Inventário da Diferenças

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    PA UL VEYNE

    O IN V E N T R IO D A S

    D I F E R E N A S

    Histria e Sociologia

    E d i t o r a B r a s i l i e n s e

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    Copyright ditions du Seuil, 1976.

    Ttulo original: LInventaire des Diffrences

    Traduo: Snia Saizstein

    Capa: Alfredo Aquino

    Reviso: Rosngela M. Dolis Jair N. Rattner

    Editora Brasiliense S.A.

    01223 - R. General J ardim, 160 So Paulo Brasil

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    Aquelas ou aqueles que possuem melhores razes

    que eu para ser em intrpidos - disseram- me - tremem

    nas horas ou dias que precedem sua aula inaugural. E,

    certamente, h tantas razes para algum tremer diante

    de um ou outro de vocs, que no vou aborr ec- los,

    infringindo- lhes a descrio detalhada das razes que me

    possam ser particulares. Pedirei complacncia para uma

    nica destas razes. Vocs me designaram, meus caros

    colegas, para ocupar uma cadeira de Histria Romana.

    Ora, estou plenamente persuadido de que a Histria

    existe, ou pelo menos, a Histria sociolgica, aquela que

    no se limita a narrar, nem mesmo a compreender, mas

    que estrutura sua matria recorrendo conceituao das

    Cincias Humanas, tambm chamadas Cincias Morais e

    Polticas. Estou igualmente persuadido de que os

    romanos realmente existiram; isto , que existiram de

    maneira to extica e to cotidiana quanto, por exemplo,

    os tibetanos ou os nhambiquaras, de modo que se torna

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    impossvel continuar a consider- los como uma espcie

    de povo- valor. Mas, ento, se a Histria ex iste, e

    tambm os romanos, existir uma Histria romana? A

    Histria consistir em contar histrias segundo a ordem

    do tempo? A resposta, para falar rapidamente, ser

    formalmente no, e materialmente sim. Sim, porque

    existem acontecimentos histricos; no, porque no

    existe explicao histrica. Como muitas outras cincias,

    a Histria informa seus materiais recorrendo a uma outra

    cincia, a Sociologia. De maneira anloga, existem, de

    fato, fenmenos astronmicos, mas, se no me engano,

    no existe explicao astronmica: a explicao dos

    fatos astronmicos e fsica.

    Quando vocs confiaram esta cadeira de Histria

    Romana a um desconhecido que nasceu no seminrio de

    Sociologia histrica, imagino, meus caros colegas, quevocs quiseram respeitar uma de suas tradies. Porque

    o interesse pelas Cincias Humanas tradicional na

    cadeira que ocupo. Por isso, este seu servo, vido por se

    apresentar a vocs sob seu lado melhor, se apoiar no

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    que se pode chamar o segundo momento da filosofia

    aroniana da Histria. O primeiro momento desta filosofia

    foi a crtica da noo de fato histrico; os fatos no

    existem; isto , no existem em estado isolado, exceto

    por abstrao; concretamente, existem apenas sob o

    conceito que os informa. Ou, se preferirem, a Histria

    existe apenas em relao s questes que ns lhe

    formulamos. Materialmente, a Histria escrita com

    fatos; formalmente, com uma problemtica e conceitos.

    Mas, ento, que questes preciso f ormular- lhe? E

    de onde vm os conceitos que a estruturam? Todohistoriador e implicitamente um filsofo, j que decide o

    que reter como antropologicamente interessante. Ele

    deve decidir se atribuir importncia aos selos postais

    atravs da Histria, ou s classes sociais, s naes, aos

    sexos e suas relaes polticas, materiais, e imaginrias(no sentido da imago dos psicanalistas). Como se v,

    quando Franois Chatelet considerava um pouco estreito

    o criticismo neokantiano e reclamava, em nome de

    Hegel, uma concepo menos formalista e mais

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    substancial da objetividade histrica, no podia prever

    que seus anseios seriam to rapidamente satisfeitos.

    E ia que os fatos so apenas a matria da Histria,

    para inform- los um histor iador deve recorrer teoria

    poltica e social. Aron escrevia em 1971 estas linhas que

    se constituiro em meu prog rama: A ambio do

    historiador, enquanto tal, continua sendo a narrao da

    aventura vivida pelos homens. Mas essa narrao ex ige

    todas as fontes das Cincias Sociais, inclusive as fontes

    desejveis, mas no disponveis. Como narrar o devir de

    um setor parcial, diplomacia ou ideologia, ou de umaentidade global, nao ou imprio, sem uma teoria do

    setor ou entidade? O fato de ser diferente de um

    economista ou socilogo, no implica que o historiador

    seja menos capaz de discutir com eles em p de

    igualdade. Eu me pergunto mesmo se, ao invs davocao emprica que lhe normalmente atribuda, ele

    no deve flertar com a Filosofia: quem no busca sentido

    existncia, no o encontrar na diversidade das

    sociedades e. das crenas. Tal o segundo momento da

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    f ilosofia da His tria; ele conduz, como s e v er, ao

    problema central da prtica histrica: a determinao de

    constantes, acima das modificaes; um fsico diria: a

    determinao da frmula acima dos diferentes problemas

    que ela permite resolver. uma questo atual: o

    Clausewitz de Aron tem como verdadeiro tema colocar a

    constante ao alcance dos historiadores.

    Em duas ou em cem palavras, o historiador deve

    decidir o que falar e saber do que fala. No se trata de

    interdisciplinaridade, mas de muito mais. As Cincias

    Morais e Polticas (vamos cham- las convencionalmenteSociologia, para sermos breves) no so o territrio do

    vizinho, com o qual estabeleceramos pontos de contato,

    ou de onde iramos saquear objetos teis. Elas nada

    fornecem Histria, porque fazem, de fato, muito mais:

    informam- na, constituem- na. Seno, ser ia preciso suporque os historiadores seriam os nicos com direito a falar

    de certas coisas - paz, guerra, naes, administraes ou

    costumes - sem saber o que so, e sem comear por

    aprend- lo, estudando as cincias que delas tratam.

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    Ainda que os historiadores quis essem ser

    positivistas, no o conseguiriam; mesmo no querendo

    sab- lo, possuem uma sociolog ia, j que no podem abrir

    a boca sem pronunciar as palavras guerra e cidade, e

    sem se fundar, falta de uma teoria digna desse nome,

    na sabedoria das naes ou em falsos conceitos, como

    feudalidade ou redistribuio. Assim, a erudio, a

    seriedade do ofcio histrico, apenas metade da tarefa;

    e, atualmente, a formao de um historiador dupla:

    erudita e, alm disso, sociolgica. O que nos acarreta o

    dobro de trabalho, porque a Cincia progride e o mundo

    perde a inocncia, avidamente, todos os dias.

    A s Cincias Humanas esto na moda, como se diz.

    Em outros termos, nossa poca mais profundamente

    cultivada que outras: no aprende mais muito latim, mas,

    em compensao, compreende mais coisas de seuprprio mundo. Ora, incontestvel que ela se desvia

    dos estudos clssicos. S vejo para isso duas

    explicaes possveis: se o pblico cultivado quase no

    se interessa mais pela Antigidade, que, ou a

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    A ntig idade no interessante, ou ns, estudiosos do

    tema, no soubemos fazer as pessoas se interessarem

    por ela. Que escolher? No que se trate de mendigar os

    sufrgios da opinio: a Histria feita para divertir os

    historiadores, tudo. Apenas seria mais agradvel se

    divertir em companhia mais numerosa. Aqui estou a fazer

    proselitismo ... Assim, j que para se fazer de sargento

    recr utados, faamo- lo com alguma chance de sucesso.

    No falarei, ento, de humanismo, no defenderei a

    cultura. Uma cultura est bem morta quando a defendem

    em vez de invent- la.

    Senhoras , senhores , trata- se de conceituar, por

    simples curiosidade de ordem etnogrfica ou sociolgica,

    a Histria de um velho imprio, cujos principais

    escombros levam o nome de Digesto(* ), ou este Dante em

    duas pessoas que foram Lucrcio e Virglio. H umapoesia do distanciamento. Nada mais longe de ns que

    essa antiga civilizao; extica, digo, est extinta, e os

    * Digesto - reunio, em um corpo de doutrinas, das decises dosjur isconsultos romanos ; publicado em 533, sob o impr io de Justiniano. (N.do T.)

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    objetos trazidos por nossas escavaes so to

    surpreendentes quanto os aerlitos. O pouco que nos

    passou da herana de Roma existe em ns em quo

    diludas doses, e ao preo de que reinterpretaes! Entre

    os romanos e ns, um abismo foi cavado pelo

    cristianismo, pela Filosofia alem, pelas revolues

    tecnolgica, cientfica e econmica, por tudo o que

    compe nossa civilizao. E por isso que a Histria

    romana interessante: faz- nos sair de ns mesmos e

    obrig a- nos a ex plicitar as diferenas que nos separam

    dela. Uma civilizao menos distante no teria essa

    virtude; teramos com ela uma linguagem comum, de

    modo que a maior parte do que o historiador viesse a

    dizer poderia passar por bvia; seria ento possvel

    histor iografia demorar- se mais tempo na penumbra em

    que flutua o que apenas vagamente concebido.

    Uma segunda razo, que ir parecer estranha, que

    a Histria romana incita, mais vivamente que as outras,

    ex plicitao do no- pensado, conceituao: ela

    pobremente documentada; mais pobremente, em todo

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    caso, que uma boa parte da Histria medieval. Ora, a

    pobreza suscita o engenho, que engendra, por sua vez,

    uma nova riqueza. T oda historiografia depende, por um

    lado, da problemtica que ela se formula, e, por outro,

    dos documentos de que dispe. E, se uma historiografia

    encontra- se bloqueada, isto se deve s v ezes falta de

    documentos, s vezes a uma problemtica esclerosada.

    Ora, a experincia prova que a esclerose da problemtica

    sobrevm sempre muito mais cedo que o esgotamento

    dos documentos: mesmo quando a documentao

    pobre, h sempre problemas que no pensamos formular.

    Com mais razo quando rica: as fontes sendo

    abundantes, possvel praticar durante longo tempo uma

    explorao extensiva, sem modificar a problemtica;

    contentamo- nos em explorar novos setores do terreno;

    quando a Histria poltica aprox ima- se de rendimentos

    marginalmente nulos porque sua tecnologia caduca,

    passamos a fazer Histria no- fatual(* ), sem alter ar a

    tecnologia, e substitumos as datas de tratados e

    *No orig inal: non- vnementielle. (N. do T .)

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    batalhas por curvas de longa durao. Eis a vantagem

    que existe em habitar as plancies mais ricas da regio

    da Histria. Da a admirao exaltada que merecem dois

    inventores, Philippe Aris e Michel Foucault, que, como

    verdadeiros empreendedores, segundo Schumpeter,

    renovaram sem terem sido limitados pela escassez.

    Quando o esgotamento aparente dos documentos

    fora a uma modificao da problemtica, descobre- se

    ento que novas questes tornam- se ex plorveis; ocorr e

    mesmo que questes tradicionais aprox imem- se de s ua

    soluo graas nova tecnologia. Aqui est um exemploque faz compreender o que significam conceituao,

    teoria e constante. T rata- se do imperialismo romano. Ele

    no apresenta qualquer problema, enquanto o prprio

    histor iador no o colocar e se limitar a relatar a

    conquista romana. Mas, se nos dispomos a questionarpor que os romanos bruscamente conquistaram, ou

    melhor, f inlandizaram o mundo, deparamo- nos com um

    enigma: por que esta sbita interveno no sistema

    internacional dos Estados gregos, do qual durante longo

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    tempo Roma fora mantida afastada, da mesma forma que

    os Estados Unidos viveram isolados do palco

    internacional at 1917? Resulta, de imediato, que a

    discusso bloqueada porque, inconscientemente, ou

    melhor, implicitamente, vrios historiadores imaginam os

    princpios da poltica romana segundo os princpios do

    equilbrio europeu, como se isso fosse evidente e no

    houvesse outros princpios possveis de poltica externa;

    esses historiadores, que acreditavam no possuir teoria

    e se restringir ao contato dos fatos, possuam uma sem o

    saber, e ela era falsa. No que as polticas de equilbrio,

    como as de Vergennes e Bismarck, tivessem sido

    desconhecidas da Antigidade: os Estados gregos

    praticavam- na entre si; es tabelecia- se que ex istia uma

    pluralidade de Estados, que eram iguais em direitos,

    tinham direito sobrevivncia, defendiam seus

    inter ess es e compartilhavam uma semi- seg urana, dia a

    dia. Mas essas mximas no so, justamente, as da

    poltica r omana, e por is so que a br utalidade e o

    orgulho da interveno romana no mundo dos Estados

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    helensticos surpreenderam e escandalizaram os gregos;

    foi um trgico mal- entendido, cada povo atr ibuindo ao

    outro suas prprias mximas. Ora, as mximas de Roma

    so arcaicas; Roma encarna uma forma arcaica no de

    imperialismo, mas de isolacionismo. Nega a pluralidade

    das naes, comporta- se, dizia Mommsen, como se fosse

    o nico Estado no sentido pleno do termo; no busca uma

    semi- segurana no dia- a- dia, em equilbrio com outras

    cidades, mas quer viver tranqila, decisivamente, uma

    segurana inteira e definitiva. Qual seria o desfecho ideal

    de ambio semelhante? Este: conquistar todo o

    horizonte humano, at seus limites, at o mar ou os

    brbaros, para ser nica no mundo. Nesses tempos

    antigos, em que o planeta no era inteiramente

    cadastrado, podia- se, com efeito, sonhar em liquidar

    definitivamente o problema da segurana e da poltica

    externa, como sonhamos em acabar definitivamente corri

    o problema da fome ou do cncer. Suponho que o

    imperialismo chins partia desse mesmo sonho de ocupar

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    todo o horizonte humano; se estou enganado, certamente

    vocs o diro.

    Isto nos mostra duas coisas. Primeiro, que o

    reconhecimento da existncia de outras naes enquanto

    sujeitos de direito internacional no evidente; em

    relao a isso, os romanos agiam com o mundo inteiro,

    da mesma forma que, no sculo passado, os europeus

    com os povos no- cristos: es tes eram feitos para

    serem ignorados ou submissos. Praticamente, a

    existncia de uma pluralidade de Estados que se

    reconhecem como iguais supe seja uma prvia unidadecultural (as cidades gregas eram,fragmentos da etnia

    helnica), seja uma unidade religiosa (o equilbrio

    europeu fazia- se dos restos da cr istandade). Seg undo,

    que a oposio das duas concepes de segurana se

    reduz unidade de um modelo, de uma constante;partilhar com outrem, no dia- a- dia, uma semi-

    segurana, ou garantir- se uma segurana absoluta e

    definitiva, lanando o outro numa insegurana total: isto

    quer dizer que a segurana internacional um jogo de

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    soma algbrica nula; uns ganham o que os outros

    perdem, sendo impossvel que dois Estados vizinhos

    estejam, um e outro, em completa segurana. Tal o

    modelo constante, onde vimos duas modificaes

    histricas: a poltica de equilbrio e os isolacionismos

    arcaicos romana ou chinesa.

    A ssim, a conceituao de uma constante per mite

    ex plicar os acontecimentos; jogando- se com as variveis

    pode- se recr iar, a partir da constante, a divers idade das

    modificaes histricas; ex plicita- se, dess e modo, o

    no- pensado e lana- se luz no que era apenasvagamente concebido ou mal era pressentido.

    Finalmente, e sobretudo, por mais paradoxal que parea

    a afirmao, s a constante individualiza, mesmo

    levando- se em conta seu carter abstrato e geral; o

    imperialismo romano j no e o imperialismo vago dasdiscusses em cafs; no possui mais nada em comum

    com Pricles, Alexandre, Hitler; no e tampouco o

    imperialismo e isolacionismo americanos. Possui uma

    fisionomia bem prpria. Como diz uma frase clebre,

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    quanto mais idias temos, mais achamos que as pessoas

    so originais. O individual no o inesgotvel, o inefvel,

    mas a prpria vida, segundo Michelet: o que no vago.

    A constante est no centro mesmo da prtica

    histrica, j que a Histria explica, e o faz

    cientificamente, sociologicamente; ora, o que uma

    cincia, seno a determinao de constantes que

    permitem reconhecer a diversidade dos fenmenos? Ser

    preciso acrescentar que o imperialismo romano no se

    reduz a esse belo esquema? A segunda guerra da

    Macednia ou a conquista da Glia se explicam de outraforma e supem uma teoria geral dos imperialismos. No

    estou me esquecendo dessas nuanas, ou melhor, desses

    detalhamentos, mas disponho de apenas uma hora.

    No estamos dissimulando: no estado atual do

    trabalho histrico (ou antes, da conscincia que os

    historiadores adquirem de seu prprio trabalho), a idia

    de constante, ou o termo, confundir um pouco. Uns

    diro que no vem no que contribui e qual seria sua

    utilidade, no se dando conta de que eles prprios

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    produzem constantes (porque, afinal, os historiadores

    atuais no menosprezam as idias, as teorias sobre o

    homem e a Histria). Outros sentiro temores

    pudibundos: no seria a constante a prpria negao da

    evoluo histrica e uma ideologia conservadora, que

    afirma que a natureza humana imutvel? No

    ex press aria um desdm por este olho da Histria - a

    cronologia? Uma negao do acaso e do papel dos

    indivduos? Pior ainda, supor- se- que tudo isso

    Histria comparada, essa besta negra que tambm um

    animal bastante mtico (para dizer a verdade pouco

    importa a Histria comparada; mas, enfim, j que a

    questo est posta, aproveitamos para lembrar que o

    verbo comparar permite, sintaticamente, duas

    construes de sentidos opostos: um poeta compara a

    paixo amorosa chama, para dizer que so muito

    comparveis; um historiador compara o imperialismo

    romano e o de Atenas para constatar que no se

    parecem, tal como uma vendedora de l, confrontando

    dois novelos que supe no serem da mesma cor).

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    H talvez um meio de desarmar essas afetaes de

    pudor e essa indiferena aborrecida. lembrar que

    existe uma teoria muito popular entre os historiadores,

    pouco suspeita de carecer de senso histrico ou de ser

    conservadora, e que faz muito sucesso porque permite,

    ou apenas o pretende, fazer da Histria enfim uma

    cincia; ela fornece aos profissionais, de fato,

    instrumentos de explicao, ou, em outras palavras,

    constantes. Essa teoria o marxismo. Luta de classes,

    foras e relaes de produo, infra- estruturas,

    ideologias, interesse de classe, Estado como instrumento

    da classe dominante (tal sua invarivel funo, acima

    de suas variaes histricas; e tal tambm o sentido do

    conceito de Estado, definitivamente estabelecido) : eis as

    constantes . O marx ismo uma teor ia e tem grandes

    projetos: possibilita explicar as transformaes da

    sociedade e da natureza humana; reconhece, por trs

    das metamorfoses, uma chave invarivel, que a

    dialtica das foras e das relaes de produo (se no

    fosse invarivel, no seria uma chave, por definio). Sob

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    o pitoresco da Histria, sob o reflexo cambiante e vivo

    das culturas e dos indivduos, ele discerne os grandes

    motores, que no cessam de engendrar a variedade do

    caleidoscpio histrico, ex plicando- o. Ele encontrou, ou

    cr ter encontrado, um ponto de apoio no movedio da

    Histria.

    A ex ig ncia de constantes simplesmente a

    exigncia de uma teoria que fornea Histria seus

    conceitos e seus instrumentos de explicao. O

    marxismo pensa ser essa teoria; pouco importa aqui que

    sua pretenso no seja muito fundada; seu sucesso juntoaos historiadores no deix a de ser um feliz sintoma, a

    indicar que a narrao, a compreenso, o

    impressionismo, o gosto de fazer as coisas parecerem

    vivas , no bastam para satisfaz- los: h tambm neles

    uma necessidade de inteligibilidade cientfica. Nosonham por isso em negar a importncia da cronologia,

    do acaso ou dos grandes homens! Posso ver a

    exasperao de historiadores marxistas amigos meus, se

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    algum ousasse reapresentar- lhes essas objees

    surradas que nada tm a ver com a questo.

    O marxismo, tomado rigorosamente, possui um valor

    limitado; ele, entretanto, que nos fornece o exemplo de

    constante mais adequado a dissipar mal- entendidos: A

    histria de toda sociedade at hoje, diz a primeira frase

    do Manifesto comunista, uma histria de luta de

    classes, homens livres e escravos, patrcios e plebeus,

    bares e servos, mestres e artesos; em suma, de

    opressores e oprimidos. Acima das modificaes

    histricas, acima tambm das ignorncias tericas e dasiluses ideolgicas, o motor da Histria

    invariavelmente a luta de classes. Pelo menos at hoje.

    No se trata de dizer que sempre haver classes,

    sempre, sempre, mas que, acima das aparncias e das

    iluses, a ver dade dos milnios de pr- histria em queainda estamos ter sido a luta de classes. Constante

    no quer dizer que a Histria feita de objetos

    invariveis, que jamais mudaro, mas somente se pode

    captar nela um ponto de vista invarivel como a verdade,

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    um ponto de vista cientfico, escapando s ignorncias e

    s iluses de cada poca e sendo trans- histrico. Para

    resumir: determinar as constantes determinar as

    verdadeiras realidades e os verdadeiros mecanismos da

    evoluo histrica; explicar essa evoluo

    cientificamente, ao invs de res tringir- se a narr- la

    superficial e ilusoriamente. Constante quer dizer,

    portanto, Histria escrita luz das cincias do homem,

    porque uma Histria semelhante utilizar, evidentemente,

    tais cincias, quando existirem, ou contribuir para faz-

    las existirem. A constante explica suas prprias

    modificaes histricas a partir de sua complexidade

    interna; a partir desta mesma complexidade, explica

    tambm sua prpria eventual desapario: a dialtica das

    relaes e das lutas de classes comporta a explicao de

    sua desapario e o advento de uma sociedade sem

    classes.

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    Mesmo quando no o sabem, os historiadores

    produzam constantes como fazem prosa. (* ) Pois

    pretendem, enfim, dizer qual foi a realidade de outras

    pocas e no se interessam em compartilhar

    sucessivamente as ignorncias e iluses que essas

    diversas sociedades elaboraram sobre si prprias. Um

    historiador no faz falarem os romanos, os tibetanos ou

    os nhambiquaras : ele fala em seu lugar , fala- nos deles, e

    conta- nos quais foram as realidades e as ideologias

    desses povos; fala sua prpria lngua, no a deles; sob as

    aparncias e mistificaes, v a realidade. Quando nos

    falar do sculo XX, pretender estar dizendo a verdade

    sobre ele e no compartilhar seus engodos; no fala a

    linguagem errnea de seus heris, fala- nos deles atravs

    de uma metalinguagem, a da verdade cientfica. Os

    romanos falam da grandeza de Roma, dos costumes dos

    ancestrais, da sabedoria do Senado; o historiador traduz

    * Comme ils font de la prose - ref erncia a uma cena do Burg usFidalgo, de Molire, em que M. Jordain descobre que fazia prosanaturalmente, sem o saber. A expresso faire de la prose sans le savoir, queda se origina, significa fazer ou obter alguma coisa de forma quaseinconsciente. (N. do T.)

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    isto na metalinguagem trans- histrica das Cincias

    Polticas; interpreta o texto e reconhece a as

    constantes: imperialismo ou isolacionismo, cobertura

    ideolgica, dominao de classe. No compartilha a

    linguagem errnea dos romanos: ex plica- nos os romanos

    falando a lngua da verdade cientfica, fazendo afluir os

    mecanismos e as realidades da Histria romana e

    tornando- a assim inteligvel.

    Esse apetite de inteligibilidade apenas comea a

    nascer; ele, entretanto, que carrega o futuro de nossa

    cincia. Vivemos numa poca de transio; muitosespritos ainda se satisfazem em reconstruir o

    passado, em narr- lo de maneira v iva. Conceituar no

    ainda um reflexo automtico, de se entregar a esta fadiga

    do intelecto, comparvel ao esforo da viso; no e ainda

    um reflexo deontologicamente obrigatrio, para que sediga diante do que se estuda (seja o Congresso de Viena,

    a educao no Grande Sculo(* ) ou as atitudes diante da

    morte): E ento, agora, procuremos fazer um pequeno

    * Gra nde S culo- o sculo XV II francs. (N. do T .)

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    recuo; procuremos fazer Sociologia, a teoria de tudo

    isso. Porque tudo isso deve se estruturar em cinco ou

    seis conceitos, algumas variveis, um conjunto de

    algumas leis, tendncias ou contradies, e, enquanto eu

    no tiver desvendado essas articulaes, no saberei

    verdadeiramente o que meu acontecimento. Outros

    poro, em seguida, esses conceitos prova em

    diferentes perodos da Histria; jogaro com essas

    variveis para tentar reengendrar outros acontecimentos

    e experimentaro se essas leis ou tendncias podem

    formar um discurso coerente: isto uma cincia.

    Pondo- se de lado os historiadores marx istas, por

    que assim to pouco difundida a idia de que a essncia

    da Histria explicar os aconteci mentos recorrendo s

    cincias do homem? Por vrias razes. Uma delas a

    crena de que a Cincia, com suas idias gerais, matariaa Histria, conhecimento da individualidade: a seqncia

    do presente discurso se dedicar a mostrar que esse

    receio descabido. Uma outra razo que as cincias do

    homem, que ns chamamos Sociologia, apenas nascem,

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    embora j tenham dois milnios e meio; mas isso no

    importa: os historiadores no podero fazer Histria sem

    faz- las av anarem. Uma outra razo e que tais cincias

    no so ainda bastante conhecidas; a politicologia

    bem menos cultivada na Frana que nos Estados Unidos

    ou na Alemanha, onde o professor Christian Meier

    escreve alternadamente livros de Histria romana de

    inspirao politicolgica, e livros de politicologia

    ilustrados com exemplos extrados da Histria romana,

    sem mencionar suas contribuies ao grande dicionrio

    dos conceitos fundamentais da Histria, o Historisches

    Lexikon der Geschichtlichen Grundbegriffe. E, depois, h

    o marxismo, que no faz apenas bem; persuadiu a

    maioria dos historiadores, inclusive os de Economia, que

    a Economia poltica era o marx ismo (o qual no uma

    teoria econmica, mas somente um fragmento de Histria

    econmica) e que, quando penetrassem em seu interior,

    estariam armados para fazer Histria econmica; sob o

    risco de ser desacreditado, pode- se af irmar que alguns

    deles mal sabem da existncia de uma teoria econmica

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    verdadeira; em todo caso, no fazem ques to de sab- lo.

    Finalmente, h o caso da Sociologia: tomei aqui esta

    palavra num sentido bem convencional, em homenagem a

    Max Weber;. ela designa todas as Cincias Humanas

    onde a Histria e como que a aplicao. Mas, no emprego

    corrente atual, Sociologia quer dizer outra coisa, ou

    antes, no quer dizer absolutamente nada, j que mistura

    trs coisas diferentes: uma Histria no- fatual do mundo

    contemporneo, um certo nmero de tcnicas de

    pesquisa (Lazarsfeld, Raymond Boudon) e, finalmente, a

    Filosofia poltica e a Antropologia do pobre; quando

    fazemos Filosofia poltica, e nos dizemos no- filsofos

    da poltica, mas socilogos, logramos, com efeito, duas

    vantagens: podemos agir como se ignorssemos tudo o

    que foi escrito h dois milnios sobre o homem e a

    sociedade de ostentar, alm disso, o prestgio atribudo

    aos pesquisadores positivos, que no so

    filosofastros. (*) Tudo isso e pouco atraente, e

    compreende- se que mais de um historiador

    *No original: philosophicai lleurs. (N. do T.)

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    automaticamente recue diante do que se chama (eu no

    chamo) Sociologia.

    Apenas... apenas que todas es sas razes no se

    constituem na principal. Uma razo bem mais simples faz

    muito freqentemente com que se desconhea que a

    Histria a aplicao das Cincias Morais e Polticas:

    trata- se da conveno, da tradio, do discurso, no

    sentido de Foucault, com tudo o que uma conveno

    comporta de arbitrrio e de incoerente. No imaginemos,

    com efeito, que haja uma lgica majestosa em tudo isso,

    que o que est em questo seja o conflito entre duasgrandes opes, uma escolha dilacerante, um dilogo

    eterno: o detalhe das fronteiras bem mais desprezvel

    e arbitrrio. A demografia ser admitida, mas no a

    teoria da organizao; a econometria, ou, no mnimo, as

    sries quantitativas, mas no a anlise econmica; aindase e historiador quando se cita Karl Polanyi; em

    compensao, Jellinek no recebeu o direito de

    cidadania: se o mencionamos, tornamo- nos suspeitos de

    sermos apenas raciocinadores, ou, pior ainda, juristas.

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    Temos o direito de falar em potlatch ou redistribuio,

    mas tornamo- nos suspeitos quando f alamos em clculo

    marginal; podemos falar smbolo, mas no ndice ou

    cone. Tal helenista cr estar dentro dos limites de sua

    prtica quando fala do equilbrio das potncias na Grcia

    (com a inconvenincia de no saber muito exatamente o

    sentido desta palavra); mas, se falarmos diante dele em

    isolacionismo, nos olhar de revs e desconfiar, que

    fazemos Histria comparada, o que e uma grande injria:

    isto porque a palavra isolacionismo no historicamente

    usual. Se somos demgrafos, somos aceitos e

    aconselhados a aprender demografia antes de comear a

    examinar os documentos; mas, se fazemos Histria

    poltica, somos mal vistos por comear aprendendo

    teoria poltica. assim porque assim. Pouco importa:

    atravs dessas incoerncias, a Histria no deixa de se

    tornar, gradativamente, uma aplicao das cincias do

    homem; ela utiliza tais cincias, e talvez mais

    fr eqentemente ainda, faa- as progr edir.

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    No digo que as cincias histricas desaparecero

    em proveito da teoria, mas que se utilizam da teoria, sem

    perder sua identidade.

    Esse movimento, que impulsiona as cincias de

    inventrio, seja a Histria, a Histria Literria ou

    A rtstica ou a Geog raf ia, em direo ex plicao terica,

    e geral; a teoria da literatura est em gestao. Os

    leitores de Paul Claval sabem que uma teoria do espao

    geogrfico se desenvolveu a partir dos trabalhos de

    Christaller sobre os lugares centrais; aqui se conjugam a

    teoria da informao e a economia espacial, criada porThnen h quase um sculo e meio. Entretanto, apesar

    dessa referncia economia matemtica, as Cincias

    Humanas conservam, na maior parte dos casos, uma

    originalidade em relao s Cincias Fsicas: no

    estabelecem frmulas, modelos formais; tm, comoconstantes, tipos, arquiteturas de conceitos; o exemplo

    cannico disto seria a definio ternria da guerra em

    Clausewitz. Chamemos essas constantes de estruturas,

    se no pudermos viver sem essa palavra.

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    Desde que a prtica histrica acabou com as belas

    colheitas de ex plorao ex tensiv a, choca- se com seu

    verdadeiro e eterno problema: como falar do que quer

    que seja, em Histria, sem se referir a uma constante

    trans- histrica? Eu poderia tomar T ucdides como

    exemplo, mas suspeitariam que no estou a par da

    Histria pioneira; tomarei, ento, um exemplo menos

    antigo. Uma histria da loucura; como escrev - la? T odos

    aprendemos que no existia loucura em estado

    selvagem, acima de modificaes histricas

    descontnuas, e que era, portanto, impossvel falar em

    a loucura atravs dos sculos, exceto se

    estabelecessemos uma continuidade enganosa entre

    doenas sem relao entre si. Que diriam do ingnuo que

    escrevesse uma histria de a caridade atravs das

    diversas civilizaes, desde Sumrio e dos faras?

    Per mitam- me um parntese: aqui se unem, ou se

    confundem, duas idias levemente diferentes; sua

    conjuno tem o nome de estruturalismo. As duas so

    interessantes e parecem verdadeiras; o melhor separ-

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    las. De um lado, toda realidade social objetivamente

    limitada; de outro, toda realidade social confusa em

    nossa representao, cabendo a ns conceitu- la e

    discerni- la claramente.

    De um lado, nenhuma loucura a prpria loucura,

    nenhuma cincia a Cincia, nenhuma pintura toda a

    pintura, nenhuma guerra a guerra absoluta. H frices

    por toda parte, no sentido de Clausewitz e de Walras, ou

    rarefaes do discurso, no sentido de Foucault; os

    agentes histricos sofrem limitaes, e, nesse sentido, e

    a sua poca que se ex prime atravs deles; seg ue- se,como conseqncia, que a expresso jamais se ajusta

    perfeitamente ao expressado: h distoro.

    T ranqilizem- se: tomo to pouco Foucault por

    estruturalista, que meus exemplos sero tirados de

    Wlfflin, impossvel de ser v inculado ao estruturalismo,

    ainda no nascido sua poca. De um lado, no plano do

    conceito, Wlfflin elabora suas constantes fundamentais

    da Histria da Arte; so cinco pares de conceitos: linear

    e pictrico, forma fechada e forma aberta, etc. De outro,

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    no plano do real, Wlfflin mostra que a evoluo da viso

    pictrica autnoma, ou, se preferirem, que e um

    subsistema dotado de temporalidade prpria, de sua

    inrcia, que no e a dos artistas, de modo que estes

    submetem- se s convenes, ao discurs o pictrico de

    sua poca. Todo quadro possui dois autores, o artista e

    seu sculo. No concluamos academicamente que todo

    artista se exprime atravs das convenes de seu tempo,

    cujo feliz cerceamento um desafio ao qual ele

    responde e que lhe permite levar mais alto sua

    expresso: o que Wlfflin mostra, ao contrrio, que o

    artista recebe pura e simplesmente essas convenes,

    que restringem ou distorcem sua expresso, sem que ele

    o saiba, de forma que o significante no se ajusta mais

    plenamente ao significado; aqui, como em toda parte, a

    teoria dualista do reflexo se desmorona.

    Em sua poca, Wlfflin surpreendeu; surpreendeu

    Panofsky; este, todavia, no chegou a bradar que Wlfflin

    queria assassinar o artista, suprimir o homem e o

    humano. Deixemos de lado esses temores inteis.

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    Wlf flin ou Foucault simplesmente lembrar am que o

    homem no inteiramente ativo, que tambm

    condicionado. Ser que se pode denunciar o assassino,

    quando a teologia catlica ensina que as aes de um

    justo que recebe a graa cooperante possuem dois

    autores, Deus e ele prprio? Que, quando um justo

    experimenta a graa operante, Deus que age atravs

    dele? Mas foi visto igualmente que o plano da constante

    conceitual e o plano do real permaneciam distintos em

    Wlf flin: de um lado, os dez conceitos fundamentais da

    Histria da Arte possibilitavam conceituar a obra atravs

    do tempo; de outro, constatava- se que a visualidade

    tinha sua evoluo autnoma e temporalidade prpria.

    Evoluo autnoma,, dizamos: Senhoras e senhores,

    o curso da Histria inteiro feito de subsistemas, cujas

    articulaes so contingentes; a autonomia dasconvenes artsticas em relao s intenes dos

    artistas, e das ideologias em relao s infra- estruturas ,

    a das condutas em relao aos valores e a das palavras

    em relao s coisas so seus casos particulares;

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    somente o academicismo edificante ou o monoidesmo

    marxista poderiam se chocar com isso. Deixemos a

    autonomia e retornemos aos dez conceitos fundamentais

    de Wlfflin. Quando estamos no Louvre, diante de um

    quadro, eles nos permitem ter mais idias sobre esse

    quadro, sermos mais conscientes de sua originalidade, e,

    literalmente, v- lo melhor. Como diz meu amigo Jean

    Pariente em seu belo livro Le Langage et LIndividuel,

    estamos errados quando opomos a apreenso das

    individualidades, em toda sua riqueza, conceituao,

    que seria uma tagarelice bastante geral; ao contrrio,

    cada conceito que conquistamos refina e enriquece nossa

    percepo do mundo; sem conceitos, nada se v; sem

    conceitos, faz- se Histria narrativa, que no

    absolutamente a mesma coisa que Histria fatual: porque

    se pode muito bem conceituar os acontecimentos. Um

    fsico explica e individualiza ao mesmo tempo um

    fenmeno concreto, aplicando- lhe a frmula certa,

    substituindo as letras da lgebra pelas cifras, que so

    circunstanciais; da mesma forma, a explicao histrica e

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    sociolgica (trata- se da mesma) consiste em relacionar

    um acontecimento a um modelo trans- histrico, que se

    individualiza jogando- se com as v ariveis. Par iente nos

    d dois exemplos disso: Montesquieu e Georges Dumzil.

    Em Montesquieu, o clima e as outras variveis

    sociolgicas individualizam os tipos de regimes polticos:

    as Repblicas do Norte no se parecem com as do Sul;

    em Dumzil, a palavra Roma, a despeito das

    aparncias, no um nome prprio: uma operadora de

    individualizao. Suponhamos que nos encontrssemos

    diante de um esquema mtico, detectado pelo

    comparatista em cem povos diversos, sob formas cem

    vezes modificadas; o operador de individualizao no se

    destina a nos designar a modificao romana, mas a nos

    permitir engendra- Ia a partir do esquema; o nome Roma

    quer dizer: Rebatam o esquema, no sobre o plano da

    fbula, como na Grcia, ou da religio, como na ndia,

    mas sobre o do pensamento histrico poltico, que o de

    Roma: assim vocs encontraro a modificao original

    que os romanos tiveram em nosso esquema.

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    Em outras palavras, diante de qualquer fato

    histrico, seja espordico ou de longa durao, podemos

    escolher entre duas atitudes bem diferentes; uma,

    narrativa e um pouco passiva, e a do senso comum, so

    os acontecimentos tal como so lidos nos jornais, e

    mesmo, no fundo, em Michelet; a outra atitude, cientfica,

    , ao mesmo tempo, explicativa e individualizante.

    Iremos analisar uma e outra, e veremos que a segunda, a

    das Cincias Humanas, longe de ser temvel como uma

    chuva de granizo que se abate sobre as colheitas do

    humano, e, ao contrrio, a nica a assegurar e realizar o

    que ns, historiadores, mais prezamos. Ora, ns

    prezamos duas coisas: que a Histria no se confunda

    com a Sociologia e que se continue a contar o passado,

    todo o pass ado.; que se prossig a fazendo- lhe o

    inventrio completo; e que o sabor original de cada fato

    seja resguardado. Nosso mito favorito, o do perodo, o

    do perodo com sua originalidade inefvel, traduz, a seu

    modo, nossa dupla reivindicao: a de um inventrio de

    todos os acontecimentos e a de uma individualizao de

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    cada acontecimento; nenhum acontecimento se repete e

    nem redutvel a uma abstrao. A individualizao

    uma tarefa que temos em comum com as Cincias

    Humanas, j que individualizar quer dizer explicitar e

    explicar; em compensao, a reivindicao do inventrio

    completo particular a ns; no deixa de ser, por isso,

    perfeitamente legtima. ela que faz com que a Histria

    no seja a mesma coisa que a Sociologia, ou, se

    preferirem, que a Histria permanea um relato. Da

    mesma maneira, os astrnomos e os fsicos tm em

    comum ex plicar cada fenmeno aplicando- lhe a frmula

    geral, mas tm tambm uma reivindicao prpria sua

    categoria profissional; querem que as estrelas sejam

    estudadas em si mesmas; chegam at, eu creio, a

    preparar- lhes catlogos, e seu gosto pelo inventrio

    completo no toleraria que se perdesse a menor galxia.

    Explicar, mas tambm recensear. Mesma exigncia entre

    os historiadores; bastar que uma civilizao tenha

    existido para que deva figurar no inventrio, mesmo

    quando dela se tenha encontrado apenas dois ou trs

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    textos indecifrveis e o nome de uni de seus reis. Na

    obra de um grande erudito, Louis Robert, a quem quero

    muito manifestar minha admirao, pude notar este

    sentimento, de que a Histria era toda a memria do

    mundo.

    Nosso mito do perodo histrico

    sobredeterminado; no possui, com efeito, menos que

    trs razes. A primeira a defesa corporativa, a

    salvaguarda do terreno de caa (ou de dominao, na

    maioria das vezes), ou, ainda, do jardim do sono feliz. A

    segunda raiz so as convenes do ofcio: para serlevado a srio, para ser conforme a verdade, toda

    afirmao histrica deve apresentar certos signos

    exteriores que fazem pressupor, sua cientificidade -

    quando no os apresenta, suspeita; o principal destes

    signos exteriores no sair de seu perodo: quem querque aproxime, mesmo que para opor, um fato romano de

    um fato chins, ser suspeito de fantasia. Por qu?

    Porque sabe o latim mas no o chins, ou o inverso. E,

    sobretudo, porque, por uma estr anha iluso, cr- se que a

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    Histria no se repete; sob o pretexto de que um fato

    histrico individual, imagina- se que ele seja singular.

    No entanto, numerosos fatos histricos so quase

    gmeos idnticos - assemelham- se como duas g otas

    dgua; no deixam de ser, por causa disso, dois

    indivduos distintos e, quando o historiador faz o

    recenseamento, considera- os como tais. Apenas aos

    olhos de um socilogo eles recairiam numa s e mesma

    categoria. No preciso dizer que a Histria consiste em

    amar o que jamais se ver duas vezes, e em amar duas

    vezes o que se rev ocasionalmente.

    Diga- se de passagem, eis aqui a razo pela qual a

    palavra inventrio, que adotei provisoriamente para

    caracterizar a Histria, se revelar insuficiente: teremos

    que retomar a velha palavra relato, agora que j no

    devemos ser suspeitos de simpatias vergonhosas pelahistoriografia tradicionalista. Por que dizer relato, e no

    simplesmente inventrio? Porque os fatos histricos so

    individualizados pelo tempo. Ex plico- me. Alm dos

    astrnomos e dos historiadores, outros pesquisadores

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    cultivam cincias que fazem o inventrio de seus

    materiais; por exemplo: a menor espcie viva no escapa

    aos zologos - eles descrev em- nas todas. possvel

    ento imaginar duas espcies vivas perfeitamente

    idnticas, e que, apesar disso, seriam consideradas

    distintas e classificadas como se fossem duas? No,

    evidentemente; as espcies, com efeito, so

    individualizadas por sua descrio, sua essncia. Os

    acontecimentos, mesmo quando se repetem, so tomados

    como dois, porque se produzem em dois momentos

    diversos do tempo. Descobrimos aqui o que h de

    verdadeiro no mito tranqilizador do perodo no-

    comparvel: trata- se da indiv idualidade dos

    acontecimentos, que omito pensa preservar; esta sua

    origem autntica.

    S que ele se d muito mal a: no chega nemmesmo a dizer em que consiste tal originalidade, a

    encontrar as palavr as necessrias para tanto: limita- se a

    desig n- la, e a confiar no instinto do leitor, que dever

    perceber de que gnero de individualidade se trata.

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    Coloquemo- nos na pele de um historiador- narrador

    que cr no perodo, aventurando- se a contar a seu leitor

    a Histria de Roma. Fala de conquista, de poder imperial,

    de direito romano; fornece datas, nomes prprios,

    instituies, detalhes narrativos; em suma, ele se atm

    comedidamente aos fatos positivos. O leitor, um pouco

    embaraado, v, de fato, que direito romano ou o

    imperialis mo r omano no s o a mesma cois a que o

    Cdigo Napolenico ou o imperialismo ateniense, j que

    as, datas e os fatos no so os mesmos; e contudo

    parece- lhe, obscuramente, que a orig inalidade dos

    acontecimentos romanos vai mais longe que essas

    diferenas pouco sutis: ainda obscuramente, sente que a

    conquista romana, indo aos limites do horizonte humano

    sem ser movida por uma ideologia, pelo amor aos

    grandes golpes de espada ou glria, e uma coisa

    estranha, que a nada se assemelha. Ele percebe, no

    menos obscuramente, que a atitude do jurista romano ao

    interpretar o direito assemelha- se apenas ex terior mente

    do jurista moderno - e tem razo: as duas atitudes

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    nada tm em comum. Um jurista moderno no pretende

    estabelecer normas jurdicas: no e legis lador; limita- se

    a exercer seu ofcio, que o de interpretar as leis:

    poder se perguntar, por exemplo, qual era a inteno do

    legislador. O jurista romano clssico tambm no se toma

    por um legislador, ao menos expressamente: quando

    explica que uma lei quer dizer, no fundo, isto ou aquilo,

    pensa es tar apenas interpretando- a; est persuadido, de

    antemo, que as leis so a verdade encarnada:

    conseqentemente, tudo o que a lei ditar ser

    considerado verdadeiro; sua atitude em relao ao

    direito idntica de Vaugelas em relao ao bom

    uso: incapaz de distinguir gramtica descritiva de

    gramtica normativa.

    O abismo entre as duas atitudes, o leitor de nosso

    historiador- narr ador percebia- o obscuramente; ohistoriador, que tambm o percebe, j contava com isso:

    porque somente esse pressentimento pode evitar que o

    leitor caia a onde o historiador no sabe explicitar com

    palavras; somente tal pressentimento lhe evitar a

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    atmosfera anacrnica, os erros nas nuanas, que so

    outras tantas armadilhas estendidas ao iniciante. O que

    diz a Histria narrativa e envolto por uma vasta zona de

    no- ex primido, onde s omente uma familiarizao, que

    no se faa atravs de) conceitos, permite evitar os

    passos falsos. Da mesma forma com que se reconhecem

    de longe os grandes estudiosos da Antigidade - um

    Pierre Boyanc, um Ronald Sy me, um Louis Robert - por

    certas pginas que no escrevem, tambm se

    reconhecem os verdadeiros autores pelas banalidades

    que no escr evem: um instinto seguro g uia- os. em meio

    ao nevoeiro; agarramo- nos, ento, a seus passos. T odo

    grande historiador guiado por um saber terico que

    aparenta ignorar, por ascese; este saber implcito, que

    caminha decididamente, e algo comparvel ao do homem

    de ao.

    Da resultar, na obra de outros, um rigor mal

    colocado, que insiste na seriedade da erudio apenas

    para esquecer que a teoria tambm existe e que possui

    uma ser iedade prpria. Um colega s inlogo dizia- me:

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    fcil explicar a difuso de seitas na China Antiga pela

    aridez meticulosa do ritualismo tradicional, incapaz de

    satisfazer as necessidades espirituais. Mas o que

    significa ritualismo, e de onde nos vem, ento, a certeza

    de que ele produz esse efeito?,Simples frase da

    sabedoria das naes, ou afirmao refletida, que se

    pode tomar por base? curioso que sbios to altivos

    em relao a um ponto de cronologia nem mesmo se

    coloquem essas questes e utilizem, sem a menor

    inquietao, essas falsas evidncias. E bem verdade

    que o ritualismo e seus efeitos constituem uma idia que

    seria preciso definir, verificar e sistematizar. Se o

    ritualismo alguma coisa e se era to rido como o

    dizem; se fez despontarem, em compensao, outras

    fontes, ento deve ter tido o mesmo efeito em outros

    tempos e lugares; se formula uma explicao que

    reencontramos a mesma, sempre, sob mais de uma

    evoluo, ento essa constante deve ser - s istematizvel

    ao lado de outras afirmaes tericas; deve participar de

    uma concepo coerente do homo religiosus. Aps isso,

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    nada distingue as afirmaes do senso comum das

    afirmaes das cincias, exceto o fato de serem, estas

    ltimas, sistemticas e verificadas.

    Resumamos: duas atitudes so possveis diante das

    individualidades que so os fatos histricos; podemosdesign- los e descrev- los: tal direito era o de Roma

    Antig a, prescrevia isto ou aquilo; tal imperialismo foi o

    de Roma, conquistou tal e qual provncia. Nesse caso, a

    originalidade incomparvel deste direito, deste

    imperialismo, nos escapa: apenas vagamente sentida, oque no nos impede de agir decididamente com ela, se ao

    menos lhe estivermos familiarizados; como se nos

    apresentassem um desconhecido, e nos dissessem

    somente seu nome e profisso: caberia a ns perceber,

    de acordo com sua fisionomia, a linguagem a adotar e os

    inconvenientes a evitar em relao a ele. A est a

    primeira atitude histrica. A segunda consiste em tentar

    explicitar a originalidade do desconhecido, encontrar

    palavras, conceitos, para transmiti- Ia, demarc- la em

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    relao caracterologia; em outras palavras, em relao

    a essas constantes que so os tipos caracterolgicos.

    Por que duas atitudes to desiguais diante das

    individualidades? Ainda aqui, Pariente ser nosso guia.

    Podemos individualizar de duas maneiras: usando noes

    do senso comum ou recorrendo a modelos cientficos.

    Para designar um indivduo, a linguagem corrente se

    utiliza de noes: isto uma mesa, um deus, um sistema

    de direito, acrescentando indicadores no- conceituais:

    a mesa do fundo, o deus Vulcano, o direito de Roma

    A ntig a. Inf elizmente, essas noes deix am escorreratravs de suas malhas a originalidade das coisas: nada

    mais semelhante a um direito do que um outro direito. A

    originalidade, em compensao, no nos escapar mais

    se dispusermos de um jogo de constantes, que

    manipulamos at que reproduzam as particularidades denosso indivduo; o direito romano, dentro da gama de

    comportamentos possveis diante das normas jurdicas,

    distingue- se por seu comportamento la Vaugelas e,

    bem entendido, por um grande nmero de outras

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    difer enas tambm. A o mesmo tempo, percebe- se que

    toda Histria, mesmo que no deliberadamente, torna- se

    uma Histria comparada; isto , uma Histria que separa,

    sabendo por que o faz; o direito romano conquista seu

    lugar numa tipologia dos diferentes direitos e se

    distingue deles por variveis originais, que, desta vez,

    sabemos exprimir com todas as letras.

    Conseqentemente, explicar de maneira cientfica os

    acontecimentos e individualiz- los e a mesma coisa: a

    Histria s chegar a explicitar a originalidade dos fatos

    submetendo- os s Cincias Humanas (sejam as que j

    existem, ou as que venham a existir).

    Se a Histria impe- se a tarefa de conceituar, a fim

    de delimitar a originalidade das coisas, ento, meus

    caros colegas, um duplo desespero se apodera de mim:

    tudo, ou quase tudo, est ainda por ser feito; a Histriaromana est para ser escrita, e vocs no devem contar

    comigo para isso. Vejo algumas rvores, no vejo

    nenhuma floresta. Confess o- me incapaz de situar o

    Estado romano, sua administrao, sua religio, e ainda o

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    que quer que seja, numa problemtica geral do

    funcionamento do Estado, das organizaes

    administrativas ou numa tipologia dos fenmenos

    religiosos. Ora, esta , entretanto, a verdadeira prova de

    que sabemos, enfim, o que e uma individualidade:

    podemos ver o lugar original que ela ocupa entre suas

    irms, e o jogo de variveis que permite reengendrar

    todas estas, com suas diferenas. mais fcil falar do

    que fazer, e onde iramos buscar auxlio? Junto

    Sociologia (a verdadeira, entenda- se)? Clausew itz levou

    30 anos para formular seu modelo conceitual do

    fenmeno guerra; os grandes tericos alemes do

    Estado, at Jellinek, levaram um sculo para definir o

    Estado moderno. Que no se atrevam, portanto, sem

    preparao, a dizer o que esta coisa que exigiu meio

    sculo de discusses, esta coisa chamada Estado, ou,

    mais simplesmente, territrio nacional... O ensino e o

    relacionamento entre os sexos so, certamente, questes

    da atualidade, que ocupam todas as vitrinas das livrarias;

    ora, que eu saiba, no existe qualquer teoria utilizvel

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    nestes assuntos, qualquer conceituao que, colocada

    prova da Histria, de conta dos fatos.

    Mas, afinal, j que pela ltima vez em minha vida,

    antes de me aposentar, estou sendo objeto de honras,

    permitam- me, para concluir, que eu me alongue sobre

    duas conseqncias da concepo conceitualizante e

    individualizante da Histria: dar cabo ao mito do perodo,

    e elucidar a diferena entre a Histria e a Sociologia.

    O mito do perodo nasce de uma dificuldade prtica

    e de uma impotncia. A dificuldade e em dominar a

    documentao, as lnguas e a bibliografia de mais de umacivilizao, dificuldade insupervel, se bem que se

    costume exagerar um pouco suas conseqncias. A

    impotncia est diante do fato de que o individual s

    limitado por meio de noes muito vagas e de um

    indicador, temporal: um imperialismo, o de Roma.

    Nesse grau de g eneralidade, tal imper ialismo se

    parece com todos os outros; para seriar os fatos

    individuais s resta, portanto, o indicador temporal: os

    acontecimentos sero ordenados e estudados segundo a

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    ordem do tempo; o que romano, ser colocado ao lado

    do que romano. Na pratica, isto significa que fatos

    perfeitamente heterogneos jorraro, uns aps outros,

    como num trabalho escolar: as instituies romanas, o

    direito romano, a economia, a cultura, as artes, a vida

    cotidiana... Tudo o que compe essa mixrdia adquire o

    mesmo ar familiar, ainda que no se diga exatamente

    qual; prpria mix rdia atr ibui- se um nome bem

    conhecido: civilizao. Um autor de sucesso, Toynbee,

    chegou ao zelo extremo de aventurar- se a contar

    quantas civilizaes havia na Histria; encontrou, se no

    me engano, vinte e trs...

    A bandonemos , de uma vez por todas, os per odos,

    as civilizaes, as histrias nacionais, ou antes, s lhes

    concedamos o que for requerido pelas exigncias da

    documentao, das lnguas e da bibliografia. Os fatoshistricos podem ser individualizados sem serem

    remetidos ao lugar que lhes corresponde num complexo

    espao- temporal; o direito romano no se encaix a num

    compartimento chamado Roma, mas adquire lugar entre

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    os outros direitos. Certa vez, a universidade fez misrias

    a meu amigo Le Roy Ladurie, ento professor de

    faculdade, porque ps em prtica esta idia simples e

    difcil. Os homens jamais perdero, provavelmente, a

    vontade de ouvir contar sua histria. Mas eu lhes

    pergunto: representem o ndice de assuntos de uma

    histria da humanidade ideal e suponham que os

    captulos tenham por ttulos no O Oriente, A Grcia,

    Roma, A Idade Mdia, mas, por exemplo, do poder por

    direito subjetivo ao poder por delegao, da economia

    como ativ idade no- essencial profiss ionalizao da

    economia, isolacionismo e pluralismo nas relaes

    internacionais; ser que eles no dariam mais vontade

    de comprar o livro, porque finalmente se poderia esperar

    compreender algo da aventura humana? Em alguns

    sculos, este livro poder ser escrito.

    Resumindo: preciso acabar com o relato contnuo.

    T anto pior para as leis dos g neros; arrisquemo- nos,

    romanticamente, a confundi- los. O continuum espao-

    temporal no passa de um quadro didtico a perpetuar a

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    tradio preguiosamente narrativa. Os fatos histricos

    no se organizam por perodos e povos, mas por noes;

    no tm de ser recolocados em seu tempo, mas sob seu

    conceito. Os fatos s possuem, ento, individualidade em

    relao a este conceito: conforme a problemtica

    escolhida, a individualidade poder ser tanto uma das

    crises ministeriais sob a Terceira Repblica, quanto a

    instabilidade ministerial em si (isto , todas as crises em

    bloco); concretamente, repetimos, os fatos no

    existem; logo, sua individualidade relativa, com a

    escala dos mapas de geografia. Ao mesmo tempo, a

    noo de Histria no- fatual torna- se mais clara, ass im

    como a diferena entre a Histria e as Cincias

    Humanas.

    A Histria, costuma- se falar , ocupa- se de fatos

    individuais, em oposio Cincia, que se ocupa doger al, Joo- sem- T erra esteve a em 1 215 : eis a a

    Histria, dizem - uma mnada ou substncia individual,

    um ponto no espao, um ponto no tempo.

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    Se isto o que se entende por individualidade, ento

    preciso explicar que a Histria, apenas

    excepcionalmente, se utiliza de tais individuaes; de

    fato, ela nunca as utiliza, malgrado alguns indcios, como

    Lus XIV, ou o 14 de julho de 1789 em Paris. Na maiorias

    das vezes, a Histria fala em instituies, costumes,

    sociedade, economias, sistemas de direito e fatos de

    mentalidade, que se constituem em individualidades

    somente num sentido relativo da palavra; so agregados

    ou entidades. A Histria no estuda o homem no tempo;

    estuda os materiais humanos subsumidos nos conceitos.

    Certamente, estes materiais comportam a temporalidade,

    j que so humanos : a His tria no estuda verdades

    eternas. Mas, ento, seria preciso definir a A stronomia

    como a cincia dos astros no espao, sob a alegao de

    que tais corpos s poderiam se encontrar no espao? Em

    realidade, invocar o tempo aqui apenas uma maneira

    inadequada de afirmar que a Histria deve ser o

    inventrio completo dos acontecimentos, que so, por

    sua vez, individuados pelo tempo.

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    A Histria no cincia dos indivduos humanos, e,

    alis, nem das sociedades. Se fosse cincia dos

    indivduos no sentido ltimo, e no somente relativo do

    termo, contaria, uma a uma, a vida dos camponeses sob

    Lus XIV, falaria sobre o casamento de Joo Gordo, de

    Toinon, de Pierrot; ela no faz nada disso, mas toma por

    objeto a paradoxal individualidade: o casamento entre os

    camponeses sob Lus XIV. Certo, a Histria tambm ter

    por objeto apenas o casamento de Lus XIV , mas este

    no se constituir em objeto histrico enquanto

    substncia humana, dotada de uma individualidade ltima

    e absoluta: ser objeto histrico enquanto individualidade

    relativa problemtica escolhida, que a Histria

    poltica - como rei, e no indivduo. Precisamos nos

    habituar idia de que a noo de individualidade

    relativa; como diz Pariente, ela possui, de fato, um grau

    ltimo; isto e, as pessoas, ou ainda, os dados espao-

    temporais. Mas a Histria jamais o emprega: se lhe

    acontece ter de falar de uma personalidade real, ou de

    uma batalha ocorrida num certo lugar e em certo dia, e

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    porque, em, relao Histria poltica, alguns homens

    tm uma importncia decisiva, e alguns instantes

    carregam conseqncias gigantescas e irreversveis;

    chamamos a estes instantes de acontecimentos, no

    sentido que a palavra tem nos jornais e entre os

    historiadores tradicionalistas. Os acontecimentos muito

    espordicos so uma falsa exceo que confirma a regra.

    A Histria faz pens ar nesses mapas de geog raf ia

    histrica, onde a Frana de Lus XIV representada

    numa escala de um para um milho; s que a um canto da

    pgina, num pequeno quadro, aumentou- se mil vezes o

    plano de Versalhes e seus arredores. Mas jamais a

    Histria executa esse mapa em seu verdadeiro tamanho,

    como ocorre num conto de Borges, em que ocupa uma

    superfcie ig ual a do pas que representa. A Histria no

    cincia do concreto; uma batalha, um rei enquanto rei,

    j so abstr aes; uma sociedade, tambm - no se pode

    fotograf- la da mesma forma que se fotografa uma

    paisagem.

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    A Histria pode ser definida como o inv entrio

    explicativo no dos homens ou das sociedades, mas

    daquilo que h de social no homem, ou, mais

    precisamente, das diferenas manifestadas por este

    aspecto social. Basta, por exemplo, que a percepo das

    cores seja diferente para as diversas sociedades (aos

    olhos dos gregos o mar era violeta) - ipso facto, as

    cores passaro a pertencer tanto Histria, quanto

    Psicologia; s vezes, essas diferenas so relativas aos

    acontecimentos, e se chamam Virglio, Augusto ou

    A ctium; trata- se a mais de uma conseqncia par ticular

    que da regra.

    Senhoras e senhores: recapitulemos e concluamos.

    A Histria congenitamente cientfica, no pode ser

    erudio inocente; existem relatos ingnuos, mas no

    puros: dizer que a guerra pnica foi uma guerra, j colocar imprudentemente os ps sobre um terreno

    minado, o da teoria das relaes internacionais. Por

    outro lado, a Histria cincia das diferenas, das

    individualidades, mas tal individuao relativa espcie

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    escolhida; pode oscilar entre Atenas e a cidade

    grega, ou mesmo a cidade antiga, em geral.

    Portanto, o individual e o geral no so absolutos.

    Como, ento, a Histria, conhecimento do particular num

    sentido relativo, pode ainda opor- se Sociologia, cincia

    do geral, num sentido igualmente relativo? Quando

    estudamos a cidade antiga, fazemos Histria ou

    Sociologia? Para finalizar, tentamos responder a esta

    questo. Existem diversos nveis de generalidade, e a

    cada um deles corresponde uma cincia; seus objetos

    so casos particulares somente em relao quela cinciasituada num nvel imediatamente superior.

    Isto v ale para a Histria e para a Sociologia. Por

    exemplo: a guerra pnica, explicada pela teoria da

    guerra, constitui- se, aos olhos do histor iador, num dos

    objetos especficos da cincia histrica. Aos olhos do

    socilogo, em compensao, a mesma guerra, explicada

    exatamente da mesma maneira, ser apenas um exemplo,

    que lhe servir para ilustrar um objeto prprio da

    Sociologia; isto , a teoria em si mesma. Notemos bem, a

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    explicao da guerra idntica nos dois casos: no h

    explicao histrica diferente da sociolgica; h apenas

    uma, nica e verdadeira: a explicao cientfica. O

    historiador e o socilogo escrevero exatamente a

    mesma pgina, s que atr ibuindo- lhe usos diferentes:

    para o primeiro, ela ser a meta de seu trabalho; para o

    ltimo, apenas um meio de ilustrar, com um ex emplo, a

    teoria da guerra, este sim seu objetivo. Conseqncia

    capital: o socilogo no se obriga a citar todos os

    exemplos, mencionar dois ou trs, no mximo. J o

    historiador tem por ofcio redigir o inventrio completo;

    para ele, uma guerra no se repete, mesmo que haja

    duas conceitualmente idnticas. Se fabrica, com cinco ou

    seis variveis, um modelo da monarquia por direito

    subjetivo, no lhe ser suficiente dar como exemplos

    Roma e a realeza do Antigo Regime: necessrio que

    fale tambm da Etipia, j que ex istiu - uma monarquia

    etope. A histria etope ser escrita, e ter seus

    especialistas; estes falaro dela para dizer, talvez,

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    exatamente a mesma coisa que diria um socilogo, mas,

    mesmo assim, eles falaro.

    Isso tem uma conseqncia divertida: fcil

    distinguir Histria e Sociologia; em compensao,

    freqentemente impossvel distinguir um livro de Histria

    e um de Sociologia; de fato esta impossibilidade que

    permite reconhecer uma boa monografia histrica, por

    exemplo, Le Phnomne Bureaucratique, de Michel

    Crozier: consistir numa sociologia da burocracia,

    ilustrada com um ex emplo histrico - o dos burocratas

    franceses? Ou ser uma histria dos burocratasfranceses, explicada atravs da sociologia da burocracia?

    Muito esperto quem o souber, e poderamos apostar que

    o autor mesmo nada sabe a respeito; no h elogio mais

    belo do que este. Isto sugere que o prprio historiador

    poder fazer descobertas sociolgicas, fabricando para sia sociologia de que precisar, quando no a encontrar j

    pronta.

    H algo ainda mais curioso: se Histria e Sociologia

    permanecem distintas, no porque a segunda fala de

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    generalidades e a primeira cincia do singular, no se

    repetindo jamais; a verdadeira razo exatamente

    inversa. Suponhamos, com efeito, que a Histria no se

    repita, e que cada acontecimento seja uma espcie nica,

    como cada anjo para So Toms. Nesse caso, Histria e

    Sociologia tratariam dos mesmos assuntos e se

    confundiriam; teria havido no mundo somente uma

    monarquia por direito subjetivo; a da Etipia, por

    exemplo. A espcie chamada Guerra preventiva

    localizada, que ser suficiente no se perder para que

    reavive uma retificao de fronteiras, gerando um

    isolacionismo, que ev itar um conflito no- localizado,

    que seria preciso ganhar positivamente por knock- out

    seria representada por uma guerra nica atravs dos

    sculos, a primeira guerra pnica; o fenmeno a cidade

    como meio de max imalizar as inter- relaes de uma

    classe de notveis com ganhos patrimoniais existiria

    apenas num exemplar, a China (desde que no seja Roma

    ou a Inglaterra moderna). T ais fenmenos poderiam ser

    indiferentemente expostos segundo a ordem das razes,

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    do tempo... ou alfabtica. Histria e Sociologia

    coincidiriam tanto em extenso como em compreenso; a

    performance histrica no seria mais extensa que a

    competncia terica: nada se repetiria, porque tudo

    seria hpax.(* ) Mas nada disso ocorre. A ssim, a Histria

    difere da Sociologia pela simples razo de que a Histria

    se repete.

    Podemos, ento, dar o nome de cincia Histria.

    Esta, dizamos, e o inventrio explicativo completo das

    individualidades de seu nvel, pois h diversos nveis de

    individuao. Mas, sendo assim, se poderia dizer omesmo de qualquer cincia, a comear pela Fsica. Pois

    ela tambm espera explicar os fatos de seu nvel,

    ex plic- los todos; algum imagina que um fsico decrete

    que sua cincia no se ocupar de tal ou qual fenmeno

    fsico?

    Uma certa epistemologia deixou- se obscurecer,

    erroneamente, por duas idias: a de que a Cincia era um

    * Hpax - do grego hapax legomenon: cois a dita uma s v ez ,designa toda situao ou objeto de que se conhece apenas um exemplo. (N.do T.)

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    corpo de leis ou tendia a s - lo, e a de que os f atos

    histricos eram singularidades que se oporiam ao geral.

    Mas falso que a Fsica seja um corpo de leis, ou, ao

    menos, que seja apenas isso; e, na medida em que venha

    a s- lo, o fato no se deve sua natureza de cincia,

    mas a uma particularidade das individualidades de seu

    nvel: os fenmenos fsicos podem formar sistemas

    fechados. Resta que, como cincia, o inventrio

    explicativo desses fenmenos, e, para ela, dois deles no

    so iguais por se submeterem a uma nica e mesma lei.

    Ela no se reduz, por exemplo, ao conhecimento das

    equaes de Maxwell; consiste em saber tambm da

    existncia de diferentes fenmenos, como a eletricidade,

    o magnetismo e a luz, ainda que todos eles sejam regidos

    por essas mesmas equaes. Isto no quer dizer que

    sejam iguais, e, afinal, o magnetismo poderia no existir.

    Ser o conhecimento das diferenas fsicas no torna a

    Fsica menos cincia. Da mesma forma a Histria,

    inventrio explicativo das diferenas sociais,

    jus tamente por isso a cincia das diferenas sociais .

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    Pois no se deve fazer como Rickert ou Windelband;

    no se deve opor o particular e o geral de modo

    absoluto, instaurando uma dicotomia: de um lado a

    cincia das leis ou nomografia, e de outro o

    conhecimento das individualidades, ou idiografia. A tal

    classificao binria poderia vantajosamente suceder

    uma classificao por nveis, j que em seu prprio nvel

    cada cincia possui simultaneamente os dois princpios:

    explicar e explicar tudo. As diferenas s se diluem no

    nvel superior. Disseram que a Fsica se ocupa da queda

    dos corpos, e zomba das quedas dos corpos singulares, a

    queda de cada folha a cada outono, enquanto a Histria

    se ocupa dos fatos singulares. um, erro, pois, o que

    corresponderia queda de cada folha no o

    acontecimento histrico, como, por exemplo, o

    casamento no sculo XVII ou em outros, mas sim o

    casamento de cada um dos sditos de Lus XIV... Ora, a

    Histria se ocupa disso tanto quando a Fsica da queda

    de cada um dos corpos...

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    O que confundiu tudo que a individualizao dos

    fatos histricos e sui generis: deve- se a uma

    temporalidade abstrata, o que fez pensar erroneamente

    que a Histria era conhecimento das individuaes

    espao- temporais, o mesmo que dizer do concreto, do

    fluxo das percepes! No perceberam que a

    temporalidade histrica era uma construo em escala

    varivel, funcionando como um filtro; cada problemtica

    com sua temporalidade, as crises ministeriais ou a

    instabilidade ministerial em bloco.

    T ratando- se de fenmenos, espcies ouacontecimentos, a questo a mesma, e parece atual: o

    individual o qu? Ser a queda dos corpos e o

    casamento sob Lus XIV, ou a queda de cada um dos

    corpos e o casamento um a um? Problema capital para a

    epistemologia a Cincia apenas do geral) e para oestatuto da Histria, desde que esta ltima deixe de se

    tomar pelo relato da evoluo dos povos ou das

    civilizaes e se aceite como aplicao das Cincias

    Morais. Problema sociolgico tambm; o da ontologia dos

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    coletivos: existir a burguesia francesa, ou apenas

    burgueses e franceses? , enfim, o que se chama de

    estruturalismo: o homem no simplesmente o

    entrecruzamento das redes que o constituem? Ser ele

    um objeto arbitrariamente recortado, como as

    constelaes sobre o campo das estrelas? Todos esses

    dilemas deixam de ser penosos quando admitimos que o

    individual e o geral no existem objetivamente, que no

    h, absolutamente, indivduos, mas apenas individuados

    em relao- a um certo nvel adotado.

    Conseqentemente, a relao entre cincias denveis diferentes varia em extenso e compreenso.

    Entre a Biologia e a Zoologia, a relao no

    provavelmente a mesma que entre a Fsica e a

    A str onomia. A Biolog ia, parece- me, tr ata de certos

    aspectos dos seres vivos, apenas, enquanto que a Fsicano trata dos aspectos dos corpos celestes, unicamente,

    mas de todos os corpos, astros ou pndulos. Tudo o que

    pertence Histria, pertence tambm s Cincias Morais

    e Polticas, mas a recproca no verdadeira: a

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    percepo das cores interessa de formas diferentes a

    esses dois nveis cientficos, mas o efeito Asch ou o

    efeito Sherif pertencero somente Cincia Moral

    chamada Ps icossociologia - ao menos enquanto no se

    descobrir que eles variem social e culturalmente, como

    de resto se pode prever.

    Finalmente, se me permitem passar s confisses

    espontneas, no podemos nos impedir de pensar que,

    em Histria, as questes, que so sociolgicas, importam

    mais que as respostas, efetivamente sociolgicas. Certo,

    seria importante, por exemplo, saber se o crescimentono Imprio Romano se explica pelo modelo econmico de

    Harrod e Domar, ou por uma melhor alocuo marginal

    de recursos, ou, ainda, simplesmente por facilidades

    fiscais; mas, qualquer que seja a resposta, o essencial

    no, pensar em formular a questo? Em outraspalavras, mais importante ter idias do que conhecer

    verdades; e por isso que. as grandes obras filosficas,

    mesmo quando no confirmadas, permanecem

    significativas e clssicas. Ora, ter idias significa tambm

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    dispor de uma tpica, tomar conscincia do que existe,

    ex plicit- lo, conceitu- lo, arranc- lo mesmice,

    Fraglosigkett, Selbstndigkeit. deixar de ser inocente,

    e perceber que o que poderia no ser. O real est

    envolto numa zona indefinida de compossveis no-

    realizados; a verdade no o mais elevado dos valores

    do conhecimento.

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    S O B R E O A U T O R

    Paul Veyne, especialista em histria da Antigidade

    greco- romana, nasceu em 1930, na Frana. Publicou, na

    coleo Univers Historique, um ensaio de

    epistemologia histrica, Comment on crit lhistoire(1971), e um ensaio sobre o poder poltico, Le Pain et le

    Cirque. Coordena, com Michel Foucault, a coleo Des

    Travaux, da Seuil.