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JOSÉ DE ALENCAR

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JOSÉDEALENCAR

IRACEMA

LendadoCeará

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Sumário

PrólogoCapítuloICapítuloIICapítuloIIICapítuloIVCapítuloVCapítuloVICapítuloVIICapítuloVIIICapítuloIXCapítuloXCapítuloXICapítuloXIICapítuloXIIICapítuloXIVCapítuloXVCapítuloXVICapítuloXVIICapítuloXVIIICapítuloXIXCapítuloXXCapítuloXXICapítuloXXIICapítuloXXIIICapítuloXXIVCapítuloXXVCapítuloXXVICapítuloXXVIICapítuloXXVIIICapítuloXXIXCapítuloXXX

Page 4: JOSÉ DE ALENCAR

CapítuloXXXICapítuloXXXIICapítuloXXXIIINotasdoAutorCartaaoDr.JaguaribeMomentohistóricoMomentoliterárioCréditos

Page 5: JOSÉ DE ALENCAR

À

TERRANATALUMFILHOAUSENTE.

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Prólogo

Meuamigo.Estelivroovainaturalmenteencontraremseupitorescosítiodavárzea,no

docelar,aquepovoaanumerosaprole,alegriaeesperançadocasal.Imaginoqueéahoramaisardentedasesta.Osolapinodardejaraiosdefogosobreasareiasnatais;asavesemudecem;

as plantas languem. A natureza sofre a influência da poderosa irradiaçãotropical,queproduzodiamanteeogênio,asduasmaissublimesexpressõesdopodercriador.

Osmeninos brincamna sombra do outão, compequenos ossos de reses,quefiguramaboiada.Eraassimqueeubrincava,háquantosanos,emoutrosítio,nãomuidistantedoseu.Adonadacasa,ternaeincansável,mandaabrirococoverde,oupreparaosaborosocremedoburitipararefrigeraroesposo,quepoucohárecolheudesuaexcursãopelosítio,eagorarepousaembalando-senamaciaecômodarede.

Abraentãoeste livrinho,quelhechegadacorte imprevisto.Percorrasuaspáginasparadesenfastiaroespíritodascousasgravesqueotrazemocupado.

Talvezme desvaneça amor do ninho, ou se iludam as reminiscências dainfânciaavivadasrecentemente.Senão,creioque,aoabriropequenovolume,sentiráumaondadomesmoaromasilvestreebravioquelhevemdavárzea.Derrama-o a brisa que perpassou os espatos da carnaúba e a ramagem dasaroeirasemflor.

Essaonda é a inspiraçãodapátria que volve a ela, agora e sempre, comovolvedecontínuooolhardoinfanteparaomaternosemblantequelhesorri.

O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalinoazul, e depois vazado no coração cheio das recordações vivaces de umaimaginaçãovirgem.Escrevi-oparaserlidolá,navarandadacasarústicaounafresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os múrmuros doventoquecrepitanaareia,oufarfalhanaspalmasdoscoqueiros.

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Paralá,poisqueéoberçoseu,oenvio.Masassimmandadoporumfilhoausente,paramuitosestranho,esquecido

talvezdospoucosamigos,esólembradopelaincessantedesafeição,qualsorteseráadolivro?

Que lhe falte hospitalidade, não há temer. As auras de nossos camposparecemtãoimpregnadasdessavirtudeprimitiva,quequantasraçashabitemaí a inspiram com o hálito vital. Receio sim que seja recebido comoestrangeiroehóspedenaterradosmeus.

Se porém, ao abordar às plagas do Mocoripe, for acolhido pelo bomcearense, prezado de seus irmãos ainda mais na adversidade do que nostemposprósperos,estoucertoqueo filhodeminhaalmaacharánaterradeseupaiaintimidadeeconchegodafamília.

Onomedeoutrosfilhosenobrecenossaprovíncianapolíticaenaciência;entre eles omeu, hoje apagado, quandoo trazia brilhantemente aquele queprimeiroocriou.

Neste momento mesmo, a espada heroica de muito bravo cearense vaiceifandonocampodabatalhaamplamessedeglória.Quemnãopodeilustrara terranatalcantaas lendassuas, semmetro,narude toadadeseusantigosfilhos.

Acolha pois a primeira mostra e ofereça a nossos patrícios, a quem édedicada.

Estepedidofoiumdosmotivosde lheendereçaro livro;ooutro lhedireidepoisqueotenhalido.

Muitacousameocorredizersobreoassunto,quetalvezdeveraanteciparàleituradaobra,paraprevenirasurpresadealgunseresponderàsobservaçõesoureparosdeoutros.

Massemprefuiavessoaosprólogos;emmeuconceitoelesfazemàobraomesmoqueopássaroàfrutaantesdecolhida;roubamasprimíciasdosaborliterário.Porissomereservoparadepois.

Naúltimapáginameencontrarádenovo;entãoconversaremosagosto,emmais liberdade do que teríamos neste pórtico do livro, onde as etiquetasmandam receber o público com a gravidade e reverência devidas a tão alto

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senhor.

RiodeJaneiro,maiode1865.

JosédeAlencar

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CapítuloI

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia[1] nasfrondesdacarnaúba;

Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do solnascente,perlongandoasalvaspraiasensombradasdecoqueiros;

Serenai verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que obarcoaventureiromansoresvaleàflordaságuas.

Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta aofrescoterralagrandevela?

Ondevaicomobrancaalcíone,buscandoorochedopátrionassolidõesdooceano?

Trêsentesrespiramsobreofrágillenhoquevaisingrandoveloce,maremfora.

Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; umacriançaeumrafeiroqueviramaluznoberçodasflorestas,ebrincamirmãos,filhosambosdamesmaterraselvagem.

A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre omarulhodasvagas:

–Iracema[2]!Omoço guerreiro, encostado aomastro, leva os olhos presos na sombra

fugitivada terra; a espaçosoolharempanadopor tênue lágrimacai sobreojirau[3], onde folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seuinfortúnio.

Nessemomentoolábioarrancad’almaumagrosorriso.Quedeixaraelenaterradoexílio?Umahistóriaquemecontaramnas lindasvárzeasondenasci,àcaladada

noite,quandoaluapasseavanocéuargenteandooscampos,eabrisarugitavanospalmares.

Refrescaovento.O rulo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas; desaparece no

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horizonte. Abre-se a imensidade dos mares; e a borrasca enverga, como ocondor,asfoscasasassobreoabismo.

Deusteleveasalvo,briosoealtivobarco,porentreasvagasrevoltas,etepojenalgumaenseadaamiga.Sopremparatiasbrandasauras;eparatijaspeieabonançamaresdeleite.

Enquantovogasassimàdiscriçãodovento,airosobarco,volvaàsbrancasareiasasaudade,queteacompanha,masnãosepartedaterraonderevoa.

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CapítuloII

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceuIracema.

Iracema,avirgemdoslábiosdemel,quetinhaoscabelosmaisnegrosqueaasadagraúna[1],emaislongosqueseutalhedepalmeira.

Ofavodajati[2]nãoeradocecomoseusorriso;nemabaunilharecendianobosquecomoseuhálitoperfumado.

Mais rápida que a corça selvagem, amorena virgem corria o sertão e asmatas do Ipu[3], onde campeava sua guerreira tribo, da grande naçãotabajara[4].Opégrácilenu,malroçando,alisavaapenasaverdepelúciaquevestiaaterracomasprimeiraságuas.

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Umdia,aopinodosol,elarepousavaemumclarodafloresta.Banhava-lheo corpo a sombra da oiticica[5] mais fresca do que o orvalho da noite. Osramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos.Escondidosnafolhagemospássarosameigavamocanto.

Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à docemangabaquecorouemmanhãdechuva.

Enquantorepousa,emplumadaspenasdogará[6]as flechasdeseuarco,e

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concertacomosabiádamata,pousadonogalhopróximo,ocantoagreste.Agraciosaará[7],suacompanheiraeamiga,brincajuntodela.Àsvezessobe

aosramosdaárvoreedeláchamaavirgempelonome;outrasremexeouru[8]

de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios docrautá[9], as agulhas da juçara[10] com que tece a renda e as tintas de quematizaoalgodão.

Rumorsuspeitoquebraadoceharmoniadasesta.Ergueavirgemosolhos,queosolnãodeslumbra;suavistaperturba-se.

Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se éguerreiroenãoalgummauespíritoda floresta.Temnas facesobrancodasareiasquebordamomar;nosolhosoazultristedaságuasprofundas.Ignotasarmasetecidosignotoscobrem-lheocorpo.

Foi rápido, comooolhar,ogestode Iracema.A flechaembebidanoarcopartiu.Gotasdesangueborbulhamnafacedodesconhecido.

De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logosorriu.Omoçoguerreiroaprendeunareligiãodesuamãe,ondeamulherésímbolodeternuraeamor.Sofreumaisd’almaquedaferida.

O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém avirgemlançoudesioarcoeauiraçaba[11],ecorreuparaoguerreiro,sentidadamágoaquecausara.

Amãoquerápida feriraestancoumais rápidaecompassivao sanguequegotejava. Depois Iracema quebrou a flecha[12] homicida: deu a haste aodesconhecido,guardandoconsigoapontafarpada.

Oguerreirofalou:–Quebrascomigoaflechadapaz?–Quemteensinou,guerreirobranco,alinguagemdemeusirmãos?Donde

viesteaestasmatas,quenuncaviramoutroguerreirocomotu?–Venhodebemlonge,filhadasflorestas.Venhodasterrasqueteusirmãos

jápossuíram,ehojetêmosmeus.– Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das

aldeias,eàcabanadeAraquém,paideIracema.

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CapítuloIII

Oestrangeiroseguiuavirgematravésdafloresta.Quandoosoldescambavasobreacristadosmontes,ea roladesatavado

fundodamataosprimeirosarrulhos,elesdescobriramnovaleagrandetaba;emaislonge,penduradanorochedo,àsombradosaltosjuazeiros,acabanadoPajé.

O ancião fumava à porta, sentado na esteira de carnaúba, meditando ossagrados ritos de Tupã. O tênue sopro da brisa carmeava, como frocos dealgodão,oscompridoseraroscabelosbrancos.Deimóvelqueestava,sumiaavidanosolhoscavosenasrugasprofundas.

OPajélobrigouosdoisvultosqueavançavam;cuidouverasombradeumaárvoresolitáriaquevinhaalongando-sepelovalefora.

Quando os viajantes entraram na densa penumbra do bosque, então seuolharcomoodotigre,afeitoàs trevas,conheceuIracemaeviuqueaseguiaumjovemguerreiro,deestranharaçaelongesterras.

As tribos tabajaras, d’além Ibiapaba[1], falavam de uma nova raça deguerreiros, alvos como flores de borrasca, e vindos de remota plaga àsmargens doMearim. O ancião pensou que fosse um guerreiro semelhante,aquelequepisavaoscamposnativos.

Tranquilo,esperou.Avirgemapontaparaoestrangeiroediz:–Eleveio,pai.–Veiobem.ÉTupãquetrazohóspedeàcabanadeAraquém.Assimdizendo,oPajépassouocachimboaoestrangeiro;eentraramambos

nacabana.Omancebosentou-senaredeprincipal,suspensanocentrodahabitação.Iracemaacendeuofogodahospitalidadeetrouxeoquehaviadeprovisões

para satisfazer a fome e a sede: trouxe o resto da caça, a farinha-d’água, osfrutossilvestres,osfavosdemeleovinhodecajueananás.

Depoisavirgementroucomaigaçaba[2],queencheranafontepróximade

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águafrescaparalavarorostoeasmãosdoestrangeiro.Quandooguerreiroterminouarefeição,ovelhoPajéapagouocachimboe

falou:–Vieste[3]?–Vim–respondeuodesconhecido.–Bem-vindo.OestrangeiroésenhornacabanadeAraquém.Ostabajaras

têmmilguerreirosparadefendê-loemulheressemcontaparaservi-lo.Dize,etodosteobedecerão.

– Pajé, eu te agradeço o agasalho que me deste. Logo que o sol nascer,deixareituacabanaeteuscamposaondevimperdido;masnãodevodeixá-lossemdizer-tequeméoguerreiro,quefizesteamigo.

–FoiaTupãqueoPajéserviu:eletetrouxe,elete levará.Araquémnadafezpelohóspede;nãoperguntadondevem,equandovai.Sequeresdormir,desçamsobretiossonhosalegres;sequeresfalar,teuhóspedeescuta.

Oestrangeirodisse:– Sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do

Jaguaribe[4], perto do mar, onde habitam os pitiguaras[5], inimigos de tuanação.MeunomeéMartim[6],quenatualínguadizcomofilhodeguerreiro;meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria. JámeusdestroçadoscompanheirosvoltarampormaràsmargensdoParaíba,deonde vieram; e o chefe, desamparado dos seus, atravessa agora os vastossertõesdoApodi.

Sóeude tantos fiquei,porqueestavaentreospitiguarasdeAcaracu[7],nacabana do bravo Poti, irmão de Jacaúna, que plantou comigo a árvore daamizade. Há três sóis partimos para a caça; e perdido dos meus, vim aoscamposdostabajaras.

– Foi algummau espírito da floresta[8] que cegou o guerreiro branco noescurodamata,respondeuoancião.

Acauãpiou,além,naextremadovale.Caíaanoite.

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CapítuloIV

OPajévibrouomaracá,esaiudacabana,porémoestrangeironãoficousó.Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de

Araquémeosguerreirosvindosparaobedecer-lhe.– Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale tua rede durante a

noite;eosoltragaluzateusolhos,alegriaàtuaalma.E,assimdizendo,Iracematinhaolábiotrêmulo,eúmidaapálpebra.–Tumedeixas?–perguntouMartim.–Asmaisbelasmulheres[1]dagrandetabacontigoficam.–ParaelasafilhadeAraquémnãodeviaterconduzidoohóspedeàcabana

doPajé.–Estrangeiro,Iracemanãopodesertuaserva.Éelaqueguardaosegredo

da jurema[2]eomistériodosonho.SuamãofabricaparaoPajéabebidadeTupã.

Oguerreirocristãoatravessouacabanaesumiu-senatreva.Agrandetabaerguia-senofundodovale,iluminadapelosfachosdaalegria.

Rugiaomaracá;aoquebrolentodocantoselvagem,batiaadançaemtronoarudecadência.OPajé inspiradoconduziaosagradotripúdioediziaaopovocrenteossegredosdeTupã.

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O maior chefe da nação tabajara, Irapuã[3], descera do alto da serraIbiapaba, para levar as tribos do sertão contra o inimigo pitiguara. Osguerreirosdovalefestejamavindadochefe,eopróximocombate.

Omancebocristãoviulongeoclarãodafesta,epassoualém,eolhouocéuazul sem nuvens. A estrela morta[4], que então brilhava sobre a cúpula dafloresta,guiouseupassofirmeparaasfrescasmargensdoAcaracu.

Quandoeletransmontouovalee iapenetrarnamata,ovultodeIracemasurgiu. A virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala semmurmurejarporentrearamagem.

–Porque–disse ela–o estrangeiro abandonaa cabanahospedeira semlevar o presente da volta? Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dostabajaras?

Ocristãosentiuquantoerajustaaqueixa;eachou-seingrato.

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–Ninguémfezmalaoteuhóspede,filhadeAraquém.Eraodesejodeverseusamigosqueoafastavadoscamposdostabajaras.Não levavaopresentedavolta;maslevaemsuaalmaalembrançadeIracema.

– Se a lembrança de Iracema estivesse n’alma do estrangeiro, ela não odeixariapartir.Oventonãolevaaareiadavárzea,quandoaareiabebeaáguadachuva.

Avirgemsuspirou:–Guerreirobranco, esperaqueCaubi volteda caça.O irmãode Iracema

temoouvidosutilquepressenteaboicininga[5]entreosrumoresdamata;eoolhardooitibó[6]quevêmelhornatreva.Eleteguiaráàsmargensdoriodasgarças.

–QuantotemposepassaráantesqueoirmãodeIracemaestejadevoltanacabanadeAraquém?

–Osol,quevainascer,tornarácomoguerreiroCaubiaoscamposdoIpu.–Teuhóspedeespera,filhadeAraquém;masseosoltornandonãotrouxer

oirmãodeIracema,elelevaráoguerreirobrancoàtabadospitiguaras.MartimvoltouàcabanadoPajé.AalvaredequeIracemaperfumaracomaresinadobenjoimguardava-lhe

umsonocalmoedoce.O cristão adormeceuouvindo suspirar, entre osmurmúriosda floresta, o

cantomaviosodavirgemindiana.

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CapítuloV

O galo-da-campina ergue a poupa escarlate fora do ninho. Seu límpidotrinadoanunciaaaproximaçãododia.

Aindaasombracobreaterra.Jáopovoselvagemcolheasredesnagrandetabaecaminhaparaobanho.OvelhoPajé,queveloutodaanoite,falandoàsestrelas, conjurando os maus espíritos das trevas[1], entra furtivamente nacabana.

Eisretroaoboré[2]pelaamplidãodovale.Travam das armas os rápidos guerreiros, e correm ao campo. Quando

foramtodosnavastaocara[3]circular,Irapuã,ochefe,soltouogritodeguerra:– Tupã deu à grande nação tabajara toda esta terra. Nós guardamos as

serras,dondemanamoscórregos,comosfrescosipusondecresceamanivaeo algodão; e abandonamos aobárbaropotiguara[4], comedorde camarão, asareiasnuasdomar,comossecostabuleirossemáguaesemflorestas.Agoraospescadoresdapraia, semprevencidos,deixamvirpelomara raçabrancados guerreiros de fogo, inimigos de Tupã. Já os emboabas estiveram noJaguaribe;logoestarãoemnossoscampos;ecomelesospotiguaras.Faremosnós, senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em seu ninho,quandoaserpenteenroscapelosgalhos?

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O irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo.Derrubandoafronte,cobreorúbidoolhar:

–Irapuãfalou,disse.Omaismoçodosguerreirosavança:–Ogaviãopairanosares.Quandoanambu levanta, elecaidasnuvense

rasga as entranhas da vítima.O guerreiro tabajara, filho da serra, é comoogavião.

Troaeretroaapocema[5]daguerra.Ojovemguerreiroergueraotacape;eporsuavezobrandiu.Girandonoar,

rápidaeameaçadora,aarmadochefepassoudemãoemmão.

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OvelhoAndira[6],irmãodoPajé,adeixoutombar,ecalcounochão,comopéágilaindaefirme.

Pasma o povo tabajara da ação desusada. Voto de paz em tão provado eimpetuoso guerreiro! É o velho herói, que cresceu na sanha, crescendo nosanos,éoferozAndiraquemderrubouotacape,núnciodapróximaluta?

Incertosemudostodosescutam:–Andira,ovelhoAndira,bebeumaissanguenaguerradoquejábeberam

cauimnasfestasdeTupã,todosquantosguerreirosalumiaagoraaluzdeseusolhos.Eleviumaiscombatesemsuavidadoqueluas lhedespiramafronte.Quanto crânio de potiguara escalpelou sua mão implacável, antes que otempolhearrancasseoprimeirocabelo?EovelhoAndiranuncatemeuqueoinimigopisasseaterradeseuspais;masalegrava-sequandoelevinha,esentiacomofarodaguerraajuventuderenascernocorpodecrépito,comoaárvoresecarenascecomosoprodo inverno.Anaçãotabajaraéprudente.Eladeveencostar o tacape da luta para tanger omembi da festa. Celebra, Irapuã, avinda dos emboabas e deixa que cheguem todos aos nossos campos. EntãoAndirateprometeobanquetedavitória.

Desabriu,enfim,Irapuãafundacólera:–Ficatu,escondidoentreasigaçabasdevinho,fica,velhomorcego,porque

temes a luzdodia, e sóbebeso sangueda vítimaquedorme. Irapuã leva aguerranopunhodeseutacape.Oterrorqueeleinspiravoacomoroucosomdo boré. O potiguara já tremeu ouvindo rugir na serra, mais forte que oribombodomar.

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CapítuloVI

MartimvaiapassoepassoporentreosaltosjuazeirosquecercamacabanadoPajé.

Erao tempoemqueodocearacati[1]chegadomar, ederramaadeliciosafrescura pelo árido sertão.A planta respira; umdoce arrepio erriça a verdecomadafloresta.

O cristão contempla o ocaso do sol. A sombra, que desce dosmontes ecobre o vale, penetra sua alma. Lembra-se do lugar onde nasceu, dos entesqueridosquealideixou.Sabeelesetornaráavê-losalgumdia?

Em torno carpe a natureza o dia que expira. Soluça a onda trépida elacrimosa;gemeabrisanafolhagem;eomesmosilêncioaneladeaflito.

Iracemaparouemfacedojovemguerreiro:– É a presença de Iracema que perturba a serenidade no rosto do

estrangeiro?Martimpousoubrandosolhosnafacedavirgem:–Não,filhadeAraquém:tuapresençaalegra,comoaluzdamanhã.Foia

lembrançadapátriaquetrouxeasaudadeaocoraçãopressago.–Umanoivateespera?O forasteiro desviou os olhos. Iracema dobrou a cabeça sobre a espádua,

comoatenrapalmadacarnaúba,quandoachuvapeneiranavárzea.– Ela não émais doce do que Iracema, a virgemdos lábios demel, nem

maisformosa!–murmurouoestrangeiro.–Aflordamataéformosaquandotemramaqueaabrigue,etroncoonde

seenlace.Iracemanãoviven’almadeumguerreiro:nuncasentiuafrescuradeseusorriso.

Emudeceram ambos, com os olhos no chão, escutando a palpitação dosseiosquebatiamopressos.

Avirgemfalouenfim:–Aalegriavoltará logoàalmadoguerreirobranco;porqueIracemaquer

queelevejaantesdanoiteanoivaqueoespera.

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MartimsorriudoingênuodesejodafilhadoPajé.–Vem!disseavirgem.Atravessaramobosqueedesceramaovale.Ondemorriaafaldadacolinao

arvoredo era basto: densa abóbada de folhagem verde-negra cobria o áditoagreste,reservadoaosmistériosdoritobárbaro.

Erade juremaobosquesagrado.Emtornocorriamostroncosrugososdaárvore de Tupã; dos galhos pendiam ocultos pela rama escura os vasos dosacrifício; lastravamo chão as cinzas de extinto fogo, que servira à festa daúltimalua.

Antesdepenetrarorecônditosítio,avirgemqueconduziaoguerreiropelamãohesitou,inclinandooouvidosutilaossuspirosdabrisa.Todososligeirosrumoresdamatatinhamumavozparaaselvagemfilhadosertão.Nadahaviaporémdesuspeitonointensorespirodafloresta.

Iracema fez ao estrangeiro um gesto de espera e silêncio; logo depoisdesapareceunomaissombriodobosque.Osolaindapairavasuspensonovisodaserrania;ejánoiteprofundaenchiaaquelasolidão.

Quandoavirgemtornou,trazianumafolhagotasdeverdeeestranholicorvazadasdaigaçaba,queelatiraradoseiodaterra.Apresentouaoguerreiroataçaagreste.

–Bebe!Martim sentiu perpassar nos olhos o sono da morte, porém logo a luz

inundou-lheosseiosd’alma;aforçaexuberouemseucoração.Reviveuosdiaspassadosmelhordoqueostinhavivido: fruiuarealidadedesuasmaisbelasesperanças.

Ei-loquevoltaàterranatal,abraçasuavelhamãe,revêmaislindoeternooanjopurodosamoresinfantis.

Masporque,malde volta aoberçodapátria, o jovemguerreirodenovoabandonaotetopaternoedemandaosertão?

Jáatravessaasflorestas;jáchegaaoscamposdoIpu.BuscanaselvaafilhadoPajé.Segueorastroligeirodavirgemarisca,soltandoàbrisacomocrebrosuspiroodocenome:

–Iracema!Iracema!...

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Jáaalcançaecinge-lheobraçopelotalheesbelto.Cedendo à meiga pressão, a virgem reclinou-se ao peito do guerreiro, e

ficou ali trêmula e palpitante como a tímida perdiz, quando o ternocompanheirolhearrufacomobicoamaciapenugem.

Olábiodoguerreirosuspiroumaisumavezodocenome,esoluçou,comosechamaraoutrolábioamante.Iracemasentiuquesuaalmaseescapavaparaembeber-senoósculoardente.

Afrontereclinara,eaflordosorrisodesabrochavajáparadeixar-secolher.Súbitoavirgemtremeu;soltando-serápidadobraçoqueacingia,travoudo

arco.

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CapítuloVII

Iracema passou entre as árvores, silenciosa como uma sombra; seu olharcintilantecoavaentreas folhas,qual frouxosraiosdeestrelas;elaescutavaosilêncioprofundodanoiteeaspiravaasaurassutisqueaflavam[1].

Parou. Uma sombra resvalava entre as ramas; e nas folhas crepitava umpasso ligeiro, se não era o roer de algum inseto. A pouco e pouco o tênuerumorfoicrescendoeasombraavultou.

Era um guerreiro. De um salto a virgem estava em face dele, trêmula desustoemaisdecólera.

–Iracema!–exclamouoguerreiro,recuando.–Anhanga[2]turbousemdúvidaosonodeIrapuã,queotrouxeperdidoao

bosque da jurema, onde nenhum guerreiro penetra sem a vontade deAraquém.

–Não foiAnhanga,mas a lembrança de Iracema, que turbou o sono doprimeiroguerreirotabajara.Irapuãdesceudeseuninhodeáguiaparaseguirnavárzeaagarçadorio.Chegou,eIracemafugiudeseusolhos.AsvozesdatabacontaramaoouvidodochefequeumestrangeiroeravindoàcabanadeAraquém.

Avirgemestremeceu.Oguerreirocravounelaoolharabrasado:– O coração aqui no peito de Irapuã ficou tigre. Pulou de raiva. Veio

farejando apresa.O estrangeiro estánobosque, e Iracemao acompanhava.Querobeber-lheosanguetodo:quandoosanguedoguerreirobrancocorrernasveiasdochefetabajara,talvezoameafilhadeAraquém.

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Apupilanegradavirgemcintilounatreva,edeseulábioborbulhou,comogotasdoleitecáusticodaeufórbia,umsorrisodedesprezo:

– Nunca Iracema daria seu seio, que o espírito de Tupã habita só, aoguerreiromaisvildosguerreirostabajaras!Torpeéomorcegoporquefogedaluzebebeosanguedavítimaadormecida!

– Filha de Araquém, não assanha o jaguar! O nome de Irapuã voamaislonge que o goaná do lago, quando sente a chuva além das serras. Que oguerreirobrancovenha,eoseiodeIracemaseabraparaovencedor.

–OguerreirobrancoéhóspededeAraquém.Apazotrouxeaoscamposdo

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Ipu,apazoguarda.Quemofenderoestrangeiro,ofendeoPajé.Rugiudesanhaochefetabajara:–A raiva de Irapuã só ouve agora o grito da vingança.O estrangeiro vai

morrer.– A filha de Araquém é mais forte que o chefe dos guerreiros, disse

Iracema,travandodainúbia.ElatemaquiavozdeTupã,quechamaseupovo.–Maselanãochamará!respondeuochefeescarnecendo.–Não, porque Irapuã vai ser punido pelamão de Iracema. Seu primeiro

passoéopassodamorte.Avirgemretraiudumsaltooavançoquetomara,evibrouoarco.Ochefe

cerrouaindaopunhodoformidáveltacape;maspelavezprimeirasentiuquepesavaaobraçorobusto.OgolpequedeviaferirIracema,aindanãoalçado,jálhetrespassava,aelepróprio,ocoração.

Conheceuquantoo varão forte épela suamesma fortaleza,mais vencidodasgrandespaixões.

–AsombradeIracemanãoesconderásempreoestrangeiroàvingançadeIrapuã.Viléoguerreiroquesedeixaprotegerporumamulher.

Dizendo estas palavras, o chefe desapareceu entre as árvores. A virgemsemprealerta,volveuparaocristãoadormecido;evelouorestodanoiteaseulado. As emoções recentes, que agitaram sua alma, a abriram aindamais àdoceafeição,queiamfiltrandonelaosolhosdoestrangeiro.

Desejavaabrigá-locontratodooperigo,recolhê-loemsicomoemumasiloimpenetrável.Acompanhandoopensamento,seusbraçoscingiamacabeçadoguerreiro,eaapertavamaoseio.

Masquandopassouaalegriadeoversalvodosperigosdanoite,entrou-amaisvivaainquietação,comalembrançadosnovosperigosqueiamsurgir.

–Oamorde Iracemaécomooventodosareais:mataa flordasárvores,suspirouavirgem.

Eafastou-selentamente.

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CapítuloVIII

A alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco. A luz da manhãdissipou os sonhos da noite, e arrancou de sua alma a lembrança do quesonhara.Ficouapenasumvagosentir,comoficanamoitaoperfumedocactoqueoventodaserradesfolhanamadrugada.

Nãosabiaondeestava.À saída do bosque sagrado encontrou Iracema: a virgem reclinava num

troncoásperodoarvoredo;tinhaosolhosnochão;osanguefugiradasfaces;ocoraçãolhetremianoslábios,comogotadeorvalhonasfolhasdobambu.

Não tinhasorrisos,nemcores,avirgem indiana;não temborbulhas,nemrosas, a acácia que o sol crestou; não tem azul, nem estrelas, a noite queenlutamosventos.

–Asfloresdamatajáabriramaosraiosdosol;asavesjácantaram,disseoguerreiro.PorquesóIracemacurvaafronteeemudece?

AfilhadoPajéestremeceu.Assimestremeceaverdepalma,quandoahastefrágilfoiabalada;rorejamdoespatoaslágrimasdachuva,eoslequesciciambrandamente.

–OguerreiroCaubivaichegaràtabadeseusirmãos.Oestrangeiropoderápartircomosolquevemnascendo.

– Iracema quer ver o estrangeiro fora dos campos dos tabajaras; então aalegriavoltaráaseuseio.

–Ajurutiquandoaárvoresecaabandonaoninhoemquenasceu.NuncamaisaalegriavoltaráaoseiodeIracema:elavaificar,comootronconu,semramas,nemsombras.

Martimamparouocorpotrêmulodavirgem;elareclinoulânguidasobreopeitodoguerreiro,comootenropâmpanodabaunilhaqueenlaçaorijogalhodoangico.

Omancebomurmurou:–Teuhóspedefica,virgemdosolhosnegros:eleficaparaverabriremtuas

facesaflordaalegria,eparacolher,comoaabelha,omeldeteuslábios.

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Iracemasoltou-sedosbraçosdomancebo,eolhou-ocomtristeza:–Guerreirobranco,IracemaéfilhadoPajé,eguardaosegredodajurema.

OguerreiroquepossuísseavirgemdeTupãmorreria.–EIracema?–Poisquetumorrias!...Estapalavrafoisoprodetormenta.Acabeçadomancebovergouependeu

sobreopeito;maslogoseergueu.–Osguerreirosdemeusanguetrazemamorteconsigo,filhadostabajaras.

Não a temem para si, não a poupam para o inimigo. Mas nunca fora docombateelesdeixarãoabertoocamucim[1]davirgemnatabadeseuhóspede.A verdade falou pela boca de Iracema. O estrangeiro deve abandonar oscamposdostabajaras.

–Deve,respondeuavirgemcomoumeco.Depoissuavozsuspirou:–OmeldoslábiosdeIracemaécomoofavoqueaabelhafabricanotronco

da guabiroba[2]: tem na doçura o veneno. A virgem dos olhos azuis e doscabelos do sol[3] guarda para seu guerreiro na taba dos brancos o mel daaçucena.

Martimafastou-se rápido, evoltou,mas lentamente.Apalavra tremiaemseulábio:

–Oestrangeiropartiráparaqueosossegovolteaoseiodavirgem.–TulevasaluzdosolhosdeIracema,eaflordesuaalma.Reboa longenaselvaumclamorestranho.Oolhosdomanceboalongam-

se.– É o grito de alegria do guerreiro Caubi, disse a virgem. O irmão de

Iracemaanunciasuaboachegadaaoscamposdostabajaras.–FilhadeAraquém,guiateuhóspedeàcabana.Étempodepartir.Eles caminharam par a par, como dois jovens cervos que ao pôr do sol

atravessamacapoeirarecolhendoaoapriscodeondelhestrazabrisaumfarosuspeito.

Quando passavam entre os juazeiros, viram que atravessava além o

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guerreiro Caubi, vergando os ombros robustos ao peso da caça. Iracemacaminhouparaele.

Oestrangeiroentrousónacabana.

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CapítuloIX

O sono da manhã pousava nos olhos do Pajé como névoas de bonançapairamaoromperdodiasobreasprofundascavernasdamontanha.

Martimparouindeciso;masorumordeseupassopenetrounoouvidodoanciãoeabalouocorpodecrépito.

–Araquémdorme!–murmurouoguerreirodevolvendoopasso.Ovelhoficouimóvel.–OPajédormeporquejáTupãvoltouorostoparaaterraealuzcorreuos

maus espíritos da treva.Mas o sono é leve nos olhos deAraquém, como ofumodosapénococurutodaserra.SeoestrangeiroveioparaoPajé,fale;seuouvidoescuta.

–Oestrangeiroveioparateanunciarqueparte.–OhóspedeéosenhornacabanadeAraquém; todososcaminhosestão

abertosparaele.Tupãoleveàtabadosseus.VieramCaubieIracema:–Caubivoltou–disseoguerreirotabajara.–TrazaAraquémomelhorde

suacaça.–OguerreiroCaubiéumgrandecaçadordemonteseflorestas.Osolhos

deseupaigostamdevê-lo.Ovelhoabriuaspálpebrasecerrou-aslogo.–FilhadeAraquém,escolheparateuhóspedeopresentedavoltaeprepara

omoquém[1]daviagem.Seoestrangeiroprecisadeguia,oguerreiroCaubi,senhordocaminho[2],oacompanhará.

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OsonovoltouaosolhosdoPajé.EnquantoCaubipenduravanofumeiroaspeçasdecaça,Iracemacolheua

suaalvarededealgodãocomfranjasdepenas,eacomodou-adentrodourudepalhatrançada.

Page 33: JOSÉ DE ALENCAR

Martimesperavanaportadacabana.Avirgemveioaele:–Guerreiro,que levaso sonodemeusolhos, levaaminha rede também.

Quandoneladormires,falememtuaalmaossonhosdeIracema.– Tua rede, virgem dos tabajaras, será minha companheira no deserto:

venhaemboraoventofriodanoite,elaguardaráparaoestrangeiroocaloreoperfumedoseiodeIracema.

Caubisaiuparairàsuacabana,queaindanãotinhavistodepoisdavolta.Iracemafoiprepararomoquémdaviagem.FicaramsósnacabanaoPajé,queressonava,eomancebocomsuatristeza.

O sol, transmontando, já começava a declinar para o ocidente, quando oirmãodeIracematornoudagrandetaba.

–Odia vai ficar triste[3], disseCaubi.A sombra caminha para a noite. Étempodepartir.

AvirgempousouamãodelevenopunhodarededeAraquém.–Elevai!–murmuraramoslábiostrêmulos.OPajélevantou-seempénomeiodacabanaeacendeuocachimbo.Eleeo

mancebotrocaramafumaçadadespedida.–Bem-idosejaohóspede,comofoibem-vindoàcabanadeAraquém.Ovelho andouaté aporta, para soltar ao ventoumaespessabaforadade

tabaco;quandoofumosedissipounoar,elemurmurou:–Jurupari[4]seescondaparadeixarpassarohóspededoPajé.Araquémvoltouàredeedormiudenovo.Omancebotomouassuasarmas

mais pesadas que, chegando, suspendera às varas da cabana, e dispôs-se apartir.

AdianteseguiuCaubi;aalgumadistânciaoestrangeiro;logoapós,Iracema.Desceramacolinaeentraramnamatasombria.Osabiá-do-sertão,mavioso

cantor da tarde, escondido nas moitas espessas da ubaia[5], soltava já osprelúdiosdasuaveendecha.

Avirgemsuspirou:–Atardeéatristezadosol.OsdiasdeIracemavãoserlongastardessem

manhã,atéquevenhaparaelaagrandenoite.

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Omancebo se voltara. Seu lábio emudeceu, mas os olhos falaram. Umalágrimacorreupelafaceguerreira,comoasumidadesqueduranteosardoresdoestiotransudamdaescarpadosrochedos.

Caubi,avançandosempre,sumira-seentreadensaramagem.O seio da filha deAraquém arfou, como o esto da vaga que se franja de

espuma, e soluçou. Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um pálidoreflexo para iluminar a seca flor das faces. Assim em noite escura vem umfogo-fátuoluzirasbrancasareiasdotabuleiro.

–Estrangeiro,tomaoúltimosorrisodeIracema...efoge!A boca do guerreiro pousou na bocamimosa da virgem. Ficaram ambos

assimunidoscomodoisfrutosgêmeosdoaraçáquesaíramdoseiodamesmaflor.

A voz de Caubi chamou o estrangeiro. Iracema abraçou para não cair otroncodeumapalmeira.

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CapítuloX

Nacabanasilenciosa,meditaovelhoPajé.Iracemaestáapoiadanotroncorudo,queservedeesteio.Osgrandesolhos

negros,fitosnosrecortesdaflorestaerasosdepranto,estãonaquelesolhareslongosetrêmulosenfiandoedesfiandoosaljôfaresdaslágrimas,querorejamasfaces.

A ará, pousada no jirau fronteiro, alonga para sua formosa senhora osverdestristesolhos.Desdequeoguerreirobrancopisouaterradostabajaras,Iracemaaesqueceu.

Osróseoslábiosdavirgemnãoseabrirammaisparaqueelacolhesseentreelesapolpadafrutaouapapadomilhoverde;nemadocemãoaafagaraumasóvez,alisandoapenugemdouradadacabeça.

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Se repetia o mavioso nome da senhora, o sorriso de Iracema já não sevoltavaparaela,nemoouvidopareciaescutaravozdacompanheiraeamiga,quedantestãosuaveeraaoseucoração.

Triste dela! A gente tupi a chamava jandaia[1], porque sempre alegreestrugiaoscamposcomseucantofremente.

Masagora, tristeemuda,desdenhadade sua senhora,nãopareciamais alindajandaia,esimofeiourutauquesomentesabegemer.

Osolremontouaumbriadasserras;seusraiosdouravamapenasovisodaseminências.

Asurdinamerencóriadatarde,queprecedeosilênciodanoite,começavadevelaroscrebrosrumoresdocampo.Umaavenoturna,talveziludidacomasombramaisespessadobosque,desatouoestrídulo.

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Ovelhoergueuafrontecalva:– Foi o canto da inhuma[2] que acordou o ouvido deAraquém?disse ele

admirado.A virgem estremecera, e, já fora da cabana, voltou-se para responder à

perguntadoPajé:–ÉogritodeguerradoguerreiroCaubi!Quandoosegundopiodainhumaressoou,Iracemacorrianamata,comoa

corça perseguida pelo caçador. Só respirou chegando à campina, querecortavaobosque,comoumgrandelago.

Quem seus olhosprimeiro viram,Martim, estava tranquilamente sentadoem uma sapopema, olhando o que passava ali. Contra, cem guerreirostabajaras,comIrapuãàfrente,formavamarco.ObravoCaubiosafrontavaatodos, com o olhar cheio de ira e as armas valentes empunhadas na mãorobusta.

Ochefeexigiraaentregadoestrangeiro,eoguiaresponderasimplesmente:–MataiCaubiantes.A filhadoPajépassaracomouma flecha: ei-ladiantedeMartim,opondo

tambémseucorpogentilaosgolpesdosguerreiros. Irapuãsoltouobramidodaonçaatacadanafurna.

–FilhadoPajé,disseCaubiemvozbaixa.Conduzoestrangeiroàcabana;sóAraquémpodesalvá-lo.

Iracemavoltou-separaoguerreirobranco:–Vem!Eleficouimóvel.–Setunãovens–disseavirgem–,Iracemamorrerácontigo.Martimergueu-se;maslongedeseguiravirgem,caminhoudireitoaIrapuã.

Suaespadaflamejounoar.–Osguerreirosdemeusangue,chefe,jamaisrecusaramcombate.Seaquele

quetuvêsnãofoioprimeiroaprovocá-lo,éporqueseuspaislheensinaramanãoderramarsanguenaterrahospedeira.

Ochefetabajararugiudealegria;suamãopossantebrandiuotacape.Masos dois campeões mal tiveram tempo de medir-se com os olhos; quando

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fendiamoprimeirogolpe,jáCaubieIracemaestavamentreeles.A filha de Araquém debalde rogava ao cristão, debalde o cingia em seus

braçosbuscandoarrancá-loaocombate.DeseuladoCaubiemvãoprovocavaIrapuãparaatrairasiaraivadochefe.

Aumgestode Irapuã,os guerreiros afastaramosdois irmãos;o combateprosseguiu.

De repente o rouco somda inúbia[3] rebooupelamata; os filhosda serraestremeceram reconhecendo o estrídulo do búzio guerreiro dos pitiguaras,senhoresdaspraiasensombradasdecoqueiros.Oecovinhadagrande taba,queoinimigotalvezassaltavajá.

Osguerreirosprecipitaram,levandopordianteochefe.ComoestrangeirosóficouafilhadeAraquém.

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CapítuloXI

Os guerreiros tabajaras, acorridos à taba, esperavam o inimigo diante dacaiçara.

Nãovindo,elessaíramabuscá-lo.Bateram as matas em torno e percorreram os campos; nem vestígios

encontraramdapassagemdospitiguaras;masoconhecido frêmitodobúziodas praias tinha ressoado ao ouvidodos guerreiros damontanha; nãohaviaduvidar.

Suspeitou Irapuã que fosse um ardil da filha de Araquém para salvar oestrangeiro,ecaminhoudireitoàcabanadoPajé.Comotrotaoguará[1]pelaorladamata,quandovaiseguindoorastrodapresaescápula,assimestugavaopassoosanhudoguerreiro.

Araquémviuentraremsuacabanaograndechefedanaçãotabajara,enãose moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava Iracema. Avirgem referia os sucessos da tarde; avistando a figura sinistra de Irapuã,saltousobreoarcoeuniu-seaoflancodojovemguerreirobranco.

Martimaafastoudocementedesi,epromoveuopasso.Aproteção,dequeocercavaaeleguerreiroavirgemtabajara,odesgostava.–Araquém,avingançadostabajarasesperaoguerreirobranco;Irapuãveio

buscá-lo.–OhóspedeéamigodeTupã:quemofenderoestrangeiroouvirárugiro

trovão.– O estrangeiro foi quem ofendeu a Tupã, roubando a sua virgem, que

guardaossonhosdajurema.–Tuabocamentecomooroncodajiboia[2]!–exclamouIracema.Martimdisse:–Irapuãévileindignodeserchefedeguerreirosvalentes!OPajéfalougraveelento:– Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela

morrerá; mas o hóspede de Tupã é sagrado; ninguém lhe tocará, todos o

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servirão.BramiuIrapuã;ogritoroucotroounasarcasdopeito,comoo frêmitoda

sucuri[3]naprofundezadorio.–AraivadeIrapuãnãopodemaisouvir-te,velhoPajé!Caiaelasobreti,se

ousassubtrairoestrangeiroàvingançadostabajaras.OvelhoAndira,irmãodoPajé,entrounacabana;trazianopunhooterrível

tacape;enosolhosumaraivaaindamaisterrível.–Omorcegovemtechuparosangue,seéquetenssangueenãomel[4]nas

veias,tuqueameaçasemsuacabanaovelhoPajé.Araquémafastouoirmão:–Pazesilêncio,Andira.OPajédesenvolvera a alta emagra estatura, comoa caninana assanhada,

que se enrista sobre a cauda, para afrontar a vítima em face. As rugasafundaram,e,repuxandoaspelesengelhadas,esbugalharamosdentesalvoseafilados:

–Ousaumpassomais,easirasdeTupãteesmagarãosobopesodestamãosecaemirrada!

–Nestemomento,Tupãnãoécontigo!–replicouochefe.O Pajé riu; e o seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo da

ariranha.–Ouveseutrovão[5],etremeemteuseio,guerreiro,comoaterraemsua

profundeza.Araquém,proferindoessapalavra terrível, avançouatéomeioda cabana;

aliergueuagrandepedraecalcouopécomforçanochão:súbito,abriu-seaterra.Do antro profundo saiu ummedonho gemido, que parecia arrancadodasentranhasdorochedo.

Irapuã não tremeu, nem enfiou de susto, mas sentiu turvar-se a luz nosolhos,eavoznoslábios.

–Osenhordotrovãoéporti;osenhordaguerra,seráporIrapuã,disseochefe.

Otorvoguerreirodeixouacabana;empoucoseugrandevultomergulhou

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nassombrasdocrepúsculo.OPajéeseuirmãotravaramapráticanaportadacabana.Aindasurpresodoquevira,Martimnãotiravaosolhosafundacavaquea

plantadovelhoPajéabriranochãodacabana.Umsurdorumor,comooecodasondasquebrandonaspraias,ruidavaali.

O guerreiro cristão cismava; ele não podia crer que o deus dos tabajarasdesseaoseusacerdotetamanhopoder.

Araquém, percebendo o que passava n’alma do estrangeiro, acendeu ocachimboetravoudomaracá[6]:

–ÉtempodeaplacarasirasdeTupã,ecalaravozdotrovão.Disse,epartiudacabana.

Iracemaachegou-se entãodomancebo; levavaos lábios em riso,osolhosemjúbilo:

–O coração de Iracema está comoo abati n’água[7]do rio.Ninguém farámalaoguerreirobranconacabanadeAraquém.

–Arreda-te do inimigo, virgem dos tabajaras – respondeu o estrangeiro,comasperezadevoz.

Voltandobruscoparaoladooposto,furtouosemblanteaosolhosternosequeixososdavirgem.

– Que fez Iracema, para que o guerreiro branco desvie seus olhos dela,comoseforaovermedaterra?

As falas da virgem ressoaram docemente no coração de Martim. Assimressoamosmurmúriosdaaragemnasfrondesdapalmeira.Omancebosentiu

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raivadesi,epenadela:– Não ouves tu, virgem formosa? exclamou ele apontando para o antro

fremente.–ÉavozdeTupã!–Teu deus falou pela boca do Pajé: “Se a virgemdeTupã abandonar ao

estrangeiroaflordeseucorpo,elemorrerá!”Iracemapendeuafronteabatida:–NãoévozdeTupãqueouveteucoração,guerreirodelongesterras,éo

cantodavirgembranca,quetechama!Orumorestranhoquesaíadasprofundezasdaterraapagou-sederepente;

fez-senacabanatãograndesilêncioqueouvia-sepulsarosanguenaartériadoguerreiroetremerosuspironolábiodavirgem.

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CapítuloXII

Odiaenegreceu;eranoitejá.OPajétornaraàcabana;sopesandodenovoagrossalaje,fechoucomelaa

bocadoantro.Caubichegaratambémdagrandetaba,ondecomseusirmãosguerreiros se recolhera depois que bateram a floresta, embusca do inimigopitiguara.

Nomeiodacabana,entreasredesarmadasemquadro,estendeuIracemaaesteiradacarnaúba,esobreelaserviuosrestosdacaçaeaprovisãodevinhosda última lua. Só o guerreiro tabajara achou sabor na ceia, porque o fel docoraçãoqueatristezaespremenãoamargavaseulábio.

OPajébebianocachimboofumosagradodeTupãquelheenchiaasarcasdo peito; o estrangeiro respirava ar às golfadas para refrescar-lhe o sangueefervescente;avirgemdestilavasuaalmacomoomeldeumfavo,noscrebrossoluçosquelheestalavamentreoslábiostrêmulos.

JápartiuCaubiparaagrandetaba;oPajétragaasbaforadasdofumo,quepreparaomistériodoritosagrado.

Levanta-senoressonodanoiteumgritovibrante,queremontaaocéu.Martimergueafronteeinclinaoouvido.Outroclamorsemelhanteressoa.

Oguerreiromurmura,queoouçaavirgemesóela:–Escutou,Iracema,cantaragaivota?–Iracemaescutouogritodeumaavequeelanãoconhece.–Éaatiati,agarçadomar,etuésavirgemdaserra,quenuncadesceuàs

alvaspraiasondearrebentamasvagas.–Aspraiassãodospitiguaras,senhoresdaspalmeiras.Osguerreirosdagrandenaçãoquehabitavaasbordasdomarsechamavam

a simesmos pitiguaras, senhores dos vales;mas os tabajaras, seus inimigos,porescárnioosapelidavampotiguaras,comedoresdecamarão.

Iracema não quis ofender o guerreiro branco; por isso, falando dospitiguaras,nãolhesrecusouonomeguerreiroqueeleshaviamtomadoparasi.

O estrangeiro reteve por um instante a palavra no seu lábio prudente,

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enquantorefletia:– O canto da gaivota é o grito de guerra do valente Poti, amigo de teu

hóspede!A virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poti, irmão de

Jacaúna,subiudasribeirasdomaràsalturasdaserra;raraéacabanaondejánãorugiucontraeleogritodevingança,porqueemquase todasogolpedeseuválidotacapedeitouumguerreirotabajaraemseucamucim.

Iracema cuidou que Poti vinha à frente de seus guerreiros para livrar oamigo.Eraelesemdúvidaquefizeraretroarobúziodaspraias,nomomentodocombate.Foicomumtommisturadodedoçuraetristezaquereplicou:

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–O estrangeiro está salvo; os irmãos de Iracema vãomorrer, porque elanãofalará.

–Saiaessatristezadetuaalma.Oestrangeiropartindo-sedeteuscampos,virgemtabajara,nãodeixaránelesrastrodesangue,comootigreesfaimado.

Iracematomouamãodoguerreirobrancoebeijou-a.– Teu sorriso, continua ele, apagou a lembrança do mal que eles me

querem.Martimergueu-seemarchouparaaporta.–Aondevaioguerreirobranco?–AdiantedePoti.–OhóspededeAraquémnãopodesairdestacabana,porqueosguerreiros

deIrapuãomatarão.–UmguerreirosódeveproteçãoaDeuseasuasarmas.Nãocarecequeo

defendamosvelhoseasmulheres.– Não vale um guerreiro só contra mil guerreiros; valente e forte é o

tamanduá,quemordeosgatosselvagensporseremmuitoseoacabam.Tuasarmassóchegamatéondemedeasombradeteucorpo;asarmasdelesvoamaltoedireitocomooanajê.

–Todoguerreirotemseudia.–NãoquerestuquemorraIracema,equeresqueelatedeixemorrer!Martimficouperplexo:–Iracemairáaoencontrodochefepitiguaraetraráaseuhóspedeasfalas

doguerreiroamigo.O Pajé saiu enfim de sua contemplação. O maracá rugiu-lhe na destra,

tiniramosguizoscomopassohirtoelento.Chamoueleafilhadeparte:– Se os guerreiros de Irapuã vierem contra a cabana, levanta a pedra e

escondeoestrangeironoseiodaterra.–O hóspede não deve ficar só; espere que ele volte Iracema. Ainda não

cantouainhuma.Tornoua sentar-senaredeovelho.Avirgempartiu,cerrandoaportada

cabana.

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CapítuloXIII

AvançaafilhadeAraquémnastrevas;paraeescuta.Ogritodagaivotaterceiravezressoaaoseuouvido;elavaidireitoaolugar

dondepartiu;chegaàbordadeumtanque;seuolhar investigaaescuridãoenadavêdoquebusca.

Avozmaviosa,débilcomosussurrodecolibri,ressoanosilêncio:–GuerreiroPoti,teuirmãobrancotechamapelabocadeIracema.Sóoecorespondeu-lhe.–Afilhadeteusinimigosvematiporqueoestrangeiroteama,eelaamao

estrangeiro.A lisa face do lago fendeu-se; e um vulto se mostra, que nada para a

margem,esurgefora.–FoiMartimquemtemandou,poistusabesonomedePoti,seuirmãona

guerra.–Fala,chefepitiguara;oguerreirobrancoespera.–TornaaeleedizquePotiéchegadoparaosalvar.–Elesabe;emandou-meatiparaouvir.–AsfalasdePotisairãodesuabocaparaoouvidodeseuirmãobranco.–EsperaentãoqueAraquémpartaeacabanafiquedeserta;euteguiareià

presençadoestrangeiro.– Nunca, filha dos tabajaras, um guerreiro pitiguara passou a soleira da

cabanainimiga,senãofoicomovencedor.Conduzaquioguerreirodomar.–Avingançade Irapuã fareja em rodada cabanadeAraquém.Trouxeo

irmãodoestrangeirobastantesguerreirospitiguarasparaodefenderesalvar?Potirefletiu:–Conta,virgemdasserras,oquesucedeuemteuscamposdepoisqueaeles

chegouoguerreirodomar.Iracema referiu como a cólera de Irapuã se havia assanhado contra o

estrangeiro,atéqueavozdeTupã,chamadopeloPajé,tinhaapaziguadoseufuror:

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–AraivadeIrapuãécomoaandira:fogedaluzevoanastrevas.AmãodePoticerrousúbitooslábiosdavirgem;suafalapareciaumsopro:–Suspendeavozeorespiro,virgemdasflorestas,oouvidoinimigoescuta

nasombra.As folhas crepitavam de manso, como se por elas passasse a fragueira

nambu.Umrumor,partidodaorladamata,vinhadiscorrendopelovale.O valentePoti, resvalandopela relva, comoo ligeiro camarão, de que ele

tomaraonomeeaviveza,desapareceunolagoprofundo.Aáguanãosoltouummurmúrio,ecerrousobreelesuaondalímpida.

Iracema voltou à cabana; emmeiodo caminhoperceberam seus olhos assombrasdemuitosguerreirosquerojavampelochãocomoaintanha.

Araquém,vendo-aentrar,partiu.AvirgemtabajaracontouaMartimoqueouviradePoti;oguerreirocristão

ergueu-sedeumímpetoparacorreremdefesadeseuirmãopitiguara.Cingiu-lheocoloIracemacomoslindosbraços:

–Ochefenãocarecedeti;eleéfilhodaságuas;aságuasoprotegem.Maistardeoestrangeiroouviráemseusouvidosasfalasamigas.

– Iracema, é tempoque teuhóspededeixea cabanadoPajé eos camposdos tabajaras. Ele não tem medo dos guerreiros de Irapuã, tem medo dosolhosdavirgemdeTupã.

–Elesfugirãodeti.–Fujadelesoestrangeiro,comoooitibódaestreladamanhã.Martimpromoveuopasso.–Vai,guerreiroingrato;vaimatarteuirmãoprimeiro,depoisati.Iracema

teseguiráatéaoscamposalegresaondevãoassombrasdosquemorrem.–Matarmeuirmão,dizestu,virgemcruel.–Teurastroguiaráoinimigoaondeeleseoculta.O cristão estacou em meio da cabana e ali permaneceu mudo e quedo.

Iracema,receosadefitá-lo,tinhaosolhospostosnasombradoguerreiro,queachamaprojetavanavetustaparededacabana.

Ocãofelpudo,deitadonoborralho,deusinaldequeseaproximavagenteamiga.Aporta entretecida dos talos da carnaúba foi aberta por fora.Caubi

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entrou.

– O cauim perturbou o espírito dos guerreiros; eles vêm contra oestrangeiro.

Avirgemergueu-sedeumímpeto:–Levanta a pedra que fecha a garganta deTupã, para que ela esconda o

estrangeiro.Oguerreirotabajara,sopesandoalajeenorme,emborcou-anochão.–FilhodeAraquém,deitanaportadacabana,emaisnuncatelevantesda

terra,seumguerreiropassarporcimadeteucorpo.Caubiobedeceu;avirgemcerrouaporta.Decorreubrevetrato.Ressoapertooestrupidodosguerreiros;travam-seas

vozesiradasdeIrapuãeCaubi.–Elesvêm;masTupãsalvaráseuhóspede.Nesseinstante,comoseodeusdotrovãoouvisseaspalavrasdesuavirgem,

oantro,mudoemprincípio,retroousurdamente.–Ouve!ÉavozdeTupã.Iracema cerra amão do guerreiro, e o leva à borda do antro. Somem-se

ambosnasentranhasdaterra.

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CapítuloXIV

Osguerreiros tabajaras, excitadoscomascopiosas libaçõesdoespumantecauim, se inflamam à voz de Irapuã, que tantas vezes os guiou ao combatequantasàvitória.

Aplaca o vinho a sede do corpo, mas acende outra sede maior na almaferoz. Rugem vingança contra o estrangeiro audaz que, afrontando suasarmas, ofende o deus de seus pais, e o chefe da guerra, o primeiro varãotabajara.

Lá tripudiam de furor, e arremetem pelas sombras; a luz vermelha doubiratã[1], quebrilhaao longe,osguiaà cabanadeAraquém.Deespaçoemespaçoerguem-sedochãoosqueprimeirovieramparavigiaroinimigo.

–OPajéestánafloresta!–murmurameles.–Eoestrangeiro?–perguntaIrapuã.–NacabanacomIracema.Ograndechefelançaoterrívelsalto;jáéchegadoàportadacabanae,com

ele,seusvalentesguerreiros.OvultodeCaubiencheovãodaporta;suasarmasguardamdiantedeleo

espaçodeumbotedomaracajá[2].–Vis guerreiros sãoaquelesqueatacamembandocomoos caititus[3].O

jaguar[4], senhorda floresta, eoanajê[5], senhordasnuvens, combatemsóoinimigo.

– Morda o pó a boca torpe que levanta a voz contra o mais valenteguerreirodosguerreirostabajaras.

Proferidas estas palavras, ergue o braço de Irapuã o rígido tacape, masestacanoar; as entranhasda terraoutra vez rugem, como rugiram,quandoAraquémacordouavoztremendadeTupã.

Levantam os guerreiros medonho alarido e, cercando seu chefe, oarrebatamaofunestolugareàcóleradeTupã,contraelesconcitado.

Caubiestende-sedenovonasoleiradaporta;seusolhosadormecem;masseuouvidovelanosono.

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AvozdeTupãemudeceu.Iracema e o cristão, perdidos nas entranhas da terra, descem a gruta

profunda. Súbito, uma voz que vinha reboando pela crasta encheu seusouvidos:

–Oguerreirodomarescutaafaladeseuirmão?–ÉPoti,oamigodeteuhóspede,disseocristãoparaavirgem.Iracemaestremeceu:–ElefalapelabocadeTupã.Martimrespondeuenfimaopitiguara:–AsfalasdePotientramn’almadeseuirmão.–Nenhumoutroouvidoescuta?–Osdavirgemqueduasvezesemumsoldefendeuavidadeteuirmão!–Amulheréfraca,otabajara,traidor,eoirmãodeJacaúna,prudente.Iracemasuspirouepousouacabeçanopeitodomancebo:–SenhordeIracema,cerraseusouvidos,paraqueelanãoouça.Martimrepeliudocementeagentilfronte:–Faleochefepitiguara;sóoescutamouvidosamigosefiéis.–Tuordenas,Potifala.Antesqueosolselevantenaserra,oguerreirodo

mardevepartirparaasmargensdoninhodasgarças;aestrelamortaoguiaráàs alvas praias. Nenhum tabajara o seguirá, porque a inúbia dos pitiguarasrugirádabandadaserra.

–Quantosguerreirospitiguarasacompanhamseuchefevalente?–Nenhum; Poti veio só com suas armas. Quando os espíritosmaus das

florestassepararamoguerreirodomardeseuirmão,Potiveioemseguimentodorastro.Seucoraçãonãodeixouquevoltasseparachamarosguerreirosdesuataba;masexpediuseucãofielaograndeJacaúna.

–Ochefepitiguaraestásó;nãodeverugirainúbiaquechamarácontrasitodososguerreirostabajaras.

– É preciso para salvar o irmão branco; Poti zombará de Irapuã, comozombouquandocombatiamcemcontrati.

AfilhadoPajé,queouviracalada,debruçou-seaoouvidodocristão:– Iracemaquer te salvar e a teu irmão; ela temseupensamento.Ochefe

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pitiguara é valente e audaz; Irapuã émanhoso e traiçoeiro como a acauã[6].Antesquecheguesàfloresta,cairás;eteuirmãodaoutrabandacairácontigo.

– Que fará a virgem tabajara para salvar o estrangeiro e seu irmão?perguntouMartim.

–Maisumsoleoutro,ealuadasfloresvainascer.Éotempodafesta,emqueosguerreirostabajaraspassamanoitenobosquesagrado,erecebemdoPajé os sonhos alegres. Quando estiverem todos adormecidos, o guerreirobrancodeixaráoscamposdoIpu,eosolhosdeIracema,masnãosuaalma.

Martim estreitou a virgem ao seio; mas logo a repeliu. O toque de seucorpo,doce comoa açucenadamata, e quente comooninhodobeija-flor,espinhouseucoração,porquelherecordouaspalavrasterríveisdoPajé.

A voz do cristão transmitiu a Poti o pensamento de Iracema; o chefepitiguara,prudentecomootamanduá,pensouerespondeu:

–Asabedoriafaloupelabocadavirgemtabajara.Potiesperaonascimentodalua.

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CapítuloXV

Nasceuodiaeexpirou.Já brilha na cabana de Araquém o fogo, companheiro da noite. Correm

lentas e silenciosas no azul do céu as estrelas, filhas da lua, que esperam avoltadesuamãeausente.

Martim se embala docemente; e como a alva rede que vai e vem, suavontadeosciladeumaoutropensamento.

Láoesperaavirgemlouradoscastosafetos;aquilhesorriavirgemmorenadosardentesamores.

Iracemarecosta-se langueaopunhodarede;seusolhosnegrose fúlgidos,ternosolhosde sabiá, buscamo estrangeiro, e lhe entramn’alma.O cristãosorri;avirgempalpita;comoosaí[1],fascinadopelaserpente,vaideclinandoolascivotalhe,queseprostrasobreopeitodoguerreiro.

Jáoestrangeiroapremeaoseio;eolábioávidobuscaolábioqueoespera,paracelebrarnesseáditod’alma,ohimeneudoamor.

No recanto escuroo velhoPajé, imerso em sua contemplação e alheio àscousasdestemundo,soltouumgemidodoloroso.Pressentiraocoraçãooquenãoviramosolhos?Oufoialgumfunestopresságioparaaraçadeseusfilhos,queassimecooun’almadeAraquém?Ninguémosoube.

O cristão repeliu do seio a virgem indiana. Ele não deixará o rastro dadesgraçanacabanahospedeira.Cerraosolhosparanãover;eenchesuaalmacomonomeeaveneraçãodoseuDeus:

–Cristo!...Cristo!...Aserenidadevoltaaoseiodoguerreirobranco,mastodasasvezesqueseu

olhar pousa sobre a virgem tabajara, ele sente correr-lhe pelas veias umacentelha de ardente chama. Assim, quando a criança imprudente revolve obrasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflamadas que lhe queimam ocorpo.

Fecha os olhos o cristão, mas na sombra de seu pensamento surge aimagemdavirgem,talvezmaisbela.Embaldechamaeleosonoàspálpebras

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fatigadas;abrem-se,maugradoseu.Desce-lhedocéuaoatribuladopensamentoumainspiração:–Virgemformosadosertão,estaéaúltimanoitequeteuhóspededorme

nacabanadeAraquém,ondenuncaviera,para teubemeseu.Fazequeseusonosejaalegreefeliz.

–Manda;Iracemateobedece.Quepodeelaparatuaalegria?Ocristãofalousubmisso,paraquenãooouvisseovelhoPajé:–AvirgemdeTupãguardaossonhosdajuremaquesãodocesesaborosos!UmtristesorrisopungiuoslábiosdeIracema:–Oestrangeirovaiviverparasempreàcinturadavirgem[2]branca;nunca

maisseusolhosverãoafilhadeAraquém;eelequerqueosonojáfechesuaspálpebras,eosonhooleveàterradeseusirmãos!

– O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegriad’alma.O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira,nemdeixá-lanocoraçãodeIracema!

Avirgemficouimóvel.–Vai,etornacomovinhodeTupã.QuandoIracemafoidevolta,jáoPajénãoestavanacabana;tirouavirgem

doseioovasoquealitraziaocultosobacarioba[3]dealgodãoentretecidadepenas.Martim lho arrebatou das mãos e libou as poucas gotas do verde eamargolicor.Nãotardouquearederecebesseseucorpodesfalecido.

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Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que aliviçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugardesseamoromeleoperfume,semdeixarvenenonoseiodavirgem.

Ogozoeravida,poisosentiamaisvivoeintenso;omalerasonhoeilusão,quedavirgemelenãopossuíamaisqueaimagem.

Iracemaafastara-seopressaesuspirosa.Abriram-seosbraçosdoguerreiroeseuslábios;onomedavirgemressoou

docemente.A juruti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro;

bate as asas, e voa para conchegar-se ao tépido ninho. Assim a virgem dosertãoaninhou-senosbraçosdoguerreiro.

Quandoveioamanhã,aindaachouIracemaalidebruçada,qualborboletaquedormiunoseiodoformosocacto.Emseulindosemblanteacendiaopejovivosrubores;ecomoentreosarrebóisdamanhãcintilaoprimeiroraiodosol,emsuasfacesincendidasrutilavaoprimeirosorrisodaesposa,auroradefruídoamor.

Ajandaiafugiraaoromperd’alvaeparanãotornarmaisàcabana.Martim vendo a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho

continuava;cerrouosolhosparatorná-losaabrir.A pocema dos guerreiros, troando pelo vale, o arrancou ao doce engano:

sentiu que já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos lábios davirgemobeijoquealiseespanejava.

– Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheudelessuaalma.Navida,oslábiosdavirgemdeTupãamargamedoemcomooespinhodajurema.

A filha de Araquém escondeu no coração a sua alegria. Ficou tímida einquieta, como a ave que pressente a borrasca no horizonte. Afastou-serápida,epartiu.

Aságuasdoriodepuraramocorpocastodarecenteesposa.Tupãjánãotinhasuavirgemnaterradostabajaras.

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CapítuloXVI

Oalvodiscodaluasurgiunohorizonte.A luz brilhante do sol empalidece a virgem do céu, como o amor do

guerreirodesmaiaafacedaesposa.–Jaci[1]!...Mãenossa!...–exclamaramosguerreirostabajaras.E,brandindoosarcos,lançaramaocéucomachuvadasflechasocantoda

luanova:“Veionocéuamãedosguerreiros;jávoltaorostoparaverseusfilhos.Ela

trazaságuas,queenchemosrioseapolpadocaju.Jáveioaesposadosol; já sorriasvirgensda terra, filhas suas.Adoce luz

acendeoamornocoraçãodosguerreirosefecundaoseiodajovemmãe.”Caiatarde.Folgamasmulhereseosmeninosnavastaocara;osmancebos,queainda

nãoganharamnomedeguerraporalgumfeitobrilhante,discorremnovale.OsguerreirosseguemIrapuãaobosquesagrado,ondeosesperamoPajée

suafilhaparaomistériodajurema.Iracemajáacendeuosfogosdaalegria[2].Araquémestáimóveleextáticonoseiodeumanuvemdefumo.

CadaguerreiroquechegadepõeaseuspésumaoferendaaTupã.Trazumasuculentacaça;outroafarinhad’água;aqueleosaborosopiracémdatraíra.OvelhoPajé,paraquemsãoestasdádivas,asrecebecomdesdém.

Quando foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro deTupãordenaosilênciocomumgesto,etrêsvezesclamandoonometerrível,enche-sedodeusqueohabita:

–Tupã!...Tupã!...Tupã!...Trêsvezesoecoaolongerepercutiu.Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor. Araquém decreta os

sonhosacadaguerreiro,edistribuiovinhodajurema,quetransportaaocéuovalentetabajara.

Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm adiante desuasflechasparasetraspassaremnelas;fatigadoporfimdeferir,cavanaterra

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obucã[3],eassatamanhaquantidadedecaçaquemilguerreirosemumanonãoacabariam.

Outro, fogoso em amores, sonha que asmais belas virgens dos tabajarasdeixamacabanadeseuspaiseoseguemcativasdeseuquerer.Nuncaaredede chefe algum embaloumais voluptuosas carícias, que ele as frui naqueleêxtase.

Oheróisonhatremendas lutasehorríveiscombates,dequesaivencedor,cheio de glória e fama.O velho renasce na prole numerosa, e como o secotronco,donderebentanovaerobustasebe,cobre-seaindadeflores.

Todos sentem a felicidade tão viva e contínua que, no espaço da noite,cuidamvivermuitasluas.Asbocasmurmuram;ogestofala;eoPajé,quetudoescutaevê,colheosegredodasalmasdesnudas.

Iracema, depois que ofereceu aos guerreiros o licor de Tupã, saiu dobosque.Nãopermitiaoritoqueelaassistisseaosonodosguerreiroseouvissefalarossonhos.

FoidalidireitoàcabanaondeaesperavaMartim:–Tomatuasarmas,guerreirobranco.Étempodepartir.–Leva-meaondeestáPoti,meuirmão.

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A virgem caminhou para o vale; o cristão a seguiu. Chegaram à falda dorochedo,queiamorreràbeiradotanque,emummaciçodeverdura.

–Chamateuirmão!Martimsoltouogritodagaivota.Apedraque fechavaaentradadagruta

caiu;eovultodoguerreiroPotiapareceunasombra.Os dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito, para

exprimirquenãotinhamambosmaisqueumacabeçaeumcoração.–Poti está contente porque vê seu irmão, que omau espírito da floresta

arrebatoudeseusolhos.–FelizéoguerreiroquetemaoflancoumamigocomoobravoPoti;todos

osguerreirosoinvejarão.Iracemasuspirou,pensandoqueaafeiçãodopitiguarabastavaàfelicidade

doestrangeiro.– Os guerreiros tabajaras dormem. A filha de Araquém vai guiar os

estrangeiros.Avirgemseguiuadiante;osdoisguerreirosapós.Quandotinhamandadoo

espaçoquetranspõeagarçadeumvoo,ochefepitiguaratornou-seinquietoemurmurouaoouvidodocristão:

–MandaàfilhadoPajéquevolteàcabanadeseupai.Elademoraamarchadosguerreiros.

Martimentristeceu;masavozdaprudênciaedaamizadepenetrouemseucoração.AvançouparaIracema,etiroudoseioumavozdoceparaacalentarasaudadedavirgem:

–Maisafundaaraizdaplantanaterra,maiscustaaarrancá-la.Cadapassode Iracemano caminhoda partida é uma raiz que lança no coração de seuhóspede.

–Iracemaquerteacompanharatéondeacabamoscamposdostabajaras,paravoltarcomosossegoemseupeito.

Martimnãorespondeu.Continuaramacaminhar,ecomelescaminhavaanoite;asestrelasdesmaiaram;ea frescuradaalvoradaalegroua floresta.Asroupasdamanhã,alvascomooalgodão,apareceramnocéu.

Potiolhouamataeparou.MartimcompreendeuedisseaIracema:

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–Teuhóspedejánãopisaoscamposdostabajaras.Éoinstantedeseparar-tedele.

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CapítuloXVII

Iracemapousouamãonopeitodoguerreirobranco:–Afilhadostabajarasjádeixouoscamposdeseuspais;agorapodefalar.–Queguardastuemteuseio,virgemformosadosertão?Elapôsosolhoscheiosnocristão:–Iracemanãopodemaisseparar-sedoestrangeiro.–Assimépreciso,filhadeAraquém.Tornaàcabanadeteuvelhopai,que

teespera.–Araquémjánãotemfilha.Martimtornoucomumgestorudoesevero:–Umguerreirodaminharaçajamaisdeixouacabanadohóspedeviúvade

sua alegria. Araquém abraçará sua filha, para não amaldiçoar o estrangeiroingrato.

Avirgempendeuafronte;velando-secomaslongastrançasnegrasqueseespargiampelo colo, cruzandoaogrêmioos lindosbraços, recolheu em seupudor.Assim o róseo cacto, que já desabrochou em formosa flor, cerra embotãooseioperfumado.

–Tuaescravateacompanhará,guerreirobranco;porqueteusanguedormeemseuseio.

Martimestremeceu.–OsmausespíritosdanoiteturbaramoespíritodeIracema.– O guerreiro branco sonhava, quando Tupã abandonou sua virgem,

porqueelatraiuosegredodajurema.Ocristãoescondeuasfacesàluz.–Deus!...clamouseulábiotrêmulo.Permaneceramambosmudosequedos.AfinaldissePoti:–Osguerreirostabajarasdespertam.O coração da virgem, como o do estrangeiro, ficou surdo à voz da

prudência.Osol levantou-senohorizonte;eseuolharmajestosodesceudos

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montes à floresta. Poti, de pé, como um tronco decepado, esperou que seuirmãoquisessepartir.

FoiIracemaquemprimeirofalou:–Vem;enquantonãopisaresaspraiasdospitiguaras,tuavidacorreperigo.Martim seguiu silencioso a virgem, que fugia entre as árvores como a

selvagem cutia. A tristeza lhe roía o coração;mas a onda de perfumes quedeixavanabrisa apassagemda formosa tabajara açulavaoamorno seiodoguerreiro.Seupassoeratardo,opeitolheofegava.

Poticismava.Emsuacabeçademancebomoravaoespíritodeumabaeté[1].Ochefepitiguarapensavaqueoamoré comoocauim,oqual,bebidocommoderação,fortaleceoguerreiro,e,tomadoemexcesso,abateacoragemdoherói.

Ele sabia quanto veloz era o pé do tabajara; e esperava o momento demorrerdefendendooamigo.

Quandoassombrasdatardeentristeciamodia,ocristãoparounomeiodamata.Potiacendeuofogodahospitalidade.Avirgemdesdobrouaalvarededealgodãofranjadadepenasdetucanoesuspendeu-aaosramosdaárvore:

–EsposodeIracema,tuaredeteespera.AfilhadeAraquémfoisentar-selonge,naraizdeumaárvore,comoacerva

solitária, que o ingrato companheiro afugentou do aprisco. O guerreiropitiguaradesapareceunaespessuradafolhagem.

Martim ficoumudoe triste, semelhanteao troncod’árvoreaqueoventoarrancou o lindo cipó que o entrelaçava. A brisa perpassando levou ummurmúrio:

–Iracema!Eraobalidodocompanheiro;acervaarrufando-seganhouodoceaprisco.A floresta destilava suave fragrância e exalava harmoniosos arpejos; os

suspirosdocoração sedifundiramnosmúrmurosdodeserto.Foi a festadoamor,eocantodohimeneu.

Já a luz da manhã coou na selva densa. A voz grave e sonora de Potirepercutiunosussurrodamata:

–Opovotabajaracaminhanafloresta!

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Iracemaarrancou-sedosbraçosqueacingiamemaisdolábioqueatinhacativa:saltandodaredecomoarápidazabelê, travoudasarmasdoesposoelevou-oatravésdamata.

De espaço a espaço, o prudente Poti escutava as entranhas da terra; suacabeçamovia-sepesadadeumaoutrolado,comoanuvemquesebalançanococurutodorochedo,aosvárioslufosdapróximaborrasca.

–OqueescutaoouvidodoguerreiroPoti?–Escutaopassovelozdopovotabajara.Elevemcomootapir,rompendoa

floresta.–Oguerreiropitiguara é a emaquevoa sobre a terra;nóso seguiremos,

comosuasasas,disseIracema.Ochefesacudiudenovoafronte:–Enquantooguerreirodomardormia,oinimigocorreu.Osqueprimeiro

partiramjáavançamalémcomoaspontasdoarco.

AvergonhamordeuocoraçãodeMartim:–FujaochefePotiesalve Iracema.Sódevemorreroguerreiromau,que

nãoescutouavozdeseuirmãoeopedidodesuaesposa.Martimarrepiouopasso.–A almado guerreirobranconão escutou suaboca. Poti e seu irmão só

têmumavida.OlábiodeIracemanãofalou;sorriu.

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CapítuloXVIII

Tremeaselvacomoestrupidodacarreiradopovotabajara.OgrandeIrapuã,primeiro,assomaentreasárvores.Seuolharrúbidoviuo

guerreirobrancoentrenuvensdesangue;ogritoroucodotigrerompedeseupeitocavernoso.

Ochefetabajaraeseupovovãoseprecipitarsobreosfugitivos,comoavagaencapeladaquearrebentanoMocoribe[1].

Eislateocãoselvagem.Potisoltaogritodaalegria:–OcãodePotiguiaosguerreirosdesuatabaemsocorroteu.O rouco búzio dos pitiguaras estruge pela floresta. O grande Jacaúna[2],

senhor das praias do mar, chegava do rio das garças com seus melhoresguerreiros.

Ospitiguarasrecebemoprimeiroímpetodoinimigonaspontaseriçadasdesuas flechas, que eles despedem do arco aos molhos, como o cuandu[3] osespinhosdoseucorpo.Logoapóssoaapocema,estreita-seoespaço,ealutasetravafaceaface.

Jacaúna atacou Irapuã. Prossegue o horrível combate que bastara a dezbravos, e não esgotou ainda a força dos grandes chefes. Quando os doistacapesseencontram,abatalhatodaestremececomoumsóguerreiroatéasentranhas.

O irmão de Iracema veio direito ao estrangeiro, que arrancara a filha deAraquém à cabana hospedeira; o faro da vingança o guia; a vista da irmãassanhaaraivaemseupeito.OguerreiroCaubiassaltacomfuroroinimigo.

Iracema, unida ao flancode seu guerreiro e esposo, viu de longeCaubi efalouassim:

–SenhordeIracema,ouveorogodetuaescrava;nãoderramaosanguedofilho deAraquém. Se o guerreiroCaubi tem demorrer,morra ele por estamão,nãopelatua.

Martimpôsnorostodavirgemolhosdehorror:

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–Iracemamataráseuirmão?– Iracema antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua;

porqueosolhosdeIracemaveemati,eaelanão.Travamalutaosguerreiros.Caubicombatecomfuror;ocristãodefende-se

apenas;mas a seta embebida no arco da esposa guarda a vida do guerreirocontraosbotesdoinimigo.

Poti já prostrou o velho Andira e quantos guerreiros topou na luta seuválidotacape.MartimlheabandonaofilhodeAraquém,ecorresobreIrapuã:

–Jacaúnaéumgrandechefe,seucolardeguerra[4]dátrêsvoltasaopeito.Otabajarapertenceaoguerreirobranco.

–Avingançaéahonradoguerreiro,eJacaúnaamaoamigodePoti.O grande chefe pitiguara levou além o formidável tacape. O combate

renhiu-se entre Irapuã eMartim.A espada do cristão, batendo na clava doselvagem,fez-seempedaços.Ochefetabajaraavançoucontraopeitoinermedoadversário.

Iracemasilvoucomoaboicininga,esearremessouanteafúriadoguerreirotabajara.Aarmarígidatremeunadestrapossanteeobraçocaiudesfalecido.

Soavaapocemadavitória.OsguerreirospitiguarasconduzidosporJacaúnaePotivarriamafloresta.Ostabajaras,fugindo,arrebataramseuchefeaoódioda filha de Araquém que o podia abater, como a jandaia abate o prócerocoqueiroroendo-lheocerne.

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Os olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado decadáveresdeseusirmãos;elongeobandodosguerreirostabajarasquefugiaemnuvemnegradepó.Aquele sanguequeenrubescia a terra eraomesmosanguebriosoquelheardianasfacesdevergonha.

Oprantoorvalhouseulindosemblante.Martimafastou-separanãoenvergonharatristezadeIracema.Deixouque

suadornuasebanhassenaslágrimas.

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CapítuloXIX

Poti voltou de perseguir o inimigo. Seus olhos se encheram de alegria,vendosalvooguerreirobranco.

O cão fiel o seguia de perto, lambendo ainda nos pelos do focinho amarugemdosanguetabajara,dequesefartara;osenhoroacariciavasatisfeitodesuacoragemededicação.ForaelequemsalvaraMartim,alitrazendocomtantadiligênciaosguerreirosdeJacaúna.

–Osmausespíritosdaflorestapodemsepararoutravezoguerreirobrancodeseuirmãopitiguara.Ocãoteseguirádaquiemdiante,paraquemesmodelongePotiacudaateuchamado.

–Masocãoéteucompanheiroeamigofiel.–MaisamigoecompanheiroserádePoti,servindoaseuirmãoqueaele.

TuochamarásJapi[1];eeleseráopéligeirocomquedelongecorramosumparaooutro.

Jacaúnadeuosinaldapartida.Osguerreirospitiguarascaminharamparaasmargensalegresdorioonde

bebemasgarças:aliseerguiaagrandetabadossenhoresdasvárzeas.O sol deitou-se e de novo se levantou no céu. Os guerreiros chegaram

aonde a serra quebrava para o sertão; já tinham passado aquela parte damontanha que, por ser despida de arvoredo e tosquiada como a capivara, agentedeTupãchamavaIbiapina[2].

Poti levouocristãoaondecresciaum frondoso jatobá[3],queafrontavaasárvoresdomaisaltopíncarodaserrania,e,quandobatidopelarajada,pareciavarrerocéucomaimensacopa.

–Nestelugarnasceuteuirmão,disseopitiguara.Martimestreitouopeitoaotroncoenorme:–Jatobá,quevistenascermeuirmãoPoti,oestrangeiroteabraça.– O raio te decepe, árvore do guerreiro Poti, quando seu irmão o

abandonar.Depoisochefeassimfalou:

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–AindaJacaúnanãoeraumguerreiro,Jatobá,omaiorchefe,conduziaospitiguarasàvitória.Logoqueasgrandeságuascorreram,elecaminhouparaaserra.Aquichegando,mandoulevantarataba,paraestarpertodoinimigoevencê-lomaisvezes.AmesmaluaqueoviuchegaralumiouaredeondeSaí,suaesposa,lhedeumaisumguerreirodeseusangue.Oluarpassavaporentreasfolhasdojatobá;eosorrisopeloslábiosdovarãopossante,quetomaraseunomeerobustez.

Iracemaaproximou-se.

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Arola,quemariscanaareia,seafasta-seocompanheiro,adejainquietaderamoemramoearrulhaparaquelherespondaoausenteamigo.Assimafilhadasflorestaserrarapelaencosta,modulandoosingelocantomavioso.

Martimarecebeucomaalmanosemblante;e,levandoaesposadoladodocoraçãoeoamigodoladodaforça,voltouaoranchodospitiguaras.

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CapítuloXX

Aluacresceu.Três sóis havia queMartim e Iracema estavam nas terras dos pitiguaras,

senhores dasmargens do Camucim e Acaracu.Os estrangeiros tinham suarede na vasta cabana do grande Jacaúna.O valente chefe guardou para si aalegriadehospedaroguerreirobranco.

Potiabandonousuatabaparaacompanharseuirmãodeguerranacabanade seu irmão de sangue, e gozar dos instantes que sobejavam do amor deIracemaparaaamizade,nocoraçãodoguerreirodomar.

Asombrajáseretiroudafacedaterra:eMartimviuqueelanãoseretiraraaindadafacedaesposa,desdeodiadocombate.

–Atristezamoran’almadeIracema!– A alegria para a esposa só vem de ti; quando teus olhos a deixam, as

lágrimasenchemosseus.–Porquechoraafilhadostabajaras?–Estaéatabadospitiguaras,inimigosdemeupovo.AvistadeIracemajá

conheceuocrâniodeseusirmãosespetadonacaiçara;oouvidojáescutouocantodemortedoscativostabajaras;amãojátocouasarmastintasdosanguedeseuspais.

Aesposapousouasduasmãosnosombrosdoguerreiro,ereclinouaopeitodele:

–Iracematudosofreporseuguerreiroesenhor.Aataédoceesaborosa;quando amachucam, azeda. Tua esposa não quer que seu amor azede teucoração;masqueteenchadasdoçurasdomel.

–Volte o sossego ao seio da filha dos tabajaras; ela vai deixar a taba dosinimigosdeseupovo.

Ocristão caminhoupara a cabanade Jacaúna.Ogrande chefe alegrou-sevendo chegar seuhóspede;mas a alegria fugiu logode sua fronte guerreira.Martimdissera:

–Oguerreirobrancopartedetuacabana,grandechefe.

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–AlgumacousatefaltounatabadeJacaúna?–Nada faltou a teu hóspede. Ele era feliz aqui; mas a voz do coração o

chamaaoutrossítios.– Então parte, e leva o que é preciso para a viagem.Tupã te fortaleça, e

tragaoutravezàcabanadeJacaúna,paraqueelefestejetuaboa-vinda.Potichegou;sabendoqueoguerreirodomariapartir,falou:–Teuirmãoteacompanha.–OsguerreirosdePotiprecisamdeseuchefe.–SetunãoqueresqueelesvãocomPoti,Jacaúnaosconduziráàvitória.–AcabanadePotificarádesertaetriste.–Desertoetristeseráocoraçãodeteuirmãolongedeti.Oguerreirodomardeixouasmargensdoriodasgarças,ecaminhoupara

asterrasondeosolsedeita.Aesposaeoamigoseguemsuamarcha.Passam além da fértil montanha, onde a abundância dos frutos criava

grandequantidadedemosca,dequelheveioonomedeMeruoca[1].Atravessamoscórregosque levamsuaságuasaoriodasgarças,eavistam

longe no horizonte uma alta serrania. Expira o dia; nuvem negra voa dasbandasdomar:sãoosurubusquepastamnaspraiasacarniçaqueooceanoarroja,ecomanoitetornamaoninho.

OsviajantesdormememUruburetama[2].Quandoosolvoltou,chegaramàs margens do rio, que nasce da quebrada da serra e desce a planície,enroscando-secomoumacobra.Suasvoltascontínuasenganamacadapassoo peregrino que vai seguindo o tortuoso curso; por isso foi chamadoMundaú[3].

Perlongando as frescas margens, viu Martim no seguinte sol os verdesmareseasalvaspraiasondeasondasmurmurosasàsvezessoluçameoutrasraivamdefúria,rebentandoemfrocosdeespuma.

Osolhosdoguerreirobrancosedilatarampelavastaimensidade;seupeitosuspirou.EssemarbeijavatambémasbrancasareiasdoPotengi[4],seuberçonatal, onde ele vira a luz americana.Arrojou-senas ondas e pensoubanharseucorponaságuasdapátria,comobanharasuaalmanassaudadesdela.

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Iracemasentiuquelhechoravaocoração;masnãotardouqueosorrisodeseuguerreirooacalentasse.

EntretantoPoti,doaltodocoqueiro, flechavao saborosocamoropimquebrincavanapequenabaíadoMundaúepreparavaomoquémparaarefeição.

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CapítuloXXI

Jádesciaosoldasalturasdocéu.Chegamosviajantesà fozdorioondesecriamemgrandeabundânciaas

saborosas traíras[1]; suas praias são povoadas pela tribo dos pescadores, dagrandenaçãodospitiguaras.

Elesreceberamosestrangeiroscomahospitalidadegenerosa,queeraumalei de sua religião, e Poti como respeito quemerecia tão grande guerreiro,irmãodeJacaúna,maiorchefedafortegentepitiguara.

Pararepousarosviajantes,eacompanhá-losnadespedida,ochefedatriborecebeuMartim,IracemaePotinajangada,e,abrindoavelaabrisa,levou-osatémuitolongedacosta.

Todosospescadoresemsuasjangadasseguiamochefeeatroavamosarescom o canto de saudade e osmúrmuros do uraçá, que imita os soluços dovento.

Alémdatribodospescadoresestavamaisentradaparaasserrasatribodoscaçadores.ElesocupavamasmargensdoSoipé[2],cobertasdematas,ondeosveados,asgordaspacaseosmacios jacusabundavam.Assimoshabitadoresdessasmargenslhesderamonomedepaísdacaça.

O chefe dos caçadores, Jaguaraçu, tinha sua cabana à beira do lago queforma o rio perto domar. Aí acharam os viajantes omesmo agasalho quehaviamrecebidodospescadores.

Depois que partiram do Soipé, os viajantes atravessaram o rio Taíba, emcujas margens cresciam as frondosas bananeiras balançando os verdespenachos;maislongeoIguape,ondesefabricavaexcelentevinhodecaju.

Nooutrosolviramumlindorioquesurdianomar,cavandoumabacianarochaviva.

Alémassomounohorizonteumaltomorrodeareiaquetinhaaalvuradaespumadomar.Ocabosobranceiroaoscoqueirospareceacabeçacalvadocondor,esperandoaliaborrasca,quevemdosconfinsdooceano.

–Poticonheceograndemorrodasareias?–perguntouocristão.

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– Poti conhece toda a terra que têm os pitiguaras, desde asmargens dogranderio,queformaumbraçodomar[3],atéàmargemdorioondehabitaojaguar.ElejáestevenoaltodoMocoribe;edeláviucorrernomarasgrandesigarasdosguerreirosbrancos,teusinimigos,queestãonoMearim.

–PorquechamastuMocoribeaograndemorrodasareias?–Opescadordapraia,quevainajangada,láondevoaaati,ficatriste,longe

daterraedesuacabana,ondedormemos filhosdeseusangue.Quandoelevoltaequeseusolhosprimeiroavistamomorrodasareias,aalegriavoltaaoseiodohomem.Entãoeledizqueomorrodasareiasdáalegria!

–Opescadordizbem;porqueteuirmãoficoucontentecomoele,vendoomontedasareias.

Martim subiu comPoti ao cimodoMocoribe. Iracema, seguindo comosolhosoesposo,divagavacomoajaçanãemtornodolindoseio,queali fezaterraparareceberomar.

Depassagemelacolhiaosdocescajus,queaplacamasedeaosguerreiros,eapanhavaasmimosasconchasparaornarseucolo.

Os viajantes estiveram emMocoribe três sóis.DepoisMartim levou seuspassosalém.Aesposaeoamigooseguiramatéaembocaduradeumriocujasmargens eram alagadas e cobertas de mangue. O mar entrando por eleformavaumabaciadeáguacristalina,quepareciacavadanapedracomoumcamucim.

Oguerreirocristãoaopercorreressaparagem,começoudecismar.Atéaliele caminhava semdestino,movendo seus passos ao acaso; não tinha outraintençãomaisqueafastar-sedastabasdospitiguarasparaarrancaratristezadocoraçãodeIracema.Ocristãosabiaporexperiênciaqueaviagemacalentaasaudade,porqueaalmaparaenquantoocorposemove.Agora,sentadonapraia,pensava.

Potiveio:–Oguerreirobrancopensa;oseiodo irmãoestáabertoparareceberseu

pensamento.–TeuirmãopensaqueestelugarémelhordoqueasmargensdoJaguaribe

paraatabadosguerreirosdesuaraça.Nestaságuasasgrandesigarasquevêm

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de longes terras se esconderiam do vento e do mar; daqui elas iriam aoMearimdestruirosbrancos tapuias[4], aliadosdos tabajaras, inimigosde tuanação.

Ochefepitiguarameditouerespondeu:–Vaibuscarteusguerreiros.Potiplantarásuatabajuntodamairi[5]deseu

irmão.Aproximava-se Iracema. O cristão mandou com um gesto o silêncio ao

chefepitiguara.–Avozdoespososecala,eseusolhossebaixam,quandochegaIracema.

Querestuqueelaseafaste?–Querteuesposoquecheguesmaisperto,paraquesuavozeseusolhos

penetremmaisdentrodetuaalma.Aformosaselvagemdesfez-seemrisos,comosedesfazaflordofrutoque

desponta,efoidebruçar-senaespáduadoguerreiro.–Iracemateescuta.–Estescampossãoalegres,emaisserãoquandoIracemaneleshabitar.Que

dizteucoração?–Ocoraçãodaesposaestásemprealegrejuntodeseusenhoreguerreiro.Seguindopelamargemdorio,ocristãoescolheuumlugarpara levantara

cabana.Poticortouesteiosdostroncosdacarnaúba;afilhadeAraquémligavaos leques da palmeira para vestir o teto e as paredes;Martim cavou a terracomaespadaefabricouaportadasfasquiasdataquara.

Quandoveioanoite,osdoisespososarmaramaredeemsuanovacabana;eoamigonocopiarqueolhavaparaonascente.

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CapítuloXXII

Potisaudouoamigoefalouassim:–“AntesqueopaideJacaúnaePoti,ovalenteguerreiroJatobá,mandasse

sobre todos os guerreiros pitiguaras, o grande tacape da nação estava nadestra de Batuireté[1], o maior chefe, pai de Jatobá. Foi ele que veio pelaspraias domar até o rio do jaguar, e expulsou os tabajaras para dentro dasterras,marcandoacadatriboseulugar;depoisentroupelosertãoatéaserraquetomouseunome.

“Quando suas estrelas eram muitas[2], e tantas que seu camucim já nãocabia as castanhasquemarcavamonúmero, o corpo vergoupara a terra, obraço endureceu como o galho do ubiratã que não verga, seus olhos seescureceram.

“Chamou então o guerreiro Jatobá[3] e disse: – Filho, toma o tacape danaçãopitiguara.TupãnãoquerqueBatuiretéolevemaisàguerra,poistirouaforçadeseucorpo,omovimentodoseubraçoealuzdeseusolhos.MasTupãfoibomparaele,poislhedeuumfilhocomooguerreiroJatobá.

“Jatobá empunhou o tacape dos pitiguaras. Batuireté tomou o bordão desua velhice e caminhou. Foi atravessando os vastos sertões, até os camposviçososondecorremaságuasquevêmdasbandasdanoite.Quandoovelhoguerreiroarrastavaopassopelasmargens,easombradeseusolhosnão lhedeixavaquevissemaisosfrutosnasárvoresouospássarosnoar,elediziaemsuatristeza:–Ah!meustempospassados!

“A gente que o ouvia chorava a ruína do grande chefe; e desde entãopassandopor aqueles lugares repetia suas palavras; donde veio chamar-se orioeoscampos,Quixeramobim[4].

“Batuiretéveiopelocaminhodasgarças[5]atéaquelaserraquetuvêslonge,onde primeiro habitou. Lá no píncaro o velho guerreiro fez seu ninho altocomoogavião,paraencherorestodeseusdias,conversandocomTupã.Seufilhojádormeembaixodaterra,eeleaindanaoutraluacismavanaportadesua cabana, esperando a noite que traz o grande sono. Todos os chefes

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pitiguaras, quando acordam à voz da guerra, vão pedir ao velho que lhesensine a vencer, porque nenhum outro guerreiro jamais soube como elecombater. Assim as tribos não o chamammais pelo nome, senão o grandesabedordaguerra,Maranguab[6]”.

“OchefePotivaiàserraverseugrandeavô;mas,antesqueodiamorra,eleestarádevoltanacabanadeseuirmão.Tenstuoutravontade?”

–Oguerreirobranco teacompanha.Elequerabraçarograndechefedospitiguaras,avôdeseuirmão,edizeraovelhoquerenasceemseuneto.

Martim chamou Iracema e partiram ambos guiados pelo pitiguara para aserradoMaranguab,queselevantavanohorizonte.ForamseguindoocursodorioatéondeneleentravaoribeirodePirapora[7].

Acabanadovelhoguerreiroestavajuntodasformosascascatas,ondesaltaopeixenomeiodosborbotõesdeespuma.Aságuasalisãofrescasemacias,comoabrisadomar,quepassaentreaspalmasdoscoqueiros,nashorasdacalma.

Batuiretéestavasentadosobreumadaslapasdacascataeosolardentecaíasobre sua cabeça nua de cabelos e cheia de rugas como o jenipapo. Assimdormeojaburunabordadolago.

–PotiéchegadoàcabanadograndeMaranguab,paideJatobá,etrouxeseuirmãobrancoparaveromaiorguerreirodasnações.

Ovelhosoabriuaspesadaspálpebras,epassoudonetoaoestrangeiroum

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olharbaço.Depoisopeitoarquejoueoslábiosmurmuraram:– Tupã quis que estes olhos vissem, antes de se apagarem, o gavião

branco[8]juntodanarceja.O abaeté derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais, nem mais se

moveu.Poti eMartim julgaramque ele dormia e se afastaram com respeito para

nãoperturbarorepousodequemtantoobraranalongavida.Iracema,quesebanhava na próxima cachoeira, veio-lhes ao encontro, trazendo na folha dataiobafavosdemelpuríssimo.

Discorreram os amigos pelas floridas encostas até que as sombras damontanha se estenderam pelo vale. Tornaram então ao lugar onde tinhamdeixadooMaranguab.

Ovelhoaindaláestavanamesmaatitude,comacabeçaderrubadaaopeitoeosjoelhosencostadosàfronte.Asformigassubiampeloseucorpoeostuinsadejavamemtornoepousavam-lhenacalva.

Potipôsamãonocrâniodovelhoeconheceuqueerafinado;oguerreiromorreradevelhice.Entãoochefepitiguaraentoouocantodamorteedepoisfoiàcabanabuscarocamucim,quetransbordavacomascastanhasdocaju.Martimcontoucincovezescincomãos.

EntantoIracemacolhianaflorestaaandiroba,paraungirocorpodovelhonocamucim,ondeamãopiedosadonetooencerrou.Ovaso fúnebre ficoususpensoaotetodacabana.

Depois que plantou urtiga em frente à porta, para defender contra osanimaisaocaabandonada,Potidespediu-setristedaqueleslugares,etornoucomseuscompanheirosàbordadomar.

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CapítuloXXIII

QuatroluastinhamalumiadoocéudepoisqueIracemadeixaraoscamposdo Ipu; e três depois que ela habitava nas praias do mar a cabana de seuesposo.

A alegria morava em sua alma. A filha dos sertões era feliz, como aandorinha que abandona o ninho de seus pais e emigra para fabricar novoninhonopaísondecomeçaaestaçãodasflores.TambémIracemaacharanaspraiasdomarumninhodoamor,novapátriaparaocoração.

Ela discorria as amenas campinas, como o colibri borboleteando entre asfloresdaacácia.Aluzdamanhãjáaencontravasuspensaaoombrodoesposoesorrindo,comoaenrediçaqueentrelaçaotroncoetodasasmanhãsocoroadenovagrinalda.

MartimpartiaparaacaçacomPoti.Elaseparava-seentãodele,parasentiraindamaisodesejodetornaravê-lo.

Pertohaviaumaformosalagoanomeiodaverdecampina.Paralávolviaaselvagemo ligeiropasso.Eraahoradobanhodamanhã;atirava-seàáguaenadavacomasgarçasbrancaseasvermelhasjaçanãs.

Osguerreirospitiguaras,queapareciamporaquelasparagens,chamavamaessalagoaPorangaba[1],oulagoadabeleza,porquenelasebanhavaIracema,amaisbelafilhadaraçadeTupã.

E desde esse tempo as mães vinham de longe mergulhar suas filhas naságuas da Porangaba, que tinham a virtude de tornar as virgens formosas eamadaspelosguerreiros.

Depois do banho, Iracemadiscorria até as faldas da serra doMaranguab,onde nascia o ribeiro dasmarrecas, o Jereraú[2]. Ali cresciam na frescura esombraasfrutasmaissaborosasdetodoopaís;delasfaziacopiosaprovisão,eesperava,seembalandonasramasdomaracujá,queMartimtornassedacaça.

Outras vezes não era a Jereraú que a levava sua vontade,mas do opostolado, junto da lagoa da Sapiranga[3], cujas águas diziam que inflamavam osolhos.À cerca daí havia umbosque frondoso demuritis, que formavamno

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meiodotabuleiroumagrandeilhadeformosaspalmeiras.Iracema gostava doMuritiapuá[4], onde o vento suspirava docemente; ali

espolpava ela o vermelho coco, para fabricar a bebida refrigerante, adoçadacomomel da abelha, que os guerreiros amavamdurante amaior calmadodia.

UmamanhãPotiguiouMartimàcaça.Caminharamparaumaserra,queselevanta ao ladodaoutradoMaranguab, sua irmã.O alto cabeço se curva àsemelhança do bico adunco da arara; pelo que os guerreiros a chamaramAratanha[5]. Eles subiram pela encosta da Guaiúba[6] por onde as águasdescemparaovale,eforamatéocórregohabitadopelaspacas.

SóhaviasolnobicodaararaquandooscaçadoresdesceramdePacatuba[7]

aotabuleiro.De longeviramIracema,quevieraesperá-losàmargemdesualagoa da Porangaba. Caminhava para eles com o passo altivo da garça quepasseia à beira d’água; por cimada carioba trazia uma cinturadas flores damaniva, que era o símbolo da fecundidade. Colar das mesmas cingia-lhe ocoloeornavaosrijosseiospalpitantes.

Travoudamãodoesposoeaimpôsnoregaço:–TeusanguejávivenoseiodeIracema.Elaserámãedeteufilho!–Filho,dizestu!–exclamouocristãoemjúbilo.Ajoelhou ali e, cingindo-a com os braços, beijou o ventre fecundo da

esposa.Quandoergueu-se,Potifalou:–A felicidadedomanceboé a esposa eo amigo; aprimeiradá alegria; o

segundodáforça.Oguerreirosemaesposaécomoaárvoresemfolhasnemflores;nuncaelaveráofruto.Oguerreirosemamigoécomoaárvoresolitárianomeio do campo que o vento balança: o fruto dela nunca amadurece. Afelicidadedovarãoéaprole,quenascedeleefazseuorgulho;cadaguerreiroquesaidesuasveiasémaisumgalhoque levaseunomeàsnuvens,comoagrimpa do cedro. Amado de Tupã é o guerreiro que tem uma esposa, umamigoemuitosfilhos;elenadamaisdesejasenãoamortegloriosa.

MartimuniuopeitoaopeitodePoti:

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–Ocoraçãodoesposoedoamigofalouportuaboca.Oguerreirobrancoéfeliz, chefedospitiguaras, senhoresdaspraiasdomar; e a felicidadenasceupara ele na terra das palmeiras, onde recende a baunilha, e foi gerada dosangue de tua raça, que temno rosto a cor do sol.O guerreiro branconãoquermaisoutrapátria,senãoapátriadeseufilhoedeseucoração.

Aoromperd’alvaPotipartiuparacolherassementesdecrajiruquedãoamais bela tinta vermelha, e a casca do angico de onde sai a cor negramaislustrosa.Decaminhosuaflechacerteiraabateuopatoselvagemqueplainavanosares:eelearrancoudasasasaslongaspenas.SubindoaoMocoribe,rugiua inúbia.A refegaque vinhadomar levou longeo rouco som.ObúziodospescadoresdoTrairieatrombetadoscaçadoresdoSoipéresponderam.

Martimbanhou-sen’águadorio,epasseounapraiaparasecarocorpoaoventoeaosol.AoseuladoiaIracema,queapanhavaoâmbar[8]amarelo,queomararrojava.Todasasnoitesaesposaperfumavaseucorpoeaalvarede,paraqueoamordoguerreirosedeleitassenela.

VoltouPoti.

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CapítuloXXIV

–Foicostumedaraça,filhadeTupã,queoguerreirotrouxessenocorpoascoresdesuanação.

Traçavamemprincípionegrasriscassobreocorpo,àsemelhançadopelodoquati, de ondeprocedeuonomedessa arte dapintura guerreira.Depoisvariaramascores,emuitosguerreiroscostumavamescreverosemblemasdeseusfeitos.

Oestrangeiro, tendo adotado apátriada esposa edo amigo, deviapassarporaquela cerimônia,para tornar-seumguerreirovermelho, filhodeTupã.NessaintençãoforaPotiseproverdosobjetosnecessários.

Iracemapreparouastintas.Ochefe,embebendoasramasdapluma,traçoupelo corpo os riscos vermelhos e pretos, que ornavam a grande naçãopitiguara.Depoispintounafronteumaflechaedisse:

–Assimcomoa seta traspassaoduro tronco, assimoolhardoguerreiropenetran’almadospovos.

Nobraçopintouumgavião:–Assimcomooanajêcaidasnuvens,assimcaiobraçodoguerreirosobre

oinimigo.Nopéesquerdopintouaraizdocoqueiro:–Assimcomoapequenaraizagarranaterraoaltocoqueiro,opéfirmedo

guerreirosustentaseucorporobusto.Nopédireitopintouumaasa:–Assimcomoaasadomajoí rompeosares,opévelozdoguerreironão

temigualnacorrida.Iracematomouaramadapenaepintouumafolhacomumaabelhasobre:

suavozressoouentresorrisos:–Assimcomoaabelhafabricamelnocoraçãonegrodojacarandá,adoçura

estánopeitodomaisvalenteguerreiro.Martimabriuosbraçoseoslábiospararecebercorpoealmadaesposa.–Meuirmãoéumgrandeguerreirodanaçãopitiguara;eleprecisadeum

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nomenalínguadesuanação.–Onomedeteuirmãoestáemseucorpo,ondeopôstuamão.–Coatiabo[1]!–exclamouIracema.–Tudisseste;eusouoguerreiropintado;oguerreirodaesposaedoamigo.Poti deu a seu irmão o arco e o tacape, que são as armas nobres do

guerreiro.Iracemahaviatecidoparaeleococareaaraçoia,ornatosdoschefesilustres.

AfilhadeAraquémfoibuscaràcabanaasiguariasdofestimeosvinhosdejenipapo e mandioca. Os guerreiros beberam copiosamente e trançaram asdançasalegres.Durantequevolviamemtornodosfogosdaalegria,ressoavamascanções.

Poticantava:–Comoacobraquetemduascabeçasemumsócorpo,assiméaamizade

deCoatiaboePoti.AcudiuIracema:–Comoaostraquenãodeixao rochedo,aindadepoisdemorta,assimé

Iracemajuntoaseuesposo.Osguerreirosdisseram:

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–Comoojatobánafloresta,assiméoguerreiroCoatiaboentreoirmãoeaesposa:seusramosabraçamosramosdoubiratã,esuasombraprotegearelvahumilde.

Os fogos da alegria arderam até que veio a manhã; e com eles durou ofestimdosguerreiros.

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CapítuloXXV

A alegria aindamorou na cabana todo o tempo que as espigas demilholevaramaamarelecer.

Uma alvorada, caminhava o cristão pela borda do mar. Sua alma estavacansada.

O colibri[1] sacia-se de mel e perfume; depois adormece em seu branconinhodecotão,atéquevoltanooutroanoaluadasflores.Comoocolibri,aalmadoguerreirotambémsatura-sedefelicidade,ecarecedesonoerepouso.

Acaçaeasexcursõespelasmontanhasemcompanhiadoamigo,ascaríciasda terna esposa que o esperavam na volta, o doce carbeto[2] no copiar dacabana,jánãoacordavamneleasemoçõesdeoutrora.Seucoraçãoressonava.

QuandoIracemabrincavapelapraia,osolhosdeleretiravam-sedelaparaseestenderempelaimensidadedosmares.

Viramumas asas brancas, que adejavampelos campos azuis.Conheceuocristão que era uma grande igara de muitas velas, como construíam seusirmãos;easaudadedapátriaapertouemseuseio.

Altoiaosol;eoguerreironapraiaseguiacomosolhosasasasbrancasquefugiam.Debaldeaesposaochamouàcabana,debaldeofereceuaseusolhos,as graças dela e os frutos melhores do campo. Não se moveu o guerreiro,senãoquandoavelasumiu-senohorizonte.

Poti voltou da serra, onde pela vez primeira fora só. Tinha deixado aserenidadenafrontedeseuirmãoeachavaaliatristeza.Martimsaiu-lheaoencontro:

–Aigaragrandedobrancotapuiapassounomar.OsolhosdeteuirmãoaviramvoarparaasmargensdoMearim,ondeestãoosaliadosdostupinambás,inimigosdetuaeminharaça.

–Potiésenhordemilarcos;seéteudesejo,eleteacompanharácomseusguerreiros às margens doMearim para vencer o tapuitinga e seu amigo, otraidortupinambá.

–Quandofortempoteuirmãotedirá.

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Osguerreirosentraramnacabana,ondeestavaIracema.Amaviosacançãonessediatinhaemudecidonoslábiosdaesposa.Elateciasuspirandoafranjadaredematerna,maislargaeespessaquearededohimeneu.

Poti,queaviutãoocupada,falou:–Quando a sabiá canta é o tempo do amor; quando emudece, fabrica o

ninhoparasuaprole;éotempodotrabalho.–Meuirmãofalacomoarãquandoanunciaachuva;masasabiáquefaz

seuninho,nãosabesedormiránele.A voz de Iracema gemia. Seu olhar buscou o esposo.Martimpensava; as

palavras de Iracemapassarampor ele, como a brisa pela face lisa da rocha,semeconemrumores.

Osolbrilhavasempresobreaspraiasdomar,easareiasrefletiamosraiosardentes; mas nem a luz que vinha do céu, nem a luz que ia da terraespancaramasombran’almadocristão.Cadavezocrepúsculoeramaioremsuafronte.

ChegoudasmargensdorioAcaracuumguerreiropitiguara,mandadoporJacaúnaaseuirmãoPoti.EleveioseguindoorastrodosviajantesatéoTrairi,ondeospescadoresoguiaramàcabana.

Poti estava só no copiar; ergueu-se e abaixou a fronte para escutar comrespeito e gravidade as palavras que lhe mandava seu irmão pela boca domensageiro:

–Otapuitinga,queestavanoMearim,veiopelasmatasatéoprincípiodaIbiapaba,ondefezaliançacomIrapuã,paracombateranaçãopitiguara.Elesvão descer da serra àsmargens do rio em que bebem as garças, e onde tulevantaste a taba de teus guerreiros. Jacaúna te chama para defender oscamposdenossospais:teupovocarecedeseumaiorguerreiro.

–VoltaàsmargensdoAcaracu,eteupénãodescanseenquantonãopisarochãodacabanadeJacaúna.Quandoaíestiveres,dizeaograndechefe:–“Teuirmãoéchegadoàtabadeseusguerreiros”.–Etunãomentirás.

Omensageiropartiu.Poti vestiu suas armas e caminhou para a várzea, guiado pelo passo de

Coatiabo. Ele o encontrou muito além, vagando entre os canaviais que

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bordamasmargensdeAquiraz.– O branco tapuia está na Ibiapaba para ajudar os tabajaras a combater

contra Jacaúna. Teu irmão corre a defender a terra de seus filhos, e a tabaondedormeocamucimdeseuspais.Elesaberávencerdepressaparavoltaràtuapresença.

–Teuirmãopartecontigo.Nadaseparadoisguerreirosamigosquandotroaainúbiadaguerra.

–Tuésgrande,comoomar,ebomcomoocéu.Osdois amigos abraçaram-se; e seguiram como rosto para as bandas do

nascente.

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CapítuloXXVI

Caminhando, caminhando, chegaramosguerreiros àmargemdeum lagoquehavianostabuleiros.

O cristão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar; atristezasaiudeseucoraçãoesubiuàfronte.

–Meu irmão,disseo chefe, teupé criou raizna terradoamor; fica:Potivoltarábreve.

–Teu irmão te acompanha, ele disse, e suapalavra é comoa setade teuarco;quandosoa,échegada.

–QuerestuqueIracemateacompanheàsmargensdoAcaracu?–Nósvamoscombaterseusirmãos.Atabadospitiguarasnãoteráparaela

maisquetristezaedor.Afilhadostabajarasdeveficar.–Queesperasentão?– Teu irmão se aflige porque a filha dos tabajaras pode ficar triste e

abandonar a cabana, sem esperar pela sua volta. Antes de partir ele queriasossegaroespíritodaesposa.

Potirefletiu:–Aslágrimasdamulheramolecemocoraçãodoguerreiro,comooorvalho

damanhãamoleceaterra.–Meuirmãoéumgrandesabedor.OesposodevepartirsemverIracema.Ocristão avançou.Potimandou-lheque esperasse;da aljavade setasque

Iracemaemplumaradepenasvermelhasepretasesuspenderaaosombrosdoesposo,tirouuma.

O chefe pitiguara vibrou o arco; a seta atravessou um goiamum quediscorriapelasmargensdolago,esóparouondeaplumanãoadeixoumaisentrar.

Fincouoguerreironochãoaflecha,comapresaatravessada,etornouparaCoatiabo:

–Tupodespartiragora.Iracemaseguiráteurastro;chegandoaqui,verátuaseta,eobedeceráàtuavontade.

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Martimsorriu;equebrandoumramodomaracujá,aflordalembrança,oentrelaçounahastedaseta,epartiuenfimseguidoporPoti.

Brevedesapareceramosdoisguerreirosentreasárvores.Ocalordosol játinhasecadoseuspassosnabeirado lago. Iracema inquietaveiopelavárzeaseguindo o rastro do esposo até o tabuleiro. As sombras doces vestiam oscamposquandoelachegouàbeiradolago.

Seusolhosviramasetadoesposofincadanochão,ogoiamumtrespassado,oramopartido,eencheram-sedepranto.

–Elemandaque Iracemaandepara trás, comoogoiamum,eguarde sualembrança,comoomaracujáguardasuaflortodootempoatémorrer.

Afilhadostabajarasretraiuospassoslentamente,semvolverocorpo,nemtirarosolhosdasetadeseuesposo,e tornouàcabana.Aísentadaàsoleira,com a fronte nos joelhos esperou, até que o sono acalentou a dor em seupeito.

Apenas alvorou o dia, ela moveu o passo rápido à lagoa, e chegou àmargem.Aflechaláestavacomonavéspera:oesposonãotinhavoltado.

Desde então, à hora do banho, em vez de buscar a lagoa da beleza, ondeoutrora tanto gostaradenadar, caminhavapara aquela, que vira seu esposoabandoná-la.Sentavajuntoàflecha,atéquedesciaanoite;entãoserecolhiaà

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cabana.Tão rápida partia de manhã, como lenta voltava à tarde. Os mesmos

guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da Porangaba, agoraencontrando-atristeesó,comoagarçaviúva,namargemdorio,chamavamaquelesítiodaMocejana[1],aabandonada.

UmavezqueaformosafilhadeAraquémselamentavaàbeiradalagoadaMocejana,umavozestridentegritouseunomedoaltodacarnaúba:

–Iracema!...Iracema!...Ergueuelaosolhoseviuentreasfolhasdapalmeirasualindajandaia,que

batiaasasasearrufavaaspenascomoprazerdevê-la.A lembrançadapátria,apagadapeloamor,ressurgiuemseupensamento.

ViuosformososcamposdoIpu,asencostasdaserraondenascera,acabanadeAraquém;etevesaudades;masaindanaqueleinstante,nãosearrependeudeosterabandonado.

Seu lábio gazeou em canto. A jandaia, abrindo as asas, esvoaçou-lhe emtorno e pousou no ombro. Alongando fagueira o colo, com o negro bicoalisou-lheoscabelosebeliscouabocavermelhacomoumapitanga.

Iracemalembrou-sedequetinhasidoingrataparaajandaiaesquecendo-ano tempo da felicidade; e agora ela vinha para a consolar no tempo dadesventura.

Nestatardenãovoltousóàcabana.Duranteodiaseusdedoságeisteceramo formoso uru de palha que forrou da felpa macia da monguba[2] paraagasalharsuacompanheiraeamiga.

Naseguintealvoradafoiavozdajandaiaqueadespertou.Alindaavenãodeixoumaissuasenhora;ouporquedepoisdalongaausêncianãosefartassede a ver, ou porque adivinhasse que ela tinha necessidade de quem aacompanhasseemsuatristesolidão.

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CapítuloXXVII

UmatardeIracemaviudelongedoisguerreirosqueavançavampelaspraiasdomar.Seucoraçãopalpitoumaisapressado.

Instantedepoiselaesquecianosbraçosdoesposotantosdiasdesaudadeeabandono que passara na solitária cabana. Outra vez sua graça encheu osolhosdocristão;aalegriavoltouahabitaremsuaalma.

Como a seca várzea, com a vinda do nevoeiro, reverdece ematiza-se deflores, a formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se; e suabelezaesmaltou-sedemeigoseternossorrisos.

Martim e seu irmão haviam chegado à taba de Jacaúna, quando soava ainúbia; eles guiaram ao combate os mil arcos de Poti. Ainda dessa vez ostabajaras,apesardaaliançadosbrancostapuiasdoMearim,foramlevadosdevencidapelosvalentespitiguaras.

NuncatãodisputadavitóriaetãorenhidapugnasepelejounoscamposqueregamoAcaracueoCamucim;ovaloreraigualdeparteaparte,enenhumdosdoispovosforavencido,seodeusdaguerranãotivessedecididodarestasplagasàraçadoguerreirobranco,aliadadospitiguaras.

Logoapósavitóriaocristãotornaraàspraiasdomar,ondeconstruírasuacabana.Denovosentiuemsuaalmaasededoamor;etremiadepensarqueIracema houvesse partido, deixando ermo aquele sítio tão povoado outrorapelafelicidade.

Ocristãoamououtravezafilhadosertão,comodaprimeiravez,quandoparecequeotemponãopoderáexaurirocoração.Masbrevessóisbastaramparamurcharaquelasfloresdeumcoraçãoexiladodapátria.

O imbu[1], filho da serra, se nasceu na várzea porque o vento ou as avestrouxerama semente,vingou,achandoboa terrae fresca sombra; talvezumdiacopeaverdefolhagemeenflore.Masbastaumsoprodomar,paratudomurchar.Asfolhaslastramochão;asflores,leva-asabrisa.

Como o imbu na várzea era o coração do guerreiro branco na terraselvagem.Aamizadeeoamoroacompanharamesustiveramalgumtempo,

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masagora,longedesuacasaedeseusirmãos,sentia-senoermo.Oamigoeaesposanãobastavammaisàsuaexistência,cheiadegrandesdesejosenobresambições.

Passavaosjátãobreves,agoralongossóis,napraia,ouvindogemeroventoe soluçar as ondas. Com os olhos engolfados na imensidade do horizonte,buscava,masembalde,descobrirnoazuldiáfanoaalvuradeumavelaperdidanosmares.

Àdistânciacurtadacabana,seelevavaàbordadooceanoumaltomorrodeareia;pelasemelhançacomacabeçadocrocodiloochamavamospescadoresJacarecanga[2].Doseiodasbrancasareiasescaldadaspeloardentesol,manavaumaáguafrescaepura;assimdestilaadorlágrimasdocesdealívioeconsolo.

Aessemontesubiaocristão;eláficavacismandoemseudestino.Àsvezeslhe vem àmente a ideia de tornar à sua terra e aos seus;mas ele sabe queIracemaoacompanhará;eessalembrançalheremordeocoração.Cadapassomaisqueafastedoscamposnativosafilhadostabajaras,agoraquenãotinhaoninhodeseucoraçãoparaabrigar-se,eraumaporçãodavidaquelheroubava.

Poti conhecequeMartimdeseja estar só e afasta-sediscreto.Oguerreirosabeoqueafligeaalmado seu irmãoe tudoesperado tempo,porque sóotempoendureceocoraçãodoguerreiro,comoocernedojacarandá.

Iracema também fogedos olhos do esposo, porque já percebeuque essesolhostãoamadosseturbamcomavistadela,e,emvezdeseencheremdesuabelezacomooutrora,adespedemdesi.Masosolhosdelanãosecansamdeacompanharàparteedelongeoguerreirosenhorqueosfezcativos.

Aidela!...Sentiujáogolpenocoraçãoe,comoacopaíbaferidanoâmago,destilalágrimasemfio.

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CapítuloXXVIII

Uma vez o cristão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema: seusolhosbuscaramemtornoenãoaviram.

AfilhadeAraquémestavaalém,entreasverdesmoitasdeubaia,sentadanarelva.Oprantodesfiavadeseubelosemblante;easgotasquerolavamaumaeumacaíamsobreoregaço,ondejápalpitavaecresciaofilhodoamor.Assimcaemasfolhasdaárvoreviçosaantesqueamadureçaofruto.

–OqueespremeaslágrimasdocoraçãodeIracema?–Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu sua

felicidade,depoisqueteseparastedela.–Nãoestoueujuntodeti?– Teu corpo está aqui;mas tua alma voa à terra de teus pais, e busca a

virgembranca,queteespera.Martim doeu-se. Os grandes olhos negros que a indiana pousara nele o

tinhamferidonoâmago.–Oguerreirobrancoéteuesposo:eletepertence.Aformosatabajarasorriuemsuatristeza:–QuantotempoháqueretirastedeIracemateuespírito?Antesteupasso

teguiavaparaasfrescasserraseosalegrestabuleiros;teupégostavadepisaraterra da felicidade e seguir o rastro da esposa. Agora só buscas as praiasardentes,porqueomarquelámurmuravemdoscamposemquenasceste;eomorrodasareias,porquedoaltoseavistaaigaraquepassa.

–Éaânsiadecombaterotupinambáquevolveopassodoguerreiroparaasbordasdomar,respondeuocristão.

Iracemacontinuou:–Teu lábio secou para a esposa, como a cana quando ardemos grandes

sóis;perdeogratomeleasfolhasmurchasnãopodemmaisbrincarquandopassa a brisa. Agora só falas ao vento da praia para que ele leve tua voz àcabanadeteuspais.

–Avozdoguerreirobrancochamaseusirmãosparadefenderacabanade

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Iracemaeaterradeseufilho,quandooinimigovier.Aesposameneouacabeça:–Quandotupassasnotabuleiro,teusolhosfogemdofrutodojenipapoe

buscamaflordoespinheiro;afrutaésaborosa,mastemacordostabajaras;aflor temaalvuradas facesdavirgembranca.Se cantamas aves, teuouvidonãogostajádeescutarocantomaviosodagraúna;mastuaalmaseabreparaogritodojapim[1],porqueeletemaspenasdouradascomooscabelosdaquelaquetuamas!

–AtristezaescureceavistadeIracemaeamargaseulábio.Masaalegriahádevoltaràalmadaesposa,comovoltaàárvoreaverderama.

–Quando teu filho deixar o seio de Iracema, elamorrerá, como o abatidepois que deu seu fruto. Então o guerreiro branco não terámais quem oprendanaterraestrangeira.

–Tuavozqueima,filhadeAraquém,comoosoproquevemdossertõesdoIcó,notempodosgrandescalores.Querestuabandonarteuesposo?

–Nãoveemteusolhosláoformosojacarandá,quevaisubindoàsnuvens?Aseuspésaindaestáasecaraizdamurtafrondosa,quetodososinvernossecobria de rama e bagos vermelhos, para abraçar o tronco irmão. Se ela nãomorresse, o jacarandá não teria sol para crescer àquela altura. Iracema é afolha escura[2] que faz sombra em tua alma; deve cair, para que a alegriaalumieteuseio.

Ocristãocingiuotalhedaformosaindianaeaestreitouaopeito.Seulábiolevouaolábiodaesposaumbeijo,masásperoeamargo.

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CapítuloXXIX

Potivoltoudobanho.Segue na areia o rastro de Coatiabo e sobe ao alto da Jacarecanga. Aí

encontraoguerreiroempénocabeçodomonte,comosolhosalongadoseosbraçosestendidosparaoslargosmares.

Volveopitiguaraasvistasedescobreumagrandeigara,quevemsulcandoosverdesmares,impelidapelovento:

–Éagrandeigaradosirmãosdemeuirmãoquevembuscá-lo?Ocristãosuspirou:–Sãoosguerreirosbrancosinimigosdeminharaça,quebuscamaspraias

davalentenaçãopitiguara,paraaguerradavingança:eles foramderrotadoscomostabajarasnasmargensdoCamucim;agoravêmcomseusamigos,ostupinambás[1],pelocaminhodomar.

–Meu irmãoéumgrandechefe.Quepensaelequedeve fazerseu irmãoPoti?

–ChamaoscaçadoresdeSoipéeospescadoresdoTrairi.Nós iremosaoseuencontro.

Poti acordouavozda inúbia; eosdoisguerreirospartiramambosparaoMocoribe. Pouco além viram os guerreiros de Jaguaraçu e Camoropim quecorriamaogritodeguerra.OirmãodeJacaúnaosavisoudavindadoinimigo.

Ograndemaracatim[2]correnasondas,aolongodaterraquesedilataatéàsmargensdoParnaíba.AluacomeçavaacrescerquandoeledeixouaságuasdoMearim;ventoscontráriosotinhamarrastadoparaosaltos-mares,muitoalémdeseudestino.

Osguerreirospitiguaras,paranãoespantaroinimigo,seocultamentreoscajueiros;evãoseguindopelapraiaagrandeigara:duranteodiaavultamasbrancasvelas;denoiteosfogosatravessamanegruradomar,comovagalumesperdidosnamata.

Muitossóiscaminharamassim.PassamalémdoCamucim,eafinalpisamaslindasribeirasdaenseadadospapagaios[3].

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PotimandaumguerreiroaograndeJacaúnaesepreparaparaocombate.Martim,quesubiuaomorrodeareia,conhecequeomaracatimvemrecolhernoseiodaterra;eavisaseuirmão.

O sol já nasceu; os guerreiros guaraciabas e os tupinambás, seus amigos,corremsobreasondasnasligeiraspirogasepojamnapraia.Formamograndearco,eavançamcomoocardumedopeixequandocortaacorrentezadorio.

No centro estão os guerreiros do fogo, que trazem o raio; nas asas osguerreirosdoMearim,quebrandemotacape.

Mas nação alguma jamais vibrou o arco certeiro como a grande naçãopitiguara; e Poti é o maior chefe, de quantos chefes empunharam a inúbiaguerreira.Aoseuladocaminhaoirmão,tãograndechefecomoele,esabedordasmanhasdaraçabrancadoscabelosdosol.

Duranteanoiteospitiguarasfincamnapraiaafortecaiçara[4]deespinhoelevantam contra ela um muro de areia, onde o raio esfria e se apaga. Aíesperamo inimigo.Martimmandaqueoutrosguerreiros subamàcopadosmaisaltoscoqueiros;alidefendidospelaslargaspalmas,esperamomomentodocombate.

A seta de Poti foi a primeira que partiu, e o chefe dos guaraciabas oprimeiro herói quemordeu o pó da terra estrangeira. Rugemos trovões nadestra dos guerreiros brancos;mas os raios que desferemmergulham-se naareia,ouseperdemnosares.

As setas dos pitiguaras já caem do céu, já voam da terra, e se embebemtodas no seio do inimigo. Cada guerreiro tomba crivado demuitas flechas,comoapresaqueaspiranhasdisputamnaságuasdolago.

Os inimigos embarcamoutra veznaspirogas, e voltamaomaracatimembusca dos grandes e pesados trovões, que um homem só nem dois podemmanejar.

Quandovoltam,ochefedospescadores,quecorrenaságuasdomarcomoovelozcamoropim,dequetomouonome,searrojanasondas,emergulha.Aindaaespumanãoseapagara,e jáapirogainimigaseafundou,parecendoqueatragaraumabaleia.

Veioanoite,quetrouxeorepouso.

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Ao romper d’alva, o maracatim fugia no horizonte para as margens doMearim. Jacaúna chegou, nãomais para o combate e sim para o festim davitória.

Nessahoraemqueocantoguerreirodospitiguarascelebravaaderrotadosguaraciabas,oprimeirofilhoqueosanguedaraçabrancagerounessaterradaliberdadeviaaluznoscamposdaPorangaba.

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CapítuloXXX

Iracema,sentindoqueselherompiaoseio,buscouamargemdorio,ondecresciaocoqueiro.

Estreitou-secomahastedapalmeira.Adorlacerousuasentranhas;porémlogoochoroinfantilinundoutodooseuserdejúbilo.

Ajovemmãe,orgulhosadetantaventura,tomouotenrofilhonosbraçosecom ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à tetamimosa;seusolhosentãooenvolviamdetristezaeamor.

–TuésMoacir[1],onascidodemeusofrimento.A ará, pousadanoolhodo coqueiro, repetiuMoacir; e desde então a ave

amigaemseucantouniaaonomedamãe,onomedofilho.Oinocentedormia;Iracemasuspirava:–Ajatifabricaomelnotroncocheirosodosassafrás;todaaluadasflores

voa de ramo em ramo, colhendo o suco para encher os favos;mas ela nãoprova suadoçura, porque a iraradevora emumanoite toda a colmeia.Tuamãe também, filho deminha angústia, não beberá em teus lábios omel dosorriso.

A jovem mãe passou aos ombros a larga faixa de macio algodão, quefabricara para trazer o filho sempre unido ao flanco; e seguiu pela areia orastrodoesposo,quehátrêssóispartira.Elacaminhavadocementeparanãodespertaracriancinha,adormecidacomoopassarinhosobaasamaterna.

Quando chegou junto ao grande morro das areias, viu que o rastro deMartimePoti seguia ao longodapraia; e adivinhouque eles erampartidospara a guerra. Seu coração suspirou; mas seus olhos secos buscaram osemblantedofilho.

VolveorostoparaoMocoribe:–Tuésomorrodaalegria;masparaIracematunãotenssenãotristeza.Tornando,arecentemãepousouacriançasempredormidanarededeseu

pai,viúvaesolitáriaemmeiodacabana;eladeitou-seaochão,naesteiraonderepousava, desde que os braços do esposo se não tinhammais aberto para

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recebê-la.Aluzdamanhãestravapelacabana,eIracemaviuentrarcomelaasombra

deumguerreiro.Caubiestavaempénaporta.AesposadeMartimergueu-sedeumímpetoesaltouavanteparaproteger

ofilho.Seu irmão levantoudaredeaelaunsolhostristese faloucomavozaindamaistriste:

– Não foi a vingança que arrancou o guerreiro Caubi aos campos dostabajaras; ele já perdoou. Foi a vontade de ver Iracema, que trouxe consigotodaasuaalegria.

– Então bem-vindo seja o guerreiro Caubi na cabana de seu irmão,respondeuaesposa,abraçando-o.

–Onascidodeteuseiodormenestarede;osolhosdeCaubigostariamdevê-lo.

Iracemaabriu a franjadepenas; emostrouo lindo semblanteda criança.Caubi,depoisqueocontemploupormuitotempo,entrerisos,disse:

–Elechupoutuaalma[2].Ebeijounosolhosdajovemmãe,aimagemdacriança,quenãoseanimava

tocarcomreceiodeofendê-la.Avoztrêmuladafilharessoou:–AindaviveAraquémsobreaterra?–Penaainda;depoisquetuodeixaste,suacabeçavergouparaopeitoenão

seergueumais.–Dize-lhequeIracemaémortajá,paraqueeleseconsole.AirmãdeCaubipreparouarefeiçãoparaoguerreiroearmounocopiara

rededahospitalidadeparaqueelerepousassedasfadigasdajornada.Quandooviajantesatisfezoapetite,ergueu-secomestaspalavras:

–Dizondeestáteuesposoemeuirmão,paraqueoguerreiroCaubilhedêoabraçodaamizade.

Oslábiossuspirososdamíseraesposasemoveramcomoaspétalasdocactoqueumsoproamarrota, e ficarammudos.Mas as lágrimasdebulharamdosolhosecaíramembagas.

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OrostodeCaubianuviou-se:– Teu irmão pensava que a tristeza ficara nos campos que abandonaste,

porquecontigotrouxestetodoorisodosqueteamavam!Iracemasecouosolhos:– O esposo de Iracema partiu com o guerreiro Poti para as praias do

Acaracu.Antesquetrêssóistenhamalumiadoaterraelevoltará,ecomele,aalegriaàalmadaesposa.

–OguerreiroCaubioesperaparasaberoqueelefezdosorrisoquemoravaemteuslábios.

A voz do tabajara enrouquecera; seu passo inquieto volveu a esmo pelacabana.

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CapítuloXXXI

Iracemacantavadocemente,embalandoaredeparaacalentarofilho.A areia da praia crepitou sob o pé forte e rijo do guerreiro tabajara, que

vinhadasbordasdomardepoisdaabundantepesca.A jovem mãe cruzou as franjas da rede, para que as moscas não

inquietassemofilhoacalentado,efoiaoencontrodoirmão:–Caubivaitornaràsmontanhasdostabajaras!disseelacombrandura.Oguerreiroanuviou-se:–Tudespedes teu irmãodacabanaparaqueelenãovejaa tristezaquea

enche.– Araquém teve muitos filhos em sua mocidade; uns a guerra levou e

morreramcomovalentes;outros escolheramumaesposaegerarampor suaveznumerosaprole;filhosdesuavelhice,Araquémsótevedois.Iracemaéarolaqueocaçadortiroudoninho.SórestaoguerreiroCaubiaovelhoPajé,parasusterseucorpovergadoeguiarseupassotrêmulo.

–CaubipartiráquandoasombradeixarorostodeIracema.–Comoviveaestreladanoite,viveIracemaemsuatristeza.Sóosolhosdo

esposo podem apagar a sombra em seu rosto. Parte, para que eles não seturvemcomtuavista.

–Teuirmãoparteparaagradartuavontade;maselevoltarátodasasvezesqueocajueiroflorescer,parasentiremseucoraçãoofilhodeteuventre.

Entrouna cabana. Iracema tirouda rede a criança; e ambos,mãe e filho,palpitaramsobreopeitodoguerreirotabajara.Depois,Caubipassouaporta,esumiu-seentreasárvores.

Iracema, arrastando o passo trêmulo, o acompanhou de longe até que operdeu de vista na orla da mata. Aí parou: quando o grito da jandaia deenvolta com o choro infantil a chamou à cabana, a areia fria onde estevesentadaguardouosegredodoprantoqueembebera.

Ajovemmãesuspendeuofilhoàteta;masabocainfantilnãoemudeceu.Oleiteescassonãoapojavaopeito.

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O sangue da infeliz diluía-se todo nas lágrimas incessantes que nãoestancavamdosolhos;nenhumchegavaaosseios,ondese formaoprimeirolicordavida.

Ela dissolveu a alva carimã[1] e preparou ao fogo omingau para nutrir ofilho.Quandoosoldourouacristadosmontes,partiuparaamata,levandoaocoloacriançaadormecida.

Naespessuradobosqueestáoleitodairaraausente;ostenroscachorrinhosgrunhem,enrolando-seunssobreosoutros.Aformosatabajaraaproxima-sedemanso.Preparaparaofilhoumberçodamaciaramadomaracujáesenta-seperto.

Põe no regaço um por um os filhos da irara; e lhes abandona os seiosmimosos, cuja teta rubra como a pitanga ungiu do mel da abelha. Oscachorrinhosfamintosprecipitamgulososesugamospeitosavarosdeleite.

Iracemacurtedor,comonuncasentiu;parecequelheexauremavida,masos seios vão-se intumescendo; apojaram afinal, e o leite, ainda rubro dosangue,dequeseformou,esguicha.

Afelizmãearrojadesioscachorrinhose,cheiadejúbilo,mataafomeaofilho.Eleéagoraduasvezesfilhodesuador,nascidodelaetambémnutrido.

AfilhadeAraquémsentiuafinalquesuasveiasseestancavam;econtudoolábioamargodetristezarecusavaoalimentoquedeviarestaurar-lheasforças.O gemido e o suspiro tinham crestado com o sorriso o sabor em sua bocaformosa.

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CapítuloXXXII

Descambaosol.Japisaidomatoecorreparaaportadacabana.Iracema, sentadacomo filhonocolo,banha-senosraiosdosole senteo

frio arrepiar-lhe o corpo. Vendo o animal, fiel mensageiro do esposo, aesperança reanimou seu coração; quis erguer-se para ir ao encontro de seuguerreirosenhor,masosmembrosdébeisserecusaramàsuavontade.

Caiudesfalecidacontraoesteio.Japilambia-lheamãodesfalecidaepulavatravessoparafazersorriracriança,soltandounsdoceslatidosdeprazer.Porvezes,afastava-separacorreratéaorladamata,e latirchamandoosenhor;logo,tornavaàcabanaparafestejaramãeeofilho.

PoressetempopisavaMartimoscamposamarelosdoTauape[1];seuirmãoPoti,oinseparável,caminhavaaseulado.

OitoluashaviaqueeledeixaraaspraiasdaJacarecanga.Depoisdevencidososguaraciabas,nabaíadospapagaios,oguerreirocristãoquispartirparaasmargensdoMearim,ondehabitavaobárbaroaliadodostupinambás.

Potieseusguerreirosoacompanharam.Depoisquetranspuseramobraçocorrentedomarquevemda serradeTanatingaebanhaasvárzeasonde sepescaopiau[2],viramenfimaspraiasdoMearim,eavelhataba[3]dobárbarotapuia.

Araçadoscabelosdosolcadavezganhavamaisaamizadedostupinambás:crescia o número dos guerreiros brancos que já tinham levantado na ilha agrandeitaoca[4],paradespediroraio.

QuandoMartimviuoquedesejava,tornouaoscamposdaPorangaba,queeleagoratrilha.JáouveoroncodomarnaspraiasdoMocoribe;jálhebafejaorostoosoprovivodasvagasdooceano.

Quantomaisseupassooaproximadacabana,maislentosetornaepesado.Temmedodechegar;esentequesuaalmavaisofrer,quandoosolhostristesemagoadosdaesposaentraremnela.

Há muito que a palavra desertou seu lábio seco; o amigo respeita este

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silêncio, que ele bementende.Éo silênciodo rioquandopassanos lugaresprofundosesombrios.

Tantoqueosdoisguerreirostocaramasmargensdorio,ouviramolatirdocão, que os chamava, e o grito da ará, que se lamentava. Estavam muipróximos à cabana, apenasocultaporuma línguademato.Ocristãoparoucalcandoamãonopeitoparasofrearocoração,quesaltavacomooporaquê.

–OlatidodeJapiédealegria,disseochefe.– Porque chegou;mas a voz da jandaia é de tristeza.Achará o guerreiro

ausenteapaznoseiodaesposasolitária,outeráasaudadematadoemsuasentranhasofrutodoamor?

Ocristãomoveuopassovacilante.Derepente,entreosramosdasárvores,seusolhosviram,sentadaàportadacabana,Iracemacomofilhonoregaçoeo cão a brincar. Seu coração o arrastou de um ímpeto, e toda a alma lheestalounoslábios:

–Iracema!...Atristeesposaemãesoabriuosolhos,ouvindoavozamada.Comesforço

grande, pôde erguer o filho nos braços e apresentá-lo ao pai, que o olhavaextáticoemseuamor.

–Recebeofilhodeteusangue.Chegastesatempo;meusseiosingratos jánãotinhamalimentoparadar-lhe!

Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceucomoajeticaselhearrancamobulbo.Oesposoviuentãocomoadortinhamurchado seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como operfumenaflorcaídadomanacá[5].

IracemanãoseergueumaisdaredeondeapousaramosaflitosbraçosdeMartim.O terno esposo, emque o amor renascera como júbilo paterno, acercou de carícias que encheram sua alma de alegria, mas não a puderamtornaràvida:oestamedesuaflorserompera.

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–Enterraocorpodetuaesposaaopédocoqueiroquetuamaste.Quandooventodomarsoprarnasfolhas,Iracemapensaráqueétuavozquefalaentreseuscabelos.

O lábio emudeceu para sempre; o último lampejo despediu-se dos olhosbaços.

Potiamparouoirmãoemsuagrandedor.Martimsentiuquantoumamigoverdadeiroépreciosonadesventura:écomooouteiroqueabrigadovendavalotroncoforteerobustodoubiratã,quandoocupim[6]lhebrocaoâmago.

O camucim que recebeu o corpo de Iracema embebido de resinasodoríferas foienterradoaopédocoqueiro,àbordadorio.Martimquebrouumramodemurta,afolhadatristeza,edeitou-onojazigodesuaesposa.

Ajandaiapousadanoolhodapalmeirarepetiatristemente:–Iracema!Desde então os guerreiros pitiguaras, que passavam perto da cabana

abandonadaeouviamressoaravozplangentedaaveamiga,seafastavam,comaalmacheiadetristeza,docoqueiroondecantavaajandaia.

Efoiassimqueumdiaveioachamar-seCearáorioondecresciaocoqueiroeoscamposondeserpejaorio.

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CapítuloXXXIII

Ocajueiro floresceuquatrovezesdepoisqueMartimpartiudaspraiasdoCeará,levandonofrágilbarcoofilhoeocãofiel.Ajandaianãoquisdeixaraterraonderepousavasuaamigaesenhora.

Oprimeirocearense,aindanoberço,emigravadaterradapátria.Haviaaíapredestinaçãodeumaraça?

Poti com seus guerreiros esperava na margem do rio. O cristão lheprometeravoltar.Todasasmanhãssubiaaomorrodasareiasevolviaosolhosaomaraversebranqueavaaolongeavelaamiga.

Afinal voltaMartim de novo às terras que foram de sua felicidade e sãoagora de amarga saudade.Quando seupé sentiu o calor das brancas areias,derramou-seportodoseuserumfogoardente,quelherequeimouocoração:eraofogodasrecordaçõesacesas.

A chama só aplacou quando ele tocou a terra onde dormia sua esposa;porque nesse instante seu coração transudou, como o tronco do jataí nosardentescalores,erefrescousuapenadelágrimasabundantes.

Muitosguerreirosdesuaraçaacompanharamochefebranco,parafundarcomeleamairidoscristãos.Veio tambémumsacerdotede sua religião,denegrasvestes,paraplantaracruznaterraselvagem.

Potifoioprimeiroqueajoelhouaospésdosagradolenho;nãosofriaelequenadamaisoseparassedeseuirmãobranco;porissoquistivessemambosumsódeus,comotinhamumsócoração.

Ele recebeu comobatismoonomedo santo cujo eraodia; e odo rei, aquem ia servir, e sobreosdoiso seu,na línguadosnovos irmãos.Sua famacresceueaindahojeéoorgulhodaterraondeeleviualuzprimeiro.

AmairiqueMartimergueraàmargemdorio,naspraiasdoCeará,medrou.ApalavradoDeusverdadeirogerminounaterraselvagem;eobronzesagradoressoounosvalesonderugiaomaracá.

Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seuamigo branco;Camarão assentou a taba de seus guerreiros nasmargens da

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Mecejana.Tempodepois,quandoveioAlbuquerque[1],ograndechefedosguerreiros

brancos,MartimeCamarãopartiramparaasmargensdoMearimacastigaroferoztupinambáeexpulsarobrancotapuia.

ErasemprecomemoçãoqueoesposodeIracemareviaasplagasondeforatãofelizeasverdesfolhasacujasombradormiaaformosatabajara.

Muitasvezesiasentar-senaquelasdocesareias,paracismareacalentarnopeitoaagrasaudade.

As jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro;mas não repetiam já omaviosonomedeIracema.

Tudopassasobreaterra.

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BAGAGEMDEINFORMAÇÕES

notasdoautor

Argumentohistórico

Em1603,PeroCoelho,homemnobredaParaíba,partiucomocapitão-mordedescoberta,levandoumaforçade80colonose800índios.ChegouàfozdoJaguaribeeaífundouopovoadoqueteveonomedeNovaLisboa.

FoiesseoprimeiroestabelecimentocolonialdoCeará.Como Pero Coelho se visse abandonado dos sócios, mandaram-lhe João

Soromenho com socorros. Esse oficial, autorizado a fazer cativos paraindenização das despesas, não respeitou os próprios índios do Jaguaribe,amigosdosportugueses.

Tal foi a causa da ruína do nascente povoado. Retiraram-se os colonos,pelashostilidadesdosindígenas;ePeroCoelhoficouaodesamparo,obrigadoavoltaràParaíbaporterra,comsuamulherefilhospequenos.

Na primeira expedição foi do Rio Grande do Norte um moço de nomeMartim Soares Moreno, que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe dosíndiosdolitoral,eseuirmãoPoti.Em1608porordemdeD.DiogoMeneses

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voltouadarprincípioàregularcolonizaçãodaquelacapitania:oquelevouaefeitofundandoopresídiodeNossaSenhoradoAmparoem1611.

Jacaúna,quehabitavaasmargensdoAcaracu,veioestabelecer-secomsuatribonasproximidadesdorecentepovoado,paraoprotegercontraosíndiosdointerioreosfrancesesqueinfestavamacosta.

PotirecebeunobatismoonomedeAntônioFelipeCamarão,queilustrounaguerraholandesa.Seusserviçosforamremuneradoscomoforodefidalgo,acomendadeCristoeocargodecapitão-mordosíndios.

MartimSoaresMorenochegouamestre-de-campoefoiumdosexcelentescabosportuguesesquelibertaramoBrasildainvasãoholandesa.OCearádevehonrar sua memória como a de um varão prestante e seu verdadeirofundador,poisqueoprimeiropovoadoàfozdorioJaguaribefoiapenasumatentativafrustrada.

Este é o argumento histórico da lenda; em notas especiais se indicarãoalgunsoutrossubsídiosrecebidosdoscronistasdotempo.

Háumaquestãohistóricarelativaaesteassunto;falodapátriadoCamarão,queumescritorpernambucanoquispôremdúvida,tirandoaglóriaaoCearáparaadaràsuaprovíncia.

Este ponto, aliás somente contestado nos tempos modernos pelo Sr.ComendadorMeloemsuasBiografias,meparecesuficientementeelucidadojá, depois da erudita carta do Sr. Basílio Quaresma Torreão, publicada noMercantilnº26de26dejaneirode1860,2.ªpágina.

Entretantofareisempreumaobservação.Emprimeirolugar,atradiçãooraléumafonteimportantedaHistória,eàs

vezesamaispuraeverdadeira.Ora,naprovínciadeCeará, emSobral,não só referiam-seentregentedo

povonotíciasdoCamarão,comoexistiaumavelhamulherquesediziadelesobrinha. Essa tradição foi colhida por diversos escritores, entre eles oconspícuoautordaCorografiaBrasílica.

O autor do Valeroso Lucideno é dos antigos o único que positivamenteafirma ser Camarão filho de Pernambuco; mas além de encontrar essaasserção a versão de outros escritores de nota, acresce que Berredo explica

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perfeitamente o dito daquele escritor, quando fala da expedição de PeroCoelho de Souza a Jaguaribe, sítio naquele tempo e também no de hoje dajurisdiçãodePernambuco.

Outropontoénecessárioesclarecerparaquenãomecensuremdeinfielàverdadehistórica.ÉanaçãodeJacaúnaeCamarão,quealgunspretendemtersidoatabajara.

Hánissomanifestoengano.Em todas as crônicas se fala das tribos de Jacaúna e Camarão como

habitantes do litoral, e tanto que auxiliam a fundação do Ceará, como jáhaviamauxiliadoadaNovaLisboaemJaguaribe.Ora,anaçãoquehabitavaolitoral entre o Parnaíba e o Jaguaribe ou Rio-Grande era a dos pitiguaras,como atesta Gabriel Soares. Os tabajaras habitavam a serra de Ibiapaba, eportantoointerior.

ComochefesdostabajarassãomencionadosMelRedondonoCearáeGrãoDiabo em Piauí. Esses chefes foram sempre inimigos irreconciliáveis erancorosos dos portugueses, e aliados dos franceses do Maranhão quepenetraramatéIbiapaba. JacaúnaeCamarãosãoconhecidosporsuaaliançafirmecomosportugueses.

Masoquesolveaquestãoéoseguintetexto.Lê-senasMemóriasdiáriasdaguerra brasílica do conde de Pernambuco: – 1634, janeiro, 18: “Pelo bomprocedimentocomquehaviaservidoA.F.CamarãoofezEl-reicapitão-mordetodososíndiosnãosomentedesuanação,queeraPitiguar,nasdasoutrasresidentesemváriasaldeias”.

Esta autoridade, além de contemporânea, testemunhal, não pode serrecusada,especialmentequandoseexprimetãopositivaeintencionalmentearespeitodopontoduvidoso.

CapítuloI

1Onde canta a jandaia: Diz a tradição queCeará significa na língua indígenacantodejandaia.AiresdoCasal,Corografiabrasílica,refereessatradição.OsenadorPompeuemseuexcelentedicionáriotopográfico,mencionauma

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opinião,novaparamim,quepretendevirSiarádapalavrasuia–caça,emvirtudedaabundânciadecaçaqueseencontravanasmargensdorio.Essaetimologia é forçada. Para designar quantidade, usava a língua tupi dadesinência iba; a desinência ára junta aos verbos designa o sujeito queexercitaaaçãoatual; juntaaosnomesoquetematualmenteoobjeto;ex.:Coatiara – o que pinta; Juçara – o que tem espinhos. Ceará é o nomecomposto de cemo – cantar forte, clamar, e ará – pequena arara ouperiquito. Essa é a etimologia verdadeira; não só conforme com tradição,mascomasregrasdalínguatupi.

2 Iracema: Emguarani significa lábiosdemel, de ira–mel e tembe– lábios.Tembenacomposiçãoaltera-seemceme,comonapalavraceme-iba.

3Jirau:Najangadaéumaespéciedeestradoondeacomodamospassageiros;eàs vezeso cobremdepalha.Emgeral équalquer estiva elevadado solo esuspensaemforquilhas.

CapítuloII

1 Graúna: É o pássaro conhecido de cor negra luzidia. Seu nome vem porcorrupçãodeguira–pássaro,euna,abreviaçãodepixuna–preto.

2Jati:Pequenaabelhaquefabricadeliciosomel.3Ipu:ChamamaindahojenoCearácertaqualidadedeterramuitofértil,que

forma grandes coroas ou ilhas no meio dos tabuleiros e sertões, e é depreferênciaprocuradaparaacultura.Daísederivaonomedessacomarcadaprovíncia.

4Tabajaras:Senhoresdasaldeias,detaba–aldeia,ejara–senhor.Essanaçãodominavaointeriordaprovíncia,especialmenteaserradeIbiapaba.

5Oiticica:Árvorefrondosa,apreciadapeladeliciosafrescuraquederramasuasombra.

6Gará:Avepaludal,muitoconhecidapelonomedeguará.Pensoeuqueessenomeandacorrompidodesuaverdadeiraorigem,queéig–água,eará–arara:ararad’água.Tambémassimchamadapelabelacorvermelha.

7 Ará: Periquito. Os indígenas como aumentativo usavam repetir a última

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sílabadapalavraeàsvezestodaapalavra,comomurémuré.Muré–frauta,muremuré–grandefrauta.Arárávinhaaser,pois,oaumentativodeará,esignificariaaespéciemaiordogênero.

8Uru:Cestinhoqueserviadecofreàsselvagensparaguardarseusobjetosdemaispreçoeestimação.

9Crautá:Broméliavulgar,dequese tiram fibras tãooumais finasqueasdolinho.

10 Juçara:Palmeiradegrandesespinhos,dasquais se servemaindahojeparadividirosfiosderenda.

11Uiraçaba:Aljava,deuira–seta,eadesinênciaçaba–coisaprópria.12Quebraraflecha:Eraentreosindígenasamaneirasimbólicadeestabelecera

paz entre as diversas tribos, ou mesmo entre dois guerreiros inimigos.Desdejáadvertimosquenãoseestranheamaneiraporqueoestrangeiroseexprimefalandocomosselvagens;aoseuperfeitoconhecimentodosusoselínguadosindígenas,esobretudoater-seconformadocomelesaopontodedeixar os trajos europeus e pintar-se, deveu Martim Soares Moreno ainfluênciaqueadquiriuentreosíndiosdoCeará.

CapítuloIII

1Ibiapaba:GrandeserraqueseprolongaaonortedaprovínciaeaextremacomPiauí. Significa terra aparada.ODr.Martius em seu glossário lhe atribuioutra etimologia. Iby: terra; e pabe: tudo. A primeira porém tem aautoridadedeVieira.

2Igaçaba:Vaso,pote.Deig–água,eadesinênciaçaba–coisaprópria.3Vieste:Asaudaçãousualdahospitalidadeeraesta:Ereiobê–tuvieste?Pa-

aiotu–vim,sim.Auge-be–bemdito.Veja-seLery,pág.286.4Jaguaribe:Omaiorriodaprovíncia;tirouonomedaquantidadedeonçasque

povoavam suas margens. Jaguar – onça, iba – desinência para exprimircópia,abundância.

5 Pitiguaras: Grande nação de índios que habitava o litoral da província eestendia-sedesdeoParnaíba até oRioGrandedoNorte.Aortografia do

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nome andamui viciada nas diferentes versões, pelo que se tornou difícilconheceraetimologia.Iby significavaterra; iby-tiraveioasignificarserra,outerraalta.Aosvaleschamavamos indígenas iby-tira-cua–cinturadasmontanhas. A desinência jara – senhor, acrescentada, formou a palavraIbiticuara,queporcorrupçãodeuPitiguara–senhoresdosvales.

6 Martim: Da origem latina de seu nome, procedente de Marte, deduz oestrangeiroasignificaçãoquelhedá.

7Acaracu:Onomedoriovemdeacará–garça,co–buraco,toca,ninhoey–somdúbio entre i eu, que os portugueses ora exprimiamde um, ora deoutromodo,significandoágua.Riodoninhodasgarçasé,pois,atraduçãodeAcaracu.

8Mau espírito da floresta: Os indígenas chamavam a esses espíritos caa-pora;habitantes da mata, donde por corrupção veio a palavra caipora,introduzidanalínguaportuguesaemsentidofigurado.

CapítuloIV

1Asmais belasmulheres: Este costume da hospitalidade americana é atestadopelos cronistas.Aele se atribuiobelo rasgode virtudedeAnchieta,que,parafortalecerasuacastidade,compunhanaspraiasdeIperoigopoemadaVirgindadedeMaria,cujosversosescrevianasareiasúmidas,paramelhorospolir.

2 Jurema: Árvore meã, de folhagem espessa; dá um fruto excessivamenteamargo, de cheiro acre, do qual juntamente com as folhas e outrosingredientes preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o efeito dohaxixe, de produzir sonhos tão vivos e intensos, que a pessoa fruía nelesmelhor do que na realidade. A fabricação desse licor era um segredo,exploradopelospajés,emproveitodesuainfluência.Juremaécompostodeju–espinho,erema–cheirodesagradável.

3 Irapuã: De ira – mel, e apuam – redondo; é o nome dado a uma abelhavirulenta e brava, por causa da forma redonda de sua colmeia. Porcorrupçãoreduziu-seessenomeatualmenteaarapuá.Oguerreirodeque

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se trataaquiéocélebreMel-Redondo,assimchamadopeloscronistasdotempo que traduziram seu nome ao pé da letra.Mel-Redondo, chefe dostabajaras da serrade Ibiapaba, foi encarniçado inimigodosportugueses eamigodosfranceses.

4 Estrela morta: A estrela polar, por causa da sua imobilidade; orientavam-seporelaosselvagensduranteanoite.

5Boicininga:Éacobracascavel,deboia–cobra,ecininga–chocalho.6Oitibó:Éumaavenoturna,espéciedecoruja.

CapítuloV

1Espíritosdatreva:Aessesespíritoschamavamosselvagenscurupira,meninosmaus,decurumim–menino,epira–mau.

2Boré:Flautadebambu,omesmoquemuré.3Ocara:Praçacircularque ficavanocentroda taba,cercadapelaestacada,e

paraaqualabriamtodasascasas.Compostodeoca–casa,eadesinênciaara–quetem;aquiloquetemacasa,ouondeacasaestá.

4Potiguara:Comedordecamarão;depotyeuara.Nome(potiguara)quepordesprezo davam os inimigos aos pitiguaras, que habitavam as praias eviviam em grande parte da pesca. Este nome dão alguns escritores aospitiguaras,porqueoreceberamdeseusinimigos.

5Pocema:Grandealaridoquefaziamosselvagensnasocasiõessolenes,comoemcomeçodebatalha,ounasexpansõesdaalegria;épalavraadotadajánalínguaportuguesaeinseridanodicionáriodeMorais.Vemdepo–mão,ecemo – clamar: clamor dasmãos, porque os selvagens acompanhavam ovozearcomobaterdaspalmasedasarmas.

6Andira:Morcego;éemalusãoaseunomequeIrapuãdirigelogopalavrasdedesprezoaovelhoguerreiro.

CapítuloVI

1Aracati: Significa este nome bom tempo – de ara e catu. Os selvagens dosertãoassimchamavamasbrisasdomarquesopramregularmenteaocair

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da tarde e, correndo pelo vale do Jaguaribe, se derramam pelo interior erefrigeramdacalmaabrasadoradoverão.Daíresultouchamar-seAracatiolugardeondevinhaamonção.AindahojenoIcóonomeéconservadoàbrisadatarde,quesopradomar.

CapítuloVII

1Aflar:Arespeitodestapalavralia-sena1.ªediçãodestaobraanotaseguinte:“Sobre este verbo que introduzi na língua portuguesa do latim afflo, jáescrevi o que entendi em nota de uma segunda edição da Diva, quebrevemente há de vir à luz”. Completo equívoco deminha parte, pois overbofoiusadoporMousinhoeoPadreBernardes.

2Anhanga:Davamos indígenas estenome ao espíritodomal; compõe-sedeanho–só,eangá–alma.Espíritosó,privadodecorpo,fantasma.

CapítuloVIII

1Camucim:Vaso onde encerravamos indígenas os corpos dosmortos e lhesservia de túmulo; outros dizem camotim, e talvez commelhor ortografia,porque, se não me engano, o nome é corrupção da frase co – buraco,ambira – defunto, anhotim – enterrar; buraco para enterrar o defunto:c’am’otim.Onomedava-setambémaqualquerpote.

2Guabiroba:Deve-selerAndiroba.Árvorequedáumazeiteamargo.3 Cabelos do sol: Em tupi, guaraciaba. Assim chamavam os indígenas aos

europeusquetinhamoscabeloslouros.

CapítuloIX

1Moquém:Do verbomocáem – assarna labareda.Era amaneiraporqueosindígenas conservavam a caça para não apodrecer, quando a levavam emviagem.Nascabanasatinhamnofumeiro.

2Senhordocaminho:Assimchamaramosindígenasaoguia,depy–caminho,eguara–senhor.

3Odiavaificartriste:Ostupischamavamatardecaruca,segundoodicionário.

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Segundo Lery, che caruc acy significa “estou triste”. Qual destes era osentido figuradodapalavra?Tirarama imagemda tristeza,da sombradatarde,ouimagemdocrepúsculo,dotorvamentodoespírito?

4Jurupari:Demônio;dejuru–boca,eapara–torto,aleijado.Obocatorta.5Ubaia:Frutaconhecidadaespécieeugênia.Significafrutasaudável;deuba–

fruta,eaia–saudável.

CapítuloX

1 Jandaia: Este nome que anda escrito por diversas maneiras, nhendaia,nhandaia, e em todas alterado, é apenas um adjetivo qualificativo dosubstantivo ará. Deriva-se ele das palavras nheng – falar, antan – duro,forte,áspero,eara–desinênciaverbalqueexprimeoagente:nh’ant’ara;substituídootpordeorpori,tornou-senhandaia,dondejandaia,quesetraduziráporperiquitograsnador.Docantodestaave,comoseviu,équevemonomedeCeará,segundoaetimologiaquelhedáatradição.

2Inhuma:Avenoturnapalamedea.AespéciedequesefalaaquiéaPalamedeachavaria,quecanta regularmenteàmeia-noite.Aortografiamelhorcreioser anhuma, talvez de anho – só, e anum – ave agoureira conhecida.Significaria então anum solitário, assim chamado pela tal ou qualsemelhançadogritodesagradável.

3 Inúbia: Trombeta de guerra. Os indígenas, segundo Lery, as tinham tãograndesquemediammuitospalmosnodiâmetrodeabertura.

CapítuloXI

1 Guará: Cão selvagem, lobo brasileiro. Provém esta palavra do verbo u –comer,doqualseformacomorelativogeadesinênciaaraoverbalg-u-ára–comedor.A sílaba final longaéapartículapropositivaãque serveparadarforçaàpalavra.G-u-ára-á–realmentecomedor,voraz.

2Jiboia:Cobraconhecida;degi–machado,eboia–cobra.Onomefoitiradoda maneira por que a serpente lança o bote, semelhante ao golpe domachado;podetraduzir-sebem:cobradearremesso.

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3Sucuri:Aserpentegigantequehabitanosgrandesrioseengoleumboi.Desuu–animal,ecuryoucuru–roncador.Animalroncador,porquedefeitooroncodasucuriémedonho.

4 Se é que tens sangue e não mel: Alusão que faz o velhoAndira ao nome deIrapuã,oqual,comosedisse,significamelredondo.

5Ouveseutrovão:Todoesseepisódiodorugidodaterraéumaastúcia,comousavamospajéseossacerdotesdetodaanaçãoselvagemparaseimporemàimaginaçãodopovo.Acabanaestavaassentadasobreumrochedo,ondehavia uma galeria subterrânea que comunicava com a várzea por estreitaabertura;Araquém tiverao cuidadode tapar comgrandespedras asduasaberturas,paraocultaragrutadosguerreiros.Nessaocasiãoafendainferiorestava aberta, e oPajé o sabia; abrindo a fenda superior, o ar encanou-sepelo antro espiral comestridormedonho, edequepodedaruma ideiaosussurro dos caramujos. O fato é, pois, natural; a aparência, sim, émaravilhosa.

6Maracá: Pendão de guerra; de marã – combate, e aca – chifre, ponta. Omaracáserviadeestandarteaostupis.

7Abatin’água:Abati–arroz;Iracemaserve-sedaimagemdoarrozquesóviçanoalagado,paraexprimirsuaalegria.

CapítuloXIV

1Ubiratã:Pau-ferro;deubira–pau,eantan–duro.2Maracajá:Gatoselvagem.3Caititus:Porco-do-mato,espéciedejavalibrasileiro.Decaeté–matogrande

e virgem, e suu – caça,mudado o s em t na composição pela eufonia dalíngua.Caçadomatovirgem.

4 Jaguar:Vimosqueguará significa voraz. Jaguar tem inquestionavelmente amesmaetimologia;éoverbalguaraeopronomejá–nós.Jaguarera,pois,paraosindígenas,todososanimaisqueosdevoravam.Jaguareté–ograndedevorador.

5Anajê:Gavião.

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6Acauã:Aveinimigadascobras;decaa–pau,euan,doverbou–comer.DizAiresdoCasalquelhevemonomedogritoquesolta.

CapítuloXV

1Saí:Lindopássaro,azul.2Àcinturadavirgem:Osindígenaschamavamaamantepossuídaaguaçaba;de

aba–homem,cua–cintura,çaba–coisaprópria;amulherqueohomemcinge,outrazàcintura.Fica,pois,claroopensamentodeIracema.

3Carioba:Camisadealgodão;decary–branco,eoba–roupa.Tinhatambémaaraçoia,deararaeoba–vestidodepenasdearara.

CapítuloXVI

1Jaci:Alua.Dejá–pronomenós,ecy–mãe.Aluaexprimiaomêsparaosselvagens;eseunascimentoerasempreporelesfestejado.

2Fogosdaalegria:Chamavamosselvagenstory–osfachosoufogos;etoryba–aalegria,afesta,agrandecópiadefachos.

3Bucã: Significauma espéciede grelhaqueos selvagens faziampara assar acaça,daívemoverbofrancêsboucaner.Apalavraprovémdalínguatupiouguarani.

Acoty–Cutia.

CapítuloXVII

1Abaeté:Varãoabalizado;deaba–homem,eeté–forte,egrégio.

CapítuloXVIII

1 Mocoribe: Morro de areia na enseada do mesmo nome, a uma légua doFortaleza;diz-sehojeMucuripe.VemdeCorib–alegrar,emo,partículaouabreviaturado verbomonhang – fazer, que se junta aos verbosneutros emesmo ativos para dar-lhes significação passiva; ex.: caneon – afligir-se,mocaneon–fazeralguémaflito.

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2 Jacaúna: Jacarandá-preto,de jaca–abreviaçãode jacarandá,euna–preto.EsteJacaúnaéocélebrechefe,amigodeMartimSoaresMoreno.

3Cuandu:Porco-espinho.4Seucolardeguerra:Ocolarqueosselvagensfaziamdosdentesdosinimigos

vencidoseraumbrasãoetroféudevalentia.

CapítuloXIX

1Japi:Significanossopé;dopronomejá–nós,py–pé.2Ibiapina:Deiby–terra,eapino–tosquiar.3Jatobá:Grandeárvorereal.OlugardacenaéosítiodahojeVilaViçosa,onde

dizatradiçãoternascidoCamarão.

CapítuloXX

1Meruoca: Demeru –mosca, e oca – casa. Serra junto de Sobral, fértil emmantimentos.

2Uruburetama:Pátriaouninhodeurubus:serrabastantealta.3Mundaú:Riomuito tortuosoquenascenaserradeUruburetama.Mundé–

cilada,ehu–rio.4Potengi:RioqueregaacidadedeNatal,dondeerafilhoSoaresMoreno.

CapítuloXXI

1Assaborosastraíras:ÉorioTrairi,trintaléguasaonortedacapital.Detraíra–peixe,ey–rio.Hojeépovoaçãoedistritodepaz.

2Soipé:Paísdacaça.Desoo–caça,eipé–lugaronde.Diz-sehojeSuipé,rioepovoaçãopertencentea freguesiae termodaFortaleza, situadaàmargemdosalagadoschamadosJaguaruçu,naembocaduradorio.

3Rioqueformaumbraçodemar:ÉoParnaíba,riodoPiauí.Vemdepará–mar,nhanhe–correr,ehyba–braço;braçocorrentedomar.GeralmentesedizqueParásignificarioeParaná,mar;éinteiramenteocontrário.

4 Brancos tapuias: Em tupi, tapuitinga. Nome que os pitiguaras davam aos

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franceses para diferençá-los dos tupinambás. Tapuia significa bárbaro,inimigo.Detaba–aldeia,epuir–fugir:osfugidosdaaldeia.

5 Mairi: Cidade. Talvez provenha o nome de mair – estrangeiro, e fosseaplicadoaospovoadosdosbrancosemoposiçãoàstabasdosíndios.

CapítuloXXII

1 Batuireté: Narceja ilustre; de batuira e eté. Apelido que tomara o chefepitiguara,equenalinguagemfiguradavaliatantocomovalentenadador.Éonomedeumaserrafertilíssimaedacomarcaqueelaocupa.

2Suasestrelaserammuitas:ContavamosindígenasosanospelonascimentodasplêiadesnoOriente;etambémcostumavamguardarumacastanhadecaju,decadaestaçãodafruta,paramarcaraidade.

3Jatobá:Árvorefrondosa,talvezdejetahy,oba–folha,ea,aumentativo;jetaídegrandecopa.ÉonomedeumrioedeumaserraemSantaQuitéria.

4 Quixeramobim: Segundo o Dr. Martius traduz-se por essa exclamação desaudade.Compõe-sedeQui–ah!,xere–meus,amôbinhê–outrostempos.

5 Caminho das garças: Em tupi,Acarape, povoação na freguesia de Baturité anoveléguasdacapital.

6Maranguab:AserradeMaranguape,distantecincoléguasdacapital,enotávelpelasuafertilidadeeformosura.Onomeindígenacompõe-sedemaran–guerrear,ecoaub–sabedor;marantalvezsejaabreviaçãodemaramonhang– fazerguerra, senãoé, comoeupenso,o substantivo simplesguerra,dequesefezoverbocomposto.ODr.Martiustrazetimologiadiversa.Mara–árvore,angai–denenhumamaneira,guabe–comer.Estaetimologianemme parece própria ao objeto, que é uma serra, nem conforme com ospreceitosdalíngua.

7Pirapora:RiodeMaranguape,notávelpelafrescuradesuaságuaseexcelênciadosbanhoschamadosdePirapora,nolugardascachoeiras.Provémonomedepira–peixe,pore–salto;saltodopeixe.

8Ogaviãobranco:Batuiretéchamaassimoguerreirobranco,aopassoquetrataonetopornarceja;eleprofetizanesseparaleloadestruiçãodesuaraçapela

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raçabranca.

CapítuloXXIII

1Porangaba:Significabeleza.Éumalagoadistantedacidadeumaléguaemsítioaprazível. Hoje a chamamArronches; em suasmargens está a decadentepovoaçãodomesmonome.

2Jereraú:Riodasmarrecas;dejerereouirerê–marreca,ehu–água.Estelugaraindahoje é notável pela excelência de frutas, comespecialidade as belaslaranjasconhecidasporlaranjasdeJereraú.

3Sapiranga:LagoanosítioAlagadiçoNovo,acercadeduasléguasdacapital.Onome indígena significa olhos vermelhos, de ceça – olhos, e piranga –vermelhos.EssemesmonomedãousualmentenoNorteacertaoftalmia.

4Muritiapuá:Demuriti–nomedapalmeiramaisvulgarmenteconhecidaporburiti,eapuã–ilha.Lugarejonomesmosítioreferido.

5Aratanha:Dearara – ave, e tanha – bico. Serramui fértil e cultivada, emcontinuaçãodadeMaranguape.

6Guaiúba:Degoaia–vale,y–água,jur–vir,be–poronde:porondevêmaságuasdovale.Rioquenascena serradaAratanhae corta apovoaçãodomesmonomeaseisléguasdacapital.

7Pacatuba:Depacaetuba,leitooucoutodaspacas.Recente,masimportantepovoação,emumbelovaledaserradaAratanha.

8Âmbar:As praias doCeará eramnesse tempo abundantes de âmbar que omararrojava.Chamavam-lheosindígenaspirarepoti–estercodepeixe.

CapítuloXXIV

1 Coatiabo: A história menciona esse fato de Martim Soares Moreno se tercoatiadoquandoviviaentreosselvagensdoCeará.Coatiásignificapintar.A desinência abo significa o objeto que sofreu a ação do verbo, e talvezprovenhadeaba–gente,criatura.

CapítuloXXV

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1Colibri:DesseletargodocolibrinoinvernofalaSimãodeVasconcelos.2Carbeto:Espéciedeserãoquefaziamosíndiosànoiteemumacabanamaior,

onde todos se reuniam para conversar. Leia-se Ives d’Evreux,Viagem aoNortedoBrasil.

CapítuloXXVI

1Mecejana:Lagoaepovoaçãoaduasléguasdacapital.Overbocejarsignificaabandonar;adesinênciaana indicaapessoaqueexercitaaaçãodoverbo.Cejanasignificaoqueabandona.Juntaàpartículamodoverbomonhang–fazer, vem a palavra a significar o que fez abandonar ou que foi lugar eocasiãodeabandonar.Aopiniãogeraléqueonomedestepovoadoprovémde Portugal, como Soure e Arronches. Nesse caso devia escrever-seMesejana,doárabemasjana.Ora,nosmaisantigosdocumentosencontra-seMecejanacomc,oqueindicariaumaalteraçãopouconatural,quandooCearáfoiexclusivamentepovoadoporportugueses,osquaisconservaram,emsuapureza,todososoutrosnomesdeorigemlusitana.

2 Monguba: Árvore que dá um fruto cheio de cotão, semelhante ao dasumaúma,comadiferençadesernegro.Daíveioonomedeumapartedaserra deMaranguape, onde tem estabelecimento rural o tenente-coronelJoãoFranklindeAlencar.

CapítuloXXVII

1 Imbu: Fruta da serra do Araripe que não tem no litoral. É saborosa esemelhanteaocajá.

2 Jacarecanga:Morro de areia na praia doCeará afamado pela fonte de águafrescapuríssima.Vemonomedejacarécrocodiloeacanga,cabeça.

CapítuloXXVIII

1 Japim:Pássarocordeourocomencontrospretoseconhecidovulgarmentepelonomedesofrê.

2Folhaescura:Amurta,queosindígenaschamavamcapixuna,decaa–rama,

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folhagem, e pixuna – escuro. Daí vem a figura de que usa Iracema paraexprimiratristezaqueelaproduznoesposo.

CapítuloXXIX

1Tupinambás:Naçãoformidável,ramoprimitivodagranderaçatupi.Depoisdeuma resistência heroica, não podendo expulsar os portugueses da Bahia,emigraramatéoMaranhão,ondefizeramaliançacomosfranceses,quejáentão infestavam aquelas paragens. O nome que eles se davam significagenteparentedostupis,detupi–anama–aba.

2Maracatim:Grandebarcoquelevavanaproa–tim–ummaracá.Aosbarcosmenoresoucanoaschamavamigara,deig–água,ejara–senhor;senhorad’água.

3Baíadospapagaios:ÉabaíadaJericoacoara,dejeru–papagaio,cua–várzea,coara–buracoou seio: enseadada várzeadospapagaios.ÉumdosbonsportosdoCeará.

4Caiçara:Decai–pauqueimadoeadesinênciaçara,cousaquetem,ousefaz;oquesefazdepauqueimado.Eraumaforteestacadadepauapique.

CapítuloXXX

1Moacir:Filhodosofrimento:demoaci–dor,eira–desinênciaquesignificasaídode.

2Chupoutuaalma:Criançaemtupiépitanga,depiter–chupar,eanga–alma;chupaalma.Seriaporqueascriançasatraemedeleitamaosqueasveem?Ouporqueabsorvemumaporçãod’almadospais?Caubifalanesseúltimosentido.

CapítuloXXXI

1 Carimã: Uma conhecida preparação de mandioca. Caric – correr, mani –mandioca:mandiocaescorrida.

CapítuloXXXII

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1 Tauape: Lugar do barro amarelo: de tauá e ipé. Fica no caminho deMaranguape.

2Piau:PeixequedeuonomeaorioPiauí.3 Velha taba: Tradução de Tapui-Tapera. Assim chamava-se um dos

estabelecimentosdostupinambásnoMaranhão.4Itaoca:Casadepedra,fortaleza.5Manacá:Lindaflor.Veja-seoquedizarespeitooSr.GonçalvesDiasemseu

dicionário.6Cupim:Insetoconhecido.Onomecompõe-sedeco–buraco,epim–ferrão.

CapítuloXXXIII

1Albuquerque:JerônimodeAlbuquerque,chefedaexpediçãoaoMaranhãoem1612.

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CartaAoDr.Jaguaribe.

Eis-medenovo,conformeoprometido.Jáleuolivroeasnotasqueoacompanham;conversemospois.Conversemos sem cerimônia, em toda familiaridade, como se cada um

estivesserecostadoemsuarede,aovaivémdolânguidobalanço,queconvidaàdoceprática.

Sealgumleitorcuriososepuseràescuta,deixa-lo.Nãohavemosporissodemudarotomrasteirodaintimidadepelafrasegarridadassalas.

Semmais.Háderecordar-sevocêdeumanoiteque,entrandoemminhacasa,quatro

anos a esta parte, achou-me rabiscando um livro. Era isso em uma quadraimportante,poisqueumanovalegislatura,filhadenovalei,faziasuaprimeirasessão;eopaístinhaosolhosnela,dequemesperavainiciativagenerosaparamelhorsituação.

Já estava eu meio descrido das cousas, e mais dos homens; e por issobuscavana literatura diversão à tristeza queme infundia o estadoda pátriaentorpecidapelaindiferença.Cuidavaeuporémquevocê,políticodeantigaemelhor têmpera, pouco se preocupava com as cousas literárias, não pormenospreço,simporvocação.

A conversa que tivemos então revelou meu engano; achei um cultor eamigodaliteraturaamena;ejuntoslemosalgunstrechosdaobra,quetinha,eaindanãoasperdeu,pretensõesaumpoema.

Écomoviuecomoentãolheesbocei,alargostraços,umaheroidequetemporassuntoastradiçõesdosindígenasbrasileiroseseuscostumes.Nuncamelembrara eu de dedicar-me a esse gênero de literatura, de que me abstivesempre, passados que foram os primeiros e fugaces arroubos da juventude.Suporta-seumaprosamedíocre,eestima-sepeloquilatedaideia;masoversomedíocreéapiortriagaquesepossaimpingiraopioleitor.

Cometi a imprudência quando escrevia algumas cartas sobre a

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ConfederaçãodosTamoiosdedizer:“astradiçõesdosindígenasdãomatériaparaumgrandepoemaque talvezumdiaalguémapresente semruídonemaparato,comomodestofrutodesuasvigílias”.

Tantobastouparaquesupusessemqueoescritorsereferiaasi,etinhajáopoema emmão; várias pessoas perguntaram-mepor ele.Meteu-me isto embriosliterários;semcalculardasforçasmínimasparaempresatãogrande,queassoberboudois ilustrespoetas, traceioplanodaobra, e a comecei com talvigorqueleveiquasedeumfôlegoaoquartocanto.

Esse fôlego susteve-se cerca de cinco meses, mas amorteceu; e vou lheconfessaromotivo.

Desde cedo, quando começaram os primeiros pruridos literários, umaespéciedeinstintomeimpeliaaimaginaçãoparaaraçaselvagemeindígena.Digo instinto, porque não tinha eu então estudos bastantes para apreciardevidamente a nacionalidade de uma literatura; era simples prazer quemedeleitavanaleituradascrônicasememóriasantigas.

Mais tarde, discernindo melhor as cousas, lia as produções que sepublicavamsobreotemaindígena;nãorealizavamelasapoesianacional,talcomo me aparecia no estudo da vida selvagem dos autóctones brasileiros.Muitas pecavam pelo abuso dos termos indígenas acumulados uns sobreoutros, o que não só quebrava a harmonia da língua portuguesa, comoperturbavaainteligênciadotexto.Outraseramprimorosasnoestiloericasdebelas imagens; porém certa rudez ingênua de pensamento e expressão, quedeviaseralinguagemdosindígenas,nãoseencontravaali.

GonçalvesDiaséopoetanacionalporexcelência;ninguémlhedisputanaopulência da imaginação, no fino lavor do verso, no conhecimento danatureza brasileira e dos costumes selvagens. Em suas poesias americanasaproveitoumuitas dasmais lindas tradiçõesdos indígenas e, em seupoemanãoconcluídodosTimbiras,propôs-seadescreveraepopeiabrasileira.

Entretanto,osselvagensdeseupoemafalamumalinguagemclássica,oquelhefoicensuradoporoutropoetadegrandeestro,oDr.BernardoGuimarães;eles exprimem ideias próprias do homem civilizado, e que não é verossímiltivessemnoestadodanatureza.

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Semdúvidaqueopoetabrasileirotemdetraduziremsualínguaasideias,embora rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução está a grandedificuldade;éprecisoquealínguacivilizadasemoldequantopossaàsingelezaprimitiva da língua bárbara; e não represente as imagens e pensamentosindígenassenãoportermosefrasesqueaoleitorpareçamnaturaisnabocadoselvagem.

O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para anacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como asimagenspoéticasdoselvagem,osmodosdeseupensamento,astendênciasdeseuespíritoeatéasmenoresparticularidadesdesuavida.

É nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro; é dela que há de sair overdadeiropoemanacional,talcomoeuoimagino.

Cometendo portanto o grande arrojo, aproveitei o ensejo de realizar asideiasquemevagueavamnoespírito,enãoeramaindaplanofixo;areflexãoconsolidou-aserobusteceu.

Na parte escrita da obra foram elas vazadas em grande cópia. Se ainvestigação laboriosa das belezas nativas feita sobre imperfeitos e espúriosdicionáriosexauriaoespírito;asatisfaçãodecultivaressasfloresagrestesdapoesia brasileira deleitava. Um dia, porém, fatigado da constante e aturadameditaçãoouanáliseparadescobriraetimologiadealgumvocábulo,assaltou-meumreceio.

Todoesteímprobotrabalhoqueàsvezescustavaumasópalavrameserialevado à conta? Saberiam que esse escrópulo d’ouro fino tinha sidodesentranhado da profunda camada, onde dorme uma raça extinta? Oupensariamqueforaachadonasuperfícieetrazidoaoventodafácilinspiração?

Esobreesse,logooutroreceio.Aimagemoupensamentocomtantafadigaesmerilhadosseriamapreciados

em seu justo valor pelamaioria dos leitores? Não os julgariam inferiores aqualquerdasimagensemvoga,usadasnaliteraturamoderna?Ocorre-meumexemplotiradodestelivro.Guia,chamavamosindígenas,senhordocaminho,piguara.Abelezadaexpressãoselvagememsuatraduçãoliteraleetimológicameparece bem saliente.Não diziam sabedor do caminho, embora tivessem

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termo próprio, coaub, porque essa frase não exprimia a energia de seupensamento.Ocaminhonoestadoselvagemnãoexiste,nãoécousadesaber.Ocaminhofaz-senaocasiãodamarchaatravésdaflorestaoudocampo,eemcertadireção;aquelequeotemeodá,érealmentesenhordocaminho.

Nãoébonito?Nãoestáaíumajoiadapoesianacional?Poishaveráquemprefiraaexpressãoreidocaminho,emboraosbrasisnão

tivessemrei,nemideiadetalinstituição.Outrosseinclinaramàpalavraguia,como mais simples e natural em português, embora não corresponda aopensamentodoselvagem.

Ora,escreverumpoemaquedeviaalongar-separacorreroriscodenãoserentendido, e quando entendido não apreciado, era para desanimar o maisrobustotalento,quantomaisaminhamediocridade.Quefazer?Encherolivrodegrifosqueotornariammaisconfusoedenotasqueninguémlê?Publicaraobraparcialmenteparaqueos entendidosproferissemo veredicto literário?Darleituradelaaumcírculoescolhido,queemitissejuízoilustrado?

Todos estesmeios tinham seu inconveniente, e todos foram repelidos: oprimeiroafeavaolivro;osegundootruncavaempedaços;oterceironãolheaproveitaria pela cerimoniosa benevolência dos censores. O que pareceumelhor e mais acertado foi desviar o espírito dessa obra e dar-lhe novosrumos.

Mas não se abandona assimum livro começado, por pior que ele seja; aínessaspáginascheiasderasuraseborrõesdormealarvadopensamento,quepodeserninfadeasasdouradas,sea inspiraçãofecundarogrosseirocasulo.Nas diversas pausas de suas preocupações o espírito volvia pois ao álbum,ondeestãoaindaincubadoseestarãocercadedoismilversosheroicos.

Conformeabenevolênciaouseveridadedeminhaconsciência,àsvezesosacho bonitos e dignos de verem a luz; outras me parecem vulgares,monótonos, e somenos a quanta prosa charra tenho eu estendido sobre opapel. Se o amor de pai abranda afinal esse rigor, não desvanece, porém,nunca o receio de “perder inutilmente meu tempo a fazer versos paracaboclos”.

Emumdessesvolveresdoespíritoàobracomeçada, lembrou-medefazer

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uma experiência em prosa. O verso, pela sua dignidade e nobreza, nãocomportacertaflexibilidadedeexpressãoque,entretanto,nãovaimalàprosaamaiselevada.Aelasticidadeda frasepermitiriaentãoqueseempregassemcom mais clareza as imagens indígenas, de modo a não passaremdesapercebidas.Poroutroladoconhecer-se-iaoefeitoquehaviadeteroversopeloefeitoquetivesseaprosa.

Oassuntoparaaexperiência,deantemãoestavaachado.Quandoem1848revi nossa terra natal, tive a ideia de aproveitar suas lendas e tradições emalguma obra literária. Já em São Paulo tinha começado uma biografia doCamarão.Amocidadedele,aamizadeheroicaqueoligavaaSoaresMoreno,abravuraelealdadedeJacaúna,aliadodosportugueses,esuasguerrascontraocélebreMelRedondo; aí estava o tema. Faltava-lhe o perfume que derramasobreaspaixõesdohomemabelezadamulher.

Sabe você agora o outro motivo que eu tinha de lhe endereçar o livro;precisavadizertodasestascousas,contarocomoeporqueescreviIracema.Ecom quemmelhor conversaria sobre isso do que com uma testemunha demeutrabalho,aúnica,daspoucas,querespiraagoraasaurascearenses?

Estelivroé,pois,umensaioouantesamostra.Verárealizadasneleminhasideias a respeito da literatura nacional e achará aí poesia inteiramentebrasileira, haurida na língua dos selvagens. A etimologia dos nomes dasdiversas localidades e certos modos de dizer tirados da composição daspalavrassãodecunhooriginal.

Compreendevocêquenãopodiaeuderramaremabundânciaessariquezano livrinho agora publicado, porque elas ficariam desfloradas na obra demaior vulto, a qual só teria a novidadeda fábula. Entretantohá aí de sobraparadarmatériaàcríticaeservirdebaseaojuízodosentendidos.

Se o público ledor gostar dessa forma literária, queme parece ter algumatrativoenovidade,entãosefaráumesforçoparalevaraocaboocomeçadopoema, embora o verso pareça na época atual ter perdido sua influência eprestígio. Se porém o livro for acoimado de cediço, e Iracema encontrar ausual indiferença, que vai acolhendo o bom e o mau com a mesmacomplacência,quandonãoéosilênciodesdenhosoeingrato;entãooautorse

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desenganará de mais esse gênero de literatura, como já se desenganou doteatro, e os versos, como as comédias, passarão para a gaveta dos papéisvelhos,relíquiasautobiográficas.

Depoisdeconcluídoolivroequandoorelijáapuradonaestampa,conheciqueme tinham escapado senões que poderia corrigir se não fosse a pressacomqueo fiz:noto algumexcessode comparações, certa semelhança entrealgumas imagens,desalinhonoestilodosúltimoscapítulosquedesmerecemdos primeiros. Também me parece que devia conservar aos nomes daslocalidadessuaatualversão,emboracorrompida.

Seaobrativersegundaediçãoseráescoimadadestesedeoutrosdefeitos,quelhedescubramosentendidos.

Agosto,1865.

JosédeAlencar

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BAGAGEMDEINFORMAÇÕES

momentohistórico

Segundo romance da trilogia indianista de José de Alencar, Iracema foi

publicado em 1865. No Brasil, a situação socioeconômica borbulhava: aGuerra doParaguai havia só começado, e os grandes fazendeiros de café sepreocupavam com a baixa oferta de mão de obra escrava, decorrente domovimentoabolicionista.

Noplanopolítico,destacava-seoembateentreliberaiseconservadores.Osprimeiros defendiamo sistema de educação laico, ou seja, livre do controlereligioso, queriam a descentralização das províncias e municípios e eramfavoráveis à quebra domonopólio da terra. Os conservadores, obviamente,opunham-se a essas ideias, defendendo o poder central.Na prática, os doisgrupos não tinham aspirações de cunho popular; cada um a seu modo,procuravamapenasusaramáquinaadministrativaembenefíciopróprio.

No contexto cultural, o movimento romântico dedicava-se a cultivar onacionalismo, por meio demanifestações artísticas de caráter patriótico. Aliteratura,porexemplo,ganhavastatusdeverdadeiramentebrasileiraetinhanafiguradeAlencarseumaiorexpoente.

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1840

Em1840,D.PedroIIteveamaioridadeantecipadaepôdeassumirotrono.Eraoiníciodo

SegundoImpério,queseestenderiaaté1889,comaproclamaçãodaRepública.

1850

OSegundoReinadoviveseuapogeu,sustentadopelaeconomiacafeeira.Otráfico

negreiroéproibido,eaindustrializaçãodáosprimeirospassoscomoBarãodeMauá.

1860

Em1864,teminícioaGuerradoParaguai,queseestendeaté1870.Aeconomiase

diversifica,comoaumentodaproduçãodecacauedealgodão,masabaseeconômica

aindaéocafé.

1870

Osistemamonárquicoentraemcrise.Omovimentoabolicionistacomeçaaganhar

impulso,eamãodeobraescravaaospoucospassaasersubstituídapelotrabalholivre

doimigrante.

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BAGAGEMDEINFORMAÇÕES

momentoliterário

ConsideradoomaiorprosadordoRomantismobrasileiro, JosédeAlencar

(1829-1877) tinha como projeto criar uma literatura verdadeiramentenacional, que retratasse a diversidade da cultura brasileira, cultivando umaidentidadeautônoma,livredasamarraslusitanas.Nessecontexto,Alencarsededicou basicamente a quatro tipos de romance: o urbano, o histórico, oindianistaeoregionalista,ourural.

Inspirado empersonagens reais e fatos históricos, Iracema é consideradopormuito críticos um dosmais belos romances da literatura brasileira. Aomesmotempotrágicaepoética,ahistóriada“virgemdoslábiosdemel”quese apaixona pelo homembranco –Martim– é uma espécie de alegoria doprocesso de colonização do Brasil, que, poeticamente, tem início com onascimentodoprimeirocearense–frutodesseamormalsucedido.

Talcomoocorrenasoutrasduasobrasdatrilogiaindianistaalencariana–O guarani eUbirajara –, o indígena é elevado a herói nacional, idealizadoconformeospadrõesdomovimentoromântico.

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TROVADORISMOHUMANISMOCLASSICISMOBARROCOARCADISMOROMANTISMO

REALISMONATURALISMOPARNASIANISMOSIMBOLISMOPRÉ-MODERNISMO

MODERNISMO

Osentimentalismoeopredomíniodaemoçãomarcamanarrativadosacontecimentos

cotidianosecaracterizamasatitudeseaçõesdosprotagonistas.

Onacionalismoseexpressanastemáticashistóricas,regionais,folclóricaseindianistas,

caracterizandonoBrasilabuscapelaliteraturanacional,desprovidadosmodelos

lusitanos.Oromanceindianistabuscaretrataroíndiocomooverdadeiroheróibrasileiro.

Alinguagemébastantemetafóricaefazusointensodeadjetivosquevisamaexpressar

ossentimentos.Em"Iracema",essacaracterísticaextrapolaaprosa,aproximandoa

narrativadapoesia.

Ospersonagenssãolineareseagemsempredeformaprevisível.Oherói,idealizado,está

associadoaobem,quetriunfasobreomal.

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ObraconformeoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesaProduçãoeditorial:carochinhaeditorialProjetográfico:NaiaraRaggiottiBagagemdeinformações:NaiaraRaggiottieFernandoMelloIlustrações:KeremFreitaseKrisBarzPreparaçãodetexto:BrunaLaseviciusRevisão:JulianaAmatoeDiegoRodriguesCapa:FernandoMelloConversãoemepub:{kolekto}Direitosdepublicação:©2012EditoraMelhoramentosLtda.1.ªediçãodigital,maiode2015ISBN:978-85-0606977-6(digital)ISBN:978-85-06-00694-8(impresso)Atendimentoaoconsumidor:CaixaPostal11541–CEP05049-970SãoPaulo–SP–BrasilTel.:(11)[email protected]