepolis RJ Vozes Braganccedila Paulista SP Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco 2013

NIETZSCHE Friedrich Da Retoacuterica Traduccedilatildeo de Tito

Cardoso e Cunha Lisboa Ed Vega 1995 ___________________ Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva da utilidade e desvantagem da histoacuteria para a vida Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003 ndash (Conexotildees 20)

___________________ Sobre a verdade e a mentira no

sentido extramoral Traduccedilatildeo de Noeacuteli Correia de Melo Sobrinho Satildeo Paulo Ed Brasileira 2008

___________________ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo de

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

__________________ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar

de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordfEd Companhia de Bolso 2011b

__________________ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordf Ed Companhia de Bolso 2012a

___________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1ordfEd Companhia de Bolso 2012b

___________________ Saumlmtliche Werke Kritische

Studienausgabe in 15 Baumlnden Muumlnchen Deustscher Taschenbuch Verlag de Gruyter 1999

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PLATAtildeO Goacutergias Traduccedilatildeo de Edson Bini Bauru SP

Edipro 2007 (Diaacutelogos II) __________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da

Rocha Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 12ordf ed 2010

__________ Fedro Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Ed

ufpa Beleacutem 2011 PERELMAN Chaiumlm Tratado da Argumentaccedilatildeo Traduccedilatildeo

de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo 2 ed ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2005

TOULMIN S The Uses of Argument Cambridge University

Press 2008

WITTGENSTEIN Ludwig Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Traduccedilatildeo Marcos G Montagnoli revisatildeo da traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Emmanuel Carneiro Leatildeo 6ordf ed ndash Petroacutepolis Vozes 2009

Pensamento e Vontade como

Vontade de Poder na Filosofia

de Friedrich Nietzsche

Breno Dutra Serafim Soares1

O Surgimento de uma nova concepccedilatildeo de verdade

Haacute um escrito de Nietzsche que data de 1873 denominado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral no qual ele expotildee um conceito de verdade que aponta para o aspecto humano demasiado humano deste conceito Neste escrito Nietzsche escreve o seguinte acerca da verdade

Um exeacutercito moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos numa palavra uma soma de relaccedilotildees humanas que foram realccediladas poeacutetica e retoricamente transpostas e adornadas e que apoacutes uma longa utilizaccedilatildeo parecem a um povo consolidadas canocircnicas e obrigatoacuterias as verdades satildeo ilusotildees das quais se esqueceu que elas assim o satildeo metaacuteforas que se tornaram desgastadas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam seu troquel e agora satildeo levadas em conta apenas como metal e natildeo mais como moedas (VM I p 36)

Verdade e mentira pois devem ser entendidas nesse contexto natildeo mais como descriccedilotildees acuradas das

1 Doutorando em Filosofia pelo programa integrado de doutorado pelas Universidades Federais da Paraiacuteba Rio Grande do Norte e Pernambuco mestre em Filosofia pelo programa de mestrado da Universidade Federal da Paraiacuteba graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraiacuteba Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraiacuteba

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realidades mas como metaacuteforas cujo objetivo eacute facilitar a conservaccedilatildeo da espeacutecie Verdade ldquoeacute antropomoacuterfica de fio a pavio e natildeo conteacutem um uacutenico ponto sequer que fosse lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido deixando de lado o homemrdquo (VM I p 39) Ambas possuem o mesmo valor uma natildeo eacute ontologicamente superior agrave outra porque remete a um estudo do ser A condiccedilatildeo da verdade eacute a mesma da mentira Esta eacute uma forccedila de dissimulaccedilatildeo tanto quanto a verdade ela realiza a funccedilatildeo de manutenccedilatildeo da espeacutecie tatildeo bem quanto a outra Verdade e mentira podem ter um sentido moral mas natildeo extramoral como propotildee o tiacutetulo do escrito este sentido extramoral diz respeito justamente a uma possiacutevel compreensatildeo ontoloacutegica dos termos que eacute veemente negada por Nietzsche Isto porque ambas decorrem de erros de inferecircncias que natildeo tem correspondecircncia alguma com a realidade mas refletem o antropomorfismo do humano que simplifica e abstrai o fluxo perpeacutetuo do vir-a-ser em conceitos ldquotodo conceito surge pela igualaccedilatildeo do natildeo-igualrdquo (VM I p 35) que daacute uma feiccedilatildeo humana agraves coisas Natildeo haacute nada que possa ser denominado igual ou diferente tudo eacute completamente singular e individualizado e o conceito natildeo passa de uma generalizaccedilatildeo arbitraacuteria Estas generalizaccedilotildees arbitraacuterias geram por sua vez as qualidades ocultas com as quais distinguimos as coisas e as pessoas

Nietzsche exemplifica esse pensamento com o conceito de honestidade

Nada sabemos por certo a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse honestidade mas antes do mais de inuacutemeras accedilotildees individualizadas e por conseguinte desiguais que igualamos por omissatildeo do desigual e passamos a designar desta feita como accedilotildees honestas a partir delas formulamos finalmente uma qualitas occulta com o nome honestidade (VM I p 35-36)

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Eacute certo que se trata da percepccedilatildeo de um Nietzsche

relativamente jovem visto que o texto veio agrave tona em 1873 Poreacutem em uma obra mais tardia como Crepuacutesculo dos iacutedolos Nietzsche identifica razatildeo a uma metafiacutesica da linguagem Neste sentido a linguagem eacute proacutepria agrave criaccedilatildeo de iacutedolos porque ela simplifica de forma demasiada processos complexos que se passam no interior do indiviacuteduo Se em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral a linguagem jaacute natildeo representa a realidade de forma adequada em Crepuacutesculo dos iacutedolos ela eacute uma verdadeira criadora de entidades metafiacutesicas Senatildeo vejamos

a linguagem pertence por sua origem agrave eacutepoca da mais rudimentar forma de psicologia penetramos num acircmbito de cru fetichismo ao trazermos agrave consciecircncia os pressupostos baacutesicos da metafiacutesica da linguagem isto eacute da razatildeo (CI III ldquoA lsquorazatildeorsquo na filosofiardquo sect 5ordm p 28)

Nos dois volumes de aforismos que Nietzsche

denomina de Humano demasiado humano 1 e 2 (1878) observamos como uma criacutetica acerca do pensamento tradicional eacute efetuada em prol de um conhecimento traacutegico Este pode ser designado como uma reflexatildeo que procura elidir qualquer grandiloquecircncia por parte do ser humano em tudo que lhe diz respeito Nietzsche nos exorta a perceber como as concepccedilotildees tradicionais da metafiacutesica da religiatildeo e da moral satildeo pautadas por erros da razatildeo Estes por sua vez satildeo identificados a partir de um filosofar histoacuterico e de uma anaacutelise psicoloacutegica do humano O que estaacute em jogo aqui eacute uma confianccedila de que por traacutes das convicccedilotildees humanas haacute uma escolha inconsciente que o processo que nos leva a assumir determinadas posiccedilotildees acerca da vida eacute por demais complexo para ser reduzido a algo da ordem da consciecircncia

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A filosofia histoacuterica seraacute o meacutetodo de investigaccedilatildeo mais utilizado por Nietzsche natildeo somente neste periacuteodo como tambeacutem ao longo de toda sua obra Este meacutetodo teraacute por escopo elidir os preconceitos erigidos pela filosofia metafiacutesica dentre os quais encontramos aquele que Nietzsche vem a denominar como o ldquodefeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo qual seja justamente a falta de sentido histoacuterico (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Esse defeito leva o filoacutesofo a desconsiderar que tudo veio a ser que natildeo existem fatos eternos nem verdades absolutas (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Atraveacutes de seu filosofar histoacuterico Nietzsche trabalha com a ideia de que natildeo haacute um ser humano eterno mas sim um ser humano que veio a ser e que principalmente nos uacuteltimos quatro milecircnios natildeo sofreu grandes alteraccedilotildees em sua constituiccedilatildeo (HDH 1 I sect 2ordm p 16)

Para Nietzsche isso implica em dizer que a faculdade de cogniccedilatildeo natildeo pode ser considerada como estaacutetica mas como algo que veio de um longo processo no qual a linguagem se desenvolveu a partir de simplificaccedilotildees dos eventos ocorridos na natureza Nietzsche assevera que ldquodo periacuteodo dos organismos inferiores o homem herdou a crenccedila de que haacute coisas iguais (soacute a experiecircncia cultivada pela mais alta ciecircncia contradiz essa tese)rdquo (HDH 1 I sect 18 p 28) As crenccedilas no sujeito e no predicado na causalidade no livre-arbiacutetrio e nos postulados baacutesicos da loacutegica satildeo decorrentes de erros de raciociacutenio de generalizaccedilotildees e inferecircncias realizadas a partir de uma tendecircncia encontrada nos organismos inferiores (HDH 1 I sect 18 p 27) O problema segundo a oacutetica de Nietzsche eacute que a metafiacutesica se ocupa de questotildees como a substacircncia a relaccedilatildeo entre sujeito e objeto e a liberdade da vontade como se fossem algo da ordem do eterno e natildeo o resultado de uma longa e lenta evoluccedilatildeo dos organismos vivos Poder-se-ia pensar que o uso do termo ldquoerrordquo nos permite falar em correccedilatildeo e possivelmente em obtenccedilatildeo

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de uma verdade mais acertada acerca dos fenocircmenos Poreacutem isto seria um equiacutevoco porque o vocaacutebulo ldquoerrordquo natildeo eacute utilizado em um contexto epistemoloacutegico mas para expressar justamente a impossibilidade de fazermos uso tanto deste termo quanto do termo ldquoverdaderdquo num sentido objetivo Nietzsche usa o vocaacutebulo ldquoerrordquo (de forma talvez equivocada) para mostrar que todas as verdades natildeo passam de erros porque todas elas satildeo interpretaccedilotildees de tipos de vontade e natildeo descriccedilotildees acuradas do ser Pode-se dizer que a filosofia de Nietzsche estaacute para aleacutem do sentido ontoloacutegico de verdade que nela jaacute natildeo se trabalha com tal noccedilatildeo e que a palavra ldquoerrordquo deve sempre ser entendida como a superaccedilatildeo de tal paradigma Em suma o paradigma da verdade enquanto determinaccedilatildeo do ser jaacute natildeo eacute mais atuante o que opera agora eacute o paradigma do valor no qual todos os conceitos consistem em valores que se impotildeem segundo perspectivas de vida diversas

Eacute justamente a isso que Eugen Fink se refere quando relata que

Ele [Nietzsche] natildeo prova de modo nenhum a veracidade da religiatildeo ou da metafiacutesica para ele esta questatildeo eacute como se jaacute estivesse resolvida quando se mostra que existem tendecircncias vitais por detraacutes da vontade de verdade e que essas tendecircncias natildeo satildeo desinteressadas que visam agrave redenccedilatildeo e outras coisas semelhantes (1983 p 50)

Em Humano demasiado humano a verdade e a mentira

vecircm agrave tona como o resultado de configuraccedilotildees de vontade que necessitam de determinados valores para se sobressair perante as demais A verdade e a mentira natildeo possuem mais um aspecto esteacuteril e espiritual mas vital porque passam a ser consideradas como valores a serem assumidos pelo ser humano Por isso elas devem ser compreendidas em sua historicidade elas natildeo possuem status ontoloacutegico

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mas somente moral porque satildeo uacuteteis enquanto mantenedoras de determinado tipo de vida De agora em diante o pensador deve questionar esse dever para com a verdade objetivamente determinada ele deve investigar ateacute mesmo a obrigaccedilatildeo que temos para com a verdade Isto pode ser conferido a partir da leitura do aforismo ldquoProblema do dever para com a verdaderdquo no qual Nietzsche escreve o seguinte

O pensador vecirc tudo como tendo se tornado e tudo ldquotornadordquo como discutiacutevel eacute portanto o homem sem dever ndash na medida em que eacute apenas pensador Como tal entatildeo ele tambeacutem natildeo reconheceria o dever de enxergar e exprimir a verdade e natildeo teria esse sentimento ele pergunta de onde vem ela para onde pretende ir mas mesmo esse questionar parece questionaacutevel (HDH 2 AS sect 43 p 192)

Nietzsche natildeo nega que a noccedilatildeo de entendimento como concebida por Kant seja verdadeira poreacutem ele afirma que ela se baseia nestes erros da razatildeo e que ldquoa um mundo que natildeo seja nossa representaccedilatildeo as leis dos nuacutemeros satildeo inteiramente inaplicaacuteveis elas valem apenas no mundo dos homensrdquo (HDH 1 I sect 19 p 29) Certamente desde Kant a filosofia se pauta pela concepccedilatildeo de que eacute o intelecto que estabelece as regras a partir das quais podemos entender o mundo e natildeo o contraacuterio Poreacutem Nietzsche vai mais aleacutem nessa criacutetica para o filoacutesofo

aquilo que para noacutes homens se chama vida e experiecircncia gradualmente veio a ser estaacute pleno de vir a ser e por isso natildeo deve ser considerada uma grandeza fixa da qual se pudesse tirar ou rejeitar uma conclusatildeo acerca do criador (a razatildeo suficiente) (HDH 1 I sect 16 p 25)

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A vida natildeo pode ser considerada uma grandeza fixa isto por si soacute impede que elaboremos um juiacutezo acerca dela que natildeo seja injusto Quando pautamos a nossa relaccedilatildeo com a temporalidade fazendo uso de termos como ldquofenocircmenordquo temos uma recusa do vir-a-ser porque a estabilidade ligada ao conceito de fenocircmeno jaacute eacute em si um preconceito sobre a corrente contiacutenua da existecircncia Por isso Nietzsche assevera que ldquode agora em diante o filosofar histoacuterico eacute necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestiardquo (HDH 1 I sect 2ordm p 16) Eacute necessaacuterio que nos livremos do dogmatismo que tambeacutem se configura neste filosofar que desconsidera a histoacuteria e busca uma verdade estanque para todos ldquoeacute preciso livrar-se do mau gosto de querer estar de acordo com muitosrdquo (ABM II sect 43 p 44) Em Humano demasiado humano ao tecer uma consideraccedilatildeo sobre o intelecto humano Nietzsche chega a afirmar que ldquoele apareceu ndash aparece pois ainda vivemos este periacuteodo ndash quando uma extraordinaacuteria longamente acumulada energia da vontade se transferiu excepcionalmente para fins intelectuais mediante a hereditariedaderdquo (HDH 1 V sect 234 p 148) Ou seja jaacute temos uma consideraccedilatildeo incipiente acerca da vontade e de como ela se desloca para outro campo que natildeo o da accedilatildeo para tornar possiacutevel a formaccedilatildeo do intelecto Este tema seraacute futuramente retomado sob a designaccedilatildeo de ldquovontade de verdaderdquo Em Para aleacutem do bem e do mal (1886) Nietzsche nos traraacute uma versatildeo amadurecida do tema ao apontar que nossas convicccedilotildees estatildeo envoltas por uma necessidade de conservaccedilatildeo e expansatildeo da vida portanto seria obtuso perquirirmos acerca de um juiacutezo utilizando termos como verdade e falsidade (ABM I sect 4ordm p 11)

Nesta obra ele expotildee a questatildeo da verdade a partir do problema do valor da verdade ldquoo que em noacutes aspira realmente agrave verdade De fato por longo tempo nos detivemos ante a questatildeo da origem dessa vontade ndash ateacute afinal parar completamente ante uma questatildeo ainda mais fundamental Noacutes questionamos o valor

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dessa vontaderdquo (ABM I sect 1ordm p 9) Jaacute em Humano demasiado humano Nietzsche trabalha com a ideia de que eacute necessaacuterio compreender que toda metafiacutesica ndash assim como os temores das religiotildees ndash eacute positiva para a humanidade e que noacutes avanccedilamos porque acreditamos em seus conceitos Contudo resta ainda perceber que toda metafiacutesica eacute um erro porque como dito acima adveacutem de uma seacuterie de inferecircncias que embora tenham respaldo na natureza satildeo decorrentes de uma simplificaccedilatildeo grosseira realizada pela nossa capacidade de representaccedilatildeo O surgimento de uma teoria do poder em A Gaia Ciecircncia A gaia ciecircncia (1882) eacute a obra de transiccedilatildeo na produccedilatildeo de Nietzsche Trata-se de uma obra dividida em cinco livros dos quais os trecircs primeiros foram escritos por volta de 1882 ao passo que os dois uacuteltimos datam de 1883 a 1886 ou seja foram elaborados num periacuteodo que corresponde ao de Assim falou Zaratustra e Para aleacutem do bem e do mal Por isso essa obra jaacute traz em seu bojo consideraccedilotildees sobre os conceitos de vontade de poder morte de Deus (niilismo) e eterno retorno do mesmo Nela tambeacutem eacute dada continuidade agrave cruzada de Nietzsche contra a moral e a consciecircncia de culpa No proacutelogo da obra que data de 1886 Nietzsche descreve o livro como um ldquodivertimento apoacutes demorada privaccedilatildeo e impotecircncia o juacutebilo da forccedila que retorna da renascida feacute num amanhatilde e no depois de amanhatilderdquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 1ordm p 9)

Ele nos remete aqui a sua condiccedilatildeo pessoal aduz que o momento de feitura da obra refletiu um periacuteodo de convalescenccedila Tendo em vista que para Nietzsche a filosofia de um autor natildeo pode ser dissociada de sua vida ldquotoda grande filosofia foi ateacute o momento a confissatildeo pessoal de seu autorrdquo (ABM I sect 6ordm p 12) natildeo nos parece absurdo que o pensamento que lhe surge sob a pressatildeo da

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doenccedila natildeo lhe seja alheio mas sirva para pocircr agrave prova a sua pessoa enquanto pensador Natildeo eacute por acaso que Nietzsche ainda no proacutelogo escreve o seguinte ldquosabemos agora para onde o corpo doente com a sua necessidade inconscientemente empurra impele atrai o espiacuteritordquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 11) Esta digressatildeo acerca da doenccedila e suas implicaccedilotildees sobre o pensamento pode parecer mera elucubraccedilatildeo mas tem consequecircncias importantes para o pensamento de Nietzsche Como ele mesmo disse a doenccedila potildee a prova seu pensamento permitindo-lhe considerar se em toda a filosofia

que potildee a paz acima da guerra toda eacutetica que apreende negativamente o conceito de felicidade toda metafiacutesica e fiacutesica que conhece um finale um estado final de qualquer espeacutecie todo anseio predominantemente esteacutetico ou religioso por um Aleacutem Ao-lado Acima Fora (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 11)

natildeo foi a doenccedila que inspirou o filoacutesofo Nietzsche vai mais longe nessa consideraccedilatildeo acerca

do papel da doenccedila no pensamento e chega mesmo a afirmar que a fronteira entre o pensar como produto da alma e as necessidades fisioloacutegicas como algo proacuteprio do corpo eacute algo ilusoacuterio e talvez algo inconscientemente forjado para proteger o caraacuteter objetivo da ideia e de tudo que diz respeito ao acircmbito do pensamento Talvez a histoacuteria do pensamento tenha sido ldquoapenas uma interpretaccedilatildeo do corpo e uma maacute-compreensatildeo do corpordquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 12) Nota-se a partir dessas consideraccedilotildees iniciais que Nietzsche natildeo distingue corpo e alma como haviam feito os pensadores anteriores a ele Distinccedilatildeo esta que funciona talvez como sintoma como forma de alienar o pensamento tornando-o puramente espiritual livrando-o de toda carga imposta pela frivolidade

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do corpo Afinal como Nietzsche aduz o pensamento pode muito bem ser apenas um disfarce para necessidades fisioloacutegicas Vemos assim como Nietzsche daacute continuidade ao pensamento esboccedilado em livros anteriores que remete o pensar a determinado tipo de vontade com o adendo de que em A gaia ciecircncia Nietzsche potildee o pensamento agrave prova descrevendo-o como ldquosintoma de determinados corposrdquo (GC ldquoProacutelogordquo sect 2ordm p 12) O valor da verdade enquanto descriccedilatildeo acurada da totalidade do ser eacute posto em xeque ao mesmo tempo em que eacute mostrada sua importacircncia enquanto sintoma de sauacutede ou doenccedila ascensatildeo ou degeneraccedilatildeo da vida (GC ldquoProacutelogordquo sect 4ordm p 14-15) O resultado disso eacute que a verdade natildeo continua como verdade se lhe tiramos o veacuteu (GC ldquoProacutelogordquo sect 4ordm p 15) O valor atribuiacutedo agrave existecircncia pela metafiacutesica eacute descartado como resposta objetiva para a condiccedilatildeo humana natildeo possui valor algum quando tomado cientificamente Poreacutem como sintoma do corpo como sintoma do ecircxito ou do fracasso da potecircncia ou impotecircncia daquele que pensa eacute de suma importacircncia para a ciecircncia principalmente para a histoacuteria e a psicologia Segundo Nietzsche

ateacute a pessoa mais nociva pode ser a mais uacutetil no que toca agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie pois manteacutem em si ou por sua influecircncia em outras impulsos sem os quais a humanidade teria haacute muito se estiolado ou corrompido (GC I sect 1ordm p 51)

Eacute ilusoacuterio julgar as accedilotildees em boas ou maacutes de acordo

com sua contribuiccedilatildeo para a conservaccedilatildeo da espeacutecie pois ldquotudo eacute parte da assombrosa economia da conservaccedilatildeo da espeacutecierdquo (GC I sect 1ordm p 51) Afirmar que ldquoateacute a pessoa mais nociva pode ser a mais uacutetil no que toca agrave conservaccedilatildeo da espeacutecierdquo traz consequecircncias profundas para o estudo da moral Se ateacute mesmo os impulsos maus satildeo apropriados

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para o fim da manutenccedilatildeo da espeacutecie natildeo nos eacute mais possiacutevel julgar uma accedilatildeo como boa ou maacute utilizando como paracircmetro justamente a condiccedilatildeo de apropriada ou natildeo ao fim da espeacutecie (GC I sect 4ordm p 57)

A tiacutetulo de exemplo tomemos o estudo que Nietzsche faz da virtude da compaixatildeo Se tomarmos o sentido claacutessico que eacute atribuiacutedo agrave compaixatildeo esta virtude natildeo eacute tatildeo virtuosa assim Isto porque segundo o filoacutesofo a compaixatildeo natildeo exprime nada aleacutem da oportunidade para o aumento do poder daquele que se diz compassivo em relaccedilatildeo agravequele que eacute objeto da compaixatildeo Essa anaacutelise estaacute de acordo com o entendimento de Nietzsche de que todas as virtudes podem ser compreendidas a partir de uma teoria do sentimento de poder ldquoao fazer bem e fazer mal aos outros exercitamos neles o nosso poder ndash eacute tudo o que queremos nesse casordquo (GC I sect 13 p 64)

Temos no aforismo 13 de A gaia ciecircncia intitulado ldquoSobre a teoria do sentimento de poderrdquo uma formulaccedilatildeo incipiente do conceito de vontade de poder Embora este conceito venha a aparecer de forma mais evidente somente no aforismo 349 de A gaia ciecircncia ou seja no quinto livro da obra que teria sido acrescendo a esta cinco anos depois ndash jaacute no periacuteodo de Para aleacutem do bem e do mal ndash o aforismo 13 jaacute nos fornece indicaccedilotildees cruciais acerca do tema Este aforismo eacute de suma importacircncia para entender o conceito fundamental da obra de Nietzsche visto que ele traz em seu bojo a afirmaccedilatildeo de que as virtudes satildeo na verdade sacrifiacutecios ao nosso ldquodesejo de poderrdquo (GC I sect 13 p 64)

Nietzsche afirma que queremos o bem agravequeles que dependem de noacutes porque assim aumentamos o nosso sentimento de poder ao mesmo tempo pelo mesmo motivo nos mostramos belicosos para com os inimigos de nosso poder O sacrifiacutecio que fazemos no intuito de fazer o bem ou o mal natildeo altera o valor uacuteltimo das accedilotildees o que interessa aqui eacute a sensaccedilatildeo de aumento do poder (GC I sect 13 p 64) Neste aforismo jaacute encontramos tambeacutem

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esboccedilada a compreensatildeo da verdade como ldquovontade de verdaderdquo visto que a verdade eacute concebida do ponto de vista da posse ldquoQuem sente que estaacute lsquode posse da verdadersquo a quantas posses natildeo tem de renunciar para salvaguardar esta sensaccedilatildeordquo (GC I sect 13 p 64)

O que estaacute em jogo aqui eacute a renuacutencia de demais aspectos da vida em detrimento da posse da verdade Nietzsche salienta que a verdade estaacute relacionada ao poder daquele que a salvaguarda a sensaccedilatildeo de aumento de poder daquele que deteacutem a verdade eacute valiosa ao ponto deste renunciar a outras posses a ponto de se sacrificar por ela Em suma a sensaccedilatildeo de aumento do poder pode acarretar em sacrifiacutecios nos quais ateacute mesmo a vida deixa de ser um valor supremo o mais importante aqui eacute a sensaccedilatildeo de que nos sacrificamos pelo desejo de poder (GC I sect 13 p 64)

Segundo ele as virtudes satildeo ldquoprejudiciais aos que as possuem enquanto impulsos que neles vigoram de maneira muito aacuterida e violenta natildeo querendo que a razatildeo os conserve em equiliacutebrio com os demais instintosrdquo (GC I sect 21 p 70) Nietzsche chega mesmo a ser provocativo ao afirmar que aquele que possui genuinamente uma virtude eacute viacutetima dela (GC I sect 21 p 70) Isso porque as virtudes existem como expressatildeo de aumento ou decreacutescimo de poder Uma virtude plena trabalha contra o indiviacuteduo eacute prejudicial a este porque eacute chamada de boa em vista dos efeitos que pressupomos que tem para a sociedade e natildeo para o seu detentor (GC I sect 21 p 69-70)

Quando a sociedade elogia o virtuoso ela o faz diminuindo o seu poder ldquoo lsquoproacuteximorsquo louva o desinteresse porque dele retira vantagemrdquo (GC I sect 21 p 70) Vemos assim como a teoria do sentimento de poder surge para suprir o vaacutecuo deixado pela moral tradicional que segundo Nietzsche jaacute caducava Natildeo eacute mais a moral que determina o valor da virtude mas o sentimento de poder daquele que a deteacutem eacute a partir dela que Nietzsche pode afirmar que o elogio das virtudes eacute o elogio de algo nocivo porque reflete

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o elogio de ldquoimpulsos que destituem o homem do seu nobre amor proacuteprio e da forccedila para a suprema custoacutedia de si mesmordquo (GC I sect 21 p 70)

No quinto livro da obra mais precisamente no aforismo 344 Nietzsche tece consideraccedilotildees acerca da relaccedilatildeo da ciecircncia com a verdade afirmando que esta repousa numa crenccedila de que a verdade eacute necessaacuteria (GC V sect 344 p 235) Responder agrave pergunta sobre a necessidade da verdade de forma afirmativa revela somente uma crenccedila de que a verdade eacute mais necessaacuteria que todo o resto Tal resposta se mostra somente como uma convicccedilatildeo porque como diz Nietzsche natildeo demonstra a validade ontoloacutegica da verdade mas somente a crenccedila de que ela eacute mais uacutetil do que a mentira Afinal como salienta o filoacutesofo ldquoQue sabem vocecircs de antematildeo sobre o caraacuteter da existecircncia para poder decidir se a vantagem maior estaacute do lado de quem desconfia ou de quem confia incondicionalmenterdquo (GC V sect 344 p 235)

Novamente o tema da utilidade se faz presente e serve para minar a crenccedila na univocidade dos conceitos pois ldquose a verdade e a inverdade continuamente se mostrassem uacuteteisrdquo natildeo poderiacuteamos pressupor que haacute necessidade das ciecircncias somente porque nestas a verdade eacute buscada incondicionalmente (GC V sect 344 p 235) Nietzsche revela que a nossa feacute na ciecircncia repousa ainda numa crenccedila metafiacutesica de que a verdade eacute divina (GC V sect 344 p 236) Caso questionemos o valor da verdade questionamos tambeacutem o valor da ciecircncia quando abordamos o problema da verdade como vontade de verdade vontade de natildeo se deixar enganar voltamos a questatildeo para o campo da moral porque a remetemos ao problema da utilidade da mesma para a vida ldquolsquoPor que ciecircnciarsquo leva de volta ao problema moral para que moral quando vida natureza e histoacuteria satildeo lsquoimoraisrsquordquo (GC V sect 344 p 236)

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O erro natildeo estaacute em viver a partir de artigos de feacute mas sim em eternizar tais artigos de feacute glorificaacute-los como algo atemporal O erro estaacute em natildeo perceber que o proacuteprio erro pode ser uma condiccedilatildeo necessaacuteria agrave vida Se tivermos em mente que tais artigos de feacute natildeo correspondem agrave essecircncia do mundo mas consistem numa espeacutecie de antropomorfismo2 que tais artigos de feacute satildeo necessaacuterios agrave vida mas que natildeo podem ser elevados agrave condiccedilatildeo de verdade acerca da realidade porque decorrentes de inferecircncias infundadas acerca das coisas entatildeo talvez possamos viver de forma mais leve como espiacuteritos livres que fazem da experiecircncia consigo mesmos o seu mote de vida

A vida natildeo eacute argumento ndash Ajustamos para noacutes o mundo em que podemos viver ndash supondo corpos linhas superfiacutecies causas e efeitos movimento e repouso forma e conteuacutedo sem esses artigos de feacute ningueacutem suportaria hoje viver Mas isto natildeo significa que eles estejam provados A vida natildeo eacute argumento entre as condiccedilotildees para a vida poderia estar o erro (GC III sect 121 p 145)

A teoria do poder substitui a moral tradicional porque descreve as relaccedilotildees a partir da noccedilatildeo de acreacutescimo ou decreacutescimo de poder No aforismo 349 intitulado ldquoAinda a procedecircncia dos eruditosrdquo Nietzsche escreve que ao contraacuterio do que pensava Spinoza por exemplo a vida tende agrave expansatildeo do poder ela natildeo busca a autoconservaccedilatildeo mas a abundacircncia ldquona natureza natildeo

2 Este entendimento que tem nos artigos de feacute a realizaccedilatildeo de uma espeacutecie de antropomorfismo soacute prevalece enquanto o conceito de vontade de poder natildeo eacute claramente exposto e adotado por Nietzsche porque apoacutes isso as valoraccedilotildees seratildeo vistas como o resultado de tentativas de dominaccedilatildeo da vontade de poder e natildeo mais como algo posto por um sujeito cognoscente

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predomina a indigecircncia mas a abundacircncia o desperdiacutecio chegando mesmo ao absurdordquo (GC V sect 349 p 243-244) A vida natildeo gira em torno da conservaccedilatildeo Eacute certo que os seres viventes lutam pela existecircncia mas segundo Nietzsche a luta pela existecircncia natildeo eacute o objetivo da vida ldquoa luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderacircncia de crescimento e expansatildeo de poder conforme a vontade de poder que eacute justamente vontade de vidardquo (GC V sect 349 p 244)

A partir daqui toda consideraccedilatildeo acerca da vida toda valoraccedilatildeo seraacute o resultado da vontade de poder se manifestando sob determinada configuraccedilatildeo Afinal como Nietzsche salienta ldquoo fato de que algo precisa ser considerado verdadeiro eacute necessaacuterio natildeo o fato de que algo eacute verdadeirordquo (FP 9 [38] [28] do outono de 1887 p 291) Todo povo que vive avalia mas natildeo a partir de paracircmetros racionais de avaliaccedilatildeo Natildeo eacute propriamente o ser humano a partir de sua faculdade racional que potildee valores mas a vida em si mesma enquanto vontade de poder ldquoMuitas coisas satildeo mais estimadas pelo vivente do que a vida mesma mas no proacuteprio estimar fala ndash a vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Os valores natildeo podem ser compreendidos a partir da reacutegua estabelecida pela razatildeo cartesiana pois o uacutenico moacutevel da vontade de poder eacute o aumento do poder

Satildeo nossas necessidades que interpretam o mundo nossos impulsos e seus proacutes e contras Cada impulso eacute uma espeacutecie de despotismo cada um tem a sua perspectiva que ele gostaria de impor como norma a todos os outros impulsos (FP 7 [60] do final de 1886 ndash primavera de 1887 p 263)

Os filoacutesofos em sua busca pela verdade

manifestam uma vontade de poder enviesada que exige que tudo se torne pensaacutevel computaacutevel ldquoVontade de tornar

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pensaacutevel tudo o que existe assim chamo eu agrave vossa vontaderdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p108) Dessa forma o que caracteriza o ser humano natildeo eacute mais a capacidade para descrever a realidade em sua essecircncia transcendente como queria Platatildeo ou mesmo a capacidade para conhecer de uma maneira transcendental atraveacutes das formas a priori da sensibilidade do entendimento e da razatildeo como queria Kant mas a capacidade para criar valor porque todo dizer do ser humano manifesta o predomiacutenio de uma vontade de poder que natildeo pode ser mensurada em seu grau de veracidade mas somente a partir da forccedila com que a mesma se impotildee

Nossos valores satildeo inseridos interpretativamente nas coisas Haacute afinal um sentido em si O sentido natildeo eacute necessariamente sentido-relacional e perspectiva Todo sentido eacute vontade de poder (todos os sentidos relacionais podem ser resolvidos nela) (FP 2 [77] do outono de 1885 ndash outono de 1886 p 79)

Dizer que a vida eacute vontade de poder significa dizer

que tudo que vive busca ldquoantes de tudo dar vazatildeo a sua forccedilardquo (ABM I sect 13 p 19) Os filoacutesofos apresentam suas teses como se estas resultassem de ldquouma dialeacutetica fria pura divinamente imperturbaacutevelrdquo quando essas teses surgem de seu iacutentimo desejo tornado consciente (ABM I sect 5ordm p 12) Dessa forma as ldquoverdadesrdquo dos filoacutesofos natildeo passam de preconceitos que satildeo revestidos de razatildeo para se tornarem passiacuteveis de assimilaccedilatildeo pelos demais

No aforismo 347 intitulado ldquoOs crentes e sua necessidade de crerrdquo Nietzsche estabelece uma associaccedilatildeo inequiacutevoca entre os conceitos de vontade de poder e niilismo Ao escrever acerca do niilismo segundo o modelo de Satildeo Petersburgo que segundo ele consiste ldquona crenccedila na descrenccedila ateacute chegar ao martiacuterio por elardquo (GC V sect 347

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p 241) Nietzsche chega agrave conclusatildeo de que o niilismo esse desejo desenfreado pela feacute que natildeo eacute mais possiacutevel ocorre quando falta a vontade pois esta eacute o afeto de comando o emblema da forccedila A forccedila aqui consiste na capacidade de comandar a si mesmo e natildeo se deixar comandar ldquopor um deus um priacutencipe uma classe um meacutedico um confessor um dogma uma consciecircncia partidaacuteriardquo (GC V sect 347 p 241)

Neste sentido tanto o budismo quanto o cristianismo estatildeo ligados a um adoecimento ou afrouxamento da vontade O adoecimento da vontade propicia o advento da noccedilatildeo de dever porque o dever implica no comando no direcionamento da vontade por uma instacircncia superior ao indiviacuteduo quando este natildeo eacute mais capaz de comandar a si mesmo A feacute eacute justamente esse desiacutegnio esse direcionamento da vontade para um ldquouacutenico ponto de vista e sentimento que passa a predominarrdquo (GC V sect 347 p 241)

Nietzsche toma essa elucidaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o adoecimento da vontade e o surgimento da noccedilatildeo de dever como base para fazer uma distinccedilatildeo entre o espiacuterito livre e o crente O primeiro ao contraacuterio do crente que chega agrave convicccedilatildeo fundamental de que tem de ser comandado porque natildeo pode fazecirc-lo por si soacute tem prazer na autodeterminaccedilatildeo A forccedila do espiacuterito livre adveacutem da liberdade da vontade

Uma liberdade da vontade em que um espiacuterito se despende de toda crenccedila todo desejo de certeza treinado que eacute em se equilibrar sobre tecircnues cordas e possibilidade e em danccedilar ateacute mesmo agrave beira de abismos (GC V sect 347 p 241)

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A caracterizaccedilatildeo da vida como vontade de poder em Assim falou Zaratustra

Como relatado acima nas obras Humano demasiado humano Aurora e nas trecircs primeiras partes de A gaia ciecircncia eacute descoberto por Nietzsche algo bastante perturbador a verdade natildeo passa de metaacutefora Tudo que dizemos acerca do mundo natildeo passa de ldquoantropomorfismo esteacuteticordquo (GC III sect 109 p 136) Poreacutem ao mesmo tempo em que faz essa descoberta aterradora o filoacutesofo concebe de forma incipiente uma ldquoteoria do sentimento de poderrdquo Destarte a criacutetica do ldquoperiacuteodo positivistardquo natildeo pode ser simplesmente descartada pelo contraacuterio ela eacute de grande importacircncia na medida em que revela a Nietzsche que por traacutes de toda postulaccedilatildeo de valor haacute apenas a busca pelo poder

Temos nestas obras uma descoberta que se assemelha ao deus Jano da mitologia romana ela eacute bifrontal Por um lado a razatildeo eacute incapaz de tocar o tecido da realidade por outro toda descriccedilatildeo diz respeito agrave manutenccedilatildeo e expansatildeo da vida Como bem observa Tuumlrcke (1993 p 65)

O intelecto difamado como mentiroso eacute o mesmo que eacute festejado como artista o modo diverso de valoraacute-lo eacute um passar de uma teoria negativa para uma teoria positiva de conhecimento do desmascaramento do escandaloso defeito que lhe eacute inerente para a investigaccedilatildeo de como chegou a ter este defeito

Estaacute dado aqui o passo decisivo para a formulaccedilatildeo

do conceito de vontade de poder De fato embora esses escritos mostrem que as bases metafiacutesicas e morais de nossa civilizaccedilatildeo foram minadas de forma irreversiacutevel a ponto de nos legar o sentimento de vazio existencial eles

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servem para revelar a Nietzsche o caraacuteter fundamental da vida

A diferenccedila entre a criacutetica de Humano demasiado humano Aurora e A gaia ciecircncia e a criacutetica de Assim falou Zaratustra eacute que toda uma nova concepccedilatildeo acerca da existecircncia que vinha maturando ao longo destas obras se torna madura o suficiente para embasar uma proposta mais robusta para o problema da decadecircncia Embora seja impossiacutevel identificar a partir de paracircmetros estritamente racionais qualquer verdade acerca do mundo que nos rodeia toda verdade passa a ser entendida como uma ficccedilatildeo que permite a manutenccedilatildeo e desenvolvimento de determinada organizaccedilatildeo da vida social

Na quinta e uacuteltima parte de A gaia ciecircncia ao elaborar uma criacutetica acerca das filosofias que postulam a preservaccedilatildeo como instinto fundamental da vida jaacute nos eacute revelado de forma expliacutecita que a vida tende agrave expansatildeo do poder nada mais ldquoquerer preservar a si mesmo eacute expressatildeo de um estado indigente de uma limitaccedilatildeo do verdadeiro instinto fundamental da vida que tende agrave expansatildeo do poderrdquo (GC V sect 349 p 243-244) Por sua vez a passagem de Assim falou Zaratustra na qual Nietzsche estabelece consideraccedilotildees fundamentais acerca da vontade de poder eacute denominada ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo e consta do segundo livro da obra Nesta passagem o filoacutesofo faz Zaratustra enunciar o seguinte ldquoOnde encontrei seres vivos encontrei vontade de poder e ainda na vontade do servente encontrei a vontade de ser senhorrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 109)

Ainda na mesma passagem pouco mais agrave frente Zaratustra diraacute que a vida natildeo eacute ldquovontade de existecircnciardquo porque ldquoo que natildeo eacute natildeo pode querer mas o que se acha em existecircncia como poderia ainda querer existecircnciardquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Esse trecho revela a vontade de poder como vontade de superaccedilatildeo e natildeo de manutenccedilatildeo expotildee uma criacutetica agrave concepccedilatildeo de vontade

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como tendecircncia a permanecer na existecircncia Tanto essa concepccedilatildeo como essa criacutetica jaacute haviam sido expostas no aforismo 349 de A gaia ciecircncia Poreacutem haacute algo de novo aqui pois Zaratustra tambeacutem afirma que ldquoEste segredo a proacutepria vida me contou lsquoVecircrsquo disse lsquoeu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmorsquordquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110)

Neste sentido natildeo temos aqui um sujeito que conhece os atributos da vida mas a vida que se mostra a si mesma como vontade de poder Natildeo temos aqui uma consideraccedilatildeo de cunho antropoloacutegico pois natildeo eacute Zaratustra que enuncia que a vida natildeo eacute nada aleacutem de vontade de poder eacute a vida mesma que o diz ao profeta A partir daqui toda consideraccedilatildeo acerca da vida toda valoraccedilatildeo seraacute o resultado da vontade de poder se manifestando sob determinada configuraccedilatildeo Todo povo que vive avalia mas natildeo a partir de paracircmetros racionais de avaliaccedilatildeo Natildeo eacute propriamente o ser humano a partir de sua faculdade racional que potildee valores mas a vida em si mesmo enquanto vontade de poder Os valores natildeo podem ser compreendidos a partir da reacutegua estabelecida pela razatildeo cartesiana pois o uacutenico moacutevel da vontade de poder eacute o aumento do poder

Temos o abandono da oacutetica da subjetividade em prol da vontade de poder que possibilita a superaccedilatildeo da criacutetica da metafiacutesica da religiatildeo e da moral como resultado de mero antropomorfismo Natildeo eacute mais o ser humano enquanto sujeito que conhece e avalia mas a vontade de poder que se expressa no humano bem como em todas as coisas como luta por superaccedilatildeo Isso fica claro quando lemos o seguinte ldquoMuitas coisas satildeo mais estimadas pelo vivente do que a vida mesma mas no proacuteprio estimar fala ndash a vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 110) Essa mudanccedila de paradigma se torna evidente quando percebemos como Nietzsche concebe a ldquoverdaderdquo preconizada pelos filoacutesofos como ldquovontade de verdaderdquo

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Os filoacutesofos em sua busca pela verdade manifestam uma vontade de poder enviesada que exige que tudo se torne pensaacutevel computaacutevel ldquoVontade de tornar pensaacutevel tudo o que existe assim chamo eu agrave vossa vontaderdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de si mesmordquo p 108) Dessa forma o que caracteriza o ser humano natildeo seraacute mais a capacidade para descrever a realidade mas a capacidade para criar valor porque todo dizer seu manifesta o predomiacutenio de uma vontade de poder que natildeo pode ser mensurada em seu grau de veracidade mas somente a partir da forccedila que a mesma impotildee

Sob a perspectiva da vontade de poder o niilismo seraacute natildeo somente o resultado do pensamento ocidental ele passaraacute a ser a loacutegica interna desse pensamento que se desenvolve a partir da decadecircncia desde seu princiacutepio Isso se torna patente quando vemos Nietzsche afirmar em seu Crepuacutesculo dos iacutedolos que os dialeacuteticos natildeo satildeo livres para serem dialeacuteticos ldquoa racionalidade foi entatildeo percebida como salvadora nem Soacutecrates nem seus lsquodoentesrsquo estavam livres para serem ou natildeo racionais ndash isso era de rigueur [obrigatoacuterio] era seu uacuteltimo recursordquo (CI ldquoO problema de Soacutecratesrdquo sect 10 p 21-22)

Nietzsche ressalta que aquele tipo de argumentaccedilatildeo dialeacutetica a que se dedicava Soacutecrates era vista com maus olhos pela nobreza de Atenas Isto porque segundo ele

tambeacutem se desconfiava de toda essa exibiccedilatildeo dos proacuteprios motivos Coisas de respeito como homens de respeito natildeo trazem assim na matildeo os seus motivos Eacute indecoroso mostrar todos os cinco dedos Eacute de pouco valor aquilo que primeiramente tem de se provar (CI II ldquoO problema de Soacutecratesrdquo sect 5ordm p 19)

Ao somarmos esta criacutetica do pensador dialeacutetico que

busca enunciar razotildees para seu modo de agir agrave descriccedilatildeo

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do homem nobre como aquele que natildeo exibe os proacuteprios motivos que tem acima de tudo no pathos da distacircncia3 sua motivaccedilatildeo fundamental podemos compreender melhor o que seria o super-homem para Nietzsche

O que estaacute impliacutecito aqui eacute a noccedilatildeo de que a vontade de poder configura a forma como elaboramos a existecircncia Natildeo somos livres para assumirmos a perspectiva que supostamente adotamos na verdade a perspectiva que adotamos eacute o resultado de uma configuraccedilatildeo da vontade de poder que pode ser o resultado de forccedilas ativas ou reativas O adoecimento da vontade leva a uma configuraccedilatildeo da existecircncia que fomenta a fraqueza em vez da forccedila A vontade fraca eacute aquela que natildeo consegue lidar com os aspectos negativos da vida sem criar paliativos que a tornam menos dura mais palataacutevel Nessa perspectiva o advento da modernidade ndash com todas as inovaccedilotildees na forma de pensar que lhe satildeo proacuteprias ndash natildeo representa um avanccedilo em relaccedilatildeo agrave forma de pensar da Antiguidade e do Medievo A ciecircncia o sentido histoacuterico a democracia continuam sendo a expressatildeo de uma vontade fraca Tudo natildeo passa do resultado de ldquoinstintos ruins de naturezas doentesrdquo a que foi dado vazatildeo (EH ldquoPor que sou tatildeo inteligenterdquo sect 10 p 50)

A elaboraccedilatildeo de uma hierarquia de valores em Para aleacutem do Bem e do Mal

A descriccedilatildeo de uma ldquonobreza em geralrdquo pode ser encontrada em Para aleacutem do bem e do mal livro que se segue ao Zaratustra Nesta obra jaacute temos o exerciacutecio de um projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores que se traduz pela distinccedilatildeo entre a valoraccedilatildeo tiacutepica de uma vontade fraca (que

3 De acordo com Patrick Wotling (2013 p 35-36) pathos da distacircncia consiste no ldquodesejo passional de distacircncia que potildee os limites destinados a afastar aqueles que natildeo satildeo reconhecidos como lsquoparesrsquordquo

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se exprime pela foacutermula ldquobom e maurdquo) e aquela que Nietzsche considera forte ou seja nobre (pautada na foacutermula ldquobom e ruimrdquo) Esta obra conteacutem tambeacutem aforismos nos quais Nietzsche disserta a respeito do que ele denomina como a ldquorebeliatildeo escrava na moralrdquo cujo resultado eacute a substituiccedilatildeo da moral nobre por uma moral escrava

Para ele ldquoa alma nobre tem reverecircncia por si mesmardquo (ABM IX sect 287 p 174) A alma nobre eacute aquela impelida pelo egoiacutesmo ldquoela natildeo gosta de olhar lsquopara cimarsquo ndash mas sim adiante de maneira lenta e horizontal ou para baixo ndash ela sabe que se encontra no altordquo (ABM IX sect 265 p 165) Afinal ldquoo essencial numa aristocracia boa e satilde eacute que ela natildeo se sinta como funccedilatildeo (quer da realeza quer da comunidade) mas como seu sentido e suprema justificativardquo (ABM IX sect 258 p 154) Essa caracteriacutestica distingue o nobre do escravo porque este natildeo estabelece distinccedilotildees a partir de si mesmo de sua forccedila mas a partir do outro da supressatildeo da forccedila do outro

o olhar do escravo natildeo eacute favoraacutevel agraves virtudes do poderoso eacute ceacutetico e desconfiado tem finura na desconfianccedila frente a tudo lsquobomrsquo que eacute honrado por ele ndash gostaria de convencer-se de que nele a proacutepria felicidade natildeo eacute genuiacutena (ABM IX sect 260 p 158)

Ao longo dos livros que precedem Para aleacutem do bem e do mal vimos como Nietzsche mostra que a consciecircncia eacute uma faceta iacutenfima da atividade que se desenvolve no corpo humano como ela representa o instinto de rebanho que resulta da dificuldade do humano em sobreviver por si soacute no meio selvagem A consciecircncia se desenvolveu juntamente com a linguagem a partir de simplificaccedilotildees grosseiras mas necessaacuterias para que a besta homem pudesse sobreviver Esse tipo de consideraccedilatildeo visa mostrar que a linguagem possui utilidade para o humano mas este

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natildeo pode fazer uso dela para alcanccedilar o reino do supra-sensiacutevel onde supostamente reina a verdade Tal concepccedilatildeo da linguagem tambeacutem eacute mostrada por Nietzsche como o resultado de uma luta por domiacutenio como uma perspectiva de vida

Resta saber como Nietzsche pode fazer um julgamento tatildeo negativo dessa vontade de poder que se sublima em vontade de verdade a ponto de afirmar que ldquofilosofar eacute um atavismo de primeiriacutessima ordemrdquo (ABM I sect 20 p 24) Para tanto eacute necessaacuterio perceber que embora a vida seja vontade de poder ou seja acircnsia de domiacutenio haacute vontades fortes e fracas (ABM I sect 21 p 26) O que seria uma vontade fraca Tal vontade se apresentaraacute como aquela que deseja ldquoum punhado de lsquocertezarsquo a toda uma carroccedila de belas possibilidadesrdquo (ABM I sect 10 p 15) Uma vontade fraca deseja um significado para a vida dado de antematildeo natildeo suporta a abertura para possibilidades que eacute proacutepria da vida Talvez possamos compreender melhor uma vontade fraca a partir da vontade forte Esta pode ser denominada tambeacutem a partir da designaccedilatildeo espiacuterito livre o artista da vida capaz de compreender a imoralidade da vida e de se arriscar na tentativa do artificial em vez de buscar guarida no gosto pelo incondicional (ABM II sect 31 p 35)

A vontade forte natildeo se deixa levar por moralismos ela vivencia um periacuteodo extramoral no qual natildeo passa de ldquoum preconceito moral que a verdade tenha mais valor do que a aparecircnciardquo (ABM II sect 34 p 39) Nietzsche eacute provocativo ao afirmar que o filoacutesofo tem de agora em diante direito ao ldquomau caraacuteterrdquo (ABM II sect 34 p 38) sim ao mau caraacuteter porque ele natildeo mais avalia as accedilotildees com base na moral De fato se levarmos em consideraccedilatildeo que a proacutepria palavra ldquoaccedilatildeordquo jaacute eacute um preconceito que ela representa uma simplificaccedilatildeo grosseira dessa corrente contiacutenua na qual se desenrola a vida se considerarmos que o livre-arbiacutetrio eacute um anseio por nos sobrecarregar de responsabilidade (ABM I sect 21 p 25) se considerarmos que o oposto do livre-

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arbiacutetrio o ldquocativo-arbiacutetriordquo natildeo passa de um abuso da noccedilatildeo de causa e efeito quando existe somente vontade atuando sobre vontade (ABM II sect 21 p 25) entatildeo a vontade forte eacute aquela que se rebela contra a simplicidade da gramaacutetica a metafiacutesica do homem comum vislumbrando os conceitos como ldquoficccedilotildees convencionais para fins de designaccedilatildeo de entendimento natildeo de explicaccedilatildeordquo (ABM I sect 21 p 25-26) Tal vontade poderaacute ser taxada de ldquomau caraacuteterrdquo porque ela natildeo se pauta mais por este moralismo que resulta da accedilatildeo dominada pelo livre-arbiacutetrio porque ela natildeo mais carrega o fardo que resulta de tal raciociacutenio justamente o fardo da responsabilidade Para a vontade forte soacute haacute vontade atuando sobre vontade o mundo eacute visto como vontade de poder e nada mais (ABM II sect 36 p 40) Nietzsche natildeo nega que a sociedade gerada pela teacutecnica desenvolvida a partir da ciecircncia e em uacuteltima instacircncia pela metafiacutesica seja mais segura mais pacata mais fina em seus costumes No entanto isso natildeo significa necessariamente algo positivo ldquoesse homem das culturas tardias e das luzes veladas seraacute por via de regra um homem bem fraco sua aspiraccedilatildeo mais profunda eacute que um dia tenha fim a guerra que ele eacuterdquo (ABM V sect 200 p 86) Isso porque Nietzsche tambeacutem afirma que ldquoo sofrimento profundo enobrece coloca agrave parterdquo (ABM IX sect 270 p 169) Em outros termos a reaccedilatildeo em face ao sofrimento passa a ser o criteacuterio para avaliar o valor dos valores ldquoA hierarquia eacute quase que determinada pelo grau de sofrimento a que um homem pode chegarrdquo (ABM IX sect 270 p 169)

O que distingue os sofredores ndash pois todos somos sofredores ndash eacute sua relaccedilatildeo com o sofrimento se buscamos escapar do sofrimento em direccedilatildeo a um ser venturoso ou se consideramos o ser como suficientemente venturoso a ponto de ldquojustificar mesmo uma quantidade descomunal de sofrimentordquo (FP 14 [89] do comeccedilo do ano 1888 p 241) Haacute portanto dois tipos de sofredores os que sofrem de

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abundacircncia de vida e aqueles que sofrem de empobrecimento de vida (GC V sect 370 p 272)

O sentido do sofrimento assume assim papel fundamental no pensamento de Nietzsche Ele serve para estabelecer a linha divisoacuteria entre o que ele denomina como ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoconhecimento romacircnticordquo ou ldquopessimistardquo ldquoDecifra-se o problema eacute o problema do sentido do sofrimento ora um sentido cristatildeo ora um sentido traacutegicordquo (FP 14 [89] do comeccedilo do ano 1888 p 241) Os espiacuteritos niveladores defensores das ideias modernas formam fileiras para debelar o sofrimento por isso satildeo considerados romacircnticos fracos Da mesma forma a vontade que estabelece como paracircmetro avaliador o prazer e o desprazer que coloca a supressatildeo do sofrimento em primeiro plano revela seu caraacuteter fraacutegil adoecido

Afinal ldquohaacute problemas mais elevados do que dor prazer e compaixatildeo e toda filosofia que trate apenas disso eacute ingenuidaderdquo (ABM VII sect 225 p 118) Jaacute o conhecimento traacutegico eacute aquele que se permite ldquonatildeo soacute a visatildeo do terriacutevel e discutiacutevel mas mesmo o ato terriacutevel e todo luxo de destruiccedilatildeo decomposiccedilatildeo negaccedilatildeordquo (GC V sect 370 p 273) O conhecimento traacutegico consiste justamente em perceber que o sofrimento eacute inerente agrave vida mas natildeo somente consiste em concebecirc-lo como algo desejaacutevel ldquoVocecircs querem se possiacutevel ndash e natildeo haacute mais louco lsquopossiacutevelrsquo ndash abolir o sofrimento e quanto a noacutes ndash parece mesmo que nos o queremos ainda mais maior e pior do que jamais foirdquo (ABM VII sect 225 p 117) Conclusatildeo A figura do Uumlbermensch vem representar justamente a vontade que supera a si mesma capaz de moldar a vida a partir de sua forccedila capaz de realizar a transvaloraccedilatildeo de todos os valores ldquo() todo tipo de pessimismo e niilismo

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na matildeo dos mais fortes natildeo passa agora de um martelo e de um instrumento a mais com o qual eacute possiacutevel colocar um novo par de asasrdquo (FP 2 [101] do outono de 1885 ndash outono de 1886 p 91) O Uumlbermensch eacute um ser cuja criaccedilatildeo natildeo pode ser mensurada como certa ou errada a partir da ldquoreacutegua da razatildeordquo tendo em vista ser a razatildeo fruto de uma inversatildeo de valores que colocou em relevo as ldquopropriedades que servem para aliviar a existecircncia dos que sofremrdquo (ABM IX sect 260 p 158)

O Uumlbermensch eacute aquele indiviacuteduo capaz de interpretar a existecircncia mas natildeo a partir de um ponto de vista teoacuterico que tem no sujeito racional seu ponto de apoio O pensamento que se adequa a uma ordem de razotildees natildeo eacute capaz de compreender esse aspecto de toda criaccedilatildeo porque ele jaacute estaacute comprometido com a loacutegica da verdade Sendo assim toda criaccedilatildeo do Uumlbermensch eacute obra de arte e como tal eacute verdadeira em si mesma

A este respeito vale a pena citar Miguel Antonio do Nascimento que se expressa da seguinte maneira sobre o tema

Assim o que faz valer no valor natildeo eacute o dado efetivo mas o poder tornar efetivo dando ao ato cunho de criaccedilatildeo Nesta circunstacircncia de falta de um dado criar resulta necessariamente em criar do nada o sentido de sua proacutepria existecircncia tornando o ser humano seu proacuteprio para-aleacutem-de-si em elevaccedilatildeo (2004 p 310)

O Uumlbermensch representa o niilismo ativo a vontade de poder capaz de criar a partir do nada Natildeo nos eacute possiacutevel aventar Deus como conjectura porque Deus ultrapassa nossa capacidade criadora Para compreender isso basta observarmos o trecho do Zaratustra denominado ldquoNas ilhas bem-aventuradasrdquo no qual Nietzsche fala da

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impossibilidade da criaccedilatildeo de deuses mas na possibilidade de criaccedilatildeo do Uumlbermensch

Deus eacute uma conjectura mas eu quero que vossas conjecturas natildeo excedam vossa capacidade criadora Podeis criar um deus ndash Entatildeo natildeo me faleis de deuses Mas bem poderiacuteeis criar o Uumlbermensch (ZA II ldquoNas ilhas bem-aventuradasrdquo p 81)

Quando assumimos uma perspectiva teoloacutegica entendemos o ser humano como objeto de uma narrativa que o transcende natildeo como o sujeito detentor da forccedila (ou fraqueza) para se determinar enquanto criador de valores Sob uma perspectiva escatoloacutegica todos os valores que venham a ser criados jaacute estatildeo determinados de antematildeo como ldquobonsrdquo ou ldquomausrdquo pelos paracircmetros estabelecidos pelo Deus que nos criou Devemos portanto conjeturar a respeito do que natildeo estaacute fora dos limites de nossa capacidade criativa O Uumlbermensch surge assim como meta a ser alcanccedilada porque ele consiste numa expressatildeo cunhada por Nietzsche para a compreensatildeo poacutes-metafiacutesica da existecircncia ou seja para a compreensatildeo da histoacuteria ocidental como histoacuteria do niilismo

O Uumlbermensch assume essa histoacuteria como seu destino O conhecimento traacutegico consiste justamente em perceber que o sofrimento eacute inerente agrave vida mas natildeo somente consiste em concebecirc-lo como algo desejaacutevel ldquoVocecircs querem se possiacutevel ndash e natildeo haacute mais louco lsquopossiacutevelrsquo ndash abolir o sofrimento e quanto a noacutes ndash parece mesmo que noacutes o queremos ainda mais maior e pior do que jamais foirdquo (ABM VII sect 225 p 117) A vontade de poder possui assim uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com o niilismo O sentido mesmo da vontade de poder diz respeito agrave compreensatildeo de que a tradiccedilatildeo filosoacutefica chegou ao seu colapso ou seja revelou-se a natureza niilista de sua proposta O metro para

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a verdade eacute a capacidade para suportar esse destino e viver uma vida autecircntica apesar da ausecircncia de um fundamento uacuteltimo para a existecircncia Tomemos o trecho de Assim falou Zaratustra intitulado ldquoDa redenccedilatildeordquo como exemplo Trata-se do primeiro momento em que a temaacutetica do eterno retorno eacute focada nesta obra ainda que apenas indiretamente Nesta passagem do Zaratustra a relaccedilatildeo com a temporalidade eacute delineada a partir de duas concepccedilotildees adversas de redenccedilatildeo a redenccedilatildeo que liberta do tempo e a redenccedilatildeo que se daacute no tempo A primeira forma de redenccedilatildeo eacute proposta pelo ldquoespiacuterito de vinganccedilardquo contra o tempo que se caracteriza pela ldquoaversatildeo da vontade pelo tempo e seu lsquoFoirsquordquo (ZA II ldquoDa redenccedilatildeordquo p 133) O espiacuterito de vinganccedila eacute aquele que natildeo consegue estabelecer uma relaccedilatildeo saudaacutevel com a temporalidade com o correr do tempo e a impossibilidade da vontade de ldquoquerer para traacutesrdquo (ZA II ldquoDa redenccedilatildeordquo p 133)

O eterno retorno eacute o pensamento que reflete o grau maacuteximo de niilismo ou de ausecircncia de sentido tal doutrina desponta como o pensamento que natildeo admite sentido algum para o ser em geral porque potildee a repeticcedilatildeo eterna de tudo que haacute como condiccedilatildeo indeleacutevel e inelutaacutevel Se a histoacuteria do Ocidente eacute a histoacuteria da ascensatildeo do niilismo o eterno retorno eacute o pensamento que retira de maneira definitiva o veacuteu de sentido que poderia ser ainda atribuiacutedo agrave existecircncia por alguma interpretaccedilatildeo Mas isso eacute proposital porque Nietzsche entende que ldquoa medida de grau da forccedila da vontade eacute ateacute que ponto se pode prescindir de sentido nas coisas ateacute que ponto se suporta viver em um mundo sem sentidordquo (FP 9 [60] [46] do outono de 1887 p 302) Nota de Esclarecimento

Satildeo de Nietzsche as obras sem indicaccedilatildeo de autor Abreviamos os tiacutetulos como segue

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VM ndash Sobre verdade e mentira no sentido extramoral HDH 1 ndash Humano demasiado humano (v 1) HDH 2 OS ndash Humano demasiado humano (v 2) miscelacircnea de opiniotildees e sentenccedilas HDH 2 AS ndash Humano demasiado humano (v 2) o andarilho e sua sombra A ndash Aurora GC ndash A gaia ciecircncia ZA ndash Assim falou Zaratustra ABM ndash Para aleacutem do bem e do mal GM ndash Genealogia da moral CI ndash Crepuacutesculo dos iacutedolos AC ndash O anticristo CW ndash O caso Wagner EH ndash Ecce homo Forma de citaccedilatildeo Para os textos publicados por Nietzsche o algarismo romano indica a parte ou capiacutetulo o algarismo araacutebico indica a seccedilatildeo no caso de ZA e CI o algarismo romano indica a parte do livro seguida do tiacutetulo da passagem e do algarismo araacutebico que indica a seccedilatildeo no caso de GM o algarismo romano anterior ao araacutebico remete a uma das trecircs dissertaccedilotildees no caso de EH o algarismo araacutebico que se seguiraacute ao tiacutetulo do capiacutetulo indicaraacute a seccedilatildeo Para as anotaccedilotildees poacutestumas os algarismos araacutebicos seguidos da data indicam o fragmento poacutestumo e a eacutepoca em que foi redigida Quanto aos demais autores indicamos o autor e a data de publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo seguida da paacutegina

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Referecircncias NASCIMENTO Miguel Antonio do (2004) Sobre a criacutetica de

Nietzsche aos valores Ethica ndash Cadernos acadecircmicos v 11 n 1 e 2 p 283-311

NIETZSCHE Friedrich W A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo notas e

posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

_________ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

_________ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais

Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

_________ Crepuacutesculo dos iacutedolos ou Como se filosofa

com o martelo Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

_________ Fragmentos poacutestumos 1885-1887 volume VI

Trad de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

_________ Fragmentos poacutestumos 1887-1889 volume VII

Trad de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

_________ Humano demasiado humano um livro para

espiacuteritos livres volume I Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza 2 ed Satildeo Paulo Companhia de bolso 2005

_________ Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres volume II Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza 2 ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

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_________ Para aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de bolso 2005

Niilismo e Teacutecnica em

Heidegger

Bruno Ricardo A Malvino1

Introduccedilatildeo

Neste trabalho tentaremos traccedilar o quadro niilista

no qual Heidegger situa a sua compreensatildeo de teacutecnica moderna procurando compreender a caracterizaccedilatildeo da teacutecnica moderna como Ge-stell nas suas variadas caracteriacutesticas e determinaccedilotildees Em seguida exploraremos em que medida a Ges-stell representa para Heidegger o ldquosupremo perigordquo nomeadamente no texto ldquo A Questatildeo da Teacutecnica publicado em 1954 para assim investigarmos a relaccedilatildeo da teacutecnica com o niilismo no texto ldquoPara que Poetasrdquo de 1950 a fim de estabelecer pontes entre Nietzsche e o pensamento metafiacutesico nomeadamente a filosofia moderna Nesse sentido tentaremos articular como Heidegger interpreta as teorias da vontade de poder e do eterno retorno do mesmo como apoteoses (epifanias) do niilismo ou seja consumaccedilatildeo do caminho trilhado pela metafiacutesica desde as suas origens onde o ser eacute permanentemente confundido com a essecircncia que se encontra presente na totalidade do ente interpretando tambeacutem a vontade de poder e o Uumlbermensch nietzschiano como a transformaccedilatildeo do ego cogito de Descartes num ego volo a saber num Eu quero Em seu texto A essecircncia do Niilismo Heidegger faz a seguinte observaccedilatildeo sobre o niilismo e sua essecircncia

O niilismo eacute um movimento historial natildeo qualquer opiniatildeo ou doutrina representada por quem quer

1 Mestrando em Filosofia pela universidade Federal da Paraiacuteba

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que seja O niilismo move a histoacuteria segundo o modo de um processo fundamental quase natildeo reconhecido que se daacute no destino dos povos ocidentais Por isso o niilismo natildeo eacute tambeacutem somente uma manifestaccedilatildeo historial entre outras natildeo eacute somente uma corrente espiritual que ao lado de outras ao lado do cristianismo do humanismo e do iluminismo ocorre igualmente dentro da histoacuteria ocidental O niilismo eacute pensado em sua essecircncia muito mais o movimento fundamental da histoacuteria do ocidente Ele mostra algo que cala tatildeo fundo que seu desdobramento soacute pode ainda ter como consequecircncias cataacutestrofes mundiais O niilismo eacute o movimento historico-mundial dos povos da terra que entraram no acircmbito de poder da modernidade (HEIDEGGER 2000 p 6)

Na longa crise da grande filosofia posterior ao

sistema de Hegel Heidegger restitui-nos o sentido do que significa pensar em grande estilo natildeo soacute pela densidade de sua obra mas tambeacutem pela aguda sensibilidade que demonstrou diante dos principais problemas de nossa eacutepoca o arrefecimento da consciecircncia religiosa a crise dos valores a falta de confianccedila na razatildeo meramente instrumental o fim do absoluto e o fechamento do horizonte da teacutecnica Nesse sentido o fulcro da reflexatildeo de Heidegger eacute trazido agrave tona pelo pensamento de uma criacutetica da modernidade na qual o filoacutesofo questiona e investiga o modus operandi e o modo de pensar tecnoloacutegico no qual se consuma a metafiacutesica ou seja no modo como a natureza eacute trazida diante do homem moderno atraveacutes da representaccedilatildeo (Vor-stellung) pelo proacuteprio homem Ora o homem potildee o mundo diante de si como a objetualidade na sua totalidade movido por uma ldquovontade de vontaderdquo e potildee-se a si mesmo diante do mundo Nesse sentido para Heidegger o homem cultiva a natureza quando ela natildeo basta para responder agraves suas expectativas representativas

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Nesse processo denominado por Heidegger de Ereignis Acontecimento apropriativo o homem elabora coisas novas quando elas o incomodam inaugurando uma tecnicizaccedilatildeo da teacutecnica

A histoacuteria (Geschichte) compreendida por Heidegger como evento-apropriador (Ereignis) eacute uma verdade A verdade que em Ser e Tempo era entendida como (Aleacutetheia) agora a partir do vigorar da teacutecnica possui o sentido de ldquoacontecimento-apropriativo ou seja Ereignis Enquanto no desvelamento (aleacutetheia) se apresentava a ldquocoisa ela mesmardquo como fenocircmeno no acontecimento da teacutecnica se revela o desabrigar de todo misteacuterio O Ges-stell como essecircncia da teacutecnica tem o estatuto de verdade num sentido abrangente e totalizante eacute a verdade que se mostra natildeo como o que se mostra por si senatildeo como aquilo que se afirma por si eacute um acontecimento O que acontece essencialmente eacute o enquadramento de tudo sob a determinaccedilatildeo da representaccedilatildeo e do caacutelculo O algoritmo e o caacutelculo garantem a individuaccedilatildeo da coisa tornada objeto para um sujeito ou seja a representaccedilatildeo Tendo em vista que a representaccedilatildeo possui o caraacutecter de ser-sempre presente podemos entender o papel do homem no advento e manutenccedilatildeo da teacutecnica eacute da ldquonaturezardquo ou destino do homem corresponder a esse apelo teacutecnico Ele corresponde representando sem se dar conta de que ao representar ele natildeo apreende o mundo mas apenas visotildees imagens ou concepccedilotildees de mundo o mundo eacute objetivado Eacute no homem que o mundo se torna Imagem do Mundo

O termo Ges-stell eacute o termo utilizado por Heidegger para caracterizar o ponto culminante da modernidade e do pensamento metafiacutesico ou seja o modelo de racionalidade imperante no qual o pensamento se torna calculador privilegiando um modelo de

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racionalidade no qual o ser2 eacute pensado enquanto coisa ou seja maquinaria

Ao tornar impliacutecito que a tecnologia moderna e o pensamento metafiacutesico partilham da mesma essecircncia Heidegger avanccedila com uma estrateacutegia assente num argumento fundamental a tecnologia e o pensamento nietzschiano caracterizam o niilismo moderno e a superaccedilatildeo da tecnologia moderna soacute poderaacute ocorrer no cerne de uma superaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico Somente uma nova relaccedilatildeo com o ser pode superar a tecnologia moderna

Seraacute a tecnicidade a passagem histoacuterica para o teacutermino a derradeira queda do homem agrave condiccedilatildeo de animal tecnificado e que assim perde inclusive a animalidade originaacuteria que o ligava aos outros animais ou seraacute que ela pode ser tomada antes de mais nada como um abrigo e assim algo capaz de servir de fundamento para repensar e levar nossa existecircncia (Heidegger 2013 p 194)

Nesse contexto podem-se enquadrar as

enigmaacuteticas palavras que o pensador vai buscar em Houmllderlin que versam ldquoMas aiacute onde cresce o perigo aiacute tambeacutem vige aquilo que salvardquo3

Analisemos um pouco esses versos citados por Heidegger Diz o autor seguindo essa estrofe de Houmllderlin que o ldquoperigordquo presente no ponto culminar da metafiacutesica e da essecircncia da tecnologia moderna abre as portas para a sua proacutepria superaccedilatildeo A fazer jus a essa mesma ideia

2 O ser para Heidegger eacute o esquecido da Histoacuteria da Filosofia como metafiacutesica O ser eacute o acontecimento-apropriador (Ereignis) O ser eacute a diferenccedila ontoloacutegica entre ente e ser do ente (ente enquanto ente)

3 Heidegger Martin Caminhos de Floresta edCalouste Gubenkian p40 ldquo A salvaccedilatildeo teraacute de vir do lugar onde se daacute a viragem no interior da essecircncia dos mortaisrdquo

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Heidegger utiliza outra metaacutefora para dizer o mesmo quando afirma que o Ges-stell eacute essencialmente ambiacuteguo eacute uma cabeccedila de Jano por um lado corresponde agrave consumaccedilatildeo da metafiacutesica por outro anuncia a passagem da metafiacutesica a um outro pensamento o Ereignis4

Comeccedilaremos pois nas linhas que se seguem por tentar aprofundar de que forma o Ges-stell corresponde simultaneamente ao aacutepice da metafiacutesica que Heidegger faz coincidir com o pensamento nietzschiano e agrave essecircncia da tecnologia moderna Como se caracteriza e o que significa exatamente o Ges-stell Em seguida procuraremos entender em que medida o Ges-stell eacute o ldquoperigordquo ou seja tentaremos sintetizar no pensamento de Heidegger quais as determinaccedilotildees que fazem com que ele seja o perigo Por fim avanccedilaremos com uma interpretaccedilatildeo na qual se procuraraacute articular a questatildeo do ldquocrescimento daquilo que salvardquo relacionando-a com o conceito de Ereignis e com o que este poderaacute significar no contexto da problematizaccedilatildeo heideggeeriana sobre a teacutecnica O Ges-stell na essecircncia do pensamento Nietzschiano

Heidegger encontra na filosofia nietzschiana como se sabe a consumaccedilatildeo da metafiacutesica no seu percurso da filosofia ocidental iniciado por Platatildeo Para Heidegger Nietzsche eacute um pensador moderno que leva agraves ultimas consequecircncias o pensamento que se inaugurou com o cogito ergo sum de Descartes

4 Seminaacuterio sobre a conferecircncia Tempo e Ser (1962) in Heidegger Conferecircncias e escritos filosoacuteficos S Paulo Nova cultural 1991 p 221-241 onde se lecirc ldquoentre as formas epocais do ser e as transformaccedilotildees do ser no Ereignis situa-se o Ges-stel Este eacute por assim dizer - uma cabeccedila de Jano Pode significar ainda uma constituiccedilatildeo da vontade de vontade e assim ser compreendida como a extrema caracteriacutestica do ser Mas eacute ao mesmo tempo uma forma preacutevia do proacuteprio Ereignisrdquo

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A fim de estabelecer pontes entre Nietzsche e o pensamento metafiacutesico nomeadamente a filosofia moderna Heidegger recorre a uma dupla estrateacutegia nos extensos e inuacutemeros textos dedicados a esta questatildeo primeiramente argumenta que as teorias da vontade de poder e do eterno retorno do mesmo nada mais satildeo do que apoteoses (epifanias) e consumaccedilatildeo do caminho trilhado pela metafiacutesica desde as suas origens onde o ser eacute permanentemente confundido com a essecircncia que se encontra presente na totalidade do ente Em segundo lugar interpreta a vontade de poder e o Uumlbermensch nietzschiano como a transformaccedilatildeo do ego cogito de Descartes num ego volo a saber num Eu quero

Em conformidade com isto para Heidegger no pensamento nietzschiano tambeacutem o querer humano apenas pode existir agrave maneira do impor-se ou seja do forccedilar tudo de antematildeo antes mesmo de tudo dominar a entrar no seu domiacutenio Nesse sentido para ele o pensamento nietzschiano se volta em sua essecircncia para este querer a partir do qual tudo se torna agrave partida e em seguida de uma forma irresistiacutevel material de elaboraccedilatildeo que se impotildee A terra e a atmosfera tornam-se mateacuteria prima Desse modo o proacuteprio homem torna-se material que eacute colocado ao encargo dos objetivos propostos A instalaccedilatildeo incondicionada do impor-se tambeacutem incondicional da elaboraccedilatildeo propositada do mundo vai-se entatildeo configurando-se necessariamente nos moldes do mando humano num processo que surge da essecircncia oculta da teacutecnica

Na sua criacutetica a Nietzsche Heidegger traccedila assim o caminho e aponta as caracteriacutesticas daquilo que considera ser a metafiacutesica da presenccedila inaugurada com o eidos platocircnico Uma breve incursatildeo pela criacutetica heideggeriana agrave metafiacutesica nietzschiana torna-se fundamental para completar a caracterizaccedilatildeo do niilismo e do Ges-stell que

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recorde-se eacute tambeacutem a essecircncia da teacutecnica moderna Ora em que consiste a partilha de sua essecircncia

De fato contrariamente ao Ges-stell o Vor-stellen essecircncia da metafiacutesica moderna que se inicia a partir do subjetivismo cartesiano corresponde segundo Heidegger ao acircmbito da maacutexima objetividade isto eacute do surgimento do mundo como objeto Na sua criacutetica agrave modernidade Heidegger defende que com o cogito ergo sum de Descartes o homem torna-se doravante a proacutepria substacircncia das coisas transforma-se em sujeito a partir da auto-certeza que possui do seu proacuteprio eu e do seu poder de representar que eacute a base fundadora de toda a verdade realidade e valor As coisas tornam-se reais ou atuais apenas na medida em que satildeo objetivadas pelo sujeito cognoscente ldquoMais ainda a transformaccedilatildeo do homem em sujeito e do mundo em objeto eacute uma consequecircncia do estabelecimento da teacutecnica e natildeo o contraacuteriordquo (Heidegger 2002 p334)

No ponto que aqui nos interessa particularmente isto significa que o homem moderno colocou a si mesmo como substacircncia (res cogitans) das coisas ao mesmo tempo em que as reduziu ao estatuto de meras representaccedilotildees As coisas tornam-se reais ou atuais apenas na medida em que satildeo objetivaacuteveis e representaacuteveis pelo sujeito cognoscente Esse subjetivismo maacuteximo conhece seu aacutepice com a tendecircncia da humanidade para se fazer a Imagus Dei ou seja a Imagem de Deus entendido como o criador providencial que domina e calcula a totalidade da entidade como uma obra que ele produziu Nesta medida a identificaccedilatildeo do homem com Deus encontra sua consumaccedilatildeo no absolutismo esteacutetico nietzschiano que corresponde ao triunfo maacuteximo da vontade de poder segundo a doutrina que Heidegger atribui a Nietzsche a saber que tudo o que experienciamos eacute meramente o produto da vontade humana

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Natildeo que a totalidade do querer seja soacute por si o perigo mas antes o querer ele mesmo sob a forma do impor-se no interior do mundo que apenas eacute admitido como vontade O querer que quer a partir dessa vontade decidiu-se jaacute a mandar de um modo absoluto Com esta decisatildeo entrega-se prontamente agrave organizaccedilatildeo total Mas antes de tudo a proacutepria teacutecnica impede qualquer experiecircncia de sua essecircncia (Heidegger 2002 p339)

Ora essa atribuiccedilatildeo niilista de Heidegger ao pensamento nietzschiano partilha da mesma essecircncia Como vimos ambos se instituem como os domiacutenios privilegiados de esgotamento das possibilidades da metafiacutesica Assim o Ges-stell eacute um ponto de esgotamento da metafiacutesica mas eacute tambeacutem enquanto fim um novo comeccedilo Como ponto de esgotamento corresponde simultaneamente a uma transformaccedilatildeo e a um novo estaacutegio da relaccedilatildeo do homem com o ser que permanece ainda inquestionada

A essecircncia da teacutecnica potildee o homem a caminho do desencobrimento que sempre conduz o real de maneira mais ou menos perceptiacutevel agrave disponibilidade Pocircr a caminho significa destinar Por isso denominamos de destino a forccedila de reuniatildeo encaminhadora que potildee o homem a caminho de um desencobrimento Eacute pelo destino que se determina a essecircncia de toda histoacuteria A histoacuteria natildeo eacute um mero objeto da historiografia nem somente o exerciacutecio da atividade humana A accedilatildeo humana soacute se torna histoacuterica quando enviada por um destino5 E somente o que jaacute se destinou a uma representaccedilatildeo objetivante torna acessiacutevel como objeto o histoacuterico da historiografia isto eacute de uma ciecircncia Eacute daiacute que proveacutem a confusatildeo corrente

5 Cf Vom Wesen der Wahrheit 1930 na primeira ediccedilatildeo de 1943 p16s

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entre o histoacuterico e o historiograacutefico (Heidegger 2006 p27)

Assim a essecircncia da teacutecnica eacute um desvelamento um estatuir (stellen) um colocar-em-obra como tal um modo de destinaccedilatildeo do ser Mas o stellen do Ges-stell para aleacutem de evocar sua pertenccedila ao destino do ser possui caracteriacutesticas especiacuteficas que determinam seu modo mais proacuteprio como niilismo

Desse modo a metafiacutesica de Nietzsche eacute a consumaccedilatildeo o ponto culminante e o fim da metafiacutesica moderna porque com a maacutexima subjetividade transformada em perspectivismo a objetividade transforma-se tambeacutem em algo exclusivamente dependente da vontade de vontade do pensamento e da teacutecnica De fato para Heidegger apesar de ser tributaacuteria da concepccedilatildeo moderna de mundo a filosofia de Nietzsche vai mais longe Quando o ser e o real satildeo transformados em valores entramos no reino da subjetividade absoluta do perspectivismo total em que se anula a diferenccedila entre sujeito e objeto O mundo jaacute natildeo eacute concebido como um objeto representado por um sujeito Tudo se transforma em reserva permanente para garantir a conservaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo da vontade de poder Nesse sentido para Heidegger o ser foi transformado num valor ldquoO tornar constante a estabilidade da reserva permanente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria imposta pela proacutepria vontade de poder segura de si mesmardquo (Heidegger 2013 p 311)

Nesse ponto culminar a filosofia nietzschiana para Heidegger corresponde agrave maacutexima ocultaccedilatildeo do ser ou seja ao niilismo extremo No Ges-stell o ser como aleacutetheia encontra-se ausente Desse modo podemos dizer que com o Ges-stell eacute anulada qualquer outra hipoacutetese de desvelamento Essa eacute uma das razotildees porque o Ges-stell eacute o ldquosupremo perigordquo o Ges-stell reuacutene e concentra todas as formas de desencobrimento numa soacute isto eacute transforma

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todo e qualquer desvelamento num desvelamento provocante em que o real no qual o mundo eacute ordenado eacute intimidado a tornar-se apenas fundo disponiacutevel A verdade do ser que significa aleacutetheia retira-se sob o domiacutenio do Ges-stell No universo tecnoloacutegico moderno o desvelamento ocorre para fins uacutenicos desse proacuteprio desvelamento O caraacuteter encobridor e oculto eacute completamente esquecido Encontramo-nos no domiacutenio da ocultaccedilatildeo geral do ser somos apanhados nas malhas do niilismo

Ademais o Ges-stel a com-posiccedilatildeo eacute o ldquoperigordquo porque oculta quaisquer outras formas de desvelamento Mas o eacute tambeacutem e principalmente porque ao ocultar quaisquer outras formas de desvelamento oculta-se tambeacutem a si proacuteprio Diz Heidegger em A Questatildeo da Teacutecnica

Assim pois a com-posiccedilatildeo provocadora da ex-ploraccedilatildeo natildeo encobre apenas um modo anterior de desencobrimento a pro-duccedilatildeo mas tambeacutem o proacuteprio desencobrimento como tal e com ele o espaccedilo onde acontece em sua propriedade o desencobrimento isto eacute a verdade (Heidegger 2006 p30)

Ora na medida em que pertence ao

desvelamento o Ges-stell como qualquer outra forma de desvelamento tende para a ocultaccedilatildeo e por isso faz parte do ldquoperigordquo No entanto o Ges-stell natildeo representa apenas o perigo inerente agrave qualquer forma de desvelamento senatildeo o supremo ldquoperigo6rdquo Por quecirc

6 Isto quer dizer que o que eacute perigoso natildeo eacute a teacutecnica em si (as maacutequinas as automaccedilotildees a energia nuclear os computadores a biotecnologia) mas o destino de desvelamento do ser que rege a teacutecnica ndash porque mais perigoso que a bomba atocircmica eacute o esquecimento do Ser

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Porque o Ges-stell representa aquele modo ldquodestinalrdquo onde todos os engodos da metafiacutesica satildeo levados agraves suas uacuteltimas consequecircncias ou seja sobre a eacutegide e domiacutenio do Ges-stell os entes jaacute natildeo satildeo sequer concebidos como ldquoobjetosrdquo agrave maneira moderna Satildeo mero fundo disponiacutevel para o eterno retorno do mesmo

O perigo consiste na ameaccedila que diz respeito agrave essecircncia do homem na sua relaccedilatildeo com o proacuteprio Ser e natildeo em perigos casuais Este perigo eacute o Perigo Ele encobre-se no abismo para todos os entes Para ver o perigo e para o mostrar tecircm de existir aqueles mortais que chegam primeiro ao abismo[] A salvaccedilatildeo teraacute de vir do lugar onde se daacute a viragem no interior da essecircncia dos mortais

A essecircncia da teacutecnica e o ponto de consumaccedilatildeo da metafiacutesica equivalem a uma ameaccedila pendente sobre a liberdade humana considerada como a ldquoessecircncia da verdaderdquo ou seja a liberdade humana como aquele espaccedilo por onde o ser pode emergir fugindo ao fechamento do ente Num cenaacuterio onde a humanidade se encontra determinada pelo Ges-stell o ser estaacute totalmente ausente Sob esse pano de fundo o Uumlbermensch nietzschiano eacute perspectivado como um soldado tecnoloacutegico que luta exclusivamente pela manutenccedilatildeo do poder Desse modo o homem afasta-se definitivamente do ser arriscando-se a perder o espaccedilo da liberdade Ao perder a sua essecircncia o homem torna-se igual a qualquer ente que se encontra na natildeo ocultaccedilatildeo

Este eacute o retrato para Heidegger da metafiacutesica em sua culminaccedilatildeo Mas agrave luz da pretensatildeo de Heidegger tambeacutem acontece que o poder salvador chega no interior do perigo crescente Com o Ges-stell como vimos a metafiacutesica chega ao seu ponto de culminaccedilatildeo Mas eacute tambeacutem aiacute onde suas possibilidades se encontram esgotadas que Heidegger defende que o niilismo e a consumaccedilatildeo da metafiacutesica satildeo o preluacutedio para algo de novo ldquoSoacute quem se aventura de maneira pensante na

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extrema penuacuteria do niilismo consegue tambeacutem pensar o pensamento superador como o que impotildee uma viragem agrave penuacuteria e se mostra como necessaacuteriordquo (Heidegger 2010 p 341)

As reflexotildees de Heidegger sobre a teacutecnica foram escritas em meados do seacuteculo passado no culminar da tecnologia mecacircnica e no surgimento de tecnologias mais fluidas e natildeo mecacircnicas a energia atocircmica as tecnologias de informaccedilatildeo e de comunicaccedilatildeo O pensamento de Heidegger acompanha esse movimento de forma verdadeiramente uacutenica Nesse sentido antecipa as teorias poacutes-modernas O niilismo corroeu as verdades e enfraqueceu as religiotildees mas invalidou tambeacutem os dogmatismos e desacreditou as ideologias ensinando-nos assim a manter uma razoaacutevel prudecircncia do pensamento um paradigma de pensamento obliacutequo e prudente que nos torna capazes de navegar por entre os escolhos do mar da precariedade na viagem do vir-a-ser na transiccedilatildeo de uma cultura a outra A ideia de ordenaccedilatildeo fundo disponiacutevel reserva permanente colocaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo num fluxo constante em que toma o lugar de tudo a ideia de desaparecimento do objeto desmembramento e fragmentaccedilatildeo da experiecircncia do real antecipam grande parte da reflexatildeo poacutes-moderna sobre a nossa contemporaneidade Mas a absoluta novidade de Heidegger eacute que ele se recusa a pensar o atual em termos estritamente contemporacircneos Eacute no sentido original da palavra teacutecnica que se encontra a chave para a compreensatildeo da tecnologia contemporacircnea em sua dupla face de perigo e salvaccedilatildeo Eacute como ponto culminar da metafiacutesica da presenccedila constante que a tecnologia pode subitamente provocar uma ebuliccedilatildeo do real num movimento em que a presenccedila constante se transforma em permanente disponibilidade

Ora essa permanente disponibilidade tanto pode ser no sentido da integraccedilatildeo do caacutelculo global mas pode criar tambeacutem uma abertura em que subitamente o Ser

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como aleacutetheia se ilumina na compreensatildeo do sem-fundamento (Ab-grund) o abandono do pensamento metafiacutesico e niilista Nesse sentido ler Heidegger eacute acompanhar um pensamento que se pretende original um pensamento que se propotildee pensar fora dos quadros do pensamento calculador moderno eacute acompanhar o pensamento meditativo pelos trilhos da floresta negra em busca de pequenas clareiras

Referecircncias CASANOVA Marco Antocircnio Compreender Heidegger

Petroacutepolis Vozes 2009

CORDEIRO Robson Costa Nietzsche e a vontade de poder como arte uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Ed Universitaacuteria da ufpb 2010

GAOS Joseacute Introducioacuten a el Ser y el Tiempo de Martin Heidegger Meacutexico Ed Fondo de Cultura Econoacutemica 1996

HEIDEGGER Martin A determinaccedilatildeo histoacuterico-ontoloacutegica do niilismo In Nietzsche vol II Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Ed Forense Universitaacuteria 2007

___________________ A essecircncia do fundamento In Marcas do Caminho Trad de Ernildo Stein Petroacutepolis Vozes 2009

___________________ A essecircncia do niilismo In Nietzsche ndash Metafiacutesica e Niilismo Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2000

__________________ A palavra de Nietzsche ldquoDeus estaacute mortordquo Trad de Marco Antocircnio Casanova Satildeo Paulo Natureza Humana Vol 5(2) 471-526 jul-dez 2003

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__________________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2006

__________________ Hinos de Houmllderlin Trad de Lumir Nahodil Lisboa Instituto Piaget 2004

__________________ Loacutegica a pergunta pela essecircncia da linguagem Trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hoock Quadrado Lisboa Calouste Gulbekian 2008

__________________ O acontecimento apropriativo Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2013

__________________ O eterno retorno do mesmo In Nietzsche vol I Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2007

___________________ Ser e Tempo Trad de Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2012

___________________ O niilismo europeu In Nietzsche vol II Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Ed Forense Universitaacuteria 2007

______________ Para quecirc poetas in Caminhos de floresta Trad Bernhard Sylla e Vitor Moura Lisboa Calouste Gulbenkian 2002

LOPARIC Zeljko A escola de Kyoto e o perigo da teacutecnica Satildeo Paulo DWW Editorial 2009

POGGELER Otto A via do pensamento de Martin Heidegger Trad de Jorge Telles de Menezes Lisboa Instituto Piaget 2001

RUumlDIGER Francisco Martin Heidegger e a questatildeo da teacutecnica Porto Alegre Ed Sulinas 2006

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VOLPI Franco O niilismo Trad de A Vennuchi Satildeo Paulo Loyola 1999

A Intriacutenseca Relaccedilatildeo entre o

Amor Fati e a Arte

Eacutellida Jussara Silva Santos1

Quando a expressatildeo em latim amor fati que quer dizer ldquoamor ao destinordquo aparece nas obras do filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche ela natildeo se revela um pensamento capaz de instaurar um sentido que enriqueccedila a filosofia nietzschiana se natildeo estiver intrinsecamente ligado agraves demais doutrinas do filoacutesofo No entanto quando pensado em ligaccedilatildeo com as doutrinas da filosofia nietzschiana o pensamento do amor fati pode ser compreendido como aquele que traz uma noccedilatildeo fundamental no esclarecimento das mesmas como acontece com a doutrina do eterno retorno no qual o amor fati encontra um elemento oculto que dificulta a sua plena adesatildeo a saber o pensamento mais abissal que se refere ao eterno retorno da inutilidade

Em contrapartida quando ligado intrinsecamente agrave vontade de poder o amor fati eacute pensado desde uma ligaccedilatildeo de reciprocidade uma vez que a vontade de poder permite ao amor fati ser percebido como libertador desde a perspectiva de uma vontade criadora a qual eacute atingida a partir da ideacuteia do super homem Assim sendo o presente artigo busca apresentar o amor fati como o sentimento traacutegico que atraveacutes da arte como vontade de poder afirma a vida em todo seu aparecer como tambeacutem no que se manteacutem encoberto ou seja que abarca o cruel o sombrio do ilimitado do disforme do desmedido em seu movimento de apariccedilatildeo isto eacute no seu ganhar forma Como

1 Mestranda em Filosofia pela UFPB - Email eljussaragmailcom Bolsista PIBIC 20142015

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sentimento de afirmaccedilatildeo o amor fati procura superar a dualidade entre mundo verdade (suprassensiacutevel) e mundo aparente (sensiacutevel) A contraposiccedilatildeo entre mundo verdade e mundo aparente

A vida como vontade de poder eacute aquela que estaacute sempre por se fazer desde si mesma do nada e para o nada e desse modo natildeo possui lastro substrato ou finalidade alguma aleacutem da proacutepria ldquomostraccedilatildeordquo aleacutem do proacuteprio aparecer Nesse sentido o que a vida busca eacute sempre auto-superaccedilatildeo atraveacutes de um jogo entre mando e obediecircncia que lhe satildeo proacuteprios como tambeacutem da relaccedilatildeo com a morte no sentido de abrir matildeo daquilo que jaacute foi para dar lugar agravequilo que ainda estaacute por vir ou mesmo que precisa vir para que a vida possa vir a ser Sendo assim como afirma Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche a vida ldquoeacute ela proacutepria a construtora a organizadora que fixa formas para seguidamente as destruirrdquo (FINK 1983 p 19) e desse modo surge aqui uma integraccedilatildeo entre os deuses Apolo e Dioniacutesio como veremos mais adiante Por conseguinte diante desse caraacuteter cruel da vida da existecircncia de natildeo possuir substrato algum ou seja de natildeo possuir sentido ou ordem mas tatildeo somente um movimento perspectiviacutestico de apariccedilatildeo o homem se encontra como que tomado por uma necessidade de mentira para que possa suportar tal existecircncia

Que o homem precisa da mentira para ldquosobrepujarrdquo o caraacuteter cruel da existecircncia eacute o que Nietzsche procura mostrar na obra A vontade de poder que traz um apanhado de textos de anotaccedilotildees e fragmentos poacutestumos do filoacutesofo escritos na deacutecada de 1880 Por conseguinte eacute precisamente no sect853 I que tem como tiacutetulo A arte no Nascimento da trageacutedia que o filoacutesofo diz ldquoTemos necessidade da mentira para sobrepujarmos essa realidade

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essa ldquoverdaderdquo quer dizer para vivermosrdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Ou seja essa passagem sugere que para que a vida ou a existecircncia do homem natildeo venha a perecer ou dito de outro modo para que o homem possa suportar a existecircncia como sendo aquilo que se constitui atraveacutes de um movimento de auto-exposiccedilatildeo tal homem precisa dar um sentido para o seu viver portanto um sentido para o seu existir

Ora como vontade de poder vida se mostra como aquilo que estaacute sempre no empenho para vir agrave aparecircncia ou seja como um movimento de auto-exposiccedilatildeo Mostra-se assim como um modo de se fazer ver como uma perspectiva Nesse sentido vida se constitui no movimento de ldquomostraccedilatildeordquo que natildeo encontra esgotamento antes uma manifestaccedilatildeo dela mesma que natildeo cessa de mostrar-se de vaacuterios modos Natildeo obstante dar um sentido para a vida significa tatildeo somente sobrepor a este mundo outro mundo que natildeo seja devir isto eacute que possua um caraacuteter de ser

Por conseguinte eacute a partir da mentira que o homem encontra uma forma de sobrepujar a dura realidade da vida e do mundo como sendo nada aleacutem de vontade de poder no qual encontra um modo de ldquocrerrdquo na vida Ainda no sect853 I encontramos uma passagem que diz ldquoA metafiacutesica a moral a religiatildeo a ciecircncia foram consideradas neste livro tatildeo-somente como diferentes formas da mentira com seu auxiacutelio crecirc-se na vidardquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Nesse sentido tanto a metafiacutesica como a moral a religiatildeo e a ciecircncia satildeo apontadas por Nietzsche como diferentes formas do homem suportar a existecircncia ou seja satildeo valores criados pelo homem para constituir um mundo a partir do qual o viver seja suportaacutevel Todavia como afirma Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche ldquoa ltltmentiragtgt do intelecto proveacutem da impossibilidade de apreender conceptualmente a vida considerada natildeo no sentido bioloacutegico mas metafiacutesicordquo (1983 p 34) Isto eacute o

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mundo criado a partir da mentira prefigura uma vontade de viver que leva o homem a sustentar a vida atraveacutes de uma ilusatildeo a saber que haacute um mundo verdade que se sobrepotildee ao mundo aparente ao mundo sensiacutevel do devir

Natildeo obstante eacute dessa necessidade de sustentaccedilatildeo da vida dessa necessidade de encontrar um modo de suportar a existecircncia que surge a contraposiccedilatildeo entre o mundo verdade e o mundo aparente como aquilo que caracteriza o niilismo a metafiacutesica o platonismo Esse mundo verdade por sua vez eacute o mundo criado a partir da necessidade de sentido ou seja o mundo criado eacute aquele para o qual o homem estabelece um sentido uma meta um mundo que assume o caraacuteter de verdadeiro um mundo do ser o qual corresponde a uma unidade Desse modo o mundo criado eacute aquele que condena o caraacuteter contraditoacuterio que eacute proacuteprio da vida ou seja como ldquoa vida deve inspirar confianccedilardquo 2 com a criaccedilatildeo do mundo verdadeiro eacute constituiacutedo para a vida um caraacuteter de ser a partir do qual a vida eacute justificada Nesse sentido quando o homem se volta contra o caraacuteter transitoacuterio da vida criando para si um mundo suprassensiacutevel que justifique a vida se oferece para ele a partir dessa criaccedilatildeo como consequecircncia a feacute de modo que a vida nesse sentido parece crescer ou seja se intensificar como diz Nietzsche ldquoNos instantes em que o homem foi enganado em que ludidriou a si mesmo em que acreditou na vida oh como entatildeo esta cresceu nele Que encanto Que sentimento de poder Quanto triunfo de artista no sentimento de poderrdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426)

Portanto o modo de se constituir um mundo verdade que se sobrepotildee ao mundo cruel caoacutetico ao mundo do devir na medida em que prefigura um aspecto negativo que procura negar a vida eacute tambeacutem o que permite a sua conservaccedilatildeo e nesse sentido eacute tambeacutem para o

2 Cf Vontade de Poder 2008 sect 853 I p 426

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homem uma forma de conquistar poder ou seja isso eacute o que conduz o homem a um sentimento profundo de poder a partir do qual vida se volta contra ela mesma natildeo como um modo de buscar destruir a si mesma como uma forma de aniquilamento mas propriamente como uma forma de natildeo se deixar perecer Sendo assim essa forma de condenaccedilatildeo da vida no sentido de buscar atribuir-lhe um caraacuteter de ser um substrato - entendido enquanto apiedamento da vida - eacute o que propriamente a manteacutem

Por conseguinte a partir desse desejo ou melhor dessa vontade de negaccedilatildeo da vida o homem se insere em uma dimensatildeo que em sua essecircncia eacute profundamente criadora isto porque no movimento de negaccedilatildeo da vida se apresenta uma vontade que ainda que seja para negar a vontade de poder ao criar o mundo suprassensiacutevel o mundo verdade tambeacutem se apresenta como vontade criadora Ora se o que caracteriza aqui o niilismo eacute propriamente a negaccedilatildeo da vida e do devir que lhe eacute proacuteprio bem como a criaccedilatildeo de um aleacutem mundo ou seja um mundo verdade entatildeo o niilismo eacute tambeacutem profundamente criador

Desse modo tambeacutem o homem como aquele que cria valores que possam assegurar a vida e dar-lhe sentido tornando-a confiaacutevel eacute tambeacutem um ldquoartistardquo uma vez que inaugura realidades ainda que seja partindo da mentira Nesse sentido o homem ldquomentirosordquo ou seja aquele que encontra na mentira um modo de superaccedilatildeo da vida eacute o artista que cria valor para o qual a ldquometafiacutesica religiatildeo moral ciecircncia ndash todos satildeo apenas rebentos de sua vontade de arte de mentira de fuga diante da ldquoverdaderdquo de negaccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426)

Todavia para Nietzsche ldquohaacute apenas um uacutenico mundo e este eacute falso cruel contraditoacuterio sedutor sem sentidordquo (NIETZSCHE 2008 sect853 I p 426) Desse modo dizer que o mundo eacute sem sentido a partir do

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pensamento nietzschiano eacute dizer propriamente que natildeo possui sentido algum para aleacutem dele mesmo como aparecircncia ou seja como vontade de poder e nesse sentido em contraposiccedilatildeo ao mundo verdade - criado pelo homem - o mundo da aparecircncia natildeo apresenta caraacuteter de ser mas antes de devir Natildeo obstante o mundo do devir natildeo eacute um mundo ordenado antes ele eacute propriamente caos3

Ora a vontade de poder eacute sempre um querer vir agrave presenccedila e desse modo diz respeito ao conjunto de forccedilas ou melhor de impulsos que se combatem entre si que estatildeo sempre em confronto Natildeo obstante assim como a vida eacute um jogo de ldquomostraccedilatildeordquo que natildeo aspira nada a natildeo ser vir agrave aparecircncia ou seja aparecer tambeacutem o mundo como afirma Muumlller-Lauter em seu livro A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche ldquorevela-se como jogo e contra-jogo de forccedilas ou de vontades de poderrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 75) isto eacute como vontade de poder o mundo se revela como um jogo ininterrupto de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo do qual eacute constituiacutedo

Por conseguinte em se tratando ainda do que seria o mundo Nietzsche em uma citaccedilatildeo de novembro de 1887-marccedilo de 1888 escreve ldquoQue o mundo natildeo eacute em absoluto um organismo poreacutem caosrdquo (novembro de 1887-marccedilo 1888 11[74] KGW VIII 2 279 (VP 711) Essa passagem sugere que o mundo deve ser compreendido natildeo somente como sendo um ou seja como uma unidade e desse modo natildeo como ser como eacute caracterizado o mundo verdadeiro o mundo criado antes deve ser compreendido como sendo uma unidade que abarca o muacuteltiplo enquanto vontade de poder

3 Caos aqui natildeo deve ser compreendido no sentido de um estado de completa desordem que antecede a formaccedilatildeo do mundo e que tal formaccedilatildeo toma como ponto de partida mas de acordo com a interpretaccedilatildeo de Heidegger como ldquoaquilo que acossa corre e eacute movimentado aquilo cuja ordem estaacute velada cuja lei natildeo conhecemos imediatamenterdquo (HEIDEGGER 2010 p 440)

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Ou seja como foi dito anteriormente como vontade de poder o mundo prefigura uma multiplicidade de forccedilas que estaacute sempre em confronto umas com as outras que tem como finalidade tatildeo somente sua proacutepria apariccedilatildeo atraveacutes de um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Portanto o mundo aparente ou seja terreno se mostra como sendo contraditoacuterio devir e portanto caoacutetico Nesse sentido como afirma Muumlller Lauter ainda em seu livro A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche ldquoo mundo natildeo eacute um mundo orgacircnico mas mundo de ldquoorganismosrdquo o caos das organizaccedilotildees de poder se alterando permanentementerdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 120) Desse modo o mundo aparente eacute o mundo do devir do movimento de exposiccedilatildeo gratuita e portanto tatildeo somente um jogo inuacutetil de exposiccedilatildeo sobre ele mesmo

Natildeo obstante a partir da compreensatildeo do que foi dito acerca da contraposiccedilatildeo do mundo verdade e do mundo aparente vale salientar que o que Nietzsche quer mostrar eacute que soacute haacute um uacutenico mundo e que este eacute o mundo cruel contraditoacuterio que se mostra para o homem como sendo caoacutetico sombrio por natildeo possuir caraacuteter de unidade alguma antes uma manifestaccedilatildeo de forccedilas que o permite vir agrave aparecircncia que o permite se mostrar Nesse sentido o mundo criado isto eacute o mundo metafiacutesico natildeo passa de uma criaccedilatildeo do homem que busca dar um sentido para a vida sobrepondo a esse mundo sem sentido um mundo verdade que natildeo seja devir que natildeo seja em sua essecircncia contraditoacuterio Essa necessidade de mentira usada para ldquosobrepujarrdquo essa terriacutevel realidade eacute caracteriacutestica do homem niilista metafiacutesico platonista que precisando se sentir em um conforto atraveacutes de uma unidade que o governe sobrepotildee a este mundo um mundo do ldquoserrdquo o qual se mostra como um mundo que possui valores como unidade verdade e finalidade

Todavia para Nietzsche o mundo verdadeiro eacute o mundo cruel e natildeo o mundo metafiacutesico ou seja o mundo

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verdadeiro eacute aquele que se apresenta constituiacutedo atraveacutes de um jogo dionisiacuteaco que ao mesmo tempo em que cria tambeacutem destroacutei Em sua obra intitulada A Gaia Ciecircncia mais precisamente no livro III sect109 sobre o caraacuteter do mundo Nietzsche diz ldquoO caraacuteter geral do mundo no entanto eacute caos por toda a eternidade natildeo no sentido de ausecircncia de necessidade mas de ausecircncia de ordem divisatildeo forma beleza sabedoria e como quer que chamem nossos antropomorfismos esteacuteticosrdquo (NIETZSCHE 2001 sect 109 p 136) Desse modo quando ele diz que o mundo eacute caos natildeo devemos entender que o mundo se mostra como uma desorganizaccedilatildeo ou mesmo uma confusatildeo antes se mostra como aquilo que apresenta uma necessidade proacutepria enquanto um acontecer Ou seja o mundo como sendo caos se mostra atraveacutes de um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo sempre em retomada a partir do qual ele se mostra

Por conseguinte o mundo aparente eacute aquele que se mostra desde afeto e enquanto afeto se mostra para o homem como uma perspectiva que se abre Nesse sentido o afeto eacute o que permite ao homem perceber o real como um processo de apariccedilatildeo de brotaccedilatildeo Desse modo a aparecircncia se mostra como a forma originaacuteria da verdade e portanto estabelece para o mundo aparente enquanto aparecircncia o caraacuteter de ldquoverdaderdquo ou seja do real no seu aparecer Natildeo obstante eacute atraveacutes da arte mais precisamente a partir do fenocircmeno do traacutegico que a verdadeira natureza da realidade pode ser percebida isto eacute a arte eacute o que possibilita perceber vida como sendo tatildeo somente aparecircncia e do mesmo modo o mundo como um jogo ininterrupto do criar e do destruir

A arte como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida Na obra O Nascimento da Trageacutedia publicada em 1872 o mundo eacute decifrado a partir do fenocircmeno da arte

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pelo qual atraveacutes de categorias esteacuteticas se formula a visatildeo fundamental do ser Desse modo para Nietzsche a arte eacute colocada como a ldquotarefa suprema e a atividade propriamente metafiacutesica desta vidardquo4 a partir da qual se daacute o esclarecimento de modo metafiacutesico do conjunto de tudo o que existe ou seja do mundo Afirma Fink em seu livro A Filosofia de Nietzsche que ldquosoacute com os olhos da arte consegue o pensador mergulhar o seu olhar no coraccedilatildeo do mundordquo (FINK 1983 p18) Nesse sentido a arte eacute o que possibilita perceber a vida como sendo aparecircncia isto eacute como aquilo que natildeo possui nada de fundo substancial que esteja por traacutes mas tatildeo somente como aquilo que se auto-expotildee que se mostra Nesse sentido a vida se mostra como aquela que estaacute sempre se voltando para que possa constituir a si mesma e desse modo na mesma medida em que cria tambeacutem destroacutei mundos Como afirma Cordeiro em seu livro Nietzsche e a vontade de poder como arte uma leitura a partir de Heidegger ldquocada mundo criado eacute uma perspectiva de vida que se mostra que aparece eacute uma aparecircnciardquo (CORDEIRO 2010 p60)

Ora o mundo eacute vontade de poder e como vontade de poder prefigura essencialmente um jogo de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nesse sentido como mostra Heidegger em seu livro Nietzsche v I ldquoa partir da arte e como arte a vontade de poder se torna propriamente visiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2010 p67) e desse modo tambeacutem atraveacutes da arte a forccedila que promove a apariccedilatildeo do mundo toma forma no seu aparecer Sendo assim a arte eacute aquilo que consegue apreender a visatildeo traacutegica do mundo Para tanto a arte eacute necessariamente reconduzida por Nietzsche agravequela que seria a arte traacutegica grega isto porque na arte traacutegica grega surgem os elementos dionisiacuteaco e apoliacutenio como elementos que estatildeo sempre em oposiccedilatildeo um ao outro e desse modo

4 O Nascimento da Trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica prefaacutecio para Richard Wagner 2007 p 23

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prefiguram a oposiccedilatildeo entre o finito e o infinito ou seja aquilo que aparece como forma e o disforme que estatildeo presentes no processo de aparecer da vida de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo dos mundos Nesse sentido ldquoApolo simboliza o instinto plaacutestico ele eacute o deus da clareza da luz da medida da forma da composiccedilatildeo harmoniosa em contrapartida Dioacutenisos eacute o deus do caoacutetico e do desmedido do disforme do fluxo borbulhante da vidardquo (FINK 1983 p23)

Natildeo obstante o deus Apolo simboliza o sonho a partir do qual o homem pode construir todo o mundo da bela aparecircncia enquanto que o deus Dioniacutesio representa o ecircxtase ou seja aquilo que rompe com a individuaccedilatildeo Nesse sentido o impulso dionisiacuteaco representa o disforme da vida do mundo isto eacute a vida se mostra como transbordante como aquilo que eacute ilimitada como tatildeo somente possibilidade Apolo por sua vez surge como um impulso que limita daacute forma ou melhor atraveacutes do impulso apoliacuteneo a vida se mostra individualizada em formas e aparecircncias No entanto nesse mostrar-se nesse aparecer da vida do mundo o que se daacute natildeo eacute uma exclusatildeo do deus Dioniacutesio antes ele deve ser percebido como aquilo que estaacute encoberto em tudo o que aparece se mostra e que ao aparecer jaacute aparece como sendo Apolo Desse modo o que parece acontecer aqui eacute um acordo de paz entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco mas isso natildeo quer dizer propriamente que o confronto o querer sempre predominar de um sobre o outro acabe Por conseguinte eacute desse acordo de paz ou mesmo acasalamento que se daacute o nascimento da trageacutedia grega isto porque o grego possuiacutea uma ldquoserenojovialidaderdquo (Heiterkeit) que o permitia espelhar tanto o elemento de Apolo referente ao conjunto de imagens quanto o elemento de Dioniacutesio atraveacutes do coro representado na trageacutedia Desse modo como afirma Cordeiro o grego ldquoao permitir que ecoasse juntamente com o elemento apoliacuteneo o dionisiacuteaco representado pelo coro [] ele teria permitido junto ao que aparece aquilo

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que natildeo aparece mas que eacute fonte de todo aparecerrdquo (CORDEIRO 2010 p 6263)

Todavia natildeo eacute somente na trageacutedia que o grego conseguia expressar sua relaccedilatildeo com a vida com o mundo Tambeacutem atraveacutes da aparecircncia da obra de arte ele conseguia transfigurar todo o sofrimento como tambeacutem a dor da existecircncia Ora a dor da existecircncia a dor da vida diz respeito ao caraacuteter cruel de natildeo ter fundo algum de ser tatildeo somente possibilidade de ser ilimitada e por isso precisando sempre vir a ser delimitada ou seja adquirir forma Frente a esse caraacuteter cruel da existecircncia o homem grego atraveacutes da arte conseguia alcanccedilar um estado de tranquilidade ao dar para a vida formas e imagens No entanto como afirma Cordeiro

[] a arte natildeo deve ser compreendida como a obra de arte mas como a forccedila que impulsiona todo o criar e que faz surgir a obra natildeo como uma forma de fugir ou de encobrir o real naquilo que possui de terriacutevel e abissal Antes a arte deve ser compreendida como a forccedila que ao permitir a transfiguraccedilatildeo da dor primordial da existecircncia em arte natildeo encobre a dor mas a conduz para revelar-se conjuntamente com a obra criada (CORDEIRO 2010 p 63)

Desse modo a arte se mostra como ldquosinocircnimo da proacutepria criatividade da vidardquo (VATTIMO 2010 p 25) Por conseguinte essa concepccedilatildeo esteacutetica se mostra para o grego como uma redenccedilatildeo mas que no entanto natildeo prefigura uma fuga da realidade como faz o niilista A redenccedilatildeo aqui mencionada se daacute na proacutepria vontade por vontade ser um anseio fervoroso na proacutepria aparecircncia Nesse sentido ldquoa arte como vontade de aparecircncia eacute a figura suprema da vontade de poderrdquo (HEIDEGGER 2010 p 193) isto eacute a vontade a partir da arte se mostra como o

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movimento que eacute constitutivo e proacuteprio de todo aparecer Em sua obra A Filosofia de Nietzsche Fink afirma

Tal como o homem o artista-imitador experimenta pela criaccedilatildeo artiacutestica a redenccedilatildeo na obra do mesmo modo que na aparecircncia bela da obra de arte o sofrimento e a fealdade satildeo transfigurados o fundo criador do mundo atinge na aparecircncia bela das muacuteltiplas formas do existente finito a temporaacuteria tranquumlilidade da permanecircncia todavia o jogo do fundo primordial natildeo cria apenas tambeacutem destroacutei em todo o devir das coisas estaacute jaacute a semente do decliacutenio no prazer de engendrar e de amar palpita tambeacutem o prazer da morte do aniquilamento (FINK 1983 p32)

Por conseguinte nesse processo de apariccedilatildeo da arte como vontade de poder o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute somente aquilo que aparece antes o que eacute admirado ou ainda o que eacute contemplado eacute o movimento do sem fundo do caoacutetico vindo a forma sendo delimitado Nesse sentido o que a obra de arte mostra ao mesmo tempo em que reverencia eacute o processo pelo qual o disforme passa vindo a ganhar forma isto eacute vindo agrave aparecircncia Desse modo aquilo que aparece ganha sentido desde o que estaacute encoberto Nesse caso Apolo ao aparecer soacute aparece desde Dioniacutesio Sendo assim ldquosomente a arte garante e assegura a vida perspectivamente em sua vitalidade isto eacute nas possibilidades de sua elevaccedilatildeo e com efeito contra o poder da verdaderdquo (HEIDEGGER 2010 p 389) Natildeo obstante o elemento da arte eacute puramente o sensiacutevel ou seja a aparecircncia sensiacutevel Portanto a arte eacute o que possibilita ao homem afirmar o que a instauraccedilatildeo do mundo suprassensiacutevel condena a saber a dinacircmica perspectiviacutestica da vida Nesse sentido a arte seria a afirmaccedilatildeo do real no seu aparecer enquanto que a busca por uma verdade aleacutem

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da ldquoverdaderdquo como aparecircncia seria um modo de negaccedilatildeo do mundo do ldquoaquirdquo no qual a arte se encontra

O amor fati como afirmaccedilatildeo dos elementos apoliacuteneo e dionisiacuteaco

Vimos que a arte traacutegica a partir dos impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco eacute o que possibilita perceber vida no seu aparecer ou seja no movimento perspectiviacutestico da vida no seu vir agrave presenccedila no se deixar ver Do mesmo modo vimos que no movimento de apariccedilatildeo da arte como vontade de poder estaacute intriacutenseco tanto aquilo que se mostra como tambeacutem o que estaacute encoberto Desse modo compreender a arte traacutegica como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida eacute dizer propriamente que na arte e a partir da arte vida se revela como sendo em sua essecircncia tatildeo somente movimento para ser e do mesmo modo tatildeo somente aparecircncia Nesse sentido como afirma Nietzsche em O Nascimento da Trageacutedia ldquotoda a vida repousa sobre a aparecircncia a arterdquo (NIETZSCHE 2007 p 17) Portanto para Nietzsche a arte natildeo prefigura uma resignaccedilatildeo diante da vida a partir da qual o homem encontra um consolo diante do caraacuteter terriacutevel da existecircncia ao contraacuterio a arte eacute o que permite perceber o caraacuteter cruel da existecircncia mas natildeo negando e sim glorificando todo o terriacutevel o contraditoacuterio

Natildeo obstante a partir dessa compreensatildeo a ideia do traacutegico abarca um pensamento de natildeo somente assumir mas tambeacutem de afirmaccedilatildeo da existecircncia em todos os seus aspectos como se prefigura na expressatildeo amor fati Ora como foi dito anteriormente o objeto da arte eacute o sensiacutevel ou seja a arte deve ser compreendida como aquilo que possibilita a ldquomostraccedilatildeordquo da vontade de poder isto eacute o seu aparecer Desse modo a arte se revela como amor pelo sensiacutevel pela aparecircncia Nesse sentido amar para Nietzsche eacute querer Sendo assim como foi dito

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anteriormente afirmar que ldquoa arte como vontade de aparecircncia eacute a figura suprema da vontade de poderrdquo (HEIDEGGER 2010 p 193) seria o mesmo que dizer que a arte eacute amor pela aparecircncia Portanto o amor fati como amor ao destino entendido como um querer significa aqui querer a proacutepria vontade que aparece atraveacutes da arte como tambeacutem o necessaacuterio no seu movimento perscpectiviacutesitico de vir agrave aparecircncia de se mostrar

Por conseguinte o amor fati natildeo significa somente amar aquilo que se mostra no seu aparecer Antes ele expressa um querer que quer todo o movimento de apariccedilatildeo ou seja o que o amor fati afirma eacute tambeacutem aquilo que estaacute encoberto o disforme o ilimitado que impulsiona todo aparecer isto eacute afirma o movimento a partir do qual irrompe num ver numa perspectiva que se abre Nesse sentido ao levarmos em consideraccedilatildeo o que aqui foi apresentado o conceito do traacutegico a partir do pensamento nietzschiano abarca um pensamento que eacute capaz natildeo somente de assumir como tambeacutem de afirmar todo o movimento do que aparece e que no aparecer quer todo o movimento que se encontra ainda sombrio caoacutetico Desse modo o amor fati como o que afirma todo o terriacutevel da existecircncia eacute o que permite ao homem se voltar para esse caraacuteter terriacutevel e natildeo ver isso como resignaccedilatildeo antes como transbordamento superabundacircncia isto eacute ver isso como algo a ser louvado

Consequentemente o amor fati como aquilo que afirma o traacutegico se mostra como ldquouma foacutermula de afirmaccedilatildeo suprema nascida da abundacircncia da superabundacircncia um dizer Sim sem reservas ao sofrimento mesmo agrave culpa mesmo a tudo o que eacute estranho e questionaacutevel na existecircncia mesmordquo (NIETZSCHE 2008 p 60) Isto eacute o amor fati prefigura um modo de pensar ou dito de outro modo uma forma de perceber como tambeacutem de acolher tanto a criaccedilatildeo como a destruiccedilatildeo uma vez que ama que quer toda a inocecircncia do

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vir-a-ser Nesse sentido o amor fati natildeo condena ou nega antes aceita afirma o real como aquilo que eacute constituiacutedo no eterno movimento de aparecimento Como nos mostra Fink em sua obra A Filosofia de Nietzsche ldquoo sentimento traacutegico da vida eacute antes a aceitaccedilatildeo da vida a jubilosa adesatildeo tambeacutem ao horriacutevel e ao medonho agrave morte e ao decliacuteniordquo (FINK 1983 p 18) Dito isto o amor fati pode ser compreendido como esse sentimento traacutegico que afirma o eterno conflito entre o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco pois afirma que todas as formas ou aparecircncias finitas ldquosatildeo apenas ondas temporaacuterias na grande mareacute da vidardquo (FINK 1983 p 18)

Natildeo obstante para amar todo o movimento de vir agrave aparecircncia como tambeacutem para perceber o caraacuteter terriacutevel da existecircncia e natildeo se resignar diante disso eacute preciso jaacute estar tomado por amor ou seja por afeto Nesse sentido o afeto deve ser compreendido como o que se dispotildee ou seja ser afetado ou estar tomado pelo afeto eacute propriamente deixar a coisa - aqui a vontade de poder - aparecer em diferentes perspectivas Por conseguinte esse estar tomado por afeto diz respeito a uma disposiccedilatildeo que natildeo deve ser compreendida como subjetiva uma vez que aqui natildeo se pretende amar antes se eacute tomado pelo amor no sentido de ser tocado Em seu livro Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte uma leitura a partir de Heidegger Cordeiro ao falar do artista como aquele que estaacute tomado por um ldquoverrdquo interpreta esse estado de afecccedilatildeo do seguinte modo

O artista eacute aquele que traz em si de uma maneira muito proacutepria a vontade de ilusatildeo de aparecircncia Ele como criador deixa que no vazio do seu ser um mundo (uma perspectiva de ser) se molde e que nesse moldar-se vaacute definindo os contornos do seu eu Para isso ele precisa estar atento agrave ldquoescutardquo para assim poder ser tocado ldquoEscutarrdquo tem aqui o mesmo sentido que ldquoverrdquo Nenhum dos dois significa nada fisioloacutegico bioloacutegico ou psiacutequico O

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homem precisa ldquoescutarrdquo mas natildeo enquanto um eu uma consciecircncia que esteja agrave espera de um aviso de um anuacutencio Por mais estranho que pareccedila natildeo eacute o eu que ldquoescutardquo Antes para ldquoescutarrdquo eacute preciso sossegar o eu acalmar as suas pretensotildees de entidade livre autocircnoma (CORDEIRO 2010 p 74)

Por conseguinte a vivecircncia radical do amor fati se daacute para o homem no deixar que no vazio do seu ser a vida - que prefigura dor e o sofrimento por ser aquilo que precisa eternamente voltar a constituir a si mesmo - se mostre de diferentes perspectivas atraveacutes da arte como vontade de poder Natildeo obstante o homem para se deixar ser tomado pelo amor fati deve ser como o homem grego que mergulhou fundo na dor e que diante do sofrimento e do terriacutevel voltou-se para justificar isso como obra de arte natildeo somente aceitando mas afirmando a vida como aquilo que natildeo possui caraacuteter de ser Nesse sentido ao justificar a dor atraveacutes da obra de arte o grego expressou natildeo somente a sua dor como tambeacutem uma forma de glorificar o terriacutevel o horrendo Desse modo se daacute precisamente o amor fati como ldquoo dizer Sim agrave vida mesmo em seus problemas mais duros e estranhos a vontade de vida alegrando-se da proacutepria inesgotabilidade no sacrifiacutecio de seus mais elevados tipos ndash a isto chamei dionisiacuteacordquo (NIETZSCHE 2008 p 61)

Diante do que foi dito a arte se mostra como a forma mais elevada de percepccedilatildeo e afirmaccedilatildeo da vida como aquilo que ela eacute a saber como aparecircncia como sendo sem fundo Nesse sentido a arte se mostra como aquilo que possibilita vida se mostrar ou seja aparecer Em sua obra A vontade de poder mais precisamente no sect853 II Nietzsche intensifica ainda mais a relaccedilatildeo da arte com a vida ao dizer

A arte e nada como a arte Ela eacute a grande possibilitadora da vida a grande sedutora para a

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vida o grande estimulante da vida A arte como uacutenica forccedila contraacuteria superior em oposiccedilatildeo a toda vontade de negaccedilatildeo da vida anticristatilde antibudista e antiniilista par excellence A arte como a redenccedilatildeo de quem conhece - daquele que vecirc e quer ver o caraacuteter temiacutevel e problemaacutetico da existecircncia do conhecedor [-] traacutegico A arte como a redenccedilatildeo do homem da accedilatildeo - daquele que natildeo apenas vecirc o caraacuteter terriacutevel e problemaacutetico da existecircncia mas antes o vive e quer vivecirc-lo do homem que eacute guerreiro traacutegico do heroacutei A arte como a redenccedilatildeo do sofredor - como caminho para estados nos quais o sofrer eacute querido transfigurado divinizado nos quais o sofrer eacute uma forma do grande arrebatamentordquo (NIETZSCHE 2008 p427 sect853 II)

Ora diante do que foi dito o amor fati eacute a expressatildeo maacutexima de afirmaccedilatildeo da vida e desse modo se opotildee a negaccedilatildeo da vida ou mesmo a qualquer busca por conforto por seguranccedila por ausecircncia de sofrimento antes natildeo somente permite ao homem reconhecer o caraacuteter cruel como tambeacutem abraccedila a vida enquanto fonte borbulhante isto eacute enquanto o delimitado ou ilimitado ganhando forma no aparecer no vir agrave presenccedila Portanto o amor fati permite ao homem perceber ldquoo mundo como uma obra de arte que daacute agrave luz a si mesma- -rdquo (NIETZSCHE 2008 sect796 p397) e desse modo estaacute intrinsecamente ligado agrave obra de arte mais precisamente a arte traacutegica tanto no que diz respeito ao aparecer como no proacuteprio criar Referecircncias AZEVEDO Vacircnia Dutra Um senatildeo diante da justificaccedilatildeo

eacutetica Amor fati em Nietzsche In Pontiacutefica Universidade Catoacutelica de Campinas Dissertatio [33] 113 ndash 145 inverno de 2011

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CORDEIRO Robson C Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte Uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Editora Universitaacuteria UFPB 2010

FINK Eugen A filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Lourenccedilo D Peixoto Lisboa Editorial Presenccedila 1983

NIEZTSCHE F W A Gaia Ciecircncia Trad P C L Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

___________ A Vontade de Poder Trad Marcos Siineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

___________ Assim Falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad M F Santos Petroacutepolis RJ Vozes 2007

___________ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad P C L Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

___________ O Nascimento da Trageacutedia ou Helenismo e Pessimismo Trad J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007

___________ Fragmentos Poacutestumos 1885-1887 Volume VI Trad Marco Antocircnio Casa Nova Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 2013

VATTIMO Gianni Diaacutelogo com Nietzsche ndash Ensaio 1961 -2000 Trad Silvana Cobucci Leite Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

RUBIRA Luiacutes O amor fati em Nieztsche Condiccedilatildeo Necessaacuteria para a Transvaloraccedilatildeo In Polymatheia ndash Revista de Filosofia Fortaleza vol IV N 6 2008 p 227 ndash 236

Notas sobre Hermenecircutica em

Heidegger e Gadamer

dois sentidos diferentes

Ernildo Stein

I

A questatildeo da relaccedilatildeo entre Heidegger e Gadamer

quantos estatildeo envolvidos com isso Jaacute se tentou tanto uma aproximaccedilatildeo e jaacute se multiplicaram os equiacutevocos quase ao infinito Os dois autores satildeo realmente dois mundos A gente faz uma espeacutecie de complementaccedilatildeo de um com o outro e isto eacute impossiacutevel Tenho um artigo sobre a diferenccedila entre os dois no meu livro Inovaccedilatildeo na filosofia Eacute muito concentrado e aborda um aspecto

Quando me despedi de Heidegger em dezembro de 1965 falei na minha tese e ele me disse se vocecirc quer falar do ciacuterculo hermenecircutico tem que falar com Gadamer Eu jaacute tinha lido Verdade e meacutetodo mas natildeo tinha entendido bem seu nuacutecleo No livro Hermenecircutica e Epistemologia publicado na comemoraccedilatildeo dos 50 anos da obra de Gadamer digo alguma coisa mas sobretudo traduzo aiacute um artigo de A De Waelhens que diz coisas importantes Devem-se tratar os dois autores como dois mundos e mesmo a Hermenecircutica nos dois tem sentido muito diferente Recebi um pequeno livro de entrevistas talvez as uacuteltimas de Gadamer a um ex-colega meu de doutorado na Alemanha Silvio Vieta em que este lembra a Gadamer uma frase de Heidegger Laacute em Heidelberg estaacute Gadamer querendo resolver tudo com a Hermenecircutica A reaccedilatildeo de Gadamer eacute clara mas sem muita surpresa

Lembro esses dois episoacutedios para se perceber como os dois filoacutesofos se relacionavam Era uma relaccedilatildeo

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respeitosa de mestre e disciacutepulo Mas os caminhos que terminaram seguindo natildeo coincidiam Eram dois mundos Mas eram amigos e criacuteticos ao mesmo tempo Heidegger tinha plena consciecircncia da imensidatildeo de sua obra e sabia que Gadamer tinha sido seu melhor disciacutepulo e que ele tinha levado adiante algo que Heidegger natildeo fizera apesar de ser consequecircncia de seu Ser e tempo Mas se isto que Gadamer fizera era estranho para Heidegger tambeacutem ao mesmo tempo era de consequecircncias novas e muito beneacuteficas para a tradiccedilatildeo da fenomenologia Hermenecircutica A ideia de Gadamer de ler a Hermenecircutica aplicada a toda a tradiccedilatildeo como historicidade do compreender - da verdade da arte da histoacuteria e da linguagem na cultura era genial mas natildeo trazia o impulso especulativo de Heidegger Sem Heidegger a Filosofia do seacuteculo vinte natildeo seria o que eacute Gadamer natildeo chegou a esta altura Mas ainda assim noacutes olhariacuteamos o mundo da cultura e da filosofia com muito menos forccedila e plenitude se natildeo houvesse Gadamer com sua Hermenecircutica filosoacutefica

Heidegger inaugurou um paradigma onde Gadamer encontrou um ambiente para a sua visatildeo Mas sem Gadamer talvez natildeo lecircssemos coisas de Heidegger como as lemos No entanto eacute claro que natildeo daacute para interpretar Heidegger a partir de Verdade e Meacutetodo Gadamer tem muito do neokantismo na sua Hermenecircutica E isto foi inovador Gadamer que Heidegger nem avaliou bem nos anos vinte foi no entanto muito maior filoacutelogo que Heidegger Conhecia muito mais grego mas Heidegger com seu grego fez muito mais filosofia E as filosofias dos dois satildeo muito diferentes justamente por isso E por isso tambeacutem a Hermenecircutica eacute muito diferente nos dois Heidegger fala da filosofia (ou fenomenologia) Hermenecircutica a filosofia eacute substantivo e a Hermenecircutica eacute adjetivo Gadamer substantiva a Hermenecircutica e acrescenta o adjetivo filosoacutefica E isto significa um abismo de diferenccedila por mais que as duas tenham algo em comum

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Quero clarear uma coisa que pouca gente vecirc e eacute essencial Nem Heidegger nem Gadamer se pode aplicar diretamente a campos determinados do conhecimento Mas olhamos diferente o conhecimento quando conhecemos os dois No fundo Gadamer trouxe a sua Hermenecircutica filosoacutefica como uma teoria geral da Hermenecircutica para todas as Hermenecircuticas das diversas aacutereas do conhecimento De Waelhens diria que Gadamer construiu uma Hermenecircutica das Hermenecircuticas de cada campo do conhecimento De outro modo cada interpretaccedilatildeo de um campo especiacutefico com sua Hermenecircutica deve seguir certas questotildees centrais que Gadamer desenvolveu como modo de tratamento em sua Hermenecircutica filosoacutefica Na sociologia natildeo fazemos Hermenecircutica filosoacutefica no direito tambeacutem natildeo O que fazemos eacute seguir passos que aprendemos e que se tornam importantes nas Hermenecircuticas particulares Gadamer nos mostra os cuidados que temos que ter quando interpretamos o direito na Hermenecircutica que fazemos no direito etc Portanto uma teoria geral da Hermenecircutica (por isso filosoacutefica) daacute diretrizes e consciecircncia histoacuterica para as Hermenecircuticas particulares

Radicalmente diferente eacute a Hermenecircutica em Heidegger Digamos assim ele quer fazer uma ontologia Hermenecircutica ou uma fenomenologia Hermenecircutica com a qual quer mostrar um sucedacircneo da metafiacutesica uma metafiacutesica natildeo absoluta uma metafiacutesica enraizada no ser humano um metafiacutesica como ciecircncia procurada (episteme zetoumene) e natildeo uma metafiacutesica como ontoteologia Vecirc-se a diferenccedila da intenccedilatildeo heideggeriana ele abrange toda a metafiacutesica com seu projeto de uma Hermenecircutica fenomenoloacutegica ou sua ontologia Hermenecircutica Por isso se deve ver a diferenccedila de projetos entre as duas Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer Contudo haacute algo que as aproxima eacute que Gadamer assume e reconhece o projeto heideggeriano e eacute dele que aprende o tipo de

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filosofia com a qual pode desenvolver a sua Hermenecircutica filosoacutefica Heidegger natildeo serve diretamente para aquilo que Gadamer pretende sua Hermenecircutica da Hermenecircutica ou melhor das Hermenecircuticas de todos os campos de saber que lidam com as humanidades com as filoloacutegicas e nelas incluindo ateacute a filosofia na medida em que lida com a linguagem Mas eacute claro que Heidegger lida com a linguagem em outro niacutevel na medida em que introduz uma dupla estrutura a estrutura apofacircntica e a estrutura Hermenecircutica A diferenccedila neste niacutevel entre Heidegger e Gadamer eacute de dimensatildeo ou de acircmbito ou de alcance Gadamer opera no paradigma que Heidegger instaurou e dele tem conhecimento e com isso produz seu Verdade e meacutetodo Pode-se ver a maior dimensatildeo que tem a obra de Heidegger diante de Gadamer E contudo na manhatilde em que este daria sua uacuteltima aula em Heidelberg ao se aposentar o primeiro que entrou na sala vindo de Freiburg foi Heidegger

II Tratava-se nesse texto de trazer algumas distinccedilotildees

para evitar certas superposiccedilotildees entre os dois autores Este eacute o melhor caminho para compreender a especificidade de ambos Haacute no entanto dois aspectos que devem ser mostrados e que significam levar adiante o trabalho com a Hermenecircutica O primeiro constitui o contexto em que se situa a grande revoluccedilatildeo de Heidegger no contexto da filosofia ocidental com a proposta de tentar responder a questatildeo fundamental Que eacute o ser qual o sentido do ser Em funccedilatildeo dela o filoacutesofo escreveu seu livro Ser e tempo Nele desenvolve a analiacutetica existencial introduz o meacutetodo fenomenoloacutegico hermenecircutico Mas o meacutetodo representa aqui um caminho a ser usado para introduzir de um lado a criacutetica ao dualismo da filosofia da modernidade e revelar como o viacutenculo entre ser e compreensatildeo implicava num

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novo conceito de mundo ligado ao ser humano enquanto ser-no-mundo o ser-aiacute (Dasein)

O ser-aiacute compreende o ser e na mesma medida se compreende a si mesmo Surge a questatildeo do ciacuterculo hermenecircutico e com ele se introduzia ao mesmo tempo uma questatildeo que desde sempre estava operando na questatildeo da linguagem

A distinccedilatildeo que Heidegger introduz entre a dimensatildeo apofacircntica e a dimensatildeo Hermenecircutica para dar conta de uma dupla estrutura da linguagem desvela um modo de ser ligado ao mundo o estar vinculado do ser-aiacute ao mundo praacutetico O compreender-se deste modo daacute agrave dimensatildeo Hermenecircutica uma caracteriacutestica existencial que iraacute atravessar toda a anaacutelise dos existenciais e com isto a linguagem recebe uma espeacutecie de compromisso com o modo de ser-no-mundo praacutetico Supera-se deste modo a forma puramente loacutegica de pensar a linguagem e o discurso Entatildeo tambeacutem a questatildeo do ser deixa de ser apenas uma questatildeo loacutegica Sem abandonar a forma loacutegico-analiacutetica ela traz o elemento existencial do Dasein como modo-de-ser-no-mundo para a linguagem Dessa maneira sempre que falamos operamos em dois niacuteveis o apofacircntico e o hermenecircutico Como no niacutevel cotidiano de comunicaccedilatildeo usamos a gramaacutetica com suas exigecircncias loacutegicas natildeo manifestamos a outra estrutura a Hermenecircutica Mas ela estaacute presente e nos liga como falantes ao mundo praacutetico Como ela sempre jaacute estaacute antecipada quando nos comunicamos pela gramaacutetica da loacutegica podemos falar de uma preacute-compreensatildeo em todo nosso discurso

Eacute ela que impede a gramaacutetica de ser puramente formal e de noacutes nos comunicarmos no vazio de um discurso positivo Levamos o hermenecircutico sempre conosco Podemos continuar falando mas essa preacute-compreensatildeo nos acompanha dando-nos a dimensatildeo que sustenta a linguagem loacutegica E eacute dela que ateacute precisamos para falar da dimensatildeo Hermenecircutica Todo nosso campo

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de conhecimento no entanto eacute tambeacutem hermenecircutico Podemos falar aqui tambeacutem de uma circularidade na medida em que natildeo saiacutemos de um campo da linguagem para o outro campo A dupla estrutura aponfacircntico-Hermenecircutica nos abriga existencialmente

Mostrar isto foi a grande revelaccedilatildeo de Ser e tempo Mas este mostrar percorre toda a analiacutetica existencial e eacute atravessado pela fenomenologia Hermenecircutica Quando falamos portanto em Hermenecircutica trazemos conosco todas as dimensotildees do ser-no-mundo que Heidegger mostrou com sua fenomenologia Hermenecircutica e existencial A diferenccedila ontoloacutegica a distinccedilatildeo entre ser e ente o proacuteprio ciacuterculo hermenecircutico ontoloacutegico em que compreendemos ser e nos compreendemos enquanto somos tudo isso soacute faz sentido se formos capazes de realizar em nosso modo de ser e de operar o modo hermenecircutico-existencial Desde sempre somos assim no mundo

Devemos portanto a Heidegger esta dimensatildeo nova que ele mostrou explicitamente A grandeza da intuiccedilatildeo e seu desenvolvimento em Verdade e meacutetodo foi possiacutevel porque Gadamer compreendeu esta dimensatildeo do pensamento de Heidegger Eacute por isso que natildeo falamos da Hermenecircutica filosoacutefica sem que Heidegger esteja presente E aqui comeccedila a proximidade praacutetica que liga nossas anaacutelises quando operamos nossas interpretaccedilotildees num acircmbito em que aproximamos Heidegger e Gadamer

Conveacutem aprofundarmos a questatildeo do ciacuterculo hermenecircutico que em nossos dias eacute considerada um elemento indiscutiacutevel se natildeo quisermos perder a dimensatildeo que necessariamente acompanha todo conhecimento quando estamos analisando a questatildeo da Hermenecircutica

Temos poreacutem a tendecircncia de atribuir agrave questatildeo do ciacuterculo uma espeacutecie de ponto uacuteltimo que basta aceitar para que o nosso discurso se possa desenvolver no contexto adequado No entanto mesmo aceitando a dupla estrutura

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do mundo da linguagem e tendo evitado o encolhimento de nosso dizer surpreende-nos a necessidade a de uma interpretaccedilatildeo de todo o quadro que formamos O ciacuterculo hermenecircutico eacute conhecimento mas natildeo envolve eventos objetos processos accedilotildees relaccedilotildees e pessoas como se fossem conteuacutedos garantidos pela representaccedilatildeo e por um sujeito Natildeo eacute simples entrar neste ambiente do ciacuterculo hermenecircutico

Somos levados pelo cotidiano de nosso falar a olhaacute-lo como o chatildeo de nossa experiecircncia da empiria No entanto a linguagem que se desenvolve para falar do ciacuterculo hermenecircutico e para alimentaacute-lo eacute filosoacutefica Natildeo aprendemos a falar de modo filosoacutefico sem que tenhamos entrado num espaccedilo em que renunciamos agrave gramaacutetica da objetivaccedilatildeo Mas se atingimos esta dimensatildeo que transcende o discurso dos objetos surpreende-nos a necessidade de saber pensar a condiccedilatildeo da relaccedilatildeo desta linguagem com o todo

Como nos relacionamos com o todo que se potildee no caminho Eacute claro que jaacute apreendemos que o ciacuterculo hermenecircutico surgiu com a fenomenologia e laacute Heidegger nos fala da compreensatildeo do ser e da compreensatildeo que temos de noacutes numa relaccedilatildeo reciacuteproca Aiacute acontece um todo Que todo eacute esse Eacute o todo de uma compreensatildeo e o todo de uma linguagem que diz A questatildeo que se insinua nasce justamente neste encontro Como afirmar este todo Pois se afirmo o todo estou fora dele e entatildeo natildeo eacute o todo Se no entanto estiver no todo nada dele posso dizer O que termino fazendo eacute uma narrativa de mim no todo Mas esta narrativa com que comeccedilo a me introduzir no todo estaacute fora do todo e entatildeo novamente o todo natildeo eacute o todo

Quando falamos no ciacuterculo hermenecircutico se introduz portanto o paradoxo que materializamos no exposto Temos que concluir que o ciacuterculo hermenecircutico eacute um todo com que operamos justamente para compensar a

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impossibilidade de afirmar um absoluto ou absolutos objetivados Mas ele somente pode estar neste lugar porque na filosofia natildeo lidamos com a compreensatildeo dos objetos nem com a compreensatildeo da totalidade dos objetos mas com o todo do nosso compreender

III

De maneira um tanto compacta apresentei o lugar

de origem da questatildeo da Hermenecircutica em Heidegger Com toda a tradiccedilatildeo da Escola Histoacuterica pelas costas depois de muitos anos de contato com a metafiacutesica e a ontologia da filosofia grega e medieval e das questotildees extraiacutedas das leituras de textos de Satildeo Paulo e outros autores da Escritura e de estudos dos neokantianos Heidegger se tornou assistente e interlocutor de Husserl

A entrada na Fenomenologia representou para Heidegger um modo novo de trabalho filosoacutefico com uma bagagem de conhecimento da tradiccedilatildeo ao contraacuterio de seu mestre Husserl que vinha da matemaacutetica e da loacutegica Tinha no entanto posto como subtiacutetulo a partir do segundo volume de suas Investigaccedilotildees loacutegicas ldquoFenomenologia do conhecimentordquo

Atento ao modo de investigaccedilatildeo de Husserl e tentando situar o meacutetodo fenomenoloacutegico no contexto de suas experiecircncias introduzira na aprendizagem com o mestre materiais muito diferentes Mas natildeo imaginemos que Heidegger natildeo tivesse sido impressionado com a questatildeo da intencionalidade e outras categorias que Husserl desenvolvera influenciado por Franz Brentano

Heidegger entretanto introduziria toda a sua experiecircncia da Histoacuteria da Filosofia na recepccedilatildeo e no estudo da filosofia Esta combinaccedilatildeo daria como resultado no comeccedilo um modo diferente de olhar os procedimentos da fenomenologia transcendental de Husserl para mais

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adiante introduzir materiais que conduziriam agrave fenomenologia Hermenecircutica

Vamos observar um tanto de fora esta combinaccedilatildeo e as modificaccedilotildees que foram sendo trazidas pelos interesses teoacutericos de Heidegger e entatildeo iremos perceber que muito cedo estavam aparecendo sinais de uma nova direccedilatildeo na Filosofia Eacute este desenvolvimento que denominarei de nascimento de um novo paradigma Natildeo tentarei descrever todos os elementos que significam e trazem motivos para esta passagem e nascimento de um paradigma Mas ouso adiantar que as condiccedilotildees para o nascimento do paradigma da fenomenologia Hermenecircutica estavam realmente se gestando

Tudo que em Husserl era essencial para seu trabalho e sua interpretaccedilatildeo passaria a ser visto e articulado de outro modo Assim a proacutepria ideia de intencionalidade de representaccedilatildeo de conhecimento de reflexatildeo a relaccedilatildeo sujeito e objeto tudo isso mudaria e tomaria outro sentido E seriam introduzidos vaacuterios novos termos jaacute muito cedo como vida mundo ser histoacuteria tempo ou termo husserlianos seriam transformados como transcendental reduccedilatildeo indicaccedilatildeo formal categoria

Pelo princiacutepio dos anos vinte Heidegger jaacute estava interpretando a seu modo autores e temas da nova fenomenologia e introduzira uma combinaccedilatildeo entre termos filosoacuteficos claacutessicos e novos conceitos As expressotildees que passam a predominar jaacute nos datildeo ideia de uma nova leitura uma nova interpretaccedilatildeo e um novo modo de pensar a Fenomenologia com temas novos Assim se chegaria agrave combinaccedilatildeo entre ontologia e fenomenologia e fenomenologia Hermenecircutica Estava se configurando uma nova gramaacutetica nova sintaxe e semacircntica proacuteprias Tudo poreacutem era conduzido por uma nova ideia de compreender transcendental e outros elementos que serviriam de moldura e bastidor para a linguagem que conduziria ao universo terminoloacutegico de Ser e tempo Estava sendo

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configurado um novo paradigma que conveacutem examinar um pouco

IV

A partir desta etapa a interpretaccedilatildeo de certos

claacutessicos da Histoacuteria da Filosofia usando seu modo novo de concepccedilatildeo do meacutetodo fenomenoloacutegico que o levara a uma atitude nova diante da Filosofia e de seus temas centrais Heidegger se fixa um objetivo ambicioso para sua anaacutelise O filoacutesofo quer retomar a questatildeo da filosofia que Platatildeo e Aristoacuteteles tinham posto e procurado responder em vatildeo QUE Eacute O SER Mas desde sempre e agora quando perguntamos pelo ser entramos em aporia confessa Platatildeo no diaacutelogo Sofista

Se as coisas satildeo assim Heidegger quer retomar a questatildeo na forma da pergunta pelo sentido do ser Para isso o filoacutesofo propotildee uma analiacutetica existencial guiado pelos procedimentos de seu meacutetodo fenomenoloacutegico Realiza uma exposiccedilatildeo provisoacuteria do meacutetodo e nela iraacute aparecer a distinccedilatildeo entre apofacircntico e hermenecircutico onde o tornado fenocircmeno se mostraraacute na superfiacutecie como fenocircmeno vulgar e na profundidade como fenocircmeno no sentido fenomenoloacutegico Entatildeo torna-se possiacutevel desenvolver a analiacutetica existencial que seraacute atravessada pela dupla estrutura a que acena o meacutetodo fenomenoloacutegico

Eacute preciso perguntar pelas estruturas existenciais que constituem o Dasein o ser no mundo e que aparecem ocultas nas estruturas existenciaacuterias do cotidiano Basicamente isto se constitui a partir da distinccedilatildeo entre ser e ente Geralmente estamos envolvidos pelo ocupar-nos com os entes e esquecemos o ser Daiacute o filoacutesofo passa a operar com a diacuteade velamento-desvelamento Esta vem pelo meacutetodo fenomenoloacutegico atravessa todas as dimensotildees do Dasein os existenciais e se ancora na diferenccedila ontoloacutegica Mas o filoacutesofo atravessa toda sua anaacutelise pelo

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velamento e desvelamento que iraacute tomar tambeacutem a forma do autecircntico e do inautecircntico na analiacutetica existencial dos existenciais Apesar de que o mais proacuteximo o ser sempre parece o mais longiacutenquo porque estamos envolvidos com a ocupaccedilatildeo com os entes que nos parecem o mais proacuteximo tendemos a este jogo em que temos que lutar contra a tendecircncia de confundir o proacuteximo com o longiacutenquo para natildeo esquecer o ser pelo ente

Poderiacuteamos ir mais longe mas para o bom entendedor a anaacutelise realizada revela porque a dimensatildeo Hermenecircutica a mais proacutexima (que nos parece a mais longiacutenqua) tende a ser esquecida pela dimensatildeo apofacircntica (na verdade a mais longiacutenqua) que nos parece a mais proacutexima Assim procedemos em todas as nossas formas de objetificaccedilatildeo e subjetivaccedilatildeo e temos apenas a Hermenecircutica para mostrar o engano do nosso modo de ser cotidiano jaacute que atraveacutes dela e da dupla estrutura que protege nossa linguagem de cair no positivo no apofacircntico na solidatildeo loacutegica

O mais importante de tudo que dissemos eacute que a Hermenecircutica estaacute ligada ao problema do ser Por isso a compreensatildeo do ser daacute esta densidade e sustenta a dimensatildeo uacutenica da Hermenecircutica Com a Hermenecircutica ligada agrave compreensatildeo do ser surge o caraacuteter duplo da interpretaccedilatildeo Interpretamos para compreender mas jaacute sempre compreendemos para interpretar A compreensatildeo do ser pelo Dasein eacute resultado da hegemonia ocircntico-ontologica do Dasein Eacute por isso que quando interpretamos jaacute sempre compreendemos este compreender eacute uma estrutura existencial do Dasein Esta a razatildeo porque podemos falar de uma preacute-compreensatildeo que antecipa qualquer interpretaccedilatildeo

Pelo que mostramos em nossa anaacutelise o paradigma heideggeriano se articula a partir de uma nova tentativa de resposta agrave questatildeo do ser E isto traz como consequecircncia ou como resultado da analiacutetica existencial uma vinculaccedilatildeo

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da compreensatildeo com o ser do Dasein e com o ser Heidegger mostra isto em suas anaacutelises do compreender em vaacuterios paraacutegrafos de Ser e tempo Eacute nessa linha de reflexatildeo que encontraremos as verdadeiras razotildees de o filoacutesofo ser o fundador de um novo paradigma que pode ser chamado de fenomenologia Hermenecircutica A Hermenecircutica que resulta deste paradigma eacute uma Hermenecircutica ontoloacutegica Nesta Hermenecircutica se fundam todas as Hermenecircuticas tambeacutem a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer

V

Podemos imaginar o volume de informaccedilatildeo que

traz um pensamento filosoacutefico que terminamos reconhecendo como um paradigma Natildeo se trata no entanto apenas de conhecimento ou de autores que foram estudados por Heidegger Nele como em alguns filoacutesofos ocidentais aos quais podemos atribuir o construccedilatildeo de um paradigma termina aparecendo uma posiccedilatildeo que nos leva a deslocar nossas eventuais convicccedilotildees fragmentaacuterias para um novo universo que tambeacutem torna inovadoras nossas formas de situar e representar o que pensamos

Quando Heidegger apela para o conceito de vida faacutetica que termina atravessando todos os elementos caracteriacutesticos do comeccedilo dos anos vinte ele natildeo apenas quer desconstruir as ontologias tradicionais que chama de ontologias da coisa O filoacutesofo jaacute antecipa a questatildeo do tempo a partir da temporalidade e da historicidade Com isso o modo de a filosofia apresentar a metafiacutesica como ontoteologia isto eacute como teoria do fundamento uacuteltimo eacute trazida para um modo de interrogar na finitude Isto significa que a filosofia deixa para traacutes o dualismo e dessa maneira a necessidade de buscar a totalidade pela reflexatildeo e pela subjetividade

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Esta aparente tarefa central que domina a filosofia moderna depende de uma compreensatildeo que precede o esquema sujeito-objeto que estaacute ligada a ontologia da finitude Temos assim a introduccedilatildeo da fenomenologia como Hermenecircutica da facticidade que seraacute a nova forma de perguntar pela questatildeo do ser

Desse modo a ontologia da finitude seraacute o caminho pelo qual a analiacutetica existencial levaraacute agrave desconstruccedilatildeo da metafiacutesica A proacutepria metafiacutesica se revelaraacute como uma ciecircncia procurada (segundo caminho de Aristoacuteteles) e natildeo uma ontoteologia (primeiro caminho de Aristoacuteteles) Desta maneira Heidegger seguiraacute o desenvolvimento da pergunta pelo sentido do ser pelo meacutetodo da fenomenologia Hermenecircutica

Realizaraacute a analiacutetica existencial para mostrar a necessidade de superar o dualismo cartesiano renovando a questatildeo da compreensatildeo expondo a triacuteplice estrutura do Dasein como modo de ser no mundo ser adiante de si mesmo ser junto das coisas e jaacute ser em que constituem o cuidado que eacute o ser do Dasein A temporalidade como existecircncia decaiacuteda e facticidade seraacute o sentido do cuidado A temporalidade seraacute entatildeo o sentido do ser do ser-aiacute Uma vez exposta a temporalidade que envolve todos os existenciais o filoacutesofo se propotildee pensar o tempo como horizonte do sentido do ser Ainda que tenhamos visto um miacutenimo do todo que constitue os diversos aspectos do paradigma heideggeriano que sustenta sua visatildeo de compreensatildeo e Hermenecircutica jaacute eacute possiacutevel ver como o filoacutesofo pretende apresentar sua visatildeo criacutetica dos paradigmas metafiacutesicos

Vamos nos servir de Manfredo Arauacutejo para resumir as consequecircncias da criacutetica A concentraccedilatildeo da reflexatildeo na historicidade vai tornar impossiacutevel qualquer tentativa de estabelecer o comeccedilo absoluto para o pensamento cuja pressuposiccedilatildeo baacutesica eacute o abismo entre sujeito e objeto o que leva agrave pergunta fundamental Como chegar afinal ao

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mundo Para essa pressuposiccedilatildeo o conhecimento eacute uma atividade da mente um aparato cognitivo distinto do mundo e que se preenche com material cognosciacutevel atraveacutes dos sentidos Esta posiccedilatildeo trabalha com um duplo dualismo um dualismo interno entre sensibilidade e espiritualidade e um dualismo externo entre mente e mundo Para Heidegger essa questatildeo baacutesica natildeo se potildee porque sujeito e objeto jaacute estatildeo sempre abrangidos pela dimensatildeo originaacuteria o ser Nessa perspectiva Heidegger rompe com a epistemologizaccedilatildeo que caracterizou a filosofia moderna e repotildee a ontologia no centro da Filosofia (Manfredo Arauacutejo de Lima ldquoTeoria do ser primordial como tarefa suprema de uma filosofia sistemaacutetico-estrutural In Siacutentese Belo Horizonte v 39 n 123 p 53-79 p 58 janabr 2012)

Como vimos antes Gadamer se situa com sua Hermenecircutica filosoacutefica dentro do paradigma heideggeriano O que significa isto Natildeo precisamos situar-nos em nenhum paradigma Mas podemos estar situados num paradigma sem o sabermos de maneira clara No caso de Gadamer o autor analisa os aspectos que o ligam a Heidegger e tambeacutem mostra certas questotildees que o ultrapassam e separam dele O filoacutesofo por exemplo diz explicitamente que se inspirou sobretudo no conceito de facticidade agora aplicada agrave cultura fora da analiacutetica existencial de Heidegger Natildeo eacute tema de sua obra a questatildeo do ser a questatildeo da temporalidade a questatildeo da transcendentalidade Nem mesmo lhe interessava a questatildeo geral da metafiacutesica e um novo projeto da questatildeo do ser e seu sentido

No entanto haacute por outro lado muitos elementos que lembram o paradigma heideggeriano A historicidade da compreensatildeo a ampliaccedilatildeo da questatildeo da Hermenecircutica e sobretudo a ideia da dupla estrutura da linguagem Em resumo tambeacutem Gadamer se move na dimensatildeo aleacutem do

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dualismo moderno Talvez deva ser lembrada sobretudo a questatildeo da finitude e a questatildeo da preacute-compreensatildeo

Se aqui lembramos como Gadamer se aproxima do paradigma heideggeriano e como se separa isto jaacute mostra que pensamos que o filoacutesofo natildeo apresenta um paradigma proacuteprio ainda que tenha uma originalidade insuperaacutevel Talvez natildeo possamos compreender a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer sem a Filosofia Hermenecircutica de Heidegger O filoacutesofo no entanto explorou com sua obra um universo que marcaraacute nosso tempo e ocupa um lugar decisivo para entendermos como nos situamos na nossa cultura Ele nos mostra como devemos trabalhar com as Hermenecircuticas dos diversos campos do saber sobretudo os que lidam com a linguagem

Creio que as duas Hermenecircuticas dos dois pensadores tem uma complementaridade que ainda natildeo foi pensada Natildeo sei se podemos pensar Gadamer sem Heidegger mas certamente Gadamer abriu um pensamento novo e deu agraves intuiccedilotildees heideggerianas um sentido com nova amplitude

VI

Ateacute agora fizemos uma excursatildeo atraveacutes da

paisagem da Hermenecircutica na filosofia Mas o interesse era iluminar a proximidade e a distacircncia das Hermenecircuticas em Heidegger e Gadamer Entramos na anaacutelise por uma seacuterie de consideraccedilotildees que terminaram nos levando agrave questatildeo do paradigma na filosofia e sua funccedilatildeo baacutesica para darmos conta do modo melhor de proceder para chegar ao nuacutecleo de uma filosofia As conclusotildees foram claras e mostraram que em Heidegger haacute um paradigma em movimento e que a questatildeo da Hermenecircutica a partir da fenomenologia Hermenecircutica eacute o lugar em que se alimenta a Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer

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Era importante perceber como atraveacutes da Hermenecircutica em Heidegger Gadamer deu forma ao nuacutecleo fundamental de sua Hermenecircutica que denominou de filosoacutefica Natildeo podemos aplicar um paradigma filosoacutefico diretamente a outro paradigma filosoacutefico Os paradigmas tem sua longa seacuterie de elementos que lhes datildeo autonomia Mas isso natildeo os faz viver se articulando sem um constante diaacutelogo com o pensamento em geral Jaacute vimos como a questatildeo central da fenomenologia Hermenecircutica se comensura com o projeto heideggeriano de investigar o sentido do ser e portanto de se empenhar nas questotildees centrais da metafiacutesica

Heidegger usou os recursos mais sugeridos do que desenvolvidos de seu meacutetodo que deveria ter sido explicitado mais amplamente para tomar a forma de um quadro teoacuterico adequado a seu projeto de perguntar pelo sentido do ser atraveacutes da analiacutetica existencial

Gadamer desenvolveu sua Hermenecircutica sem um projeto que deveria dar conta de um projeto de universalidade como o projeto heideggeriano Natildeo se pode no entanto afirmar que Verdade e meacutetodo natildeo tenha um objetivo universal que foi desenvolvendo com seus recursos teoacutericos As intenccedilotildees que conduziam suas etapas teoacutericas eram relativamente definidas Dar conta de uma verdade natildeo apenas proposicional da arte da histoacuteria e da linguagem representava uma dimensatildeo nova no contexto de toda filosofia Isto jaacute possuiacutea uma envergadura teoacuterica e especulativa que atingia todo o espectro da filosofia Haacute algo inteiramente diferente nesta Hermenecircutica denominada filosoacutefica e isto deveria levar a produzir efeitos em todos os campos em que se trabalhava com interpretaccedilatildeo

Para ir direto ao problema a profunda inovaccedilatildeo com a ideia da historicidade da compreensatildeo e seus elementos complementares dava-se atraveacutes dos efeitos que dela deveriam resultar para todos os campos do

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conhecimento sobretudo aqueles referidos agrave linguagem e aspectos com ela vinculados incluindo nisto tambeacutem agrave filosofia

Depois da consciecircncia histoacuterica vinculada com nosso modo de compreender natildeo conseguimos mais reduzir nosso lidar com a linguagem como se a dimensatildeo loacutegico-analiacutetica tivesse a uacuteltima palavra As intenccedilotildees da Hermenecircutica faziam dela uma Hermenecircutica filosoacutefica porque ela deveria ter consequecircncias regradoras para todos os campos particulares da interpretaccedilatildeo

Haacute algo de um objetivo filoloacutegico nesta Hermenecircutica que procura chegar aos mecanismos da historicidade da compreensatildeo em todas as esferas da cultura sobretudo quando se opera com a linguagem E eacute nesta direccedilatildeo que Gadamer atinge todos os que trabalham com o conhecimento em que os textos tecircm consequecircncias para o pensamento as escolhas e as decisotildees Tudo estaacute mergulhado numa dimensatildeo histoacuterica que natildeo se esgota por causa da historicidade da compreensatildeo

Natildeo se trata de dar conta de um projeto filosoacutefico simplesmente mas de mostrar como funcionamos nos nossos discursos em dois niacuteveis em que a loacutegica natildeo esgota o sentido porque ele vem carregado e marcado pela tradiccedilatildeo Heidegger faz ver aspectos de todo o universo a que Gadamer se dedica mas a sua Hermenecircutica natildeo vigia os processos de compreensatildeo de nossa cultura no movimento da historicidade A Hermenecircutica filosoacutefica de Gadamer vem ao nosso encontro quando esquecemos o acontecer da historicidade no nosso conhecimento nos diversos campos do saber e isto eacute tambeacutem tarefa da filosofia No entanto eacute mais que isso ela se transforma em Hermenecircutica da Hermenecircutica(ou melhor das Hermenecircuticas)

No caso de Heidegger Ser e tempo suscitou bem outra reaccedilatildeo Tratava-se de um campo ontoloacutegico

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Quando se encontraram estudiosos da antropologia da psicologia da psicanaacutelise da teologia e da literatura com a concepccedilatildeo e as categorias centrais da analiacutetica existencial de Ser e tempo a reaccedilatildeo foi quase imediata Abrira-se um campo de categorias e uma instigante sucessatildeo de aspectos que eram absolutamente novos e contudo parecia que estes campos do conhecimento estavam esperando por estas temaacuteticas novas e pelo repertoacuterio conceitual extremamente sugestivo

Na psicologia e sobretudo na psicanaacutelise e na psiquiatria natildeo foram incorporados muitos conceitos de Ser e tempo mas parecia que o ser humano podia ser repensado a partir do Dasein e assim se teria dado um salto para as teorias destas aacutereas e para a compreensatildeo da cliacutenica

Natildeo parecia tatildeo relevante a questatildeo da Hermenecircutica renovada na analiacutetica existencial mas antes os conteuacutedos que ela trazia Os psiquiatras e os psicanalistas descobriam no aprofundamento do estudo da analiacutetica existencial uma grande ampliaccedilatildeo da compreensatildeo do ser humano Tambeacutem Heidegger e outros filoacutesofos estavam muito interessados nos efeitos de suas teorias nas hipoacuteteses com que trabalhava a comunidade dos estudiosos da alma humana

Ficaram famosos os estudos de Binswanger que tentou mesmo escrever um livro ao estilo de Ser e tempo do ponto de vista psiquiaacutetrico No encontro referido no comeccedilo Heidegger por sua vez falava com muito entusiasmo para mim dos cursos que dava na cliacutenica de Medard Boss em Zollikon na Suiacuteccedila

Interesses reciacuteprocos aproximaram Heidegger e Bultmann que chegou a reescrever a questatildeo da concepccedilatildeo da revelaccedilatildeo por influecircncia de Ser e tempo num livro com o sugestivo tiacutetulo Crer e compreender (Glauben und Verstehen)

Mas o que nos interessou ao longo de nossas consideraccedilotildees era a questatildeo da Hermenecircutica Confesso que a questatildeo do compreender e da interpretaccedilatildeo a partir

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de Heidegger foi muitas vezes encoberta pela questatildeo ontoloacutegica na filosofia e pelo estudo dos existenciais nas ciecircncias humanas Somente Binswanger valorizou a compreensatildeo para a psiquiatria E diversos estudiosos das ciecircncias humanas valorizaram o meacutetodo fenomenoloacutegico

Mas foi a publicaccedilatildeo de Verdade e meacutetodo que deu novo impulso ao problema hermenecircutico Toda a estrutura do livro e as trecircs partes sobre a verdade da arte da histoacuteria e da linguagem anunciavam uma nova dimensatildeo da Hermenecircutica No entanto penso que foi a questatildeo da compreensatildeo e da historicidade do compreender que teve influecircncia teoacuterica no campo das ciecircncias humanas mas muito aleacutem da epistemologia Gadamer mesmo suscita no livro um interesse pela Hermenecircutica pelas importantes referecircncias agrave Hermenecircutica biacuteblica juriacutedica e teoloacutegica Mas convenhamos se toda a obra de Gadamer nos leva a desenvolver e aplicar a Hermenecircutica no conhecimento humano sobretudo nas ciecircncias humanas e principalmente naquelas que lidam com a linguagem isto se daacute atraveacutes do acontecer

Penso que podemos ver a Hermenecircutica de Gadamer como o grande guarda-chuva da interpretaccedilatildeo e da compreensatildeo no campo da linguagem Tenho que chamar atenccedilatildeo para o que eacute decisivo na temaacutetica da Hermenecircutica em Gadamer que Verdade e meacutetodo natildeo trata de uma Hermenecircutica que seja uma estrutura ou faccedila parte de uma estrutura que possa ser comparada a estruturas que outros campos do conhecimento apresentam A obra toda se configura como uma exposiccedilatildeo de todos os elementos que compotildeem o conhecimento humano como um acontecer Eacute por isso que Verdade e meacutetodo nos traz uma dimensatildeo o acontecer da historicidade que abrange todos os elementos com que opera a interpretaccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico na aacuterea de humanas

Chegamos ao ponto em que parecem colidir as Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer No entanto o

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que haacute eacute uma aproximaccedilatildeo Nela temos que manter Heidegger como o lugar originante da Hermenecircutica e Gadamer como aquele autor que soube pelo imenso conhecimento trazer a dimensatildeo do acontecer da cultura humana onde muitas formas de conhecimento operam com a Hermenecircutica Em Heidegger a Hermenecircutica estaacute ligada ao Dasein como um existencial que atravessa o meacutetodo fenomenoloacutegico Gadamer estaacute envolvido na articulaccedilatildeo do elemento hermenecircutico na historicidade do compreender que acontece em todo o conhecimento humano

VII

Nossa anaacutelise se estendeu por exigecircncia da clareza

que temos que encontrar neste campo da Hermenecircutica onde a dispersatildeo se infiltra justamente por tratar de um dos acircmbitos fundamentais que envolvem o homem a linguagem Natildeo resta duacutevida que dela tratam os estudiosos de diversos campos desde o empiacuterico passando pelo formal atravessando a anaacutelise linguiacutestica e entrando nas diversas formas de abordagem pela filosofia Na Histoacuteria da Filosofia a tradiccedilatildeo Hermenecircutica representa uma evoluccedilatildeo histoacuterica que se enraiacuteza no seacuteculo 19 Mas foi pela Escola histoacuterica alematilde que a procura de um fundamento filosoacutefico para o conhecimento histoacuterico levou ateacute a Hermenecircutica como forma de afirmaccedilatildeo de um campo especiacutefico que seria uma alternativa de meacutetodo para as ciecircncias humanas Meacutetodo hermenecircutico primeiro e progressivamente tomando forma de um campo de estudos que podemos chamar um acircmbito hermenecircutico marcado pelo compreender Como jaacute vimos este compreender se amplia ateacute tornar-se um modo de ser um existencial que atravessa a linguagem

Natildeo precisamos voltar aos problemas que surgem no confronto entre analiacutetico e hermenecircutico Temos apenas

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que levar em conta que a virada analiacutetica na filosofia acordou para o uso hermenecircutico na questatildeo da linguagem

Primeiro a descoberta de que a exclusividade da abordagem analiacutetica dos discursos podia ser facilmente posta em duacutevida A dimensatildeo da compreensatildeo se impunha em muitos campos das ciecircncias humanas e revelaria pela preacute-compreensatildeo um universo em que sempre nos moviacuteamos

Fazia-se presente nesta Hermenecircutica a superaccedilatildeo da relaccedilatildeo sujeito-objeto que era o traccedilo dominante da metafiacutesica objetivista e que levava agraves questotildees do dualismo no conhecimento

A partir da consciecircncia de que a Hermenecircutica representava um amplo campo de tratamento de nosso conhecimento pelas obras de Heidegger e Gadamer a abordagem das ciecircncias humanas passou por uma grande mudanccedila

Certamente tinha que ser descoberto que a reviravolta analiacutetico-linguiacutestica mostrava que havia uma linguagem entre noacutes e o objeto Mas esta reviravolta natildeo era apenas loacutegico-semacircntica como erroneamente se acreditava O nosso conhecimento jaacute se constitui num modo de ser de caraacuteter pragmaacutetico que Heidegger denominaria uma relaccedilatildeo praacutetica com os entes que conhecemos e com nosso ser A Hermenecircutica vinha a ser o espaccedilo para ampliar um modo de estarmos envoltos na linguagem pelo nosso modo de ser no mundo Mais radical A linguagem eacute a casa do ser (Heidegger) A questatildeo que fica eacute a que nos conduz desde o comeccedilo de nossa anaacutelise que Hermenecircutica como em que medida e com que consequecircncias podemos abordar nos diversos campos do conhecimento

Jaacute fizemos algumas referecircncias a esta questatildeo em passagens anteriores Mas eacute uacutetil chamar atenccedilatildeo para o fato de que a Hermenecircutica marca presenccedila por toda parte Nem sempre se define de maneira adequada de que

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Hermenecircutica se trata Quanto agraves Hermenecircuticas de Heidegger e Gadamer tambeacutem haacute dificuldades para definir o espaccedilo e as formas de operar com elas Em nossa anaacutelise mostrou-se a dificuldade de separaacute-las e podemos agora dizer que em geral natildeo existe o cuidado suficiente na aplicaccedilatildeo

Temos ainda o grande problema das condiccedilotildees dos autores que fazem a experiecircncia com a Hermenecircutica em seus campos de teorizaccedilatildeo com sua especialidade Quanto de filosofia conhecem em que tipo de paradigma filosoacutefico se movimentam o que esperam de resultados para melhorar ou consolidar os campos em que atuam Em geral o uso da Hermenecircutica produz conflitos entre teorias que jaacute estatildeo enraizadas em pressupostos filosoacuteficos porque se pressupotildeem paradigmas com dificuldades na aproximaccedilatildeo

Martin Heidegger lendo

Frederico Nietzsche

Gilvan Fogel

Quem tem uma meta ( um fitoldquoein Zielrdquo) e um herdeiro este no tempo certo quer a morte para o herdeiro e a meta ndash Assim Falava Zaratustra I Da morte livre

1 Eacute possiacutevel que em buscando entender e

explicitar a contemporaneidade Nietzsche tenha sido o interlocutor mais proacuteximo mais imediato de Heidegger E como Nietzsche aparece se mostra para Heidegger Como Heidegger lecirc Nietzsche De cara poreacutem marquemos neste diaacutelogo Frederico Nietzsche passa a chamar-se vontade de poder Vontade de poder eacute como Nietzsche a certa altura de sua lida filosoacutefica passa a nomear a realidade primeira elementar ou imediata que ele vecirc experimenta e tambeacutem denomina vida Vida eacute o movimento espontacircneo gratuito portanto sem razatildeo alguma para ser ou natildeo ser de irromper de vir agrave ou para a luz isto eacute aparecer e assim pocircr-se e impor-se Este assim imperar enquanto e como espontacircneo aparecer eacute o poder Esta banalidade esta trivialidade eacute um grande pensamento uma grande visatildeo ou sacada ― enfim uma grande experiecircncia inspirada nos gregos inauguradora fundadora de uma trajetoacuteria de um percurso ou de uma histoacuteria de pensamento a saber o de Nietzsche o pensamento de vida enquanto e como vontade de poder E grande aqui estaacute dizendo radical essencial Bem a isso a tal experiecircncia ou sacada segundo o proacuteprio Nietzsche para melhor dizecirc-la e formulaacute-la portanto para melhor pensar o acontecimento vida Nietzsche denomina vontade de poder Antes vontade para o poder ― ldquoWille zur Machtrdquo E por que vontade

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Heidegger lendo vontade de poder inicialmente faz uso de um meacutetodo nietzschiano o da caricatura ou seja o uso de caricaturar isto eacute de exagerar (com medida) para tornar visiacutevel Ver entrever ler entreler o sinal o aceno o sintoma e aiacute entatildeo exagerar para vir agrave luz para tornar-se visiacutevel Assim segundo este meacutetodo Nietzsche isto eacute vontade de poder se torna a uacuteltima palavra o uacuteltimo nome da metafiacutesica Mas com que direito isso eacute feito O que eacute visto entrevisto lido entrelido O uacuteltimo metafiacutesico quer dizer o uacuteltimo (o mais recente melhor o recentemente mais essencial mais radical) a ver a compreender e a postular toda articulaccedilatildeo e compreensatildeo de toda e qualquer realidade possiacutevel a partir de um fundamento constituiacutedo que atua que opera como causa como agente como sujeito Isso eacute de iniacutecio e grosso modo metafiacutesica Mas ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo quer tambeacutem e principalmente dizer o filoacutesofo o pensador que justo pela via de seu pensamento leva e eleva esta tradiccedilatildeo do fundamento da vontade de fundamento (ieacute igualmente de verdade pois trata-se aqui de verdade do fundamento e de fundamento da verdade) agrave sua cumulaccedilatildeo agrave sua plenificaccedilatildeo ou melhor consumaccedilatildeo Ou seja o filoacutesofo o pensador que esvazia completamente esta tradiccedilatildeo porque a enche toda a cumula maximamente isto eacute faz com que ela possa venha a poder tudo que ela pode poder No caso tal fundamento assim constituiacutedo eacute a vontade entendida como vontade de (para o) poder onde poder se torna o poder de controle de asseguramento de caacutelculo enfim o modo proacuteprio de ser da teacutecnica moderna Natildeo ― isso eacute demais Nietzsche vendo e pensando isso e assim Eacute demais Eacute erro E se natildeo eacute miopia ou coisa de vesgo deve ser maacute vontade Logo Nietzsche que eacute o mais contundente e agudo criacutetico de sujeito de substacircncia de causalidade de eu seja psicoloacutegico seja transcendental Isso esta fala de Heidegger eacute desvio eacute erro e com laivos de

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maacute vontade de maacute feacute Mas vamos agrave caricatura Concedamos-lhe um creacutedito

Lendo Nietzsche Heidegger vecirc e acentua isto eacute para evidenciar ou tornar visiacutevel exagera superdimensiona na caricatura o modo como a tradiccedilatildeo vindo agrave fala hoje aqui e agora ou seja enquanto e como noacutes herda Nietzsche isto eacute como a tradiccedilatildeo que eacute essencialmente a metafiacutesica hoje interpreta ou se apropria de Nietzsche Ouccedila-se de vontade de poder Interpretar eacute sempre apropriar E a-propriar eacute sempre trazer ou levar para um proacuteprio No caso eacute o proacuteprio que eacute a metafiacutesica ou seja a sua identidade o seu modo de ser que eacute ver entender articular e expor o que quer que seja desde a necessidade do fundamento entendido e definido como fundamento inconcusso e este como causa e esta como substacircncia ou sujeito E o modo como na modernidade cartesiana este fundamento se concretiza eacute o modo do sujeito ou da sujetidade do eu do cogito que pode que precisa ser lido e entendido como vontade no sentido da exposiccedilatildeo ou melhor da auto-exposiccedilatildeo desta sujetidade autocircnoma que em se expondo ou se objetivando de tudo se apropria e se apodera (interpreta) e assim tudo iguala ou nivela a si proacutepria A este processo metafiacutesico de compreensatildeo e de definiccedilatildeo ou determinaccedilatildeo de realidade a modernidade denomina constituiccedilatildeo objetivaccedilatildeo Melhor constituiccedilatildeo ou estruturaccedilatildeo como ou desde accedilatildeo ou atividade do sujeito (eu consciecircncia autocircnoma) Justo esta accedilatildeo ou atividade do sujeito chama-se objetivaccedilatildeo ou a colocaccedilatildeo do real como objeto ou objetividade E a esta accedilatildeo ou atividade deste sujeito do sujeito moderno denomina-se igualmente vontade agrave medida que este processo de constituiccedilatildeoobjetivaccedilatildeo marca o eu quero como accedilatildeo ou atividade do cogito do ego cogito ― ego cogito = ego volo Vontade aqui eacute pois a accedilatildeo a atividade do eu transcendental (consciecircncia autocircnoma) se expondo se objetivando e agrave medida que assim constitui

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toda e qualquer realidade como objetividade diz eu (transcendental subjetividade autocircnoma vontade) quero

Neste horizonte desde esta perspectiva ou interesse (o mundo moderno) eacute ouvida isto eacute eacute interpretada ou apropriada a fala de vontade de poder A vontade entendida como a accedilatildeo ou a atividade constituidora e objetivadora do eu ou da consciecircncia autocircnoma (o sujeito moderno) eacute a oacutetica o sentido a partir do(a) qual tudo para a modernidade eacute visto estruturado ― sub-visto e sub-entendido Ainda caricaturando eacute mais ou menos como se a modernidade o cartesianismo ― isto eacute noacutes ― ao ouvir a fala nietzschiana de vida como vontade de (para o) poder dissesse ldquoAh este Nietzsche eacute dos nossos Eacute nosso par Falemos conversemos inter parisrdquo

Desde este lugar ou interesse esta tradiccedilatildeo este ldquoenvio histoacutericordquo na fala de Heidegger ouve a seguinte pergunta posta por Nietzsche pela boca do Zaratustra ldquoQuem deve ser o senhor da Terrardquo1 E imediatamente toda empertigada e peito estufado quase que em grito proclama ldquoEurdquo A esta tradiccedilatildeo absolutamente natildeo interessa isto eacute natildeo vecirc natildeo ouve natildeo pode ver e ouvir o possiacutevel outro registro o possiacutevel outro horizonte (de salto de passagem ou ultra-passagem) a possiacutevel outra musa que fala que ecoa e que ressoa na resposta de Zaratustra agrave sua proacutepria pergunta e que eacute senhor da Terra seraacute haacute de ser aquele ldquoque ouvir que obedecer ao sentido da Terrardquo ldquoAquele que permanecer fiel agrave Terrardquo2

ldquoTerra O que eacute isso Natildeo interessardquo Melhor ldquoA Terra sou eu Eu quero Isto eacute em constituindo em objetivando eu uso eu aproprio eu igualo eu nivelo Eu agrave medida que substacircncia sujeito sou o senhor quer dizer o dono o proprietaacuteriordquo Eu aqui estaacute pois dizendo a compreensatildeo metafiacutesica transformada em euconsciecircncia

1 Cf Assim falava Zaratustra IV O canto do noctiacutevago n4

2 Cf Assim falava Zaratustra Proacutelogo n 3

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autocircnomo(a) (isso eacute Descartes e o novo o novo modo de ser da modernidade) e que assim vai entoando o seu refratildeo narciacutesico tal como se vecirc e se ouve em ldquoCantate du Narcisserdquo de Paul Valeacutery e que se faz uma extraordinaacuteria chave hermenecircutica para esta mesma modernidade Este canto este refratildeo eacute como o chumbo derretido que vai sendo lenta e homeopaticamente vertido gota a gota pingado em nossos ouvidos de homens de hoje e de agora Como Na voz na cantilena da teacutecnica da teacutecnica moderna da tecno-ciecircncia ou da tecnologia Vontade de para o poder

Heidegger lendo entrelendo Nietzsche desde a tradiccedilatildeo que o herda que o recebe ou recepciona vecirc isso ou assim Para evidenciar para tornar visiacutevel agrave Klee calca decalca exagera e exacerba esta linha desta caricatura (nota em caricatura em arte mais se calca se decalca se exagera e se exacerba quanto mais leve e fino e sutil eacute o traccedilo a matildeo) de tal modo que vai chegar a esta extravagante afirmaccedilatildeo alienada e louca se natildeo estulta eou de maacute feacute aos ouvidos de um nietzschiano poacutes-moderno agrave la lettre com a doutrina do super-homem (do Uumlbermensch) o cogito cartesiano chega agrave sua extrema dominaccedilatildeo Super-homem aqui natildeo deve ser ouvido como possiacutevel para aleacutem do homem entenda-se para aleacutem do humanismo greco-cristatildeo e entatildeo para aleacutem do animal racional Natildeo Super-homem Uumlbermensch agora e aqui e assim fala do homem moderno o cartesiano o da autonomia do eu ou da consciecircncia poreacutem super-dimensionado (o ldquohomem unidimensionalrdquo de Marcuse) que entatildeo se faz maximamente isto eacute como tipo ou estrutura ldquolrsquohomme reacutevolteacuterdquo e ldquobiacutepede ingratordquo na forma da caricatura dostoievskiana Formas exacerbadas e pueris do homem moderno mais uma vez do tipo cartesiano agora enlevado e embevecido consigo mesmo sob a eacutegide do esplendor do monumentalismo e do gigantismo pex de Raskolnikov (seu Colombo seu Napoleatildeo) em Crime e Castigo ou de Kiriacutelov em Os Democircnios O modelo o archeacute-tipo eacute Kiriacutelov o matador de Deus e que assim no estertor

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da vontade rebelada (pura puerilidade do homem sem transcendecircncia) inverte a metafiacutesica no desespero e na exacerbaccedilatildeo do ldquoagora eu sou Deusrdquo ldquoagora eu querordquo Culmina e cumula o ego cogito = ego volo isto eacute o super-homem na visatildeo caricata ainda de Dostoievski e que eacute o retrato em ponto maior do homem moderno cartesiano iluminista Heidegger no rastro no eco no vaacutecuo de Dostoievski lecirc assim Heidegger ainda eacute maiusculamente dostoievskiano3 quando em Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica fala de um grave aspecto do niilismo europeu enquanto e como a despotenciaccedilatildeo do espiacuterito ldquodie Entmachtung des Geistesrdquo (perda de forccedila perda de poder do espiacuterito seu esvaziamento) agrave medida que hoje o espiacuterito se transformou em inteligecircncia em intelecto4 Isto a saber tal transformaccedilatildeo perfaz o nuacutecleo do diagnoacutestico dostoievskiano da Europa moderna do iluminismo ou do faustianismo europeu A ldquomeia ciecircnciardquo como diz com grande desprezo um personagem dostoievskiano em Os Democircnios

Eacute assim nesta direccedilatildeo que vontade de poder revigorada como retomada ou repeticcedilatildeo do igual no eterno retorno do igual isto eacute da proacutepria vontade enquanto e como o moderno ego cogito = ego volo ― enfim nesta direccedilatildeo e assim eacute que a modernidade se querendo a si proacutepria em insistente revigoramento ou revitalizaccedilatildeo de revolta (lrsquohomme reacutevolteacute) e de ingratidatildeo (ldquoo biacutepede ingratordquo)

3 Natildeo se estaacute aqui como acima de modo geral a insinuar ou a marcar alguma ldquoinfluecircnciardquo nova e desconhecida ouvida talvez em alguma alcova () de Dostoievski sobre Heidegger (ele o conhecia e muito bem segundo testemunho natildeo de alcova de Gadamer) e accedilular a acribia e a sanha da pesquisa a favor ou contra com documentos comprovaccedilotildees ocorrecircncias Ah ocorrecircncias Absolutamente este natildeo eacute o caso Nada do espiacuterito dos idiotas da objetividade Por que para que este desgaste Natildeo sejamos tolos e nem perdulaacuterios

4 Heidegger M Einfuumlhrung in die Metaphysik Max Niemeyer Tuumlbingen 1976 S 34 e 35 Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica Tempo Brasileiro Rio 1978 paacuteg 71 e 72 trad ECLeatildeo

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in hoc signo pois que a vontade se faz vontade de vontade (assim interpreta Heidegger o eterno retorno enfatizando o interesse moderno cartesiano) e molda e modela a essecircncia da teacutecnica moderna isto eacute da tecno-logia onde este ldquoloacutegosrdquo eacute o moderno o da autonomia do eu ou da consciecircncia transfigurada em vontade igualadora e niveladora de tudo ldquoNivelar montanhas aplainar tudo eacute um grande pensamentordquo diz e proclama Stawroguin isto eacute o gecircnio do mal (em ldquoOs Democircniosrdquo) o gecircnio da modernidade cartesio-iluminista faustiana na funda profunda compreensatildeo dostoievskiana com a qual comunga Heidegger

Eacute neste contexto nesta fervura hermenecircutica que na leitura aguda de Heidegger a modernidade precisava da fala de vontade de poder para ela proacutepria melhor se entender agrave medida que ela por esta via em auto-interpretaccedilatildeo desta mesma modernidade viesse toda agrave tona agrave luz em se concretizando ou se realizando como dona como senhora da Terra5 ldquoEu quero Eu querordquo ― esta

5Aristoacuteteles em Met I mutatis mutandis faz uma semelhante leitura dos preacute-socraacuteticos Uma leitura teleoloacutegica na qual ou desde a qual o comeccedilo archeacute se explicita se expotildee todo na sua cumulaccedilatildeo e assim vem agrave compreensatildeo tal como antes natildeo era possiacutevel No caso Aristoacuteteles retro-olhando para os preacute-socraacuteticos e constatando que todos queriam compreender a physis mas natildeo sendo eles capazes de formular este problema da physis isto eacute do movimento a partir da e como a articulaccedilatildeo das quatro causas na teoria por ele elaborada na sua Fiacutesica ― assim Aristoacuteteles diz insinua que ele a partir de sua teoria da causalidade estava em condiccedilotildees de entender os preacute-socraacuteticos melhor do que eles foram capazes de se entender do que eles podiam se entender a si proacuteprios ― ldquode certo modo esta foi a fala de todos por outro lado jamaisrdquo (Met I 10 993ordf)

Assim Heidegger lendo vontade de poder desde e como a proacutepria moderna metafiacutesica da subjetividade se apropria de tal doutrina a metafiacutesica dana vontade que se quer a si proacutepria mostra que assim eacute possiacutevel a esta modernidade se entender melhor do que ateacute entatildeo sem tal nome ou formulaccedilatildeo se entendia podia se entender Vontade de poder foi pois o nome o conceito que faltava agrave modernidade agrave contemporaneidade agrave metafiacutesica em sua consumaccedilatildeo ou cumulaccedilatildeo para que ela proacutepria se

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eacute sua fala seu grito sua convulsatildeo e seu espasmo enquanto e como nivelamento achatamento de toda a Terra segundo a bitola do seu querer da sua vontade A vontade a metafiacutesica moderna se faz teacutecnica e atua opera como intelecto (inteligecircncia) caacutelculo isto eacute controle e (auto) asseguramento E isso eacute nisso constitui-se poder ― o poder6 Este poder se torna o alvo a meta da vontade do querer de todo querer E assim como teacutecnica (= metafiacutesica na sua cumulaccedilatildeo) a vontade se faz senhora dona da Terra Tal como queria Descartes um saber uma ciecircncia ldquoque assim nos torna mestres e senhores possuidores da

fizesse mais clara para si mesma e desde si mesma Ela em se lendo em se interpretando (apropriando) na e desde a vontade de poder cumula-se ou consuma-se como exerciacutecio de gnoti seautoacuten do conhece-te a ti mesmo tal como Hegel via especulativamente (e natildeo moralmente) a filosofia ocidental a fenomenologia do espiacuterito ou a histoacuteria da experiecircncia da consciecircncia enquanto e como a histoacuteria do verdadeiro

Trata-se sim no caso de Heidegger de uma leitura de uma interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ainda que nada hegeliana Isto eacute tanto para Heidegger quanto para Nietzsche natildeo se trata de uma teleologia do verdadeiro [da consciecircncia do desdobramento (ldquoEntwicklungrdquo) da consciecircncia] mas antes do erro ― da histoacuteria de um erro diz Nietzsche Ou se se quer sim teleologia do verdadeiro (da consciecircncia para a auto-consciecircncia da subjetividade para ela proacutepria como vontade de vontade) poreacutem enquanto e como a teleologia de um erro a saber a proacutepria consciecircncia o proacuteprio verdadeiro (ldquodas Wahrerdquo na fala de Hegel) pois a consciecircncia o eu sujeito eacute erro o erro moderno O que Nietzsche chama histoacuteria de um erro eacute a mesma histoacuteria que Hegel denomina histoacuteria do verdadeiro de ldquodas Wahrerdquo Sim a mesma mas vista desde um outro lugar desde um outro horizonte (vida como vontade de poder) uma vez que ldquoum erro natildeo pode ser reconhecido como tal desde o solo do proacuteprio errordquo estaacute dito no Posfaacutecio a O Nascimento da Trageacutedia Sim a mesma histoacuteria mas que agora em virtude deste outro lugar deste outro interesse ou horizonte converte-se na histoacuteria de um erro porque eacute a do verdadeiro

6 Hoje tende-se a entender poder todo poder a partir do coletivo do social melhor do poliacutetico pois hoje impera a poliacutetica total o politicismo integral Sinal dos tempos Mas isso a saber poliacutetica total tambeacutem eacute teacutecnica Sobretudo isso eacute teacutecnica ― ciberneacutetica

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naturezardquo7 isto eacute da Terra E o que eacute a Terra O sentido da Terra Isso diz subdiz a modernidade o homem ou o tipo sem transcendecircncia todo soberba ― isso natildeo interessa A Terra sou eu Eu quero Assim fala assim grita a hybris moderna isto eacute a grima a sanha que somos ― intelecto (inteligecircncia) caacutelculo controle (auto) asseguramento A vontade do para o poder Este horizonte este pavoroso interesse se apropria se apodera de Nietzsche e assim vai usando e ab-usando deda vontade de poder Heidegger lecirc vecirc isso e com a lente de aumento da caricatura evidencia mostra torna este fenocircmeno visiacutevel Este fenocircmeno a saber a cumulaccedilatildeo da modernidade como cumulaccedilatildeo da metafiacutesica enquanto e como teacutecnica moderna que se expotildee enquanto e como vontade de vontade ― a vontade de (para o) poder intelecto controle caacutelculo certeza auto-asseguramento na da Terra Eacute assim que a metafiacutesica moderna se lecirc ou seja se interpreta a si mesma no pensamento de vida como vontade de (para o) poder Mas o que eacute a Terra

2 Nietzsche escreveu ldquoMeu gecircnio estaacute em minhas

ventas ― Mein Genie ist in meinen Nuumlsternrdquo8 Parecircntese ldquoNuumlsternrdquo satildeo ventas e natildeo ldquonarinasrdquo ldquoNarinardquo eacute coisa chique coisa fina Haacute ateacute aquela ldquogratilde-fina de narinasrdquo ― ah deixa praacute laacute No caso satildeo ventas mesmo Coisa meio muito de bicho que Nietzsche aqui agrave forccedila do estilo da forma quer enfatizar Fechemos o parecircntese Mas isso quer dizer ele sente no ar ele fareja Seguindo agora a este meacutetodo ldquodas ventasrdquo e natildeo mais o da caricatura Heidegger ocupando-se de Nietzsche sente no ar cheira fareja subjetivismo voluntarismo um certo heroiacutesmo um certo gigantismo da vontade Coisa insinuada velada Estranho

7 Cf Descartes Discours de La meacutethode La Renaissance Du Livre Paris 1935 sixiegraveme partie p 59

8 Cf Ecce Homo Por que sou um destino nr 1

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chamar ldquovontaderdquo ao movimento espontacircneo livre gratuito de pura doaccedilatildeo que eacute a vida a doadora plaacutecida Por que para que vontade se eacute inteiramente de graccedila sem querer Haacute algo de estranho no ar Foi mais ou menos seguindo a este meacutetodo que no Hamlet pela boca de Marcelo vai ser dito ldquoHaacute algo de podre no reino da Dinamarcardquo9 Bem mas Heidegger natildeo diz ldquoeu cheirordquo e nem ldquoeu farejordquo Ele diz ldquoescutordquo Mas aqui (eacute porque na filosofia e na Cavalaria Andante tudo eacute agraves avessas tudo eacute de cabeccedila para baixo) ldquocheirarrdquo ldquofarejarrdquo e ldquoescutarrdquo dizem o mesmo Que mesmo Eacute o meacutetodo o caminho ou a via que natildeo eacute o(a) ldquoda provardquo o(a) da demonstraccedilatildeo se se entende sob demonstraccedilatildeo o procedimento loacutegico-dedutivo argumentativo Hoje para se fazer uma tal prova uma tal demonstraccedilatildeo tambeacutem muito se recorre agrave pesquisa muitas vezes subentendida como esta peacuterola que eacute o levantamento o inventaacuterio e a enumeraccedilatildeo estuacutepida e tediosa das ldquoocorrecircnciasrdquo ― como se pensamento acontecesse pudesse acontecer em um escritoacuterio de contabilidade fazendo balancete Este farejar ou escutar revela algo que soacute se daacute agravequele que muito e bem frequenta no caso um pensamento um pensador Trata-se de ler como Nietzsche cobrava que ele proacuteprio fosse lido com paciecircncia vacum ruminando10 E este negoacutecio de paciecircncia vacum eacute coisa bem de suabo ldquoMuito frequentarrdquo ldquopaciecircncia vacumrdquo isto eacute dele do pensamento ou do pensador muito se ocupar muito preacute-ocupar-se lenta e longamente Sobretudo isso sem pressa O que aqui estaacute em questatildeo diria diz Nietzsche ldquonatildeo tem pressardquo ldquoA coisa o problema natildeo tem pressa ― em plena eacutepoca do trabalho da pressa somos amigos do lentordquo11 Assim com desde este

9 Hamlet I 4

10 Cf Nietzsche Aurora Prefaacutecio n 5

11 Cf Nietzsche Idem

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paciente e lento passa com agudeza e finura com perspicaacutecia a entre-ver a entre-ler isto eacute comeccedila a sacar a perceber ― a cheirar a farejar e isso eacute o ouvir ― tudo que estaacute silenciado calado retraiacutedo velado mas justamente assim vigorosa decisiva ou essencialmente presente atuante isto eacute co-pensando co-falando co-escrevendo Mais ou menos assim o meacutedico lecirc escuta ausculta os sintomas Nietzsche igualmente natildeo disse que ldquoo filoacutesofo eacute o meacutedico da humanidaderdquo Mas seguindo este meacutetodo Heidegger entre-lecirc e entre-vecirc ― ouve ― o co- ou sub-pensado o co- ou sub-dito o co- ou sub-falado E quanto a isso disso natildeo haacute prova demonstraccedilatildeo objetiva clara loacutegica indiscutiacutevel Aquela de acabar com o papo Ah isso eacute subjetivismo puro Quem assim objeta poreacutem quer objetivismo isto eacute jaacute fala desde o cacircnone desde a bitola sujeito x objeto O procedimento de Heidegger assim como tambeacutem o de Nietzsche natildeo eacute objetivo porque tambeacutem natildeo eacute natildeo pode ser subjetivo E isso porque subjetivo x objetivo objetivo x subjetivo haacute muito desde sempre no pensamento de Heidegger (ldquoSer e Tempordquo) se tornou caduco Trata-se de um modo de ser ― o da vida o do Dasein ― no qual esta disjunccedilatildeo ou confronto natildeo entra natildeo pode entrar Natildeo tem vez Natildeo cabe Natildeo eacute natildeo pode ser medida criteacuterio E isso desde que se fez evidecircncia que o homem e o real se fazem se datildeo enquanto e como Dasein (abertura ek-stase vida presenccedila) e este enquanto e como ser-no-mundo isto eacute inserccedilatildeo ciacuterculo afeto Neste contexto a medida o criteacuterio eacute sim o farejar o escutar E escuta eacute corpo Corpo e pensamento Melhor corpo como pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Assim se daacute assim se faz corpo Corpo e pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Talvez melhor pensamento como e desde corpo Isso eacute muito eacute demasiado nietzschiano Ser-no-mundo eacute escuta ― de sentido de mundo de loacutegos E isso eacute corpo Assim cresce espessa-se pensamento ― visatildeo discernimento evidecircncia Mas

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deixemos isso na menccedilatildeo soacute na menccedilatildeo pois isso este tema jaacute eacute outra musa

Mas Heidegger lendo Nietzsche ― dele ocupando-se longa e lentamente grave radical e essencialmente ― fareja ouve subjetividade metafiacutesica da subjetividade no seu estertor na sua cumulaccedilatildeo ou plenificaccedilatildeo Algo que ele natildeo vecirc natildeo fareja natildeo ouve pex em Houmllderlin pois este jaacute teria feito a travessia deste deserto ― a metafiacutesica como moderno voluntarismo e sua cumulaccedilatildeo como niilismo Houmllderlin cronologicamente atraacutes no entanto jaacute deu jaacute teria dado um passo mais agrave frente mais radical mais essencial isto eacute mais a caminho de essecircncia ou de gecircnese E aqui um passo mais agrave frente quer dizer voltou mais afundou mais perpassou mais a vontade de fundamento e de verdade e assim atravessou ultrapassou conquistou ― o sem fundo o a-bysso de todo fundo de todo fundamento ou de toda vontade de fundamento (= metafiacutesica) Aqui ainda e ainda seguindo aquele agraves avessas proacuteprio da filosofia e do pensamento avanccedila aquele que mais funda e mais essencialmente volta retorna quer dizer repete retoma gecircnese ― comeccedilo ldquoAnfangrdquo ldquoarcheacuterdquo E nisso e assim nesta viagem de solavancos e sobressaltos retoma repete volta aquele que paacutera E vamos parar por aqui Depois voltamos a isso A verdade eacute que com este procedimento em questatildeo estaacute uma sinceridade proacutepria e real de autecircntico caminho de autecircntica experiecircncia

Heidegger pois lendo Nietzsche ocupado grave funda lenta e longamente neste percurso frequentando todos os interstiacutecios e meandros desta viagem fareja ouve um ranccedilo Claro aqui sempre neste mundo agraves avessas tambeacutem se ouve ranccedilo e natildeo soacute se cheira ou se degusta Este ranccedilo poreacutem eacute necessaacuterio absolutamente necessaacuterio e essencial (geneacutetico) isto eacute constitutivo e proacuteprio do movimento de cumulaccedilatildeo da hora de plenificaccedilatildeo ou cumulaccedilatildeo Marginais da experiecircncia (e marginal de

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experiecircncia eacute marginal de evidecircncia pois experiecircncia eacute evidecircncia) de um caminho gente sem paciecircncia diria Nietzsche veem num tal ranccedilo algo menor algo negativo uma deficiecircncia quando natildeo um insulto ou um denegrimento ldquoUacuteltimo metafiacutesicordquo Aos ouvidos destes marginais isso soa como insulto caluacutenia como se metafiacutesica fosse um insulto uma calunia coisa feia ― aids hanseniacutease Mas isso eacute coisa de pequeno de quem natildeo faz natildeo fez e se recusa a fazer um caminho Sim um caminho Metafiacutesica eacute coisa grande essencial humana demasiado humana a tal ponto que Nietzsche quando experimentava a sua mais solitaacuteria solidatildeo no tempo e na hora de cumulaccedilatildeo laacute pelos idos de 1888 em carta a Carl Fuchs escrita desde Turin a certa altura diz ldquominha velha moradia de veratildeo Sils-Maria a Alta Engadina m i n h a paisagem tatildeo distante tatildeo apartada da vida tatildeo metafiacutesica Como tudo se afasta se distancia Como tudo vai entredistanciando-se entreafastando-se Como a vida se faz silenciosa parada E ainda natildeo se eacute velho Somente filoacutesofo Somente agrave margem agrave parte Somente comprometidamente agrave parterdquo12 Somente metafiacutesico estaacute ele dizendo Somente agrave parte agrave margem isto eacute agrave distacircncia necessaacuteria para poder ver para a coisa fazer-se visiacutevel ― este eacute o compromisso o comprometimento meta-fiacutesico por excelecircncia A distacircncia com a qual e desde a qual os deuses veem e a teoria se faz A metafiacutesica eacute tambeacutem isso ela daacute tambeacutem e sobretudo isso Ou seja ela tambeacutem e sobretudo daacute o lugar e a hora irremediaacuteveis do homem agrave parte agrave margem ― comprometidamente agrave parte agrave margem Mas deixemos isso tambeacutem soacute na menccedilatildeo

E na hora em que preparava um prefaacutecio para algo que poderia ter se tornado um livro A Vontade de Poder ele

12 Cf Nietzsche F Werke IV Briefe (1861-1889) Carl Hanser Verlag Ulm 1977 herausg Karl Schlechta paacuteg 879880 Turin den 14 April 1888

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vai dizer ldquoAquele que aqui toma a palavra natildeo fez ateacute agora outra coisa senatildeo entrar afundar em si (ldquosich besinnenrdquo pensar-se refletir-se) como um filoacutesofo e um solitaacuterio por instinto que tem sua forccedila no ser agrave parte agrave margem na paciecircncia na demora no recuo e no retrair-serdquo De novo neste agrave parte agrave margem fora distante ― nisso mais uma vez estaacute reivindicando seu lugar sua paacutetria sua paisagem ― a metafiacutesica E ratificando este ldquouacuteltimordquo como fim e como cumulaccedilatildeo de caminho vai ainda dizer de si mesmo ldquo[aquele que aqui toma a palavra] como o primeiro niilista consumado da Europa que poreacutem jaacute viveu o proacuteprio niilismo ateacute o fim que o tem atraacutes de si de baixo de si fora de sirdquo13 ― aleacutem de si ldquoO primeiro niilista consumado da Europardquo diz o mesmo que o ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo Isso eacute condiccedilatildeo absoluta condiccedilatildeo para toda e qualquer superaccedilatildeo ― para toda e qualquer ultrapassagem virada Eacute preciso esgotar saturar exaurir Isso e assim eacute consumaccedilatildeo plenificaccedilatildeo Aiacute e assim se enche toda a histoacuteria da metafiacutesica (leia-se agora vontade de fundamento como vontade de verdade pois assim a moderna metafiacutesica se compreende se vecirc se quer Assim como vontade que se quer a moderna metafiacutesica cumpre seu destino de distacircncia mesmo de desfazer a distacircncia que o homem eacute14) justamente porque aiacute e assim ela se esvazia toda uma

13 Cf KGW VIII-2 11[411] S 432 A Vontade de Poder Prefaacutecio n3 Contraponto Rio 2008 paacuteg 23

14 Este desfazer a distacircncia a distacircncia que o homem eacute anulaacute-la eliminaacute-la ― principalmente isso eacute o projeto ou a vontade moderna a metafiacutesica moderna E isso agrave medida que ela promove e realiza o tempo a histoacuteria do tipo culpado e revoltado ― o biacutepede ingrato Eacute o sujeito moderno a autonomia do eu ou da consciecircncia apagando querendo apagar e desfazer esta constitutiva distacircncia agrave medida que se faz sujeito absoluto ideia absoluta que eacute quando transcendecircncia quando toda e qualquer diferenccedila eacute anulada na absoluta congruecircncia entre sujeito e objeto A oposiccedilatildeo eacute superada [ieacute instala-se e instaura-se a ldquoabsoluta congruecircnciardquo (Hegel)] pela anulaccedilatildeo da diferenccedila no e pelo poder absoluto do sujeito ― leia-se da autonomia do eu da consciecircncia que eacute que se toma como absoluta substacircncia Assim creio pode deve ser lido

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vez que assim ela natildeo pode mais nada porque pocircde tudo que podia poder De tanto encher-se cumular-se de tanto poder enfim se esvazia toda por isso e graccedilas a isso ― natildeo pode mais nada Vira crianccedila Isto eacute Uumlbermensch para aleacutem do homem do humanismo greco-cristatildeo do ldquoanimal racionalrdquo

Heidegger estaacute lendo sub-lendo ouvindo tudo isso pois soacute aiacute e assim jaacute eacute jaacute estaacute acontecendo tambeacutem virada isto eacute a passagem para um outro registro para um outro tocircnus para uma outra tecircmpera vital Tambeacutem Nietzsche se vecirc se sabe neste ponto de virada e sabe do ambiacuteguo (do duplo da duplicidade) deste lugar e desta hora Nietzsche sobretudo Nietzsche experimentou viveu o extraordinaacuterio o estraccedilalhador do ambiacuteguo desta hora deste tempo Aiacute assim e por isso ele enlouqueceu A loucura de Nietzsche eacute sua extra-ordinaacuteria experiecircncia de seu proacuteprio pensamento (o mesmo aconteceu a Houmllderlin outro explorador do escuro da noite desta hora deste tempo) do destino (= envio histoacuteria) do pensamento ocidental isto eacute da ldquoloacutegicardquo15 do niilismo ou da metafiacutesica pois niilismo eacute o nome para dizer a ldquoloacutegicardquo isto eacute necessaacuterio destino envio ou histoacuteria da metafiacutesica enquanto e como vontade de do fundamento Soacute gente ldquoruim da cabeccedilardquo soacute os ldquoidiotas da objetividaderdquo acreditam que Nietzsche tenha enlouquecido por conta de alguma siacutefilis contraiacuteda em algum bordel Por isso ele se diz tambeacutem um ldquopalhaccedilordquo um ldquobufatildeordquo um ldquoHanswurstrdquo Por isso ele com estranha clarividecircncia vai se referir agrave vontade de poder como ldquouma nova fixaccedilatildeo

o final delirante (principalmente o capiacutetulo 3 da terceira seccedilatildeo) de A Ciecircncia da Loacutegica de Hegel

15 Cf KGW idem A Vontade de Poder op Cit nr 4 paacuteg 24 onde se lecirc ldquopois o niilismo eacute a loacutegica de nossos grandes valores e ideais pensada ateacute o fim ― porque precisamos experimentar (pensar) o niilismo ateacute o fimrdquo Ou seja eacute preciso eacute absolutamente preciso ser o ldquouacuteltimo metafiacutesicordquo Uacuteltimo e primeiro aqui perfazem um uacutenico e mesmo limiar um uacutenico e mesmo instante A mesma hora

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(ldquoFixierungrdquo) do conceito vidardquo16 Heidegger ouve estas coisas e as evidencia as exagera para tornar visiacutevel e assim evidencia a natureza a iacutendole do tempo que somos da eacutepoca que herda isto eacute que interpreta e apropria Nietzsche-vontade de poder

O Zaratustra poreacutem tem coisa Ele eacute o ldquonon plus ultrardquo Tudo que o precede diz Nietzsche eacute preparaccedilatildeo para ele Ele eacute ldquoo simrdquo O ldquogrande simrdquo E tudo que lhe sucede eacute ldquonatildeordquo Pode ser ldquonatildeordquo Depois do Zaratustra tudo praticamente tudo eacute ldquonatildeordquo pode ser ldquonatildeordquo a partir do ldquosimrdquo do grande ldquosimrdquo A partir daiacute do Zaratustra tudo eacute tudo pode ser ldquoa marteladasrdquo ldquona porradardquo Tudo tem tudo pode ter ou levar o subtiacutetulo de ldquoO Crepuacutesculo dos Iacutedolosrdquo ou seja ldquoComo se filosofa a marteladasrdquo E estranho no proacuteprio Zaratustra vontade de poder vai se embaccedilando se esfumando ainda que justo no Zaratustra ela tenha vindo toda agrave tona agrave evidecircncia ― aliaacutes justamente por isso graccedilas a isso se esfuma se esvai Em horas em instantes cruciais a fala nem eacute mais de vontade de poder pois parece esta se exauriu se esvaziou se fez supeacuterflua Entatildeo fala-se por exemplo de ldquoSem vozrdquo (ldquoOhne Stimmerdquo) de ldquoSem nomerdquo (ldquoder Namenloserdquo) de ldquodeus desconhecidordquo (ldquoder unbekannte Gottrdquo) Talvez seja por isso que Nietzsche vendo ouvindo entrevendo e entreouvindo esta metamorfose e cumulaccedilatildeo por volta de 1887 em uma anotaccedilatildeo que deveria servir de base para alguns ldquoprefaacutecios e posfaacuteciosrdquo fazendo um retrospecto por alguns de seus escritos vai dizer do Zaratustra ldquoPara com meu filho Zaratustra exijo respeito (ldquoEhrfurchtrdquo terser diante dele um temor nobre) e somente a uns poucos deve ser permitido ouvi-lo auscultaacute-lo (ldquoihm zuzuhoumlrenrdquo) Quanto a mim lsquoseu pairsquo poreacutem ― pode-se rir tal como eu mesmo o

16 Cf KGW VIII-1 p 321 A Vontade de Poder opcit nr 617 p 316

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faccedilo aliaacutes ambos pertencem agrave minha alegria agrave minha felicidaderdquo17

O Zaratustra o primeiro perfeito niilista europeu portanto aquele que tem em si todo o perfazimento do niilismo da histoacuteria que eacute o niilismo Tal perfazimento atravessamento eacute perfeiccedilatildeo (ldquoenteacutelecheiardquo) Eacute assim que ele eacute aquele que tem o niilismo atraacutes de si dentro de si aleacutem de si Aquele no qual desde o qual e como o qual jaacute se deu se daacute ldquoviradardquo O Nietzsche quando ri de si ele ri de vontade de poder18 Afinal Nietzsche eacute vontade de poder

17 Cf Nietzsche F KGW VIII-1 6[4] p 240

18 O riso eacute uma categoria no pensamento de Nietzsche e principalmente no Zaratustra Tal como a escuta isto eacute o corpo o riso eacute uma conditio sine qua non para entendecirc-los ― ao Zaratustra e a Nietzsche de modo geral Condiccedilatildeo para se entender a hora e o lugar deste pensamento desta experiecircncia histoacuterica Kant de modo lapidar na Criacutetica do Juiacutezo assim definiu o riso ldquoO riso eacute um afeto que resulta (que se daacute a partir de) da suacutebita transformaccedilatildeo de uma tensa espera (expectativa) em nadardquo (KUk sect 54 S 225 ndash Felix Meiner Verlag Hamburg 1974 S 190) Pergunta-se qual a grande espera qual a tensa expectativa que de repente se desfaz em nada e desde a qual entatildeo irrompe explode o riso na boca de Zaratustra-Nietzsche Lembremos Zaratustra natildeo eacute uma pessoa um indiviacuteduo natildeo eacute um personagem natildeo eacute uma tresloucada fantasia ele eacute a encarnaccedilatildeo (concretizaccedilatildeo) do pensamento do Ocidente que agora e aqui se faz vida pensada e compreendida desde e como vontade de poder-eterno retorno E tal pensamento sendo a encarnaccedilatildeo de tal desdobramento da histoacuteria da filosofia ocidental eacute vive na tensatildeo na espera ou na expectativa maior de verdade isto eacute de fundo de fundamento ― de vontade de fundo de fundamento enquanto e como vontade de verdade E eacute isso ― tal expectativa tal espera ou tal tensatildeo ― que de repente depois de todo o percurso de Zaratustra sua viagem isto eacute sua repeticcedilatildeo ou re-tomada da histoacuteria do Ocidente no e como seu decliacutenio ― enfim assim de repente num salto (ieacute subitamente) isso tal tensa espera se desfaz em nada Salta irrompe o proacuteprio nada como o fundo o fundamento da vontade de fundo e de fundamento E isso faz brotar faz explodir um grande riso despojado e despejado Des-fechado destampado aberto Sim uma baita gargalhada no do Zaratustra-Nietzsche Natildeo cabe aqui agora discutir e elaborar esta questatildeo esta extraordinaacuteria questatildeo do riso no pico no cume da experiecircncia da viagem do Zaratustra Isso natildeo cabe numa nota Fica a insinuaccedilatildeo e a sugestatildeo do tema decisivo

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Uma vez feita esta nova-uacuteltima ldquofixaccedilatildeo do conceito vidardquo ― para que serve mais Esgotou saturou Encheu Agora trans-borda Sobra Sobra tanto que jaacute natildeo presta para mais nada Jogue-se fora Eacute super-fluo Eacute demais Na vida o que eacute demais eacute para ser descartado jogado fora pois se natildeo intoxica envenena Esquecimento eacute ldquovis ativardquo ― eacute forccedila eacute vida Estaraacute aiacute dentro uma grande memoacuteria Uma memoacuteria que brota desde dentro de esquecimento do maior esquecimento Houmllderlin experimentou o brilho desta noite e o Hipeacuterion proclamou ldquoHaacute daacute-se um esquecimento de toda a vida de toda a existecircncia um emudecimento de todo nosso ser e eacute onde se estaacute tal como se tiveacutessemos tudo encontrado Haacute daacute-se um emudecimento um esquecimento de toda nossa vida de toda nossa existecircncia e eacute onde se estaacute tal como se tiveacutessemos tudo perdido uma noite de nossa alma onde nenhum brilho de uma estrela onde sequer um fogo-faacutetuo nos iluminardquo19 E isso eacute uma grande lembranccedila Eacute isso eacute esta estranha lembranccedila esta insoacutelita recordaccedilatildeo que ecoa que ressoa tal como eco tal como ressonacircncia de abismo ― de nada do nada do fundo da vida no pensamento de Nietzsche e de Heidegger Ambos parados celebram em

crucial para o pensamento-experiecircncia da virada da superaccedilatildeo do homem da metafiacutesica como a experiecircncia alegre jovial (a gaia ciecircncia) da e na aquiescecircncia do abissal do a-bysso Portanto a experiecircncia a evidecircncia da gratuidade de vida de existecircncia desde nada para nada Agrave guisa de fecho a esta longa nota lembramos esta liacutetica passagem do Zaratustra A fala eacute do homem mais asqueroso ― ele diz ldquoZaratustra vocecirc eacute um puto (ldquoDu bist ein Schelm) Uma coisa eu sei e aprendi de vocecirc oacute Zaratustra quem quer matar da maneira mais radical (ldquower am gruumlndlichsten toumlten Will) este ri Natildeo com ira natildeo com oacutedio (ldquoZornrdquo) se mata mas com riso ― assim falaste um dia Oacute Zaratustra tu velado (ldquoDu Verborgenerrdquo) ― tu destruidor sem oacutedio tu perigoso santo ― tu eacutes um putordquo (Assim Falava Zaratustra IV A festa do burro 1)

19 Cf Houmllderlin F Hipeacuterion ou o Eremita na Greacutecia tomo I livro I Forense Rio de Janeiro 2012 p 71 trad Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback

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cuidadosa escuta em auscultaccedilatildeo o brilho desta noite a fala deste silecircncio a eloquecircncia deste emudecimento20 Recordaccedilatildeo de abismo ― isso eacute uma grande recordaccedilatildeo Essencial inauguradora sempre reinauguradora ― fundamental Quando Heidegger fala de pensar como recordar e de pensar como agradecer natildeo seria isso mais ou menos isso que estaria em questatildeo a saber pensar como co-pensar este abisso recordar este abissal em tudo que se pensa se diz se fala Co-ver isso este modo de ser e esta experiecircncia em tudo que se vecirc Pensar como recordar natildeo seria sempre a cada passo recordar isso trazer sempre de novo para o coraccedilatildeo este modo de ser esta experiecircncia

3 Agora uma vez ldquoesquecidardquo a coisa isto eacute o

nome vontade de poder vamos agrave coisa mesma ― ldquodireckt zur Sache selbstrdquo Ocupemo-nos da ldquocoisardquo inteiramente sem nome ― de ldquoder Namenloserdquo21 Crua ― crua e nua No osso Por que para que chamar ldquovontaderdquo agravequilo que se daacute sem porquecirc e sem para quecirc Por que Para que este nome Bem mas antes e qual eacute a ldquocoisardquo isto eacute qual

20 Eacute isso sobretudo isso que escuto como eco como ressonacircncia e reverberaccedilatildeo no testemunho de ldquoBeitraumlgerdquo II justamente intitulado ldquoDer Anklangrdquo (Ressonacircncia reverberaccedilatildeo eco e tambeacutem lembranccedila)

21 Cf Assim Falava Zaratustra III Do grande anseio ― ldquoo Sem Nome (lsquoder Namenlosersquo ― obs Nietzsche diz ldquoder Namenloserdquo e natildeo como mais seria de se esperar ldquodas Namenloserdquo) para o qual somente cantos futuros encontraratildeo nomerdquo Heidegger em A Caminho da Linguagem fala do propoacutesito de deixar seu ldquocaminho de pensamento no sem nome ― um meinen Denkweg im Namenlosen zu lassenrdquo (Cf A Caminho da Linguagem Vozes 2003 p 96 Trad MC Schuback) E em Ensaios e conferecircncias ao se ocupar do comentaacuterio de um verso de Houmllderlin vai falar de ldquoo deus desconhecidordquo der unbekannte Gott que eacute resguardado como tal ao se revelar no velamento e como velamento ― eacute isso mesmo a essecircncia do misteacuterio (Cf Ensaios e Conferecircncias Vozes 2002 p 174 trad MC Schuback) Essas menccedilotildees visam tatildeo soacute marcar que ambos os pensadores caminham sim o mesmo caminho vivem sim a mesma hora

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realmente a questatildeo Qual realmente o problema Isso eacute seraacute o nosso tempo a nossa hora Talvez que isso seja uma coisa miacutenima insignificante Faz-se poreacutem grande por ser o imperativo da hora do tempo Do nosso tempo da nossa hora Soacute isso eacute preciso Nosso tema nosso problema seraacute herdar o proacuteprio desse nosso tempo dessa nossa hora Ser contemporacircneo de si mesmo eacute sempre uma difiacutecil tarefa Natildeo basta ser coetacircneo Isso eacute faacutecil porque inevitaacutevel Mas ser um verdadeiro um autecircntico contemporacircneo ― como Herdando E Herdando o que precisa ser herdado ― nosso tempo nossa hora Heidegger foi um tal herdeiro O desafio eacute que igualmente noacutes tambeacutem o sejamos Herdar autenticamente ser verdadeiramente herdeiro eacute o modo como realizamos nosso modo de ser irrevogavelmente histoacuterico

E qual o nosso tema Como a partir de que precisamos herdar o nosso tempo Como nosso tempo se nos envia nos chega O modo como o nosso tempo nos chega estaacute sempre a dizer o modo como o real nos eacute legado E eacute assim como o real que aqui e agora nos eacute legado que a filosofia precisa herdar isto eacute eacute assim que ela precisa insistir em ser filosofia promover-se e desse modo se concretizar como histoacuteria Ser contemporacircnea de si mesma E nosso tema nosso problema eacute o fim da modernidade o fim do cartesianismo o fim da razatildeo Nosso Mas isso jaacute eacute velho Jaacute foi de Nietzsche jaacute foi de Heidegger Sim e continua nosso pois este continua sendo nosso tempo nossa hora Em filosofia em histoacuteria um tempo uma hora uma eacutepoca ― isso dura muito Eacute um longo tempo longa duraccedilatildeo ou persistecircncia e que no entanto perfaz um instante Eacute sim o tempo de um instante E este tempo este instante eacute uma travessia cujo tempo de atravessamento natildeo eacute registrado no reloacutegio no calendaacuterio Ateacute um dois seacuteculos mas sempre um instante ― um aion

O fim da modernidade o fim da razatildeo O que eacute como eacute razatildeo No contexto ou no horizonte da

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modernidade do cartesianismo podemos dizer um modo de organizar a realidade isto eacute de tornar realidade realidade que se faz desde trecircs princiacutepios ou seja seguindo ou obedecendo basicamente a trecircs princiacutepios o de identidade o de natildeo contradiccedilatildeo e o de razatildeo suficiente O que quer que venha a se organizar a se compor ou a se estruturar sem violar a qualquer um destes princiacutepios diz-se eacute racional O projeto moderno de matematizaccedilatildeo do real eacute o projeto de antecipar numericamente estes trecircs princiacutepios isto eacute de algum modo tornaacute-los nuacutemeros ou seja sob o modo da antecipaccedilatildeo possibilitaacute-los e tornaacute-los vigentes enquanto e como quantificaccedilatildeo isto eacute enquanto e como caacutelculo Este procedimento como um todo perfaz a ideia de fundamento de fundamentar ou de lanccedilar boas bases Eacute esta a fundamentaccedilatildeo moderna E caacutelculo calcular aqui natildeo estaacute se referindo somente a uma operaccedilatildeo mental de natureza loacutegico-dedutiva uma demonstraccedilatildeo nestes tracircmites Caacutelculo aqui se refere principalmente a um contar com isto eacute ser ou ter instaurar ou criar condiccedilotildees preacutevias (via matematizaccedilatildeo ou antecipaccedilatildeo numeacuterica) para poder contar com ou seja previamente estabelecer condiccedilotildees de certeza ― de controle de seguranccedila de asseguramento ou melhor de auto-asseguramento Assim por esta via eacute concretizado o meacutetodo o caminho ou a proposta de rota de percurso do cartesianismo que potildee e impotildee a certeza como medida como criteacuterio de verdade isto eacute de realidade

Nosso tempo nossa eacutepoca experimenta o estertor deste projeto deste programa Eacute hoje a vigecircncia da teacutecnica o domiacutenio ou a dominaccedilatildeo da informatizaccedilatildeo como o deliacuterio do nuacutemero da numeraccedilatildeo do caacutelculo do controle e do asseguramento O impeacuterio do diacutegito Haacute algo de podre no reino da Dinamarca pois eacute fato que natildeo haacute vida sem um certo coeficiente de certeza mas eacute igualmente fato que natildeo haacute vida que possa se fazer soacute desde e como certeza Morte atrofia cristalizaccedilatildeo paralisaccedilatildeo

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Nietzsche jaacute tendo sido esta loacutegica ateacute o fim (pois esta eacute a loacutegica do niilismo a loacutegica da histoacuteria do Ocidente)22 vai cartesianamente isto eacute de maneira simples e clara contundente luacutecida e ateacute jocosamente fazendo trocadilho com a liacutengua alematilde para evidenciar uma radicaliacutessima experiecircncia do tempo do nosso tempo ― enfim olhando retro-olhando contemplando a histoacuteria da vontade de verdade da vontade de fundo e de fundamento ele vai dizer ldquoMan geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden gehtrdquo23 Traduz-se ldquoAfunda-se (ieacute vai-se a pique sucumbe-se) quando sempre se vai sempre se quer ir ao fundo aos fundamentos isto eacute aos princiacutepios agraves causasrdquo Isso eacute dito com laivos de riso de sorriso maroto Heidegger eacute meio muito caturro natildeo eacute muito de rir Ao inveacutes disso ele faz a exegese a deduccedilatildeo desta fala de Nietzsche Deduccedilatildeo isto eacute a minuciosa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica desta extraordinaacuteria experiecircncia Isso acontece por exemplo no seu curso do semestre de inverno 195556 em Freiburg intitulado ldquoO Princiacutepio de razatildeordquo ou o ldquoPrinciacutepio de fundamentordquo ― ldquoDer Satz vom Grundrdquo Satildeo treze aulas Um extraordinaacuterio percurso Percurso Aquilo natildeo anda Eacute um espantoso exerciacutecio do mesmo no parado como parado Mais intenso ― natildeo tatildeo intenso quanto aquilo soacute uma natureza morta soacute uma maccedilatilde soacute uma laranja de Ceacutezanne Sim e tal como uma tal natureza morta nada mais intenso nada mais concentrado mais compacto e tambeacutem nada mais transluacutecido nada mais diaacutefano nada mais liacutempido e limpo e inocente do que aquilo E isso aquilo eacute a histoacuteria do evidenciar-se do sem razatildeo do princiacutepio de razatildeo do sem fundo do princiacutepio do fundamento Tanta razatildeo tanto fundamento tanta vontade de fundo de

22 ldquoporque o niilismo eacute a loacutegica de nossos grandes valores e ideais pensada ateacute o fimrdquo ― KGW VIII-2 11[411] S 432 ou A Vontade de Poder Contraponto Rio de Janeiro 2008 paacuteg 24

23 KGW VIII-2 11[6] S 252

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fundamento e de verdade ― ora por que Para que Por que tanta ingratidatildeo Natildeo haacute razatildeo para tanta razatildeo natildeo haacute fundamento para tanta fundamentaccedilatildeo E isso e esta constataccedilatildeo sem nenhum lamento sem nenhuma maacutegoa sem culpa Uma contida serena alegria Alegria e becircnccedilatildeo Alegria becircnccedilatildeo e gratidatildeo Redime-se o biacutepede ingrato Nada ― evoeacute Mais uma vez Mais uma vez e sempre Mais uma vez e sempre o que eacute dom daacutediva doaccedilatildeo Pura gratuidade Muito obrigado

E Heidegger paacutera por aiacute Por aiacute jaacute parou jaacute parara Nietzsche Ele enlouqueceu ele perdeu a razatildeo perdeu peacute e fundo e fundamento aiacute Aiacute nesta hora neste lugar Neste tempo ― sim o nosso tempo Aiacute nesta passagem nesta travessia daacute vau Seremos capazes de uma tal perda Seremos capazes de uma tal conquista Seremos capazes de sermos contemporacircneos de noacutes mesmos herdeiros do que se nos envia do que se impotildee que seja herdado ― a saber o nosso tempo o nosso tema Na corrida isto eacute no percurso que eacute a histoacuteria da filo-sofia da vontade de saber Nietzsche e Heidegger parece chegam empatadiacutessimos O photochart define o empate Teria sido isso uma corrida de cavalo Este tal de Ocidente esta tal de Europa seria algo como um hipoacutedromo Nietzsche nesta liccedila no meio desta refrega ― a histoacuteria do Ocidente da Europa ― e chegando a este ponto de culminaccedilatildeo (a hora de perder a razatildeo) considera que aqui agora ldquocom o maior esforccedilo da reflexatildeo eacute preciso superar a metafiacutesicardquo [ldquomit houmlchster Anspannung seiner Besonnenheit die Metaphysik (zu) uumlberwindenrdquo] e que aqui agora ldquofaz-se necessaacuterio um movimento para traacutes um retro-movimento de voltardquo (ldquoeine R uuml c k l auml u f i g e B e w e g u n g)rdquo para o qual soacute poucos muito poucos estatildeo preparados e dispostos ― a saber os dispostos ou aptos agrave maior tensatildeo ou ao maior esforccedilo da meditaccedilatildeo ― ldquodie houmlchster Anspannung der Besonnenheitrdquo E conclui ldquopois aqui tal como no hipoacutedromo() faz-se necessaacuterio dar a volta por sobre o fim

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da raiardquo24 ― isto eacute entatildeo assim re-percorrecirc-la re-tomando-a ou repetindo-a desde este ponto de cumulaccedilatildeo de virada Isso eacute decliacutenio ldquoUntergangrdquo ou seja o movimento que tal como o sol se faz para baixo para o fundo procurando tal como o sol iluminar ldquoo mundo de baixordquo o ldquoUnterweltrdquo ao fim do dia que eacute o Ocidente Assim Nietzsche experimenta e pensa virada o movimento de dar fundo ao fundo ao fundamento do Ocidente a metafiacutesica afundando abismando-se ― pois quem sempre vai ao fundo este a-funda ldquoMan geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden gehtrdquo O fundo o fundamento o comeccedilo ou archeacute natildeo tem fundo natildeo tem fundamento razatildeo de ser ou ateacute de natildeo ser Eacute salto e no salto gratuidade pura gratuidade O a-bysso o abissal

Heidegger fincado neste mesmo lugar e nesta mesma hora ― o lugar e a hora de perder a razatildeo o fundo o fundamento a verdade ― fala da necessidade ldquodo passo atraacutesrdquo ldquoder Schritt zuruumlckrdquo e formula ldquoO passo atraacutes de volta move-se desde dentro da metafiacutesica em direccedilatildeo agrave essecircncia da metafiacutesicardquo25 isto eacute em direccedilatildeo ao sem fundo da vontade de fundamento ao sem razatildeo do princiacutepio de razatildeo Heidegger paacutera aiacute A verdade eacute que aiacute neste ponto comeccedila e acaba o pensamento de Heidegger Ser e Tempo comeccedila aiacute ― jaacute comeccedila aiacute Mas viu-se esta eacute tambeacutem a casa de Nietzsche sua estalagem na viagem que eacute o Ocidente sua histoacuteria Aiacute Nietzsche tal como Heidegger paacutera e escuta ldquoO Zaratustra eacute o renascimento da arte do ouvir ― um pressuposto para elerdquo26 Parar e escutar ― 24 Nietzsche F Humano demasiado humano I nr 20 Eacute preciso ler a iacutentegra deste extraordinaacuterio aforismo A uacuteltima frase eacute de difiacutecil traduccedilatildeo pois de refinada cunhagem em alematildeo Ela soa ldquoum das Ende der Bahn herumzubiegenrdquo

25 Cf Heidegger M Die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik em Identitaumlt und Differenz Neske Tuumlbingen 1976 S 41

26 Cf Ecce Homo Por que escrevo tatildeo bons livros Assim falava Zaratustra n 1

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isso eacute ldquobesinnenrdquo ldquoBesinnungrdquo ou seja entrar afundar no sentido ateacute mesmo e sobretudo no sem sentido do sentido ― o a-bysso ― e isso eacute meditar Tal escuta tal meditaccedilatildeo eacute corpo se fazendo corpo A grande razatildeo E isso corpo se fazendo corpo eacute pensar Bem mas isso de ouvir como pensar eacute Heidegger quem fala Mas pensar como corpo se fazendo corpo desde e como ouvir isso tambeacutem eacute Heidegger27 E o mesmo Nietzsche que no Ecce Homo diz ser a arte do ouvir o pressuposto para se ler o Zaratustra escreveu igualmente em pleno tempo de geraccedilatildeo do Zaratustra ldquoAssim como a natureza natildeo procede segundo fins assim deveria o pensador natildeo pensar segundo fins isto eacute nada buscar nada querer provar ou contradizer mas tal como numa peccedila musical ouvir auscultar ele teria uma impressatildeo do quanto ou do quatildeo pouco ouviurdquo28 Pensar eacute ouvir Eacute fazer com que corpo se faccedila corpo isto eacute eacute entrar eacute afundar no sentido na hora E isso parado Natildeo eacute hora de avanccedilo de progresso O avanccedilo o progresso jaacute o foi do espiacuterito da consciecircncia da razatildeo ― a filo-sofia Isso eacute a vontade de saber de verdade Mais do que vontade cobiccedila avidez A hora agora eacute outra O imperativo agora eacute outro Parar Parar esperar escutar Afundar Ir sim ao fundo Quem sempre vai ao fundo aos fundamentos agrave verdade ― este afunda Aparece irrompe mostra-se e faz-se visiacutevel o a-byssal Como Mostrar-se do abismo do abissal Sim eacute a evidecircncia da presenccedila de uma ausecircncia ― enquanto e como ausecircncia E sem afatilde e sem sanha e sem vontade de luz de presenccedila Sem lamento sem acusaccedilatildeo sem falta ou como deficiecircncia carecircncia A clareza do escuro O brilho da noite Uma evidecircncia escura e do escuro No mais fundo no mais profundo esquecimento uma lembranccedila uma

27 A respeito de escuta e corpo cf Heidegger M Zollikoner Seminare Vittorio Klostermann Frankfurt 1994 S 1256 Seminaacuterios de Zollikon Vozes Petroacutepolis 2001 p 1234

28 Cf Nietzsche F KGW V-1 4[73] S S 447

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recordaccedilatildeo de nada de nada Assim seja Ameacutem Que becircnccedilatildeo Pura doaccedilatildeo Pura gratuidade Muito obrigado

Neste ponto nesta hora no imperativo desta hora parar eacute progredir Isto eacute parar aqui agora eacute assumir a hora e avanccedilar nela quer dizer nela afundar Numa socircfrega e desenfreada corrida para frente isto eacute na escalada do progresso do espiacuterito (= histoacuteria da filosofia da metafiacutesica) ― aiacute quem paacutera no e graccedilas ao simples fato de parar no e graccedilas ao puro e simples fato de ter ganho a disposiccedilatildeo ou a preacute-disposiccedilatildeo de parar (haacute daacute-se aiacute jaacute um salto) rompe com o impetuosismo de avanccedilar de progredir Passo atraacutes movimento de volta isso eacute parada eacute parar Imperativo de nosso tempo Na experiecircncia e na evidecircncia deste tempo desta hora Nietzsche escreve ldquoPressuposiccedilatildeo coragem paciecircncia nenhum lsquoretornorsquo tambeacutem nenhum afatilde ou furor de adiante para frenterdquo29 Quando Nietzsche na citaccedilatildeo fala de ldquonenhum retornordquo (ldquoRuumlckkehrrdquo) eacute no sentido de nenhum iacutempeto de voltar retornar entendido ou subentendido agora natildeo no sentido da volta como decliacutenio que aqui acima enfatizamos mas no sentido de ardor nostaacutelgico saudosista e salviacutefico de renascimento de redenccedilatildeo no e como anelo por restauraccedilatildeo de tradiccedilatildeo perdida dos bons e velhos valores perdidos esquecidos desvalorizados (grosso modo a metafiacutesica os valores tradicionais da ciecircncia da religiatildeo do cristianismo) Tal retorno tal renascimento costuma ser tiacutepico nestas horas de perda ― coisa tiacutepica de nostaacutelgicos saudosistas conservadores ― sim eunucos Mas tambeacutem nada praacute frente nada de pesquisa com o propoacutesito de preencher alguma lacuna e assim esclarecer resolver um problema premente do saber da ciecircncia Natildeo A hora eacute de parada O tempo eacute de espera Paciecircncia Sem ardecircncias sem iacutempetos de progresso assanhado ou de regresso nostaacutelgico Tempo hora de espera e de escuta Isso eacute coragem Isso eacute a

29 KGW VIII-1 7[54] S 321 ou A Vontade de Poder opcit nr 617 p 317

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verdadeira assunccedilatildeo da hora do tempo Paradoxalmente isso mesmo a saber o passo atraacutes a parada ― justo este tempo de passagem e de virada eacute tempo eacute hora de decliacutenio de ldquoUnter-gangrdquo a descida ao fundo para assim retomar o fundo do fundo ou do fundamento que entatildeo se evidencia (a experiecircncia da hora evidencia isso e assim) como o sem fundo o a-byssal Comeccedilo (archeacute) eacute suacutebito i-mediato sem fundo sem porquecirc ou para quecirc ― a-byssal Espera e escuta ― sobretudo a atitude de escuta isto eacute de sintonia e de sincronia de consanguinidade com a coisa com a questatildeo mostra revela este sem fundo de todo fundo o sem fundamento de todo fundamento A gratuidade e na gratuidade a inocecircncia o sem querer Sem fundo sem Deus de graccedila puro dom gratuidade Este ponto de culminaccedilatildeo esta plenitude este zecircnite do dia que eacute o Ocidente (a Europa a filosofia a vontade de luz) a evidecircncia proporcionada pela experiecircncia de decliacutenio ― esta eacute a situaccedilatildeo de passagem de transiccedilatildeo enfim a ponte sobre a qual estaacute sobre a qual eacute Zaratustra Aiacute sua casa sua morada seu lugar A casa a morada o lugar do tempo da hora Haacute que habitaacute-la moraacute-la Assim seja Amor fati Incipit Zaratustra

E neste ponto comeccedila Heidegger Comeccedila e acaba Incipit Ser e Tempo Aiacute nesta hora neste tempo ― aiacute sim alfa e ocircmega Eacute o imperativo do tempo da hora Cada filosofia cada pensamento e cada filoacutesofo ou pensador tem seu tempo sua hora seu imperativo ou sua necessidade Na assunccedilatildeo de tal imperativo de tal necessidade estaacute a sua liberdade Heidegger foi este herdeiro Por isso contemporacircneo ― e natildeo soacute um mero coetacircneo que eacute soacute da mesma idade ― de seu tempo E assim por isso colocando e re-cordando esta hora este lugar e esta tarefa de espera e de escuta ― a tarefa posta e imposta pela parada pelo tempo de parar ― definindo seu lugar e sua hora Heidegger abre seu programa de trabalho de vida apoacutes cumprido o intransferiacutevel percurso de Ser e Tempo intitulado ldquoContribuiccedilotildees para a Filosofia (do evento ou do

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acontecimento apropriante)rdquo dizendo a hora eacute de passagem de transiccedilatildeo (ldquoZeitalter des Uumlbergangsrdquo) o tempo a hora eacute ldquode uma transformaccedilatildeo ou transfiguraccedilatildeo de essecircncia do homem que passa de ldquoanimal rationalerdquo para Da-sein30 isto eacute para homem entendido enquanto e como ser-no-mundo (abertura ek-stase e nisso e assim presenccedila) ou seja a passagem e a re-tomada da evidecircncia do a-byssal de transcendecircncia ou de doaccedilatildeo de irrupccedilatildeo gratuita Aiacute e assim a Terra a paacutetria ― a Terra do homem dos homens lembrando e parafraseando Saint Eacutexupeacutery

Eacute o mesmo lugar a mesma hora a mesma casa de Nietzsche Eacute Uumlber-gang eacute um ir por sobre transiccedilatildeo passagem (ponte Bruumlcke) que eacute um ir ao e para o fundo Unter-gang decliacutenio a-fundar Eacute o ponto o posto de guarda do Zaratustra a passagem (ldquoUumlbergangrdquo) a ponte (ldquoBruumlckerdquo) homem-superhomem (ldquoMensch-Uumlbermenschrdquo) O homem isto eacute o homem do humanismo greco-cristatildeo isto eacute o ldquoanimal rationalerdquo e o para-aleacutem-do-homem greco-cristatildeo em ultra-passagem e superaccedilatildeo do homem (ldquoanimal rationalerdquo) o que Nietzsche pensa desde e como vida corpo ― crianccedila Nietzsche e Heidegger estatildeo na mesma hora na mesma viagem no mesmo desafio E aiacute nesta hora neste lugar ambos param precisam parar pois este eacute o imperativo da hora do tempo Aiacute montar guarda Parar guardar velar Sim na escuta e na espera desde espera e escuta em vigiacutelia resistir suportar Guardar velar Haacute aiacute sim coisa de burro De burro e de camelo Eacute no deserto eacute desde dentro do deserto que vem que se faz que se daacute transformaccedilatildeo transfiguraccedilatildeo virada ou passagem para um outro registro

30 Cf Heidegger M Beitraumlge zur Philosophie (Vom Ereignis) Vittorio Klostermann Frankfurt 1989 GA Band 65 S 3 A passagem de Heidegger reza ldquoim Zeitalter des Uumlbergangs was einem Wesenswandel des Menschen aus dem lsquovernuumlnftigen Tierrsquo (animal rationale) in das Da-sein gleichkommtrdquo

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ou outra regecircncia ― metanoacuteia A hora eacute esta o tempo eacute este ― parar esperar ouvir

Esclareccedilamos um pouco aqui nesta hora e neste posto neste poacutertico um pouco de teimosia de caturrice ― isso eacute bom Coisa de suabo que Nietzsche em algum lugar com humor detectava em Hegel conterracircneo suabo de Heidegger Eacute algo do tipo da tecircmpera de Ceacutezanne que em carta a Zola natildeo hesita em se dizer ldquoSou pesado lento e burrordquo Isso eacute uma tecircmpera um tempero e um tempo O tempo O nosso tempo Se acharmos a imagem de Ceacutezanne meio pesada meio agressiva pode-se pedir que aqui agora se seja um pouco mineiro Eacute lembrando uma fala de Guimaratildees Rosa a respeito da mineirice Em algum lugar31 ele fala do mineiro do tipo mineiro meio capiau meio matuto como um cara que vai devagarzinho picando o fumo de rolo no covo da matildeo e matutando vai assim ldquofazendo a contabilidade da metafiacutesicardquo e ponderando sempre matutando ldquoque agitar-se natildeo eacute agirrdquo Uma admiraacutevel capacidade de resistecircncia de suportaccedilatildeo agrave monotonia

Somos seremos capazes desta paciecircncia Seremos dignos herdeiros Para tanto poreacutem eacute preciso jaacute ter conseguido a condiccedilatildeo para ser nesta espera nesta escuta neste matutar melhor neste meditar nesta meditaccedilatildeo ― ldquoBesinnungrdquo Eacute preciso jaacute ter perdido a pressa do nosso tempo que na vida do espiacuterito antes do intelecto chama-se pesquisa Essa eacute nossa agitaccedilatildeo Claro isso natildeo eacute accedilatildeo pois natildeo eacute a paciecircncia da espera e da escuta desde as quais com as quais ldquouma essecircncia uma forccedila eacute levada agrave sua cumulaccedilatildeo ou perfeiccedilatildeo enteacutelecheiardquo32 Para tanto eacute preciso jaacute ter perdido a pressa isto eacute a sanha a hybris Paradoxal absolutamente paradoxal mas para saltar eacute preciso jaacute ter saltado eacute preciso

31 Cf Rosa Guimaratildees Minas Gerais em Ave Palavra Joseacute Olympio Rio 1978 paacuteg 217 e seg

32 Cf Heidegger M Sobre o humanismo abertura do texto

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jaacute ter entrado na impulsatildeo do salto Mas a pressa a sanha que na vida do espiacuterito tornado inteligecircncia ou intelecto se faz se fez pesquisa ― isso eacute a marca do tempo a essecircncia de um tempo o nosso que estaacute se cumulando que estaacute vindo agrave perfeiccedilatildeo enquanto e como histoacuteria da metafiacutesica enquanto e como histoacuteria da razatildeo teacutecnica O fruto estaacute enchendo-se todo Eacute esta essecircncia que estaacute vindo agrave cumulaccedilatildeo E diz Nietzsche a coisa natildeo tem pressa E continua ldquofalamos e escrevemos de modo tal que aquele que tem pressa eacute levado ao desespero agrave desesperaccedilatildeordquo33

4 A confusatildeo eacute geral Mal-entendido um

verdadeiro quiproquoacute Eruditamente um ldquoquid pro quordquo tomando uma coisa pela outra e a outra pela uma Comeccedilou-se a falar a respeito da leiturainterpretaccedilatildeo de Nietzsche por parte de Heidegger A expectativa era que se esclarecesse alguma coisa a respeito deste tema A certa altura comeccedilou-se a misturar tudo a ponto de parecer que se estaacute a dizer que Heidegger e Nietzsche satildeo ldquoa mesma coisardquo ― a noite escura em que todos os gatos satildeo pardos A verdade eacute que se comeccedilou falando de Heidegger e (+) Nietzsche e de repente este ldquoerdquo (+) foi abolido e sobrou soacute um problema que este sim eacute comum e constitui um mesmo seja para Nietzsche seja para Heidegger ― seja para noacutes Passagem transiccedilatildeo ponte virada ― outro registro outra regecircncia A hora o tempo que precisam tambeacutem ser os nossos No Zaratustra ouvimos ldquoQuem tem uma meta (ldquoein Zielrdquo) e um herdeiro este no tempo certo quer a morte para o herdeiro e a metardquo34 Importante decisivo eacute o problema satildeo os problemas ― isso precisa fazer-se meta Nomes Autores e autorias Sejamos nobres e dignos Haacute que ter meta e que aconteccedila o herdeiro Que cresccedilam e apareccedilam meta e herdeiro pois

33 Cf Nietzsche F Aurora Proacutelogo nr 5

34 Assim Falava Zaratustra I Da morte livre (voluntaacuteria)

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A filosofia tem ou eacute autores nomes doutrinas Ou antes interessa deve interessar sobretudo os problemas e natildeo os autores nomes Autorias Afinal nesta hora de passagem de virada eacute Nietzsche ou Heidegger Quem tem razatildeo Ora mas a hora natildeo eacute justamente de perder a razatildeo de natildeo ter razatildeo Aqui agora quem tiver razatildeo estaacute carregado demais sobrecarregado ― um burro traacutegico ldquoAgraves vez quem num tem razatildeo eacute qui taacute cum elardquo disse em algum lugar em alguma hora um catrumano um meio muito louco meio virado ― meio muito iluminado E esta aqui e agora eacute a hora segundo a qual quem natildeo tem razatildeo eacute que estaacute com ela E como dizem ainda louco mesmo eacute quem perde tudo menos a razatildeo Agrave luz disso ateacute jaacute convocaram uma Cruzada para ressuscitar o Quixote O Louco35 Nietzsche Heidegger ― eles em boa hora no tempo certo perderam a razatildeo a verdade ldquoO novo em nosso atual posicionamento em relaccedilatildeo agrave filosofia eacute uma convicccedilatildeo que nenhuma eacutepoca jamais teve o fato que noacutes natildeo temos a verdade Todos os homens anteriores tinham a verdade mesmo os ceacuteticosrdquo36 escreveu Nietzsche se autodiagnosticando Tambeacutem Heidegger natildeo tem mais a verdade o fundamento a razatildeo Ele assim como Nietzsche ganhou sua hora seu tempo Foi herdeiro ― bom digno herdeiro Foi contemporacircneo de si mesmo A hora continua a mesma o tempo eacute o mesmo ― sejamos contemporacircneos de noacutes mesmos Sejamos herdeiros bons herdeiros em boa hora E a hora o tempo eacute de parar Parar esperar escutar Um tempo e uma hora em que se impotildee que nos enchamos de nada ― o nada do fundo do fundamento da razatildeo E natildeo haacute pressa A coisa natildeo tem pressa Natildeo cabe pesquisa ― natildeo eacute o caso Superaccedilatildeo do homem superaccedilatildeo da metafiacutesica virada ― quem tem

35 Cf Unamuno M de Vida de Don Quijote y Sancho Espasa-Calpe SA Madrid 1975

36 Cf KGW V-1 3[19] S382

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razatildeo Eacute Heidegger ou Nietzsche Ora isso natildeo interessa Natildeo eacute o caso Por que para que registro de nascimento ou atestado de oacutebito Por que para que direito autoral Registro no ECAD Fiscalizaccedilatildeo Natildeo eacute bom natildeo ter vergonha de ser de ldquoescuro nascimentordquo ldquoOacuterfatildeo de papel passadordquo eacute o soacute que soacute se vecirc nesta Terra na Terra dos homens Esta certidatildeo a Terra lavra esse papel ela passa

Mais ou menos pelos comeccedilos de 1888 cheio de muito silecircncio Nietzsche escreve a seguinte anotaccedilatildeo que devemos considerar gravemente ldquoYo me sucedo a mi mismo ― digo eu tal como aquele velho em Lope de Vega sorrindo pois tal como ele eu pura e simplesmente natildeo mais sei o quatildeo velho jaacute sou e o quatildeo jovem ainda sereirdquo37

E Heidegger num curso sobre Schelling falando do fracasso deste disse ldquoNietzsche o uacutenico pensador essencial depois de Schelling fracassou em sua obra A Vontade de poder Mas estes dois grandes fracassos (Schelling e Nietzsche) destes dois grandes pensadores natildeo eacute nenhuma falha e nada negativo Ao contraacuterio Eacute o sinal do advento de algo totalmente outro o raio de um novo comeccedilordquo E continua logo abaixo ldquoNietzsche certa vez na eacutepoca de sua criaccedilatildeo mais intensa e de sua mais profunda solidatildeo escreveu em um exemplar de seu livro Aurora os seguintes versos como dedicatoacuteria

Quem um dia tem muito a anunciar e a proclamar Este silencia muito e fundo em si (lsquoSchweigt Viel in sich hineinrsquo) Quem um dia tem de fazer espoucar o raio Este precisa por muito tempo ser nuvem (1883)rdquo38

37 Cf KGW VIII-2 11[22] S 256

38 Cf Heidegger M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der Menschlichen Freiheit (1809) Max Niemeyer Tuumlbingen 1971 S 4

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Num fracasso num grande fracasso haacute sempre uma conquista uma grande conquista Grande isto eacute radical essencial E isso tambeacutem por ser a experiecircncia e a evidecircncia de quem percorreu um caminho proacuteprio ― proacuteprio ieacute necessaacuterio e assim cunhando modelando a proacutepria liberdade Soacute os grandes e os soacutes os solitaacuterios (ldquoAs matildeos do solitaacuterio erram menosrdquo disse Rilke) fracassam grandemente quer dizer essencial visceral e vitalmente Fundamente Grande insistamos aqui natildeo eacute grandatildeo gigante ― eacute soacute sincero proacuteprio Isso costuma ser ateacute muito pequeno ― discreto soacutebrio recatado silencioso Pobre Toda leitura toda interpretaccedilatildeo nietzschiana de Heidegger eacute a homenagem e o tributo de um herdeiro O herdeiro de um fito de uma meta de um destino isto eacute de um envio histoacuterico De uma liberdade que se faz Assim pois se herda e se homenageia necessidade e liberdade Honra-se assim a coisa a questatildeo Isso e soacute isso importa isto eacute pesa Eacute coisa de quem tem olhos e coraccedilatildeo mansos agradecidos Nietzsche-Heidegger ― isso eacute uma uacutenica e mesma viagem uma uacutenica e mesma experiecircncia ldquoErfahrungrdquo Uma soacute hora Soacute isso importa soacute isso interessa

Vejamos a coisa assim Sejamos faccedilamo-nos agrave altura da coisa de uma coisa grande de uma hora grande que tambeacutem eacute que tambeacutem precisa ser a nossa Ponhamo-nos agrave sua altura vejamo-la desde o seu lugar proacuteprio Lugar e hora proacuteprios ldquoCoisas grandes exigem que delas se fale com grandeza ou que se calerdquo39 De uma coisa de toda e qualquer coisa fala-se com grandeza quando nos colocamos agrave sua altura isto eacute no seu lugar e na sua hora e entatildeo desde aiacute realmente a partir da proacutepria coisa da proacutepria questatildeo se fala se diz Isso eacute ser justo com as coisas com a coisa Honraacute-la

Petroacutepolis 15 de julho de 2013

39 Cf KGW VIII-3 15[118] S 271 ou 18[12] S 335 ou Vontade de Poder opcit n 1 paacuteg 23

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APEcircNDICE (Na verdade advertecircncia preacutevia) Questotildees a considerar Por que Heidegger interpreta Nietzsche tal como interpreta Isto eacute o que ele quer com esta sua interpretaccedilatildeo Eacute preciso esclarecer como ponto de partida certos pressupostos Coisas meio muito acacianas isto eacute que seriam solenemente endossadas pelo conselheiro Acaacutecio Poreacutem noblesse oblige a) Heidegger natildeo eacute ingecircnuo e nem idiota ou retardado mental Esta observaccedilatildeo se faz importante pois com frequecircncia satildeo feitas consideraccedilotildees e objeccedilotildees agrave interpretaccedilatildeo heideggeriana que nos levam a sub-por que ele seja ingecircnuo ou estuacutepido Heidegger segundo tais consideraccedilotildees fica parecendo um M Homais ou talvez um M Jourdain b) Heidegger natildeo eacute mal-intencionado mau-caraacuteter ieacute pex ele natildeo interpreta Nietzsche subestimando-o para que entatildeo ele Heidegger se superestime Ou seja ele natildeo potildee Nietzsche para baixo para entatildeo ele subir em cima e aparecer Isso seria pequeno mesquinho No caso isso natildeo eacute medida Por exemplo ele natildeo fala de Nietzsche como ldquoo uacuteltimo metafiacutesicordquo como se isso fosse um insulto um denegrimento uma deficiecircncia ou insuficiecircncia (coisa estulta feia e menor) para entatildeo ele aparecer como o primeiro natildeo metafiacutesico ou poacutes-metafiacutesico isto eacute como o primeiro redimido ou ressurgido dentre os mortos na e da histoacuteria

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Feita esta limpeza de terreno este acerto de rumo voltemos a perguntar Por que Heidegger interpreta Nietzsche tal como interpreta O que ele quer com isso isto eacute com tal interpretaccedilatildeo Estas consideraccedilotildees devem nortear a leitura do texto que precede Isso eu tentei dizer no texto

A Escrita-Grito do Louco

Aproximaccedilotildees e ressonacircncias da

filosofia de Nietzsche na escrita-

vida de Artaud

Ikaro Max Batista de Arauacutejo1

Quanto mais longe se vai mais pessoal e uacutenica se torna a vida A obra de arte eacute a expressatildeo necessaacuteria irrefutaacutevel definitiva dessa realidade uacutenica Nisso reside a ajuda prodigiosa que ela daacute agravequele que eacute forccedilado a produzi-la Isso explica de modo certo que devemos nos prestar agraves provas mais extremas (Carta de Rainer Maria Rilke)

Certamente a escrita pesa largamente no destino de alguns espiacuteritos Haacute sempre algo de incocircmodo ou de anormal na alma de quem escreve quase como se a constituiccedilatildeo neuroloacutegica deles fosse de outra natureza e tipo Esses homens os homens das letras os ldquohomens inteligentesrdquo (DOSTOIEacuteVSKI 1989 p11) contrapostos ao ldquohomem de accedilatildeordquo satildeo esses sofredores que possuem uma hiper-consciecircncia (ou consciecircncia hipertrofiada) que como uma faca na carne os estrangulam no momento oportuno e o dissuadem de atingirem de pronto seus objetivos colocando para eles questotildees impertinentes intoleraacuteveis mas ao seu ver extremamente necessaacuterias para a vida O homem de accedilatildeo ldquofundamentalmente uma criatura

1 Graduado como bacharel no curso Filosofia pela UFPB com a monografia intitulada ldquoA muacutesica como arte da reconstruccedilatildeo da cultura traacutegica em Nietzscherdquo orientando do Prof Dr Robson Costa Cordeiro Faz parte do Grupo de Pesquisa na aacuterea de esteacutetica filosoacutefica hermenecircutica e metafiacutesica

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limitadardquo cuja consciecircncia eacute ldquouma porccedilatildeo igual agrave metade ou agrave quarta parte de que eacute concedida ao homem culto de nosso seacuteculo XIXrdquo (Ibidem p14) natildeo tecircm entraves ou crises quanto agraves suas reais funccedilotildees e necessidades cotidianas Ele natildeo as coloca em questatildeo ou sob o microscoacutepio de qualquer saber mais preciso e desconfiado

Alguns espiacuteritos malogram em sua busca pela felicidade como eacute tida e difundida no senso comum Satildeo homens fundamentalmente doentes e em aberta hybris com o ambiente e consigo mesmos No entanto natildeo deixa de ser curioso e interessante como tais espiacuteritos nesse excruciante duelo em que sozinhos chegam a escancarar a nudez da situaccedilatildeo humana a sua real ausecircncia de fundo e de pontos de apoio soacutelidos atingem uma beleza de expressatildeo e de pensamento que torna todo o percurso infernal de suas vidas um detalhe da paisagem de suas descobertas essenciais

Nosso intento aqui natildeo seraacute ignorar a vida decerto mas jogar algumas luzes e projetar as sombras para uma apreciaccedilatildeo teatral do que a vida e a filosofia do pensador alematildeo Friedrich Nietzsche trouxe de estiacutemulo e abriu caminhos para o que o ator poeta e escritor francecircs Antonin Artaud viria a desenvolver tanto em vida quanto em obra Natildeo apenas em termos de verve e beleza ou termos de carnalidade expressiva mas em monstruosas dimensotildees de fuacuteria destrutiva e densidade de formulaccedilatildeo nos leva a aproximar as obras de pensamento compostas por Antonin Artaud e por Friedrich Nietzsche E fundamentalmente descaminhos do que era tido por instituiacutedo soacutelido e ldquoverdadeirordquo nos saberes e poderes modernos desde a fundaccedilatildeo da ciecircncia ocidental por Soacutecrates e Platatildeo

De onde vem a necessidade - esse turbulento imperativo - que leva tanto Nietzsche quanto Artaud a explodirem em lava incandescente enquanto escrevem Tem-se a impressatildeo de que ambos escrevem com uma fuacuteria

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indecorosa como se fossem dilapidar as folhas em branco fazecirc-las em pedaccedilos e senti-las sangrar sob suas penas Tanto um quanto outro queriam que suas obras fossem vivas ou fossem sua proacutepria vida O proacuteprio Nietzsche acabou por ser conhecido como o que constituiu primordialmente uma ldquofilosofia da vidardquo (FINK 1983 p9) Eacute por tal motivo que por exemplo sempre se tornou problemaacutetico classificaacute-los em gecircneros literaacuterios preacute-definidos O que os tornou facilmente alvo de mentecaptos obcecados com ideias antigas e paraliacuteticas Ao se deparar em 1888 com um criacutetico que o acusa de ldquomau estilordquo e ldquosem gosto para o fazer literaacuteriordquo Nietzsche em 10 de fevereiro responde natildeo sem ironia

O Senhor Spitteler tem uma inteligecircncia fina e agradaacutevel () ele fala apenas de Aesthetica meus problemas foram apenas deixados de lado ndash incluindo aiacute minha pessoa [] ldquoas frases curtas funcionam menos aindardquo (e eu burro que sou imaginei que desde os primoacuterdios do mundo ningueacutem tivesse dominado como eu a frase lapidar testemunha meu Zaratustra) [] meu interlocutor soacute tem olhos para o estilo aliaacutes um mau estilo e lamenta afinal que suas esperanccedilas no Nietzsche escritor tenham por conta disso se reduzido de maneira significativa Farei eu pois ldquoliteratura (ASTOR 2013 p249)

lsquoFarei pois ldquoliteraturardquorsquo Natildeo Pois ldquoeu natildeo sou

homem eu sou dinamiterdquo (NIETZSCHE 2008 p144) escreveria Nietzsche em 1888 em sua autobiografia literaacuteria E uma dinamite ou um divisor de consciecircncias ndash portador de uma ldquocrise como jamais houve outra na terrardquo - definitivamente natildeo pode fazer mera ldquoliteraturardquo e sim escrever atraveacutes de cataclismos apocalipses acontecimentos tsunacircmicos tatildeo enigmaacuteticos quanto a proacutepria natureza do caos

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Tanto Artaud quanto Nietzsche satildeo autores fascinantes rebeldes transgressores brilhantemente armados de intelectos profundos e de sensibilidade iacutempar No entanto apesar de alguma distacircncia que os separa e de caminhos diversos no campo da arte ou da escolha filosoacutefica penetramos em subterracircneos nos quais podemos apreender e sentir uma confluecircncia para aleacutem da derrocada psicoloacutegica dos dois grandes homens Os dois foram extremados niilistas inicialmente de inspiraccedilotildees romacircnticas pessimistas e traacutegicas E filosofaram com a vida vivenciando carnalmente as suas ideias Como se jaacute conhece tanto Artaud quanto Nietzsche foram julgados por seus contemporacircneos considerados loucos ainda em vida e morreram privados da razatildeo Anos depois eacute que suas obras foram revisitadas revistas criticamente e o tempo passou a validar muito de suas previsotildees

Percebemos nos dois autores que a acircnsia de transformar o mundo estava conectada com a vontade interior de levaacute-lo de volta as suas origens Anterior mesmo a qualquer divisatildeo elementar entre abstraccedilatildeo e efetividade valores sexo ou mesmo papeacuteis sociais Enquanto Nietzsche pensa especificamente nos traacutegicos gregos e nos pensadores preacute-socraacuteticos nos quais o mito era o horizonte que permeava e unificava as accedilotildees a religiatildeo a intuiccedilatildeo e o pensamento se davam por imagens Artaud volta-se para os siacuterios babilocircnicos e os povos orientais mais primitivos Em sua obra sobre o imperador assiacuterio de Roma Heliogaacutebalo Artaud remonta ao espetaacuteculo de confronto entre os princiacutepios masculinos e femininos e a tentativa de fundi-los de modo anaacuterquico e pederaacutestico empreendido pelo proacuteprio imperador Artaud quer reorganizar e reestruturar o homem para que sua vida ultrapasse o ldquoponto de ausecircncia e de inanidaderdquo (BLANCHOT 2005 p54) que fratura seu ser e seu pensamento Uma recusa sangrenta da metafiacutesica e do vazio do homem Almeja evacuar o organismo a deacutebil organizaccedilatildeo orgacircnica deficiente para resgatar o corpo

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originaacuterio do homem antes da Queda o corpo-sem-oacutergatildeos um corpo puro de intensidades e desejos que estaacute sempre no limiar-absoluto Artaud aquele que abomina o homem deus a histoacuteria e que restitui agrave vida o estado de potecircncia pura

Quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse macaco de uma vez por todas e jaacute ningueacutem acredita mais em deus todos acreditam cada vez mais no homem Assim agora eacute preciso emascular o homem Como () Colocando-o de novo pela uacuteltima vez na mesa de autoacutepsia para refazer sua anatomia O homem eacute enfermo e mal construiacutedo Temos que nos decidir a desnudaacute-lo para raspar esse animaluacuteculo que o corroacutei mortalmente deus e juntamente com deus os seus oacutergatildeos Se quiserem podem meter-me numa camisa de forccedila mas natildeo existe coisa mais inuacutetil que um oacutergatildeo (ARTAUD pp 41-42)

Artaud completa seu argumento dizendo que soacute quando conseguirem livrar o homem de seus oacutergatildeos e do ldquodeus-microacutebiordquo eacute que o teratildeo libertado de seus automatismos e da guerra interna em que natildeo existe hierarquia alguma Assim ldquopoderatildeo ensinaacute-lo a danccedilar agraves avessas como no deliacuterio dos bailes populares e esse avesso seraacute seu verdadeiro lugarrdquo (Ibidem p42)

Podemos assim agrave priori encontrarmos pontos de aproximaccedilatildeo entre os dois condenaccedilatildeo de nossa civilizaccedilatildeo da decadecircncia o rechaccedilo da metafiacutesica a criacutetica da religiatildeo e da moral consideradas como uma arma dos deacutebeis contra os fortes a confianccedila na arte e o teatro como regeneraccedilatildeo da cultura uma experiecircncia de polifonia do lsquoeursquo atraveacutes da experimentaccedilatildeo de diversos estilos de escrita a determinaccedilatildeo da vida como crueldade e a provaccedilatildeo da loucura

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Toda essa filosofia de Artaud estaacute radicalmente perpassada pelas descobertas tanto de Nietzsche quanto de Schopenhauer muito embora a implicaccedilatildeo do primeiro nos interesse mais aqui E eacute nessa crueldade ontoloacutegica nessa indiferenccedila cruel da natureza que iremos detectar e fazermos a primeira experiecircncia de ligar umbilicalmente o pensamento de Artaud com a experiecircncia originaacuteria de Nietzsche Percebemos uma imensa afinidade de gestos literaacuterios e filosoacuteficos entre eles O pensamento de Nietzsche desnuda a alma humana escancara suas ilusotildees e as destroacutei sem piedade e tambeacutem traz o corpo agrave tona como o maior misteacuterio da filosofia Artaud reconhece isso e certamente pode ter sido inspirado O trabalho de esquartejamento do modo de vida mitigado pelo Ocidente iniciado em Nietzsche parece ter continuidade na obra e vida de Artaud Procuraremos entender como isso se deu

A Crueldade Ontocoacutesmica do Vir-a-Ser A crueldade aparece como princiacutepio de base

afirmado tanto em Nietzsche quanto em Artaud em vaacuterias de suas obras Se olharmos por exemplo a argumentaccedilatildeo nietzschiana sobre os impulsos esteacuteticos da natureza que se manifestam no homem iremos nos deparar com o dionisiacuteaco considerado como pulsatildeo elementar baacuterbara que teve que ser absorvida pelos gregos antigos Jaacute em sua primeira obra de 1872 O Nascimento da Trageacutedia Nietzsche atraveacutes de um meacutetodo de introvisatildeo nada ortodoxo chega a admitir a existecircncia de dois impulsos que atravessam a histoacuteria da arte e da psicologia dos antigos gregos o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco

O dionisiacuteaco teria sido a base originaacuteria do pessimismo helecircnico tornado popular atraveacutes da sabedoria

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de Sileno (NIETZSCHE 2003 p36)2 Eacute o que aparece em termos de mais arcaico contemporacircneo ou mesmo anterior agrave paideacuteia grega e a formaccedilatildeo cultural oliacutempica advinda de Homero e Hesiacuteodo Nietzsche com formaccedilatildeo filoloacutegica e filoacutesofo da suspeita como mais tarde seraacute conhecido ausculta o passado grego com um ouvido afinado para detectar a verdade dos instintos helecircnicos e desconfia do que a tradiccedilatildeo esteacutetica e filoloacutegica toma por verdade No fundo desconfiava que o que estava incrustado como uma sombra no saber metafiacutesico da verdade era a posiccedilatildeo favoraacutevel e natildeo questionada da moral particularmente da moral cristatilde religiosa que era uma crenccedila comum e partilhada pelos teoacutelogos e filoacutesofos desde a Idade Medieval ateacute a moderna

Abrir espaccedilo para o dionisiacuteaco seria portanto perigoso no tocante a questionar a formaccedilatildeo da moral dentre os antigos e como isso foi legado ao Ocidente inteiro E efetivamente Nietzsche embora nesse primeiro momento natildeo se ocupe diretamente da moral cristatilde enquanto negadora da vida (Ibidem p19)3 posteriormente

2 ldquoReza a antiga lenda que o Rei Midas perseguiu na floresta durante longo tempo sem conseguir captura-lo o saacutebio Sileno o companheiro de Dioniacutesio Quando por fim ele veio a cair em suas matildeos perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferiacutevel para o homem Obstinado e imoacutevel o democircnio calava-se ateacute que forccedilado pelo rei prorrompeu finalmente por entre um riso amarelo nestas palavras - Estirpe miseraacutevel e efecircmera filhos do acaso e do tormento Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar natildeo ouvir O melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter nascido natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

3 Em Tentativa de Autocriacutetica ldquoela (a obra) jaacute denuncia um espiacuterito que um dia qualquer que seja o perigo se poraacute contra a interpretaccedilatildeo e a significaccedilatildeo morais da existecircnciardquo ou ldquordquoTalvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendor antimoral seja no precavido e hostil silecircncio com que no livro se trata o cristianismo ndash o cristianismo como a mais extravagante figuraccedilatildeo do tema moral que a humanidade chegou ateacute agora a escutarrdquo

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se aprofundaraacute nesta criacutetica retirando mais essa ilusatildeo do homem ocidental

No livro Nietzsche explica como os gregos tiveram que lutar contra seus impulsos autodestrutivos e pessimistas para obter o pleno domiacutenio de si e como para isso tiveram que criar uma projeccedilatildeo apoliacutenea sobre si mesmos e sua cultura Daiacute teriam se originado os deuses oliacutempicos como esse esplendor de forccedila e coragem como esse ideal a alcanccedilar na vida excelente e corajosa Mesmo poreacutem com essa criaccedilatildeo mito-poeacutetica ainda tinham que lidar com a potecircncia dionisiacuteaca vinda dos baacuterbaros estrangeiros Uma potecircncia que destruiacutea as formas individuais que celebrava o caos com festas sangrentas com orgias sexuais com pilhagens e saques de povos e tribos A loucura o transe a infacircmia a despersonalizaccedilatildeo a violecircncia desmedidas eram o efeito devastador desta tirania instintiva que ameaccedila os gregos em sua proacutepria cultura vinda dos lados vinda dos outros povos e paiacuteses e do mais recocircndito deles proacuteprios colocando em risco a confianccedila que tinham a respeito de seus destinos Apolo era o escudo metafiacutesico apropriado para manter em pleno funcionamento e em estado estabilizado a poacutelis grega

Nietzsche faz o trabalho do arqueoacutelogo de uma guerra psicoloacutegica que se trava no seio da cultura helecircnica identifica no desenvolvimento dos periacuteodos da arte grega a predominacircncia ora do apoliacuteneo ora do dionisiacuteaco e tambeacutem os momentos em que por meio da arte se lanccedilava ldquoaparentemente a ponterdquo (Ibidem p27) entre um e outro lanccedilando-se em periacuteodos amenos de paz A forma artiacutestica que Nietzsche considera o perfeito balanccedilo entre os impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos se daacute na formaccedilatildeo da trageacutedia aacutetica na qual o fundo dionisiacuteaco ndash a Vontade ou o Em-si na filosofia schopenhauriana inspirada em Kant - levando o coro de saacutetiros ao transe e agrave encenaccedilatildeo riacutetmica simbolizava ldquonuma descarga de imagensrdquo o vasto mundo sonoro dionisiacuteaco Aqui haacute o nascimento comum da muacutesica

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com a poesia e o teatro Como cabeccedilas da hydra essas artes surgem da vontade que se manifesta no fundo da vida do mesmo corpo vivo do mundo que se manifesta no homem como natureza estetizada O dionisiacuteaco base fundamental do mundo se expressa e se redime de sua intensa contradiccedilatildeo e sofrimento por meio da aparecircncia apoliacutenea O mundo diz Nietzsche em ldquoA Gaia Ciecircnciardquo seraacute entatildeo esteticamente justificaacutevel

Encontraremos em Artaud esse pensamento radicalizado de tal forma que a sua compreensatildeo do teatro o Teatro da Crueldade eacute capaz de fazer ldquorenovar o sentido da vidardquo e que vida aqui ldquonatildeo se trata () do exterior dos fatos mas dessa espeacutecie de centro fraacutegil e turbulento que as formas natildeo alcanccedilamrdquo (ARTAUD 2006 p8) Ora natildeo seria esse ldquocentro fraacutegil e turbulentordquo esse Uno-Primordial da esfera dionisiacuteaca de que nos fala Nietzsche Eacute bem provaacutevel que sim embora Artaud tenha uma concepccedilatildeo de vida e de mundo voltada para ldquouma identificaccedilatildeo maacutegica com essas formas4rdquo na qual uma cultura autecircntica e violentamente egoiacutesta ou interessada se perfaz A busca de Artaud por uma linguagem que ldquorompa a linguagem para tocar na vidardquo o busca a refazer toda a ideia de teatro do Ocidente E eacute sobre isso que iremos falar no proacuteximo ponto

O Teatro da Crueldade e o Refazer a Vida No prefaacutecio de sua obra O Teatro e seu Duplo Artaud

faz uma menccedilatildeo ao que seria a verdadeira cultura e sua relaccedilatildeo com a vida Assim ele escreve ldquoA verdadeira cultura age por sua exaltaccedilatildeo e sua forccedila e o ideal europeu da arte visa lanccedilar o espiacuterito numa atitude separada da forccedila e que assiste agrave sua exaltaccedilatildeo Eacute uma ideia preguiccedilosa inuacutetil e que a curto prazo engendra a morte (Ibidem p6)rdquo

4 Ibidem p 6

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Artaud assim como Nietzsche olha para o cidadatildeo burguecircs meacutedio de postura passiva e mentalmente provinciano cristatildeo assolado pelo teacutedio pelo trabalho e vecirc nele a personificaccedilatildeo da morte em vida Vecirc que o homem que consome a cultura o faz em seus intervalos diaacuterios ou depois da sua vida de trabalho de sua rotina exasperante e que a cultura o serve nesta mesma paralisia na qual o homem natildeo participa mais como membro ativo de ritual algum A cultura moderna na qual estatildeo inseridos ambos eacute uma cultura de consumo que engendra a morte que arrefece as potecircncias proacuteprias e criadoras do homem que o vicia em assistir sua vida passivamente

Artaud assim como Nietzsche assume entatildeo o papel de revolucionar essa cultura a partir da invocaccedilatildeo das forccedilas e da magia viva do homem dentro da esfera da arte Nietzsche havia visto em Wagner esse ponto de convergecircncia e transmutaccedilatildeo da cultura do gado passivo em um renascimento da cultura traacutegica a partir da muacutesica e do drama wagneriano Artaud poreacutem vai mais longe ao querer descartar a possibilidade ocidental do teatro que eacute ainda o teatro do drama psicoloacutegico que tem sua hierarquia de gestos e accedilotildees baseadas ou reduzidas ao texto Ele inventa assim a sua contraproposta radical ao teatro que chafurda na crise da representaccedilatildeo o seu Teatro da Crueldade Artaud explica em uma carta o que significa ldquocrueldaderdquo em sua boca

A crueldade natildeo foi acrescentada a meu pensamento ela sempre viveu nele mas eu precisava tomar consciecircncia dela Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida de rigor coacutesmico e de necessidade implacaacutevel no sentido gnoacutestico de turbilhatildeo de vida que devora as trevas no sentido da dor fora de cuja necessidade inelutaacutevel a vida natildeo consegue se manter o bem eacute desejado eacute o resultado de um ato o mal eacute permanente (Ibidem p119)

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Em outras palavras literalmente Artaud quer dizer

que ldquoa vida eacute crueldaderdquo mas tambeacutem que ldquonatildeo existe crueldade sem consciecircnciardquo A crueldade da vida pertence entatildeo ao ser consciente ao homem Um animal mesmo carniacutevoro e violento natildeo eacute em nada cruel do contraacuterio eacute natural e aceitaacutevel A distinccedilatildeo entre crueldade natural ou inocente e uma crueldade perversa se daacute atraveacutes da intencionalidade consciente do uso das forccedilas para provocar o puro mal para poluir e destruir a vida em sua base mesmo E aqui mais uma vez haacute uma concordacircncia entre Nietzsche e Artaud a maior crueldade do homem se daacute atraveacutes da moral da moralidade dos costumes e da consciecircncia que o fazem voltar-se contra si proacuteprio e contra seus semelhantes

Essa uacuteltima seria caracterizada pela maldade dos fracos e desfavorecidos ou o sistema da moral que consiste em uma inversatildeo da crueldade da vida contra ela mesma Segundo Nietzsche em sua Genealogia da Moral tal operaccedilatildeo de inversatildeo foi originariamente operada pelos fracos e escravos que queriam levar o forte a sentir remorso por sua condiccedilatildeo de forte a desprezar sua proacutepria natureza

Artaud entra em conflito aberto contra esse mundo falso dos valores e busca em seu teatro a sublevaccedilatildeo das forccedilas vitais originaacuterias do homem e sonha com um teatro que ldquorefaccedila a vidardquo buscando na linguagem fiacutesica ldquomiacutemica natildeo corrompidardquo o gesto extremamente preciso que funcione como ruptura da cadeia loacutegica de significaccedilatildeo que tenciona e aprisiona os corpos e espiacuteritos As potecircncias vulcacircnicas originaacuterias da criaccedilatildeo humana devem voltar ao centro da vida ao centro do palco da vida moderna O gesto do ator natildeo pode submeter-se a nenhuma ordem discursiva preestabelecida todo o conteuacutedo sintaacutetico e semacircntico teleoloacutegico estaacute suspenso da hierarquia da cena mas ao contraacuterio compor uma linguagem inaugural espeacutecie de hieroacuteglifo vivo para ser decifrado pelo

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espectador em pura liberdade de fruiccedilatildeo e participaccedilatildeo As palavras seratildeo apagadas do palco da crueldade apenas na medida em que se impotildee como ordenamentos como categorizaccedilotildees e classificaccedilotildees taxativas Artaud busca recompor o teatro reconfigurando a accedilatildeo e o gesto adormecido em cada som e palavra Quer trazer a carne da palavra agrave tona a imanecircncia pura do verbo a nudez dos sentidos nem que pra isso ele tenha que se alienar da proacutepria liacutengua

eu natildeo tenho mais a minha liacutengua () nada de palavra nada de espiacuterito nada () natildeo esperem que eu nomeie esse tudo que eu lhes diga em quantas partes ele se divide que lhes diga seu peso () ah esses estados que nunca satildeo nomeados essas situaccedilotildees eminentes da alma ah esses intervalos do espiacuterito (ARTAUD 2006 p20) 5

O que ele quer eacute ldquoa formaccedilatildeo de uma realidade a

irrupccedilatildeo ineacutedita de um mundordquo num teatro que ldquodeve nos dar esse mundo efecircmero mas verdadeiro este mundo tangente ao realrdquo que seraacute ldquoele proacuteprio este mundo ou noacutes dispensaremos o teatrordquo (Ibidem p30) O efeito de tal teatro no espectador deve algo entre ldquoa anguacutestia o sentimento de culpabilidade a vitoacuteria a saciedaderdquo de modo que ele seraacute ldquosacudido e ficaraacute arrepiado com o dinamismo interior do espetaacuteculordquo e que tal dinamismo ldquoestaraacute em relaccedilatildeo direta com as anguacutestias e preocupaccedilotildees de toda a sua vidardquo O teatro entatildeo para refazer a vida deveraacute possuir essa ressonacircncia interior profunda esse caraacuteter de gravidade ldquonatildeo eacute ao espiacuterito ou aos sentidos dos espectadores que nos dirigimos mas a toda sua existecircnciardquo (Ibidem p31)

5O Pesa-Nervos In Linguagem e Vida p20

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Cada espetaacuteculo deveraacute se tornar entatildeo uma reencenaccedilatildeo coacutesmica do drama da proacutepria vida tal qual seria possiacutevel ver com Nietzsche a partir da trageacutedia de Dioniacutesio no qual a fatalidade seraacute permanentemente evocada como uma espeacutecie de acontecimento que exigiraacute do puacuteblico a adesatildeo iacutentima Essa seraacute a sua tarefa absoluta e levaacute-la a cabo seraacute ter ldquopersuadido (o puacuteblico) de que somos capazes de fazecirc-los gritarrdquo (Ibidem p34)

Claro que tal proposta natildeo poderia ter passado em sua eacutepoca sem polecircmicas Os primeiros a se manifestarem abertamente contra foram os proacuteprios companheiros de Artaud que entatildeo ainda estava fazendo parte do movimento surrealista na deacutecada de 20 ao que Breacuteton em seu Segundo Manifesto do Surrealismo denuncia Artaud e seu ldquoideal de teatro () que era organizar espetaacuteculos que pudessem rivalizar em beleza com as batidas da poliacutecia (Ibidem p 89)6rdquo

As tentativas poreacutem de pocircr em praacutetica as ideias do Teatro da Crueldade no Teatro Alfred Jarry idealizado por Artaud natildeo deram certo Suas montagens natildeo foram bem-sucedidas em termos de puacuteblico e criacutetica e as tecnologias da eacutepoca natildeo favoreciam ao que hoje eacute muito mais faacutecil e praacutetico fazer do que em sua eacutepoca Assim Artaud passa a abandonar a ideia de reconstruir propriamente o teatro para reconstruir a vida usando a si mesmo como molde estilizando e abrindo como campo esteacutetico sua proacutepria existecircncia atraveacutes de sua vida puacuteblica e de suas obras (ou jatos de sangue literaacuterio) enquanto campo de combate Artaud abandona o teatro depois de seu fracasso ao tentar colocar a metafiacutesica em cena Seu teatro natildeo conseguiria atingir a dimensatildeo cataacutertica porque o mundo moderno das maacutequinas jaacute natildeo era mais capaz de metafiacutesica

6Nota citada na p 30 referecircncia da ediccedilatildeo francesa do Manifestes du surreacutealisme Andreacute Breton Ideacutees nrf 1965 p89

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Obra como Espaccedilo da Reinvenccedilatildeo e de Combate

A escrita artaudiana eacute uma mescla de gritos e sussurros laacutegrimas espermaacuteticas urina sangue secircmen que trituram torturam o corpo e produzem uma escrita de fogo e carne queimada flutuando como um bezerro sacrificado na superfiacutecie ensanguentada numa produccedilatildeo de marcas escarificaccedilotildees no corpo e natildeo paacuteginas Marca como a lei lei como a escrita sobre o corpo corpo como o aleacutem da crueldade (LINS 1999 p10)

A linguagem em Artaud estaacute totalmente identificada

com a vida Linguagem-bomba linguagem-evasatildeo holocausto-do-espiacuterito ferida-da-liacutengua Natildeo buscando teleologia ou abstraccedilotildees salvadoras chafurdando na proacutepria limitaccedilatildeo e ampliando-a ao campo do indefinido do intraduziacutevel A linguagem-bomba de Artaud eacute uma viagem pelas veias pelas escarificaccedilotildees pelos bueiros do ser pelos esgotos da alma uma danccedila apopleacutetica no abismo A palavra explode como chicote nos textos do imprevisiacutevel e revolucionaacuterio Artaud Ele natildeo quer nada pronto delimitado esperado nada nascido Renega ateacute o absurdo vai ateacute o vazio ectoplaacutesmico espectral retira a palavra da tensatildeo referente-referenciado signo-significante Asfixia a semacircntica anterior o apriori do campo das significaccedilotildees Artaud busca no corpo a origem da liacutengua e da expressatildeo No proacuteprio Nietzsche vamos encontrar que a linguagem eacute a especializaccedilatildeo de determinados afetos E a linguagem comeccedila pela poesia pelo canto pelo gesto que busca dimensionar-se para atingir a expressatildeo de determinados instintos

Resta-nos considerar a linguagem enquanto produto do instinto tal como ocorre entre as abelhas ndash nos formigueiros etc O instinto no entanto natildeo eacute o resultado da reflexatildeo consciente e

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tampouco a mera consequecircncia da organizaccedilatildeo corporal [] O instinto eacute a bem dizer inseparaacutevel do mais profundo iacutentimo de um ser (NIETZSCHE apud BARROS 2007 p49)

A relaccedilatildeo do expressar do buscar uma liacutengua uma

expressatildeo estaacute entatildeo no campo do padecer do sofrer do migrar para si dentro do proacuteprio do sofrimento Essa auto-exposiccedilatildeo eacute perpassada pelo fora o tempo inteiro ao mesmo tempo em que retira de si toda as marcas do que foi impresso culturalmente no proacuteprio indiviacuteduo Artaud e no indiviacuteduo Nietzsche Eacute uma relaccedilatildeo que busca se purificar mas para isso passa pela convalescenccedila que eacute a total perda de apoio num exterior concreto ou numa verdade absoluta imposta de fora A iacutentima ligaccedilatildeo entre sofrer e pensar entre doenccedila e pensamento tambeacutem estende uma rede de irmandade entre Nietzsche e Artaud Sabe-se da constante condiccedilatildeo convalescente de Nietzsche desde seus anos em Basileacuteia ateacute a eclosatildeo da euforia de Turim7 A sua convalescenccedila em Basileacuteia teve fundamental importacircncia no sentido de Nietzsche despertar para como sua vida normatizada enquanto professor de Universidade era inautecircntica ndash ldquoum desviordquo - em relaccedilatildeo a sua real tarefa Podemos entatildeo identificar o papel decisivo que teve a enfermidade em um despertar da tarefa do pensamento do questionamento radical da criacutetica corrosiva e da transgressatildeo de Nietzsche em relaccedilatildeo agrave vida e agraves instituiccedilotildees de sua eacutepoca

Nietzsche busca expressar o vir-a-ser com intensificados jogos poeacuteticos com a linguagem desaprisionada buscando se contrapor aos modelos metafiacutesicos-conceituais conceitos-prisotildees do pensamento

7 A respeito de biografias interessantes de Nietzsche indicamos a considerada a maior biografia do filoacutesofo o livro Nietzsche de Curt Paul Janz (Biografia em 3 tomos [1978-1979] Paris Galimard) e a de Dorian Astor Nietzsche Porto Alegre ndash RS LPampM)

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como diraacute Artaud A nomadologia8 escrita ou nomadologia dos signos eacute tambeacutem agenciamento criativo da praacutetica de pensamento tanto em Nietzsche quanto em Artaud Ao longo da obra do filoacutesofo alematildeo nos deparamos com obras que operam sob o estilo dissertativo (a exemplo de O Nascimento da Trageacutedia Genealogia da Moral) no estilo aforiacutestico (Para Aleacutem do Bem e do Mal Humano Demasiado Humano Crepuacutesculo dos Iacutedolos etc) panfletos (Consideraccedilotildees Extemporacircneas) uma espeacutecie de saga poeacutetica em forma de novela paroacutedica (Assim Falou Zaratustra) escritos autobiograacuteficos (Ecce homo) aleacutem de obras no estilo poeacutetico e ditiracircmbico Sem mencionar a vastiacutessima obra feita de seus fragmentos poacutestumos com apontamentos vetores de pensamento estrateacutegias e indicaccedilotildees guardadas de maneira desordenada sistematicamente agrave margem de suas publicaccedilotildees oficiais Artaud jaacute reconhecido por sua policromia artiacutestica produz textos sobre cinema poesia criacutetica literaacuteria roteiros peccedilas esboccedila projetos de performance atua pinta e desenha Natildeo afeito a um caminho seguro e normativo Artaud acima de tudo experimenta Eacute a experiecircncia que eacute constitutiva de seu pensamento de sua praacutetica como poeta pensador e ator E a experiecircncia dos dois do pensamento se depara efetivamente sempre em aporias ou em limiares que se tornam acontecimentos ou experiecircncias-limite E tal experiecircncia retira da autonomia da vontade do sujeito o seu espaccedilo privilegiado e transcendental de escolha de sentido de determinaccedilatildeo categorial E tal busca leva o pensador ao polo do viver que se intensifica numa direccedilatildeo oposta ao mero existir da maioria conformada e acomoda na prisatildeo da liacutengua do conceito-padratildeo do corpo condicionado pelas regras loacutegico-civilizadas

8 Termo utilizado por Gilles Deleuze e Guatarri em sua obra Mil Platocirc Vol 5 Por conta do espaccedilo e do propoacutesito do artigo evitarei explicar o conceito

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Pois a humanidade natildeo quer se dar ao trabalho de viver de entrar nesse acotovelamento natural das forccedilas que compotildeem a realidade a fim de extrair dela um corpo que nenhuma tempestade poderaacute mais consumir Ela sempre preferiu contentar-se muito simplesmente em existir Quanto agrave vida eacute no gecircnio do artista que ela tem o haacutebito de ir procura-la () para arrancar o fato de viver agrave ideacuteia de existir9 (ARTAUD 2006 p284)

Eacute Blanchot que nos lembra que Artaud ldquonunca

aceitaraacute o escacircndalo de um pensamento separado da vidardquo nem mesmo quando estaacute em devir puramente entregue agrave experiecircncia mais radical e direta quando ele vive e sofre a separaccedilatildeo e a ausecircncia tanto de um quanto doutro Eacute essa experiecircncia do limite de sua potecircncia e impotecircncia quando seu pensamento estaacute a um passo atraacutes dele como um ideal devorador e imperturbaacutevel projetando uma nebulosa e a vertigem do Vazio como possibilidade a que se agarra e nega radicalmente

Por que Artaud e Nietzsche estatildeo buscando essa Experiecircncia-limite Por que estatildeo perseguindo ldquocom a sede infinita da almardquo esse cataclismo do sujeito cartesiano e da loacutegica em prol de uma intuiccedilatildeo selvagem da pura imagem e do viver sem as marcas do jaacute dado ldquoAs sensaccedilotildees estatildeo mortasrdquo nos diz Artaud O que as matou foi o excesso de falso racionalismo e de teacutecnicas na vida moderna Contra isso Artaud encarna uma maacutequina de guerra que anseia vigorar diante do sufocamento do corpo e do espiacuterito no Ocidente ldquoPois bem Eacute minha fraqueza e minha absurdidade querer escrever a qualquer preccedilo e me exprimir Sou um homem que sofreu muito do espiacuterito e por isso tenho o direito de falarrdquo (ARTAUD apud

9 Ensaio intitulado ldquoVan Gogh O suicidado da sociedaderdquo In Linguagem e Vida

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BLANCHOT 2005 p51) Encarna assim uma vida devotada agrave guerra contra as representaccedilotildees engendra um devir revolucionaacuterio que faz eco agrave transvaloraccedilatildeo proposta por Nietzsche para aleacutem do bem e do mal

Artaud grita em febre Estaacute na abstinecircncia do pensamento Em suas cartas ao editor Jacques Rivieacutere fala sobre ldquoa impossibilidade de pensar que eacute o pensamentordquo Natildeo eacute apenas uma dificuldade metafiacutesica eacute o arrebatamento de uma dor de uma sombra imensa que o perpassa e se avoluma como ldquoausecircncia de voz pra gritarrdquo Ele sente na pele que a ldquofacilidade profundardquo para exprimir a ldquototalidade imediatardquo lhe foi arrancada e esmagada na alma que ldquono momento mesmo que a alma se dispotildee a organizar sua riqueza suas descobertas () uma vontade superior e maleacutevola ataca a (sua) alma como um vitriolordquo e introduz no centro dele a afirmaccedilatildeo de um perpeacutetuo sequestro que se torna o seu mais proacuteprio como sua verdadeira natureza A sua poesia versa sobre essa falha essa lacuna esse buraco no pensamento que o aflige A escrita de Artaud cobre e relata visceralmente a experiecircncia do bloqueio que o faz ldquoser pela metade pensar pela metade sentir pela metaderdquo

Um dos traccedilos fundamentais da obra de Nietzsche

eacute cada vez mais que sua obra avanccedila e desenvolve uma experiecircncia de si mesmo que aparece como uma transgressatildeo dos valores Um exemplar fundamental se daacute em sua proacutepria autobiografia Ecce Homo tatildeo bem analisada por ANDRADE (2008) Nietzsche contesta os pilares da normalidade desvinculando-a da sauacutede Uma descriccedilatildeo exemplar dessa experiecircncia de si mesmo eacute dada por Nietzsche em uma carta escrita para Karl Fuchs em 14 de dezembro de 1887

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Na Alemanha preocupa-se muito com as minhas lsquoexcentricidadesrsquo mas como nunca souberam onde estaacute o meu centro ser-lhes-aacute difiacutecil encontrar a verdade de quando e onde tenho sido lsquoexcecircntricorsquo ateacute agora Por exemplo o ter sido filoacutelogo foi qualquer coisa situada inteiramente fora do meu centro o que natildeo quer dizer que isso haja sido mau Assim tambeacutem me parece agora uma excentricidade o fato de ter sido wagneriano Esta uacuteltima foi uma experiecircncia sobremaneira perigosa e agora que vejo que natildeo me afundei por levaacute-la ateacute o final eacute que me apercebo do sentido que teve para mim Foi a prova mais forte a que pude submeter o meu caraacutecter Depois pouco a pouco vai-nos disciplinando e conduzindo ateacute agrave unidade o mais iacutentimo que possuiacutemos Aquela paixatildeo que durante muito tempo natildeo tem nome aquecircle trabalho de que se eacute involuntariamente missionaacuterio consegue salvar-nos de tocircda a dispersatildeo (NIETZSCHE 1944 p 341)

Nietzsche recusa a norma como o centro

organizador de onde irradia a sua individualidade Deste modo a norma aparece como um desvio de si mesmo desvio daquela sua tarefa particular para a qual foi (auto) disciplinado e que lhe restituiu como um resultado (e natildeo como um pressuposto) sua unidade e individualidade O que Nietzsche busca antes eacute a dissonacircncia e o muacuteltiplo A filosofia nietzschiana natildeo eacute um sistema que estaacute no museu da histoacuteria das ideias poreacutem um discurso que provoca o nosso mais profundo interior Nietzsche costumava dizer que escrevia para si mesmo mas sempre se povoando de contrapostas almas ldquoSomos feitos de muitas almas numa soacuterdquo que poderia ser visto como essa relaccedilatildeo interna entre as vaacuterias vontades de potecircncia que nos habitam e nos formam Ao fazer experimentaccedilotildees consigo mesmo Nietzsche convida-nos a pensarmos as nossas proacuteprias experiecircncias Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Haacute

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que se entender o que Nietzsche indica como ldquopara todosrdquo e ao mesmo tempo ldquopara ningueacutemrdquo ldquoMas isso eacute contraditoacuterio Logo impossiacutevelrdquo diz-nos o claacutessico silogismo aristoteacutelico Isso eacute desconstruiacutedo atraveacutes da polifonia de registros buscados por Nietzsche que contempla o caos criador que o perpassa e o constitui os diversos niacuteveis de afetos e vontades de potecircncia que se relacionam ora uns ora outros tocando acordes diversos na sua alma de forma perspectivistica gerando tipos intensos diversos e contrapostos de interpretaccedilotildees A dessingularizaccedilatildeo gera a multiplicidade ampliada a diversidade expressiva amplia o espectro de percepccedilotildees e saberes que vatildeo formar o que Nietzsche ao hierarquizar de acordo com a vida vai chamar de grande estilo Para tal conceito achamos de grande valia o que nos diz Nietzsche citado em BARROS (2012 p 32) ldquoAssenhorar-se do caos que se eacute forccedilar o seu caos a se tornar forma tornar-se necessidade na forma [] eis aqui a grande ambiccedilatildeordquo

O grande estilo em Artaud corresponderia a algo como ldquose perder para se ganharrdquo seria o desencontro consigo num perpeacutetuo autoengendramento algo que ele descobriu na Danccedila do Rito do Peiote entre os iacutendios taraumaras Atraveacutes de uma ldquoviagem aos confins do inconsciente alojando-se como uma ferida na liacutengua na sua erracircncia agrave procura do Absoluto da Verdade do Serrdquo ele cairia no natildeo-ser partiria em busca do Impossiacutevel purificado da origem-prisatildeo

Dois caminhos diversos intensificados de formas parecidas e diferentes ndash anaacutelogas ateacute certo ponto - mas que desembocaram no mesmo destino a loucura

Nietzsche apesar de todo seu lado problemaacutetico e

doentio buscou atingir a grande sauacutede que tanto falou em seus uacuteltimos escritos principalmente em sua inquietaccedilatildeo

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pelo grande estilo Artaud enquanto poeta dramaturgo e ator encarnou suas obras e personagens tal qual quando agiu em Paris nos anos 30 como se fosse Heacuteliogaacutebalo em Roma durante seu cruel impeacuterio No fim da vida Nietzsche assinava suas cartas como ldquoDioniacutesiordquo ldquoJuacutelio Ceacutesarrdquo ou ldquoO Crucificadordquo Ambos ampliaram perspectivas e apontaram o raio de suas provocaccedilotildees e questionamentos para o que ainda era o nosso tempo por assim dizer no seu uacutetero de gestaccedilatildeo Ambos tambeacutem sucumbiram na luta Nietzsche lutando contra sua enfermidade durante infernais onzes anos nos quais parentes de maacute-feacute conjugadas com antissemitas utilizaram o espoacutelio do filoacutesofo de maneira mundialmente catastroacutefica Artaud passa pelo calvaacuterio o verdadeiro inferno de internaccedilatildeo em internaccedilatildeo que chega a durar cerca de uma deacutecada Sainte-Anne Quatre-Mares Ville-Eacutevrard Cheacutezal-Beacutenoit Rodez Chega a passar fome e fica no esquecimento ateacute 1943 quando seu ex-companheiro de tempos surrealistas Robert Desnos o transfere para Rodez e aos cuidados do Dr Gaston Ferdiegravere eacute estimulado a escrever e a desenhar isso natildeo impede o psiquiatra de aplica-los frequentes sessotildees de eletrochoque

Em 1946 terminada a guerra intelectuais de destaque mobilizam-se para tirar Artaud de Rodez e garantir sua subsistecircncia Grava o seu uacuteltimo escacircndalo em 1948 Para acabar com o julgamento de Deus uma peccedila de imprecaccedilatildeo onde escarra no organismo como doenccedila imputada por Deus para dominar o homem para moldaacute-lo controla-lo para parasitar sua liacutengua seus pensamentos e sua sensibilidade Em 1949 ele morre perto do peacute de sua cama estrangulado no reto pelo cacircncer Seu grito reverberando a anguacutestia o isolamento e a marginalizaccedilatildeo em vida ndash bem como sua genialidade ndash chega a noacutes e nos toca no acircmago junto com a provocaccedilatildeo do filoacutesofo dionisiacuteaco que tambeacutem natildeo buscava nada aleacutem do que

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intensificar sua potecircncia e seu cruel e incendiaacuterio ldquoapetite de vidardquo

A uacuteltima provocaccedilatildeo que me passa na cabeccedila ao pensar nesses dois e em como sua cumplicidade alieniacutegena ndash natildeo em termos de filiaccedilatildeo pois nem Nietzsche queria ldquoseguidoresrdquo nem Artaud queria ser inautecircntico e devedor de algo ou algueacutem - me parece perceptiacutevel eacute seraacute que poderiacuteamos ver na obra tardia de Artaud ndash a sua vida ndash a encarnaccedilatildeo do tipo de vida ldquojustificada esteticamenterdquo por Nietzsche Referecircncias ANDRADE Daniel Pereira Para Aleacutem da Loucura e da

Normalidade Nietzsche contra a recepccedilatildeo psiquiaacutetrica In Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 27 p 279-301 juldez 2008

ASTOR Dorian Nietzsche Trad Gustavo de Azambuja Feix 1ordf ed- Porto Alegre RS LPampM 2013

ARTAUD Antonin O Teatro e seu duplo Trad Texeira Coelho 3ordf ed ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

_______________ Linguagem e Vida Org e Trad J Guinsburg Silvia Fernandes Telesi Antocircnio Mercado Neto Regina Correa Rocha e Seacutergio Saacutelvia Coelho 3ordf reimpr Da 1ordf ed ndash Satildeo Paulo Perspectiva 2006

________________ Escritos de um louco Ed Coletivo Sabotagem Disponiacutevel online wwwsabotagemcjbnet (sem data e sem creacuteditos de traduccedilatildeo)

BARROS Fernando de Moraes O Pensamento Musical de Nietzsche 1ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2007

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_________________________ Nietzsche ouvinte de Chopin em busca do ldquogrande estilordquo In Estudos Nietzsche Curitiba v 3 n 1 p 31-48 janjun 2012 p31-48

BARROS Wagner de Resenha de ANDRADE Daniel Pereira Nietzsche a experiecircncia de si como transgressatildeo (loucura e normalidade) In Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 26 p 203-210 janjun 2008

BLANCHOT Maurice O livro por vir Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Martins Fontes 2005

DETIENNE Marcel Dioniso a ceacuteu aberto Trad Carmem Cavalcanti 1ordf ed Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1988

DIAS Rosa Maria Nietzsche vida como obra de arte 1ordf ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011

DOSTOacuteIEVSKI Fioacutedor Notas do Subterracircneo Trad Moacir Werneck de Castro Editora Bertrand Brasil Rio de Janeiro ndash RJ 1989

DELEUZE Gilles Conversaccedilotildees Trad Peacuteter Paacutel Pelbart 1ordf ed Satildeo Paulo Ed 34 1992

_______________ GUATARRI Feacutelix Mil platocircs capitalismo e esquizofrenia Vol1 Trad Aureacutelio Guerra Neto e Ceacutelia Pinto Costa Rio de Janeiro Ed 34 1995

______________ GUATARRI Feacutelix Mil platocircs capitalismo e esquizofrenia Vol5 Trad Peteacuter Pal Peacutelbart e Janice Caiafa Ed 34 ndash Rio de Janeiro 1997

DUMOULIEacute Camille Nietzsche y Artaud pensadores de la crueldad In Instantes y Azares Escrituras nietzscheanas ndeg 4-5 Ediciones La Cebra 2007 Buenos Aires Agentina p 15-30

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________________Antonin Artaud e o Teatro da Crueldade Trad Sylvie Lins In Revista da Aacuterea de Liacutengua e Literatura Francesa UNESP Satildeo Paulo Breacutesil n 11 2010 P 63-74

FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Duarte Peixoto 1ordf ed Lisboa Editorial Presenccedila 1983

FOUCAULT Michel A Microfiacutesica do Poder 8ordf ed Org e Trad Roberto Machado ndash Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1989

GROSSMAN Eveacutelyne Antonin Artaud Un insurgeacute du corps Ed Deacutecouvertes Gallimard Litteacuterature Paris 2006

HAYMAN Ronald Nietzsche Nietzsche e suas vozes Trad Scarlett Marton 1ordf ed Satildeo Paulo Editora UNESP 2000

LINS Daniel Artaud o artesatildeo do corpo-sem-oacutergatildeos 1ordm ed EdRelume Dumaraacute ndash Rio de Janeiro 1999

NIETZSCHE Friedrich O Nascimento da Trageacutedia ou Helenismo e Pessimismo Trad J Guinsburg 2ordf ed 7ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

___________________ A Gaia Ciecircncia Trad Paulo Ceacutesar de Souza 6ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 2011

__________________ A Visatildeo Dionisiacuteaca do Mundo Trad Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes Maria Cristina dos Santos de Souza 1ordf ed 2ordf tiragem Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

__________________ Despojos de uma trageacutedia (cartas ineacuteditas) Traduccedilatildeo de Ferreira da Costa Porto Editora Educaccedilatildeo Nacional 1944

__________________ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

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_________________ Ecce Homo de como a gente se torna o que a gente eacute Trad Marcelo Backes Porto Alegre LPampM 2003

_________________ A Vontade de Poder Trad de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

RILKE Rainer Maria Cartas a um jovem poeta Trad Pedro Suumlssekind 1ordf ed Editora LampPM Pocket Porto Alegre 2009

Da Vontade de Poder enquanto

Arte no Pensamento de Friedrich

Nietzsche

Joseph Anderson Ponte Cavalcante Leite1

1 Vida como Impulso para Criaccedilatildeo Para Nietzsche vontade de poder eacute o conceito que

diz vida eacute o conceito a partir do qual tudo deve ser dito na existecircncia no mundo Vontade de poder eacute o termo nietzschiano que pronuncia a realidade do real o que implica na inexistecircncia de um fundamento substancial que engendre na vida um estado de ser estaacutetico cristalizado e imutaacutevel Pois vontade de poder eacute vontade para poder eacute vontade para se constituir a partir daquilo que ainda pode ser Nesse sentido o real eacute compreendido desde a incessante dinacircmica regida pelo anseio de busca para ser de busca para se constituir anseio este fundamental para o movimento proacuteprio da vida o movimento proacuteprio da vontade A exuberacircncia da vida estaacute no ininterrupto movimento para ser na vontade para ser aquilo que ainda natildeo eacute mostrando-se desde formas muacuteltiplas de manifestaccedilatildeo da vontade de poder Aquilo que brota que irrompe na realidade brota como princiacutepio que visa apenas a mostraccedilatildeo gratuita que visa apenas aparecer Tal princiacutepio como vontade de poder natildeo cessa em seu movimento de mostraccedilatildeo engendrando o aparecimento de muacuteltiplas formas perspectiviacutesticas de se fazer ver da vida

1 Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraiacuteba Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Paraiacuteba Membro do grupo de pesquisa cadastrado no Cnpq Corpo e Fenomenologia

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do real Desta maneira vida eacute apontada como o eterno retorno da vontade de poder A realidade eacute o eterno retorno do mesmo que se configura como vontade de poder Como nos enfatiza Gianni Vattimo ldquoa vontade de potecircncia representa a essecircncia do mundo como Nietzsche o vecirc enquanto o eterno retorno eacute sua existecircncia e realizaccedilatildeordquo (VATTIMO 2010 p 6-7) sendo o eterno retorno um fato e como tal ldquoenuncia uma necessaacuteria estrutura da realidaderdquo (VATTIMO 2010 p 8)

No discurso do Superar-se a si mesmo da obra Assim Falou Zaratrusta Nietzsche nos apresenta de acordo com seu pensamento entrelaccedilado com o princiacutepio da vontade de poder o que determina o modo de ser de todo vivente Em tal discurso vida se mostra a partir do jogo de mando e obediecircncia no qual estes dois atos estatildeo intimamente relacionados ao que Nietzsche declara como escuta O termo ldquoescutardquo aqui natildeo estaacute relacionado apenas com uma interpretaccedilatildeo fisioloacutegica de uma das faculdades dos cinco sentidos mas ganha um significado extraordinaacuterio na medida em que diz respeito agrave abertura para o transcendente a abertura de ser tocado e afetado por aquilo que deve ser Escutar a vida eacute ter o poder de ser afetado por aquilo que se destina desde vontade de poder para a inauguraccedilatildeo de uma nova realidade Para o homem efetivar sua destinaccedilatildeo eacute preciso que mande em si desde a obediecircncia agravequilo que foi presenteado pela vida a partir da escuta do afeto

Nesse sentido aqui estaacute o cerne da criaccedilatildeo o cerne do acontecer artiacutestico pois artista se revela para Nietzsche como aquele que cria desde sua abertura para a escuta daquilo que vida presenteia como possibilidade de aparecimento de uma nova realidade sendo esta algo que jaacute se deu silenciosamente jaacute se destinou O artista deve estar na escuta da possibilidade do irromper da vida deve estar na abertura para a vida que se manifesta perspectivistacamente de maneira diferenciada de modos de

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ser desde vontade de poder Deste modo para Nietzsche artista natildeo diz respeito somente agravequele que eacute afetado pelos atos de musicar esculpir poetar ou pintar artista natildeo diz respeito somente agravequele ligado agraves belas-artes mas o que diz artista aqui se caracteriza por aquele que eacute tomado pelo poder da arte por aquele que eacute afetado pela forccedila de estar na abertura na escuta da criaccedilatildeo de uma nova realidade presenteada pela vida a partir de modos diferenciados de se manifestar constituindo-se juntamente com a vida de maneira proacutepria destinal

Inicialmente vamos partir do fragmento 853 da obra A Vontade de poder que constitui um comentaacuterio que Nietzsche escreve acerca da concepccedilatildeo de arte apresentada em sua obra O Nascimento da Trageacutedia No comeccedilo da primeira parte de tal fragmento Nietzsche atenta para sua concepccedilatildeo de mundo exposta em O Nascimento da Trageacutedia evidenciando o mundo natildeo desde uma contraposiccedilatildeo entre mundo aparente e mundo verdadeiro mas atribuindo a este mundo aparente contraditoacuterio e cruel o caraacuteter de verdadeiro Daqui segue-se o pensamento de que o mundo eacute propriamente esse acontecer sem sentido sem fundamento o que o torna cruel e terriacutevel

Para suportar essa vida de exposiccedilatildeo gratuita constituiacuteda desde o que jaacute foi exposto a partir da vontade de poder que natildeo visa coisa alguma a natildeo ser aparecer o homem encontra alternativa na mentira Assim Nietzsche aponta para a necessidade da mentira para fazer com que o homem suporte a realidade do mundo sem fim sem sentido sem fundamento ldquoO fato de que a mentira seja necessaacuteria para o viver pertence a esse caraacuteter terriacutevel e problemaacutetico da existecircnciardquo (NIETZSCHE 2008 p 426) Eacute pela mentira que o homem pode atribuir um lastro que o possibilite aguentar o viver conferindo uma significaccedilatildeo a este conferindo um motivo pelo qual viver um motivo que forneccedila assim um fundamento uma confianccedila um asseguramento Mas de que mentira Nietzsche estaacute a falar

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A histoacuteria do homem ocidental eacute perpassada pela criaccedilatildeo de tais tipos de mentira que atribuem crenccedila na vida que fazem com que a realidade da existecircncia seja confiaacutevel Como tipos dessas mentiras Nietzsche aponta para a metafiacutesica a moral a religiatildeo e a ciecircncia Aqui o homem mentiroso eacute o artista pois a partir da mentira manifestada haacute a criaccedilatildeo de uma nova realidade haacute a inauguraccedilatildeo de um ser para a existecircncia

Apesar de designar tais manifestaccedilotildees como mentiras na compreensatildeo de que estas negam a vida em sua natureza proacutepria de vontade de poder Nietzsche natildeo deixa de afirmar que as mesmas retiram seu fundamento da proacutepria vontade de poder Como foi dito vontade de poder eacute o conceito que diz realidade e mesmo quando ela se manifesta de maneira a negar tal realidade ainda assim eacute de tal vontade que a negaccedilatildeo retira seu vigor A dinacircmica proacutepria da vida eacute o jogo para a apariccedilatildeo mesmo que tal apariccedilatildeo faccedila-se mostrar mentirosa em relaccedilatildeo ao que a vida tem de mais proacuteprio O homem teve que ser artista para a partir de vontade de poder criar modos de realidade que o presenteasse como consolo fazendo com que ele resistisse agrave sua existecircncia como sem fundamento algum como sem sentido como apenas vontade para poder O advento da metafiacutesica da religiatildeo da moral e da ciecircncia eacute devido agrave capacidade artiacutestica criadora da vida que fornece uma perspectiva para o homem sendo nesse sentido uma perspectiva que engendra a fuga do homem do seu ser proacuteprio como nada ser uma perspectiva que afeta o homem como vontade de arte permitindo que ele negue a vida em sua natureza mais proacutepria como vontade de poder atraveacutes da criaccedilatildeo de realidades seguras e confiaacuteveis

ldquoA vida deve inspirar confianccedilardquo a tarefa posta dessa maneira eacute imensa Para resolvecirc-la o homem precisa ser jaacute por natureza um mentiroso precisa ser mais do que tudo um artista E ele eacute isto

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tambeacutem metafiacutesica religiatildeo moral ciecircncia ndash todos satildeo apenas rebentos de sua vontade de arte de mentira de fuga diante da ldquoverdaderdquo de negaccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 426)

Nesse querer atribuir agrave vida um lastro que a faccedila ser

suportaacutevel confiaacutevel o homem termina por ser dentre todos os entes aquele que almeja a dominaccedilatildeo da vida De acordo com Nietzsche o homem partilha essa faculdade de criaccedilatildeo com tudo aquilo que se constitui no real jaacute que vida mundo eacute vontade de poder Sendo partiacutecipe da dinacircmica da vida como vontade de poder o homem se manifesta como o ente artiacutestico por excelecircncia tendo que sempre superar a si mesmo na abertura da criaccedilatildeo de novas realidades Eacute pela mentira pela atribuiccedilatildeo de um mundo alheio ao que lhe eacute proacuteprio que o homem pretende saciar sua vontade de poder natildeo apenas para suportar mas controlar a maneira como deve ser compreendida a realidade a maneira como deve ser a existecircncia

Mesmo ludibriando-se com a mentira que o faz crer na vida mesmo aqui o homem eacute aquele que eacute glorificado pela vida como artista eacute aquele afetado pelo sentimento de poder da criaccedilatildeo Como pronuncia Nietzsche ldquoE sempre que o homem se alegra eacute sempre o mesmo em sua alegria alegra-se como artista saboreia-se como poder saboreia a mentira como seu poderrdquo (NIETZSCHE 2008p 426) Vida em sua dinacircmica proacutepria eacute a manifestaccedilatildeo do aparecer gratuito de todas as coisas tendo o homem como co-autor maior na medida em que este inaugura a partir de pontos de vistas presenteados pela proacutepria vida novas realidades atribuiacutedas de sentidos e fundamentaccedilotildees O proacuteprio niilismo europeu eacute intensamente criador em sua manifestaccedilatildeo de negar a vida como vontade de poder

O niilismo europeu eacute visto por Nietzsche como a loacutegica que perpassa a histoacuteria do homem ocidental sendo tal loacutegica caracterizada pelo dizer ldquonatildeordquo agrave vida em sua

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natureza proacutepria de ser vontade de poder de ser vontade para ser aquilo que ainda natildeo eacute de natildeo ser nada que tenha fundamento uacuteltimo cristalizado que forneccedila um sentido pelo qual o homem possa se assegurar O homem ao se deparar com esta natureza da vida como vontade de poder eacute afetado por rebeldia contra a vida procurando estipular valores que lhe sejam alheios mas que contudo venham a lhe fornecer um sentido

Ora satildeo os supremos valores impostos agrave vida que conferem sentido e movem o viver A humanidade procura criar valores para conferir sentido agrave vida no entanto tais valores natildeo satildeo proacuteprios do viver O homem rebelado natildeo suporta que a vida seja sem fundamento criando valores que ofereccedilam para a mesma o sentido confortaacutevel que lhe falta pois para o homem a vida natildeo pode ser sem valor sem sentido Tal sentido no entanto eacute estabelecido a partir de algo alheio ao que eacute proacuteprio do viver criado fora da dinacircmica da vida como esforccedilo para ser Sendo a vida como exposto por Nietzsche eterna retomada do lanccedilar-se no por se fazer retorna sempre como querer ser retorna como aquilo que precisa ser Desta forma ao abraccedilar o querer estabelecer sentido e fundamento desde algo que se encontra fora do jogo gratuito e sem sentido de auto exposiccedilatildeo da vida o homem se torna prisioneiro da dinacircmica proacutepria do niilismo reconhecendo que os supremos valores estabelecidos se transformam em ruiacutena se transformam em um esforccedilo em vatildeo diante do mais supremo movimento da vida que natildeo permite a cristalizaccedilatildeo de um fundamento uacuteltimo O desespero e a melancolia tomam o homem ocidental no momento em que este reconhece que a vida eacute sem sentido mas que no entanto aos olhos de tal homem natildeo deveria ser

O que deve ser destacado aqui eacute que mesmo esses valores que surgem desde um impulso de dizer natildeo agrave vida na pretensatildeo de impor para ela um caraacuteter de ser estaacutetico surgem desde o que a vida eacute como vontade de poder Eacute a

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proacutepria vontade de poder em sua dinacircmica de criaccedilatildeo de perspectivismos que fornece tais pontos oacuteticos como refuacutegio para a vida que definha por natildeo suportar ser sem fundamento ser sem sentido Assim podemos exemplificar isto com o que Nietzsche nos apresenta como ideal asceacutetico em sua terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral indicando que tal ideal que promove o niilismo ao estabelecer valor desde a postulaccedilatildeo de um mundo suprassensiacutevel em contraposiccedilatildeo ao mundo aparente e real impondo agrave vida um fundamento alheio um fundamento que natildeo existe eacute um ideal que representa uma ldquovontade de nadardquo como afirma Brusotti em seu artigo Ressentimento e Vontade de Nada

Nesse sentido o que o asceacutetico natildeo suporta eacute a natureza da vida de nada ser e para consolar-se de tal natureza acaba arrogantemente postulando de qualquer maneira algo que lhe confira sentido agrave vida Como afirma Nietzsche em Genealogia da Moral ldquo no fato de o ideal asceacutetico haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana o seu horror vacui [horror ao vaacutecuo] ele precisa de um objetivo ndash e preferiraacute ainda querer o nada a nada quererrdquo (NIETZSCHE 2009 p 80) Portanto para o homem asceacutetico niilista eacute preferiacutevel querer um mundo fictiacutecio e mentiroso que lhe confira alguma seguranccedila do que afirmar a proacutepria natureza de nada ser substancialmente Mas o que deve ganhar destaque aqui eacute justamente essa capacidade de criaccedilatildeo de realidade que o ideal asceacutetico fornece Ao fazer surgir um sentido o ideal asceacutetico promove a vontade de ainda se sentir vivo promove a conservaccedilatildeo daquele que natildeo aceita a vida como luta para constituir-se presenteando aqueles que tecircm o ideal asceacutetico como fundamento um sentido para viver Aqui o querer asceacutetico ainda promove acircnimo pois querer o nada ainda se revela como um querer Como nos mostra Muumlller-Lauter para se firmar nesse mundo ideal fictiacutecio o

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ideal asceacutetico tambeacutem teve que ser afetado por forccedila tambeacutem teve que advir de uma vontade criadora

Por um lado vida se nega na praacutexis asceacutetica Pois esta eacute somente uma ponte para uma outra forma de existecircncia oposta agrave vida Nesse contexto precisa-se de forccedila para ldquoestancar as fontes de forccedilardquo Assim aqui domina a aversatildeo agrave vida Por outro lado poreacutem o ideal asceacutetico representa um ldquoartifiacutecio de conservaccedilatildeo da vidardquo Pois se a vida eacute apenas ponte entatildeo eacute preciso que se edifique e se fixe nela O sacerdote asceacutetico atraveacutes da potecircncia de seu desejo ldquode ser outro de estar em outro lugarrdquo fica aprisionado justamente nesta vida Com isso ldquoesse negador pertence agraves enormes forccedilas conservadoras e afirmadoras da vidardquo (MUumlLLER-LAUTER 2009 p 130)

Assim a vontade negadora da vida a vontade de

nada do fictiacutecio e mentiroso eacute como afirma Brusotti ldquoum faute de mieux por falta de uma vontade melhorrdquo (BRUSOTTI 2000 p 6) O que implica que toda vida se baseia desde uma interpretaccedilatildeo de sentido desde uma maneira de atribuir valor presenteado pela proacutepria vida como vontade de poder a partir de um ponto oacutetico Como salienta Gianni Vattimu ldquotoda forma de vida precisa de uma verdade de um sistema de condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e desenvolvimento projetado em uma interpretaccedilatildeo do mundordquo (VATTIMO 2010 p 244)

Desta maneira tomando o ideal asceacutetico como exemplo de uma manifestaccedilatildeo propriamente niilista o niilismo aqui surge como sendo tambeacutem advindo do que vida eacute como vontade para poder impulso intensamente criador na medida em que manifesta a inauguraccedilatildeo de novas realidades calcadas em fins e fundamentos uacuteltimos o que atribui sentido agrave vida No entanto como visto tal sentido eacute atribuiacutedo desde a crenccedila em uma realidade alheia

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ao que vida eacute propriamente como vontade de poder A manifestaccedilatildeo de fenocircmenos como metafiacutesica religiatildeo ciecircncia e etc representa a manifestaccedilatildeo da vontade de poder que nega a si mesmo para a sua conservaccedilatildeo Para Nietzsche a vontade de poder por excelecircncia encontra sua apariccedilatildeo na arte pois esta tem seu vigor ao afirmar a vida assim como ela eacute como vontade para poder 2 Vontade de Poder como Arte A Vontade de Poder

por Excelecircncia Como visto para Nietzsche vida eacute vontade de

poder em seu eterno retorno eacute dinacircmica de apariccedilatildeo que se mostra desde diferentes perspectivas na criaccedilatildeo de realidades que visam o seu proacuteprio incremento a sua auto-superaccedilatildeo Neste sentido vontade de poder eacute aquilo que possibilita o aparecer da realidade da vida mesmo que tal mostraccedilatildeo manifeste uma negaccedilatildeo da proacutepria vida Diferentemente do niilismo que manifesta justamente esse impulso criador advindo da vontade de poder que se volta contra ela mesma para a sua conservaccedilatildeo Nietzsche aponta para a arte o caraacuteter de supremacia da vontade de poder Mas em que medida Nietzsche atribui esse caraacuteter para a arte

Para Nietzsche seria atraveacutes da arte que o homem poderia dar-se conta do que vida eacute em seu ser proacuteprio do que vida eacute como dinacircmica de mostraccedilatildeo de perspectivas que natildeo cessam de aparecer de vida como vontade de poder em eterna retomada natildeo tendo fundamento uacuteltimo substancial nem um sentido ou finalidade mas tendo como uacutenico empenho o aparecer gratuito para incrementar-se em novas apariccedilotildees Arte aqui seria aquilo que mostraria ao homem a vida em sua transparecircncia Assim nos explica Cordeiro ldquoSer transparente tem o sentido portanto de deixar vida aparecer torna-se visiacutevel atraveacutes de si como sendo perspectiva como o que natildeo cessa de aparecer e que

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tem sempre de retornar como aparecircnciardquo (CORDEIRO 2010 p 105-206) Desta forma eacute pela manifestaccedilatildeo da arte que se mostra aquilo que a vida tem como encoberto como silenciado

O caraacuteter de vida como aquilo que natildeo tem fundamento algum como abissal sem fundo eacute pela arte manifestado mostrado Ao se deparar com o fenocircmeno artiacutestico o homem pode perceber a vida como aquilo que se mostra gratuitamente na criaccedilatildeo de novas realidades de novas apariccedilotildees de ser Eacute pelo artista que vida se mostra como aquilo que originariamente ela eacute ou seja como um jogo que ganha forma com aquilo que fundamenta e possibilita as vaacuterias formas distintas de aparecer Ganhar forma eacute ganhar manifestaccedilatildeo de ser eacute ser a mostraccedilatildeo da perspectiva que se presenteou E como dito tal perspectiva tal valor soacute eacute por aquilo que estaacute velado em toda mostraccedilatildeo por aquilo que eacute vontade para poder ser tal manifestaccedilatildeo

Para Nietzsche o ver do filoacutesofo como artista eacute o ver do que fundamenta eacute o ver daquilo que estaacute por traacutes de toda apariccedilatildeo eacute o ver que vecirc aquilo que estaacute oculto velado e silenciado em todo aparecer Ao se fazer com a coisa manifestada o artista aparece como aquele que possibilita o dar-se conta de que tal coisa eacute apenas um ponto oacutetico uma perspectiva presenteada pela vida na intenccedilatildeo de tatildeo somente aparecer se mostrar brotar Eacute nesse sentido que arte eacute o que possibilita a transparecircncia da vida em se mostrar em sua dinacircmica mais proacutepria em sua essecircncia mais iacutentima como nada como o que natildeo corresponde a nada que subjaz como o que eacute somente vontade para poder

Eacute no acontecer do artista que se percebe um arqueacutetipo do que vida eacute originalmente Eacute na arte que se daacute criaccedilatildeo produccedilatildeo de criaccedilotildees A vida como a grande possibilitadora de criaccedilotildees da realidade encontra na arte a manifestaccedilatildeo mais proacutepria de si A vida como esta que

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incessantemente insiste em criar e recriar a si mesma incrementa-se ganha forccedila justamente nesse movimento de criaccedilotildees diferenciadas do mesmo O artista como aquele que estaacute aberto para o abandono do jaacute constituiacutedo na escuta do que eacute inaugural exemplifica o comportamento criador da vida que se cria e se recria na medida em que acontece na medida em que se mostra perspectivisticamente O artista eacute aquele que abandona o jaacute criado para voltar-se para um novo processo criador para uma nova inauguraccedilatildeo de modos de ver para uma nova possibilidade de manifestaccedilatildeo da realidade Desta maneira Nietzsche aponta para a vontade de poder como arte a suprema vontade de poder pois eacute aquela que possibilita ao homem perceber o proacuteprio caraacuteter de tudo o que existe como vontade como possibilidade de mostraccedilatildeo No fragmento 796 de A Vontade de Poder Nietzsche pronuncia ldquoO mundo como obra de arte que daacute a luz a si mesma - -rdquo (NIETZSCHE 2008 p 397) Mundo se constitui por um poder de forccedila criadora por um poder que eacute artiacutestico Vida ldquoeacuterdquo desde uma forccedila criadora forccedila que se desperdiccedila no impulso de pura e simplesmente brotar aparecer se mostrar Mundo diz respeito agrave criaccedilatildeo gratuita de realidades de modos de ver de vontades para ser que se manifestam desde a mesma forccedila criadora insistente em desperdiccedilar-se no seu tomar-se aparecircncia E eacute nesse desperdiacutecio que vida ganha sua interpretaccedilatildeo mais vigorosa pois natildeo visa nada aleacutem de seu proacuteprio movimento natildeo visa nada aleacutem de si mesma e de sua gratuidade se afirmando em juacutebilo de si em acircnsia e prazer de si e em nada mais que isso

Assim a vontade de poder como arte eacute a vontade de poder que representa a afirmaccedilatildeo da vida o proacuteprio acircnimo Eacute pela arte que se percebe o movimento da vontade que se contrapotildee a todo impulso de negaccedilatildeo da vida a todo impulso que obriga agrave vida a um caraacuteter de dever ser A vontade de poder como arte eacute a vontade de poder que se

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manifesta como o oposto ao niilismo Na segunda parte do fragmento 853 de A Vontade de Poder Nietzsche apresenta ldquoa arte como a uacutenica forccedila contraacuteria superior em oposiccedilatildeo a toda vontade de negaccedilatildeo da vida anticristatilde antibudista e antiniilista par excellencerdquo (NIETZSCHE 2008 p 427) A arte se contrapotildee ao niilismo por desde o jaacute afirmado representar o caraacuteter proacuteprio de criaccedilatildeo da vida por afirmar a vida como abandono do jaacute constituiacutedo para a inauguraccedilatildeo de uma nova realidade O niilismo como impulso negador da vida ao impor a esta uma natureza de ser substancial imutaacutevel e permanente se depara com a arte que o coloca como uma das maneiras pela qual vida aparece

O acontecer do niilismo se confronta com a arte que o aponta como uma das obras artiacutesticas da vida como vontade de poder Desta maneira o niilismo europeu eacute superado pelo reconhecimento e a afirmaccedilatildeo da vida como um nada que artisticamente cria valores para tatildeo somente brotar irromper O niilismo associado agrave arte eacute uma nova forma de niilismo natildeo sendo mais um negador da vida na criaccedilatildeo de valores e sentidos alheios a esta que desembocam em um pathos do em- vatildeo em descrenccedila naquilo que em um momento forneceu crenccedila na vida mas tal forma de niilismo associado agrave arte eacute aquele que reconhece a vida como um nada afirmando esse nada como aquilo que possibilita a criaccedilatildeo de novos valores que natildeo seratildeo vistos como o uacuteltimo sentido da realidade mas como modos de apariccedilatildeo possibilitados pelo caraacuteter artiacutestico e criador da vida como vontade de poder

Ainda no fragmento 853 agora na quarta parte Nietzsche ainda mostra a relaccedilatildeo de arte e verdade declarando ldquoque a arte tem mais valor que a verdaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 427) Eacute preciso ressaltar aqui que a verdade da qual Nietzsche estaacute falando diz respeito agrave verdade metafiacutesica substancial que procura determinar o ser das coisas o substrato uacuteltimo da realidade Ter mais valor

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significa ter mais capacidade de engendrar pontos de vista a partir do que a vida presenteia Como afirma Heidegger em sua obra Caminhos de Floresta no texto A Palavra de Nietzsche ldquoDeus morreurdquo o valor como esse ponto de visatildeo presenteado pela vida ldquo eacute posto sempre por e para um verrdquo (HEIDEGGER 2002 p 263) Entatildeo valor eacute uma perspectiva doada pela proacutepria vida

Sendo vida vontade de poder que anseia incessantemente para criar e doar tais modos de ver diferenciadamente atentamos para a verdade metafiacutesica o caraacuteter de ser uma dessas manifestaccedilotildees da vida como vontade Nesse sentido eacute o poder artiacutestico da vida que possibilita a criaccedilatildeo de crenccedila em uma verdade metafiacutesica Natildeo eacute o homem que desde suas postulaccedilotildees antropomoacuterficas concebe um caraacuteter de verdade agrave vida Antes eacute a proacutepria vida que se mostra e se permite ver desde tal valor O que permite ao homem a accedilatildeo de conferir valor natildeo retira vigor do proacuteprio homem mas desde o que a vida eacute em sua natureza mais proacutepria desde o que a vida eacute como vontade de poder em seu eterno retorno impulsivo para a criaccedilatildeo de uma nova realidade para em seu caraacuteter artiacutestico inaugurar verdades

Eacute soacute atraveacutes da arte que o homem encontra representaccedilatildeo daquilo que eacute vida em sua natureza proacutepria Atraveacutes da arte o homem pode perceber a vida em sua originalidade em sua incessante vontade para poder vir a ser exaltando a vida em sua exposiccedilatildeo gratuita e sem sentido sem fim ou fundamento abraccedilando a vida em seu ser devir que nada assegura como um lastro uacuteltimo preacute-constituiacutedo que almeja tatildeo somente brotar aparecer recriar realidades Eacute atraveacutes da arte que o homem pode entatildeo perceber aquilo que estaacute por traacutes de tudo o que aparece

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Conclusatildeo Desde o que foi exposto podemos aqui apontar

para um dos maiores problemas da filosofia de Nietzsche em seu olhar diante do que aparece como possibilidade de futuro da humanidade o niilismo europeu Ao falar de niilismo Nietzsche o faz afirmando que este representa a loacutegica de toda histoacuteria do homem ocidental a partir da tradiccedilatildeo do platonismo da metafiacutesica atestando que o advento de tal movimento soacute poderaacute ser sentido nos seacuteculos XX e XXI Para Nietzsche nossa contemporaneidade eacute marcada por tal advento que representa a queda dos supremos valores a descrenccedila nisso que o ser humano tem como vida justamente por ser pelo niilismo que o homem engendra valores e expectativas agrave vida mas de maneira improacutepria

O caminho traccedilado pela humanidade pode ser descrito a partir daqui como o que aponta para um cansaccedilo um desgosto com a vida Nietzsche nos apresenta a arte como forccedila contraacuteria a esse niilismo Eacute pela arte que o homem pode reconhecer a natureza proacutepria da vida de natildeo ser nada que possa cabalmente definida nada que possa ganhar imposiccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo de realidade imutaacutevel A vida por ela mesma insiste em retornar como vontade como impulso para se constituir desde novas apariccedilotildees Eacute pela arte que o homem abraccedila a condiccedilatildeo de participar dessa dinacircmica que parte do abissal que parte do natildeo-fundamento Tal dinacircmica que anseia por manifestaccedilotildees gratuitas manifestaccedilotildees que se inspiram apenas para manifestar Abraccedilar a natureza proacutepria da realidade de ser vontade eacute afirmar que o proacuteprio niilismo representa mais uma de suas maneiras de apariccedilatildeo que pode ser superada pela afirmaccedilatildeo da gratuidade de novas apariccedilotildees

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Referecircncias BRUSOTTI Marco Ressentimento e Vontade de Nada

Traduccedilatildeo de Ernani Chaves In Cadernos Nietzsche 8 p 3-34 2000

CORDEIRO Robson C Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte Uma leitura a partir de Heidegger Joatildeo Pessoa Editora Universitaacuteria UFPB 2010

HEIDEGGER Martin A palavra de Nietzsche ldquoDeus morreurdquo in Caminhos de Floresta Traduccedilatildeo de Alexandre Franco de Saacute Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

MUumlLLER-LAUTER Wolfgang Nietzsche sua Filosofia dos Antagonismos e os Antagonismos de sua Filosofia Traduccedilatildeo de Clademir Araldi Satildeo Paulo Editora Unifesp 2009

NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Trad de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

___________________ Assim Falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1995

___________________ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

___________________ Genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009

VATTIMO Gianni Diaacutelogo com Nietzsche ndash Ensaios 1961-200 Traduccedilatildeo de Silvana Cobucci Leite Satildeo Paulo Martins Fontes 2010

O problema da superaccedilatildeo da

metafiacutesica na criacutetica

fenomenoloacutegica de Heidegger

Luismar Cardoso de Queiroz1

O periacuteodo que compreende os anos iniciais da

atividade filosoacutefica de Heidegger natildeo deve ser encarado como um estaacutegio esquecido no caminho do seu pensamento As diferenccedilas que demarcam o pensamento heideggeriano ndash pensamento que se estende por mais de meio seacuteculo ndash satildeo apenas nuances de um mesmo elemento que natildeo perde em nada a sua forccedila de determinaccedilatildeo Para demonstrar o modo como aquilo que emerge nos anos iniciais se manteve decisivo durante o percurso de sua filosofia Heidegger ao caracterizar a trajetoacuteria de sua obra cita um verso de Houmllderlin que diz ldquoPois assim como iniciastes permaneceraacutesrdquo (HEIDEGGER apud STEIN 2001 p 300)

Como sabemos o princiacutepio elementar em funccedilatildeo do qual se move a filosofia de Heidegger desde o seu inicio eacute o problema do ser Em toda extensatildeo de sua obra eacute impossiacutevel delimitarmos um momento de pensamento que natildeo esteja sob a forccedila de atraccedilatildeo desta questatildeo O fervor com que Heidegger atacou o academicismo filosoacutefico de sua eacutepoca eacute uma consequecircncia direta da intensidade com que buscou recolocar uma questatildeo que segundo ele fora esquecida pela tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental e que no iniacutecio do seacuteculo XX a questatildeo jaacute alcanccedilara o niacutevel maacuteximo de sua demissatildeo Heidegger afirma nas primeiras linhas de ldquoSer e Tempordquo que mesmo em meio a uma eacutepoca onde ldquose

1 Doutorando pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN

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arrogue o progresso de afirmar novamente a lsquometafiacutesicarsquordquo (HEIDEGGER 2005 p 27) o fato eacute que a questatildeo que deu focirclego primordial agrave filosofia no Ocidente caiu no esquecimento A tentativa de recolocar de modo proacuteprio esta questatildeo natildeo significa meramente repetir o projeto da metafiacutesica tradicional que inevitavelmente se concretizou como um modo de encobrimento de seu elemento originaacuterio Nisto incorreu tambeacutem a cultura filosoacutefica de sua eacutepoca que na tentativa de superar a metafiacutesica tradicional se enveredou no mesmo desvio essencial

Heidegger portanto como toda grande personalidade na histoacuteria da filosofia suscita alternativas que intencionam apresentar um ponto de convergecircncia para a discussatildeo de problemas aparentemente solucionados mas que conservam a profundidade de complicaccedilotildees tatildeo urgentes que podem decidir o futuro da filosofia O elemento que viraacute agrave tona no pensamento de Heidegger e que permaneceraacute pensado durante a trajetoacuteria de sua filosofia jaacute desde o seu princiacutepio esboccedila uma reaquisiccedilatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica Este elemento assume uma seacuterie de designaccedilotildees tais como ldquovida faacuteticardquo ldquoeu histoacutericordquo ldquocoisa primordialrdquo ldquoexperiecircncia faacutetica da vidardquo ldquofacticidaderdquo ldquoDaseinrdquo entretanto todos buscam ressaltar o solo originaacuterio a partir do qual se torna possiacutevel uma recapitulaccedilatildeo da questatildeo do ser bem como uma plausiacutevel superaccedilatildeo da metafiacutesica

Em todas as fases do pensamento ontoloacutegico de Heidegger eacute possiacutevel constatarmos tentativas de acesso agrave originaacuteria dimensatildeo do sentido do ser Isto torna evidentemente possiacutevel um intercacircmbio de noccedilotildees fenomenoloacutegicas entre o pensamento do jovem Heidegger e os momentos posteriores de sua filosofia Evidentemente este intercacircmbio de noccedilotildees eacute regulado pela consideraccedilatildeo de que a diversidade de noccedilotildees eacute causada pela alteraccedilatildeo dos mecanismos conceituais que sob a tentativa de uma interpretaccedilatildeo do ser estatildeo sempre em processo de

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remodelaccedilatildeo Esta diversidade de caminhos de pensamento explica-se pelo fato de a proacutepria linguagem em seus elementos constitutivos se encontrar encharcada pela conceptualidade ontoloacutegica da tradiccedilatildeo Neste sentido procurar pocircr em explicitaccedilatildeo a fugaz dimensatildeo dos fenocircmenos originaacuterios eacute vivenciar o quebrantamento constante da linguagem Deste modo o presente artigo visa apresentar o modo como a criacutetica filosoacutefica de Heidegger traz agrave tona a possibilidade de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Introduziremos uma noccedilatildeo provisoacuteria de superaccedilatildeo da metafiacutesica como tambeacutem indicaremos um direcionamento para a realizaccedilatildeo dessa superaccedilatildeo Faremos isto atraveacutes de uma analise que coloca em intercacircmbio noccedilotildees fenomenoloacutegicas que se localizam tanto no pensamento do jovem Heidegger (periacuteodo que compreende sua aproximaccedilatildeo com a compreensatildeo faacutetica da vida cristatilde) como tambeacutem no periacuteodo que procede ldquoSer e Tempordquo periacuteodo no qual Heidegger potildee em tematizaccedilatildeo o problema de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica e a histoacuteria do ser

Primeiro procuraremos demonstrar de que modo o caraacuteter paradigmaacutetico da racionalidade justifica a necessidade de superaccedilatildeo da metafiacutesica Nesse sentido veremos o modo como sob a efusatildeo das noccedilotildees constitutivas da hermenecircutica da facticidade a realizaccedilatildeo de uma economia onto-teoloacutegica no pensamento do jovem Heidegger possibilita uma alternativa para escapar do solipsismo da racionalidade metafiacutesica Em segundo lugar analisaremos o modo como a criacutetica heideggeriana empreende uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Assim encontraremos natildeo uma criacutetica que se volta contra a metafiacutesica mas um pensamento que coloca em exposiccedilatildeo o solo primordial da metafiacutesica Em terceiro veremos o modo como a compreensatildeo da diferenccedila ontoloacutegica jaacute evocada nos anos iniciais da filosofia de Heidegger sob a noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica da vida tonifica o pensamento

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que supera a racionalidade metafiacutesica Por uacuteltimo demonstraremos a necessidade de uma reexposiccedilatildeo do caraacuteter problemaacutetico do ser possibilitando uma tematizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial que pensada nos termos da experiecircncia faacutetica da vida confirma a criacutetica fenomenoloacutegica como um ldquopocircr-se a caminhordquo na direccedilatildeo de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica

1 A problemaacutetica da superaccedilatildeo da metafiacutesica

A tentativa de superaccedilatildeo da metafiacutesica efetuada

durante o seacuteculo XVIII pelos positivistas natildeo representa simplesmente a tentativa de transpor uma doutrina filosoacutefica mas superar aquela modalidade de pensamento que abarcava a compreensatildeo da realidade na tradiccedilatildeo filosoacutefica O que se almejava suplantar era a proacutepria racionalidade metafiacutesica que embrenhada profundamente nas produccedilotildees culturais do Ocidente encontrava-se em descompasso com o programa proposto pela nova ciecircncia

O periacuteodo de transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o seacuteculo XX eacute marcado por um mal-estar cultural que inevitavelmente seria somatizado pela eclosatildeo das duas Grandes Guerras Mundiais O modelo de racionalidade pautado nos ideais iluministas acabara de adquirir um amargor insuportaacutevel para os espiacuteritos ceacuteticos daqueles que haveriam de definir a orientaccedilatildeo cultural do pensamento contemporacircneo A respeito desta turbulecircncia espiritual Gadamer demonstra a inquietaccedilatildeo que naqueles dias colocou em suspense o modelo de racionalidade iluminista dizendo

[] natildeo haacute como se espantar com o fato de os espiacuteritos liacutederes desse tempo terem se perguntado o que havia de falso nessa crenccedila na ciecircncia nessa crenccedila na humanizaccedilatildeo e no policiamento do mundo falso no suposto desenvolvimento da

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sociedade para o progresso e para a liberdade (GADAMER 2012 p 238)

A proacutepria racionalidade havia tomado consciecircncia

de seu caraacuteter paradigmaacutetico bem como de suas limitaccedilotildees ndash o que implicava necessariamente na urgecircncia de sua superaccedilatildeo A ldquobelle epoacutequerdquo iluminada pelo esplendor da mentalidade cientiacutefico-racional se desmantelara completamente junto com amarras espirituais que a sustentavam Entretanto como poderia a razatildeo encontrar os caminhos da superaccedilatildeo de si mesma Natildeo seria isto um inevitaacutevel contrassenso uma autotraiccedilatildeo Natildeo incorreria o pensamento racional naquele mesmo equiacutevoco que acusa Hegel ter cometido a filosofia transcendental ou seja ldquonatildeo querer entrar nrsquoaacutegua antes de ter aprendido a nadarrdquo (HEGEL 1995 p 109) Como eacute possiacutevel a razatildeo superar-se sem se reiterar na superaccedilatildeo Como se colocar em busca de um fundamento para aleacutem da racionalidade cientiacutefica se a proacutepria dinacircmica transcendente do ldquopara aleacutemrdquo eacute imanente agrave atividade racional

Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX perante a agonia apocaliacuteptica que afligia a Europa a atividade filosoacutefica passara a assumir uma tonalidade milenarista Urgia a necessidade de se encontrar uma alternativa redentora que fosse capaz de desbancar de uma vez por todas o impeacuterio da racionalidade metafiacutesica Em contrapartida a comunidade filosoacutefica alematilde atraveacutes do movimento neokantiano havia elegido a filosofia de Kant como modelo de orientaccedilatildeo na busca de um fundamento capaz de sustentar a validade do conhecimento cientiacutefico Este fundamento a despeito do qual as escolas de Marburgo e Baden haveriam de travar uma intensa discussatildeo significava muito mais do que um fundamento epistemoloacutegico representava no fundo em tempos como aqueles um porto seguro em meio agrave instabilidade espiritual vivenciada pela cultura europeacuteia A dimensatildeo aberta pelo

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idealismo transcendental apresentava-se como uma fonte rica e adequada para as diversas apropriaccedilotildees neokantianas que intencionavam a obtenccedilatildeo de uma efetiva virada no processo do conhecimento Ora o que representava esta virada se natildeo o vir agrave tona daquela certeza indubitaacutevel do sujeito cartesiano Procurava-se de fato um eixo de sustentaccedilatildeo para a realidade cognitiva O que demonstrava claramente o quanto a atividade filosoacutefica permanecia apesar dos inuacutemeros esforccedilos retida agrave esfera paradigmaacutetica da racionalidade metafiacutesica da qual desejava se libertar A proacutepria necessidade metodoloacutegica de um fundamento uacuteltimo de um princiacutepio puro e absoluto confirmava o predomiacutenio da racionalidade metafiacutesica Heidegger declara a ineficaacutecia do projeto neokantiano ao afirma que

O neokantismo (Nartorp) inverteu o processo simplesmente da lsquoobjetivaccedilatildeorsquo (conhecimento da objetualidade) e alcanccedilou assim a lsquosubjetivaccedilatildeorsquo (a qual deve apresentar psicoloacutegica e filosoficamente o processo) Nisso a objetualidade apenas eacute transferida do objeto em sujeito o conhecer enquanto conhecer permanece poreacutem o mesmo fenocircmeno natildeo esclarecido (HEIDEGGER 2010 p 15)

Alcanccedilar o conhecer enquanto conhecer ou seja

esclarecer o conhecer em processo representa a via de fuga para o dilema apresentado por Hegel dilema esse que expressa o predomiacutenio absoluto da esfera da racionalidade O projeto neokantiano bem como toda a criacutetica agrave metafiacutesica que se desenvolve a partir do seacuteculo XIX falha ao natildeo ter em conta o que afirma Heidegger em ldquoSer e Tempordquo dizendo

Toda ideia de ldquosujeitordquo ndash a menos que tenha sido depurada por uma preacutevia determinaccedilatildeo ontoloacutegica fundamental ndash continua pondo ontologicamente na

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partida o subjectum (ύποχείμενον) por mais enfaacutetica que seja a oposiccedilatildeo ocircntica agrave ldquosubstancializaccedilatildeo da almardquo ou agrave ldquocoisificaccedilatildeo da consciecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 151)

A colocaccedilatildeo de um subjectum no ponto de partida

ou seja a colocaccedilatildeo de algo subjacente de algo que estaacute na base e portanto como estacircncia de sustentaccedilatildeo jaacute implica num deslocamento do pensamento para fora daquela perspectiva da realizaccedilatildeo do conhecer em processo A tendecircncia de projetar um fundamento uacuteltimo para aleacutem ou para aqueacutem da razatildeo cientiacutefica jaacute por si soacute reitera a forma de racionalidade que se quer superar Do mesmo modo o

termo grego ύποχείμενον cujo sentido expressa ldquoo que estaacute agrave matildeordquo e com isso disponiacutevel ao uso ressalta ainda mais o caraacuteter preacute-dominante da racionalidade metafiacutesica Eacute submetendo a si que o paradigma da racionalidade metafiacutesica estrutura toda compreensibilidade do real Natildeo eacute por menos que a famosa maacutexima do idealismo hegeliano publicada em sua ldquoFilosofia do Direitordquo onde se diz que ldquoO que eacute racional eacute efetivo e o que eacute efetivo eacute racionalrdquo proponha com tanta veemecircncia que o limite da realidade eacute delimitado pelo conceito Para Heidegger Hegel eacute o ponto de culminacircncia de toda a experiecircncia ontoloacutegica inaugurada pelos gregos e perpassada por toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica Deste modo a maacutexima hegeliana representa muito mais do que uma tese perioacutedica ela sintetiza o caraacuteter essencial da racionalidade ocidental onde em sintonia com esta nada poderaacute existir se natildeo for idecircntica a si mesma

Esta reclusatildeo solipsista da razatildeo ocidental perpetua o impeacuterio de sua solidatildeo absoluta A proacutepria alteridade sob a insiacutegnia da representaccedilatildeo eacute produto de seus processamentos endoacutegenos Descartes havia encontrado na indubitabilidade do cogito pensante um ponto de apoio seguro para resgataacute-lo das incertezas da contingecircncia sensiacutevel Entretanto natildeo foi capaz de perceber que jaacute

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estava agrave mercecirc de um outro ldquogecircnio malignordquo um de natureza ainda mais sublime Destarte uma criacutetica agrave racionalidade metafiacutesica deveria levar em consideraccedilatildeo a ldquoingenuidade dos filoacutesofosrdquo (NIETZSCHE 2010 p 31) ndash como denuncia Nietzsche ndash perante a genialidade da razatildeo paradigmaacutetica como condiccedilatildeo fundamental da histoacuteria da filosofia ocidental Eacute neste sentido que Heidegger iraacute assumi-la considerando o pensamento que sempre de novo reitera um subjectum como condiccedilatildeo inerente ao existir humano

O projeto de superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica empreendido a partir do seacuteculo XIX em diante natildeo foi capaz de realizar suas pretensotildees Natildeo porque natildeo haja um caminho plausiacutevel para tal projeto mas sim porque ao inveacutes de se propor um determinado conteuacutedo quumliditativo deve-se antes analisar a proacutepria postura do pensamento que impotildee este conteuacutedo Deste modo eacute pela compreensatildeo da racionalidade que se abre o caminho de acesso agrave dimensatildeo do conhecer em sua realizaccedilatildeo Tendo em vista essa meta Heidegger em seus primeiros anos prescinde da proacutepria ideia de fundamentaccedilatildeo ndash contexto fundador ndash e propotildee o desalentador natildeo-lugar da experiecircncia faacutetica da vida que posteriormente em ldquoSer e Tempordquo se configuraria no vazio radical do Dasein Soacute nesta dimensatildeo segundo Heidegger seria possiacutevel uma autecircntica inversatildeo no processo do conhecimento Pois na experiecircncia faacutetica da vida eacute que se manteacutem em confronto aquilo do que a vida foge sob a forma da reclusatildeo solipsista da razatildeo absoluta ndash o impeacuterio da razatildeo eacute uma fuga da inquietante situaccedilatildeo existencial humana

Poder e dissimulaccedilatildeo satildeo marcas profundas da racionalidade ocidental Ela domina para poder dissimular a inquietaccedilatildeo de fundo da situaccedilatildeo existencial humana Heidegger declara na ldquoIntroduccedilatildeo agrave Fenomenologia da Religiatildeordquo que a vida busca asseguramentos contra a inquietaccedilatildeo do histoacuterico Ora o que seriam estes

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ldquoasseguramentosrdquo Satildeo os contextos de fundamentaccedilatildeo que se destilam da historicidade da vida a partir da dinacircmica de pensamento que Heidegger caracteriza como queda na experiecircncia faacutetica da vida Esta dinacircmica perpassa toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica e isto fica ainda mais claro quando ressaltamos a necessidade intriacutenseca agrave reflexatildeo metafiacutesica de colocar para si mesma uma finalidade Os asseguramentos satildeo postos pela reflexatildeo teoacuterica-objetivante uma postura de pensamento imanente agrave racionalidade ocidental Nessa postura de pensamento os fenocircmenos satildeo desarraigados da brutalidade de sua condiccedilatildeo primordial Sob o peso inquietante da vida a racionalidade metafiacutesica responde com um ldquooacutedio gnoacutesticordquo agrave concretude histoacuterica que se expressa eloquumlentemente na elaboraccedilatildeo das formas puras e imutaacuteveis ndash verdades eternas

Entretanto Heidegger encontra esta medianidade faacutetica da vida realizada na experiecircncia religiosa do cristianismo primitivo E eacute precisamente ali na vida sob o abalo da feacute que ele capta os mecanismos conceituais capazes de elucidar a fugaz esfera da experiecircncia faacutetica da vida Os primeiros anos de Heidegger em Friburgo satildeo caracterizados por uma forte economia onto-teoloacutegica que consistia no influxo de categorias existenciais subjacentes agrave experiecircncia religiosa do cristianismo e o originariamente filosoacutefico Sob a tese de que ldquoo cristianismo primitivo vive (ou ensina) a temporalidaderdquo Heidegger destaca a partir da existencialidade cristatilde categorias preacute-cognitivas que resistentes agrave tendecircncia de queda na facticidade possibilitam um ponto de escape para reclusatildeo solipsista da racionalidade metafiacutesica Atraveacutes do influxo onto-teoloacutegico Heidegger possibilitou a abertura de um horizonte permeado por uma experiecircncia de pensamento inteiramente nova que reconquistando o que outrora fora reconhecido sob o conveniente tiacutetulo de irracional condiciona a realizaccedilatildeo de uma autecircntica transcendecircncia Pois o horizonte que se abre sob o influxo onto-teoloacutegico

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eacute aquele que se encontra sob o ponto cego da racionalidade teoacuterica-objetivante Entretanto eacute deste mesmo ponto que profusivamente emana toda atividade intelectiva A economia onto-teoloacutegica ao manter o pensamento em constante tensatildeo com o histoacuterico rompe o solipsismo da racionalidade ocidental abrindo-a para uma autecircntica heterogeneidade ou seja a experiecircncia do absolutamente e absurdamente outro Mesmo desdenhando dos meacutetodos e proposiccedilotildees de Spengler2 Heidegger afirma na ldquoIntroduccedilatildeo agrave Fenomenologia da Religiatildeordquo que este pressentiu numa dimensatildeo exclusivamente histoacuterica aquilo de que carece a filosofia Spengler afirma

Eis o que falta ao pensador ocidental e o que natildeo deveria faltar justamente a ele a compreensatildeo da natureza histoacuterica-relativa das suas conclusotildees que natildeo passam da expressatildeo de um modo singular de ser e somente dele O pensador ocidental carece do conhecimento dos inevitaacuteveis limites que restringem a validez de suas afirmaccedilotildees Ignora que suas ldquoverdades inabalaacuteveisrdquo e suas ldquopercepccedilotildees eternasrdquo satildeo verdadeiras soacute para ele e eternas unicamente do ponto de vista da sua visatildeo de mundo Natildeo se recorda do dever de sair de sua esfera para procurar outras verdades criadas com a mesma certeza por homens de culturas diferentes o que seria indispensaacutevel para que uma filosofia do futuro se pudesse completar Precisamente isso significa compreender o linguajar das formas histoacutericas e do mundo vivo (SPENGLER 1973 p 41)

2 Heidegger acredita que a filosofia da historia proposta por Spengler esteve desprovida daquilo que lhe seria essencial ou seja o histoacuterico em seu caraacuteter originaacuterio Isto foi apenas pressentido mas natildeo tematizado Para Heidegger o projeto filosoacutefico de Spengler eacute um locus a non lucendo ou seja algo cuja essecircncia natildeo corresponde ao que o nome sugere (Cf ZIMMERNAM 1990 p 27)

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2 A criacutetica heideggeriana e a superaccedilatildeo da metafiacutesica A questatildeo que aqui nos referimos eacute a questatildeo do

ser A retomada desta questatildeo primordial da filosofia que faraacute Heidegger revitalizar a tradiccedilatildeo se daraacute sob uma espeacutecie de paradigma inteiramente novo De fato a obliquidade da compreensatildeo inaugurada pela fenomenologia ontoloacutegica do jovem Heidegger se apresenta de forma tatildeo atiacutepica que concebecirc-la sob a forma de um novo paradigma jaacute nos coloca no interior da tradicional loacutegica que se quer suplantar Modificar o centro gravitacional da metafiacutesica natildeo implica necessariamente em uma transformaccedilatildeo substancial desta De fato o sistema permaneceraacute sempre o mesmo em meio agraves diversas reconfiguraccedilotildees natildeo importando quais mudanccedilas ocorram em seu centro quumliditativo Com isso o caraacuteter ineacutedito da filosofia heideggeriana natildeo se define pelo acreacutescimo de um novo eixo temaacutetico no corpo historiograacutefico da literatura filosoacutefica Antes caracteriza-se pela problematizaccedilatildeo das condiccedilotildees determinantes do sistema metafiacutesico Deste modo natildeo se trata exclusivamente de uma novidade mas de uma redescoberta Trata-se de repetir o que desde os antigos gregos se manteacutem inquietante e que durante toda historia espiritual do Ocidente foi encoberto com respostas

Neste redescobrir coloca-se em foco a plataforma originaacuteria do pensamento metafiacutesico donde se desarraiga os paradigmas da filosofia ocidental Se voltar para esta plataforma eacute destacar o centro ex-cecircntrico da metafiacutesica3

3 Este centro ex-cecircntrico natildeo nos absorve numa egocentricidade apropriante ao inveacutes disso nos arremessa sempre para fora de modo que nesta ex-pulsatildeo simultaneamente o ente se tematiza e encobre sua fonte originaacuteria Este centro ex-cecircntrico se daacute no nosso ser-aiacute mais imediato e a partir dele se desgarra o pensar e dizer objetivantes os quais operam uma ldquofixaccedilatildeo do permanenterdquo

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Ou seja o fundamento sem fundo que nunca pode dispor-se objetivamente como centro antes resistindo a toda contemplaccedilatildeo desvia de si os olhares teoreacuteticos condensando-os em objetividades metafiacutesicas Ora estas objetividades metafiacutesicas constituem o desvelamento fundante do conhecimento objetivo cuja orientaccedilatildeo da objetivaccedilatildeo do que se tematiza dirige-se para o ente e natildeo para o ser Neste movimento de objetivaccedilatildeo o pensar se fecha para o que se desvela originariamente Entretanto este desvio do pensamento tem sua ocorrecircncia e resultado uacuteltimo enraizados no solo originaacuterio da metafiacutesica que segundo Heidegger eacute a verdade do ser Neste sentido mesmo o modo de ser encobridor ainda permanece ligado ao elemento originaacuterio da metafiacutesica Destaquemos aqui uma passagem da conferecircncia de 1949 intitulada como ldquoIntroduccedilatildeo a lsquoO que eacute Metafiacutesicarsquordquo onde Heidegger demonstra com clareza esta ligaccedilatildeo

Pelo fato de a metafiacutesica interrogar o ente enquanto ente ela permanece junto ao ente e natildeo se volta para o ser enquanto ser Como a raiz da aacutervore ela [a metafiacutesica] envia todas as seivas e forccedilas para o tronco e os ramos A raiz se espalha pelo solo para que a aacutervore dele [o solo] surgida possa crescer e abandonaacute-lo A aacutervore da filosofia surge do solo onde se ocultam as raiacutezes da metafiacutesica O solo e o chatildeo satildeo sem duacutevida alguma o elemento no qual a raiz da aacutervore se essencia O crescimento da aacutervore poreacutem jamais seraacute capaz de assimilar em si o chatildeo de suas raiacutezes de tal forma que desapareccedila como algo arboacutereo na aacutervore Pelo contraacuterio as raiacutezes se perdem no solo ateacute as uacuteltimas radiacuteculas O chatildeo eacute chatildeo para a raiz dentro dele ela se esquece em favor da aacutervore Tambeacutem a raiz ainda pertence agrave aacutervore mesmo que a seu modo se entregue ao elemento do solo Ela [a metafiacutesica] dissipa seu elemento e a si mesma pela aacutervore Como raiz ela natildeo se volta para o solo ao menos natildeo de modo tal

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como se fosse sua essecircncia desenvolver-se apenas para si mesma neste elemento Provavelmente tambeacutem o solo natildeo eacute tal elemento sem que o perpasse a raiz (HEIDEGGER 2008 p 378)

A aacutervore da filosofia soacute pode crescer no abandono

do solo da verdade desencobridora do ser Entretanto mesmo em seu abandono permanece necessariamente nutrida e arraigada no solo originaacuterio do ser Eacute no elemento originaacuterio do solo do ser que a histoacuteria do pensamento Ocidental enquanto esquecimento do ser se essencia A proacutepria metafiacutesica enquanto raiz da aacutervore ao se espalhar pelo solo esquece a si mesma em sua profundidade um esquecimento que favorece diretamente o desenvolvimento da aacutervore Com isso foi o esquecimento essencial da metafiacutesica que nutriu continuamente o espiacuterito ocidental O que identificamos como cultura ocidental eacute fruto deste esquecimento Por isso mesmo eacute que a metafiacutesica em sua expansatildeo dissipa seu elemento e a si mesma em prol do crescimento da aacutervore De fato o abandono do solo eacute necessaacuterio para a ldquoconservaccedilatildeo e consistecircncia da vida humanardquo (HEIDEGGER 2008 p 82)

Por isso mesmo a criacutetica heideggeria natildeo compreende a si mesma como uma novidade mas como uma rememoraccedilatildeo do princiacutepio primordial perante o qual toda novidade jaacute se encontra de antematildeo superada A criacutetica se volta para o in-significado (ou seja aquilo que antecede originariamente a significacircncia do mundo) buscando explicitar o que se manteacutem in-diferente em meio agrave multiformidade do real Entretanto com que dignidade a filosofia de Heidegger evoca para si a capacidade de trazer agrave tona o que a si mesmo se desfoca em toda manifestaccedilatildeo ocircntica Como pode Heidegger garantir que a sua criacutetica agrave tradiccedilatildeo tambeacutem natildeo esteja secretamente sujeita agravequele ldquodestinamento essencial da metafiacutesicardquo que se caracteriza pela omissatildeo de seu solo originaacuterio

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Toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica em sua saga pelo ser comportou-se apenas com o ente Sua incapacidade natildeo consiste numa demissatildeo temaacutetica da questatildeo Pois ldquoa metafiacutesica expressa o ser constantemente e nas mais diversas modulaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER 2008 p 382) O problema do ser sempre inspirou a partir de uma profundidade originaacuteria o pensamento representacional da metafiacutesica Entretanto a incapacidade da metafiacutesica consiste em seu modo de interpretaccedilatildeo e portanto o problema da filosofia torna-se um problema de meacutetodo A reformulaccedilatildeo do meacutetodo resulta diretamente de uma reconsideraccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica entre ser e ente Ao buscar enunciar o ser a metafiacutesica sempre tinha em vista o ente na totalidade E deste modo ao desvelar o ente o ser mesmo que ilumina e condiciona a manifestaccedilatildeo do ente era velado por um pensamento que sucumbe na resposta

A criacutetica heideggeriana busca sujeitar o pensamento ao acircmbito proacuteprio da verdade do ser A superaccedilatildeo da metafiacutesica natildeo representa para Heidegger de modo algum a extinccedilatildeo dela Antes com esta superaccedilatildeo o que se busca eacute a conservaccedilatildeo de seu elemento fundamental bem como a elevaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico para o interior do acircmbito desencobridor do ser A metafiacutesica natildeo eacute abolida antes eacute confirmada Heidegger descreve bem a natureza desta superaccedilatildeo dizendo

Um pensamento que pensa a verdade do ser natildeo se contenta mais em verdade com a metafiacutesica mas um tal pensamento natildeo pensa contra a metafiacutesica Para voltarmos agrave imagem anterior ele natildeo arranca a raiz da filosofia Ele lhe cava o chatildeo e lhe lavra o solo A metafiacutesica permanece a primeira instacircncia da filosofia Ela natildeo alcanccedila poreacutem a primeira instacircncia do pensamento No pensamento da verdade do ser a metafiacutesica eacute superada (HEIDEGGER 2008 p 379)

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Entretanto como pode o pensamento mover-se na dimensatildeo da verdade do ser sem que se cristalize numa especulaccedilatildeo representacional velando de novo sua dimensatildeo originaacuteria Um caminho em direccedilatildeo agrave superaccedilatildeo da metafiacutesica soacute seraacute devidamente encontrado se o pensamento ndash ao resistir agrave tendecircncia essencial de representar o ente num movimento de objetivaccedilatildeo ndash manter-se a si mesmo pensante numa postura de docilidade para com o ser (uma ldquoquietude fascinadardquo) Ou seja numa ldquoadmiraccedilatildeo acolhedorardquo ou mesmo num ldquoatentar em uma escuta obediente ao que aparecerdquo (HEIDEGGER 2008 p 84) Isto eacute se esforccedilar por manter-se no dizer silencioso do ldquoaiacuterdquo ndash o aberto do ser Este eacute o acircmbito profundo do silecircncio essencial a respeito do qual afirma Nietzsche ldquoali tudo fala mas nada eacute ouvidordquo (NIETZSCHE 2014 p 176) pois se ouve com a violecircncia do ldquoouvir abstratamenterdquo (HEIDEGGER 1977 p 19) Nesta abertura os ldquocacarejosrdquo dos sons objetivantes cessam tornando-se oportuno o ldquosentar-se em silecircncio no ninho para chocar os ovosrdquo (NIETZSCHE 2014 p 176)

E o que representa esta figura senatildeo o pocircr em curso e deixar vir a ser o que se apresenta Gadamer iraacute reinterpretar este pensamento pensante que se potildee na escuta do ser e que possibilita a superaccedilatildeo da metafiacutesica como o ldquoverdadeiro ouvirrdquo (GADAMER (A) p 671) da experiecircncia hermenecircutica que tambeacutem eacute ldquoverdadeiro meacutetodordquo (Op cit p 673) Segundo ele sob a tutela deste pensamento que se potildee na escuta ldquonos entregamos por completo agrave forccedila do pensar e natildeo deixamos valer as ideacuteias e opiniotildees que pareciam loacutegicas e naturaisrdquo (Idem) Este eacute a postura de pensamento que se deixa levar pelo acontecimento do proacuteprio ser Heidegger apresenta uma clara distinccedilatildeo entre a experiecircncia especulativa hermenecircutica do pensar pensante e o modo de pensar representacional na seguinte descriccedilatildeo

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A experiecircncia cotidiana das coisas em sentido amplo nem eacute objetivante nem eacute uma objetivaccedilatildeo Quando por exemplo sentados no jardim alegramo-nos com as rosas em flor natildeo fazemos da rosa objeto e nem mesmo alguma coisa que se encontra contraposta ou seja algo tematicamente representado Quando em um dizer silencioso entrego-me ao vermelho brilhante da rosa e medito sobre o ser vermelho da rosa esse ser-vermelho natildeo eacute objeto nem eacute coisa nem eacute algo que se contrapotildee como rosa em flor A rosa estaacute no jardim balanccedila para laacute e para caacute ao sabor do vento Jaacute o ser-vermelho da rosa natildeo estaacute no jardim e nem pode balanccedilar ao sabor do vento Todavia penso e falo do ser-vermelho quando o nomeio Assim realiza-se um pensar e um dizer que de modo algum produz objetivaccedilatildeo (HEIDEGGER 2008 p 83)

Na contramatildeo do extravio do pensamento

objetivante podemos perceber a partir da citaccedilatildeo acima uma postura de pensamento que rompe com a loacutegica representacional da metafiacutesica Sob esta loacutegica tradicional o sentido do ser eacute interpretado segundo o modo de ser da presenccedila constante A loacutegica do pensamento objetivante perpassa a metafiacutesica tradicional poreacutem natildeo apenas ela a criacutetica moderna agrave metafiacutesica tambeacutem sucumbe perante esta loacutegica O projeto anti-metafiacutesico da filosofia moderna que encontra na criacutetica positivista seu expoente maacuteximo ao preconizar a aboliccedilatildeo da antiga metafiacutesica e apresentar a ciecircncia como uacutenico caminho capaz de conduzir o homem agrave experiecircncia fundamental da verdade natildeo apenas eacute perpassado pela loacutegica representacional da metafiacutesica como tambeacutem leva a cabo na orientaccedilatildeo objetivante de seu pensamento teacutecnico-cientificista o esquecimento do ser

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3 A diferenccedila ontoloacutegica na experiecircncia faacutetica da vida Vimos como o jovem Heidegger em um periacuteodo

decisivo do desenvolvimento de seu pensamento recorre agrave experiecircncia religiosa do cristianismo originaacuterio com o intuito de subsidiar a tarefa de uma superaccedilatildeo da metafiacutesica Neste sentido tornou-se possiacutevel vislumbrar o proacuteprio conceito e necessidade de uma superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica Depois disto tambeacutem indicamos que a proacutepria retomada da questatildeo ou do caraacuteter problemaacutetico do ser jaacute de certo modo antecipa este movimento de superaccedilatildeo ndash isto pode ser ilustrado por uma declaraccedilatildeo de Kant que diz ldquoSaber aquilo que se deve racionalmente indagar jaacute por si prova exuberacircncia de entendimento e sabedoriardquo (KANT 2014 p 70) Sendo assim para efeito de conclusatildeo procuraremos agora demonstrar o modo como a experiecircncia faacutetica da vida ao inveacutes de ser uma resposta ociosa que parte do absurdo de uma pergunta impensada constitui-se um caminho pelo qual se coloca de novo em marcha o pensar essencial da filosofia

Se pensarmos a superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica que se efetua na experiecircncia faacutetica da vida sob a luz da diferenccedila ontoloacutegica poderemos dispor de um acesso agrave dinacircmica de superaccedilatildeo do pensamento metafiacutesico Com isto haveremos de ratificar por meio de uma sintonizaccedilatildeo com resultados posteriores agrave hermenecircutica da facticidade o modo como a experiecircncia faacutetica da vida promove uma experiecircncia de pensamento que atinge o elemento fundamental da metafiacutesica Veremos que ao se considerar a noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica da vida a partir de seu engajamento com a distinccedilatildeo ontoloacutegica a problemaacutetica do ser eacute reassumida em toda a sua intensidade

Em vista disso procuraremos promover um esclarecimento provisoacuterio do sentido da formulaccedilatildeo

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ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo Iremos apenas acentuar aquilo que na evocaccedilatildeo desta diferenccedila ressalta o caraacuteter originaacuterio da experiecircncia faacutetica da vida Em seguida explicitaremos a proacutepria noccedilatildeo de experiecircncia faacutetica e o modo como tal experiecircncia pode efetuar a superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica

O emprego da expressatildeo ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo remonta ao inicio da deacutecada de 20 quando o jovem Heidegger ainda estava completamente absorto na elaboraccedilatildeo de uma hermenecircutica da facticidade O fato da ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo ter sido engendrada no seio do pensamento hermenecircutico o qual refletia a auto-compreensatildeo faacutetica do ser-aiacute existente eacute decisivo para ressaltarmos a forccedila de superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica na experiecircncia faacutetica da vida Pois se a reconsideraccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica potildee em quadro o desvio da racionalidade metafiacutesica de seu elemento fundamental a experiecircncia faacutetica da vida pode ser caracterizada como uma tentativa de retorno em meio agrave diferenccedila ontoloacutegica Por conseguinte postulamos que na experiecircncia faacutetica da vida encontra-se radicada a possibilidade da diferenccedila ontoloacutegica Eacute na esfera desta experiecircncia que o poder distinguir imanente agrave essecircncia proacutepria do ser-aiacute encontra a forccedila riacutetmica de sua estrutura dinacircmica

Retomemos aqui de modo provisoacuterio a compreensatildeo heideggeriana da noccedilatildeo de diferenccedila ontoloacutegica A distinccedilatildeo entre ocircntico e ontoloacutegico eacute o que delimita a essecircncia desta noccedilatildeo de diferenccedila Com o termo ldquoocircnticordquo Heidegger demarca o caraacuteter distintivo do ente perante o ser que por sua vez tem seu estatuto caracterizado sob o tiacutetulo de ldquoontoloacutegicordquo Esta distinccedilatildeo natildeo eacute meramente proposicional Ela visa antes de tudo explicitar uma condiccedilatildeo fundamental do nosso ser-aiacute cotidiano Conforme o testemunho de Gadamer Heidegger havia declarado que ldquoEssa distinccedilatildeo natildeo eacute de modo algum

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feita por noacutesrdquo (HEIDEGGER apud GADAMER 2007 p 92) Na verdade a diferenccedila ontoloacutegica apresenta um caraacuteter eminentemente faacutetico pois como declara Gadamer ldquonosso pensamento se encontra desde o princiacutepio sobre o caminho da diferenciaccedilatildeo do ente em seu serrdquo (Idem) Ou seja noacutes nos encontramos sempre nesta diferenccedila A todo momento nos relacionamos com este ou aquele ente ldquocomo se estiveacutessemos presos ao domiacutenio do enterdquo (HEIDEGGER 2008 p 120) Entretanto em nossa lida cotidiana com os entes que espontaneamente nos vecircm ao encontro somos sub-repticiamente perpassados por uma vaga e mediana compreensatildeo do ser Eacute no ente que o ser se desvela e por isto mesmo eacute que o ente espontaneamente se daacute Esta dadidade do ente (condiccedilatildeo de ser aiacute dado) confirma o caraacuteter faacutetico da diferenciaccedilatildeo do ente em seu ser A tensatildeo distintiva entre ente e ser em meio a nossa lida cotidiana eacute faacutetica e antecede as designaccedilotildees proposicionais

Na vivenciabilidade faacutetica desta diferenccedila ndash ao passo que algo se distancia no ocultamento de uma compreensatildeo mediana (o ser) ndash um despontar tem lugar Este caraacuteter faacutetico da diferenccedila seraacute posteriormente assumido por Heidegger como ldquoabertura do serrdquo ou mesmo como ldquoacontecimento apropriativordquo (GADAMER 2007 p 93) Nesta tensatildeo da diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica onde estaacute em jogo o ocultamento e desocultamento do ser o ldquoo mundo mundardquo (conforme a linguagem hermenecircutica do jovem Heidegger) Com a recolocaccedilatildeo da diferenccedila ontoloacutegica nos deparamos com o proacuteprio fundamento da essecircncia do Dasein ou seja com o seu ser e estar na transcendecircncia Eacute neste sentido que declara Heidegger

Se entretanto por outro lado o elemento distintivo do ser-aiacute reside no fato de se relacionar com ente compreendendo o ser entatildeo o poder distinguir no qual a diferenccedila ontoloacutegica se torna faacutetica deve ter fincado a raiz de sua proacutepria

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possibilidade no fundamento da essecircncia do ser-aiacute A este da diferenccedila ontoloacutegica designamos jaacute nos antecipando transcendecircncia do ser-aiacute (HEIDEGGER 2008 p 146)

Tendo em vista portanto a disposiccedilatildeo da diferenccedila

ontoloacutegica na dimensatildeo da experiecircncia faacutetica o que Heidegger denomina como ocircntico visa designar a regiatildeo de abertura do ente seu ldquoacircmbito revelador natildeo predicativordquo Com isso a possibilidade de toda predicaccedilatildeo vaacutelida em nosso ser cotidiano estaacute enraizada nesta abertura preacute-predicativa que Heidegger denomina de verdade ocircntica Eacute nesta abertura ocircntica que a verdade da enunciaccedilatildeo (entendida como adequaccedilatildeo e conformidade da coisa com o conhecimento) tatildeo necessaacuteria para sustentaccedilatildeo do edifiacutecio das ciecircncias positivas encontra sua possibilidade radical

Entretanto esta abertura ocircntica eacute por sua vez iluminada e conduzida por uma compreensatildeo do ser Segundo Heidegger ldquoDesvelamento do ser eacute o que primeiramente possibilita a manifestaccedilatildeo do ente Esse desvelamento como verdade sobre o ser eacute chamado verdade ontoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2008 p 143) Esta compreensatildeo do ser natildeo eacute produto de uma conceituaccedilatildeo por isso mesmo eacute preacute-ontoloacutegica ou preacute-conceptual Toda e qualquer tentativa de conceituaccedilatildeo do ser parte do proacuteprio cerne da compreensatildeo preacute-ontoloacutegica Isto se daacute quando o ser preacute-ontologicamente compreendido eacute tematizado e problematizado pela proacutepria compreensatildeo preacute-ontoloacutegica Tais tentativas de conceituaccedilatildeo do ser engendram os ldquoconceitos fundamentaisrdquo das ciecircncias pois acabam por delimitar um campo especiacutefico ldquocomo aacuterea de objetivaccedilatildeo por meio do conhecimento cientiacuteficordquo (HEIDEGGER 2008 p 144)

Para Heidegger os niacuteveis e modulaccedilotildees da verdade ontoloacutegica que se estendem entre a compreensatildeo preacute-

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ontoloacutegica e as tentativas de conceituaccedilatildeo do ser traem ldquoa riqueza daquilo que como verdade originaacuteria fundamenta toda verdade ocircnticardquo (HEIDEGGER 2008 p 145) Esta traiccedilatildeo que ao mesmo tempo eacute fuga do solo originaacuterio eacute decisiva para constituiccedilatildeo das ciecircncias positivas Sendo precisamente esse renitente desvio do elemento autenticamente ontoloacutegico a condiccedilatildeo formadora do pensamento ocidental Eacute neste sentido que Spengler ao identificar na civilizaccedilatildeo o uacuteltimo estaacutegio de uma cultura define tal estaacutegio como ldquodecrepitude espiritualrdquo e ldquometroacutepole petrificada petrificanterdquo Ora eacute por intermeacutedio da petrificaccedilatildeo da verdade do ser que a civilizaccedilatildeo ocidental lanccedilou a pedra angular do conhecimento cientiacutefico A petrificaccedilatildeo da compreensatildeo preacute-ontoloacutegica do ser possibilita o comportamento para com o ente em sua abertura ocircntica O modo como o pensamento escoa da experiecircncia ontoloacutegica fundamental para uma compreensatildeo ocircntica do ser demarca o desvio que seraacute superado na experiecircncia faacutetica da vida Este desvio ontoloacutegico que no acircmbito da experiecircncia faacutetica da vida eacute caracterizado como a queda na facticidade eacute o que define o esquecimento do ser pela racionalidade metafiacutesica Tal desvio eacute caracterizado por Heidegger em ldquoSer e Tempordquo quando este afirma que

O ser dos entes natildeo ldquoeacuterdquo em si mesmo um outro ente O primeiro passo filosoacutefico na compreensatildeo do problema do ser consiste em ldquomithoacuten tina diegeisthairdquo ldquoNatildeo contar estoacuteriasrdquo significa natildeo determinar a proveniecircncia do ente como um ente reconduzindo a um outro ente como se o ser tivesse o caraacuteter de um ente possiacutevel (HEIDEGGER 2005 p 32)

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4 O problema do ser e o acesso agrave dimensatildeo primordial

A tentativa de nos colocarmos no limiar do

problema do ser (atividade que Heidegger caracteriza como elaborar a colocaccedilatildeo da questatildeo) eacute determinante para compreendermos a intensidade com que a experiecircncia faacutetica da vida responde agrave problemaacutetica ontoloacutegica Para Heidegger a tradiccedilatildeo natildeo apenas faltou com a resposta mas acima de tudo foi incapaz de pensar a questatildeo ou mesmo de sofrer sua inquietaccedilatildeo O caraacuteter problemaacutetico do ser que outrora deu focirclego ao despertar da atitude questionante dos antigos pensadores gregos foi emudecido pelos escombros da excessiva especulaccedilatildeo teoacuterica-objetivante da tradiccedilatildeo filosoacutefica Sendo assim a recolocaccedilatildeo da questatildeo e re-estabelecimento da situaccedilatildeo problemaacutetica face ao ente em seu ser nos instala na esfera da escuta essencial situaccedilatildeo onde se faz antecipadamente presente aquilo que se questiona na questatildeo ndash o ser Estando pois assim situados ndash postados na esfera da escuta essencial ndash eacute que poderemos nos colocar sob o influxo da afliccedilatildeo gerada pela problematicidade do ente em seu ser A despeito deste niacutevel de experiecircncia do pensamento fonte fecunda de todo autecircntico filosofar Nietzsche expressa atraveacutes de seu Zaratustra o seguinte

Oacute solidatildeo Solidatildeo paacutetria minha Quatildeo terna e bem aventurada me fala a tua voz Noacutes natildeo interrogamos um ao outro natildeo reclamamos um ao outro passamos um ao outro aberto por portas abertas Pois contigo tudo eacute aberto e claro e mesmo as horas correm aqui com peacutes mais leves De fato no escuro o tempo eacute mais pesado que na luz Aqui se abrem para mim as palavras e as arcas de palavras de todo ser todo o ser quer vir a ser

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palavra todo vir-a-ser quer comigo aprender a falar (NIETZSCHE 2014 p 176)

Esta paacutetria caracteriza o solo da experiecircncia

ontoloacutegica primordial donde se desarraiga as tendecircncias do comportamento teoacuterico-destemporalizante Sob o peso do desamparo que se impotildee nesta esfera da escuta essencial as palavras da erudiccedilatildeo cientiacutefica-objetivante ndash palavras que estropiam a visatildeo originaacuteria dos fenocircmenos ndash satildeo dissipadas E na clarividecircncia desta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial onde a face problemaacutetica do ser se desvela a luz da racionalidade paradigmaacutetica eacute obliterada e a fugaz temporalidade eacute sentida com pernas de chumbo Apenas sob o influxo de uma experiecircncia de tal niacutevel eacute que o pensamento estaraacute preparado para ldquopocircr-se a caminhordquo ou seja estaraacute preparado para caminhar nas ldquocercanias do serrdquo (HEIDEGGER 2008 p 357)

Por isso para compreendermos a experiecircncia faacutetica da vida como alternativa de acesso agrave questatildeo fundamental da filosofia eacute mister delinearmos aquela situaccedilatildeo de sintonia com a problemaacutetica ontoloacutegica a partir da qual poderemos nos esquivar daquela conceptualidade dogmaacutetica da tradiccedilatildeo que dispensou o caraacuteter problemaacutetico do ser

Em ldquoSer e Tempordquo o trabalho de uma elaboraccedilatildeo da colocaccedilatildeo da questatildeo do ser nos remete imediatamente agrave necessidade de tornar transparente o ser daquele que questiona ou seja o Dasein 4 No periacuteodo que compreende os anos de Friburgo o constructo Dasein tal como o encontramos em ldquoSer e Tempordquo ainda natildeo havia sido plenamente tematizado o que natildeo implica dizer que os seus

4 Sobre isto afirma Heidegger ldquoA colocaccedilatildeo expliacutecita e transparente da questatildeo sobre o sentido do ser requer uma explicaccedilatildeo preacutevia e adequada de um ente (pre-senccedila) no tocante a seu serrdquo (HEIDEGGER 2005 p 33)

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elementos constitutivos jaacute natildeo estivessem plenamente concebidos Eacute sob a dimensatildeo da experiecircncia faacutetica da vida que a explicitaccedilatildeo do Dasein seraacute antecipada nos anos que compreendem o pensamento do jovem Heidegger A experiecircncia faacutetica da vida nos fornece um protoacutetipo daquela mesma ldquodepuraccedilatildeo ontoloacutegica da subjetividaderdquo (cf HEIDEGGER 2005 p 82) que o Dasein concretizaraacute em ldquoSer e Tempordquo Por intermeacutedio de uma tal depuraccedilatildeo que em si mesma consiste numa criacutetica fenomenoloacutegica agrave transcendentalidade eacute que o questionamento do ser obteacutem sua orientaccedilatildeo ou seja abre-se um horizonte de visualizaccedilatildeo preacutevia do procurado na questatildeo do ser A experiecircncia da problematicidade do ser eacute tatildeo originaacuteria quanto o elemento problemaacutetico Deste modo em consonacircncia com o jovem Heidegger um autecircntico questionamento ontoloacutegico soacute pode ser possiacutevel quando proveacutem de um inquietante situar-se na esfera da compreensibilidade faacutetica da vida O desvelar da face problemaacutetica do ser e a partir disto a colocaccedilatildeo de sua questatildeo por si soacute jaacute nos coloca na dimensatildeo da experiecircncia faacutetica da vida Pois o despertar da questatildeo fundamental jaacute traz consigo a dimensatildeo preacute-compreensiva da resposta

A experiecircncia faacutetica da vida eacute apresentada pelo jovem Heidegger como alternativa que responde a questatildeo fundamental ignorada pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e deste modo apresenta-se como caminho para superaccedilatildeo da racionalidade metafiacutesica [A metafiacutesica sempre tangenciou mas natildeo foi capaz de acessar a dimensatildeo originaacuteria da filosofia] O proacuteprio delineamento da situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial onde o ser se desvela como problema jaacute implica numa superaccedilatildeo Compreender o problema do ser eacute estar situado sob o influxo da inquietaccedilatildeo que o proacuteprio ser gera a partir de seu caraacuteter problemaacutetico

Entatildeo de que modo podemos elucidar a situaccedilatildeo na qual o problema fundamental da filosofia se torna latente Que situaccedilatildeo eacute esta que aqui nos referimos

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Falamos haacute pouco de uma ldquosituaccedilatildeo ontoloacutegico-existencialrdquo e com isto jaacute pressupomos a ordem e a natureza desta situaccedilatildeo As designaccedilotildees ldquoontoloacutegicordquo e ldquoexistencialrdquo satildeo tautoloacutegicas no contexto do pensamento heideggeriano Pois para Heidegger o ontoloacutegico eacute o existencial e o existencial eacute o ontoloacutegico Entretanto a niacutetida tautologia da foacutermula ldquoontoloacutegico-existencialrdquo visa resguardar as designaccedilotildees de seu comum emprego no contexto das teorias tradicionais O ontoloacutegico-existencial delimita a situaccedilatildeo a partir da qual brota o problema do ser E portanto delimita a situaccedilatildeo-limite que abarca a compreensatildeo mediana do ser constitutiva do ser-aiacute existente ndash a preacute-compreensatildeo do ser eacute uma determinaccedilatildeo essencial da existecircncia Esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial ateacute onde sabemos natildeo eacute partilhada por nenhum outro ente a natildeo ser o ente que noacutes mesmos somos ente que eacute atingido pelo problema do ser Em ldquoSer e Tempordquo podemos observar o modo como Heidegger faz uma alusatildeo a esta situaccedilatildeo

Enquanto procura o questionamento necessita de uma orientaccedilatildeo preacutevia do procurado Para isso o sentido do ser jaacute nos deve estar de alguma maneira disponiacutevel Jaacute se aludiu noacutes nos movemos sempre numa compreensatildeo do ser Eacute dela que brota a questatildeo expliacutecita do sentido do ser e a tendecircncia para o seu conceito Noacutes natildeo sabemos o que diz ldquoserrdquo Mas jaacute quando perguntamos o que eacute ldquoserrdquo noacutes nos mantemos numa compreensatildeo do eacute sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse ldquoeacuterdquo Noacutes nem sequer conhecemos o horizonte em que poderiacuteamos apreender e fixar-lhe o sentido Essa compreensatildeo do ser vaga e mediana eacute um fato (HEIDEGGER 2005 p 31)

Esta situaccedilatildeo-limite que segundo Heidegger tem

forccedila de lanccedilar luz sobre o ser-aiacute vivente (HEIDEGGER

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2008 p 21) eacute uma situaccedilatildeo antinocircmica Nela o ser natildeo se apresenta de modo inteiramente desconhecido mas em contrapartida como algo completamente inapreensiacutevel Esta situaccedilatildeo radical na qual sempre nos movemos em cada ocasiatildeo constitutiva de nosso ser-aiacute cotidiano traz agrave tona a convocaccedilatildeo de recolocarmos a pergunta pelo ser Esta convocaccedilatildeo natildeo eacute uma temaacutetica de investigaccedilatildeo artificialmente produzida pela curiosidade acadecircmica Ao inveacutes disto eacute um problema que emerge do nosso ser-aiacute mais profundo Heidegger apresenta como epiacutegrafe de ldquoSer e Tempordquo o modo como a filosofia grega na figura de Platatildeo vivencia a fundo esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial A epiacutegrafe relata o estado de aporia de Platatildeo perante o caraacuteter problemaacutetico do ser Nela encontramos o seguinte relato

[] pois eacute evidente que de haacute muito sabeis o que propriamente quereis designar quando empregais a expressatildeo lsquoentersquo Outrora tambeacutem noacutes julgaacutevamos saber agora poreacutem caiacutemos em aporia (PLATAtildeO apud HEIDEGGER 2005 p 24)

O regresso operado pelo pensamento

fenomenoloacutegico agrave situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial visa uma introvisatildeo na dimensatildeo do viver faacutetico do ser-aiacute existente que o jovem Heidegger caracterizaraacute como experiecircncia faacutetica da vida Por meio deste posicionamento metodoloacutegico o caraacuteter fugaz e obscuro da compreensatildeo faacutetica se tornaraacute expliacutecito Na experiecircncia faacutetica da vida se delimita o acircmbito de auto-compreensatildeo da facticidade a uacutenica situaccedilatildeo a partir da qual o mundo fenomecircnico se desvela em toda a sua originariedade Esta situaccedilatildeo ontoloacutegico-existencial constitutiva do ser-aiacute faacutetico eacute uma linha tecircnue entre a morte e a vida do autecircntico filosofar Pois eacute a partir desta dimensatildeo faacutetica e situaccedilatildeo antinocircmica que eclodem as tendecircncias de obscurecimento e

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impedimento de explicitaccedilatildeo da facticidade A fenomenologia se depara com o desafio de compreender os fenocircmenos sem desgarra-los de sua dimensatildeo originaacuteria A vida faacutetica deve ser elucidada sem que o pensamento se condense em objetividades ndash uma compreensatildeo que natildeo deixa rastros Este eacute aquele posicionamento metodoloacutegico que Nietzsche ratifica na figura de Zaratustra dizendo ldquoQuando chegou tua hora mais silenciosa e te arrastou para longe de ti mesmo quando falou num malvado sussurro lsquoFala e te despedaccedilarsquordquo (NIETZSCHE 2014 p 175)

Referecircncias GADAMER Hans-Georg Verdade e Meacutetodo I traccedilos

fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica Trad Flaacutevio Paulo Meurer Petroacutepolis Vozes 2004

______________ (A) Verdade e Meacutetodo II complementos e iacutendices Trad Flaacutevio Paulo Meurer Petroacutepolis Vozes 2004

_______________ Hermenecircutica em retrospectiva Heidegger em retrospectiva Vol 1 Trad Marco Antocircnio Casanova 2 ed Petroacutepolis Vozes 2007

HEIDEGGER Martin Fenomenologia da Vida Religiosa Trad bras Enio Paulo Giachine Jairo Ferrandin Renato Kirchner Petroacutepolis Vozes 2010

_______________ Marcas do Caminho Trad bras Enio Paulo Ernildo Stein Petroacutepolis Vozes 2008

_______________ Ser e Tempo Trad bras Fausto Castilho Campinas Editora da Unicamp Petroacutepolis Vozes 2012

_______________ Ser e Tempo ndash Parte I Trad bras Maacutercia de Saacute Cavalcante Petroacutepolis Vozes 2005

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_______________ A origem da obra de arte Trad Maria da Conceiccedilatildeo Costa Lisboa Ediccedilotildees 70 1977

HEGEL Georg Wilhelm Friedrich Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas A ciecircncia da Loacutegica Vol 1 Trad Paulo Meneses Joseacute Machado Satildeo Paulo Loyola 1995

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Trad Manuela Pinto dos Santos Alexandre Fradique Morujatildeo 8 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2013

NIETZSCHE Friedrich Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2014

SPENGLER Oswald A decadecircncia do Ocidente Trad Herbert Caro Rio de Janeiro Zahar 1973

STEIN Ernildo Compreensatildeo e finitude estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana Ijuiacute Unijuiacute 2001

ZIMMERMAN Michael E Heideggerrsquos confrontation with modernity technology politics and art Indiana Indiana University Press 1990

O Sujeito a Verdade e a Criacutetica

ao Pensamento Moderno

Maacutercio Joseacute Silva Lima1

Introduccedilatildeo

O pensamento moderno eacute profundamente marcado pela questatildeo do ldquosujeitordquo ou seja o cogito cartesiano responsaacutevel pela accedilatildeo do pensar no homem Este pensamento eacute inaugurado no seacuteculo XVII por Reneacute Descartes que em suas Meditaccedilotildees Metafiacutesicas apresenta ao mundo a res cogitans que em oposiccedilatildeo agrave res extensa determina a atividade do pensamento Assim sendo seguindo ainda a dualidade socraacutetico-platocircnica (sensiacutevel-inteligiacutevel) o pensamento moderno potildee o homem numa situaccedilatildeo cujo limite eacute marcado pela relaccedilatildeo bipolar entre uma coisa que pensa e uma coisa palpaacutevel que se mensura que se observa e que possui extensatildeo

Mais tarde Immanuel Kant vai de certa forma afirmar que em mateacuteria de conhecimento esse sujeito que pensa que para ele contudo natildeo eacute uma res cogitans poderaacute realizar representaccedilotildees acerca da extensatildeo do objeto conhecidocognosciacutevel Em outras palavras esta consciecircncia presente no homem e capaz de pensar o objeto poderaacute fazerrealizar representaccedilotildees do fenocircmeno ndash mesmo que fique de fora o conhecimento sobre o nuacutemeno a coisa em si Levando em consideraccedilatildeo o raciociacutenio de Descartes e Kant acerca da accedilatildeo humana percebemos que para ambos o homem eacute possuidor de uma consciecircncia capaz de representar o mundo externo Essa consciecircncia portanto permite ao homem a constituiccedilatildeo do ldquoeurdquo pois

1 Doutorando pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN

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enquanto sujeito ele pode manipular o mundo externo e representar o fenocircmeno

Por conseguinte o sentido que orienta o pensamento moderno eacute o cartesiano Nele a realidade eacute dividida em dois grandes polos o acircmbito do sujeito e o acircmbito do objeto O sujeito por sua vez eacute a substacircncia ativa e nele o homem eacute identificado com o cogito com a coisa pensante Por sua vez o homem enquanto ente que pensa encontra-se marcado pela autonomia e pode ser capaz responsaacutevel e senhor da sua accedilatildeo Daiacute entatildeo este ente que pensa e que possui autonomia pode enfim representar Neste sentido ldquoa representaccedilatildeo eacute na verdade um voltar-se do ldquocogitordquo sobre si mesmo que assim se re-toma e entatildeo re-apresenta o objeto segundo o modo de ser do sujeitordquo (FOGEL 2009 p 66) O sujeito como medida de todas as coisas

Em plena Modernidade partiu de Martin Heidegger filoacutesofo do seacuteculo XX uma anaacutelise contundente e ao mesmo tempo intrigante acerca deste tema No segundo volume de sua obra dedicada a Nietzsche Heidegger disserta acerca da autonomia do sujeito moderno Para tanto inicia seu pensamento refletindo sobre a famosa sentenccedila de Protaacutegoras ldquoO homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo que elas satildeo das que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo (PROTAacuteGORAS apud HEIDEGGER 2007 p100) A sentenccedila seria entatildeo uma comprovaccedilatildeo do pensamento cartesiano na antiguidade Estaria o sofista Protaacutegoras assumindo uma posiccedilatildeo do homem enquanto sujeito que age sobre todas as coisas Vejamos as reflexotildees heideggerianas sobre o caso

Para Heidegger ldquocairiacuteamos em um engano fatiacutedicordquo ao tentar compreender a sentenccedila de Protaacutegoras aos moldes do pensamento cartesiano Na Modernidade acreditamos que temos acesso ao ente simplesmente pelo

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fato do ldquoeurdquo ndash o cogito enquanto sujeito que pensa ndash poder representar o objeto No entanto este modo de compreensatildeo ignora aquilo que se encontra na dimensatildeo do desvelamento do ente Poreacutem o ente muitas vezes compreendido como objeto estaacute para o homem enquanto Dasein como aquilo que se desvela aquilo que estaacute no acircmbito do aberto Para que o homem consiga representar aquilo que estaacute posto diante de si eacute preciso pois um acontecimento mais originaacuterio algo que pressupunha desvelamento

Eacute nesta perspectiva que o homem se torna a medida de todas as coisas uma vez que eacute nesta dimensatildeo do real que ele eacute tomado por aquilo que acredita representar Neste caso natildeo eacute ele quem ldquomederdquo todas as coisas no sentido de mensurar quantificar e agir sobre elas como a ciecircncia moderna faz O que a sentenccedila mostra eacute que o homem estaacute na ldquomedidardquo de todas as coisas ou seja pelo e atraveacutes do desvelamento o homem eacute tocado por todas as coisas A autonomia do sujeito aqui jaacute eacute um evento secundaacuterio Natildeo haacute um sentido que seja juiz nem dos outros entes enquanto objeto nem de seu ser enquanto consciecircncia autocircnoma ldquoO modo como Protaacutegoras define a relaccedilatildeo do homem com o ente eacute apenas uma circunscriccedilatildeo acentuada do desvelamento do ente na totalidade agrave respectiva esfera da experiecircncia do mundordquo (HEIDEGGER 2007 p 103)

Segundo o filoacutesofo alematildeo na sentenccedila de Protaacutegoras o ldquoeurdquo eacute determinado por meio de seu pertencimento ao desvelamento do ente Eacute aquilo que se desvela que aparece e se desencobre do ente que o sujeito por assim dizer pode conhecer Haacute portanto o cunho essencial do vir agrave presenccedila do ente diante do homem que natildeo subjaz a este vir agrave presenccedila e portanto natildeo eacute sujeito A verdade (aletheacuteia) possui o caraacuteter de desvelamento pois trata natildeo de uma adequaccedilatildeo do intelecto agrave coisa (veritas est adaequatio intellectus et rei) mas tatildeo somente algo proacuteprio e

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constitutivo daquilo que eacute desvelado A ldquomedidardquo de que trata a sentenccedila apresenta o sentido proacuteprio de moderaccedilatildeo a saber moderaccedilatildeo do desvelamento moderaccedilatildeo daquilo que se desvela como ente para o homem

Esta seria a maneira grega de se compreender o homem na sentenccedila de Protaacutegoras natildeo como um sujeito de quem todas as coisas dependem Natildeo como um sujeito capaz e responsaacutevel por ldquomedirrdquo ldquomoderarrdquo todo o objeto mas como um ente (Dasein) que lanccedilado ao mundo nele estaacute pelo desvelamento na medida de todas as coisas Vecirc-se por aiacute que a posiccedilatildeo metafiacutesica moderna se apresenta de forma diferente da posiccedilatildeo metafiacutesica dos gregos Para estes a concepccedilatildeo de um sujeito autocircnomo tal qual como conhecemos na Modernidade era inexistente O guerreiro por exemplo que em batalha guerreava natildeo lutava por autonomia proacutepria mas porque Ares o guiava O mancebo quando apaixonado acreditava assim estar pelo efeito devastador de Eros O proacuteprio Soacutecrates afirmava possuir um Daemon uma espeacutecie de gecircnio pessoal que lhe orientava Ou seja sempre estavam agrave medida de algo exterior a eles Este algo exterior Heidegger chama o que se desvela o ser

A partir do pensamento cartesiano o conceito de ldquosujeitordquo ndash antes Hypokeimenon depois Subiectum ndash encontra-se essencialmente ligado ao homem e justamente nesta perspectiva os demais entes se transformam em objetos desse homemsujeito Agora diferentemente de outrora o Subiectum natildeo eacute mais o nome nem o conceito utilizado para definir os entes animais plantas pedra O Subiectum transformara-se em Sujeito e o sujeito concerne agravequilo que eacute atribuiccedilatildeo do homem enquanto fundamento de todo o representar Aqui o conhecer adquire tambeacutem uma nova compreensatildeo pois na perspectiva cartesiana conhecer eacute aquilo que de forma indubitaacutevel eacute representado pelo sujeito Para isso torna-se importante a existecircncia do meacutetodo (methodus) ldquonome para o pro-cedimento assegurador e

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conquistador que se abate sobre o ente a fim de asseguraacute-lo como objeto para o sujeitordquo (HEIDEGGER 2007 p 127)

Com o homem sendo essencialmente ldquosujeitordquo capaz de representar os entes enquanto objeto e a ldquoverdaderdquo sendo compreendida enquanto uma certeza derivada da accedilatildeo calculadora este mesmo homem passa a ter uma relaccedilatildeo de conquista e de assenhoramento com o mundo circundante Aqui a sentenccedila de Protaacutegoras possui um valor diferente daquele estabelecido pelo modo grego de pensar No modo cartesiano eacute o homem quem atribui o padratildeo de medida Eacute ele quem determina ldquoa partir de si e em direccedilatildeo a si mesmordquo aquilo que pode ser considerado acerca do mundo enquanto objeto Entretanto Heidegger nos chama atenccedilatildeo para o fato de que o homem moderno natildeo seja considerado como um mero ldquoeu egoiacutesta isoladordquo mas um ldquosujeitordquo lanccedilado a caminho do caacutelculo e da representaccedilatildeo ilimitada do ente

Portanto com base no exposto podemos demonstrar o modo como Heidegger distingue as representaccedilotildees metafiacutesicas fundamentais no pensamento de Protaacutegoras e de Descartes Segundo ele

1 Para Protaacutegoras o homem eacute determinado em seu ser-proacuteprio por meio da pertinecircncia agrave esfera daquilo que eacute desvelado Para Descartes o homem eacute determinado enquanto si proacuteprio por meio da retomada do mundo no representar do homem 2 Para Protaacutegoras a entidade do ente eacute ndash no sentido da metafiacutesica grega ndash o presentar-se no desvelado Para Descartes a entidade significa representidade por meio do e para o sujeito 3 Para Protaacutegoras a verdade significa desvelamento daquilo que se presenta Para Descartes a certeza da representaccedilatildeo que se re-presenta e assegura

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4 Para Protaacutegoras o homem eacute a medida de todas as coisas no sentido da restriccedilatildeo comedida agrave esfera do desvelamento e aos limites do velado Para Descartes o homem eacute a medida de todas as coisas no sentido da presunccedilatildeo da supressatildeo dos limites da representaccedilatildeo em direccedilatildeo a certeza que se assegura de si O padratildeo de medida submete tudo aquilo que pode valer como sendo ao caacutelculo da representaccedilatildeo (HEIDEGGER 2007 p 128)

A criacutetica ao Eu-sujeito como causa da accedilatildeo Anterior ao pensamento de Heidegger na primeira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral Nietzsche nos assevera que eacute sob a seduccedilatildeo da linguagem que entendemos ndash ou mal entendemos ndash que em todo atuar atua um atuante Segundo ele no entanto natildeo haacute um ator por traacutes do ato Desse modo eacute somente sob a seduccedilatildeo da linguagem que podemos dizer por exemplo que o raio brilha visto que o raio (o corisco) natildeo eacute um sujeito que antecede o brilhar (o claratildeo) Natildeo existe um substrato um ldquoserrdquo que atua e faz acontecer (NIETZSCHE 2009 p 33) O agente pelo qual compreendemos na Modernidade a saber um sujeito que pratica a accedilatildeo eacute apenas uma ldquoficccedilatildeordquo que acrescentamos agrave accedilatildeo A accedilatildeo jaacute eacute tudo Noacutes modernos duplicamos a accedilatildeo pois a tratamos como causa e efeito

E assim se comporta a nossa ciecircncia Acreditamos que no seu desenvolver-se haacute uma causa e um efeito ou seja um sujeito e um objeto que reage a tal accedilatildeo Mas de fato natildeo eacute isso que ocorre De acordo com Nietzsche o eu-sujeito que age que pensa e que faz acontecer eacute somente uma construccedilatildeo gramatical criada pela linguagem Eacute aquilo que ele denomina como uma ldquocrenccedila da nossa razatildeordquo Em A Vontade de Poder o sujeito eacute apontado como uma invenccedilatildeo ldquonatildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais

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inventado posto por traacutesrdquo (NIETZSCHE 2008 sect 481 p 260)

O sujeito eacute entatildeo o inteacuterprete que noacutes modernos pomos por traacutes da interpretaccedilatildeo Esta accedilatildeo se refere ao proacuteprio pensar Ao pensar acreditamos que exista um eu como causa desse pensar Pensamos que o pensamento parte de uma autonomia da consciecircncia que decide o que pensar como pensar e quando pensar Acostumamos-nos a proceder desse modo todavia para Nietzsche ldquopor mais que essa ficccedilatildeo possa agora ser costumeira e indispensaacutevel ndash isso somente natildeo prova nada contra o seu caraacuteter fictiacutecio uma crenccedila pode ser condiccedilatildeo da vida e apesar disso ser falsardquo (NIETZSCHE 2008 sect 483 p 260) Contudo eacute no paraacutegrafo 484 da mesma obra que o filoacutesofo traacutegico aguccedila sua criacutetica chegando ao cartesianismo ou seja ao modelo de pensamento cartesiano que entende que por traacutes de todo ato inclusive o ato de pensar haja um eu um sujeito que seja a causa da accedilatildeo2 Assim Nietzsche utiliza a palavra latina Cartesius para se referir a Descartes ao declarar que ldquopelo caminho de Cartesius natildeo se chega a algo absolutamente certo mas soacute a um fato de uma crenccedila muito forterdquo (NIETZSCHE 2008 sect 484 p 261) Por isso ao pensar imaginamos que haja um pensante por traacutes ndash penso logo existo (cogito ergo sum) ndash postulamos a crenccedila em uma substacircncia a priori em algo que subjaz ao pensar entretanto ao mesmo tempo somos acolhidos por uma crenccedila Como jaacute foi dito anteriormente esta crenccedila para Nietzsche proveacutem de uma accedilatildeo formulada pelo nosso haacutebito gramatical A constituiccedilatildeo da nossa linguagem definida a partir da relaccedilatildeo sujeitopredicado remete para todo fazer um agente causador Foi esta maneira gramatical de pensar que levou o homem (enquanto o sujeito que age

2 Embora Descartes nunca houvesse utilizado em suas Meditaccedilotildees a palavra sujeito

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o eu consciente) a ldquoagirrdquo sobre a natureza (encarada nas matildeos do sujeito como um objeto) e a interpretar-se como a medida de todas as coisas Passamos a compreender o mundo a partir da loacutegica do sujeito e objeto aquele que age e pratica a accedilatildeo e aquilo que sofre a accedilatildeo que eacute resultado da accedilatildeo e que pode ser algo observaacutevel mensuraacutevel e manipulaacutevel E assim se comporta o homem moderno sobretudo naquilo que concerne agrave atividade cientiacutefica Nessa perspectiva Nietzsche vai dizer que o sujeito eacute a terminologia que nossa crenccedila gramatical construiu para fundamentar uma unidade subjacente que determina o real A partir dessa unidade subjacente acreditamos ser capazes de descrever a realidade e atribuir a ela valor de verdade Achamos que estamos agrave frente de todas as coisas Somos impelidos a imaginar que como agente causador podemos comandar a natureza determinaacute-la e fazecirc-la se comportar conforme nossas accedilotildees

ldquoSujeitordquo ldquoobjetordquo ldquopredicadordquo ndash essas separaccedilotildees foram feitas e agora recobrem como esquemas todos os fatos que aparecem A falsa observaccedilatildeo fundamental eacute a de que creio que sou eu quem faz algo que sofre algo quem ldquotemrdquo algo quem ldquotemrdquo uma propriedade (NIETZSCHE 2008 sect 549 p 284)

Nietzsche ainda pergunta se a crenccedila no conceito de sujeito e predicado natildeo seria uma grande tolice O sujeito como causa natildeo seria um deliacuterio Para ele natildeo possuiacutemos nenhuma experiecircncia de uma causa O que ocorre eacute que esse conceito causa nasce da convicccedilatildeo subjetiva de que noacutes somos a causa Quando falamos caminhamos levantamos o braccedilo acreditamos que somos a causa Entretanto para Nietzsche isso incorre em erro em mal entendido pois procuramos erroneamente um agente para a causa para o fazer e para o acontecer

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ldquoCausardquo natildeo acontece em absoluto no tocante a alguns casos em que nos pareceu dada a partir dos quais a representamos como compreensatildeo do acontecer estaacute provado o auto-engano Nosso ldquoentendimento de um acontecerrdquo consiste em que um sujeito inventado eacute responsabilizado pelo fato de que algo tenha acontecido e de como aconteceu (NIETZSCHE 2008 sect 551 p 285)

Em Aleacutem do Bem e do Mal Nietzsche ainda faz as

seguintes indagaccedilotildees ldquoDe onde retiro o conceito de pensar Por que acredito em causa e efeito O que me daacute o direito de falar em um Eu como causa e por fim de um Eu como causa de pensamentordquo (NIETZSCHE 2005 sect 16 p 21) Jaacute no paraacutegrafo seguinte o filoacutesofo alematildeo reafirma que isso eacute supersticcedilatildeo De acordo com ele acreditar em um sujeito que controla seus proacuteprios pensamentos eacute pura supersticcedilatildeo uma vez que o pensamento vem quando ele quer e natildeo quando eu quero Nesse caso o sujeito eu natildeo eacute a condiccedilatildeo do predicado penso (NIETZSCHE 2005 sect 17 p 22)

O pensar e consequentemente o agir proveacutem natildeo de uma autonomia do sujeito de um eu que pensa ou que pratica uma determinada accedilatildeo Para que se decirc pensamento e accedilatildeo eacute preciso que se decirc primeiramente afecccedilatildeo ou seja um afeto (pathos) que leve o homem a obedecer A obediecircncia soacute se daacute na escuta que eacute proacutepria do afeto Estar na escuta eacute estar disponiacutevel para a afecccedilatildeo para o instante extraordinaacuterio em que a vida nos toca e nos faz sentir como agentes causadores Eacute soacute mediante a afecccedilatildeo que podemos produzir pensamentos praticar a accedilatildeo e ateacute mesmo achar que somos o eu-sujeito responsaacutevel pela causa de tudo

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A questatildeo da verdade As noccedilotildees modernas de sujeito e objeto levaram-nos a compreender a verdade como o que eacute proacuteprio e constitutivo daquilo que se pode observar mensurar e quantificar A verdade se apresentou como o resultado de uma operaccedilatildeo realizada por meio de um meacutetodo capaz de descrever de forma minuciosa aquilo que se estaacute verificando Se antes a verdade consistia naquilo que era definido pelo pensamento metafiacutesico agora jaacute na Modernidade o que prevalece eacute aquilo que concerne agrave atividade cientiacutefica As ldquoverdadesrdquo passaram por meio da anaacutelise cientiacutefica a serem comprovadas legitimadas e validadas Houve entatildeo uma inversatildeo de criteacuterios O que antes era tarefa da metafiacutesica agora eacute campo das ciecircncias O que cabia agrave reflexatildeo agrave contemplaccedilatildeo e agrave deduccedilatildeo definir agora eacute objeto da anaacutelise meticulosa da observaccedilatildeo empiacuterica e da descriccedilatildeo cientiacutefica E para tanto foi de fundamental importacircncia as noccedilotildees modernas de sujeito e objeto Um sujeito capaz de pensar e de agir de forma independente autocircnomo que se julgasse liberto de preconceitos capaz de manipular o objeto e extrair dele todos os seus misteacuterios Mas seria a ciecircncia moderna capaz de descrever a realidade e retirar dela sua verdade Em que consiste a verdade Seria a verdade o produto de uma metodologia Natildeo seria a verdade um valor que atribuiacutemos agraves coisas Concluiacutemos que sim O proacuteprio Nietzsche no paraacutegrafo 481 de A Vontade de Poder quando diz que ldquonatildeo haacute fatos soacute interpretaccedilotildeesrdquo oferece-nos subsiacutedios para sustentar a hipoacutetese de que aquilo que fundamenta a verdade na era moderna pode estar profundamente ligado ao contexto cultural de uma eacutepoca A verdade pode estar inserida no acircmbito das atividades culturais e como tal receber criteacuterios

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de valores que determinam natildeo apenas a verdade mas tambeacutem a falsidade o bem e o mal o melhor e o pior

Mas o que dizer das verdades apresentadas explicadas e comprovadas pela ciecircncia moderna como por exemplo a lei da gravidade ou o movimento dos astros O que dizer daquilo que a ciecircncia informa acerca do planeta terra dos ecossistemas e da anatomia humana Haveria uma verdade legiacutetima naquilo que as ciecircncias declaram Para responder novamente recorremos agravequilo que estaacute ligado agrave cultura3 Eacute o modo de pensar e de agir de uma eacutepoca e de um povo quem define os criteacuterios de verdades Assim sendo verdades que jaacute foram apresentadas pela proacutepria ciecircncia jaacute chegaram a ser reavaliadas a exemplo da exclusatildeo de Plutatildeo da categoria de planeta do nosso sistema solar Mas haveria entatildeo verdades absolutas Falar de verdades absolutas eacute buscar explicaccedilotildees acerca daquilo que fundamenta o real Esse eacute o papel da filosofia desde suas origens na Greacutecia Antiga a busca pelo fundamento daquilo que rege o real Todavia para formular seus conceitos os filoacutesofos foram afetados tambeacutem pela cultura de sua eacutepoca Assim as verdades filosoacuteficas foram elaboradas a partir de conceitos proacuteprios mas que de alguma forma foram influenciados pela cultura A razatildeo filosoacutefica ao longo de toda histoacuteria da filosofia buscou alcanccedilar a verdade absoluta do real mas pouco percebeu que todos os conceitos formulados sobre tal verdade tiveram como pano de fundo a influecircncia cultural No Craacutetilo Platatildeo diz que verdadeiro eacute o discurso que diz as coisas como satildeo Jaacute seu contraponto a saber o

3 Cultura eacute aqui compreendida como o conjunto de modos de vida regras e comportamento adquiridos pelo homem a partir de sua convivecircncia em sociedades Satildeo os costumes haacutebitos linguagens e conhecimentos desenvolvidos por um determinado povo em um determinado lugar e em uma determinada eacutepoca

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falso eacute aquele que diz as coisas como natildeo satildeo A grande questatildeo desta sentenccedila estaacute contida justamente no seu discurso Dizer por meio do discurso o que as coisas satildeo ou natildeo satildeo e daiacute extrair sua veracidade requer a formulaccedilatildeo de juiacutezos e os juiacutezos por sua vez satildeo determinados e construiacutedos culturalmente Nesse caso o discurso sobre a verdade daquilo que eacute ou natildeo eacute prefigura uma tomada de posiccedilatildeo que desde jaacute muito antes eacute estabelecida pela cultura Tambeacutem Aristoacuteteles certa vez mencionou que quando negamos aquilo que eacute e afirmamos aquilo que natildeo eacute incorremos no falso Em contrapartida ao afirmarmos aquilo que eacute e negarmos aquilo que natildeo eacute estamos no acircmbito da verdade Entretanto para negarmos ou afirmarmos algo necessitamos de toda uma gama de experiecircncias que soacute pode nos ser transmitida culturalmente Isto quer dizer que a verdade ou a falsidade das coisas dependem do juiacutezo que eacute formado sobre elas Tal juiacutezo por sua vez proveacutem daquilo que absorvemos de forma cultural atraveacutes da histoacuteria Em outras palavras queremos dizer que ao sermos lanccedilados ao mundo somos situados num ponto do tempo e do espaccedilo e com isso de forma involuntaacuteria absorvemos os costumes os haacutebitos o pensamento a linguagem o comportamento as crenccedilas e o raciociacutenio que nos levam a elaborar criteacuterios de verdades O sujeito que ao observar mensurar e descrever o objeto delimita sua falsidade ou sua verdade jaacute se encontra contagiado por uma carga cultural que determina sua posiccedilatildeo diante da verdade E o que estaria por traacutes disso tudo A abertura a afecccedilatildeo Pela abertura o homem eacute afetado por criaccedilatildeo Em seguida ele passa a criar modos de vida costumes haacutebitos conhecimentos linguagem Tambeacutem surgem novas interpretaccedilotildees perspectivas e valores e satildeo justamente estes valores que iratildeo delimitar os criteacuterios utilizados por um determinado grupo social para definir aquilo que eacute

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compreendido como verdade Neste sentido falar de verdade tal como a compreendemos na Modernidade eacute falar de um juiacutezo pois esta verdade implica uma natildeo-verdade e quando afirmamos uma ou outra o que estaacute por traacutes da nossa decisatildeo eacute aquilo que nos foi passado pela cultura de um tempo de um povo e de um lugar em que estamos inseridos No fundo natildeo somos noacutes que decidimos acerca da verdade seja a partir de nossa autonomia como sujeitos ou a partir de uma verdade absoluta que nos eacute revelada Apenas somos influenciados pela nossa cultura e a partir dela interpretamos as coisas e a chamamos de falsas ou verdadeiras O que jaacute eacute um evento secundaacuterio Consideraccedilotildees finais

Ao que parece a autonomia do sujeito ainda continua sendo uma temaacutetica natildeo superada Filoacutesofos contemporacircneos na linha de Nietzsche e Heidegger como Foucault Derrida e Deleuze permaneceram nessa criacutetica do sujeito ndash autocircnomo dominador e calculador do real ndash e foram por vezes denominados poacutes-modernos Por outro lado a proposta de compreender o homem como sujeito dotado da capacidade de representar impulsionou a forma como muitos refletiram sobre a metafiacutesica moderna O bom de tudo isso talvez seja a natildeo superaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico pois atraveacutes do choque de ideias e da accedilatildeo dialeacutetica do pensamento a filosofia permanece viva para o surgimento e criaccedilatildeo de novas reflexotildees e como diria o proacuteprio Nietzsche novas perspectivas

No que se refere agrave verdade concluiacutemos que esta se encontra profundamente ligada agrave questatildeo cultural Eacute a cultura de uma eacutepoca e de um povo quem determina os criteacuterios de verdades a serem seguidos como referencial Foi assim na Antiguidade na Idade Meacutedia e agora na Modernidade ndash ou Poacutes-modernidade Acreditamos que eacute o

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modo de pensar de uma eacutepoca que influencia diretamente na forma como pensamos Eacute a partir daiacute que elaboramos por meio de perspectivas aquilo que nos aparece como a verdade ndash mesmo que com o passar dos tempos tal verdade caia em desuso

Isso no entanto natildeo se afasta daquilo que Heidegger nos apresentou como desvelamento O desvelamento eacute aquilo que proporciona o desenvolvimento da cultura de onde a partir dela proveacutem os valores de verdades A uacutenica diferenccedila eacute que aquilo que compreendemos por verdade jaacute eacute tambeacutem um fenocircmeno secundaacuterio causado pelo desvelamento Neste caso haacute uma verdade (aleacutetheia) por traacutes de nossa verdade Haacute um desvelamento que nos leva culturalmente a formar os criteacuterios de nossas verdades Referecircncias DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Traduccedilatildeo de Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) FOGEL Gilvan Que eacute filosofia filosofia como exerciacutecio de finitude Aparecida-SP Ideias amp letras 2009 HEIDEGGER Martin Nietzsche II Traduccedilatildeo de Marco Antonio Casanova Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2007 KANT Immanuel Criacutetica da razatildeo pura Traduccedilatildeo de Valeacuterio Rohden e Udo Baldur Moosburger Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

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NIETZSCHE Friedrich Wilhelm A genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das letrascompanhia de bolso 2009 ___________________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Sousa Satildeo Paulo Companhia das letrascompanhia de bolso 2005 ___________________________ A vontade de poder Traduccedilatildeo de Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

Consideraccedilotildees sobre o Conceito

de Existecircncia em S A

Kierkegaard

Ramon Boliacutevar C Germano1

Introduccedilatildeo Natildeo seria fora de propoacutesito parafraseando o

proacuteprio Kierkegaard em sua dissertaccedilatildeo2 falar em um conceito de existecircncia constantemente referido a Kierkegaard Poderiacuteamos ateacute ir mais longe e dizer que se o conceito de ironia entrou no mundo com Soacutecrates o conceito de existecircncia fez sua entrada na contemporaneidade com Kierkegaard Natildeo eacute a toa que o epiacuteteto de ldquopai do existencialismordquo foi colado agraves costas do filoacutesofo como que para zombar de seu esforccedilo ndash assim como nas escolas os alunos mais perversos colam nas costas de outro sem que este o perceba um pedaccedilo de papel com a expressatildeo ldquochute-merdquo para que entatildeo possam chutaacute-lo

O fato eacute que embora Kierkegaard talvez natildeo seja o ldquopai do existencialismordquo sua obra natildeo pode ser pensada fora de seu esforccedilo em direccedilatildeo agrave existecircncia Natildeo se pode negar sem que essa negaccedilatildeo ldquoviolente o fenocircmenordquo que a obra deste autor engolfa-se na existecircncia concreta e a partir dela dirige-se ao indiviacuteduo singular ao ldquohomem de boa vontaderdquo que nos Discursos Edificantes eacute chamado de ldquomeu leitorrdquo e de ldquomeu refuacutegiordquo

Com isso estamos convencidos de que todo e qualquer percurso pela obra de Kierkegaard em muito

1 Doutorando em Filosofia (UFPB-UFPE-UFRN)

2 O Conceito de Ironia constantemente referido a Soacutecrates (KIERKEGAARD 2010b)

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ganharia se compreendesse a existecircncia natildeo soacute como pano de fundo mas como o palco onde tudo se daacute Com efeito toda a sua atividade de escritor parece orientar-se rumo agrave afirmaccedilatildeo da existecircncia ldquopartindo do filosoacutefico do sistemaacutetico para chegar ao simples isto eacute ao existencialrdquo (KIERKEGAARD 2002 p 127) 3

Neste trabalho devemos lanccedilar um olhar mais detido sobre o conceito de existecircncia numa tentativa de elucidaccedilatildeo filosoacutefica do conceito mesmo a partir da compreensatildeo preacutevia da existecircncia como devir e como inter-esse Mas jaacute comeccedilamos no risco de errar Pois quando absorvemos a existecircncia no conceito quando tratamos a existecircncia conceitualmente o que fazemos eacute de fato falsificar a existecircncia transformando-a em algo diferente do que ela de fato eacute Pois o que realmente importa na existecircncia natildeo eacute o ato de pensaacute-la mas o ato de existir nela Em todo caso como natildeo deixamos de existir enquanto pensamos nosso trabalho eacute legiacutetimo e justificado ndash desde que tenhamos sempre em mente que a existecircncia soacute pode ser tratada ldquoexistencialmenterdquo isto eacute que ao tratarmos dela precisamos permanecer continuamente atentos ao fato de que noacutes que investigamos e pensamos ao mesmo tempo existimos e que como tais devemos pensar como existentes e natildeo como seres fantaacutesticos que como gosta de dizer Kierkegaard querem viver sub specie aeterni

Na primeira parte introduzimos a reflexatildeo sobre a existecircncia a partir da correlaccedilatildeo entre os conceitos de devir e liberdade Em seguida (ponto 2) analisamos a determinaccedilatildeo

3 Sempre que possiacutevel citamos as traduccedilotildees de Kierkegaard para o portuguecircs sobretudo as do professor e tradutor Aacutelvaro Luiz M Valls Como ainda estamos distantes de uma ediccedilatildeo das obras completas em nossa liacutengua tivemos que traduzir algumas passagens a partir da ediccedilatildeo digital criacutetica dos Soslashren Kierkegaards Skrifter (SKS) disponiacutevel no siacutetio httpsksdkforsideindholdasp Sempre referenciamos essas traduccedilotildees com a abreviatura ldquoSKSrdquo seguida do nordm do volume e da marcaccedilatildeo da paginaccedilatildeo dos Soslashren Kierkegaards Skrifter

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da existecircncia como interesse para entatildeo passarmos agrave exposiccedilatildeo da existecircncia como negatividade e esforccedilo continuado (ponto 3)

1 Devir e liberdade no Interluacutedio das Migalhas

Filosoacuteficas

O opuacutesculo intitulado Migalhas Filosoacuteficas4 a despeito de seu tom despretensioso eacute de longe uma das obras mais influentes do corpus kierkegaardiano Dizemos ldquoinfluenterdquo natildeo pelo fato de ela ter causado alguma impressatildeo nos leitores da eacutepoca em que foi publicada longe disso mas por ter lanccedilado as bases do problema geral de toda a obra5 ao mesmo tempo em que condicionaria a elaboraccedilatildeo de um dos textos mais relevantes ndash para natildeo dizer a obra capital ndash da produccedilatildeo de Kierkegaard qual seja o Poacutes-Escrito Conclusivo Natildeo Cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas

4 As Migalhas Filosoacuteficas ou um bocadinho de filosofia foram publicadas em 13 de junho1844 cinco dias antes da publicaccedilatildeo de O Conceito de Anguacutestia e dos Prefaacutecios Para as Migalhas Kierkegaard criou um pseudocircnimo Johannes Climacus que mais tarde reapareceria como o autor do Poacutes-Escrito Conclusivo Natildeo Cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas (1846) Climacus natildeo eacute um pseudocircnimo como os demais Ele possui uma biografia uma personalidade e uma psicologia proacuteprias de modo que ateacute poderiacuteamos trataacute-lo como uma personagem Em Johannes Climacus ou De Omnibus Dubitandum Est encontra-se uma descriccedilatildeo de sua vida desde a infacircncia passando pela juventude ateacute o desenvolvimento de suas proacuteprias reflexotildees filosoacuteficas Climacus se declara um pensador incapaz de servir ao Sistema Daiacute o tiacutetulo ironicamente despretensioso de seu opuacutesculo que natildeo pretende ser um sistema de filosofia mas simples Migalhas Filosoacuteficas O tiacutetulo da obra faz referecircncia a uma passagem do Hippias Maior de Platatildeo onde se lecirc ldquondash Mas Soacutecrates que pensas de nossa discussatildeo Como disse haacute pouco satildeo aparas e migalhas de argumentos reduzidos a pedacinhosrdquo (304a)

5 Sobre a enunciaccedilatildeo desse problema conferir Ponto de Vista do meu trabalho como autor (SKS 16) Em portuguecircs KIERKEGAARD 2002 pp 31-32 41 55

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Apesar do papel central desempenhado pelos cinco breves capiacutetulos que formam as Migalhas natildeo nos concentraremos aqui no ldquoexperimento teoacutericordquo de Climacus nem abordaremos os temas do paradoxo absoluto do disciacutepulo contemporacircneo e do disciacutepulo de segunda matildeo O que nos interessa eacute antes uma parte do ensaio que intermedeia os capiacutetulos IV e V e que Climacus resolveu chamar de Interluacutedio Trata-se de um ldquoparecircnteserdquo complexo no qual o tom filosoacutefico se torna mais acentuado do que no restante da obra o que jaacute se pode depreender do seu tiacutetulo que reza ldquoO Passado eacute mais Necessaacuterio do que o Futuro Ou o possiacutevel ao se tornar real tornou-se por isso mais necessaacuterio do que erardquo Ora tais perguntas jaacute indicam que o problema em questatildeo diz respeito agrave relaccedilatildeo entre possibilidade e realidade de um lado e necessidade do outro donde se percebe que o que estaacute em jogo aqui eacute em primeiro lugar a questatildeo metafiacutesica da inter-relaccedilatildeo das categorias modais (possibilidade realidade e necessidade)

A primeira parte do ensaio ndash objeto de nosso interesse aqui ndash introduz a discussatildeo sobre as categorias de modalidade a partir de um questionamento sobre a mudanccedila que caracteriza o vir a ser ou o devir (Tilblivelse) Pergunta o autor ldquoComo eacute que muda o que vem a ser ou qual eacute a mudanccedila (kinesis) proacutepria do devirrdquo (KIERKEGAARD 2008 p 105) Ora a dificuldade inicial consiste no seguinte se aquilo que vem a ser na medida em que deveacutem muda essencialmente entatildeo natildeo eacute isto mesmo que vem a ser mas se por outro lado natildeo se altera quando vem a ser entatildeo natildeo vem a ser propriamente Com outras palavras eacute preciso que haja uma mudanccedila no devir do contraacuterio natildeo seraacute devir nenhum mas natildeo uma mudanccedila na essecircncia do que deveacutem pois neste caso natildeo deveacutem mas deixa de ser o que eacute incorrendo-se assim numa μετάβασις

εἰς ἄλλο γένος (passagem para outro gecircnero)

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Assim sendo se aquilo que vem a ser precisa mudar mas natildeo em sua essecircncia Climacus precisa afirmar que ldquoesta mudanccedila [a mudanccedila do devir] natildeo eacute entatildeo mudanccedila na essecircncia (Vaeligsen) mas no ser (Vaeligren) eacute a mudanccedila do natildeo-ser para o serrdquo (SKS 4 273) No entanto este natildeo-ser que eacute abandonado pelo que vem a ser precisa tambeacutem ser existir6 do contraacuterio a mudanccedila torna-se uma ilusatildeo Entatildeo completa Climacus ldquoMas um tal ser que contudo eacute natildeo-ser eacute a possibilidade e um ser que eacute ser eacute o ser real ou a realidade e a mudanccedila do devir eacute a passagem da possibilidade agrave realidaderdquo (KIERKEGAARD 2008 p 106)

Portanto existe uma mudanccedila no ser que eacute passagem da possibilidade para a realidade sem que haja mudanccedila na essecircncia7 Mas como essa passagem acontece Sua mudanccedila seria necessaacuteria Seu movimento aconteceria na necessidade Com outras palavras o devir se daacute por necessidade ou o necessaacuterio pode devir Segundo Climacus ldquoTodo vir-a-ser eacute um padecer e o necessaacuterio natildeo pode padecer natildeo pode padecer a paixatildeo da realidade que consiste em que o possiacutevel () mostre-se como nada no instante em que vem a ser real pois a possibilidade eacute nadificada pela realidaderdquo (Id Ibid p 106) O necessaacuterio portanto natildeo pode devir e ldquoa uacutenica coisa que natildeo pode devir eacute o necessaacuterio porque o necessaacuterio eacuterdquo (Id Ibid p 106) Embora essa distinccedilatildeo entre o devir e o necessaacuterio possa parecer supeacuterflua ndash afinal natildeo eacute coisa difiacutecil notar que o necessaacuterio natildeo pode incluir em si a possibilidade caracteriacutestica do devir jaacute que eacute uma necessidade ndash o que

6 Cf KIERKEGAARD 2008 p 106

7 Talvez importe lembrar apenas a tiacutetulo de referecircncia que os dois primeiros livros da Ciecircncia da Loacutegica de Hegel em sua primeira parte (A Loacutegica Objetiva) satildeo intitulados respectivamente de ldquoA Doutrina do Serrdquo e ldquoA Doutrina da Essecircnciardquo

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estaacute por traacutes desta distinccedilatildeo eacute justamente a concepccedilatildeo segundo a qual o possiacutevel ao se tornar real tornar-se-ia por isso mais necessaacuterio do que era antes de ter-se efetivado Tal concepccedilatildeo embora erroneamente atribuiacuteda a Hegel remonta na verdade agrave Analiacutetica dos Conceitos de Kant mais precisamente agrave taacutebua das categorias assim como apresentada na Criacutetica da Razatildeo pura (B95) 8 Como se sabe para Kant a terceira categoria de cada grupo eacute resultante da unidade das outras duas precedentes Como ele mesmo escreve em B 110 ldquoHaacute sempre em cada classe um nuacutemero igual de categorias a saber trecircs () Acrescente-se a isso que a terceira categoria resulta sempre da ligaccedilatildeo da segunda com a primeira da sua classe (KANT 2001 p 114) Na classe da modalidade aparecem como primeira e segunda categorias a possibilidade (Moumlglichkeit) e a existecircncia (Dasein) sendo a terceira a necessidade (Notwendigkeit)9 No entender de Kant (B 111) ldquoa necessidade natildeo eacute mais do que a existecircncia dada pela proacutepria possibilidaderdquo (Id Ibid p 114) Eacute por isso que Climacus apoacutes diferenciar a necessidade das outras categorias modais pode perguntar ldquoEntatildeo a necessidade natildeo eacute a unidade de possibilidade e de realidaderdquo (KIERKEGAARD 2008 p 107) E responde da seguinte maneira ldquoPossibilidade e realidade natildeo satildeo diferentes na essecircncia mas no serrdquo (Id Ibid p 107) A afirmaccedilatildeo eacute simples mas diz muito Por um lado se a possibilidade e a realidade natildeo satildeo diferentes na essecircncia

8 Jon Stewart no capiacutetulo intitulado ldquoMartensenrsquos Doctrine of Immanence and Kierkegaardrsquos Transcendence in the Philosophical Fragmentsrdquo (STEWART 2003 p 336 em diante) mostra como a criacutetica de Climacus remonta agrave posiccedilatildeo kantiana e se dirige particularmente agrave Martensen e natildeo propriamente a Hegel

9 Com mais precisatildeo na classe da modalidade as categorias aparecem em pares Moumlglichkeit ndash Unmoumlglichkeit Dasein ndash Nichtsein Notwendigkeit ndash Zufaumllligkeit (B 106)

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entatildeo a passagem da primeira para a segunda natildeo constitui uma mudanccedila essencial de modo que o possiacutevel ao se tornar real natildeo se tornou por isso mais necessaacuterio do que era isto eacute diferente de si mesmo essencialmente Por outro lado se possibilidade e realidade satildeo diferentes no ser sua unidade tampouco pode resultar na necessidade uma vez que esta eacute uma determinaccedilatildeo da essecircncia (a essecircncia do necessaacuterio consiste em ser) e uma mudanccedila no ser (a passagem da possibilidade agrave realidade) natildeo pode resultar numa mudanccedila na essecircncia sem que incorramos novamente

numa μετάβασις εἰς ἄλλο γένος Com isso afirma-se em primeiro lugar que a realidade em sendo o que eacute natildeo eacute diferente na essecircncia da possibilidade ou seja a mesma contingecircncia que caracteriza o possiacutevel de maneira essencial tambeacutem deve valer para a realidade efetiva Em segundo lugar se a mudanccedila do devir eacute a passagem da possibilidade agrave realidade tal mudanccedila natildeo pode acontecer pela ou na necessidade jaacute que esta eacute absoluta e essencialmente diferente do possiacutevel e do real A implicaccedilatildeo eacute clara ldquoA mudanccedila do devir eacute a realidade a passagem acontece pela liberdade Nenhum devir eacute necessaacuterio () Todo devir acontece em liberdade natildeo por necessidaderdquo (Id Ibid p 108) Assim Climacus introduz no devir a determinaccedilatildeo da liberdade e com isso afasta daquilo que vem a ser ndash do passado que deveio do presente que deveacutem e do futuro que haacute de devir ndash a determinaccedilatildeo da necessidade Mas falar do devir como um movimento que acontece pela liberdade implica em compreendecirc-lo no interior de uma ambiguidade que engendra incerteza ou para lembrar a expressatildeo de Haufniensis10 que ldquofaz nascer anguacutestiardquo Vejamos isso de maneira mais detida Em sendo a passagem do natildeo-ser para o ser da possibilidade para a realidade o devir ndash enquanto

10 Heterocircnomo autor de O Conceito de Anguacutestia

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acontecimento na liberdade ndash conserva em si sempre a marca da contingecircncia daquilo que poderia natildeo ser ou daquilo que no que estaacute sendo natildeo eacute Trata-se da incerteza proacutepria do devir que natildeo eacute mais incerta no futuro do que no passado ou seja se aquilo que haacute de vir eacute incerto pois pode muito bem natildeo devir tambeacutem aquilo que deveio eacute igualmente incerto pois ao vir a ser natildeo se torna mais necessaacuterio do que era antes de devir Existe portanto uma negatividade proacutepria do devir que natildeo pode ser confundida com a positividade do necessaacuterio Segundo Climacus a incerteza do devir eacute dupla ldquoo nada do-que-natildeo-estaacute-sendo e a possibilidade anulada que eacute ao mesmo tempo a aboliccedilatildeo de toda outra possibilidaderdquo (Id Ibid p 118) Sendo assim a certeza do devir estaacute sempre em contradiccedilatildeo com uma incerteza essencial de modo que esta ambiguidade entre certeza e incerteza eacute a caracteriacutestica distintiva do devir O Interluacutedio natildeo vai aleacutem no tratamento especiacutefico da noccedilatildeo de devir Importa lembrar que o recorte feito por noacutes aqui se insere em uma discussatildeo muito mais ampla e que demandaria uma anaacutelise mais detalhada da obra desde que nosso objetivo fosse contextualizar a questatildeo do devir no acircmbito do problema geral das Migalhas11 Mas como o que visamos aqui eacute antes de mais uma referecircncia pontual agrave noccedilatildeo de devir ndash tendo em vista sua relaccedilatildeo com a existecircncia ndash parece-nos suficiente o que foi dito ateacute o momento como introduccedilatildeo do tema No que segue ndash ao refletimos sobre a compreensatildeo da existecircncia como interesse junto agraves anaacutelises posteriores da negatividade da existecircncia ndash a compreensatildeo do devir e de sua relaccedilatildeo com a existecircncia naturalmente se tornaraacute mais evidente Por ora eacute suficiente natildeo perdermos de vista a jaacute referida correlaccedilatildeo entre o

11 Um tratamento mais criacutetico da questatildeo pode ser encontrado no texto jaacute referido de Jon Steward (STEWART 2003 p 336 em diante) Para um tratamento mais expositivo conferir (HOWLAND 2006 pp 157-172)

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devir e a liberdade (enquanto determinaccedilatildeo fundamental do devir) o que implica em uacuteltima instacircncia na incerteza objetiva enquanto caraacuteter distintivo daquilo que vem a ser Que o indiviacuteduo existente enquanto existente estaacute continuamente em devir e por conseguinte na incerteza proacutepria do devir eacute o que veremos ao longo deste texto Passemos entatildeo ao segundo ponto sem perdermos de vista que as anaacutelises aqui visam a uma compreensatildeo mais clara do conceito de existecircncia

2 Existecircncia e (eacute) Inter-esse

Por volta do ano de 1843 ndash ano da publicaccedilatildeo de

sua primeira obra ndash Kierkegaard esboccedilara em seus papeacuteis privados os pontos de um ensaio metodoloacutegico de ampla abrangecircncia e que a nosso ver esclarece de maneira bastante pontual uma distinccedilatildeo que acompanharaacute a sua obra como um todo O esboccedilo aparece assim

Sobre os conceitos de Esse e Inter-esse Um ensaio metodoloacutegico As diferentes ciecircncias devem ser ordenadas de acordo com os diferentes modos como acentuam o ser e como a relaccedilatildeo para com o ser lhes daacute vantagens reciacuteprocas

Ontologia Sua certeza eacute absoluta ndash aqui pensamento e ser satildeo um mas em contrapartida essas ciecircncias satildeo hipoteacuteticas

Matemaacutetica

Ciecircncia-Existencial (SKS 27 271)

A primeira coisa que chama nossa atenccedilatildeo neste esboccedilo metodoloacutegico eacute o fato de Kierkegaard intitulaacute-lo de

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ldquoSobre os conceitos de Esse e Inter-esserdquo ao mesmo tempo em que omite esses termos no corpo do ldquoensaiordquo apenas falando no correspondente dinamarquecircs para Esse qual seja Vaeligren (Ser) sem se pronunciar diretamente sobre o Inter-esse Eacute preciso entatildeo buscar os significados nas entrelinhas pois tambeacutem aqui Kierkegaard se pronuncia de maneira indireta o que se pode muito bem notar pela omissatildeo da explicaccedilatildeo daquilo que ele mesmo chama de Existentiel-Videnskab (CiecircnciaSaber-Existencial) Ora a primeira conclusatildeo que podemos tirar deste esboccedilo eacute justamente a de que a ontologia e a matemaacutetica se contrapotildeem agrave ciecircncia-existencial segundo o modo em que as primeiras e a segunda acentuam o ser Pois bem se o esboccedilo quer ser um ensaio metodoloacutegico sobre os conceitos de Esse e de Inter-esse tudo indica na direccedilatildeo de que a ontologia e a matemaacutetica estatildeo inseridas no domiacutenio do Esse enquanto a ciecircncia-existencial no acircmbito do Inter-esse Isso porque somos levados a ler este esboccedilo ndash e o leitor haacute de concordar conosco neste ponto ndash como a exposiccedilatildeo de duas vias distintas de relaccedilatildeo para com o ser tais que a compreensatildeo de uma eacute esclarecida pela sua diferenciaccedilatildeo frente agrave outra Sendo assim a explicaccedilatildeo dada agrave primeira divisatildeo (Ontologia e Matemaacutetica) parece servir de base para a compreensatildeo da ciecircncia-existencial embora natildeo tenhamos elementos seguros para simplesmente deduzir a explicaccedilatildeo desta uacuteltima a partir de uma inversatildeo da primeira Como veremos a elucidaccedilatildeo do que aqui eacute chamado de ciecircncia-existencial depende antes de tudo da compreensatildeo da existecircncia mesma e do modo como podemos pensaacute-la Natildeo eacute uma tarefa faacutecil O proacuteprio Climacus jaacute havia dito no Poacutes-Escrito que a existecircncia eacute uma coisa muito difiacutecil de lidar Seria um consolo se pudeacutessemos desmenti-lo e mostrar que a existecircncia eacute coisa muito faacutecil de lidar mas receamos que Climacus esteja certo e que a tarefa natildeo seja coisa simples Em todo caso nosso esforccedilo aqui deve ser o de lidar com a existecircncia e ao fazecirc-lo

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mostrar a dificuldade da lida como a dificuldade proacutepria da existecircncia Se algumas passagens do percurso textual se mostrarem agrave primeira vista ligeiramente confusas com o avanccedilo da discussatildeo certamente ficaratildeo mais bem esclarecidas claro desde que natildeo se tornem ainda mais confusas Partamos pois de uma distinccedilatildeo apresentada em uma conhecida nota de rodapeacute das Migalhas Filosoacuteficas entre dois modos de se acentuar o ser como ser de fato e como ser ideal Ao discutir uma afirmaccedilatildeo de Espinosa segundo a qual quanto mais perfeita uma coisa eacute tanto mais existecircncia e necessidade envolve e vice-versa Climacus escreve

Ele [Espinosa] explica perfectio por realitas esse de modo que quanto mais perfeito algo eacute mais ele eacute poreacutem sua perfeiccedilatildeo consiste em ter mais esse isto quer dizer entatildeo que quanto mais algo eacute tanto mais eacute [] O que estaacute faltando aqui eacute uma distinccedilatildeo entre ser de fato e ser ideal O uso em si e por si nada claro de se falar em mais ou menos ser e consequentemente em graus de realidade ou do ser torna-se ainda mais confuso quando aquela distinccedilatildeo acima natildeo eacute feita () Em relaccedilatildeo ao ser fatual natildeo tem nenhum sentido falar de mais ou menos ser Uma mosca se ela eacute tem tanto ser quanto o deus () pois quanto ao ser de fato vale a dialeacutetica de Hamlet ser ou natildeo-ser O ser de fato eacute totalmente indiferente agrave diversidade de toda e qualquer definiccedilatildeo essencial e tudo que existe participa do ser sem ciuacuteme mesquinho e participa no mesmo grau Idealmente o caso eacute bem diferente isto eacute totalmente certo Mas no momento em que eu falo de ser no sentido ideal natildeo mais falo do ser mas da essecircncia (KIERKEGAARD 2008 p 67)

Climacus mostra primeiramente como a confusatildeo entre ser de fato (faktisk Vaeligren) e ser ideal (ideel Vaeligren) leva Espinosa a falar em mais ou menos ser ou em graus de

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realidade ou de existecircncia o que natildeo se pode aplicar ao ser de fato isto eacute agravequilo que simplesmente por estar aiacute jaacute eacute o que eacute Ora ao tratar dos termos em questatildeo de maneira indistinta Espinosa acaba por conceber o ser de fato idealmente incorrendo em um mal-entendido que impede que a verdadeira dificuldade se apresente Com efeito ao ser concebido idealmente natildeo eacute mais do ser de fato que se fala mas da ldquoideiardquo ou do ldquoconceitordquo de ser de fato quer dizer fala-se do concreto de maneira abstrata e assim abre-se matildeo do concreto Por isso Climacus pode afirmar que quando se fala de ser no sentido ideal natildeo se fala mais do ser mas sim de algo outro isto eacute da essecircncia (uma idealidade) Outra citaccedilatildeo essa dos Papiper12 poderaacute nos ajudar a compreender melhor o que estaacute em questatildeo aqui Segundo Kierkegaard

O que confunde toda a ideia de ldquoessecircnciardquo na loacutegica eacute que a atenccedilatildeo natildeo eacute dada ao fato de que ela opera continuamente com o ldquoconceitordquo existecircncia Mas o ldquoconceitordquo existecircncia eacute uma idealidade e a dificuldade eacute apenas se existecircncia eacute absorvida no conceito Assim Spinoza pode estar certo essentia involvit existentiam a saber o conceito-existecircncia ou seja existecircncia na idealidade Por outro lado Kant estaacute certo em dizer ldquoExistecircncia natildeo adiciona nenhum predicado a um conceitordquo K pensa manifestamente na existecircncia como natildeo sendo absorvida no conceito a existecircncia empiacuterica Em todas as relaccedilotildees de idealidade vale que essentia eacute existentia ndash se de outro modo o seu uso eacute vaacutelido aqui

12 Os Papirer satildeo os ldquopapeacuteisrdquo deixados por Kierkegaard ndash comentaacuterios pessoais esboccedilos notas ensaios etc etc Satildeo uma peccedila importante na constituiccedilatildeo do corpus autoral de Kierkegaard Os Papirer revelam nuances que os textos publicados inevitavelmente omitem

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A afirmaccedilatildeo leibniziana Se Deus eacute possiacutevel ele eacute necessaacuterio estaacute totalmente certa Nada eacute acrescentado a um conceito se ele tem existecircncia ou natildeo eacute uma questatildeo de completa indiferenccedila ele realmente tem existecircncia isto eacute existecircncia-conceito existecircncia ideal (SKS 22 433 NB 14)

Estaacute claro que a principal distinccedilatildeo feita aqui eacute entre a existecircncia de fato por um lado e a ldquoexistecircncia-conceitordquo a existecircncia compreendida idealmente por outro Trata-se a nosso ver da mesma distinccedilatildeo entre ser de fato e ser ideal embora apresentada em outros termos Importa neste caso que natildeo se confunda a existecircncia ideal com a existecircncia concreta ndash ou natildeo se tome o ser de fato como ser ideal Com efeito tratada a partir desta indistinccedilatildeo a dificuldade natildeo se pode apresentar Ao se confundir ser de fato e ser ideal a existecircncia acaba sendo concebida abstratamente ou seja essecircncia e existecircncia passam a se corresponder mas de modo que a existecircncia aqui eacute compreendida abstratamente como existecircncia ideal No entanto a determinaccedilatildeo puramente ideal da existecircncia pode muito bem corresponder agrave essecircncia mas natildeo pode ser confundida com a existecircncia concreta Eacute o que Kierkegaard pretende mostrar quando afirma que o mote de Espinosa essentia involvit existentiam estaacute correto desde que aqui se compreenda por ldquoexistecircnciardquo a existecircncia na idealidade absorvida no conceito ou seja existecircncia no pensamento (Tanke-Existents) Mas essa existecircncia ideal ainda eacute existecircncia no sentido proacuteprio do termo E que ldquosentido proacutepriordquo seria esse Tais questionamentos nos remetem de fato agrave dificuldade sobre a qual Espinosa natildeo quis se pronunciar Isso porque ao ser concebida idealmente a existecircncia perde seu traccedilo distintivo que aleacutem de lhe dar o seu ldquosentido proacutepriordquo mostra ao mesmo tempo qual eacute a verdadeira dificuldade Devemos entatildeo nos concentrar neste

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traccedilo distintivo da existecircncia a fim de compreendermos esta dificuldade Para tanto faccedilamos uma referecircncia inicial ao opuacutesculo publicado postumamente sob o tiacutetulo Johannes Climacus ou De Omnibus Dubitandum Est13 onde a existecircncia eacute definida como consciecircncia e interesse No primeiro capiacutetulo da Pars Secunda o autor investiga como deve ser definida e existecircncia para que seja possiacutevel duvidar A questatildeo leva-o diretamente agrave busca da possibilidade ideal da duacutevida na consciecircncia ou seja precisava descobrir como a consciecircncia deveria ser para que fosse possiacutevel ao sujeito duvidar Com isso o texto identifica a existecircncia com a consciecircncia a busca de como deve ser definida a existecircncia para que seja possiacutevel duvidar leva o autor a defini-la indiretamente como consciecircncia A pergunta entatildeo recai sobre esta uacuteltima como deve ser definida a consciecircncia para que seja possiacutevel duvidar A reposta obviamente deve ser uma elucidaccedilatildeo do que o autor entende por consciecircncia e por conseguinte ndash jaacute que consciecircncia e existecircncia aparecem como sinocircnimos ndash do que se entende aqui por existecircncia Ali podemos ler o seguinte ldquoA imediatidade eacute a realidade a linguagem eacute a idealidade a consciecircncia eacute a contradiccedilatildeo No momento em que anuncio a realidade surge a contradiccedilatildeo pois o que eu digo eacute a idealidaderdquo (KIERKEGAARD 2003 p 108) Haacute portanto dois acircmbitos distintos o da realidade cuja forma eacute a imediatidade e o da idealidade que eacute mediatidade (palavra linguagem) A consciecircncia natildeo eacute nenhum dos dois separadamente mas a contradiccedilatildeo ldquoA realidade natildeo eacute a consciecircncia a idealidade tampouco e contudo a consciecircncia natildeo existe sem ambas e esta contradiccedilatildeo eacute o ser da consciecircncia e sua essecircnciardquo (Id Ibid p 110) Note-se que a consciecircncia natildeo eacute uma simples relaccedilatildeo mas uma relaccedilatildeo cuja forma eacute a contradiccedilatildeo Se se anula a

13 SKS 15 13-53

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contradiccedilatildeo anula-se com ela a consciecircncia Aleacutem disso a consciecircncia natildeo se identifica simplesmente com a reflexatildeo jaacute que esta eacute pressuposto daquela ldquoa reflexatildeo eacute a possibilidade da relaccedilatildeo a consciecircncia eacute a relaccedilatildeo cuja forma primeira eacute a contradiccedilatildeordquo (Id Ibid p 111) A reflexatildeo determina a dicotomia ndash por exemplo realidade e idealidade ndash enquanto a consciecircncia eacute sempre tricotocircmica jaacute que consiste na relaccedilatildeo contraditoacuteria e natildeo em cada uma das partes separadamente

A reflexatildeo eacute a possibilidade da relaccedilatildeo Isso tambeacutem pode ser expresso da seguinte forma a reflexatildeo eacute desinteressada A consciecircncia ao contraacuterio eacute a relaccedilatildeo e portanto o interesse dualidade que se exprime inteiramente e com concisa ambiguidade na palavra interesse (interesse) (Id Ibid p 113)

A consciecircncia portanto eacute um ldquoserrdquo (esse) ldquoentrerdquo (inter) Trata-se da expressatildeo de uma dualidade ou de uma ambiguidade essencial que relaciona de modo contraditoacuterio elementos que tendem a negar-se mutuamente A idealidade e a realidade a finitude e a infinitude o eterno e o temporal satildeo inter-relacionados de modo que a forma dessa relaccedilatildeo eacute a proacutepria contradiccedilatildeo Sendo assim a resposta dada agrave questatildeo que intitula o capiacutetulo a saber ldquoComo deve ser definida a existecircncia para que seja possiacutevel duvidarrdquo eacute esta a existecircncia eacute inter-esse Justamente porque eacute interesse a existecircncia traz em si a possibilidade da duacutevida que se sustenta naquela contradiccedilatildeo essencial Se a existecircncia natildeo fosse interesse mas um esse qualquer entatildeo natildeo poderiacuteamos falar em duacutevida ou em incerteza pois de fato teriacuteamos uma certeza firme (o esse) Mas como o esse da existecircncia eacute um inter-esse o que existe aiacute eacute um confronto um embate no qual nenhuma das partes pode sobrepor-se agrave outra sem ser ao mesmo tempo sobreposta Significa que a certeza fica suspensa na contradiccedilatildeo e entatildeo a duacutevida torna-se possiacutevel

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E com isso nos aproximamos daquela dificuldade da qual falaacutevamos acima Em sendo interesse a existecircncia eacute uma dificuldade para o existente por este ser composiccedilatildeo do eterno e do temporal do ideal e do real do finito e do infinito etc situada na existecircncia Note-se que aqui natildeo se trata obviamente da existecircncia meramente fatual como o estar aiacute de uma rocha ou uma rosa mas da existecircncia strictu sensu existecircncia que eacute interesse para o existente Com isso fica claro que falar em uma existecircncia ideal eacute abrir matildeo da dificuldade proacutepria da existecircncia Como diziacuteamos para Climacus o mote de Espinosa essentia involvit existentiam baseia-se na compreensatildeo abstrata da existecircncia isto eacute na existecircncia absorvida no conceito ou seja existecircncia no pensamento (Tanke-Existents) Agrave nossa pergunta se essa existecircncia ideal ainda eacute existecircncia no sentido proacuteprio podemos muito bem responder que natildeo pois compreendida como uma existecircncia no pensamento a existecircncia natildeo eacute mais interesse mas ldquoexistecircnciardquo desinteressada Ora no momento em que a existecircncia eacute absorvida no conceito tornando-se uma idealidade produz-se entatildeo uma outra coisa que natildeo eacute mais a existecircncia jaacute que esta como temos visto natildeo eacute a idealidade mas a relaccedilatildeo de idealidade e realidade cuja forma eacute a contradiccedilatildeo Sendo assim o problema de se conceber a existecircncia como uma determinaccedilatildeo puramente abstrata eacute que ldquona linguagem da abstraccedilatildeo nunca aparece aquilo que constitui a dificuldade da existecircncia e do existenterdquo (SKS 7 247) 14 Isso porque a abstraccedilatildeo prescinde do concreto do

14 Atualmente (2015) temos disponiacutevel em portuguecircs apenas a primeira parte do Poacutes-Escrito Conclusivo natildeo cientiacutefico agraves Migalhas Filosoacuteficas de Johannes Climacus O professor e tradutor Aacutelvaro Valls gentilmente nos cedeu parte de sua traduccedilatildeo do segundo volume que ao que tudo indica natildeo tarda em ter sua primeira ediccedilatildeo Utilizamos a traduccedilatildeo ineacutedita de Valls como fonte de apoio para algumas passagens da

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devir do interesse da existecircncia e portanto ldquoda dificuldade do existente por este ser composiccedilatildeo do eterno e do temporal situada na existecircnciardquo (SKS 7 247) Para usar os termos da discussatildeo feita acima diriacuteamos que a dificuldade consiste em apreender o ser de fato e introduzir a idealidade (o ser ideal) na esfera do ser de fato15 afirmando assim a contradiccedilatildeo que a existecircncia eacute A tendecircncia em pensar a existecircncia sob o aspecto da eternidade (sub specie aeligterni) implica na abstraccedilatildeo da dificuldade de pensaacute-la dentro da contradiccedilatildeo que lhe eacute essencial Mais ainda o simples fato de fazer da existecircncia um objeto do pensamento quer dizer o simples fato de pensaacute-la constitui jaacute uma dificuldade Com efeito pensar a existecircncia em abstraccedilatildeo eacute o mesmo que superaacute-la ou anulaacute-la ldquoPensando-a eu a supero e entatildeo natildeo a pensordquo (SKS 7 281) Mas e se aquele que pensa estiver existindo Note-se que neste caso a dificuldade retorna uma vez que ldquoa existecircncia os coloca juntos pois o pensante existerdquo (Idem) Significa dizer que seu pensamento natildeo eacute de todo desprovido de existecircncia afinal natildeo eacute o pensamento de um ser puramente ideal mas de um sujeito existente que pensa Pensar a existecircncia eacute entatildeo superaacute-la mas como aquele

segunda parte do Poacutes-Escrito Assim embora as traduccedilotildees que seguem sejam nossas precisamos reconhecer que sem o aval do texto de A Valls natildeo estariacuteamos seguros quanto agraves nossas proacuteprias traduccedilotildees jaacute que nosso conhecimento do dinamarquecircs de Kierkegaard eacute incipiente

15 Na nota citada acima Climacus mostra essa contradiccedilatildeo de maneira ainda mais intensa ao dizer que ldquoa dificuldade consiste em chegar a apreender o ser de fato e introduzir dialeticamente a idealidade de Deus na esfera do ser de fatordquo (KIERKEGAARD 2008 p 67) A dificuldade aqui eacute maior justamente porque Deus eacute a idealidade suprema que enquanto tal tem a necessidade Introduzir essa idealidade na esfera do ser de fato natildeo constitui apenas uma dificuldade mas algo que de tatildeo contraditoacuterio chega a ser um absurdo Obviamente o que estaacute em jogo aqui eacute a realidade do Deus encarnado No Poacutes-Escrito Climacus refere-se agrave ldquocategoria do absurdordquo como traccedilo distintivo do cristianismo (Cf KIERKEGAARD 2013 p 216)

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que pensa existe ndash e natildeo pode prescindir do existir para pensar ndash esse seu pensamento ainda conserva uma ligaccedilatildeo inexoraacutevel com a existecircncia Climacus expressa isso dizendo que ldquoa existecircncia juntou o pensar com o existirrdquo e que por isso mesmo haacute dois acircmbitos o da abstraccedilatildeo e o da realidade Mas a dificuldade estaacute no fato de que a realidade natildeo pode ser expressa na linguagem da abstraccedilatildeo ldquoA realidade [Virkeligheden] eacute um inter-esse entre a unidade hipoteacutetica da abstraccedilatildeo de pensar e serrdquo (SKS 7 286) Aqui precisamos apurar nossa atenccedilatildeo Climacus refere-se agrave unidade entre ser e pensar ndash expressatildeo fundamental da filosofia hegeliana ndash como uma unidade hipoteacutetica da abstraccedilatildeo A realidade pelo contraacuterio eacute o inter-esse em meio a ser e pensar e portanto natildeo eacute nem o puro pensar nem o puro ser (que satildeo o mesmo) mas justamente o momento (real) da separaccedilatildeo de ser e pensar Na existecircncia a identidade ideal de pensar e ser eacute cindida ldquoum ser humano pensa e existe e a existecircncia separa pensamento e ser os manteacutem afastados um do outro em sucessatildeordquo (SKS 7 303) No pensamento abstrato daacute-se algo diferente pensar e ser satildeo um soacute mas precisamente porque aqui se abstrai da existecircncia Como explica Climacus

A afirmaccedilatildeo filosoacutefica da identidade entre ser e pensar eacute exatamente o oposto do que parece ser eacute a expressatildeo de que o pensamento deixou completamente a existecircncia que emigrou e encontrou um sexto continente onde eacute absoluto e autossuficiente na identidade absoluta do pensamento e do ser (SKS 7 302)

Sendo assim o puro pensar natildeo guarda relaccedilatildeo com a existecircncia mas tenta a todo tempo abstrair do fato de que o ser humano enquanto sujeito existente estaacute em contiacutenuo devir e interessado em sua proacutepria existecircncia Natildeo gostariacuteamos de ir aleacutem nesta discussatildeo mas importa salientar que existe

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aqui uma criacutetica especiacutefica agrave pretensatildeo da filosofia hegeliana que ao iniciar com o puro pensar pretende a partir daiacute incluir a existecircncia no Sistema Por ora basta que estejamos atentos ao fato de que sendo inter-esse a existecircncia constitui um estado intermediaacuterio no qual a certeza objetiva do pensar abstrato eacute posta de lado como fantasmagoria restando agravequele que existe a incerteza da vida terrena sua inconclusividade e negatividade Eacute o que veremos logo em seguida Antes uma uacuteltima palavra sobre o ldquoensaio metodoloacutegicordquo com o qual abrimos nossa discussatildeo Depois do que foi exposto torna-se mais claro que o que ali era chamado de Ciecircncia-Existencial corresponde ao saber que se volta natildeo para a identidade de pensar e ser (Ontologia e matemaacutetica) mas para o Inter-esse enquanto um estado intermediaacuterio no qual ser e pensar permanecem separados Tal saber natildeo se caracteriza por um pensamento abstrato mas por um ldquopensamento concretordquo que enquanto tal natildeo alcanccedila a certeza absoluta mas em contrapartida natildeo eacute hipoteacutetico Tal ldquociecircnciardquo deve ter sua forma de pensar proacutepria de modo a repercutir em si o interesse proacuteprio da existecircncia E aquele que no acircmbito deste saber existencial se diz ldquopensadorrdquo natildeo pode excluir a existecircncia do seu pensamento mas precisa ser um pensador subjetivo existente

3 Incerteza objetiva e negatividade a existecircncia

como esforccedilo continuado

Vimos acima como o devir enquanto passagem da possibilidade para a realidade ndash ou como um movimento que acontece pela liberdade ndash eacute em si mesmo indeterminaccedilatildeo inconclusividade negatividade que angustia numa palavra eacute de todo incerto Dizer que o sujeito existente estaacute continuamente vindo a ser equivale a

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dizer que ele eacute livre e que se angustia16 de modo que a existecircncia enquanto devir traz sempre consigo o negativo algo que escapa agrave apreensatildeo objetiva algo que natildeo possui certeza positiva que pode natildeo ser o que Climacus tentou expressar quando falava em um ldquonada do-que-natildeo-estaacute-sendordquo De igual modo em sendo inter-esse a existecircncia eacute em si mesma contraditoacuteria suspendendo todo saber positivo sobre si mesma e deixando o sujeito existente entregue agrave incerteza e agrave negatividade sem garantias objetivas

No Poacutes-Escrito Climacus serve-se por analogia do Eros do Banquete platocircnico para definir a natureza da existecircncia Escreve ele

De acordo com Platatildeo Penuacuteria e Recurso geraram portanto Eros cuja natureza eacute formada a partir de ambos Mas o que eacute a existecircncia Eacute aquela crianccedila que foi gerada pelo infinito e o finito pelo eterno e o temporal e que por isso estaacute continuamente esforccedilando-se (KIERKEGAARD 2013 p 96)

Estaacute claro que a analogia confirma o que diziacuteamos

acima a existecircncia eacute o engendramento de contraacuterios uma siacutentese estabelecida em tensatildeo constante e que enquanto tal exige do existente um esforccedilo sempre renovado na lida com essa situaccedilatildeo criacutetica17 Enquanto composiccedilatildeo do eterno e do temporal do finito e do infinito a existecircncia guarda em si uma negatividade cujo fundamento reside justamente nesta siacutentese contraditoacuteria Ora se o eterno vem a ser no tempo ou se o infinito une-se ao finito na existecircncia cada contraacuterio nega-se mutuamente de modo

16 Sobre a relaccedilatildeo entre devir liberdade e anguacutestia Cf O Conceito de Anguacutestia (KIERKEGAARD 2010a)

17 Em A Doenccedila para Morte Anti-Climacus define a situaccedilatildeo do homem ndash considerado como espiacuterito Selv ndash explicitamente como uma situaccedilatildeo criacutetica (Cf SKS 11 141)

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que toda certeza positiva eacute posta em suspenso conforme mostra Climacus

A negatividade que haacute na existecircncia ou melhor a negatividade do sujeito existente (que o seu pensamento deve repercutir essencialmente em uma forma adequada) funda-se na siacutentese do sujeito no fato de ele ser um espiacuterito infinito existente A infinitude e o eterno satildeo a uacutenica certeza mas desde que esta estaacute no sujeito estaacute na existecircncia e a primeira expressatildeo para isso eacute seu engano e a imensa contradiccedilatildeo de que o eterno vem a ser de que ele surge (Id Ibid p 85)

A negatividade do sujeito existente funda-se portanto na siacutentese no interesse do sujeito isto eacute no fato de que o homem eacute um ldquoespiacuterito infinito existenterdquo Note-se ldquoinfinitordquo e ldquoexistenterdquo o que constitui a tensatildeo contraditoacuteria Ao falar nestes termos Climacus enfatiza primeiramente a situaccedilatildeo interessada do sujeito existente cuja forma eacute uma ldquoimensa contradiccedilatildeordquo Mas essa contradiccedilatildeo perceba-se eacute justamente a de que o eterno deveacutem ou seja eacute a contradiccedilatildeo proacutepria do devir E o que fundamenta aquela negatividade eacute precisamente essa ldquoimensa contradiccedilatildeordquo pois nela a certeza objetiva torna-se suspeita ou aparece como engano (Svig) Eacute este engano que constitui a negatividade pois nele aquilo que seria certo torna-se suspeito afinal estaacute comprometido numa contradiccedilatildeo Em relaccedilatildeo a isso um exemplo dado pelo autor eacute esclarecedor o sujeito existente eacute eterno mas ao mesmo tempo enquanto existente eacute temporal ndash siacutentese devir interesse Pois bem o que torna a infinitude suspeita o seu engano eacute que a possibilidade da morte (a finitude) estaacute sempre presente a todo o instante ldquoToda confianccedila positiva estaacute entatildeo posta sob suspeitardquo (KIERKEGAARD 2013 p 85) A possibilidade da morte impossibilita qualquer certeza positiva em relaccedilatildeo agrave infinitude pois na

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finitude a infinitude torna-se uma possibilidade que enquanto tal relaciona-se essencialmente com o porvir e que por conseguinte eacute algo completamente incerto Em outras palavras quando o eterno vem a ser (deveacutem) o que se obteacutem natildeo eacute o eterno sub specie aeterni mas o eterno sob o aspecto da contradiccedilatildeo cuja expressatildeo eacute o porvir Como escreve Climacus ldquoquando eu junto a eternidade e o devir natildeo obtenho sossego mas porvirrdquo (SKS 7 280) Mas o porvir eacute justamente a morada da possibilidade onde tudo eacute incerto Ora tal incerteza notemos bem eacute a insiacutedia da infinitude e do eterno na existecircncia Para nos aproveitarmos da analogia com o Banquete diriacuteamos que a infinitude eacute aquilo que nunca podemos assegurar definitivamente mas que soacute pode ser assegurada por um esforccedilo incessante de retomada e de conquista reiterada ndash o que a natureza de Eros (filho de Penia e Poros) expressa muito bem Mas embora seja a insiacutedia da infinitude essa incerteza objetiva eacute ao mesmo tempo a forma de expressatildeo da infinitude na existecircncia quer dizer sua insiacutegnia Significa que o eterno a infinitude soacute pode se expressar no devir de maneira objetivamente incerta como algo que escapa agrave apreensatildeo objetiva do sujeito existente e que soacute pode ser assegurado pelo empenho da subjetividade existente18 Esse empenho ou esforccedilo do sujeito existente pode ser

18 Aqui precisariacuteamos de um esclarecimento que os limites de nosso trabalho natildeo permitem oferecer Por enquanto basta que fique claro que a incerteza objetiva em relaccedilatildeo a algo ndash por exemplo agrave imortalidade ndash natildeo pode ser superada objetivamente como se atraveacutes de algum meio objetivo (uma investigaccedilatildeo uma prova uma demonstraccedilatildeo) tal incerteza se tornasse mais certa ou menos incerta do que eacute Pelo contraacuterio a certeza da imortalidade soacute pode existir para a subjetividade mas de tal forma que a incerteza objetiva seja mantida e sustentada pela paixatildeo da subjetividade paixatildeo essa que natildeo quer extirpar a incerteza mas que crecirc apesar da incerteza objetiva Assim o peso eacute posto na subjetividade

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muito bem designado pela palavra paixatildeo Nesse sentido faccedilamos uma citaccedilatildeo mais longa que ilustra bem o que aqui queremos destacar a saber que a existecircncia na incerteza objetiva e na negatividade que lhe satildeo proacuteprias exige do sujeito existente um esforccedilo continuado ou uma paixatildeo viva Diz Climacus

O existir () natildeo pode prescindir da paixatildeo () Muitas vezes pensei como se poderia levar um homem agrave paixatildeo Pensei entatildeo se eu poderia montaacute-lo num cavalo e fazer este desembestar no mais selvagem galope ou ainda melhor a fim de fazer surgir a paixatildeo se eu pudesse tomar um homem que quisesse chegar a um lugar o mais raacutepido possiacutevel (portanto jaacute algo apaixonado) e montaacute-lo num cavalo que mal pudesse andar e no entanto o existir eacute assim quando se estaacute consciente dele Ou se numa carroccedila de um cocheiro que de outra maneira natildeo pudesse chegar agrave paixatildeo se atrelassem um Peacutegaso e um Pangareacute e se lhe dissesse ldquoVai avante jaacuterdquo ndash aiacute eu acho que conseguiria E assim eacute o existir quando se estaacute consciente dele A eternidade como aquele cavalo alado eacute infinitamente raacutepida a temporalidade eacute um pangareacute e o existente eacute o cocheiro quando a existecircncia natildeo deve ser o que se costuma chamar de existecircncia pois nesse caso o existente natildeo seria o cocheiro mas um camponecircs becircbado deitado e dormindo na carroccedila e que deixa os cavalos por conta proacutepria Entenda-se ele tambeacutem guia ele tambeacutem eacute cocheiro e da mesma forma talvez haja muitos que ndash tambeacutem existem (SKS 7 283-4)

A paixatildeo entatildeo eacute um esforccedilo constante de manutenccedilatildeo19 da tensatildeo que a proacutepria existecircncia eacute A

19 Usamos a palavra em seu sentido etimoloacutegico de ldquoato de segurar ou sustentar com a matildeordquo o que combina com a imagem dos dois cavalos

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eternidade e a temporalidade ndash tais como um Peacutegaso e um rocim atrelados ao mesmo carro ndash precisam ser sustentadas ambas sem que uma seja mantida em detrimento da outra Assim a paixatildeo consiste em permanecer na temporalidade e ao mesmo tempo sem abrir matildeo da temporalidade colocar-se eternamente aleacutem da temporalidade Natildeo se trata de tornar-se eterno como se natildeo se estivesse na temporalidade nem tampouco de agarrar-se agrave temporalidade em detrimento do eterno Eacute preciso primeiro tomar consciecircncia de que se existe e que em se tratando da existecircncia a dificuldade eacute viver na tensatildeo e natildeo existir como se natildeo houvesse contradiccedilatildeo ou como se esta tivesse sido superada Como escreve Climacus ldquoMas existir de verdade ou seja penetrar sua existecircncia com consciecircncia e ao mesmo tempo eternamente colocar-se aleacutem da existecircncia e ainda presente nela e ainda assim no devir isso eacute realmente difiacutecilrdquo (SKS 7 281) Para expressar essa paixatildeo que eacute esforccedilo continuado Climacus serve-se de uma imagem tomada de Lessing cujo valor representativo nos obriga a citaacute-la na iacutentegra Diz Lessing

Se Deus me oferecesse fechada em Sua matildeo direita toda a verdade e em Sua matildeo esquerda o impulso uacutenico sempre animado para a verdade embora com o acreacutescimo de me enganar sempre e eternamente e me dissesse Escolhe ndash eu me prostraria com humildade ante Sua matildeo esquerda e diria Pai daacute-me pois a verdade pura eacute de fato soacute para Ti e mais ningueacutem (KIERKEGAARD 2013 p 110)

pois se trata de sustentar com as matildeos as reacutedeas de ambos sem largaacute-los deixando-os por si soacutes ndash assim com a eternidade e a temporalidade

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O meacuterito de Lessing aqui eacute justamente o de falar como um indiviacuteduo que estaacute consciente de sua existecircncia O impulso uacutenico sempre animado [den einzigen immer regen Trieb] aponta para a inconclusividade ou incompletude da existecircncia Se a verdade pura eacute de fato soacute para Deus cabe ao existente seguir no esforccedilo continuado para ou em direccedilatildeo agrave verdade de modo que esta para o existente seraacute justamente esse impulso uacutenico ou esse esforccedilo constante e natildeo simplesmente um objeto que ele enfim conhece Eacute isso que Lessing pretende enfatizar quando reforccedila que Deus junto com o impulso uacutenico para a verdade acrescentaria um veto um impedimento mantenedor desse impulso ndash como que um ldquoenganordquo que manteria o impulso sempre vivo e animado Com outras palavras o meacuterito de Lessing eacute o de refletir subjetivamente sobre a verdade ou seja pensar a verdade em sua relaccedilatildeo com o sujeito existente natildeo como um objeto mas como a apropriaccedilatildeo que aqui aparece nos termos de um impulso uacutenico e vibrante O esforccedilo continuado eacute por assim dizer a uacutenica maneira pela qual o sujeito existente pode se relacionar com a verdade Dito isto um novo passo precisaria ser dado qual seja aquele que partindo da centralidade da existecircncia recoloca a questatildeo filosoacutefica da verdade a partir de outros termos Eacute o que Climacus faraacute cuidadosamente na segunda parte do Poacutes-Escrito e que seraacute por ele mesmo identificado como sua tese a saber que a subjetividade a interioridade eacute a verdade Satildeo questotildees que demandam esforccedilos futuros de investigaccedilatildeo e que excedem os limites deste trabalho Conclusatildeo O percurso que ora concluiacutemos talvez tenha cumprido a funccedilatildeo modesta a que se prestava isto eacute introduzir algumas das questotildees centrais as quais a compreensatildeo de existecircncia de Kierkegaard se mantem atrelada Importa no entanto que faccedilamos ainda um

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uacuteltimo comentaacuterio a respeito do que foi apresentado ateacute aqui A con-diccedilatildeo existencial eacute contra-diccedilatildeo Assim conseguimos enunciar a tensatildeo paradoxal que se afirma e persiste na compreensatildeo de existecircncia de Kierkegaard Natildeo se trata de afirmar ndash como vez por outra se costuma fazer ndash que o homem eacute mera indeterminaccedilatildeo ou que natildeo haacute uma condiccedilatildeo uma essecircncia ou uma natureza humana que o homem precisa fazer-se a si mesmo porque nasce completamente indeterminado que sua existecircncia precede temporalmente a sua essecircncia e assim por diante Todas satildeo compreensotildees possiacuteveis mas nenhuma parece ser a de Kierkegaard Com efeito o que ele pretende eacute antes retesar e natildeo afrouxar a tensatildeo contraditoacuteria Por isso o homem tem uma condiccedilatildeo ndash poderiacuteamos dizer possui uma essecircncia ndash mas essa condiccedilatildeo eacute em si mesma contradiccedilatildeo ndash ou a sua essecircncia eacute em si mesma existecircncia ndash o que provoca uma crise aguda na relaccedilatildeo Ora tal situaccedilatildeo criacutetica desassossega fazendo com que o existente debata-se desesperadamente para desfazer-se da contradiccedilatildeo que ele mesmo eacute Mas tal como um noacute de escota ndash que quanto mais puxamos para desatar tanto mais ele se retesa e prende mas quando relaxamos a tensatildeo ele entatildeo afrouxa e desata ndash assim tambeacutem eacute a existecircncia quanto mais tentamos nos desvencilhar da contradiccedilatildeo que ela mesma eacute tanto mais nos vemos desesperadamente atados Para que a tensatildeo natildeo oprima talvez o existente precise aprender a entregar-se Com isso concluiacutemos com uma ldquodeixardquo para que possa entrar em cena uma obra natildeo mais de Climacus mas de Anti-Climacus20 qual seja A Doenccedila para a Morte Nela o caraacuteter criacutetico da existecircncia eacute acentuado a partir de outros termos Abordaacute-la eacute tarefa para outra ocasiatildeo

20 Outro Heterocircnomo de Kierkegaard Anti-Climacus assina A Doenccedila para a Morte (1849) e Tirociacutenio no Cristianismo (1850)

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Referecircncias HOWLAND Jacob Kierkegaard and Socrates A Study in

Philosophy and Faith Cambridge Cambridge University Press 2006

KANT Immanuel Criacutetica da Razatildeo Pura Traduccedilatildeo de

Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo (introduccedilatildeo) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001

KIERKEGAARD Soslashren A Soslashren Kierkegaards Skrifer (SKS versatildeo 181 2014) httpsksdkforsideindholdasp

________ Poacutes-Escrito Conclusivo natildeo-cientiacutefico agraves

Migalhas Filosoacuteficas Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2013

________ O Conceito de Anguacutestia traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls

Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2010a

________ O Conceito de Ironia constantemente referido a Soacutecrates traduccedilatildeo de Aacutelvaro Valls Vozes ndash Petroacutepolis RS Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco ndash Satildeo Paulo (Coleccedilatildeo Pensamento Humano) 2010b

________ Migalhas Filosoacuteficas ou um bocadinho da

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________ Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra de Escritor introduccedilatildeo de Jean Burn traduccedilatildeo de Joatildeo Gama ndash Ediccedilotildees 70 Lisboa Portugal 2002

STEWART Jon Kierkegaardrsquos Relations to Hegel Reconsidered Cambridge Cambridge University Press 2003

Nobre e Escravo na Perspectiva

da Vontade de Poder Nietzsche

e a interpretaccedilatildeo do homem a

partir da noccedilatildeo de valor

Ray Renan Silva Santos1

1 Avaliaccedilatildeo e gecircnese dos valores Na filosofia de Nietzsche o significado de valor

(ldquoWertrdquo) estaacute associado ao que ele entende por avaliaccedilatildeo (ldquoAuswertungrdquo) ldquoSomente haacute valor graccedilas agrave avaliaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1987 p 75)2 A avaliaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo mediante a qual o homem cria valores Valor por sua vez diz respeito agrave essecircncia do homem ao modo como o homem se constitui enquanto tal Zaratustra diz que ldquosem a avaliaccedilatildeo seria vazia a noz da existecircnciardquo3 isso porque eacute atraveacutes dela que o proacuteprio valor da existecircncia tem a sua origem Seria a existecircncia agrave parte da avaliaccedilatildeo do homem vazia e desprovida de sentido Que implicaccedilatildeo a mais tem o sentido de avaliar Eacute dito por Nietzsche (2013 p 291) que ldquonas avaliaccedilotildees se expressam condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e crescimentordquo O que significa ldquoconservaccedilatildeo e crescimentordquo

Conservar-se eacute o modo a partir do qual o homem luta para sobreviver Essa luta poreacutem tem um caraacuteter peculiar que diz respeito somente ao homem pois este eacute o uacutenico ente que avalia e atribui valor agraves coisas Eacute a partir das

1Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da

Paraiacuteba (UFPB)

2De mil e um fitos primeira parte

3De mil e um fitos primeira parte

274 | Kierkegaard Nietzsche e Heidegger o pensamento contemporacircneo e a criacutetica agrave metafiacutesica

avaliaccedilotildees que se constitui ldquocrescimentordquo no sentido de que conforme o homem se manteacutem atraveacutes do valor sua vida tem com isso um acrescimento um ldquoa mais de poderrdquo

Avaliar eacute necessariamente valorar e o ato de valorar eacute tambeacutem um ato de criar Mas o que de fato constitui uma avaliaccedilatildeo Para que possamos ter um direcionamento de tal compreensatildeo analisemos a seguinte frase de Zaratustra ldquoNenhum povo poderia viver se antes natildeo avaliasse o que eacute bom e o que eacute maurdquo (NIETZSCHE 1987 p 74)4 Aqui a noccedilatildeo de avaliar estaacute correspondendo aos valores bom e mau Assim a noccedilatildeo de valor que estaacute atrelada agrave avaliaccedilatildeo deveraacute ser definida agrave medida que compreendermos que implicaccedilotildees tem bom e mau

Na citaccedilatildeo mencionada a avaliaccedilatildeo diz respeito a algo que faz parte da dinacircmica proacutepria do viver ela eacute o que exprime o conteuacutedo proacuteprio da existecircncia humana que surge atraveacutes do valor Avaliar o que eacute bom e o que eacute mau significa atribuir valores agraves accedilotildees O valor de uma determinada accedilatildeo eacute o que constitui o modo proacuteprio da vida do homem e a vida por sua vez se caracteriza como um movimento que se faz presente atraveacutes de valor assim o homem daacute sentido agrave sua proacutepria vida conforme cria valores tais valores satildeo definidos por ele como sendo bom e mau O que aparece aqui como elemento importante eacute o fato de que eacute o homem que cria os valores O valor natildeo existe como em si e por si o homem valora agrave medida da avaliaccedilatildeo sendo esta uacuteltima resultado de muacuteltiplos afetos que se apropriam dele O valor entatildeo eacute sempre relativo ao homem isto eacute valor eacute o que exprime a atividade propriamente do homem e o diferencia dos outros entes O ato de valorar designa a criaccedilatildeo a partir da qual a vida se mostra em seu incessante movimento de brotaccedilatildeo Todavia o homem e a accedilatildeo valorativa estatildeo em uma

4De mil e um fitos primeira parte

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relaccedilatildeo com a realidade esta no sentido de uma forccedila que diz a vida em sua totalidade

A caracterizaccedilatildeo do sentido nietzschiano de ldquovalorrdquo ao mesmo tempo em que aponta para a essecircncia do homem exprime essa essecircncia em um modo de perspectiva Valor portanto eacute o que se faz presente em todos os homens poreacutem em graus distintos A manifestaccedilatildeo de perspectivas diferentes eacute referente aos impulsos que por sua vez satildeo diferentes entre si Natildeo haacute nenhum impulso ou forccedila no mundo que possa ter sua equivalecircncia em igualdade pois tudo eacute distinto tudo carrega diferenccedila Esse elemento distintivo faz com que as forccedilas estejam em um conflito hieraacuterquico pois ldquocada pulsatildeo eacute uma espeacutecie de ambiccedilatildeo despoacutetica (Herrschsucht) cada uma tem a sua perspectiva perspectiva que a pulsatildeo gostaria de impor como norma para todas as outras pulsotildeesrdquo (NIETZSCHE 2008a sect 481 p 260) Dessa forma natildeo eacute difiacutecil concluir que o valor de bom para um povo pode natildeo ter o mesmo valor para outro daiacute a frase de Zaratustra ldquoNunca um vizinho compreendeu o outro sempre a sua alma admirou-se da insacircnia e da malvadez do vizinhordquo 5

A valoraccedilatildeo (ldquoWertschaumltzungrdquo) sendo um ato necessaacuterio para a condiccedilatildeo de conservaccedilatildeo da vida tem a ver com uma forccedila um impulso que condiciona o homem a criar valores tal impulso eacute o que Nietzsche chama de vontade de poder Assim acha-se aqui a relaccedilatildeo entre bom e mau dita anteriormente relativa a essa vontade de poder que eacute o que condiciona o homem a criar Haacute que se perguntar poreacutem acerca do significado proacuteprio de vontade de poder Em A vontade de poder eacute dito que ldquoEste mundo eacute a vontade de poder ndash e nada aleacutem disso E tambeacutem voacutes mesmos sois essa vontade de poder ndash e nada aleacutem dissordquo (NIETZSCHE 2008a sect 1067 p 513) Quando Nietzsche diz que o mundo eacute vontade de poder com isso ele exprime

5De mil e um fitos primeira parte

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a dinacircmica e o movimento do mundo como sendo essa vontade6 A expressatildeo no alematildeo Wiile zur Macht que significa literalmente vontade para poder indica vontade direcionada ao poder isto eacute constituiacuteda atraveacutes do poder Todos os acontecimentos do mundo satildeo vontade de poder No homem essa vontade se manifesta atraveacutes da valoraccedilatildeo portanto ele soacute vem a se constituir enquanto pertencente agrave condiccedilatildeo de valorar

Em Genealogia da moral Nietzsche direciona a origem do conceito de ldquobomrdquo como tendo se desenvolvido a partir de uma classe dominante e privilegiada Do mesmo modo o conceito de ldquoruimrdquo teria surgido a partir dessa mesma classe Sendo assim eacute bom tudo aquilo que condiz com o caraacuteter de homem nobre superior e guerreiro eacute ruim tudo aquilo contraacuterio ao nobre isto eacute comum inferior e escravo Eacute neste sentido que eacute dito por Nietzsche que

[] em toda parte ldquonobre ldquoaristocraacuteticordquo no sentido social eacute o conceito baacutesico a partir do qual necessariamente se desenvolveu ldquobomrdquo no sentido de ldquoespiritualmente nobrerdquo ldquoaristocraacuteticordquo de ldquoespiritualmente bem-nascidordquo ldquoespiritualmente privilegiadordquo um desenvolvimento que sempre

6Na citaccedilatildeo mencionada apesar do emprego do artigo ldquoardquo para indicar ldquovontade de poderrdquo esta natildeo diz respeito agrave noccedilatildeo de ldquounidaderdquo no sentido de uma organizaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo do todo pois o mundo eacute para Nietzsche constituiacutedo por muacuteltiplas vontades de modo que natildeo haacute a vontade de poder como unidade que comporta a multiplicidade dos acontecimentos do mundo mas sim vontades de poder enquanto constituintes da totalidade do mundo O uso do artigo dessa forma eacute referente ao sentido da ldquoqualidaderdquo do mundo como ldquoo todordquo ldquoa realidaderdquo mas estes sendo entendidos como multiplicidade desordenada Ainda a respeito da frase mencionada Muumlller-Lauter (1997 p 82-83-84) diz ldquoO todo em sua variedade eacute designado com o nome lsquoa vontade de poderrsquo A que remete aqui o emprego do singular Com ele Nietzsche exprime que a vontade de poder eacute a uacutenica qualidade que se deixa encontrar seja o que for que consideremosrdquo

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corre paralelo agravequele outro que faz ldquoplebeurdquo ldquocomumrdquo ldquobaixordquo transformar-se finalmente em ldquoruimrdquo (NIETZSCHE 2009 p 18)

Encontra-se dessa forma uma problemaacutetica no que diz respeito a uma transformaccedilatildeo conceitual de ldquobomrdquo Essa transformaccedilatildeo conceitual estaacute relacionada agrave reviravolta agrave inversatildeo dos valores morais ou para dizer de outro modo ela diz respeito agrave ldquotresvaloraccedilatildeo dos valoresrdquo (ldquoUmwertung der Wertrdquo)7 No que concerne a tal transformaccedilatildeo conceitual Nietzsche faz primeiramente uma anaacutelise acerca de tais conceitos em sua proacutepria liacutengua no alematildeo Em alematildeo a palavra schlecht (ldquoruimrdquo) que permite a derivaccedilatildeo do termo schlicht (ldquosimplesrdquo) designava o homem comum inferior e em oposiccedilatildeo ao homem nobre Essa anaacutelise continua ainda com a origem de tais conceitos na liacutengua grega e no latim No grego κακός (ldquomaurdquo) era o termo para designar o homem plebeu em

oposiccedilatildeo ao ἀγαθός (ldquobomrdquo) no latim malus (ldquomaurdquo) era a palavra empregada para indicar o homem inferior de classe baixa fraco e plebeu em oposiccedilatildeo ao bonus (ldquobomrdquo) que por sua vez dizia respeito ao homem guerreiro de discoacuterdia superior

Embora essas indicaccedilotildees em referecircncia aos diferentes tipos de homem possam ter um sentido de ordem social eacute preciso que compreendamos o homem caracterizado ldquotambeacutem segundo um traccedilo tiacutepico do caraacuteterrdquo ressalta Nietzsche (2009 p19) pois ldquoeacute este caso que aqui nos interessardquo Assim eacute necessaacuterio elucidarmos aqui a distinccedilatildeo fundamental a respeito das concepccedilotildees de nobre e escravo bem como os motivos histoacutericos atraveacutes dos quais o

7Em algumas editoras a expressatildeo ldquoUmwertungrdquo eacute traduzida por ldquotransvaloraccedilatildeordquo O uso aqui de ldquotresvaloraccedilaordquo eacute devida agrave escolha da editora da obra Genealogia da Moral que por sua vez traduz a expressatildeo dessa maneira

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sentido originaacuterio dos valores correspondentes a ambos sofreu alteraccedilotildees

11 Moral de nobre e moral de escravo Para podermos definir com mais clareza o que diz

respeito agrave moral de nobre eacute preciso nos atermos ao que Nietzsche chama de ldquotraccedilo tiacutepico do caraacuteterrdquo Nobre e escravo satildeo dois conceitos para designar o modo como a moral eacute entendida em sua gecircnese portanto satildeo conceitos que expressam avaliaccedilatildeo e valoraccedilatildeo em forma de princiacutepio Em sentido propriamente filosoacutefico nobre e escravo satildeo duas dimensotildees ontoloacutegicas atraveacutes das quais a vida se mostra Eacute nesse sentido originaacuterio do valor que Nietzsche nos indica os conceitos de bom e ruim como inicialmente provindo da classe nobre este ao corresponder agrave vida em seu instinto espontacircneo e cego considera-se bom porque cumpre o papel de pertencimento ao movimento mediante o qual a vida se destina para ele o escravo eacute considerado ruim pelo nobre porque ao natildeo corresponder com a vida em sua forma de irrupccedilatildeo ele nega esse caraacuteter com ressentimento Portanto trata-se aqui da condiccedilatildeo proacutepria e essencial do homem O homem nobre sendo tambeacutem um homem guerreiro de discoacuterdia tem como caracteriacutestica de seu modo de ser a coragem Ele eacute homem de destemor com sede de domiacutenio e imposiccedilatildeo de sua forccedila eacute tambeacutem um homem que natildeo guarda maacutegoas nem rancor de seu inimigo pois mesmo seu inimigo sendo a sua imagem de contraste ele somente o despreza mas sem o sentimento de vinganccedila e ressentimento Sobre essa peculiaridade do homem nobre Nietzsche diz

[] por vezes natildeo reconhece a esfera por ele desprezada a do homem comum do povo baixo por outro lado considere-se que o afeto do desprezo do olhar de cima para baixo do olhar

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superiormente a supor que falseie a imagem do desprezado em todo caso estaraacute muito longe do falseamento com que o oacutedio estranhado a vinganccedila do impotente atacaraacute ndash in efiggie naturalmente ndash a do seu adversaacuterio (NIETZSCHE 2009 p 26)

Segundo o modo de valoraccedilatildeo nobre ldquobomrdquo eacute o impulso vital que se apropria dele eacute a vida em sua condiccedilatildeo originaacuteria eacute o fluxo do vir-a-ser destituiacutedo de interrupccedilotildees Logo ldquoruimrdquo segundo essa mesma concepccedilatildeo eacute tudo aquilo que natildeo constitui a vida desde a vontade inerente ao homem eacute o deixar com que a fraqueza constitua a vida eacute deixar-se conduzir pelo passado ou futuro e natildeo vivenciar o instante (ldquoAugenblickrdquo) que eacute a uacutenica garantia da vida tal como se destina para o homem Instante eacute aqui o reconhecimento e acolhimento do tempo como unidade do passado presente e futuro em uma eclosatildeo contiacutenua sem que haja oposiccedilatildeo entre ambos Desse modo podemos perceber com mais clareza donde se origina o conceito de ldquobomrdquo quando relacionado ao que Nietzsche chama de traccedilo tiacutepico do caraacuteter O sentido de valor na moral nobre estaacute relacionado ao ldquobomrdquo esse bom estaacute relacionado agrave maneira como se constitui sua vontade que eacute livre e espontacircnea essa vontade eacute o que constitui propriamente sua felicidade

Por outro lado a designaccedilatildeo do valor no sentido da moral escrava estaacute relacionada ao ldquoBemrdquo que condiz com a perspectiva da moral cristatilde o bem assim eacute o que permite o homem agir deste ou daquele modo pois ele eacute o princiacutepio por meio do qual as accedilotildees devem ser guiadas logo a vontade aqui eacute suprimida por um valor esse valor eacute tambeacutem um meio a partir do qual se deve seguir para alcanccedilar a felicidade a felicidade no entanto somente eacute possiacutevel num outro mundo jaacute que o valor de ldquoBemrdquo de acordo com a concepccedilatildeo cristatilde estaacute relacionado a um mundo suprassensiacutevel ndash daiacute a expressatildeo do termo ldquoescravordquo utilizada por Nietzsche o modo de ser escravo implica ser

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escravo de um ideal de um valor colocado como acima de si mesmo e da proacutepria vida

Como a natureza do homem nobre eacute dizer ldquosimrdquo agraves suas forccedilas espontacircneas em consequecircncia disso uma vez que suas forccedilas constituem um domiacutenio pode ser o caso de ser criada uma aristocracia uma classe favorecida um status social dominante em que haveraacute outra classe desfavorecida ndash a do homem escravo Este eacute o sentido ldquosecundaacuteriordquo da compreensatildeo de nobre e escravo pois eacute o caraacuteter que exprime a constituiccedilatildeo originaacuteria de ambos Ora sendo o homem escravo o desfavorecido segundo Nietzsche o que iraacute constituir sua vida seraacute o ressentimento para com os nobres por isso a moral de escravo eacute definida por Nietzsche como reativa A moral do escravo tambeacutem pode ser caracterizada como a moral judaico-cristatilde daiacute a figura do homem escravo ter atributos como de homem compassivo humilde fraco oprimido etc O homem escravo natildeo age a partir de si mesmo ele reage a partir de outrem Ele age em vista da utilidade da accedilatildeo ele precisa assegurar que sua accedilatildeo natildeo seraacute algo de prejudicial a si proacuteprio e por isso se torna escravo de um ideal de um valor de ldquobomrdquo criado por ele mesmo e postulado como em si e como determinante do mundo O sentido de bom aqui estaacute centrado na fraqueza numa espeacutecie de querer que a vida esteja em estabilidade em meio ao movimento incessante ldquoMaurdquo segundo esse modo de valorar seria toda a dinacircmica de conflito irrupccedilatildeo e destruiccedilatildeo pertencentes agrave vida Neste sentido a moral eacute utilizada como forma de combater o caraacuteter antagocircnico e conflituoso da existecircncia Poreacutem esse combate consiste em um recuo em uma rejeiccedilatildeo daquilo que faz parte da constituiccedilatildeo do viver Essa rejeiccedilatildeo pode ser melhor compreendida quando associada agravequilo que eacute designado por Nietzsche como ldquoressentimentordquo

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A rebeliatildeo escrava na moral comeccedila quando o proacuteprio ressentimento se torna criador e gera valores o ressentimento dos seres aos quais eacute negada a verdadeira reaccedilatildeo a dos atos e que apenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeo (NIETZSCHE 2009 p 26)

Ressentimento eacute o que possibilita a criaccedilatildeo de valores da moral escrava Mas natildeo somente isso o ressentimento eacute tambeacutem o modo atraveacutes do qual o escravo conserva sua vida Todavia no ressentir-se ldquoa verdadeira reaccedilatildeordquo eacute negada porque nela natildeo se manifesta a accedilatildeo que eacute desejada mas apenas o desejo da accedilatildeo O escravo natildeo estaacute na condiccedilatildeo de poder criar valores que correspondam ao devir (rdquoWerdenrdquo) por isso o uacutenico modo de se conservar eacute reagindo agrave mudanccedila e agrave efemeridade do mundo Assim ele reage criando valores que falsificam o vir-a-ser em detrimento de uma estabilidade que forneccedila garantia para a existecircncia

Na anaacutelise genealoacutegica dos valores Nietzsche nos chama atenccedilatildeo para o aspecto histoacuterico das guerras judaico-romanas O romano seria se quisermos traccedilar uma relaccedilatildeo mais precisa o povo mais privilegiado e por isso tambeacutem o povo nobre o judeu entatildeo seria o povo de sacerdotes o povo escravo O termo ldquoressentimentordquo eacute de grande importacircncia para o entendimento do caraacuteter do povo judeu Se por um lado o homem nobre na medida em que sendo um homem de guerra natildeo se ressentia de seus inimigos pelo simples fato de desprezaacute-los por outro o homem escravo carrega consigo um ressentimento uma sede de vinganccedila contra seus inimigos os nobres Como se sabe o povo judeu pode ser definido tambeacutem como o povo cristatildeo pois eacute dele que proveacutem o cristianismo Quando a Judeia assume o poder ao conquistar a vitoacuteria contra Roma uma nova moralidade se impotildee como dominante por parte dos escravos daiacute a frase inicial sobre ldquoa rebeliatildeo

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escrava na moralrdquo O que fundamenta essa moral eacute o ressentimento e eacute esse ressentimento que cria os valores estabelecidos como condutores da vida O importante aqui no que concerne ao termo ldquovalorrdquo eacute que ele tem um sentido diferente do que vem a ser ldquovalorrdquo na moral de nobre

Com isto logo se faz perceber a distinccedilatildeo entre moral de nobre e moral de escravo A moral de escravo que se constitui a partir do ressentimento eacute a moral dos cristatildeos8 que ldquoapenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeordquo uma vez que deixam o ldquocastigordquo aos seus inimigos para Deus Assim o valor antiacutepoda ao ldquobemrdquo eacute denominado de ldquomalrdquo ndash ambos valores que natildeo se encontravam estabelecidos na cultura de um modo geral para o homem Por conseguinte todo o modelo da cultura e da civilizaccedilatildeo ocidental vem a ganhar uma expressatildeo diferente da que antes se apresentara Essa mudanccedila eacute o que vem a ser a inversatildeo dos valores morais por parte dos judeus Nietzsche diz

Nada do que na terra se fez contra ldquoos nobresrdquo ldquoos poderososrdquo ldquoos senhoresrdquo ldquoos donos do poderrdquo eacute remotamente comparaacutevel ao que os judeus contra eles fizeram os judeus aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas atraveacutes de uma radical tresvaloraccedilatildeo dos valores deles ou seja por um ato da mais vinganccedila espiritual (NIETZSCHE 2009 p 23)

8 A relaccedilatildeo entre a jaacute mencionada ldquorebeliatildeo escrava na moralrdquo e a instauraccedilatildeo do cristianismo no Ocidente exprime uma mesma concepccedilatildeo ldquoA verdade da primeira dissertaccedilatildeo eacute a psicologia do cristianismo o nascimento do cristianismo do espiacuterito do ressentimento natildeo como se crecirc do ldquoespiacuteritordquo ndash um antimovimento em sua essecircncia a grande revolta contra a dominaccedilatildeo dos valores nobresrdquo (NIETZSCHE 2008b p 93)

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A vitoacuteria do povo judeu contra o povo romano desencadeou uma manifestaccedilatildeo invertida dos valores morais que por seu turno caracterizou o padratildeo da cultura ocidental O que antes era visto como fraco inferior e ruim passou a ser visto como forte superior e bom se antes o que caracterizava a bondade do homem juntamente com seu poder era o modo como ele se impunha como guerreiro posteriormente o que passou a ser propagado como bom foi o ideal do homem compassivo fraco e oprimido sendo este ideal uma forma de o homem voltar-se contra a proacutepria vida A impotecircncia do homem paradoxalmente passou a ser sua forccedila pois o que constituiacutea o homem ldquoforterdquo agora era a promessa de outro mundo transcendente e suprassensiacutevel onde ele seria recompensado por todas as opressotildees que sofreu no mundo ldquoterrestrerdquo e posteriormente regozijar-se-ia na eterna e soberana paz Essa eacute a perspectiva do cristianismo a promessa de Deus segundo a qual o ceacuteu seraacute dos oprimidos dos que sofrem dos que satildeo humilhados dos que satildeo compassivos Quando o plano dos valores morais foi invertido pelos judeus o que passou a predominar foram os valores judaico-cristatildeos de acordo com os princiacutepios biacuteblicos do Novo Testamento

Esses ideais satildeo as leis que constituiacuteram e constituem ateacute hoje a histoacuteria da civilizaccedilatildeo ocidental Dessa forma a vinganccedila como antes fora mencionada eacute deixada para um futuro ndash que os cristatildeos chamam de ldquojuiacutezo finalrdquo ndash o que aparece aqui como uma vontade da vontade e natildeo propriamente a vontade ldquoVontade da vontaderdquo consiste em vontade rebelada contra si proacutepria e uma vez que a vontade de poder em seu curso natural eacute constituiacuteda atraveacutes da espontaneidade e do fluir da pulsaccedilatildeo o querer e

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a accedilatildeo satildeo apenas um soacute ato quantum de impulso corresponde a quantum de forccedila9

O que eacute importante salientar eacute que tanto a valoraccedilatildeo nobre quanto a do escravo fazem mostrar o modo proacuteprio como a vontade de poder se destina ao homem Isto pode ser visto de maneira impliacutecita em tal passagem do Zaratustra ldquoOutrora os povos suspendiam por cima de si uma taacutebua do bem O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer criaram juntos para si essas taacutebuasrdquo (NIETZSCHE 1987 p 75) A conotaccedilatildeo do termo ldquoamorrdquo nos indica o que vem a ser vontade de poder Eacute a vontade de poder que cria atraveacutes do homem em seu avaliar as taacutebuas de valores Ora isto significa que a existecircncia de diferentes morais natildeo tem seu meacuterito uacutenica e exclusivamente no homem pois este natildeo eacute propriamente livre no sentido de ter um livre-arbiacutetrio e de ser plenamente capaz de escolher qual caminho seguir por uma autonomia da consciecircncia ldquoO homem natildeo eacute a consequecircncia de uma intenccedilatildeo proacutepriardquo (NIETZSCHE 2000 p 50)10 O homem natildeo eacute condicionado a criar valores por uma forccedila que eacute propriamente dele no sentido de pertencer ao seu ldquointeriorrdquo mas sim por muacuteltiplas vontades que estatildeo no mundo de modo a constituiacute-lo Vontade de poder eacute o que condiciona o mando e a obediecircncia as apreciaccedilotildees de valor nobre e escravo

Como vimos o caraacuteter do homem nobre eacute definido por Nietzsche como ativo ao passo que o caraacuteter do escravo eacute definido como passivo Tal caracterizaccedilatildeo pode ser melhor compreendida a partir da seguinte citaccedilatildeo

9 ldquoUm quantum de forccedila equivale a um mesmo quantum de impulso vontade atividade ndash melhor nada mais eacute senatildeo este mesmo impulso este mesmo querer e atuarrdquo (NIETZSCHE 2009 p 33)

10Os quatro grandes erros

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Que eacute ldquopassivordquo resistir e reagir Ser obstruiacutedo no movimento que se projeta para frente portanto um agir da resistecircncia e da reaccedilatildeo Que eacute ldquoativordquo Lanccedilar-se em direccedilatildeo ao poder (NIETZSCHE 2013 5 (64) p 176)

A conotaccedilatildeo de passivo estaacute relacionada ao que

Nietzsche chama de resistir e reagir Mas o que significa resistir e reagir Eacute a condiccedilatildeo atraveacutes da qual o ser passivo se conserva A reaccedilatildeo eacute referente ao movimento proacuteprio do mundo que por sua vez designa um incessante fluxo de forccedilas ela eacute uma forccedila contraacuteria a esse fluxo Em resistindo tal eacute o modo como aquele que reage preserva sua vida Esse modo de preservar a vida constitui uma ldquoobstruccedilatildeordquo de si proacuteprio no que tange agraves forccedilas instintivas e ativas da condiccedilatildeo espontacircnea da vida Obstruir-se significa natildeo aceitar a vida e reagir ao movimento que lhe eacute proacuteprio Reaccedilatildeo poreacutem exprime ao mesmo tempo de onde ela proveacutem a saber da vida Natildeo haacute uma forccedila que condiciona a reaccedilatildeo que seja distinta do que natildeo eacute reaccedilatildeo Pode-se afirmar inclusive que tudo eacute ldquoaccedilatildeordquo no sentido de que tudo proveacutem do mesmo ndash vontade de poder ndash que se manifesta de modos distintos Esse elemento de distinccedilatildeo a partir do qual a vontade se manifesta eacute o que caracteriza accedilatildeo e reaccedilatildeo A accedilatildeo relacionada ao que Nietzsche chama de ldquoativordquo eacute um pertencimento do homem ao que condiciona sua atividade a reaccedilatildeo diz respeito a uma rejeiccedilatildeo do que condiciona todo acontecimento Todavia o homem natildeo pode reagir atraveacutes de outro condicionamento porque tudo eacute vontade de poder

Por outro lado o que significa propriamente ldquoativordquo Eacute a forma com que o homem se direciona ao poder isto eacute ao inesgotaacutevel retorno ao poder Poder-se-ia poreacutem objetar mas uma vez que tudo proveacutem de uma mesma forccedila tudo natildeo estaria direcionado ao poder A

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resposta seria sim e natildeo Sim porque agrave medida que accedilatildeo e reaccedilatildeo provecircm da vontade de poder ambas soacute se constituem enquanto direcionadas a essa vontade por outro lado natildeo porque o direcionar-se ao poder como maneira ativa caracteriza um dizer ldquosimrdquo portanto um querer uma aceitaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo tal como se manifesta aceitaccedilatildeo esta que natildeo ocorre na reaccedilatildeo

12 Vontade de poder como movimento de auto superaccedilatildeo

Para que possamos compreender com mais clareza

o sentido proacuteprio de vontade de poder tomemos como exemplo a seguinte citaccedilatildeo ldquoUma taacutebua de tudo o que eacute bom estaacute suspensa por cima de cada povo Vede eacute a taacutebua do que ele superou eacute a voz de sua vontade de poderrdquo (NIETZSCHE 1987 p 74)11 Cada povo tem seu modo de conceber e portanto valorar o que eacute bom Aquilo que eacute bom para um povo eacute o que eacute colocado como valor superior O bom proveacutem de um esforccedilo de direcionar-se para poder valorar esforccedilo que eacute condicionado por vontade de poder Tal vontade se constitui como um movimento de superaccedilatildeo de si mesma essa superaccedilatildeo se caracteriza como uma forccedila incontrolaacutevel provinda de um impulso constituinte da vida Superar a si mesmo a partir da concepccedilatildeo da vontade de poder significa romper com o atual para se realizar em uma nova dinacircmica de ser daiacute a afirmaccedilatildeo de que ldquomas um poder mais forte uma nova superaccedilatildeo nasce de vossos valores ela faz romperem-se o ovo e a casca do ovordquo (NIETZSCHE 1987 p 128)12 ldquoRomper o ovo e casca do ovordquo tem relaccedilatildeo com a maneira atraveacutes da qual a vida irrompe com o atual e se apropria do homem fazendo surgir uma nova perspectiva

11De mil e um fitos primeira parte

12Do superar si mesmo segunda parte

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Na seguinte passagem de Assim falou Zaratustra o conceito de vontade de poder eacute definido assim ldquoCom os vossos valores e palavras do bem e o do mal exerceis poder oacute voacutes que estabeleceis valoresrdquo (NIETZSCHE 1987 p 128)13 A essecircncia do homem consiste em exercer poder atraveacutes dos valores Como foi dito antes os valores de bom e mau satildeo os valores que o homem avalia como necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da vida Essa conservaccedilatildeo consiste em avaliar o que eacute de valor superior e o que eacute de valor inferior para si proacuteprio Na frase aqui citada nos aparece os termos bem e mal Contextualmente esses termos correspondem imediatamente agravequeles outros isto eacute bom e mau Bom e mau tecircm relaccedilatildeo com bem e mal ambos no sentido da moralidade cristatilde Nietzsche natildeo define a moral de nobre como tendo essa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo e sim em uma relaccedilatildeo entre bom e ruim O bom como derivaccedilatildeo de um princiacutepio universal ndash o bem ndash e o mau como derivaccedilatildeo tambeacutem de um valor universal ndash o mal ndash seriam modos de avaliaccedilatildeo da moral de escravo14 Em Aleacutem do bem e do mal eacute dito que

A moral dos escravos eacute essencialmente uma moral de utilidade Aqui estaacute o foco de origem da famosa

13Do superar si mesmo segunda parte

14Essa distinccedilatildeo pode ser um pouco mais esclarecida na seguinte citaccedilatildeo ldquoEste lsquoruimrsquo de origem nobre e aquele lsquomaursquo que vem do caldeiratildeo do oacutedio insatisfeito ndash o primeiro uma criaccedilatildeo posterior secundaacuteria cor complementar o segundo o original o comeccedilo o autecircntico feito na concepccedilatildeo de uma moral escrava ndash como satildeo diferentes as palavras lsquomaursquo e lsquoruimrsquo ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de lsquobomrsquordquo (NIETZSCHE 2009 p 28-29) O elemento que se estaacute a destacar eacute a diferenciaccedilatildeo entre a maneira de avaliar nobre e a escrava Assim como o ldquoruimrdquo (ldquoschlechtrdquo) do nobre natildeo corresponde ao ldquomaurdquo (ldquoboumlserdquo) da moral do escravo tambeacutem o ldquobomrdquo (ldquogutrdquo) do nobre eacute totalmente distinto do ldquobomrdquo (ldquogutrdquo) do escravo Embora seja utilizada a mesma palavra para indicar o bom o sentido e o conteuacutedo do valor eacute outro

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oposiccedilatildeo ldquobomrdquo e ldquomaurdquo ndash no que eacute mau se sente poder e periculosidade uma certa terribilidade sutileza e forccedila que natildeo permite o desprezo Logo segundo a moral dos escravos o ldquomaurdquo inspira medo segundo a moral dos senhores eacute precisamente o ldquobomrdquo que desperta e quer despertar medo enquanto o homem ldquoruimrdquo eacute sentido como despreziacutevel (NIETZSCHE 2005 p 158)

Na perspectiva de Nietzsche a pergunta pelo significado dos valores morais soacute pode ser respondida sob a compreensatildeo do elemento da origem de tais valores A vontade de poder enquanto forccedila que se destina incontrolavelmente para o homem aparece como esse elemento que natildeo apenas eacute criador da moral mas tambeacutem distintivo A filosofia de Nietzsche enquanto criacutetica dos valores se estabelece como uma criacutetica do valor dos valores Isto nos indica que eacute preciso uma anaacutelise acerca da criaccedilatildeo dos valores Essa criaccedilatildeo tem como ponto de partida uma origem a partir da qual todos os valores dela provecircm essa origem por sua vez eacute o valor dos valores

O elemento criador dos valores eacute a avaliaccedilatildeo a avaliaccedilatildeo no entanto natildeo se confunde com os valores visto que ela eacute o elemento originaacuterio do valor dos valores O filoacutesofo francecircs Gilles Deleuze (1976 p 4) ao interpretar essa relaccedilatildeo entre avaliar e valorar escreve ldquoAs avaliaccedilotildees referidas a seu elemento natildeo satildeo valores mas maneiras de ser modos de existecircncia daqueles que julgam e avaliam servindo precisamente de princiacutepios para os valores em relaccedilatildeo aos quais eles julgamrdquo Avaliaccedilotildees como ldquomaneiras de serrdquo se referem agrave vontade de poder como manifestaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo da existecircncia

Quando associamos essa relaccedilatildeo entre avaliar e valorar agraves perspectivas do nobre e do escravo percebemos que estes natildeo satildeo valores mas meios atraveacutes dos quais se constituem a origem do valor dos valores de ambas as

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morais O elemento diferencial dos valores eacute o sentimento de distacircncia conforme podemos analisar na seguinte citaccedilatildeo ldquoEnquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma jaacute de iniacutecio a moral escrava diz Natildeo a um lsquoforarsquo um lsquooutrorsquo um lsquonatildeo-eursquo ndash e este Natildeo eacute seu ato criadorrdquo (NIETZSCHE 2009 p 26)

O elemento diferencial dos valores se encontra na diferenccedila das forccedilas que se exprimem enquanto valoraccedilatildeo da proacutepria forccedila Como essas forccedilas estatildeo em conflito umas com as outras e assim possuem entre si uma hierarquia por conseguinte os valores que provecircm dessas forccedilas tambeacutem iratildeo se caracterizar como distantes entre si Assim todo valor predominante e superior a outro estaacute numa relaccedilatildeo com uma forccedila predominante e superior a outra forccedila Multiplicidade de vontades constituem lutas entre si acircnsia por mais poder e por domiacutenio portanto constituem hierarquia e consequentemente distinccedilatildeo A distinccedilatildeo eacute sempre relativa ao grau de poder exercido pela vontade ldquoA quantidade de poder que tu eacutes decide sobre a distinccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2008a sect 858 p 431) Conclusatildeo

Esta anaacutelise acerca do fundamento do valor leva-

nos a mergulhar dentro da problemaacutetica nietzschiana dos valores Uma primeira pergunta que se pode fazer eacute se um valor eacute a expressatildeo de uma forccedila que o avalia enquanto tal o que existe por traacutes de uma coisa quando esta ainda natildeo foi avaliada A resposta para esta pergunta seria que nada existe Por traacutes de uma coisa natildeo avaliada e portanto natildeo valorada existe uma realidade destituiacuteda de valor que eacute somente puro devir Assim quando pensamos a realidade como um todo percebemos esse todo como essencialmente vazio de significado e sentido O que daacute significado ao todo eacute o ato de avaliaacute-lo pois eacute a partir dessa avaliaccedilatildeo que se tem a origem dos valores que lhe atribuem

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sentido Nem o todo nem os atos de valoraacute-lo possuem valores em si os proacuteprios atos fazem parte do todo logo todo e qualquer valor eacute criaccedilatildeo proveniente daquele que cria ldquo uma accedilatildeo em si eacute totalmente vazia de valor tudo depende de quem a fazrdquo (NIETZSCHE 2008a sect 292 p 168)

Com isto logo percebemos o ponto culminante da concepccedilatildeo nietzschiana de mundo uma vez que o todo eacute essencialmente desprovido de valor a realidade das coisas tanto natildeo possui verdade como natildeo possui relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre valores A verdade e a oposiccedilatildeo entre valores surgem agrave medida que o homem as cria Valores satildeo perspectivas que por sua vez satildeo interpretaccedilotildees da vontade de poder com relaccedilatildeo agrave realidade pois ldquoTodas as vontades de poder ex-potildeem interpretamrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 124) Assim nos diferentes valores encontramos diferentes interpretaccedilotildees referentes ao que se mostra pois ldquoNossos valores satildeo introduzidos nas coisas pela interpretaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2008a sect 590 p 310) Referecircncias DELEUZE Gilles Nietzsche e a filosofia Trad Ruth Joffily

Dias e Edmundo Fernandes Dias Rio de Janeiro Editora Rio 1976

MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A doutrina da vontade de poder em Nietzsche Trad de Oswaldo Giacoia Junior Satildeo Paulo ANNABLUME 1997

NIETZSCHE Friedrich Wilhelm A vontade de poder Trad Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Morais Rio de Janeiro Contraponto 2008a

___________________________ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Cesar Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2005

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___________________________ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1987

___________________________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Trad Marco Antonio Casa Nova Rio de Janeiro 2000

___________________________ Ecce homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2008b

___________________________ Fragmentos Poacutestumos Volume VI Trad Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 2013

___________________________ Genealogia da moral Trad Paulo Cesar Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2009

Heidegger e o conceito de fusij

no fragmento 16 de Heraacuteclito

Robson Costa Cordeiro1

Na preleccedilatildeo que realizou no semestre de veratildeo de 1843 intitulada A origem do pensamento ocidental Heraacuteclito Heidegger procura a partir do fragmento 16 de Heraacuteclito verificar o que constitui o a-se-pensar originaacuterio Originaacuterio para Heidegger remete agrave origem do pensamento Eacute preciso contudo distinguir origem de comeccedilo A origem o princiacutepio natildeo eacute algo que comeccedila entra em vigor e fica para traacutes como o que agora eacute apenas passado O princiacutepio nunca perde o vigor e estaacute sempre por vir Em Hinos de Houmllderlin Heidegger deixa isso claro

lsquoComeccedilorsquo ― eacute alguma coisa diferente de lsquoprinciacutepiorsquo Uma nova condiccedilatildeo meteoroloacutegica por exemplo comeccedila com uma tempestade mas o seu princiacutepio eacute a total alteraccedilatildeo das condiccedilotildees atmosfeacutericas que atua previamente Comeccedilo eacute aquilo com que algo se inicia o princiacutepio eacute aquilo de onde algo se origina (HEIDEGGER 1999 p 3)

Em Hinos de Houmllderlin Heidegger comeccedila analisando o poema Germacircnia E o que significa falar no contexto da anaacutelise desse poema de comeccedilo Heidegger comeccedila com o poema Germacircnia para chegar ao princiacutepio agrave origem pois eacute somente partindo de um iniacutecio que se pode chegar ou mesmo se indicar a origem Quando fala origem do pensamento ocidental Heidegger natildeo estaacute falando do seu

1 Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba Coordenador do Grupo de Pesquisa Corpo e Fenomenologia E-mail robsonccordeirobolcombr

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comeccedilo como de uma determinada sentenccedila de um pensador que em uma determinada data teria feito comeccedilar o pensamento ocidental O que ele estaacute procurando indicar eacute que a partir da fala de um determinado pensador (como seria o caso da fala de Heraacuteclito no fragmento 16) se poderia chegar ou entatildeo indicar a origem fazer a experiecircncia da origem do pensamento ocidental No caminho que constitui essa experiecircncia conforme estaacute

insinuado no fragmento 16 Heidegger encontra a fusij

enquanto misteacuterio do ser Mas o que procura Heidegger ao regressar aos gregos natildeo eacute um retorno ao que foi pensado na aurora da nossa histoacuteria anteriormente ao decliacutenio do pensamento metafiacutesico com Platatildeo Segundo Zarader uma possibilidade mais clara consistiria ldquoem compreender o movimento heideggeriano como um reenvio natildeo ao pensamento do comeccedilo mas ao seu impensadordquo (sd p 348) Tratar-se-ia segundo ela da ldquopaciente explicitaccedilatildeo de uma questatildeo que nos interpela em silecircncio desde a manhatilde de nosso destino e que nos interpela tanto mais fortemente quanto nunca lhe demos ouvidosrdquo (Id Ibid p 348) Decerto que isso soacute pode ser feito a partir do texto da liacutengua no caso a grega na qual a origem foi inscrita A origem se distingue do comeccedilo porque eacute a partir da origem que o comeccedilo pocircde ser o que ele foi As palavras de origem pois satildeo as palavras que ldquopronunciadas no comeccedilo foram em parte iluminadas pelo pensamento em parte deixadas na sombra do impensadordquo (Id Ibid p 348) De onde vem o poder do pensamento de Heraacuteclito para ainda nos inquietar apoacutes mais de 25 seacuteculos De modo algum devido ao caraacuteter atemporal ou eterno do seu pensamento Segundo Carneiro-Leatildeo ldquoa atualidade de Heraacuteclito emerge e brota da proacutepria vigecircncia histoacuterica do seu pensamentordquo (2010 p 153) Eacute por ser histoacuterico que o pensamento de Heraacuteclito fez histoacuteria pois remete para a proacutepria dinacircmica da histoacuteria como o que nos interpela no

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silecircncio do seu resguardo Em seu primeiro soneto a Orfeu Rilke falou do movimento de elevaccedilatildeo e brotaccedilatildeo de realidade quando tudo silenciou quando conforme ele anuncia ldquono silecircncio unacircnime nasceu novo princiacutepio gesto e transformaccedilatildeordquo (RILKE 2000 p 21) Novo princiacutepio na verdade estaacute se referindo ao velho antiquiacutessimo princiacutepio que eacute o que sempre volta a principiar em toda inauguraccedilatildeo de realidade Mas o velho por sempre voltar a principiar eacute sempre o novo o mais jovial cheio de vitalidade e plenitude Por isso por nunca cessar de principiar eacute sempre novo princiacutepio novo gesto e nova transformaccedilatildeo Eacute isto o que procuraremos pensar a partir do fragmento 16 de Heraacuteclito que reza to mh du=non pote pw=j a)=n tij laqoi Heidegger coloca o fragmento 16 como o primeiro no sentido daquele que toca o nuacutecleo dominante daquilo que constitui para os primeiros pensadores dentre eles Heraacuteclito o a-se-pensar originaacuterio Desse modo ele natildeo segue a claacutessica divisatildeo dos fragmentos conforme foi estabelecida por Diels A sua primeira traduccedilatildeo para o fragmento eacute a seguinte ldquoComo algueacutem poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez jaacute natildeo declina A traduccedilatildeo segundo Heidegger natildeo precisa ser literal mas fiel agrave palavra do pensador Portanto natildeo se trata de uma mera justaposiccedilatildeo de palavras quase mecacircnica mas sim de poder vislumbrar a partir da totalidade da sentenccedila o poder de nomeaccedilatildeo e conjunccedilatildeo das palavras Enquanto interpretaccedilatildeo a traduccedilatildeo consiste em conduzir para uma outra margem desconhecida que se encontra do outro lado do rio largo e amplo que eacute aquilo que se tem de pensar originariamente a fusij como o misteacuterio do ser Atraveacutes da traduccedilatildeo Heidegger pretende passar para a outra margem do rio procurando pensar o impensado nas palavras do pensador grego conduzindo assim o pensamento agrave sua rememoraccedilatildeo (Andenken) que sendo rememoraccedilatildeo do impensado eacute ao mesmo tempo impulso

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para o novo para o futuro (Vordenken) Portanto eacute a partir da provocaccedilatildeo suscitada pelo pensador originaacuterio que Heidegger pensa natildeo somente o impensado das suas palavras mas tambeacutem o proacuteprio destino de sua eacutepoca como a eacutepoca do predomiacutenio teacutecnico e do pensamento calculador em que os deuses estatildeo foragidos e em que a fusij torna-se mundo manipulaacutevel e objetivaacutevel pelo sujeito Heidegger considera que soacute o pensamento originaacuterio traz em si encoberto um tesouro que permanece impensaacutevel e que desde esse estar encoberto propicia ser cada vez melhor compreendido o que significa dizer ser compreendido de maneira diferente da literal A interpretaccedilatildeo realiza o que silencia na palavra literal trazida pela traduccedilatildeo e eacute por isso que mesmo na proacutepria liacutengua eacute preciso que se traduza Com a traduccedilatildeo desse modo se pretende compreender melhor aquilo que jaacute foi compreendido pelo proacuteprio autor Mas na verdade ldquoesse compreender melhor natildeo eacute nunca o meacuterito do inteacuterprete mas o presente do interpretadordquo (HEIDEGGER 1994 p 64) Nietzsche tambeacutem jaacute tinha pensado algo parecido no contexto do seu pensamento acerca da vontade de poder ao colocar e procurar responder ao seguinte questionamento ldquoEacute afinal necessaacuterio ainda pocircr o inteacuterprete por traacutes da interpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia hipoacuteteserdquo (NIETZSCHE 1980 sect 481 p 337)

O fragmento 16 se encontra em uma passagem do Pedagogo de Clemente de Alexandria que viveu entre 160-220 dc Segundo Heidegger Clemente de Alexandria utiliza esse fragmento para sustentar um pensamento teoloacutegico e pedagoacutegico como comentaacuterio agrave seguinte passagem do livro primeiro dos oraacuteculos de Isaiacuteas profeta de Israel ldquoAi daqueles que procuram esconder-se de Javeacute para ocultar seus proacuteprios projetos Agem nas trevas dizendo lsquoQuem nos vecirc Quem nos conhecersquordquo (ISAIacuteAS 29 15-16) Em seu comentaacuterio Clemente de Alexandria procura mostrar que eacute

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possiacutevel esconder-se da luz sensiacutevel do sol mas natildeo da claridade do olho inteligiacutevel de Deus que segundo o Evangelho de Mateus (66) ldquovecirc no escondidordquo

Em Os trabalhos e os dias Hesiacuteodo (v 267) mostra que o olho de Zeus tambeacutem vecirc tudo ldquoO olho de Zeus que tudo vecirc e assim tudo saberdquo (panta i)dwn Dioj o)fqalmoj

kai panta nohsaj) (HESIacuteODO 1991 p 43) Para Hegel na culminaccedilatildeo do pensamento moderno o que era inicialmente inacessiacutevel e obscuro deve ser trazido para a luz de um saber incondicional O projeto do seu sistema eacute acabar com todo resquiacutecio de obscuridade conforme mostra a conclusatildeo de sua preleccedilatildeo inaugural na universidade de Heidelberg em 28 de outubro de 1816

A essecircncia do universum inicialmente escondida e encoberta natildeo possui forccedila para opor resistecircncia agrave coragem do conhecimento ela (a essecircncia do universum) deve-se abrir-se diante dele (do pensamento da filosofia) e pocircr diante de seus olhos a sua riqueza e a sua profundidade deixando-se por ele aproveitar (Apud HEIDEGGER 1994 p 29-30)

Diante disso a pergunta decisiva para Heidegger

seria Por que o universo isto eacute o absoluto natildeo tem em si forccedila alguma de resistecircncia em afirmar a sua essecircncia velada diante do poder explorador do conhecimento metafiacutesico A resposta segundo ele seria porque a vontade de mostrar-se eacute a essecircncia do absoluto e este seria o pressuposto do sistema-Enciclopeacutedia de Hegel (HEIDEGGER 2007 p 145) O que temos agora de fazer eacute pocircr em questatildeo a relaccedilatildeo da sentenccedila de Heraacuteclito com as interpretaccedilotildees de Clemente de Alexandria e Hegel A sentenccedila eacute to mh du=non

pote pw=j a)=n tij laqoi (ldquoComo algueacutem poderia manter-se encoberto face ao que a cada vez jaacute natildeo declina) A sentenccedila coloca uma pergunta embora decirc a impressatildeo agrave

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primeira vista de que se trata de uma pergunta retoacuterica que apenas reforccedilaria o sentido de uma afirmaccedilatildeo

Mas por que a tendecircncia eacute ver na sentenccedila uma afirmaccedilatildeo velada em forma de pergunta e natildeo uma autecircntica genuiacutena pergunta Parece ser pelo fato de que sempre jaacute partimos do pressuposto de que a essecircncia tem o sentido de luz presenccedila seja a luz do olho inteligiacutevel de Deus do qual natildeo poderiacuteamos nunca nos esconder seja a luz do poder revelador do espiacuterito absoluto A estrutura da sentenccedila eacute a seguinte De iniacutecio nos temos to mh du=non

pote (ldquoo que jaacute natildeo declinardquo) Entretanto natildeo eacute dito o que eacute isso que nunca declina A suspeita que persiste nas interpretaccedilotildees vigentes eacute considerar o que jaacute natildeo declina como uma espeacutecie de observador que nada deixa escapar e que estaacute sempre a espreitar o homem como foi o caso da interpretaccedilatildeo que Clemente de Alexandria fez a partir da sentenccedila de Heraacuteclito e da poesia de Hesiacuteodo Ou entatildeo se considera o que nunca declina no sentido do espiacuterito absoluto como o fez Hegel cuja vontade de mostrar-se seria a sua proacutepria essecircncia

Em seguida o fragmento diz pw=j a)=n tij (ldquocomo algueacutem poderiardquo) No tij no algueacutem estaacute implicado o homem embora tambeacutem natildeo esteja dito o que eacute ser homem Por fim tambeacutem eacute dito no final do fragmento laqoi (estar encoberto) Duas perguntas parecem entatildeo impor-se 1) Quem eacute o homem este algueacutem sobre quem se fala de algo que jaacute natildeo declina O que eacute isto que jaacute natildeo declina diante do qual o homem natildeo poderia manter-se encoberto O fragmento pergunta de maneira essencial pelo pw=j (como) isto eacute pelo modo como o homem poderia manter-se encoberto face ao que nunca declina Mas ao falar ldquoface ao que nunca declinardquo parece que estamos falando ldquodianterdquo de um observador de um ser que tudo observa e que nada deixa escapar To mh du=non pote (ldquoo que jaacute natildeo declinardquo) desse modo parece indicar um

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substrato um ente uma essecircncia no sentido de algo que estaacute sempre presente tudo observando sabendo e vendo

A expressatildeo to mh du=non pote remete para uma experiecircncia com o verbo dunein que estaacute ligado ao verbo duw que significa aprofundar mergulhar O sol no poente mergulha no mar e aiacute declina mas o seu declinar natildeo eacute o seu aniquilamento Pensado de modo grego de acordo com o sentido do verbo dunein declinar significa o desaparecer da presenccedila como modo de sair e penetrar no que se encobre No entanto segundo Heidegger isso eacute algo bem diferente do modo como noacutes modernamente compreendemos o declinar entendendo-o como aniquilar-se natildeo ser mais Pensado de modo grego ao contraacuterio ele mostra que ldquodeclinar eacute antes lsquoumrsquo ser ou ateacute mesmo o ser O declinar eacute um tornar-se encoberto e um encobrimento em grego lanqanw laqwrdquo (HEIDEGGER 1994 p 50) O desaparecer da presenccedila para Heraacuteclito natildeo significa deixar de ser ou de vigorar mas entrar em latecircncia como o que possibilita o espaccedilo de toda vigecircncia O vigente natildeo eacute soacute o presente o presentemente presente mas tambeacutem o passado e o futuro nos quais vigora natildeo a patecircncia do presente mas a latecircncia do ausente

As palavras fundamentais da sentenccedila portanto satildeo du=non (o que declina) e laqoi (o encobrimento) Mas o fragmento de Heraacuteclito natildeo fala de um decliacutenio e sim de algo que natildeo declina E ao falar do que natildeo declina Heraacuteclito natildeo estaacute pensando o mesmo que Hegel ao falar do Universo do Absoluto cuja essecircncia eacute vontade de mostrar-se A diferenccedila radical parece residir no seguinte Enquanto que para Heraacuteclito eacute o homem que natildeo pode manter-se encoberto face ao que nunca declina para Hegel o que se descobre eacute o que natildeo pode resistir ao poder de conquista do homem

A questatildeo essencial para Heidegger natildeo eacute procurar saber o que eacute aquilo que natildeo declina pois isto jaacute pressupotildee que estamos pensando de maneira comum E por que

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Porque segundo ele to d=u=non natildeo tem um sentido inequiacutevoco sendo o seu significado de natureza ambiacutegua devido ao caraacuteter do particiacutepio grego To d=u=non eacute o particiacutepio presente ativo do verbo dunw Conforme mostra Heidegger particiacutepio eacute a traduccedilatildeo romana da expressatildeo grega h( metoxh que significa a participaccedilatildeo o ter parte em Como termo teacutecnico da gramaacutetica grega h( metoxh diz respeito agrave forma verbal que participa compartilha tanto do nome e do substantivo como do modo de ser do verbo e da accedilatildeo sendo assim verbo e nome ao mesmo tempo

To d=u=non portanto natildeo significa primordialmente uma coisa que se potildee declina mas um processo a accedilatildeo de declinar Meta (que com o genitivo significa com em companhia de) e e)xw (tenho possuo) formam a estrutura da palavra metoxh acentuando o caraacuteter de participaccedilatildeo de companhia entre o ter e o ser o que mostra segundo Carneiro-Leatildeo que em tudo que se tem ldquoeacute preciso ser o que se tem para se poder ter de modo criadorrdquo Desse modo segundo ele revela-se que ldquoeacute o verbo que sustenta o substantivordquo (CARNEIRO-LEAtildeO 2010 p 176) Portanto quando a preocupaccedilatildeo fundamental eacute questionar acerca do que eacute aquilo que natildeo declina eacute porque a pergunta jaacute se move a partir da distinccedilatildeo claacutessica entre ser e agir substacircncia e acidente coisa e atividade sujeito e processo ou seja a partir da pressuposiccedilatildeo de que toda accedilatildeo eacute accedilatildeo de um sujeito E poderia ser diferente Poderia haver accedilatildeo sem sujeito

Para o modo de pensar moderno decerto que natildeo Se natildeo haacute subjetividade sem objetividade ou vice-versa ou seja se subjetividade-objetividade constituem um processo isto contudo natildeo significa que o processo seja algo constituiacutedo pelo sujeito ou o objeto ou entatildeo pelo sujeito e objetos juntos em uma dialeacutetica E por que natildeo Porque sujeito e objeto e toda dialeacutetica de constituiccedilatildeo se formam a partir do processo constituinte (CARNEIRO-LEAtildeO 2010 p 168) Isto parece indicar uma prioridade do

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processo da accedilatildeo do verbo com relaccedilatildeo ao nome ao sujeito Essa relaccedilatildeo entre verbo e nome aparece conforme mostramos acima no particiacutepio grego e eacute utilizando o particiacutepio que os pensadores gregos se referem ao ser de tudo o que estaacute sendo como a questatildeo fundamental da filosofia Em Metafiacutesica Aristoacuteteles coloca a questatildeo desse modo ti to o)n que equivale agrave questatildeo tij h( ou)sia (ARISTOacuteTELES 1990 1028 b4 p 322) No iniacutecio do livro G ele fala que haacute uma ciecircncia que contempla o ente enquanto ente )Estin e)pisthmh tij h( qewrei+ to o)n $)= o)n (Id Ibid 1003 a21-22 p 150)

Sendo particiacutepio de ei=)nai to ouml)n o sendo o que estaacute sendo eacute uma delimitaccedilatildeo do real em sua realizaccedilatildeo isto eacute na perspectiva de ser e realizar-se Portanto ao falar de to ouml)n o sendo os pensadores estatildeo procurando pensar a partir dele o ei=)nai o ser que eacute sempre mais antigo do que tudo que estaacute sendo isto eacute do que todo real Mas a partir dessa referecircncia agrave questatildeo fundamental da metafiacutesica conforme foi colocada por Aristoacuteteles eacute preciso fazer o paralelo com a questatildeo essencial do fragmento 16 de Heraacuteclito Levando essa necessidade em conta uma questatildeo parece impor-se Como poderia to d+u+non (o que declina) e to o)n (o que estaacute sendo) dizerem o mesmo Para isso natildeo seria preciso que ser e desaparecer fossem o mesmo Aleacutem disso o fragmento de Heraacuteclito fala de to

mh du=non pote e natildeo de to d+u+non Sendo o que nunca declina estaria to mh du=non em uma estreita aproximaccedilatildeo com o que o pensamento metafiacutesico pensou acerca do ser Sendo o que nunca declina o ser soacute poderia entatildeo ser pensado como o que sempre ldquoeacuterdquo ou seja como o que sempre vigora aparece Seria desse modo que Heraacuteclito tambeacutem teria pensado o ser

Conforme mostramos acima o declinar pensado de modo grego eacute bem mais lsquoumrsquo ser ou ateacute mesmo o ser Sendo assim natildeo significa um deixar de ser ou de vigorar mas um entrar em latecircncia como o que possibilita toda

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vigecircncia O declinar o pocircr-se e desaparecer portanto satildeo tambeacutem modos de ser e de realizar-se do real assim como o nada que parece ir de encontro a todo ente No decliacutenio e no desaparecimento no nada estaacute pensado de maneira originaacuteria o ser o misteacuterio da fusij

To mh du=non pote nomeia a fusij Mas como se no fragmento 16 Heraacuteclito sequer utiliza essa palavra Sendo o que nunca declina a fusij eacute o contiacutenuo fugir agrave ocultaccedilatildeo Mas a fuga natildeo tem o sentido de exclusatildeo daquilo de que se foge mas atribuiccedilatildeo de uma resistecircncia que precisa a cada vez ser vencida Isto Heidegger procura deixar claro atraveacutes do rigor da interpretaccedilatildeo que ele faz do fragmento quando mostra que Heraacuteclito utiliza o adveacuterbio mh que apesar de ser um termo negativo distingue-se contudo de ou) pois natildeo eacute mera negaccedilatildeo A expressatildeo mh ― pote no meio da qual estaacute du=non torna segundo Heidegger o sentido verbal-temporal de du=non plaacutestico como aquilo que a cada vez precisa furtar-se agrave forccedila de ocultaccedilatildeo O mh ― pote ldquojaacute natildeordquo ldquoa cada vezrdquo indica um resistir que tira a sua forccedila daquilo ao que resiste e que traz em si mesmo a ocultaccedilatildeo a qual resiste como o que faz parte de sua proacutepria constituiccedilatildeo

Dando mais um polimento na traduccedilatildeo Heidegger diz em lugar de ldquoo que a cada vez jaacute natildeo declinardquo ldquoo que nunca declinardquo A partir disso ele conclui que a traduccedilatildeo quase obriga a dizer ldquoo surgimento incessanterdquo ldquopois aquilo que nunca eacute um decliacutenio deve ser um surgimento incessanterdquo (HEIDEGGER 1994 p 87) A conexatildeo entre to mh du=non pote e fusij parece agora ter ficado mais clara No entanto se observarmos o fragmento 123 fusij

kruptesqai filei= parece haver uma contradiccedilatildeo pois como a fusij poderia ser ldquoum surgimento incessanterdquo (to

mh du=non pote) se ldquoama ocultar-serdquo (kruptesqai filei) Decerto que aqui natildeo podemos nos voltar para o

exame dos passos detalhados dados por Heidegger em sua interpretaccedilatildeo do fragmento 123 Vamos somente mostrar

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alguns nexos entre os dois fragmentos no sentido de procurar expor que essa aparente contradiccedilatildeo que constitui o misteacuterio da fusij no fragmento 123 como amor ao ocultamento jaacute se encontra presente no fragmento 16 Para que isso seja devidamente compreendido eacute preciso

primeiro entender o sentido da palavra filei A partir do

seu modo particular de compreender essa palavra Heidegger procura mostrar a relaccedilatildeo essencial da fusij (o surgimento incessante) com o ocultamento (kruptesqai) ao traduzir o fragmento do seguinte modo ldquoO surgimento favorece o encobrimentordquo

Filei=n tem agora o sentido de favor e favorecer Com isso Heidegger procura mostrar que o surgimento favorece o encobrimento e que o encobrimento assim favorecido vigora na proacutepria essecircncia do surgimento Do mesmo modo em se fechando o fechamento favorece o surgimento Eacute a partir da unidade originariamente unificante do favor que se pode pensar a fusij Mas de que modo podemos pensar que esse nexo entre surgimento e ocultamento jaacute estaria presente no fragmento 16 de Heraacuteclito

O favor o favorecer (filei=n) propicia o combate (polemoj) como aquilo que a fusij deve travar para emergir do proacuteprio retiro de onde ela proveacutem A fusij soacute pode ser eclosatildeo ldquosurgimento incessanterdquo porque surge constantemente do velamento Precisa desse modo se inclinar para o velamento favorecendo-o visto que o velamento eacute a uacutenica coisa capaz de garantir a sua eclosatildeo O ldquosurgimento incessanterdquo desse modo como o ldquonunca declinarrdquo natildeo significa natildeo ter relaccedilatildeo nenhuma com a ocultaccedilatildeo mas ao contraacuterio conforme diz o proacuteprio Heidegger ldquoO nunca entrar no encobrimento eacute o surgir duradouro desde o encobrir-serdquo (HEIDEGGER 2009 p 268)

Embora possamos dizer que ao desvelamento pertence o velamento eacute difiacutecil contudo dizer qual eacute a

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natureza deste pertencer Decerto que Heraacuteclito natildeo o entendia como sendo da ordem da sucessatildeo temporal A natureza desse pertencimento constitui o proacuteprio misteacuterio do ser No surgimento incessante na eclosatildeo a partir de si reina um retraimento sem o qual a fusij natildeo poderia vigorar Sendo a essecircncia unificadora da fusij filei=n indica natildeo apenas uma relaccedilatildeo mas a inclinaccedilatildeo a partir da qual o desvelamento e o velamento concedem um ao outro a possibilidade de ser o que cada um eacute Filei=n polemoj e a(rmonia satildeo palavras utilizadas para pensar essa articulaccedilatildeo para designar o conflito e o simultacircneo abrigo de eclosatildeo e ocultaccedilatildeo um no outro

Eacute o mesmo que pensar junto guerra e paz inverno e veratildeo dia e noite conforme mostra o fragmento 67 de Heraacuteclito Mas com isso ele natildeo estaacute querendo dizer que a contradiccedilatildeo inerente ao muacutetuo pertencer eacute superada devido ao caraacuteter de sucessatildeo temporal ou entatildeo que tudo estaacute continuamente a alterar-se e que nada perdura Antes estaacute pensando De nenhum lado como tal podes fixar-te pois eacutes transportado pela luta dos contraacuterios para o lado oposto O que perdura eacute a harmonia invisiacutevel como tensatildeo dos movimentos contraacuterios Se de acordo com o fragmento 53 ldquoa guerra eacute pai de todas as coisasrdquo eacute preciso entender que guerra luta natildeo eacute desavenccedila e mera inquietude mas o confronto entre os poderes essenciais do ser

Atraveacutes desse confronto ― conforme mostra Houmllderlin que foi um dos primeiros a descobrir a importacircncia de Heraacuteclito como grande pensador antes mesmo de Nietzsche e Heidegger ― os homens se evidenciam enquanto homens e os deuses enquanto deuses uns contra os outros e por isso em iacutentima harmonia Como poderia haver a luta o combate para emergir do velamento se natildeo houvesse o favorecimento (filei=) do velamento como algo que a proacutepria fusij impotildee para si A harmonia como o manter reunido em tensatildeo aquilo que

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tende a opor-se eacute o divino O que eacute mantido reunido em tensatildeo eacute o favorecimento do velamento e o combate para dele emergir como dois poderes essenciais do ser Manter reunido em tensatildeo esses dois poderes constitui o enigma da relaccedilatildeo entre filei (o favor) e polemoj (o combate) E de onde vem o viacutecio em querer resolver o enigma em querer postular uma compreensatildeo de ser fora de toda contradiccedilatildeo como o que apenas ldquoeacuterdquo ou seja como o que ldquoeacuterdquo apenas surgimento unidade do que sempre estaacute presente

Essa era tambeacutem uma preocupaccedilatildeo de Houmllderlin conforme podemos ver no epigrama intitulado ldquoRaiz de todo malrdquo (Apud HEIDEGGER 2009 p 187) ldquoSer reunido eacute divino e bomrdquo dizia ele E na sequecircncia do epigrama o poeta pergunta ldquode onde vem entatildeo esse viacutecio dentre os homens de que soacute o um e o uno sejardquo (Id Ibid p 187) Este viacutecio que tambeacutem podemos chamar de u(brij que indica o privileacutegio do surgimento fundamenta-se no privileacutegio do ente Isto por seu lado decorre da proacutepria essecircncia da fusij que eacute ambiacutegua Na sua ambiguidade ela eacute por um lado surgimento brotaccedilatildeo aparecimento e o que aparece no surgimento eacute o proacuteprio ente Desse modo em decorrecircncia de sua proacutepria ambiguidade a fusij encaminha a ocultaccedilatildeo para o ocultamento O viacutecio a u(brij desse modo embora seja do homem adveacutem da proacutepria fusij constituindo a essecircncia da metafiacutesica

Mas por outro lado o apagar das chamas da u(brij como o serenar do viacutecio eacute a revelaccedilatildeo do jogo de mundo da luta dos contraacuterios como ambiguidade que natildeo pode ser superada A revelaccedilatildeo como o que surge aparece eacute sempre tambeacutem um ente Mas devido agrave ambiguidade caracteriacutestica da fusij pode revelar o ser de toda revelaccedilatildeo E se eacute verdade que Heraacuteclito chegou a observar os jogos das crianccedilas o que entatildeo se revelou para ele foi algo que ningueacutem jamais observara ldquoO jogo da grande crianccedila universal Zeusrdquo (NIETZSCHE 1999 p 834) Zeus

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brincando de criar e destruir jogando inocentemente o jogo de pedras nunca saciado sempre despertado de novo pelo impulso do jogo construindo e derrubando montinhos de areia agrave beira-mar Na verdade natildeo eacute Zeus quem joga Zeus eacute o tempo o jogo e por isso a proacutepria imagem da divindade Diante de tatildeo bela imagem o desperto o sabedor o que algum dia viveu um instante extraordinaacuterio conforme anunciava Nietzsche deveria dizer ldquoNunca vi coisa mais divinardquo E para que entatildeo deus ser substacircncia e todas as imagens do um e do impereciacutevel se jaacute temos o jogo a fusij como jogo do mundo Referecircncias ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Trad de Valentin Garciacutea Yebra

Madrid Editorial Gredos 1990 BIacuteBLIA SAGRADA Traduccedilatildeo de Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balancin Satildeo Paulo Paulus 1990 CARNEIRO-LEAtildeO Emmanuel O pensamento originaacuterio no

fragmento 16 de Heraacuteclito In Filosofia grega ndash uma introduccedilatildeo Teresoacutepolis Daimon Editora 2010

HEIDEGGER Martin Aletheacuteia (Heraacuteclito fragmento 16) In

Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2002b

___________________ ldquopoeticamente o homem habitardquo

In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2002b

__________________ Hegel Traduccioacuten de Dina V Picotti

C Buenos Aires Prometeo Libros 2007 ___________________ Heraacuteclito Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute

Cavalcante Schuback Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

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___________________ Heraklit Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 1994

___________________ Hinos de Houmllderlin Traduccedilatildeo de

Lumir Nahodil Lisboa Instituto Piaget sd ___________________ Houmllderlins Hymnen lsquoGermanienrsquo

und lsquoder Rheinrsquo Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 1999

___________________ Vortraumlge und Aufsaumltze Stuttgart

Klett-Cotta 2009 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo de Mary de

Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Iluminuras 1991 NIETZSCHE Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos

gregos Traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade Lisboa Ediccedilotildees 70 1987

NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Trad de

Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro Contraponto 2008

NIETZSCHE Friedrich Der Wille zur Macht Stuttgart

Alfred Kroumlner Verlag 1980 ____________________ Die Philosophie im tragischen

Zeitalter der Griechen In Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe I Muumlnchen Deustscher Taschenbuch Verlag de Gruyter 1999

RILKE Rainer Maria Sonetos a Orfeu e elegias de Duiacuteno

Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2000

ZARADER Marleacutene Heidegger e as palavras de Origem

Traduccedilatildeo de Joatildeo Duarte Lisboa Instituto Piaget 2001

Cosmologia da Vontade de

Poder Do Projeto Filosoacutefico agrave

Formulaccedilatildeo de uma Concepccedilatildeo

de Vida

Thiago Gomes da Silva Nunes1

Nietzsche jaacute havia declarado em Assim falou Zaratustra ldquoExaminai cuidadosamente se natildeo penetrei no coraccedilatildeo da vida e ateacute nas raiacutezes de seu coraccedilatildeo Onde encontrei seres vivos encontrei vontade de poderrdquo (ZA II ldquoDa superaccedilatildeo de sirdquo p 108 ndash 110) Em Aleacutem do bem e do mal afirmara que temos de ldquofazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como a uacutenicardquo (BM ldquoDos preconceitos dos filoacutesofosrdquo sect 36 p 39 ndash 40) Natildeo eacute por menos que Nietzsche eacute considerado um pensador profundamente engajado agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica dado que a sua obra aproxima-se sob muitos aspectos de um projeto metafiacutesico2 Sobretudo quando busca a compreensatildeo de todas as dimensotildees da vida ndash e de ldquotodo acontecer mecacircnico na medida em que nele age uma forccedilardquo esta sendo ldquojustamente forccedila de vontade efeito da vontaderdquo (BM ldquoDos preconceitos dos filoacutesofosrdquo sect 36 p 39 ndash 40) ndash como expressotildees de uma pulsatildeo elementar

1 Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraiacuteba (UEPB) Mestre pela Universidade Federal da Paraiacuteba (UFPB) Atualmente eacute doutorando pelo programa integrado de poacutes-graduaccedilatildeo da UFPB junto com a UFRN e UFPE

2 Nesses termos a interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger continua sendo a principal referecircncia a conferir a Nietzsche o semblante de um metafiacutesico engajado agrave tradiccedilatildeo ocidental

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Como se sabe Nietzsche ambicionava reconduzir todos os resultados ateacute o momento obtidos pelo esclarecimento filosoacutefico e cientiacutefico para a compreensatildeo de um uacutenico e mesmo fenocircmeno a vida como manifestaccedilatildeo da vontade de poder

Mas antes de qualquer julgamento do hipoteacutetico ldquoteor metafiacutesicordquo subjacente ao esquema cosmoloacutegico nietzschiano eacute preciso obter um olhar de conjunto da vontade de poder enquanto especulaccedilatildeo filosoacutefica Para isso faz-se necessaacuterio utilizar os fragmentos poacutestumos datados dos uacuteltimos anos de atividade luacutecida de Nietzsche geralmente considerado o seu periacuteodo de maior maturidade e produtividade3 Destaco com isso o aforismo 38 [12] datado do veratildeo de 1885 como consta na ediccedilatildeo criacutetica dos escritos poacutestumos organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari Esse fragmento nos apresenta a mais completa declaraccedilatildeo nietzschiana de que a sua perspectiva eacute aleacutem de tudo uma entre tantas existentes assumindo portanto a condiccedilatildeo de corporificaccedilatildeo perspectivista da vontade de poder e com isso a sua consequente condiccedilatildeo de fluidez Considerando a integridade da passagem facilmente se deduziria como o pensamento poacutestumo de Nietzsche eacute de indiscutiacutevel valor para a compreensatildeo de sua obra como um todo Vejamos entatildeo o fragmento

Sabeis voacutes tambeacutem o que eacute para mim ldquoo mundordquo Devo mostraacute-lo em meu espelho Este mundo uma imensidatildeo de forccedila sem comeccedilo sem fim uma firme brocircnzea grandeza de forccedila que natildeo se torna maior natildeo se torna menor natildeo se consome soacute se transforma e como um todo eacute de imutaacutevel grandeza um orccedilamento domeacutestico sem gastos e

3 De maneira geral considera-se que a fase de maturidade da obra nietzschiana se inicia com a publicaccedilatildeo de Assim falou Zaratustra em 1883 mas os principais fragmentos poacutestumos que marcam o periacuteodo vatildeo de 1885 ateacute 1889

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sem perdas mas do mesmo modo sem crescimento sem ganhos encerrado pelo ldquonadardquo como por seu limite nada que se desvaneccedila nada desperdiccedilado nada infinitamente extenso mas sim como forccedila determinada posto em um determinado espaccedilo natildeo em um lugar que fosse algures ldquovaziordquo antes como forccedila em toda parte como jogo de forccedila ao mesmo tempo uno e vaacuterio acumulando-se aqui e ao mesmo tempo diminuindo acolaacute um mar em forccedilas tempestuosas e afluentes em si mesmas sempre se modificando sempre refluindo com anos imensos de retorno com vazante e montante de suas configuraccedilotildees expelindo das mais simples agraves mais complexas do mais calmo mais inteiriccedilo mais frio ao mais incandescente mais selvagem para o que mais contradiz a si mesmo e depois de novo da plenitude voltando ao lar do mais simples a partir do jogo das contradiccedilotildees de volta ateacute o prazer da harmonia afirmando a si mesmo ainda nessa igualdade de suas vias e anos abenccediloando a si mesmo como aquilo que haacute de voltar eternamente como um devir que natildeo conhece nenhum tornar-se satisfeito nenhum fastio nenhum cansaccedilo - este meu mundo dionisiacuteaco do criar eternamente a si mesmo do destruir eternamente a si mesmo este mundo misterioso da dupla voluacutepia este meu ldquoaleacutem de bem e malrdquo sem fim se natildeo haacute um fim na felicidade do ciacuterculo sem vontade se natildeo haacute boa vontade no anel que torna a si mesmo ndash voacutes quereis um nome para este mundo Uma soluccedilatildeo para todos os seus enigmas Uma luz tambeacutem para voacutes oacute mais esconsos mais fortes mais desassombrados mais iacutensitos agrave meia-noite Este mundo eacute a vontade de poder ndash nada aleacutem disso E tambeacutem voacutes mesmos sois essa vontade de poder ndash e nada aleacutem disso (38 [12] Junho ndash julho de 1885 p 212 ndash 213)4

4 Tomamos como referecircncia bibliograacutefica para este aforismo a

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Eacute importante lembrar que Nietzsche natildeo conseguiu fundamentar a tese da vontade de poder ldquocientificamenterdquo como almejava o que colabora para a futura compreensatildeo da sua ideia como um projeto metafiacutesico5 Independente disso a edificaccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana parece se desenvolver ao inverter a metodologia filosoacutefica considerada ateacute o momento tradicional buscando suplantar as bases de pensamento ocidental e portanto a modernidade vivenciada pelo proacuteprio Nietzsche6 No segundo momento ele procurou afirmar tudo aquilo que foi negado pela tradiccedilatildeo o que significaria dizer que o seu projeto se desenvolve rumo a uma afirmaccedilatildeo incondicional da pluralidade de faces contradiccedilotildees e ciclo dinacircmico de criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo do real ou seja tudo aquilo que foi negado pela metafiacutesica ocidental

Eacute desta forma que logo no iniacutecio no aforismo Nietzsche retoma a metaacutefora do espelho jaacute utilizada em outras passagens para referenciar o caraacuteter perspectivista

coletacircnea de textos poacutestumos Sabedoria para depois de amanhatilde organizada por Heinz Friedrich e traduzida para o portuguecircs por Karina Jannini Contudo optei pela traduccedilatildeo do mesmo aforismo feita por Marcos Sineacutesio Pereira Fernandes e Francisco Joseacute Dias de Moraes como consta na polecircmica coletacircnea A vontade de poder da editora Contraponto Justificamos a escolha pela qualidade desta uacuteltima dado que ela se apresenta com maior fluidez de leitura que a primeira por mais que isso acabe por tocar no problema centenaacuterio em volta da coletacircnea de textos

5 Eacute de se pensar tambeacutem ateacute que ponto a filosofia em si jaacute natildeo eacute metafiacutesica em ato Dado que uma das principais caracteriacutesticas carregadas pelo pensamento filosoacutefico eacute o alto niacutevel de abstraccedilatildeo de consideraccedilotildees que por mais que tomem como base o ldquorealrdquo ainda natildeo se aplicam ao proacuteprio todo filosofar eacute assim uma arquitetocircnica metafoacuterica que atesta este caraacuteter transcendente do ser humano

6 Tal como as ideias de ldquofato linearidade temporal progresso e racionalizaccedilatildeo do realrdquo verdadeiros estandartes do iluminismo assimilados pela cultura cientificista do seacuteculo XIX

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de sua concepccedilatildeo de vida ndash ldquoSabeis voacutes tambeacutem o que eacute para mim lsquoo mundorsquo Devo mostraacute-lo em meu espelhorsquordquo ndash designando com isso que a vontade de poder eacute uma ldquointerpretaccedilatildeo natildeo textordquo no sentido de um texto-mundo isto eacute da vida enriquecida pela possibilidade da interpretaccedilatildeo Parece-nos oacutebvio que o conhecimento eacute fruto da vida sobretudo ao se destacar a atividade interpretativa e por isso a existecircncia de ldquoum texto originalrdquo tornar-se-aacute o ldquopostulado loacutegico de toda interpretaccedilatildeordquo mesmo que ningueacutem conheccedila ldquoesse texto original inferido Assim acontece com a essecircncia inferida do mundordquo (SAFRANSKI 2005 p146) Diante da pluralidade de perspectivas acerca do mundo a vida aparece como um imenso texto destituiacutedo de significado a priori sem comeccedilo e sem fim sem qualquer fundamento que natildeo seja o proacuteprio ciclo de efetividade do viver

Mas se todo o conhecimento humano resume-se agrave atividade interpretativa da proacutepria vida podemos perguntar o que qualifica a especulaccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana em detrimento de outras tantas interpretaccedilotildees do real Nesse ponto eacute preciso atentar que Nietzsche natildeo deixa de admitir que existam ldquoboasrdquo e ldquomaacutesrdquo interpretaccedilotildees ou seja aquelas com grande forccedila vital em prejuiacutezo daquelas naturalmente decadentes nos termos de uma foacutermula que poderiacuteamos apresentar como ldquomais forccedilardquo ou ldquomenos forccedilardquo Uma boa interpretaccedilatildeo de mundo no sentido de manifestar-se como expressatildeo de forccedila vital seria caracterizada pelo vigor que envolve os aspectos dinacircmicos e contraditoacuterios da vida Em suma a boa interpretaccedilatildeo eacute aquela que assinala e assume o devir sem quaisquer traccedilos de ressentimento Jaacute uma interpretaccedilatildeo decadente expressa-se pela tiacutepica tentativa de cristalizaccedilatildeo do ser conforme as foacutermulas de racionalizaccedilatildeo oferecidas pela tradiccedilatildeo definindo o espiacuterito limitado da modernidade ocidental que se guia pela vontade de verdade essa que natildeo deixa de ser uma face interpretativa

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da proacutepria vida mas que se apresenta nos termos da decadecircncia vital

Sendo assim a concepccedilatildeo cosmoloacutegica nietzschiana institui-se sob os termos de uma teoria dinacircmica que assume os caraacutecteres da mutabilidade fluidez e contradiccedilatildeo do viver procurando sempre inverter a loacutegica da metafiacutesica ocidental ao postular que sua tese origina-se daquilo que foi considerado uma deficiecircncia pela tradiccedilatildeo O mesmo raciociacutenio havia sido apresentado parcialmente em Aleacutem do bem e do mal recebendo maior atenccedilatildeo em Genealogia da moral (1887) onde Nietzsche analisa que tudo aquilo que fora classificado como mal nefasto e belicoso pela tradiccedilatildeo ocidental na verdade diz respeito a uma seacuterie de aspectos ascendentes do viver as forccedilas de configuraccedilatildeo mutabilidade e renovaccedilatildeo a dimensatildeo artiacutestica e ascendente da vida

Subsequentemente Nietzsche revelou que o substrato da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental essa que negara por tanto tempo o devir na verdade eacute a proacutepria decadecircncia vital como manifestaccedilatildeo subsequente do horror ao viver sentido por uma classe de indiviacuteduos Sendo assim a postulaccedilatildeo do ldquoaleacutem mundordquo metafiacutesico ndash o mundo ideal ndash eacute entendida por ele como o desague de um processo contiacutenuo e milenar Nesses termos a crenccedila no mundo verdadeiro natildeo seria assim um simples deliacuterio humano mas sim derivaccedilatildeo de uma incapacidade pois o ldquonatildeo-poder-contradizer comprova uma incapacidade natildeo uma lsquoverdadersquordquo (14 [152] Comeccedilo de 1888 p 301) As crenccedilas metafiacutesicas surgiriam assim como artifiacutecios ficcionais com fins de conservaccedilatildeo de faces de vida em deterioraccedilatildeo metalinguagem que acabaria se convertendo em verdadeiras figuras de dominaccedilatildeo A verdade seria assim concebida por Nietzsche como a manifestaccedilatildeo do proacuteprio medo da impotecircncia de criaccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo do viver isto eacute como expressatildeo de decadecircncia vital contraposta agraves faces juvenis poderosas e artiacutesticas da vida

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A crenccedila na faculdade da razatildeo como criteacuterio chave de apreensatildeo do real teria sido o fenocircmeno que alterou radicalmente os rumos tomados pelo Ocidente Mas a irocircnica descoberta de Nietzsche eacute a de que tudo o que foi veementemente negado pela tradiccedilatildeo metafiacutesica pode ainda ser caracterizado nos termos daquilo que identificou como a expressatildeo visceral e ascendente da vida seu lado artiacutestico mudanccedila vir a ser multiplicidade oposiccedilatildeo contradiccedilatildeo forccedila guerra e destruiccedilatildeo mas aleacutem de tudo poder de criaccedilatildeo Essas definiccedilotildees trazem agrave tona o quadro geral traccedilado pelo desenvolvimento da especulaccedilatildeo nietzschiana e que trabalharia agora com a noccedilatildeo de ldquoforccedilardquo termo adotado da fiacutesica moderna Nietzsche buscava atribuir agrave visatildeo cientiacutefica do mundo uma pulsatildeo interna insaciaacutevel quase que metafiacutesica7 a partir da percepccedilatildeo de ldquoquanta

7 Geralmente se entende que a associaccedilatildeo do termo metafiacutesica ao pensamento nietzschiano tem por implicaccedilatildeo necessaacuteria a vinculaccedilatildeo com a filosofia heideggeriana o que definitivamente natildeo eacute o presente caso De fato a atribuiccedilatildeo do conceito de metafiacutesica a Nietzsche comeccedila com Heidegger mais precisamente nos dois volumes dedicados agrave anaacutelise da obra nietzschiana datados de 1936 e 1940 Heidegger atribui ao pensamento nietzschiano o sentido da concretizaccedilatildeo uacuteltima de um projeto filosoacutefico que tomara forma a partir de Platatildeo nos termos de uma maquinaria metafiacutesica de dominaccedilatildeo da natureza A vontade de poder seria esta expressatildeo maacutexima de justificaccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo sem fim por parte do Ocidente e Heidegger se propotildee a retomar a cosmovisatildeo preacute-platocircnica ndash talvez ateacute heracliacutetica ndash para o pensamento filosoacutefico com fins de superar a cultura ocidental Contudo natildeo visamos aqui atribuir agrave vontade de poder e ao pensamento nietzschiano a alcunha heideggeriana posto que partimos de uma compreensatildeo mais objetiva e ampla de metafiacutesica Neste sentido entendemos por metafiacutesica a elevaccedilatildeo de um corpo teoacuterico ou mesmo de um juiacutezo ndash o que Aristoacuteteles denominara por substacircncia ndash ao acircmbito universal como que a prerrogativa de fundamentaccedilatildeo do conhecimento humano entendimento que perpassa de forma geral a obra de Kant Ao final da sua obra Nietzsche traccedila um gecircnero de epistemologia filosoacutefica significativamente distinta das tradicionais teorias do conhecimento mas esse aspecto do pensamento nietzschiano seraacute abordado ao final do presente texto

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dinacircmicosrdquo (14 [79] Comeccedilo do ano de 1888 p 235) em plena atuaccedilatildeo Ele tinha em vista uma relaccedilatildeo coacutesmica entre forccedilas para as quais nada mais existiria que outras quantidades dinacircmicas de forccedilas como um ciclo de oposiccedilotildees

A noccedilatildeo de forccedila surge como a designaccedilatildeo do caraacuteter corrente do mundo expressando o dinamismo do real ao pressupor e uniformizar uma seacuterie de caracterizaccedilotildees cosmoloacutegicas apresentadas no decorrer da obra nietzschiana Pode-se dizer que as forccedilas agora compotildeem a realidade da vida natildeo apenas no sentido estrito da mateacuteria mas como um tipo de pulsatildeo criadora do proacuteprio mundo material ou ainda como agente inerente e determinante do mesmo Desta maneira as forccedilas satildeo a proacutepria vontade de poder ou pelo menos o caraacuteter dinacircmico e fracionado do ciclo de interatividade do jogo do viver Dentro desta estrutura de especulaccedilatildeo o novo conceito natildeo se diferencia essencialmente da concepccedilatildeo de poder mas o complementa ao corporificaacute-lo com um conteuacutedo intuitivo derivado da fiacutesica moderna Nietzsche tinha por objetivo despir sua tese de possiacuteveis vestes ontoloacutegicas que pudessem lhe ser associadas levantando ateacute a possibilidade de fundamentaccedilatildeo cientiacutefica da ideia mas diferentemente da fiacutesica da eacutepoca ele se furtou do entendimento de uma estrutura previsiacutevel de leis

Quando se observa a abrangecircncia da ideia de forccedila conclui-se que ela eacute uma das caracterizaccedilotildees mais significativas da especulaccedilatildeo nietzschiana Sobretudo quando eacute observado que todas as definiccedilotildees anteriormente apresentadas seratildeo entendidas agora como semblantes manifestos de um mundo composto e regido pelo ciclo de interaccedilatildeo das forccedilas Vir a ser pulsatildeo ficcional caos guerra e superaccedilatildeo de si satildeo concepccedilotildees que se manifestam aqui como dimensotildees fronteiriccedilas da interaccedilatildeo unitaacuteria do ciclo de oposiccedilotildees da vida A vida em si seria manifestaccedilatildeo de forccedila e a forccedila por conseguinte eacute aquilo que procura

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afrontar e subjugar o que lhe faz oposiccedilatildeo seja por meio de alianccedilas seja por uma transformaccedilatildeotransfiguraccedilatildeo muacutetua com fins de superaccedilatildeo das oposiccedilotildees Mas para que uma forccedila continue sendo o que ela eacute torna-se necessaacuterio o erro o engano a ilusatildeo de seus fins particulares a vigecircncia de um ldquoegoiacutesmordquo ficcional que tudo deseja superar e envolver

Compreende-se assim que eacute natural a uma coalizaccedilatildeo de forccedilas ansiar por uma ilusoacuteria supremacia coacutesmica desejo que na verdade diz respeito agrave vitalidade manifesta em atuaccedilatildeo tudo que vive deseja e se continua a desejar eacute porque vive Chega-se agrave conclusatildeo que natildeo pode existir fenocircmeno literalmente oposto agrave forccedila visto que nesses termos a uacutenica realidade da vida eacute o proacuteprio jogo de forccedilas ou melhor a pluralidade constitutiva da vida eacute o resultado do ciclo de forccedilas poder em processo de superaccedilatildeo de si em detrimento de poder em decadecircncia vital processo muacutetuo de triunfo e extinccedilatildeo que colabora para um uacutenico transcurso vital Por isso a vida eacute um fenocircmeno que deve ser entendido sob a dimensatildeo do ciclo de criaccedilatildeo e extinccedilatildeo o jogo de forccedilas como o desmembramento necessaacuterio de um curso de superaccedilatildeo coacutesmica

A vida eacute assim uma brocircnzea grandeza de forccedila indiferente agrave fraqueza humana indiferente a qualquer gecircnero de decadecircncia vital consequentemente insensiacutevel a todos os ideais que marcaram o projeto de cultura ocidental Eacute desta forma que a ideia da vontade de poder se estabelece sob o liame da forccedila pois reconhece e se funda na ideia do jogo de poder consideraccedilatildeo que significa assumir o real como um resultado dinacircmico de um contiacutenuo processo de superaccedilatildeo de si mesmo No fim das contas Nietzsche diraacute que o ldquoacontecimento propriamente articulado transcorre abaixo de nossa consciecircncia as seacuteries que vecircm agrave tona e a sucessatildeo de sentimentos pensamentos etc [] satildeo sintomas do acontecimento propriamente

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ditordquo (1 [60] Outono de 1885 ndash Iniacutecio do ano de 1886 p 16 ndash 17) ou seja do instinto elementar

A consciecircncia humana como expressatildeo de vida soacute atuaria superficialmente nos termos de uma ldquounidade reflexivardquo dado que o ldquoeurdquo ou o ldquoindiviacuteduordquo nada mais seriam que manifestaccedilotildees superficiais de uma multiplicidade de forccedilas em atuaccedilatildeo Ainda assim pensar a vontade de poder nos termos de uma unidade vital soacute eacute possiacutevel por meio da percepccedilatildeo de um jogo de forccedilas que tudo envolve e por isso crescer progredir e viver tomam sempre como base um jogo que se alimenta da derrota extinccedilatildeo e decadecircncia de outros quanta dinacircmicos A teoria das forccedilas confere agrave concepccedilatildeo de vida de Nietzsche o caraacuteter do jogo de poder um combate sem qualquer rumo que natildeo seja o simples poder no sentido anteriormente exposto de um curso de superaccedilatildeo contiacutenuo como semblante do devir

A vida eacute assim o fenocircmeno que busca a si mesmo e as forccedilas satildeo o conteuacutedo caoacutetico e dinacircmico do seu ciclo de superaccedilatildeo Natildeo existe qualquer meta ou desenvolvimento no jogo de forccedilas da vida porque o devir eacute o fim em si o que implica dizer que natildeo haacute limite conclusatildeo ou estado de perfeiccedilatildeo que lhe seja aspirado Tendo por base de raciociacutenio a multiplicidade de manifestaccedilotildees que compotildeem a dinacircmica da vida entende-se que metas e finalidades soacute tem sentido dentro de determinados quadros de atuaccedilatildeo quando se eacute observado o campo perspectiviacutestico e ficcional que lhes eacute de fundamental importacircncia ao exerciacutecio do poder

Com isso a vida eacute concebida como um eterno combate entre forccedilas opostas centros de concentraccedilatildeo de poder coalizotildees de forccedila que lutam em prol de mais poder Dessa maneira nunca poderia existir um tipo de estado de equiliacutebrio coacutesmico simplesmente porque a proacutepria conquista jaacute estabelece um novo jogo de tensatildeo com prazo limitado considerando que a fatalidade do cosmos eacute a sua

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condiccedilatildeo de instabilidade e mutabilidade Mas eacute aiacute que nos deparamos com mais uma aparente contradiccedilatildeo do pensamento nietzschiano por um lado a vida eacute concebida como jogo de forccedilas o que acarreta na admissatildeo do caraacuteter contraditoacuterio e caoacutetico do ser Contudo as oposiccedilotildees natildeo existiriam em si pois expressam apenas graus distintos de forccedila que aparecem como oposiccedilotildees em determinados momentos dentro de campos perspectiviacutesticos delimitados por uma seacuterie ininterrupta de fatores

Nietzsche jaacute havia frisado que a identificaccedilatildeo de contradiccedilotildees geralmente diz respeito a um gecircnero de pensamento que natildeo consegue lidar com os aspectos paradoxais da vida Mas natildeo pretendemos com isso justificar todas as contradiccedilotildees da obra nietzschiana mas apenas destacar que parte dessas diz respeito agrave busca pela superaccedilatildeo das limitaccedilotildees do pensamento loacutegico e objetivante da tradiccedilatildeo ocidental O que Nietzsche entende por conhecimento eacute um fenocircmeno essencialmente ficcional e nesse caso expressatildeo do senso de conservaccedilatildeo posto que a ldquoutilidade da conservaccedilatildeo natildeo uma necessidade qualquer teoacuterico-abstrata de natildeo ser enganado encontra-se como motivaccedilatildeo por detraacutes do desenvolvimento dos oacutergatildeos do conhecimentordquo (14 [122] Comeccedilo do ano de 1888 p 273)

O pensamento tradicional que elege na loacutegica racionalista o alvitre da cultura ocidental passa a ser o alvo do empreendimento nietzschiano dado que esse corpo especulativo subsiste ainda como um esquema imageacutetico basilar agrave loacutegica de domiacutenio dos fracos sobre os fortes raciociacutenio equivalente agravequilo que havia teorizado em Genealogia da moral Tornava-se necessaacuterio assim superar a forma linear baixa e decadente de ver e viver do Ocidente elegendo no dinamismo do real o ponto de partida para uma nova sociedade Deste modo a vontade de poder seria um projeto essencialmente filosoacutefico que manteacutem um diaacutelogo com a ciecircncia moderna mas que natildeo almeja menos

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que reconfigurar as formas de ver e viver do tiacutepico homem ocidental

Se por um lado a vida eacute composta pela dinacircmica dos ciclos de oposiccedilatildeo por outro Nietzsche nos diz que as oposiccedilotildees natildeo existem em si Isso significa afirmar que o jogo de poder soacute existe como meio de transformaccedilatildeo e superaccedilatildeo da vontade como processo de desmembramento necessaacuterio ao ciclo unitaacuterio de superaccedilatildeo A luta eacute a esfera relacional do jogo de forccedilas do cosmos mas antes de tudo ela eacute o instrumento de manutenccedilatildeo da proacutepria vida e por isso natildeo existem oposiccedilotildees em si mas apenas manifestaccedilotildees do processo de manutenccedilatildeo do devir

A imprecisa e dinacircmica unidade elementar apenas se transforma alimentando-se de si mesma no seu ciclo de forccedilas posto que eacute um orccedilamento domeacutestico sem perdas e ganhos consequentemente sem valor metas ou fins que natildeo digam respeito ao uacutenico sentido do jogo de forccedilas o proacuteprio poder Sendo assim o devir natildeo busca nada que natildeo seja o proacuteprio devir o que significa que a vida natildeo se eleva ou decai apenas se transforma O nada se encerra como o seu limite porque o devir eacute aquilo que busca a si mesmo Em prol de quecirc De ldquonadardquo que natildeo seja claro o proacuteprio devir A vida eacute assim movimento que natildeo visa mais que a superaccedilatildeo de si mesmo movimento que busca mais movimento isto eacute processo de exposiccedilatildeo gratuita sem qualquer motivaccedilatildeo maior que o simples vir a ser esbanjamento de forccedila no incremento do poder em prol de mais poder

Vida eacute movimento de exposiccedilatildeo gratuita que tem no poder a justificaccedilatildeo do ciclo de interatividade do viver o que implica sempre em dizer que a pulsatildeo de superaccedilatildeo do ser natildeo se origina da fome da escassez ou da pobreza Torna-se necessaacuterio entatildeo destacar que Nietzsche preserva parcialmente ldquodois pensamentos baacutesicos de Darwin de um lado a doutrina da evoluccedilatildeo na concepccedilatildeo especial da doutrina das origens de outro lado a ideia da luta pela

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existecircncia como impulso do desenvolvimento evolucionistardquo (SAFRANSKI 2005 p 243) Mas descartando a noccedilatildeo de linearidade evolutiva no sentido de um melhoramento do vivente8 ele diraacute que a luta natildeo aparece como expressatildeo da simples vontade de viver compreensatildeo subjacente agrave teoria da evoluccedilatildeo mas antes da riqueza exuberacircncia e absurdo esbanjamento imotivado de poder porque ldquoquando se luta luta-se pelo poderrdquo (CI ldquoIncursotildees de um extemporacircneordquo sect14 p 71)

O processo de superaccedilatildeo da vida natildeo eacute passiacutevel de previsatildeo ele natildeo nasce de uma necessidade fugaz do vivente pois a vida quer dar vazatildeo agrave forccedila de ser e a conservaccedilatildeo eacute apenas uma expressatildeo dessa aspiraccedilatildeo Vida eacute expressatildeo da vontade que se revela como eterna luta sendo assim manifestaccedilatildeo da convergecircncia de forccedilas com vistas agrave suplantaccedilatildeo inevitaacutevel de um determinado ponto de estagnaccedilatildeo que Nietzsche tende a compreender como face de decadecircncia Isso implica afirmar que a ascensatildeo de uma ou mais formas de vida ou seja de um campo de concentraccedilatildeo de forccedila em detrimento de outro natildeo eacute necessariamente seletiva como diria Darwin mas eacute apenas o resultado subsequente do ciclo de interaccedilatildeo das forccedilas no percurso de superaccedilatildeo Esse fenocircmeno poderia ser observado sob dois acircngulos distintos primeiramente do poder predominante em vigecircncia e que tende agrave derrocada

8 Natildeo poderia Nietzsche aceitar a linearidade da teoria evolucionista por mais que esse acircmbito de pensamento tenha se pautado na noccedilatildeo de seleccedilatildeo natural a partir de Charles Robert Darwin (1809 ndash 1882) e o maior argumento contra essa teoria vigora no proacuteprio homem Eacute preciso ter em vista que o raciociacutenio nietzschiano eacute majoritariamente antropoloacutegico como poderia o homem moderno debilitado fisicamente e espiritualmente simbolizar uma evoluccedilatildeo bioloacutegica quando comparado ao estereoacutetipo do homem antigo Que seleccedilatildeo natural haveria de existir se os fracos e decadentes perpetuaram-se ao longo dos tempos enquanto os poderosos alvitres da aristocracia haviam sido tragados pelo caos da histoacuteria

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se estagnado no segundo do dinamismo configurador e potencializador impliacutecito agrave coalizatildeo de forccedilas em ascensatildeo para ser Dois estaacutegios distintos mas complementares dado que fazem referecircncia a um uacutenico e mesmo fenocircmeno o devir

Dessa forma Nietzsche seraacute obrigado a admitir que a constituiccedilatildeo pulsional do ser ndash os quanta dinacircmicos ndash eacute no miacutenimo limitada e transitoacuteria afinal de contas do que se alimentaria um fenocircmeno que pudesse crescer infinitamente As forccedilas satildeo limitadas por sua proacutepria constituiccedilatildeo vital como tambeacutem pela inexistecircncia de algo fora do jogo de poder subsequentemente pela inexistecircncia de algo que natildeo tenha por caracteriacutesticas vitais a limitaccedilatildeo e a finitude Ora se o cosmos ldquopode ser pensado como grandeza determinada de forccedila e como nuacutemero determinado de centros de forccedila [] entatildeo se segue daiacute que ele tem de percorrer um nuacutemero calculaacutevel de combinaccedilotildees no grande jogo de dados de sua existecircnciardquo (14 [188] Comeccedilo do ano de 1888 p 338) A finitude das forccedilas acaba por conceder agrave totalidade do mundo o caraacuteter da transitoriedade mas a limitaccedilatildeo desse acircmbito natildeo resulta na restriccedilatildeo do devir propriamente dito afinal de contas a vida se transforma passa mas nunca ldquocomeccedilourdquo

Lembremos que natildeo existe qualquer meta ou desenvolvimento no jogo de forccedilas da vida isso porque o devir eacute o fim em si mesmo o que implica na dissoluccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de limite conclusatildeo9 ou estado de

9 Como jaacute foi dito essa ideia foi carregada pela cultura judaico-cristatilde a partir da referecircncia de um iniacutecio dos tempos e de um estado conclusivo expresso sobretudo pela revelaccedilatildeo do apocalipse o que seria o fim dos tempos O livro biacuteblico intitulado Apocalipse conhecido como ldquolivro das revelaccedilotildeesrdquo eacute o uacuteltimo do Novo Testamento e eacute atribuiacutedo ao apostolo Joatildeo A concepccedilatildeo espaccedilo-temporal linear advinda do cristianismo seria transmitida ao cientificismo moderno que ateacute hoje expressa um anseio por melhoras e aperfeiccediloamentos como se inconscientemente ndash ou mesmo conscientemente se levado em conta o conceito de Espiacuterito Absoluto de Hegel ndash postulasse um estado final de

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perfeiccedilatildeo O principal argumento levantado por Nietzsche contra qualquer teoria que levante a hipoacutetese de um desenvolvimento linear do cosmos seraacute a de que o devir natildeo pode desaguar simplesmente no nada ou pelo menos encerrar-se em um estado final porque se tivesse de ser esse estado a muito teria chegado

Temos aqui mais uma vez dados distintos que aparentam entrar em conflito de um lado a ideia de um devir eterno e incessante do outro a atual convicccedilatildeo de que a essecircncia constitutiva do mundo ndash as forccedilas ndasheacute transitoriedade e finitude A associaccedilatildeo entre um curso de tensatildeo insaciaacutevel com a ideia da finitude das forccedilas concederaacute agrave concepccedilatildeo de vida nietzschiana o caraacuteter ciacuteclico que seraacute desenvolvido a partir da doutrina do eterno retorno do mesmo Em um tempo admitidamente ldquoinfinito cada possiacutevel combinaccedilatildeo seria algum dia alcanccedilada mais ainda ela seria alcanccedilada infinitas vezes E como todas as combinaccedilotildees ainda efetivamente possiacuteveis precisariam ter sido percorridas entre cada ldquocombinaccedilatildeordquo e seu proacuteximo lsquoretornorsquordquo (14 [188] Comeccedilo do ano de 1888 p 338 ndash 339) admite-se aqui um jogo entre finitude do espaccedilo e infinitude temporal isto eacute finitude constitutivas das forccedilas e infinitude do ciclo do devir

A vida se nutre da proacutepria finitude no sentido de que as forccedilas alimentam-se umas das outras ldquoum orccedilamento domeacutestico sem gastos e sem perdas mas do mesmo modo sem crescimento sem ganhosrdquo Viver eacute assim um curso ciacuteclico de interatividade fatal agrave manutenccedilatildeo do todo finitude que colabora com a eternidade de um movimento coacutesmico Nietzsche dialoga com o princiacutepio da

perfeiccedilatildeo um ideal de vida fomentado pelos benefiacutecios da ldquoevoluccedilatildeordquo da humanidade Nietzsche denominaria esse processo como o culto agrave ldquosombra de Deusrdquo da mesma forma que a sombra de Buda havia sido cultuada por seacuteculos numa caverna (GC sect 108 p 126)

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conservaccedilatildeo de energia10 da fiacutesica moderna que entende que a quantidade de poder que se tem ao final de um determinado processo eacute o mesmo que o inicia e por isso a conservaccedilatildeo da vida exige o eterno retorno do mesmo como processo ciacuteclico do jogo de interatividade de forccedilas [limitadas] envolvidas por curso temporal [infinito]

Mas ainda haacute um semblante determinante para a compreensatildeo da teoria das forccedilas evocado pelo eterno retorno do mesmo ele eacute a total impossibilidade de uma forccedila ser aquilo que ela natildeo eacute como que a limitaccedilatildeo do poder de atuaccedilatildeo da vida A necessidade dos mesmos fenocircmenos dentro de um curso cosmoloacutegico natildeo eacute um simples determinismo do real mas eacute apenas a expressatildeo de que natildeo eacute possiacutevel agrave vida natildeo ser ou melhor natildeo eacute possiacutevel agrave vida ser aquilo que ela natildeo eacute Nesse caso tecircm-se a vontade de poder como instacircncia referencial para se pensar o ciclo de forccedilas e o retorno do mesmo como expressatildeo maior desse curso a percepccedilatildeo temporal da vontade de poder Se levado em conta a ideia entenderemos que o viver natildeo poderaacute se manifestar de outra forma que natildeo seja o eterno e insaciaacutevel desejo por poder A repeticcedilatildeo de uma seacuterie subsequente de fenocircmenos num ciclo ininterrupto de forccedilas soacute poderaacute ser entendida como a eterna manifestaccedilatildeo da vontade que tudo envolve Portanto uma face de vida ldquoeacuterdquo necessariamente e nesse caso ela eacute vontade de poder natildeo havendo qualquer outra opccedilatildeo agrave vida que natildeo seja manifestar-se nos termos da vontade de poder

Ao se observar a loacutegica subsequente agrave admissatildeo dessa concepccedilatildeo de vida entenderemos que para

10 O princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia de Julius Robert von Mayer fiacutesico e meacutedico de origem alematilde entende que a energia inerente a um determinado processo sempre eacute constante ou seja que a energia natildeo eacute criada muito menos tem um fim mas que se transforma Mayer natildeo tinha em vista o movimento ciacuteclico do cosmos foi Nietzsche acrescentou isso a partir dos seus estudos da literatura cientiacutefica materialista (SAFRANSKI 2005 p 210)

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Nietzsche o viver natildeo possui um curso de determinaccedilatildeo radical similar agrave fiacutesica moderna Ele apenas aplica no seu filosofar uma ratificaccedilatildeo teoacuterica nos termos da proacutepria tese uma vez que a ideia da vontade que tudo envolve e determina acaba por se caracterizar como um conceito de orientaccedilatildeo reflexiva Neste sentido toda expressatildeo de vida por mais singela e aparentemente desprovida de quaisquer ambiccedilotildees ainda esconde no seu iacutentimo o ansiar elementar que perfaz o viver Falamos aqui de um jogo de tensatildeo e do eterno retorno como expressatildeo temporal da vontade de poder deixando de lado outras possiacuteveis leituras Em vista disso a admissatildeo da ciclicidade temporal junto agrave finitude das forccedilas impotildee a perspectiva da repeticcedilatildeo consecutiva do ciclo de forccedilas e natildeo de vicissitudes esteacutetico-fenomecircnicas como jaacute se pensou

Mas antes de adentrar os aspectos reflexivos que originaram o eterno retorno devemos observar um ponto de destaque do conceito Se a luta coacutesmica tem por implicaccedilatildeo necessaacuteria a superaccedilatildeo de si mesma pode-se perguntar por que natildeo haveria evoluccedilatildeo na vida ou progressatildeo na histoacuteria humana Diferentemente da noccedilatildeo de desenvolvimento linear que marcou o pensamento ocidental a superaccedilatildeo de si vislumbrada por Nietzsche concentra-se na ideia do Devir como um primado epistemoloacutegico o que por si estaacute em contraposiccedilatildeo a tudo aquilo que pensa estar cristalizado no tempo e espaccedilo Mas se a ideia do Devir fosse concebida como uma caracterizaccedilatildeo qualquer entre tantas outras da obra ela seria uma ficccedilatildeo destituiacuteda da grande carga de realidade conferida por seu autor

Superaccedilatildeo natildeo eacute a simples acumulaccedilatildeo de poder muito menos eacute a evoluccedilatildeo de um estado para outro [melhor] ndash mas aleacutem de tudo eacute movimento do todo que se faz por meio do jogo de poder como ciclo de domiacutenio e submissatildeo ascensatildeo e decadecircncia que norteia o devir Superar eacute deste modo movimento que muitas vezes se daacute

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natildeo como um melhoramento de um determinado estado de vida mas como consequente e necessaacuteria degeneraccedilatildeo de um dos campos de concentraccedilatildeo de poder em prol do todo Destarte o vir a ser eacute aquilo que estaacute no primeiro plano da vida e nesse caso estaacute acima do ciclo de interatividade das forccedilas sendo o proacuteprio movimento de superaccedilatildeo em atuaccedilatildeo

Eacute por isso que Nietzsche parece natildeo conseguir conceber as ideias de forccedila vigor e resistecircncia como caracteriacutesticas daquilo que perdera seu dinamismo configurador A percepccedilatildeo de um fluxo coacutesmico parece sempre sobrepor todas as caracterizaccedilotildees apresentadas por sua obra acabando mesmo por abalar a confusa associaccedilatildeo entre vir a ser e devir Os dois conceitos tendem a ser compreendidos como sinocircnimos perfeitos e o proacuteprio Nietzsche por vezes parece natildeo fazer qualquer distinccedilatildeo entre eles Mas eacute fato que palavras no maacuteximo aproximam-se umas das outras em quesitos de significaccedilatildeo nunca existindo uma completa equivalecircncia entre terminologias que nos possibilitassem aferir uma sintomaacutetica substancial mas apenas similar e equivalente Da mesma forma a noccedilatildeo familiarizada de vir a ser parece natildeo dar conta da amplitude conceitual apresentada pelo pensamento nietzschiano sobretudo quando se observado o percurso de seu auto-esclarecimento

O devir natildeo tem o sentido de um simples ldquofluir de todas as coisasrdquo como acusara Heidegger ao afirmar que esse dado revelaria a aquisiccedilatildeo ldquopseudo-heracliacuteticardquo (HEIDEGGER 2010 p 270) de Nietzsche Dentro da obra nietzschiana o devir implica necessariamente a vontade de poder uma vez que eacute ldquoatraveacutes do devir enquanto vontade de poder que se configura a vida A vontade de poder eacute o que instaura valor atraveacutes do ver que potildee perspectivas como condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e de incremento de poderrdquo (CORDEIRO 2010 p 92) Por conseguinte o devir pode ser tido como um sinocircnimo ou

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conceito siacutentese da concepccedilatildeo de vida nietzschiana posto que expressa a mais iacutentima efetiva e afetiva realidade do ser

Eacute desta maneira que Nietzsche afirma no aforismo que o devir haacute de ser justificado a cada instante porque o princiacutepio de conservaccedilatildeo da vida eacute parte da pulsatildeo que impele o viver Mas como se disse a conservaccedilatildeo soacute pode ser observada como resultado da necessidade de descarregar forccedila e instituir poder ou seja da vontade de fortalecimento domiacutenio e expansatildeo do real O devir eacute o proacuteprio ciclo de autojustificaccedilatildeo que tem no princiacutepio da conservaccedilatildeo e expansatildeo seu instinto cardeal mas sempre atentando para o sentido do curso de fatalidade do viver O ciclo verbal da vida soacute se justifica como fenocircmeno que age em volta de si mesmo nada mais

Seja na sua unidade seja na multiplicidade de expressotildees o devir natildeo nutre qualquer valor a priori conquanto ainda eacute aquilo que instaura valor Mas tendo em vista o seu fluxo unitaacuterio Nietzsche diraacute que ele eacute em parte derrocada de um movimento anterior como que manifestaccedilatildeo de vida decadente mas ele eacute tambeacutem forccedila ascendente as vezes acumulada mas que aleacutem de tudo eacute alegre entusiasmada e violenta (15 [2] Iniacutecio de 1888 p 360) Natildeo obstante o conceito de devir parece envolver de forma complementar a ideia da vida ciacuteclica que Nietzsche tinha em vista desde a juventude e que natildeo se diferenciaria profundamente da ideia da vontade de poder especialmente quando referenciada pela teoria das forccedilas Isso nos possibilita falar com maior propriedade da concepccedilatildeo de devir como equivalecircncia conceitual da especulaccedilatildeo da vontade de poder dado que tomou forma no percurso de esclarecimento da obra nietzschiana mas que natildeo se limita a uma simples relaccedilatildeo sintomaacutetica

Partindo do vislumbre da iacutentima relaccedilatildeo entre devir e a especulaccedilatildeo nietzschiana percebe-se que o conceito natildeo soacute envolve as discorridas caracterizaccedilotildees que marcaram o

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auto-esclarecimento das teses ndash pulsatildeo ficcional caos guerra pluralidade na unidade superaccedilatildeo de si e vir a ser ndash acabando por findar com a teorizaccedilatildeo do eterno retorno esse que pode ser inferido como a caracterizaccedilatildeo temporal da vontade de poder Ainda no aforismo 38 [12] de 1885 Nietzsche diraacute que a vida procura incessantemente afirmar a si mesma abenccediloando a si ldquocomo aquilo que haacute de voltar eternamente como um devir que natildeo conhece nenhum tornar-se satisfeitordquo Natildeo eacute por menos que esse conceito possui papel de destaque dentro do seu projeto cosmoloacutegico especialmente no que diz respeito a dimensatildeo de confrontaccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo da modernidade

A vida como o fenocircmeno afirmador de si mesmo faz referecircncia primeiramente agrave constante tentativa de Nietzsche em retomar tudo aquilo que fora negado pela tradiccedilatildeo ocidental Pode-se afirmar que a resoluccedilatildeo postulada para o problema da ldquopossibilidade de se conhecer o mundordquo se apresenta como um delineamento especulativo das manifestaccedilotildees da vida no seu caraacuteter corrente [forccedilas] como dos seus limites [finitude das forccedilas e espaccedilo] modo de manutenccedilatildeo [guerra] modo de operaccedilatildeo [superaccedilatildeo de si] e fatalidade [pluralidade na unidade finitude pureza e caos] Esse eacute um esquema cosmoloacutegico marcado em uacuteltima instacircncia pelo signo conjunto do devir o que pressupotildee a submersatildeo na ciclicidade espaccedilo-temporal derivada ao menos em parte da admissatildeo da transitoriedade e finitude do mundo material como tambeacutem da eterna pulsatildeo existecircncia da vida

A vontade de poder eacute assim uma especulaccedilatildeo inconclusa que atenta para duas hipoacuteteses que natildeo alteram a tese geral Primeiramente ela destaca que natildeo existe qualquer essecircncia originaacuteria do mundo e mesmo que ldquoexistisserdquo tal essecircncia soacute poderia ser o simples devir ciacuteclico visto que a uacutenica realidade que nos eacute acessiacutevel manifesta-se como um infinito jogo de poder No segundo momento a tese procura lidar com a possibilidade de

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existecircncia de um conteuacutedo originaacuterio mas natildeo no sentido de um elemento suprassensiacutevel que antecedesse o devir mas sim de um abismo enigmaacutetico talvez ainda um abismo nadificador

Independentemente disso Nietzsche concluiraacute que natildeo existe qualquer essecircncia da vida apenas manifestaccedilatildeo da vontade isto eacute vida a se efetivar no seu curso de realidade A vontade de poder eacute movimento criador e reconfigurador do real movimento que se faz por meio do combate entre polos opostos de forccedilas que instituem a diversidade de formas perspectivas e interpretaccedilotildees no jogo de poder por consequecircncia impossibilitando qualquer estado de equiliacutebrio entre forccedilas Dessa forma a tese designa ldquoo conceito de uma relaccedilatildeo decodificada no horizonte da tensatildeordquo (MOURA 2005 p 197) eacute uma ideia que tem em vista o Pathos elementar ao qual todo o vir a ser coacutesmico resulta

Com a vontade de poder a existecircncia eacute determinada como unidade muacuteltipla ndash multiplicidade que se realiza sob um uacutenico horizonte o poder ndash um processo realizado por meio do movimento de diferenciaccedilatildeo motora onde a guerra eacute o mecanismo basilar do ciclo de tensatildeo e superaccedilatildeo Por conseguinte ao tomar por elementos de caracterizaccedilatildeo as noccedilotildees de forccedila finitude das forccedilas guerra superaccedilatildeo de si e ciclicidade temporal a tese implicaraacute numa caracterizaccedilatildeo da vida como devir ou seja natildeo do ser na sua essecircncia mas a sua manifestaccedilatildeo relacional

Nietzsche tinha em vista apresentar sua ideia como a ldquosoluccedilatildeordquo para todos os ldquoenigmasrdquo ou ainda uma ldquoluz para os ldquomais fortes mais desassombrados mais iacutensitos agrave meia-noiterdquo11 homens que estariam para aleacutem do tempo presente Sendo uma teoria dinacircmica a vontade de poder assume a proacutepria condiccedilatildeo interpretativa e por isso acaba

11 Recortes do jaacute citado aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885

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por se configurar como um discurso que se volta para um puacuteblico determinado O que fica evidente eacute que o projeto ambicionava assinalar as caracteriacutesticas manifestas daquilo que deveria subsistir como o correlato fenomecircnico da atividade interpretativa ou seja a possibilidade de uma nova concepccedilatildeo de mundo para aleacutem das sombras da teologia e do cientificismo moderno Outro fator de destaque eacute que a tese eacute genuinamente especulativa por isso eacute importante levar em conta que o desejo por fundamentaccedilatildeo cientiacutefica de Nietzsche era totalmente natural na Alemanha de 1870 a 1880

Ainda ao se falar de cosmologia eacute-se levado a concluir que Nietzsche insere-se necessariamente na tradiccedilatildeo como um metafiacutesico contudo a tese eacute apresentada como um projeto antimetafiacutesico Natildeo pretendemos avaliar aqui ateacute que ponto ela eacute ou natildeo metafiacutesica12 visto que nos falta espaccedilo para a avaliaccedilatildeo dessa inferecircncia Mas estamos em condiccedilotildees de entender que a vontade de poder manteacutem fortes laccedilos de proximidade com uma especulaccedilatildeo metafiacutesica tradicional ao se configurar como uma cosmologia filosoacutefica aquela ldquoque examina tais hipoacuteteses e estabelece especulaccedilotildees fundadas apenas em meacutetodos metafiacutesicosrdquo (SANTOS 1959 p 2008)Mas o que seria por fim a vontade de poder

Se tentarmos compreender Nietzsche a partir de seus proacuteprios textos perceberemos que a tese eacute o reconhecimento de um fenocircmeno maior no seu movimento de superaccedilatildeo de si mesmo ao abalar tudo o que a estagnaccedilatildeo ocidental erguera no decorrer da histoacuteria Como sabemos a observaccedilatildeo do fluxo natural da vida que implicara tambeacutem na observaccedilatildeo do proacuteprio corpo legou ao conceito vontade de poder muito de sua personalidade Partindo desse dado podemos perceber que Nietzsche se compreendia como parte constituinte da forccedila

12 Tese levantada pela primeira vez por Heidegger

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reconfiguraccedilatildeo e ascendecircncia do devir como admitiria em uma carta dirigida ao amigo Peter Gast de 1881 onde afirma ldquoeu com frequecircncia me vejo como o rabisco que um poder desconhecido traccedila no papel experimentando uma nova penardquo (Fim de agosto de 1881)

Por fim sem perder de vista a interpretaccedilatildeo do aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885 eacute preciso chamar a atenccedilatildeo para um dado conclusivo que nem sempre recebe a devida consideraccedilatildeo dos inteacuterpretes da obra o traacutegico ou dionisiacuteaco Esse elemento tem um lugar de destaque ao final da passagem ao declarar ldquoeste meu mundo dionisiacuteaco do criar eternamente a si mesmo do destruir eternamente a si mesmo este mundo misterioso da dupla voluacutepia este meu lsquoaleacutem de bem e malrsquordquo13 A referecircncia ao mundo dionisiacuteaco natildeo eacute um simples artifiacutecio literaacuterio destituiacutedo de significado muito menos um acidente justamente porque como esclarece Ruumldiger Safranski (1995) o ldquomundo dionisiacuteaco da vontade elementar eacute ao mesmo tempo o mundo heracliacutetico da guerra como pai de todas as coisasrdquo (2005 p 58)

Junto agrave claacutessica figura de representaccedilatildeo que eacute o dionisiacuteaco chega-se ao ponto conclusivo para um vislumbre geral da especulaccedilatildeo da vontade de poder a tese que para laacute de suas ambiccedilotildees reflete o ser perspectivo de Nietzsche como um espelho e por isso reflete tambeacutem o conteuacutedo velado de sua ideia A concepccedilatildeo de vida nietzschiana fala daquilo ldquoque o grego sob a designaccedilatildeo psycheacute (Ψυχή) de modo amplo e geral caracterizou como movimento que desde si mesmo move a si mesmordquo (FOGEL 2008 p 11) e talvez se aproxime mais da proacutepria noccedilatildeo de Physis (SAMPAIO 2008 p 143) caracteriacutestica da filosofia preacute-platocircnica O que Nietzsche faz ao identificar o real enquanto verbo criador e destruidor

13 Mais um recorte do jaacute citado aforismo 38 [12] de Junho ndash julho de 1885

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de si [devir] eacute retomar como paracircmetro de avaliaccedilatildeo uma cosmovisatildeo filosoacutefica arcaica mas precisamente preacute-platocircnica o mundo heracliacutetico da guerra como pai de todas as coisas

Nota de Esclarecimento

Satildeo de Nietzsche as obras sem indicaccedilatildeo de autor Abreviamos os tiacutetulos como segue ZA ndash Assim falou Zaratustra ABM ndash Para aleacutem do bem e do mal CI ndash Crepuacutesculo dos iacutedolos CP ndash Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos VP ndash A vontade de poder Forma de citaccedilatildeo Para os textos publicados por Nietzsche o algarismo romano indica a parte ou capiacutetulo o algarismo araacutebico indica a seccedilatildeo no caso de ZA e CI o algarismo romano indica a parte do livro seguida do tiacutetulo da passagem e do algarismo araacutebico que indica a seccedilatildeo

Para as anotaccedilotildees poacutestumas os algarismos araacutebicos seguidos da data indicam o fragmento poacutestumo e a eacutepoca em que foi redigida Quanto aos demais autores indicamos o autor e a data de publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo seguida da paacutegina

Referecircncias CARVALHO Daniel Felipe O silecircncio da natureza e o barulho

da moralidade Nietzsche e o problema da antropormofizaccedilatildeo in Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche

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____________________ A filosofia na era traacutegica dos gregos

Traduccedilatildeo Gabriel Valladatildeo Silva Porto Alegre ndash RS Ed LampPM Pocket 2011

__________________ Cinco prefaacutecios Traduccedilatildeo Pedro

Sussekind Rio de Janeiro ndash RJ Editora 7 Letras 1996 __________________ Humano demasiado humano Traduccedilatildeo

Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2011

__________________ A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de

Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2012 __________________ Aurora Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza

Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2012 __________________ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2011

__________________ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2005

__________________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Traduccedilatildeo Paulo

Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Editora Companhia das Letras 2010

__________________ Genealogia da moral uma polecircmica

Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2009

Robson Costa Cordeiro (Org) | 333

__________________ O anticristo e Ditirambos de Dioniacutesio Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2009

____________________ Ecce homo Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de

Souza Satildeo Paulo ndash SP Ed Companhia das letras 2008 ____________________ A vontade de poder Traduccedilatildeo Maacutercos

Sineacutesio Pereira Fernandes Francisco Joseacute Dias de Moraes Rio de Janeiro ndash JR 1ordf Ed Contraponto 2008

____________________ Der Wille zur Macht Stuttgart ndash

Deustchland Ed Kroner 1996 ____________________ Despojos de uma trageacutedia Traduccedilatildeo

Ferreira da Costa Portugal ndash Porto Editora Porto 1944 ____________________ Fragmentos poacutestumos1885 ndash 1887 VI

Rio de Janeiro ndash RJ Ed EgnForense Universitaacuteria 2013 ____________________ Fragmentos poacutestumos 1887 ndash 1889 VII

Rio de Janeiro ndash RJ Ed EgnForense Universitaacuteria 2012 NOVELLO Maacuterio O que eacute cosmologia a revoluccedilatildeo do pensamento

cosmoloacutegico Rio de Janeiro ndash RJ Ed Jorge Zahar 2006 PREacute-SOCRAacuteTICOS Os pensadores Traduccedilatildeo SOUZA Joseacute

Cavalcante de ALMEIDA Anna Lia Amaral de CAVALCANTE Iacutesis Lana Borges CAVALCANTE Maria Conceiccedilatildeo Martins KUHNEN Remberto Francisco FILHO Rubens Rodrigues Torres MOURA Carlos Alberto Ribeiro de STEIN Ernildo BARROS Heacutelio Leite de DEVEGILI Arnildo BARROS Mary Amazonas Leite de FLOR Paulo Frederico REGIS Wilson Regis Satildeo Paulo ndash SP 2ordf Ed Abril Cultural 1978

OLIVEIRA Jelson Roberto de Nietzsche e o Heraacuteclito que ri

solidatildeo alegria traacutegica e devir inocente Revista Veritas Vol 3 p 217-235 2010 Disponiacutevel em

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httprevistaseletronicaspucrsbrojsindexphpveritasarticleview6263 Acesso em 25 de julho de 2009

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Paulo ndash SP Logos 1959 SAMPAIO Alan da Silva Origem do Ocidente a antiguidade grega no

jovem Nietzsche Ijuiacute ndash RS Ed Inijuiacute 2008 VATTIMO Gianni Diaacutelogo com Nietzsche Trad de Silvana

Cobucci Leite Satildeo Paulo ndash SP Martins Fontes 2010

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