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Há Dez Mil Anos Pelo espírito Zílio Relato de lembranças de uma vida passada. Nelson Moraes

Há Dez Mil Anos

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Há Dez Mil AnosPelo espírito Zílio

Relato de lembranças de uma vida passada.

Nelson Moraes

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SuMáRio

PRIMEIRA PARTE Vida Nova

Na Ilha Pequena

SEGUNDA PARTECompromisso Estranho

No Templo Dos Sacrifícios

Perante o Conselho

TERCEIRA PARTENo Ritual

Estranha Descoberta

Executando O Plano

A Expansao Dos Ribuths

Considerações

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PRiMeiRA PARTe

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Agora que estou relativamente adaptado à minha condição de espírito desencarnado, tenho me empenhado em me aproximar dos encarnados que evocam meu nome. Faço a título de aprendi-zado, porque o máximo que posso fazer por eles é interceder para que os benfeitores os ajudem. Na maioria, são amigos que me pedem uma prova da vida eterna, outros me evocam pedindo ajuda para compor músicas. É um número muito grande de pedidos, alguns até curiosos e estranhos, mas ale-gra-me sentir que todos chegam até mim revestidos de muito carinho.

O que tem sido difícil para mim é conviver com a saudade dos dias felizes que vivi com os entes queridos. Quantas vezes tenho abraçado cada um deles sem conseguir me fazer sentir em seus

ViDA NoVA

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corações, exceto aqueles que me foram mais próxi-mos e continuam me amando. Para alguns a mor-te apagou meus registros, lançando-me no esqueci-mento. Aliás, no mundo das ilusões, sempre acaba permanecendo o mito e desaparecendo o homem. Essa é a herança da maioria dos artistas que não souberam usar a arte com sabedoria. Quase todos, ao atravessarem os portais da morte, são transferi-dos das luzes da ribalta para as sombras da solidão, acabam enxergando a si mesmos e descobrindo os caminhos que conduzirão ao verdadeiro sucesso.

Hoje me sinto muito feliz quando deparo com um encarnado lendo meus depoimentos, muito mais do que quando encontro executando minhas músicas. Aos poucos estou alcançando o sucesso, não mais o sucesso do mito, mas sim o do ser huma-no que sou. Espero que aqueles que hoje são fãs do mito ao lerem meus depoimentos, venham se tor-nar fãs da verdade e daquele que realmente merece nossa gratidão e reconhecimento. Um dia, Ele será seguido como o grande ídolo da humanidade.

Acompanhando os leitores que leram meus depoimentos, percebi que na maioria deles paira uma expectativa de novas informações a meu res-

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peito, principalmente sobre minhas vidas pregres-sas. A curiosidade em saber sob o pretérito também me dominou durante longo tempo, esforçava-me todos os dias para acionar minhas lembranças. Muitas foram surgindo fragmentadas e obscuras, causando-me algumas alterações psíquicas, como ansiedade e uma euforia exagerada. Porem, não desisti, continuei exercitando a concentração pro-funda conforme Felipe havia me orientado, até que consegui resgatar uma grande parte de meu pas-sado distante. Foram necessários alguns meses de reflexões profundas para me refazer dos efeitos causados por essas recordações. Algumas me pro-porcionaram muitas alegrias, outras me fizeram viver momentos de angustia e de profunda depres-são. Mais tarde, depois de me refazer desse impac-to, peregrinei por diversas colônias buscando uma integração maior com o movimento de comunica-ção com os encarnados, onde colhi valioso apren-dizado a respeito.

Segundo Venâncio, o diretor da Estância de Amor, a comunicação com os encarnados deve atender aos propósitos da informação e do esclarecimento, a fim de conscientizá-los de suas

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responsabilidades perante as leis divinas e ajudá-los a desenvolver o amor em seus corações. Orientou-me que podemos usar os recursos da dramaturgia na literatura, mas desde que não venham empanar seus elevados propósitos.

Fui autorizado a passar algumas dessas lem-branças para o médium, no intuito de mostrar ao leitor que o tempo, para o espírito, tem um signi-ficado muito relativo e que o passado, mesmo dis-tante, pode estar presente e influenciar na constru-ção do futuro, da mesma forma que acontece no tem transitório da vida física, onde, muitas vezes, fatos ocorridos em nossa infância acabam influen-ciando a formação de nosso caráter ao nos tornar-mos adultos.

Os leitores que conseguiram me identificar vão observar que muito do meu passado distan-te se identifica com certas atitudes e comporta-mentos que adotei em minha recente encarnação. Agora compreendo que a infância do espírito atra-vessa inumeráveis séculos compondo os milênios na eternidade da vida, onde, na forjá do tempo, alguns milhares de anos representam apenas um curto período na evolução do espírito eterno. Os

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acontecimentos aqui narrados tiveram como palco um lugar distante nos séculos que, absorvido pelas transformações físicas de nosso planeta, há muito muito deixou. Fazer parte da paisagem terrestre. Não é uma revelação histórica sobre tempo ou luga-res. Descrevo alguns dos momentos vividos por mim e pelos espíritos envolvidos, focalizando ape-nas os principais acontecimentos que culminaram com os grandes equívocos que cometemos quan-do dominados pela impiedade, os quais acabaram gerando marcas profundas em meu subconsciente, dificultando minha ascensão espiritual.

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“Quando ignoramos a realidade à nossa volta, nos tornamos

escravos das ilusões!”

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Eu e meu irmão Zirat vivíamos em uma peque-na ilha situada entre outras tantas que faziam par-te de um arquipélago. Ao norte, distante de nossa ilha, existia uma outra muito maior chamada Ilha Grande. No topo dessa ilha havia uma grande cida-de chamada Zantar. Sabíamos que ela existia por-que nosso pai vivia lá e quando nos visitava perio-dicamente, falava dessa grande cidade e de suas riquezas. Nossa mãe fazia parte do templo Guardi-ões da Vida. Eu e Zirat passávamos o dia caçando pequenos animais, os quais negociávamos na Pra-ça das Barganhas, onde todos os dias se reuniam os mercadores. Os habitantes da ilha que moravam próximos as praias viviam da pesca. A maioria cul-tuava a crença nos Guardiões da Vida, representa-dos por imagens esculpidas em grandes pedras.

NA ilHA PeQueNA

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A cada dois ciclos da lua, faziam suas oferen-das no templo construído na parte mais alta da ilha. Zirat, mais velho do que eu, era forte e inte-ligente, vivia sonhando que um dia partiria para a Ilha Grande, onde acreditava que iria realizar seus sonhos. Era diferente de mim. Eu não nutria nenhum sonho, tornara-me um jovem amargo des-de o dia em que, aos dez anos, ao retornar da caça, deparei com meu pai e minha mãe mortos e esquar-tejados. O tempo passou. Cresci ao lado de Zirat, que me ensinou tudo o que eu precisava saber para continuar sobrevivendo à dor que se abatera sobre mim.

À medida que o tempo passava, o numero de habitantes de nossa ilha foi se multiplicando. As encostas estavam tomadas pelas plantações, porem, em vista do crescimento da população, era muito pouco o que produziam. O consumo havia aumen-tado em demasia, a fome começava a afligir uma grande maioria dos habitantes. Todos os dias par-tiam pequenas embarcações levando os moradores que se aventuravam a mudar para outras ilhas. A caça se tornara escassa e enfrentávamos serias difi-culdades para sobrevivermos.

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Certa manhã, acordamos com uma grande gri-taria. Fomos para fora e vimos todos os morado-res correndo pelas ruas. Estavam assustados, algo de estranho estava acontecendo. Os animais das florestas próximas às praias haviam subido para o topo da ilha, invadindo o centro comercial e as residências. As víboras rastejavam por toda a parte, atacando as pessoas e inoculando venenos mortais. Os cães uivavam e latiam desesperados, o panico era geral. Ninguém entendia o que estava aconte-cendo, até que o zelador do templo começou a gri-tar do alto da torre:

– O mar está invadindo a ilha! Estamos sub-mergindo!

Meu irmão Zirat, ao ouvir o zelador, puxou-me pelo braço e saímos correndo em direção ao norte da ilha, onde ficavam as pedras sagradas que representavam as figuras dos Guardiões da Vida. Quando chegamos na parte alta, avistamos as águas do mar se sobrepondo às árvores, cobrindo toda floresta. Entramos em uma pequena caverna que se localizava sob os pés de uma das esculturas dos guardiões de pedra. A entrada estava oculta pela folhagem que pendia sobre a encosta. Meu

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irmão guardava ali uma canoa. Fiquei surpreso ao vê-la, pois ninguém da parte alta da ilha possuía qualquer tipo de embarcação, apenas os habitantes das praias é que as possuíam. Suspeitei que ele já havia previsto com antecedência o que estava acontecendo. Percebendo minha admiração, explicou-me:

– Zílio, desde quando nosso pai foi morto ele tem se comunicado comigo. não faz muito tempo, mandou-me guardar uma canoa neste lugar. Agora compreendo qual era o motivo. Ele sabia que, a qualquer momento, isso viria a acontecer.

– Espere, vou até nossa casa. Preciso pegar o medalhão que nossa mãe me deu, é a única coisa que temos de valor. Se nos salvarmos, talvez venha-mos a precisar.

– Nada disso! Vamos! Resta-nos pouco tempo e não podemos nos arriscar. Vamos!

Zirat estava certo. Pegamos a canoa, os remos e nos lançamos ao mar. Por pouco não fomos impe-didos pelas águas que roçavam nossos pés.

Depois de algum tempo que levamos para controlar a canoa, olhamos para trás e vimos o

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povo se espremendo sobre as coberturas das casas. Muitos dos barcos pertencentes aos moradores das praias estavam espalhados sobre as águas, quase todos vazios. Percebemos que o acontecimento inesperado surpreendeu a grande maioria dos habitantes da orla. Tentamos rebocar algumas embarcações e conduzi-las até as pessoas que estavam sobre os telhados, porém o mar e os ventos estavam muito agitados e não conseguimos controlar a canoa. Desistimos.

Remamos até o anoitecer. A Ilha Grande ain-da estava muito longe e, cansados, deixamos a canoa seguir à deriva. Nossa esperança era que o vento continuasse soprando em direção ao nor-te, pois, com isso, poderíamos estar próximos de nosso destino ao amanhecer. A lua nova não refle-tia a luz do sol e a noite derramava a escuridão sobre a Terra. não enxergávamos um ao outro. O barco era pequeno e, com muita dificuldade, conseguimos nos acomodar de modo que pudésse-mos descansar.

Acomodados e mais tranquilos, acabamos adormecendo ao balanço das ondas.

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Acordamos com o calor do sol aquecen-do nossos rostos. O vento nos fora favorável e o canto dos pássaros soava como uma melodia para nossos ouvidos! Estávamos próximos da Ilha Grande! Podíamos enxergar suas praias, estavam desertas. Começamos a remar, minhas mãos esta-vam doloridas, eu nunca havia remado tanto. Meu irmão procurava me animar:

– Vamos, falta pouco! Logo chegaremos em terra firme!

A maré havia se acalmado, mas apesar de nosso esforço, não conseguíamos sair do lugar, o mar tentava nos arrastar de volta para sua imensidão. Depois de muito esforço, finalmente chegamos em terra firme. Estávamos extremamente cansados. Deitamos na areia e ali ficamos por longo tempo, quando aproveitei e fiz algumas perguntas para Zirat:

– O que mais nosso pai falou?

– Disse-me que eu deveria cuidar de você e que, juntos, um dia iríamos realizar um trabalho muito importante.

– Não fosse por ele estaríamos mortos. Apesar

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que, para mim, pouco importa viver ou não, nada me atrai neste mundo.

– Zílio, você é jovem, forte, sadio e inteligente. Por que guarda tanta revolta no coração?

– Não sei. Sinto falta de alguma coisa que nem eu mesmo sei o que é.

– Ouvi dizer que aqui na Ilha Grande existe um povo estranho, mas muito rico e com mulheres bonitas. Quem sabe vai encontrar aquilo que falta para você ser feliz.

– Se o nosso pai falou com você, é sinal está vivo em algum lugar. Onde é esse lugar em que vivem os mortos?

– Existem muitos lugares onde eles vivem. Nosso pai não me disse onde esta vivendo, mas me informou que os mortos, embora nós não possa-mos vê-los, possuem corpos iguais aos que tiveram quando vivos e que muitos andam a nossa volta e convivem com os vivos sem que estes percebam. Disse ainda que eles podem nos ajudar ou até nos prejudicar.

– Então os guardiões da vida que o povo cul-tua existem de verdade?

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– Sim! Talvez sejam os que morreram de nosso povo que continuam zelando pelos que ainda estão vivos. As oferendas depositadas no templo deve agradá-los, por isso cuidam do povo da ilha.

– Cuidavam, porque o povo de nossa ilha já não existe mais. Uma coisa é certa: só vou acreditar quando ver um!

Percebi que meu irmão não gostou muito de minha resposta, mas eu não conseguia entender que alguém, depois de morto e cujo corpo foi dila-cerado da forma como foram os de minha mãe e de meu pai, pudesse estar vivo em algum lugar. Zirat tentava me convencer:

– Zílio, talvez você não saiba, mas nosso pai tinha poderes sobre os vivos e sobre os mortos. Pouco antes de ser morto, falou-me de uma sei-ta que existe na Ilha Grande, cujos membros con-seguem transformar os pesadelos em sonhos e os sonhos em pesadelos, as pedras em ouro e a água em pedras preciosas! Olhe! Esta pedra esculpida é o símbolo dessa seita, é o nosso passaporte para entrarmos nela como iniciados. Se conseguirmos chegar até la, então teremos tudo o que um homem

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poderia desejar!

– Nosso pai fazia parte dessa seita?

– Sim! Eu acho que nosso pai era um dos gran-des. Liburc, o sacerdote do Templo do Sol, o mais poderoso da Ilha Grande, perseguiu-lhe até forçá-lo a voltar para junto de nós, refugiando-se na ilha onde vivíamos. Insatisfeito, Liburc mandou seus guardiões até nossa casa para matá-lo.

– Eu me recordo do dia em que estávamos vol-tando da caça e, ao chegar em casa, vimos nossos pais degolados e esquartejados. Pensei que uma fera os tivesse atacado.

– E, Zílio, você tinha apenas dez anos. Lembro-me quando olhou para mim e disse “Coitados! Algum animal passou por aqui”. Realmente os guardiões de Liburc são como animais. Quando são encarregados de executar alguém, não hesitam em aplicar a crueldade.

– Não gosto de lembrar desse dia. Meu cora-ção dispara, ameaçando sair pela boca. Então foi esse sacerdote que mandou matar nossos pais?

– Sim! Temos que tomar cuidado para não ser-mos descobertos por seus guardiões, senão estare-

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mos mortos.

– O que vamos fazer? Como vamos encontrar o lugar onde se reúnem os membros dessa seita?

– Antes de tudo, vamos procurar alguma coisa para comer. Estou com sede e fome!

Levantamo-nos e começamos a caminhar bei-rando a mata que circundava as praias. Procuramos durante longo tempo por alguma coisa que pudes-se nos servir de alimento. Nada encontramos. Con-tinuamos caminhando, até chegarmos a um enor-me rochedo que se estendia até o mar, dividindo a praia. Ao lado, corria um riacho de águas crista-linas, onde saciamos nossa sede. Depois, continu-amos. Ao passarmos por entre as rochas menores, semi-encobertas pela água e enfileiradas no final do rochedo, encontramos centenas de mariscos que nos serviram de alimento.

Já havíamos comido bastante quando ouvi-mos alguns gritos de desespero. Meu irmão imedia-tamente colocou sua mão em meu ombro e forçou a abaixar por entre as rochas.

Ficamos escondidos e atentos. Através do vão que havia entre as rochas, vimos alguns homens

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do outro lado dos rochedos, armados com espadas e atacando mais de uma dezena de sobreviventes nossa ilha que acabavam de aportar na praia. Após chaciná-los, marcharam na direção de onde estáva-mos escondidos. Imediatamente, meu irmão come-çou a recolher as cascas dos marisco que comemos, olhou para mim e fez um sinal para que eu fizesse o mesmo.

Depois de recolhermos o indício de nossa pre-sença, saímos correndo beirando o rochedo e entra-mos na mata. Assustados, começamos a subir a encosta acompanhando o curso do riacho. O chão era íngreme. Subíamos durante o dia e descansávamos a noite. A sorte nos favoreceu, pois conseguimos aba-ter um pequeno animal que garantiu nossa provisão durante a escalada.

Depois de dois dias e uma noite, encontramos uma trilha que nos conduziu até uma enorme cla-reira que ficava ao lado da nascente do rio. O lugar parecia ser muito usado pelos habitantes da ilha. No Centro da clareira havia resíduos de uma gran-de fogueira, os vestígios demonstravam que alguém usava constantemente aquele lugar. Do alto daque-le platô, podíamos avistar o mar. Havíamos subido

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bastante e finalmente estávamos próximos do topo da ilha. Olhando para a imensidão do mar, Zirat me chamou para junto dele e, apontando para a dire-ção de onde se localizava nossa ilha, afirmou:

– Olha! Não foi apenas nossa ilha que submer-giu, as outras, que ficavam ao sul e ao leste, tam-bém desapareceram.

– O que sera que causou essa tragédia?

– Ninguém poderá explicar. Parece que o mun-do está se acabando aos poucos.

Zirat juntou uns gravetos que estavam espa-lhados naquele lugar e acendeu uma pequena fogueira. Assamos uma parte do animal que havía-mos abatido. O sol estava a prumo. Comemos parte da carne e improvisamos um varal sobre a foguei-ra, onde penduramos o restante para defumar, pois não sabíamos o que nos aguardava dali para frente. Estávamos nos acomodando sobre algumas folhas secas para descansarmos quando ouvimos um barulho na mata em torno da clareira. Imedia-tamente deitamos e ficamos em silêncio, simulan-do que estivéssemos dormindo. Colocamos o bra-ço sobre o rosto de forma que pudéssemos ocultar

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nossos olhos e ficamos vigiando local de onde viera o barulho que ouvimos.

Passado algum tempo, vimos uma mulher se aproximando sorrateiramente da carne que estava pendurada sobre a fogueira. Meu irmão em deter-minado momento, levantou-se rapidamente e se atirou sobre ela, dominando-a completamente. Era uma jovem aparentando uns dezoito anos, de quem me aproximei. A sujeira em seu rosto e as roupas rasgadas e sujas demonstravam que deveria estar vagando por muito tempo. Zirat a soltou e ela per-maneceu diante de nós. Peguei a faca, cortei uma tira da carne e dei para ela. Da forma como levou a boca, percebemos que não se alimentava há dias. Comeu vários pedaços, olhando-nos desconfiada. Percebia-se que estava tomada completamente pelo medo. Depois de comer bastante, respirou fundo e olhou para a queda d’água, insinuando que estava com sede. Peguei-a pelo braço e a conduzi a nas-cente. Ao nos aproximarmos da água, ela se atirou no tanque formado pelas pedras que circundavam a cachoeira e, a medida que a sujeira se dissolvia sob o influxo da água, seu rosto surgia, revelan-do uma beleza ímpar. Seus cabelos, antes embara-

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çados, agora cediam lugar a uma vasta cabeleira negra pendendo sobre seus ombros bronzeados. A roupa molhada delineava as formas de um corpo cuja beleza eu jamais havia visto nas mulheres de nossa ilha. Seus dentes pareciam de puro marfim. Estava extasiado a observa-Ia quando falou pela primeira vez:

– Quem são vocês?

Ainda em devaneio, não consegui responder. Até que ela jogou um pouco de água em meu rosto, sorrindo, perguntou novamente:

– Quem são vocês?

– Eu sou Zílio. E aquele é meu irmão Zirat. E você, quem é?

– Eu sou Zaíra. Os Ribuths me raptaram quando ainda era criança e me trouxeram da ilha pequena onde eu morava. Desde então, tornei-me prisioneira deles.

– Nós também somos da ilha pequena, conse-guimos nos salvar. Quem são os Ribuths?

– Eles são poderosos feiticeiros e adversários de Liburc. Eu fui designada para o sacrifício, mas consegui fugir.

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Ao ouvir seu depoimento, meu irmão foi até o alforge, retirou uma pedra com um desenho escul-pido, aproximou-se e mostrou a ela. Depois per-guntou:

–Você conhece este símbolo?

Zaíra colocou as mãos no rosto e, assustada, afirmou:

– Esse é o símbolo deles.

Eu procurei acalmá-la, colocando meu braço sobre seus ombros, mas ela se esquivou e começou a gritar:

– Vocês são Ribuths! Vocês fazem parte dos Ribuths!

– Calma! Nós nem conhecemos os Ribuths. Venha, vamos conversar, sente-se aqui.

Demonstrando visível receio, aproximou-se de nós. Sentamos nas pedras e meu irmão começou a falar:

– Não tenha medo, nós somos amigos. Nos-sa ilha afundou no mar, talvez sejamos os únicos sobreviventes. Precisamos nos unir. Esta pedra foi dada a mim pelo meu pai, ainda não sabemos de nada sobre ela. Se você sabe alguma coisa, deve nos

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esclarecer.

Zaíra pegou a pedra na mão, examinou-a depois esclareceu:

– Pedras iguais a essa são usadas pelos membros da seita dos Ribuths. Os três pontos esculpidos sob o símbolo da lua cheia significam que o membro que usava essa pedra fazia parte do conselho que compõe a hierarquia suprema.

– Então isso que dizer que o nosso pai era um dos grandes? - perguntou Zirat.

– Sim! Só os membros do conselho a possuem – confirmou Zaíra.

– Onde podemos encontrar os Ribuths?

– Eles vivem por trás das Muralhas do Medo. Ninguém se atreve a chegar até lá. Somente os adeptos é que têm acesso livre e apenas em deter-minado ciclo da lua. Os poucos que se aproxima-ram a mando de Liburc para investigar jamais vol-taram.

– Como conseguiu fugir?

– Em todas as primeiras noites do ciclo da lua nova, os portões das Muralhas são abertos para os agricultores, caçadores e comerciantes que estão

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submissos a ordem dos Ribuths. Nesses dias de lua nova, eles trazem suas oferendas até o templo de Butsá e recebem a consagração dos sacerdotes supremos que, com a magia dos Ribuths, dizem garantir a abundancia para todos. Numa dessas noites, a escrava que cuidava de mim me ajudou fugir da cela, que fica no templo das vítimas. Ao sair, escondi-me no depósito de viveres e, aprovei-tando o movimento de entrada e saída dos adeptos, consegui escapar caminhando tranquilamente por entre a multidão.

– O que fazem os Ribuths?

– Eles são poderosos. Dizem que nos ritu-ais que praticam durante a lua cheia, conseguem transformar pedra em ouro e a água em pedras pre-ciosas. E mais: com a força que possuem, não preci-sam pegar em armas, são capazes de derrotar seus inimigos à distância, disseminando pestes e doen-ças. A cada cinco ciclos da lua cheia, sacrificam uma virgem como tributo as forças que os auxiliam em suas empreitadas sinistras.

– Este lugar onde estamos fica muito longe de onde vivem os habitantes da ilha?

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– Estamos próximos da região agrícola cidade de Zantar, onde fica o centro comercial da ilha. Está há uns dois dias daqui. Antecipando-me ao meu irmão, perguntei:

– Você nos levaria até lá?

– Eu tenho ido lá as escondidas, não posso me expor. Se eu for reconhecida por algum dos espi-ões dos Ribuths, poderei ser morta ou levada nova-mente para o templo das vitimas, a fim de ser sacri-ficada nos próximos rituais.

Zirat olhou para mim e fez um sinal para eu pegar o alforge que ele havia deixado próximo a fogueira. Eu o peguei e entreguei a ele, que rapi-damente o abriu e retirou de dentro dele uma pequena pedra esculpida com o nome Sidrac. Virou-se para Zaíra e lhe perguntou:

– Você já ouviu falar de um homem chamado Sidrac? Precisamos encontra-lo! Ele é quem deverá nos ajudar a chegar até os Ribuths.

O sol já havia se posto. A noite estava próxi-ma e resolvemos ficar por ali até o amanhecer. Zaí-ra concordou e nos fez um sinal para segui-la. Ela nos conduziu até um abrigo natural em um oco da

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montanha, oculto pelas folhagens. Ali descansamos até o amanhecer. Na madrugada, ouvi meu irmão conversando com alguém. Parecia estar sonhan-do, pois Zaíra dormia profundamente. Com quem poderia estar conversando?

Amanheceu. Zaíra já havia saído do abrigo meu irmão continuava dormindo. Sai à procura dela e fiquei surpreso ao vê-la banhando-se nova-mente nas águas do tanque. Aproximei-me ela sor-riu para mim. Seu sorriso possuía um encanto que envolvia todo o meu ser, seu olha era cheio de ter-nura e meiguice. Eu me sentia embaraçado dian-te dela, mas procurava agir naturalmente tentando disfarçar o meu constrangimento. Após o banho, ajudei-a a se vestir. Sentamos e conversamos bas-tante. A medida em que ela falava, eu observava o movimento de sua boca e de seus olhos, tudo nela era perfeito. Senti que estava apaixonado e o pior é que eu não sabia como lidar com esse sentimento que havia me tomado pela primeira vez. Eu jamais vira uma mulher tão bonita como ela. As mulheres da ilha onde vivi eram pouca coisa diferente dos homens, seus corpos musculosos desenvolvidos no trabalho pesado da agricultura e da pescaria torna-

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vam-nas semelhantes a eles. Ficamos ali nos con-templando até que meu irmão apareceu:

– Então? Vamos partir?

Levantei-me, peguei-a pela mão e partimos.

No caminho, meu irmão começou a falar do sonho que tivera durante a noite:

– Esta noite sonhei com nosso pai. Ele me orientou que devemos ir o mais rápido possível ao encontro de Sidrac. Disse-me que podemos encon-trá-lo na Praça dos Tributos, na loja do armeiro. É para la que temos que ir. Você conhece esse lugar? – perguntou para Zaíra.

– Jamais estive na Praça dos Tributos, mas sei onde fica, estive perto de lá muitas vezes às escon-didas e em busca de alimento.

– Há quanto tempo você está foragida?

– Faz algumas luas. não sei ao certo.

Seguimos conversando. Ao fim do dia, estáva-mos próximos de uma grande propriedade rural, Zirat sugeriu que devíamos pedir pousada ao pro-prietário. Eu e Zaíra concordamos. Aproximamo-nos e fomos recebidos por um homem que cuidava das ovelhas no curral perto da entrada. Falamos de

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nossa intenção de passar a noite ali e ele nos rece-beu muito bem e mandou entrar dizendo:

– Entrem! O senhor destas terras terá grande prazer em recebê-los!

Ele caminhou a nossa frente e nós o seguimos até a casa que ficava retirada da estrada. Abriu a porta e mandou que entrássemos. O interior da casa era sombrio, havia apenas uma pequena janela por onde entrava uma pequena réstia de luz. Não demorou e o homem que nos recebeu retornou car-regando um outro homem no colo e o colocou sen-tado em um banco a nossa frente. Ele não tinha as pernas. Seu rosto apresentava uma cicatriz partin-do do Canto do olho esquerdo até quase o pescoço. Falou-nos com uma voz rouca:

– Sejam bem-vindos à minha casa! Meu nome é Zorac. Eu os esperava ansioso.

– O senhor sabia que viríamos? – perguntei admirado.

– Sim, Zorac sabe tudo! Meus amigos invisí-veis me informam o que acontece neste e em outros mundos.

Meu irmão ficou mudo. Zaíra estava atônita.

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Zorac olhou para ela e continuou falando:

– Você é a virgem que os Ribuths estão procu-rando.

Zaíra olhou para nós assustada. Aquele homem estranho olhou para mim e para Zlrat, logo depois complementou:

– E vocês são os filhos de Zenc.

Zirat, embaraçado diante daquelas revelações ficou preocupado Com nossa segurança. Passou seu braço sobre meu ombro e de Zaíra e, receoso, afirmou:

– Senhor, estamos de passagem. Sobrevive-mos à tragédia que se abateu sobre a ilha pequena. Estamos procurando meios para dar um destino às nossas vidas.

– Calma! Nada devem temer. Eu vou ajudá-los. Sentem-se, tenho muito que conversar com vocês. Sou amigo de vosso pai. Devo orientá-los sobre o que fazer. Sidrac, o homem a quem estão procuran-do era o parceiro de vosso pai na seita dos Ribuths. Os dois raptaram a filha de Liburc e a ofereceram ao sacrifício das virgens, provocando ainda mais sua ira, o que acabou culminando com o assassi-

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nato de vossos pais. Sidrac ficou sem o parceiro e sem o poder dos Ribuths, por isso está refugiado na casa do armeiro. Com a pedra que vocês possuem e a que esta em poder de Sidrac, ao encaixá-las uma na outra, o desenho de duas luas se completara, formando o símbolo secreto dos Ribuths. Sidrac irá entregá-la vocês por isso deverão partir cedo. Vou mandar preparar uma carroça com dois cava-los para levá-los até ele. Depois, deverão retornar aqui para que possa orientá-los sobre o que fazer de suas vidas.

Ouvimos atentamente o que Zorac disse. Meu irmão pareceu entusiasmado. Levantou-se andou de um lado para o outro, voltou-se para Zorac e afirmou: - Nestes momentos de incertezas, um ami-go é o que mais precisamos. Nós somos gratos pelo apoio que nos oferece.

– E quanto a Zaíra? não é perigoso ela nos acompanhar? Até a cidade visto que esta sendo procurada? – perguntei preocupado.

Zorac fez um sinal para ela se aproximar. Ele a pegou Pelo braço e, num movimento rápido, cortou-a com uma lâmina na altura do ombro

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esquerdo. Eu a puxei para perto de mim e tentei estancar o sangue com a mão. Estava ainda com a mão sobre o ferimento quando ele falou:

Acalme-se. O que eu fiz foi para garantir a vida dela. Agora já não serve para o sacrifício, os Ribu-ths a deixarão em paz. As virgens sacrificadas não podem ter nenhuma cicatriz, então a marca que eu fiz em seu braço é o seu passaporte para a vida! Agora vão descansar e durmam em paz.

Fez um sinal para o homem que o auxiliava e este o carregou de volta aos seus aposentos Depois de algum tempo, o auxiliar retornou com um fras-co contendo um unguento preparado com ervas e mandou aplicar no ferimento que Zorac fizera no braço de Zaíra. Depois, levou-nos ao local onde deveríamos descansar.

Passamos uma noite tranquila. Pela manhã bem cedo, o auxiliar nos acordou e nós partimos. Viajamos quase o dia todo. Chegamos a Zantar quando o sol se punha no horizonte. Fiquei mara-vilhado quando nos aproximamos da entrada prin-cipal da cidade. O portal de pedra esculpida na for-ma de um arco apresentava desenhos em relevos

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tingidos de dourado, cujo brilho refletia a luz aver-melhada do maravilhoso crepúsculo. Atravessamos o portal. O movimento nas ruas era muito intenso. Um guarda nos fez parar e nos indicou um lugar onde deveríamos deixar o veículo e os animais. Entramos pela viela que nos indicou e chegamos a um pátio multo grande, onde deixamos a carro-ça e os animais. Seguimos a pé em busca da loja do armeiro.

Caminhamos por varias vielas até chegarmos à Praça dos Tributos. As lojas pareciam todas iguais, podia-se encontrar de tudo no próspero comércio que se desenvolvia em cada canto daquela cida-de enorme. Do lugar onde estávamos não conse-guíamos enxergar as muralhas que circundavam a cidade. Do outro lado da praça, vimos uma porta com lanças e espadas expostas do lado de fora e meu irmão deduziu que ali seria a loja do armei-ro. Fomos até lá. Uma mulher idosa nos recebeu. Perguntamos por Sidrac e ela ficou embaraçada, demonstrando preocupação e medo. Olhando de esguelha para uma porta que havia nos fundos da loja, respondeu:

– Não conheço ninguém com esse nome.

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Meu irmão, percebendo que estava mentindo para proteger Sidrac, insistiu:

– Por favor, precisamos encontrá-lo. Meu nome é Zirat, sou filho de Zenc.

Nisso, a porta dos fundos se abriu e apareceu um homem muito alto, aparentando uns sessenta anos. Aproximou se e gentilmente nos Recebeu:

– Sejam bem-vindos! Eu sou Sidrac. Então você é filho de Zenc?

– Sim! Este é Zílio, meu irmão, e esta é Zaíra.

– Venham, vamos para os fundos da loja. Aqui corremos perigo.

Subimos uma escada feita de madeira até che-garmos em um cômodo que ficava sobre a loja. Sen-tamos nos bancos que estavam a volta de uma mesa grande Sidrac sentou se a frente de Zirat, olhou bem pra mim e para Zaíra, coçou a barba e então perguntou:

– Como posso ter certeza que vocês são os filhos de Zenc?

Calmamente, Zirat tirou a pedra esculpida de dentro do alforge e a colocou sobre a mesa. Sidrac a examinou por alguns instantes, levantou-se, reti-

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rou uma pedra solta que havia na parede, enfiou a mão em um buraco existente por trás da pedra retirada, pegou uma pedra esculpida semelhante a que nós tínhamos e a colocou ao lado da nossa. juntou as duas e elas se encaixaram perfeitamente, formando o símbolo das duas luas. Sorrindo, olhou para nós e afirmou:

– Finalmente vou cumprir a derradeira obri-gação de um Ributh. Passo para vossas mãos o compromisso sagrado de honrar e lutar pelos prin-cípios e pelas leis dos Ribuths.

Agora devem partir, deixem a cidade imedia-tamente.

Zirat colocou as pedras no alforge e nós saímos por uma porta que havia nos fundos da loja. Na rua, ficamos perdidos. Procuramos um meio de chegarmos novamente a praça, mas não conseguimos. Depois de tentar vários caminhos, acabávamos sempre no mesmo lugar. então resolvemos voltar à loja pelos fundos, seguimos o mesmo caminho de onde viemos e chegamos no lugar de onde havíamos saído. Zirat bateu na porta e, ao bater, a porta se abriu. Estava destrancada.

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Entramos. A mulher estava estendida no chão cravada por uma lança. Mais adiante, próximo a porta da frente, Sidrac agonizava, varado por uma espada. Aproximei-me e ainda consegui ouví-lo antes que desse o último suspiro:

– Fujam! Fujam! – falou agonizando.

Assustados, imediatamente fomos para a rua. Estava escuro. Caminhamos em direção ao lugar onde deixamos a carroça. O patio estava vazio. O único veiculo no lugar era nossa carroça. Zirat ficou apreensivo. Havia alguma coisa estranha no ar. Ficamos agachados ao lado do bebedouro dos animais, observando os acontecimentos. Passado algum tempo, vimos quatro homens se aproximan-do da carroça. Eram os guardiões de Liburc. Exami-naram a carroça e partiram, mas deixaram um deles vigiando. Esperamos passar algumas horas, mas o guarda permanecia andando de um lado para o outro. Depois de mais algum tempo, sentou-se de costas para nós. Zirat pegou o saco que esta-va dentro do alforge, no qual estavam as pedras, amarrou a boca do saco e foi sorrateiramen-te até onde estava o guarda, desferindo um golpe na cabeça dele. O guarda caiu desmaiado.

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Rapidamente pegamos a carroça e conseguimos chegar a casa de Zorac quando o sol já estava a pru-mo. Cansados e famintos, comemos alguma coisa e fomos dormir.

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SeguNDA PARTe

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Já era noite quando acordamos. Zorac nos aguardava na sala grande e quando nos viu, afir-mou:

– Vejo que foram bem sucedidos!

– Sim! Apenas lamentamos por Sidrac. Infeliz-mente, logo depois que nos entregou a pedra, foi assassinado – esclareceu Zirat.

– Sua morte já era prevista. Os guardiões não descansariam até conseguirem eliminá-lo. Com isso, Liburc remeteu mais um inimigo para o mun-do invisível.

Fiquei curioso com a colocação de Zorac e per-guntei:

– O senhor acredita que, mesmo estando mor-to Sidrac poderá prejudicar Liburc?

coMPRoMiSSo eSTRANHo

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– Com certeza! Em breve estará reunido com os demais inimigos de Liburc, arquitetando sua derrota. Bem, isso agora não importa, o importante é que conseguiram a pedra. Vamos comer e depois conversaremos.

O auxiliar fez um sinal para sentarmos a mesa, onde serviu um assado de carneiro. Enquanto comí-amos, Zorac continuou falando:

– Amanhã vou iniciá-los nos fundamentos dos Ribuths. Espero que tenham decidido ocupar o lugar de vosso pai e de Sidrac.

Zirat olhou para mim, esperando que eu dis-sesse alguma coisa. Olhei para Zaíra e percebi seu olhar a expectativa de que eu dissesse sim. Olhei para meu irmão e com um gesto respondi afirmati-vamente. Diante de minha atitude afirmou:

– Senhor, estamos prontos!

– Ótimo! – exclamou Zorac, fazendo um sinal para seu auxiliar.

O auxiliar prontamente limpou a mesa e trou-xe uma vasilha contendo uma bebida rosa. Bebemos até nos fartar. Ficamos tontos. Zaíra teve uma crise de risos e mal se mantinha de pé. Tive que leva-la

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até os aposentos, deitou e logo adormeceu. Senti minhas pernas bambearem, mas mesmo assim con-segui retornar a sala onde estávamos. Zorac deu uma gargalhada e começou a falar:

– Vocês beberam o Elixir da Felicidade. Só os Ribuths podem bebê-lo! É preparado pelos amigos invisíveis durante os rituais dos sacrifícios.

Zirat estava estático, o semblante no rosto demonstrava estar fora de si. Chamei-o e ele não respondeu. Zorac sorriu novamente e afirmou:

– Seu irmão esta longe daqui! Esta fora do cor-po. Neste momento viaja pelo mundo invisível. Logo estará de volta.

– Por quê? Embora eu esteja tonto, nada disso me aconteceu.

– Sob a influencia do Elixir, teu irmão demons-trou ser um elemento passivo e você um elemento ativo. juntos formarão um par perfeito. Poderão desenvolver um expressivo trabalho entre os Ribu-ths.

– E Zaíra? – perguntei.

– A menina simplesmente adormeceu.

Depois de algum tempo, meu irmão voltou

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estava com expressão de surpresa.

– O que aconteceu? – perguntou.

Zorac procurou acalmá-lo:

– Calma! Procure se lembrar por si mesmo.

– Eu estava longe daqui. Era um lugar estra-nho. Vi muita gente cantando e dançando em torno de varias mesas nas quais haviam pessoas deitadas, era como se estivessem dormindo.

– Ótimo! Eu sabia que você possuía a capa-cidade principal dos Ribuths. não foi um sonho! Hoje estamos no ciclo da lua cheia, você assistiu a cerimonia dos pares. É para esse ritual que devo prepará-los.

Zirat ainda estava tonto, Pediu desculpas e foi se deitar. Apesar de passarmos a tarde dormindo, ainda estávamos cansados e sonolentos. Eu tam-bém me recolhi.

Mal havia adormecido, fui acordado pelo peso do corpo de Zaíra sobre mim. Demonstrando estar ainda sob os efeitos da droga, começou a me bei-jar com volúpia. Ainda tonto, deixei me envolver por suas caricias. Acabamos nos relacionando inti-mamente. Tudo aconteceu como um sonho, logo

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depois adormecemos.

Quando acordamos pela manha, percebi que Zaíra me olhava encabulada. Sorri para ela. Olhan-do-me nos olhos, também sorriu e se levantou. Demorei um pouco me espreguiçando. Pela primei-ra vez sentia-me feliz por estar vivo. Meu irmão já estava na sala conversando com Zorac e, do quarto onde eu estava, conseguia ouvir a conversa. Esta-vam aguardando minha presença então resolvi me levantar.

– Vejo pela sua aparência que teve uma noite regada de sonhos felizes! – afirmou Zorac com ar de ironia.

Zaíra olhou para mim e abaixou a cabeça. Per-cebemos que Zorac sabia o que havia acontecido entre nós. Sorrindo, respondi:

– Sinto-me como se minha vida estivesse começado hoje!

– Ótimo! A partir de hoje vocês estarão real-mente começando uma nova vida. Venha, sente-se e junte-se a nós.

Sentei-me ao lado de Zirat e juntos recebemos as informações de Zorac.

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– Estamos na Segunda noite da lua cheia, vocês irão aproveitar para atravessar o portão das Muralhas do Medo. Hoje é um dia especial para os Ribuths que comemoram o nascimento de Butsá Os portões estarão abertos para os adeptos. Uma vez lá dentro, procurarão por Mosec e dirão que eu os enviei. Mostrem as pedras e ele saberá orientá-los como proceder.

– E quanto a Zaíra? Ela poderá ir conosco? Não correrá o risco de ser reconhecida como a vir-gem foragida?

– Ela deverá se vestir de modo que a cicatriz do braço esteja à vista. Mesmo reconhecida não correra riscos, pois já não possui as características exigidas pelo ritual. Entretanto, é importante saber: Você assistiu alguma vez aos rituais? – perguntou a Zaíra.

– Não, jamais assisti.

– Ótimo! Caso contrário estaria condenada à morte. Deverão partir à tarde, mas antes quero que sentem todos em volta da mesa. Vamos invocar meus amigos invisíveis para pedir a proteção deles nesta empreitada.

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Zorac mandou o auxiliar fechar a porta ficamos na penumbra. Aliás, as sombras eram característica daquela casa. Zorac pediu que ficássemos de olhos fechados e acompanhássemos as palavras que iria pronunciar em voz alta.

Depois de alguns instantes começou a falar. Sua voz rouca imprimia um ar lúgubre ao ambien-te. Olhei para meu irmão e percebi que ele havia debruçado sobre a mesa e parecia estar adormeci-do. Com os olhos entreabertos, vi sair de sua boca, das narinas e de seus ouvidos algo parecido com uma fumaça branca, que foi se estendendo em gran-de quantidade e, aos poucos tomando a forma de um homem. Fiquei assustado. Era meu pai! Tomado pela emoção, derramei o pranto ia me levantar para abraçá-lo, mas Zorac me impediu. Meu pai come-çou a falar:

– Meu filho, o que vê agora, no futuro será corriqueiro em sua vida. jamais esqueça de que viveremos para sempre! E que para destruirmos nossos inimigos, não basta matar o corpo. É preciso muito mais que isso. Quando estiverem associados aos Ribuths, eu não poderei comparecer aos ritu-ais, mas aqui, com Zorac, faremos planos para nos-

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sa vingança contra aqueles que tentaram destruir nossa família. Sidrac já está do nosso lado e juntos vamos aplicar a justiça.

Meu pai se calou e vi sua figura desvanecer até desaparecer. Zorac quebrou o clima repleto de emoção em que eu estava mergulhado. As lágrimas ainda rolavam pelo meu rosto quando ordenou:

– Desperte seu irmão.

Eu sacudi Zirat. Ele acordou, parecia não saber de nada do que havia acontecido. Falou meio con-fuso:

– Devo ter adormecido. Sonhei com nosso pai. Tive a impressão de que ele estava aqui.

Ainda emocionado, narrei os acontecimentos. Depois de me ouvir, perguntou a Zorac:

– Por que não pude ficar acordado para vê-lo?

– Essa é a desvantagem do elemento passivo. Apesar de ter visto mais do que nós, não se recorda de nada. você viu todos que estavam presentes e nós vimos apenas vosso pai. Fiquei feliz ao presen-ciar a quantidade enorme de material desprendi-do por você no momento da materialização. É sinal que, quando estiver entre os Ribuths, poderá che-

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gar a liderança.

Zaíra estava assustada, porém ficou feliz ao presenciar o inusitado acontecimento. Como eu, ela agora sabia que não estávamos sozinhos. Ainda com muitas duvidas, perguntei para Zorac:

– Meu pai falou em vingança, percebi seu ódio por Liburc, mas como poderemos ajudar?

– Agora nada poderão fazer. Mas quando esti-verem participando da seita dos Ribuths, vosso poder sera incomensurável! Deixemos esse assunto para mais tarde, pois é bom que se preparem para partir. não esqueçam que terão que procurar por Mosec.

Juntamos algumas provisões, colocamos no alforge e partimos. Zorac deu um vestido para Zaí-ra, com o qual ficou ainda mais bonita. A expec-tativa entre nós era grande. Zirat, calado, seguia ao nosso lado. Ao notar que eu e Zaíra caminháva-mos abraçados, percebeu o que estava acontecendo entre nós.

O Sol descia em direção ao horizonte. Passa-mos pela estrada que cortava a floresta e já está-vamos atravessando os campos cultivados. Dali

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avistamos ao longe as enormes Muralhas do Medo. Zirat parou e ficou olhando para as muralhas. Depois de permanecer pensativo por algum tem-po, perguntou:

– Zílio, será que é para la que devemos ir? Será que esse é o nosso destino?

– Qual outra opção que nos resta?

– Não sei. não seria melhor ir para a cidade procurar outros caminhos e esquecer tudo?

– Existem coisas difíceis de esquecer. A morte de nossos pais jamais será apagada de minha men-te. Assim como ele, eu também anseio pela vingan-ça.

– Você tem razão, devemos isso ao nosso pai. Não podemos esquecer que é graças a ele que esta-mos vivos.

Mais animados, voltamos a caminhar. Vez ou outra, Zaíra beijava minha mão, puxando-a para junto de seu rosto em uma atitude carinhosa. Quan-do nos aproximamos das muralhas, vimos uma multidão que chegava de todos os lados. Muitos dos que estavam entrando nos domínios dos Ribu-ths traziam suas carroças cheias de viveres, outros

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carregavam pequenos animais provavelmente para oferecer durante a cerimonia.

Juntamo-nos à multidão e entramos para o interior das muralhas. Eram tão altas que escon-diam a imensa cidade construída em seu interior. As Casas e os casebres eram de formato arredon-dado e quase todas possuíam no alto uma torre de forma piramidal com janelas nos quatro lados. Já estava escuro, a noite caíra impiedosa, dificultando nossa visão. Seguimos a maioria das pessoas que se encaminhavam para o templo como nos infor-mou Zaíra, que demonstrava conhecer grande par-te daquele lugar.

O templo era enorme. Centenas de tochas acesas clareavam todo o ambiente. No lugar onde parecia ser o altar, estavam dependuradas as figu-ras das quatro faces da lua fundidas em ouro.

Sob elas, uma enorme mesa redonda esculpi-da em pedra polida. Em torno dela, estavam senta-dos vinte homens com longas túnicas e com os ros-tos semi-encobertos por um capuz.

Segundo Zaíra, eram os membros do conse-lho supremo dos Ribuths, o que se confirmou mais

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tarde, quando começou o ritual da consagração dos seguidores presentes e o rito de louvor e gratidão às forças invisíveis. A cerimonia varou a madru-gada. Pela manhã, o templo ficou vazio, restaram apenas os membros do conselho. Estes também se retiraram e apenas um deles ficou. Veio até nós e perguntou:

– Por que não partiram?

– Estamos a procura de Mosec.

Ele olhou para os lados demonstrando um certo ar de preocupação e indagou em voz quase inaudível:

– Com que finalidade procuram Mosec?

– Somos filhos de Zenc. Quem nos mandou procurá-lo foi Zorac – explicou Zirat.

– Venham, eu os levarei até Mosec.

Conduziu-nos apressadamente para fora do templo. Caminhamos por varias ruelas até que chegamos a uma casa grande construída ao pé de uma serra e rodeada de arvores enormes. Fomos acomodados em uma ampla sala. Ali, ao contrário da casa de Zorac, a luz penetrava pelas várias jane-las dispostas em pontos estratégicos, por onde os

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raios solares invadiam o ambiente em abundan-cia. Algumas jovens preparavam a mesa. A gran-de variedade de frutos e de assados denunciava a fartura reinante naquela casa. Alguns pratos com frutos do mar foram dispostos sobre a mesa. Flores adornavam o ambiente causando a sensação de que estávamos a céu aberto.

Uma das jovens nos conduziu a uma especie de varanda coberta, onde havia um lago construí-do com pedras sobrepostas. A água cristalina descia da serra por canaletas confeccionadas com bambus, formando uma bica abundante que mantinha a água constantemente renovada. A jovem nos ofere-ceu roupas e insinuou para que nos banhássemos.

Assim fizemos. Estávamos ainda na água quando Zirat sorriu e afirmou, mantendo um certo brilho nos olhos:

– É, Zílio, acho que este é o nosso lugar!

Zaíra olhou para mim e sorriu. Parecia que ela concordava com Zirat.. Brincamos um pouco mais, aproveitando as deliciosas águas que pareciam revigorar nosso ânimo.

As túnicas que recebemos eram brancas com

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detalhes dourados. O vestido de Zaíra deu-lhe um ar de nobreza, combinou com aquele lugar cheio de vida. O sol parecia nascer ali, ao pé da serra, o can-to das aves ecoava por toda a parte.

Retornamos para a sala, onde nosso anfitrião estava sentado na cabeceira da mesa. Ele sorriu para nós e nos convidou para sentar. Comemos de tudo que estava sobre a mesa, eram iguarias que jamais havíamos experimentado. Zaíra as conhecia e nos recomendava as melhores. Já estávamos sabo-reando as frutas quando o homem começou a falar:

– Estou feliz por estarem aqui! Os três são filhos de Zenc?

– Não senhor, somente eu e Zílio. Meu nome é Zirat.

– Como escaparam da Ilha Pequena?

– Nosso pai nos ajudou.

– Vosso pai foi morto por Liburc. Como pode ajudá-los?

Percebi que perguntou de forma irônica, pare-cia saber de tudo. Mesmo assim, Zirat respondeu, explicando:

– Através de um sonho, meu pai mandou

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que eu guardasse uma canoa no topo da ilha onde morávamos. Com ela, conseguímos sobreviver às águas que tomaram conta de todo o lugar.

Percebi que Zirat ficou preocupado com o interrogatório e, então, interrompi a conversa, fazendo uma pergunta:

– Quando irá nos conduzir até Mosec?

– Eu sou Mosec! Não devem se preocupar estão seguros aqui.

Experimentamos um grande alivio. Zirat sor-riu de contentamento e agradeceu pela hospitali-dade. Mosec continuou:

– Vosso pai prestou muitos serviços à nossa organização. Ele e Sidrac eram elementos impor-tantes para os Ribuths. Espero que Possam preen-cher o vazio que eles deixaram entre nós. Trouxe-ram as pedras que legaram a vocês?

– Sim, estão aqui.

Zirat as colocou sobre a mesa. Mosec as juntou e, depois de examina-las, perguntou:

– Zorac testou o potencial de vocês?

– Sim! – respondeu Zirat.

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– E qual foi o resultado alcançado?

Eu me antecipei a Zirat e expliquei:

– Quando Zorac nos convocou para pedir-mos proteção aos invisíveis , meu irmão adorme-ceu enquanto ele falava e, logo depois, meu pai se materializou e falou comigo.

– Isso é ótimo! Em breve poderão participar do ritual. Até la, vou prepará-los. Depois de inte-grados, poderão desfrutar dos direitos e privilégios concedidos aos membros do conselho dos Ribuths. Terão uma casa como esta e todos os demais acessó-rios para garantir vosso conforto.

Zirat não conseguía disfarçar a alegria de que fora acometido. Zaíra me abraçou, demonstrando a emoção que estava sentindo pelo que estava acon-tecendo naquele momento. Deixamos Zirat conver-sando com Mosec e fomos passear nos jardins pró-ximos a varanda onde nos banhamos. Era como se estivéssemos sonhando. Tudo a nossa volta compu-nha um clima de felicidade.

Caminhamos até o pé da serra. A relva aque-cida pelos raios solares insinuava um aconchegan-te tapete. Deitamos. Com apenas o sol e pássaros

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como testemunhas, trocamos juras de amor. Esta-va olhando para seu rosto no momento em que era banhado pelos raios do sol, ressaltando sua beleza, quando ela, estimulada pelo clima romântico que nos envolvia, começou a falar:

– Zílio, contempla o céu, veja como as nuvens se movimentam rumando para lugares distantes. Parecem apressadas, mas na verdade seguem tran-quilas e confiantes na força que as conduz. Agora feche os olhos, sinta o vento passando por entre nós e indo agitar as arvores na floresta. É ele que carre-ga as nuvens, agita as ondas do mar, transporta os grãos de areia e sustenta as aves no ar. Não é como o rio, que nasce na fonte e deságua no mar. não sabemos de onde ele vem e nem podemos vê-lo, mas podemos senti-lo! Está em toda parte. Surge as vezes brando e suave espalhando por toda parte o perfume das flores, das matas e o cheiro do mar. Outras vezes agitado, violento e forte, varrendo a face da terra e espalhando a destruição e a morte. Sopra frio ou sopra quente, é como nossa respira-ção: quando estamos amando e trocando juras de amor, nosso halito tem o aroma das flores e sopra morno como a brisa do mar no verão, mas quando

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odiamos, ele sopra frio, exalando o cheiro da dor, inspirando a violência, a vingança e a morte.

Eu estava atônito! As palavras de Zaíra revela-ram existir por trás daquela beleza algo ainda maior e mais belo. Ela continuou:

– Meu povo ensinava que o vento é o halito do Senhor dos Mundos e que reflete seus sentimentos. Se descobrirmos de onde o vento sopra, poderemos chegar até ele. Muitos do meu povo enlouquece-ram tentando.

– Você acredita que existe um Senhor dos Mundos?

– Eu não sei. Às vezes fico pensando o que acontece a nossa volta e chego a acreditar que real-mente ele existe e que esta no comando da vida, sobrevivemos de seu halito. Sem ele morreríamos.

– Eu tenho vivido sem ele e ainda não morri! – afirmei sorrindo.

Ela colocou suas mãos sobre meu rosto e com-primiu meu nariz e minha boca. Quando eu esta-va quase sufocando, ela retirou as mãos e afirmou, sorrindo:

– Está vendo! Sem ele, você morre!

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Eu estava admirado. Realmente fazia sentido o que ela estava me dizendo. Sem o ar, morremos. A minha curiosidade aumentou. Pedi que ela conti-nuasse a falar sobre o Senhor dos Mundos.

– Quando nascemos, é ele que nos enche de vida, seu halito é nosso primeiro alimento. O mes-mo acontece com as plantas, com os animais e com todos os seres vivos.

– Então ele é Senhor dos Mundos somente da Parte seca pois os peixes conseguem viver sem ele.

– Quando ele exala seu halito sobre as águas do mar, agitando as ondas, as águas absorvem sua essência, suprindo a vida nos seres que habitam as profundezas.

– Por que Senhor dos Mundos? Existem outros mundos?

– Segundo o que aprendi com os mais velhos de nosso povo, chamados de Guardiões Historia, antes de nós, em todas essas ilhas, viviam seres mui-to inteligentes e sábios. Consta que eles tinham um poder muito grande sobre a natureza, realizavam coisas inimagináveis. Adoravam uma estrela dis-tante, dizendo que era o mundo de onde vieram. A

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morte para eles significava a libertação, diziam que aqui era um mundo destinado aos proscritos.

– Interessante! Quando eu era criança minha mãe falava dessa estrela, afirmava que viemos de lá e que seu maior desejo era voltar.

Silenciamos por alguns instantes. Estava meditando sobre o que Zaíra dissera e a coincidên-cia de minha mãe também falar sobre outro mundo quando ela quebrou o silencio:

– Sabe, Zílio, quando estive prisioneira dos Ribuths, senti soprar naquele ambiente o vento carregado de ódio e de violência. Por isso, embo-ra a alegria que sinto em estar ao seu lado tudo que estamos conseguindo, não posso deixar de me preocupar com o futuro que nos aguarda. Em uma das noites em que eles praticavam a consagração dos adeptos, estava apenas eu e uma das criadas que serviam as vitimas prisioneiras, Zoraide era seu nome. Em determinado momento, ela foi aco-metida de uma sonolência extrema, fui obrigada a ajuda-la a se deitar. Logo em seguida, ainda dor-mindo, começou a falar: “Não tenha medo. você não sera sacrificada. Eu vou tirá-la daqui.” Per-

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cebi que a voz dela estava diferente, o rosto dela havia se transfigurado então perguntei quem era ela, que disse: “Sou uma amiga. Vim para ajudá--la a sair deste lugar ”. Disse ela: ”Estamos tranca-das, como poderá me ajudar a sair daqui”? Zorai-de pediu para que eu fosse até a porta, caminhei até lá e ela se abriu diante de mim. Surpresa, virei para trás e quando olhei em sua direção, ela sor-riu e afirmou: “Vá, não tenha medo! Você conse-guira escapar, estarei sempre ao teu lado. Vou guia-la para que um dia possa servir a nossa cau-sa”. Foi assim que consegui escapar dos Ribuths. A revelação que acabara de ouvir indicava que está-vamos envolvidos em algo muito estranho. Fica-mos ali durante horas cogitando sobre o que sig-nificava todo aquele envolvimento com forças que não conhecíamos.

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“A vida é uma escolaonde os próprios alunos se

transformam em material didático”

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Os dias se passaram. Mosec nos orientou sobre tudo o que deveríamos saber. Aproximava-se o momento em que seriamos apresentados aos demais membros dos Ribuths. A expectativa era grande e estávamos apreensivos Certo dia, pela manhã, Mosec nos levou para conhecer o lugar onde os rituais secretos eram realizados. Zaíra não pode nos acompanhar na caminhada até o templo.

Chegando lá, entramos por uma porta onde se postavam quatro guardas. Descemos por uma lon-ga escadaria até chegarmos em um salão enorme, o qual parecia estar localizado sob a terra. No centro havia uma mesa redonda com quatro amarras pre-sas a madeira e, em tomo dela, a uma certa distan-cia, contei dez mesas retangulares, pequenas e bai-xas que circundavam o salão. Passando a mão sobre

No TeMPlo DoS SAcRifícioS

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a mesa redonda, Mosec explicou:

– Aqui nesta mesa oferecemos as vitimas aos nossos aliados do mundo invisível.

Com aquela afirmação e a influência daque-le ambiente, o toque de magia em que estávamos envolvidos até aquele momento se quebrou como por encanto. Senti uns arrepios estranhos e meu ânimo arrefeceu. Zirat perguntou:

– E as mesas pequenas, para que servem?

– Não são mesas. são leitos onde se deitam os membros passivos para a produção dos elementos necessários para a realização das materializações de nossos aliados invisíveis.

– Qual a função do elemento ativo? – Pergun-tei preocupado.

– É a de atender os amigos invisíveis e anotar suas exigências e orientações.

Ao ouvir quais seriam minhas atribuições sen-ti uma sensação estranha. Só de pensar em falar com mortos estranhos fui acometido por um mal estar que durou alguns instantes, até que consegui me equilibrar. então questionei:

– Qual a finalidade dessa troca?

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– São eles que transformam as pedras em ouro e a água em pedras preciosas. E o que sustenta nos-sa seita.

– O que o povo da como oferenda não é sufi-ciente?

– O que recebemos do povo é muito pouco. Para enfrentar Liburc é preciso manter centenas espiões espalhados por toda a cidade de Zantar. Precisamos estar informados de suas não tençoes e isso nos custa muito ouro. A manutenção de nossos domínios também é dispendiosa.

– Por que a rivalidade entre os Ribuths e Liburc?

– Liburc é filho de Mondai. Este era o gover-nador supremo da cidade, tinha um coração gene-roso, amava seu povo, a felicidade reinava em Zantar. Nós, os Ribuths, mantínhamos uma convi-vência pacifica com ele e com o povo. Liburc, um jovem vaidoso, sentia ciume do prestigio que o pai desfrutava entre os homens e as mulheres de toda a cidade.

Assessorado por forças invisíveis e pelos alia-dos que compartilhavam de seus propósitos, plane-

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jou e executou o assassinato do próprio pai. Depois, conseguiu convencer o povo que seu pai fora mor-to pelos Ribuths. Com isso, assumiu o comando geral de Zantar, prometendo ao povo vingar a mor-te daquele que fora um líder adorado e respeitado por todos. Não combatemos ele, apenas nos defen-demos. Liburc sabe dos tesouros que conseguimos através de nossos rituais, por isso mantem a maio-ria do povo contra nós, visando um dia penetrar nossas muralhas e tomar posse de nossas riquezas.

– De que forma os mortos transformam o ouro entregue aos Ribuths? – perguntei.

– Eles não permitem que observemos o momento da transformação. Simplesmente o ouro surge no lugar das pedras e o mesmo se dá com as pedras preciosas.

Zirat, impressionado com a revelação de Mosec, perguntou:

– Como é dividido todo esse ouro?

– Tudo o que conseguimos até agora está guar-dado na sala do tesouro, localizada no prédio do poder central. Pertence a todos nós.

Com um brilho estranho no olhar, Zirat conti-

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nuou suas indagações:

– Quem detém o poder maior dos Ribuths?

– O poder supremo pertence ao conselho com-posto pelos pares.

– Então faremos parte desse conselho?

– Sim, devo apresenta los ao conselho ama-nhã. Depois das próximas três luas, serão convoca-dos para participarem do ritual.

Depois que Mosec nos deixou, eu e Zaíra, fica-mos conversando sobre tudo o que estava acon-tecendo conosco. A ansiedade que se instalou no meu peito, roubou-me parte da noite, impedindo--me de adormecer.

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”Não existe a derrota! o que, existe são apenas

alguns momentos mais difíceis!”

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No dia seguinte, fomos acordados pelos cria-dos, que trouxeram as roupas que deveríamos usar para nos apresentarmos diante do conselho. Eram vestimentas confeccionadas por mãos habilidosas, os detalhes em azul simbolizavam as fases da lua, o tecido branco assemelhava se ao linho, porém de uma textura mais densa. Os criados e as criadas nos ajudaram até que as roupas estivessem ajustadas em nosso corpo.

Mosec veio logo em seguida e nos conduziu para o edifício do conselho. Ao chegarmos diante da sala destinada as reuniões, fez algumas adver-tências e nós entramos. Todos os membros já esta-vam sentados em torno da enorme mesa, que esta-va no centro da sala. Mosec era quem secretariava a reunião. Dois lugares estavam reservados, onde eu

PeRANTe o coNSelHo

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e Zirat sentamos. Depois de algumas reverencias, Mosec começou a apresentação:

– Queridos membros do conselho, estes que agora participam da mesa são Zirat e Zílio, filhos de Zenc. Como todos aqui sabemos e lamenta-mos muito, Sidrac e Zenc foram assassinados pelos homens de Liburc e, consequentemente, Zirat e Zílio, depois de obterem a anuência deste conse-lho, deverão ocupar seus respectivo lugares. Como membro do conselho e mestre de cerimonias, dou por aberta a discussão para a para a posterior vota-ção, a fim de decidirmos se os aceitamos ou não.

Um dos membros, de nome Ephis, pediu a palavra e fez uma observação:

– Desde quando foi fundada a Irmandade dos Ribuths pelos irmãos Rina e Butsá, esta será a primeira vez que teremos um par composto por irmãos. Eu creio que isto assinala que poderemos estar diante um período de grandes conquistas. Por isso, desde já, meu voto é sim! Que sejam bem-vin-dos os filhos de Zenc!

Os demais membros demonstraram grande entusiasmo e foram unânimes na votação. Mosec

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foi o primeiro a se levantar e vir até nós para nos abraçar. Os demais, depois de nos desejarem as boas vindas, formularam muitas perguntas, fica-ram admirados com a forma como fomos salvos da Ilha Pequena. Depois de muita festa, retornamos a casa de Mosec. Ele ficou incumbido de nos entregar a casa que deveríamos ocupar.

Logo apos o banquete oferecido por Mosec em homenagem a nossa integração ao conselho, Zirat saiu para conhecer um pouco mais os domínios dos Ribuths, enquanto eu e Zaíra fomos caminhar mar-geando a floresta. Sentia-me melancólico, relem-brava o tempo de minha infância na Ilha Pequena. Sentia saudade de minha mãe, das estorias que ela contava sobre um mundo distante, onde, segun-do ela, todos vivemos um dia. Apontava constan-temente para uma das estrelas e afirmava: “É de lá que todos viemos! Um paraíso que não soubemos fazer por merecer, por isso fomos relegados a este mundo”!

Percebendo minha introspecção, Zaíra argu-mentou:

– Percebo que você esta preocupado. Tua

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inclusão no conselho não lhe agradou?

– Não sei, sinto uma insegurança muito gran-de. Alguma coisa me diz que deveríamos partir e esquecer os Ribuths e tudo mais.

– Compreendo sua preocupação, estamos nos envolvendo em algo que desconhecemos. Isso tam-bém me preocupa.

– Quando recordo o que Liburc fez aos meus pais, chego a desejar estar nessa guerra, mas ao mesmo tempo sou tomado por uma sensação estra-nha, parece que estou enveredando por um cami-nho sem volta, no qual os sonhos que agora cultivo irão se apagar.

– Quais são seus sonhos?

– Viver! Mas viver livre! Desfrutar da natureza à nossa volta, amar sem constrangimentos, poder sentir o que eu sinto por você sem me preocupar com o quanto irá durar esses momentos felizes que estamos vivendo.

– Zílio, essa liberdade só existe enquanto somos crianças. É o período em que o coração é mais forte que a inteligência. Entretanto, agora somos obriga-dos a pensar mais do que sentir, a menos que nos

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entreguemos aos impulsos do coração e estejamos preparados para suportar as consequências que tal atitude acarretará em nossas vidas.

– Eu gostaria de ter coragem de obedecer aos impulsos do coração, mesmo que, para tanto, tives-se que enfrentar o sofrimento que isso viria a acar-retar. Mas dentro de mim existem duas forças que lutam entre si e não sei qual delas atender. Isso me deixa angustiado e me faz sofrer. Uma me pede para lutar e destruir os assassinos de meus pais, a outra clama pela paz que desejo viver ao teu lado. Porém, sinto que se não atender a primeira, não encontra-rei condições para viver a segunda, que é o grande sonho da minha vida.

– Zílio, você não deve se angustiar. A mão do destino nos colocou diante de uma estrada da qual tão já não poderemos nos esquivar. Vamos percorrê-la sem deixar morrer os nossos sonhos. Vamos lutar para torná-los realidade, mesmo que para isso tenhamos que pagar um preço muito alto.

A determinação e a coragem de Zaíra me sur-preendia. Decididos a caminhar na direção que o destino nos apontava, retornamos para nossos apo-

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sentos na casa de Mosec. A noite transcorreu calma e acordamos com os raios do sol invadindo o quar-to. Olhei através da janela e vi os pássaros voando com pequenos ramos presos ao bico, denunciando a época da proscriação. Invejei-os pela liberdade que desfrutam.

Zaíra já havia saído do aposento e retornou para me avisar que Mosec e Zirat aguardavam para nos acompanhar até a casa que se destinava a nos abrigar. Depois das cortesias costumeiras, rumamos para o lugar onde estava localizada. O lugar nos surpreendeu com tanta beleza. A casa, rodeada de arvores, parecia se encostar em uma queda d’água que escorria da montanha. Os respingos arremes-sados no ar, refletindo a luz do sol, desenhavam um maravilhoso arco-íris, cuja ponta parecia tocar o telhado da casa. A construção era ampla e acon-chegante, os grandes olhos de Zaíra brilhavam de contentamento. Mosec sorriu e, com um gesto, cha-mou os escravos que estavam na casa: três mulhe-res, um jovem e dois senhores. Apontando para eles, afirmou-nos:

– Estes serão vossos criados. Estarão encarre-gados da manutenção, da limpeza e da alimenta-

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ção. Enquanto forem membros do conselho, terão o poder sobre suas vidas.

Depois das recomendações cabíveis, Mosec nos conduziu por toda a casa, mostrando cada apo-sento. Logo depois, partiu com Zirat.

Ali estávamos! Era como se tivéssemos sido inseridos em um paraíso cercado de beleza e de mistério! Uma coisa me intrigava: por que meu pai não criou a família em uma destas casas destinadas aos membros do conselho? Por que optou por dei-xar sua família na Ilha Pequena? Estava tentando encontrar as respostas quando Zaíra se aproximou. Estava acompanhada de uma das escravas e, apon-tando para ela, afirmou:

– Zílio, esta é Zoraide, a escrava que me aju-dou a escapar do sacrifício.

Um tanto constrangida e admirada, a empre-gada afirmou:

– Eu não sei do que a senhora esta falando! Eu não a ajudei a escapar, até hoje não consigo enten-der como escapou. A porta estava fechada! Depois que a senhora sumiu, foi preciso alguém abrí-la para que eu pudesse sair.

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– Você não se lembra do que falou para mim naquela hora?

– Só consigo me lembrar que a senhora esta-va comigo. Depois, sem que nada houvesse aconte-cido, constatei que estava sozinha dentro da cela. Quando chegaram os guardas, cravaram-me de perguntas e só não mandaram me matar porque a cela estava trancada e eu consegui convence-los de que havia adormecido e não sabia de nada.

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”Quem busca facilidades no presente, semeia

dificuldades para o futuro.”

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TeRceiRA PARTe

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Era noite de lua cheia. Havia chegado o momento que eu esperava com apreensão e ansie-dade. Zirat veio me buscar e fomos para o local do ritual. Todos os membros passivos e ativos estavam presentes, alguns dos passivos já se encontravam deitados em seus leitos.

Uma linda jovem com grilhões nos pulsos e nos tornozelos era conduzida por um escravo de estatura avantajada. Trazia na mão uma jarra e ser-via seu conteúdo para os membros passivos. Todos tomaram um gole, inclusive Zirat, que já estava acomodado em seu leito. Quase todas as tochas foram apagadas, ficando apenas uma próxima da mesa do sacrifício. As demais estavam bem distan-tes. O escravo obrigou a jovem a tomar o conteúdo final da jarra e a amarrou sobre a mesa. De cada

No RiTuAl

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um dos membros deitados sobre os leitos come-çou a sair por quase todos orifícios, inclusive pelas narinas, a mesma substancia que Zirat expeliu na casa de Zorac. Aos poucos essa névoa foi tomando varias formas. Eram figuras de homens, alguns com a aparência animalizada, uma cena horripilante. Não demorou muito, comecei a ouvir gritos ensur-decedores e voluptuosos que ecoavam por toda a enorme sala. A cada momento, um deles debruçava sobre a vitima e emitia gritos estridentes de gozo e de prazer. Depois de quase uma hora, Mosec fez um sinal ao escravo, que se aproximou da vitima e a executou com uma lamina, desferindo-lhe um gol-pe mortal Nessa hora, todos se amontoaram sobre as fendas por onde escorria o sangue ainda quente.

As pedras que estavam dispostas sobre uma pequena mesa cederam lugar a uma porção de arte-fatos de ouro. A água colocada em uma pequena vasilha foi substituída por joias trabalhadas com pedras preciosas. Fiquei impressionado! O ser invi-sível que se materializou através do material de Zirat aproximou-se de mim e com a fisionomia apa-rentando um sorriso quase imperceptível, pois seus lábios estavam mal formados, passando o braço na

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boca, falou:

– Quero beber!

Eu fiz um sinal ao escravo que segurava a vasilha contendo a beberagem, que veio até nós e encheu um recipiente menor, o qual dei ao aliado invisível. Para minha surpresa, foi até onde esta-va Zirat e derramou a beberagem sobre a sua boca, Depois disso, todos começaram a se desvanecer até que desapareceram.

Zirat e os demais passivos acordaram. Alguns escravos entraram e começaram a limpar o lugar, saindo apos a limpeza. Ao lado da mesa onde estava o ouro, apareceu um tacho grande cheio de um liquido semelhante ao da beberagem. Depois de limpo, sem a presença do corpo da viti-ma, o ambiente se transformou em um lugar fes-tivo, com lindas jovens trazendo muitas iguarias e alguns dos escravos retornando com alguns ins-trumentos de percussão e começando a executar uma bateria de sons. As jovens cantavam e dan-çavam a nossa frente. Era um som muito executa-do pelos habitantes das ilhas. Durante a dança, as moças tiraram suas roupas e começaram a dançar

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com mais frenesi. A beberagem do tacho começou a ser servida e todos se encharcaram dela, exce-to os escravos. A volúpia tomou conta de meu ser, comecei a dançar e a cantar um monte de besteiras que vieram à minha cabeça. Todos estavam envol-vidos pelo clima de festa e de orgia. A bebida infla-mou meu ser, não resisti e acabei participando de tudo. Entreguei-me aos caprichos e às fantasias das jovens que me assediavam. A festa durou até o amanhecer, quando retornei para casa.

Zaíra provavelmente me esperava ansiosa em saber tudo sobre o ritual. Eu me sentia estranho, não estava cansado e nem sonolento. Quando che-guei, Zaíra estava na varanda. Ao me avistar, sorriu e correu em minha direção, jogando-se sobre mim com os braços abertos. Beijou-me ardentemente. Estava curiosa e preocupada, perguntando logo:

– Então como é que se saíram os novos mem-bros dos Ribuths? Agora se sentem mais podero-sos?

Eu sorri, disfarçando um certo remorso que se apoderou de mim ao vê-la tão bela e tão apaixona-da. Então falei:

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– Eu e Zirat não nos sentimos poderosos, ago-ra nós somos realmente poderosos. Quanto mais poder, mais amor vou poder lhe oferecer.

Realmente, a cada dia nosso amor crescia. O tempo foi passando. Estávamos vivendo um momento de suprema felicidade, tudo que podí-amos imaginar era colocado aos nossos pés. Zirat recebeu um verdadeiro palácio para habitar, vivia rodeado de luxo e de lindas mulheres. O ouro ofe-recido pelos invisíveis nos tornava cada dia mais ricos e poderosos. Liburc muitas vezes enviou seus espiões para tentar descobrir de que forma conse-guíamos transformar as pedras em ouro e a água em pedras preciosas, mas logo eram descobertos pelos nossos guardas, que os eliminavam pronta-mente. Sentíamos segurança plena, garantida pelas muralhas e pelos precipícios profundos que circun-davam o outro lado da cidade.

Com o passar do tempo, tornei-me um apaixo-nado pelos rituais, principalmente com a festivida-de que sucedia as cerimonias.

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“Quando nos tomarmos sábios, seremos os últimos a saber”

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Estávamos reunidos para um novo ritual, tudo estava preparado. A vítima, os passivos e os escravos se mantinham a postos e logo se inicia-ram as materializações. Os invisíveis se alternavam nem sempre eram os mesmos que compareciam. Eu alimentava a curiosidade de saber como eles con-seguiam transformar as pedras em ouro e a água em pedras preciosas. Resolvi observar, manter meu olhar fixo sobre a mesa onde estavam as pedras. Apesar de atento, não consegui. Ao fixar o olhar de forma mais apurada tentando identificar as pedras quase ocultas pelas penumbra, reconheci os arte-fatos de ouro ocupando a mesa. Aconteceu multo rápido, não consegui perceber qualquer movimen-to em tomo das pedras. Depois da partida dos invi-síveis, antes de começar as festividades, aproximei-

eSTRANHA DeScoBeRTA

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-me da mesa. Fiquei surpreso ao ver o medalhão de ouro que minha mãe havia me dado. Sem que nin-guém visse, coloquei-o sob a roupa. Quando come-çou a festa, eu me despedi e me retirei do salão.

Retornei para junto de Zaíra. Comemos algu-ma coisa e fomos para os aposentos onde dormí-amos Deitados no leito, começamos a conversar. Zaíra percebeu que eu estava preocupado então perguntou:

– Por que retornou cedo? Não participou do ritual?

– Sim, participei, apenas não fiquei até o final. Aconteceu uma coisa estranha e estou tentando compreender.

– O que aconteceu de estranho?

Peguei o medalhão e mostrei para ela dizen-do-lhe:

– Esta vendo este medalhão? Foi minha mãe que me deu. Não podia estar aqui, eu o deixei quando abandonamos a ilha. Ele estava no fun-do do mar, olha as marcas que a água fez. Alem do mais, você pode até sentir nele o cheiro da maresia.

– Como ele veio parar em tua mão?

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– Os invisíveis o colocaram junto com demais artefatos de ouro que se transformaram das pedras.

Zaíra me olhou com um olhar de quem podia explicar o que acontecera. Então lhe perguntei:

– O que é? Vai dizer que sabe o que aconteceu?

– Zílio, os invisíveis não transformam as pedras em ouro. Eles vão buscar esses artefatos no fundo do mar. Todo esse ouro fazia parte das rique-zas que submergiram com as ilhas.

Fiquei admirado com a dedução de Zaíra, era realmente isso que estava acontecendo. Eles con-seguiam transportar o ouro do fundo do mar até a mesa do ritual, fazendo-nos crer que transforma-vam as pedras em ouro, o mesmo acontecendo com a água e as pedras preciosas. Estávamos rindo da descoberta quando Zoraide entrou no quarto. Esta-va estranha, o clima do ambiente foi se alterando, tornou-se sombrio. Zoraide cambaleou e, ampara-da por Zaíra, sentou-se em uma cadeira que esta-va no quarto. Com o rosto transfigurado, assumin-do quase que totalmente a fisionomia de meu pai, começou a falar:

– Meu filho, chegou a hora de executar nossos

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planos. Meu coração clama por vingança No pró-ximo ritual, vamos dar um passo importante para que o poder sobre os Ribuths seja entregue a vocês Temos que assumir o controle da comunidade, den-tro e fora de nossas muralhas.

Eu estava atônito diante do que via e ouvia, enquanto meu pai prosseguiu falando.

Os membros dos Ribuths tornaram-se hipó-critas! Abandonaram a mim e a Sidrac. Precisamos puní-los.

– Como poderemos ajudar?

– Durante o ritual, quando Zirat se deitar para servir aos invisíveis, materializaremos um dos que estão do nosso lado. Ele se incumbirá de fazer o que deve ser feito e você deverá ajudá-lo.

– O que deverei fazer?

– Enquanto os invisíveis estiverem se ban-queteando com a vitima, os membros ativos serão envolvidos por nossos aliados e irão adormecer. Nessa hora, nosso aliado já materializado entrega-rá a você um frasco contendo um pó escuro. Colo-que o frasco sobre o fogo da tocha próxima da mesa do sacrifício e depois se afaste para perto de onde

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estiver Zirat.

– E se formos descobertos?

– Não tema, tudo estará sobre controle.

Depois dessa afirmação, Zoraide começou a se contorcer e a se transfigurar, voltando a aparência normal. Pelo seu comportamento, percebemos que não se deu conta do que havia acontecido, esta-va constrangida por estar sentada diante de nos. Levantou-se rapidamente, pediu permissão para se retirar e retornou para junto dos outros servos que estavam na cozinha.

Zaíra me olhava fixamente, esperando que eu dissesse alguma coisa. Mantive-me calado, pois estava surpreso e confuso com tudo aquilo, pare-cia um sonho do qual esperava acordar a qualquer momento. Sentei-me e meu coração batia descom-passadamente. Zaíra se aproximou e começou a me acariciar, deslizando sua mão entre os meus cabelos para tentar me acalmar.

– Zílio, sei que tudo o que aconteceu nesta sala foi um choque para você, mas devemos reconhecer que pelo menos respondeu todas as nossas indaga-ções. Agora sabemos no que estamos envolvidos.

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Ficou claro que a guerra entre Liburc e os Ribuths assumirá novas proporções.

Quer queiramos ou não, estamos envolvidos nela e não sabemos quais serão suas consequências.

– Isso é verdade. Então só nos resta aguardar os próximos acontecimentos.

A partir daquele momento, instalou-se em meu coração uma sensação de medo e de apreen-são. Senti vontade de falar com Zirat, mas me con-tive. Seria melhor conversar com ele depois de exe-cutar o plano de nosso pai.

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Passamos os dias que antecederam o próxi-mo ritual usufruindo das belezas que circundavam nossa casa. Conseguimos uma certa descontração, afinal, tudo o que estava acontecendo fazia par-te de nossa vida. Zaíra adorava a água, constante-mente banhava-se na cachoeira.

Atendendo ao instinto e ao costume cultiva-do desde criança, distraia-me caçando os pequenos animais da floresta próxima, os quais mandava pre-parar para o jantar ou para o almoço. Outras vezes, passava o dia ouvindo Zaíra contando historias sobre os mistérios da vida. Tão nova e já tinha acu-mulado tanto conhecimento, sabia mais do que eu sobre os povos e sobre as ilhas, até mesmo sobre a ilha onde nasci e me criei. Em certos momentos em que a observava de longe, tive a impressão de que

eXecuTANDo o PlANo

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ela conversava com o vento.

No dia do ritual pela manhã estávamos dei-tados na relva como sempre fazíamos Zaíra, acari-ciando-me os cabelos começou a falar:

– Hoje à noite sera o inicio de um período de maiores preocupações. Se realmente você e Zirat conquistarem o poder sobre os Ribuths nossa vida perdera o encanto em que estamos envolvidos O canto dos pássaros que agora nos acalma, tornar-se-á estridente aos nossos ouvidos o murmurar das águas que agora deleita nossos ouvidos, tornar-se-á um barulho insuportável.

–De onde você tirou essa ideia?

– Ouça o vento assobiando ao passar entre os galhos das arvores sua meldola é melancólica e triste. É pressagio de muitos temores e sofrimen-tos que se abaterão sobre esta ilha. O Senhor dos Mundos esta triste, por isso seu vento sopra melan-cólico.

– Você esta enganada. Eu e Zirat vamos ser apenas os senhores desta ilha, isso não vai incomo-dar o senhor de tantos mundos. Pode ter certeza que não é por nossa causa que ele está triste.

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– Zílio, você sabe o tamanho desta ilha?

– Sei que é muito grande, mas não sei o quan-to. Nem sequer saí de dentro dos domínios dos Ribuths, como poderei saber?

– Os Guardiões da Historia chamavam esta ilha de Ilha Sem Fim. Ninguém jamais alcançou o outro lado da Ilha Grande ela vai multo além da cidade de Zantar. Dizem que existem outros povos habitando lugares multo distantes da cidade de Zantar.

– Eu não estou interessado nos outros povos e nem nos outros lugares. Temos que nos preocu-par com o que temos de real. Estou confiante que esta noite vamos dar um passo muito importante na direção de nossa felicidade.

– Espero que esteja certo do que vai fazer. Pedirei ao Senhor dos Mundos para protegê-lo.

–Não se preocupe tudo dará certo! – afirmei cheio de convicção.

À noite, preparei-me e parti para o local do ritual. Não falei nada para Zirat, só depois da ceri-monia eu iria lhe contar os detalhes do plano. Tudo estava pronto. Zirat e os demais membros passivos

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encontravam-se acomodados nos leitos. Assim que trouxeram a vitima, começaram as materializações. Os invisíveis, depois de materializados, colocaram-se em volta da mesa do sacrifício. O aliado de meu pai também já havia se materializado, mantinha-se próximo a Zirat e não foi notado. Aproximou-se e me deu o frasco, olhei em volta e vi os membros ati-vos adormecidos e espalhados pelo chão e a mesa estava encoberta por aquelas criaturas horríveis debruçadas sobre a vitima sacrificada. Aproximei--me da tocha, coloquei o frasco sobre ela e me afas-tei, indo para perto de Zirat. O aliado havia desa-parecido.

Não demorou muito e o frasco, em contato com o fogo, causou uma explosão que produziu um clarão intenso, o qual durou alguns instantes, ilu-minando a mesa e quase todo o o ambiente. Todos os membros passivos começaram a gemer, as cria-turas se desintegraram rapidamente. Fui acometi-do por um pesado sono e adormeci. Não sei quanto tempo depois, fui despertado por Mosec. Estavam todos aturdidos, os membros passivos demonstra-vam sinais de enfraquecimento e de dor e, em pou-cos instantes, constatamos que estavam todos mor-

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tos, exceto Zirat, que despertou por último. Fomos todos para a sala do conselho.

Formou-se um grande tumulto, com todos os membros ativos falando ao mesmo tempo e nin-guém sabia explicar o que havia acontecido. Mosec tomou a palavra, pediu silencio e começou a falar:

– Vamos manter a calma. O importante agora, é que cada um de nós procure lembrar de alguma coisa que aconteceu antes de perdermos os senti-dos. Qualquer coisa que possa parecer estranho ao nosso ritual.

O silêncio foi total. Senti o medo me dominar, mas acabei me controlando ao constatar que nin-guém se manifestou. Mosec continuou:

– Dos membros passivos, só nos resta Zirat. Através dele, iremos descobrir o que aconteceu. Dentro de dois dias realizaremos um novo ritual, onde vamos oferecer um novo sacrifício.

Encerrada a reunião, convidei Zirat para me acompanhar até minha casa. Eu precisava revelar tudo o que havia ocorrido no ritual. Estava ner-voso, não sabia qual seria sua reação. Como sem-pre, Zaíra me esperava na varanda. Sua alegria ao

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me ver demonstrava o fim da preocupação que até aquele instante provavelmente dominava seu cora-ção. Zirat fez um comentário a seu respeito:

– Como você esta linda! Quase não a reconhe-ci nessas roupas.

Realmente, Zaíra estava deslumbrante! O tra-je que usava lhe caíra tão bem que ressaltava ainda mais sua beleza. Abraçou-me e entramos.

Zirat começou a beliscar algumas das iguarias que estavam sobre a mesa. Percebi pelo seu olhar que estava esperando minha manifestação a res-peito do que houve durante o ritual. Sentamos e comecei a falar:

– Zirat, o que aconteceu hoje marca o inicio de uma serie de acontecimentos que vão se suceder na seita dos Ribuths.

– O que você sabe a respeito do que aconte-ceu?

– Nosso pai, através da escrava Zoraide, falou comigo. Existe um plano por parte dele e de nossos aliados do mundo invisível para que o poder dos Ribuths seja entregue em nossas mãos.

– Então você fez parte do que aconteceu no

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ritual?

– Sim! Depois do que aconteceu no ritual com-preendi qual é o plano de nosso pai. Agora que a seita dos Ribuths depende apenas de nós dois para transportar o ouro, é o momento de agirmos para conquistarmos o poder. Chegou o momento de pensar em nosso futuro. Eu e você podemos assu-mir o comando dos Ribuths. Os elementos ativos, sem os passivos, nada tem para oferecer, estão fora! Só resta eu e você. Até Mosec terá que se curvar diante de nós.

Zirat se levantou, veio até mim e me abraçou, dizendo:

– Você é um gênio!

Zaíra continuou sentada, seu semblante demonstrava grande preocupação Tentei conven-cê-la de que eu estava certo, mas ela se recolheu para seus aposentos. Eu e Zirat conversamos até quase o amanhecer e ludo ficou definido. O can-saço havia me dominado, Zirat partiu e eu fui me deitar. No dia seguinte, ao final da tarde, levantei-me. Zirat me aguardava na sala e estava ansioso:

– Zílio, Zorac, o mago, surgiu em meus sonhos

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e me orientou para evocar Butsá, o fundador da sei-ta, durante o ritual. Ele comanda os aliados invisí-veis e vai apoiar nossos planos. Com o apoio. dele, vamos assumir o comando dos Ribuths. Futura-mente, teremos Liburc e toda a ilha aos nossos pés.

Entusiasmados com a orientação e a revelação de Zorac, conversamos por longo tempo, até che-gar o momento do ritual. Apesar da expectativa, sentia-me seguro, estava decidido a ir até o fim com nosso plano. Zaíra, durante a madrugada, tentou argumentar contra, mas acabei lhe convencendo de que, afinal, era nossa felicidade que estava em jogo.

Seguimos para o ritual. Mosec e os membros ativos já haviam preparado o ambiente para o ritu-al. Zirat, depois de tomar a beberagem preparada pelos aliados invisíveis e servida pela vitima, dei-tou-se. Os membros passivos ficaram próximos à mesa de sacrifícios e logo em seguida, o elemento gasoso começou a ser expelido por Zirat. Em pouco tempo, estávamos diante de Butsá completamente materializado. Olhou para mim e sorriu. Voltando-se para Mosec, falou:

–Ao longo do tempo, os Ribuths conseguiram

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acumular grandes riquezas, porem isso apenas não basta. Precisamos conquistar o poder sobre a ilha, pois Liburc continua governando Zantar. A par-tir de hoje, os Ribuths terão, como outrora, dois irmãos em seu comando e com eles vamos expan-dir nosso poder.

Fez uma pausa e, vencendo as dificuldades proporcionadas pelo processo de materialização e apontando para mim e Zirat, completou:

– Os irmãos Zirat e Zílio passam a comandar os Ribuths na Terra, enquanto que, no invisível, eu e meu irmão continuaremos comandando nossos aliados.

Mosec olhou para os membros ativos e viu que estavam atônitos com as declarações de Butsá. Então, perguntou:

– E nós, o que faremos?

– Você, Mosec, por sua dedicação e fidelida-de, permanecerá como mestre de cerimonias, sele-cionando as vitimas e preparando os sacrifícios Os outros deverão estar fora de nossas muralhas na próxima lua. Vou partir, outro vira em meu lugar e trara valioso material que deverá ser usado em

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favor de nossa causa. Sacrifiquem a vitima em seu louvor.

Butsá partiu e se desvaneceu. Logo em segui-da, formou-se uma nova figura. Possuía uma apa-rência estranha, era muito grande e seus olhos eram opacos, tinham a mesma cor do corpo. Sua voz era rouca e quase não se entendia o que dizia.

– Fora com eles - ordenou, apontando para os membros ativos.

Mosec pediu para que se retirassem, eles aten-deram e saíram. A figura se ajoelhou e, com as mãos voltadas para o chão, pronunciou algumas palavras estranhas. Nesse momento, apareceu diante dele um recipiente de forma oval, que não possuía qual-quer tampa ou orifício. Olhou para mim e disse:

– Este recipiente contém a arma que poderá usar contra Liburc Quando se tornar necessário, deverá transportá-lo até as portas da cidade de Zan-tar e quebrá-lo quando o vento soprar do leste para o oeste da ilha. O vento se encarregara de espalhar a dor e o sofrimento nos domínios de Liburc.

Depois dessa recomendação, a figura se levan-tou e foi até a mesa do sacrifício, onde a vitima já se

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encontrava sacrificada, pronta para servir seus pro-pósitos. Eu estava nervoso. Fui até o escravo que segurava o jarro da bebida oferecida aos passivos e tomei um bom gole. Senti me acalmar. Fui acometi-do por uma espécie de êxtase, era como se eu esti-vesse gozando de um super vigor mental e físico, era mais forte do que todas as outras beberagens que eu havia ingerido. Por alguns instantes voltei a ser criança, comecei a cantar uma canção de impro-viso. Cantei o amor de Zaíra, as belezas do lugar onde estávamos, falei do arco-iris que pendia sobre o telhado de nossa casa, exaltei o poder que tinha conquistado e tudo à minha volta era motivo de ale-gria. Mosec tentou me controlar, mas foi em vão. Eu estava eufórico. Quando terminou o ritual, a eufo-ria havia passado e logo em seguida entrei em pro-funda depressão e acabei desfalecendo. Mais tarde ao recuperar a consciência, estava em casa. Zaíra me informou que Mosec e Zirat haviam me carre-gado até ali. Estava preocupado com o recipiente de barro, precisava saber de seu paradeiro. Então perguntei para Zaíra:

– Para onde foram Zirat e Mosec?

– Foram descansar, disseram que mais tarde

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retornariam. O que houve com você?

- Nada, está tudo bem!

- Nada? Você chegou carregado!

- Tive um mal estar, mas já passou.

- E o ritual?

- Correu tudo bem! Agora, eu e Zirat somos o poder supremo dos Ribuths. Em pouco tempo, toda Zantar vai estar aos nossos pés!

Zaíra se manteve calada. Então reafirmei:

- Vou ser o senhor de Zantar. Isso não é motivo de alegria para você?

- Não! Para mim, é motivo de preocupação

- O que esta lhe preocupando?

- Estamos entrando em uma guerra envolven-do forças que desconhecemos e você me pergunta qual a minha preocupação?

- Calma querida, tudo dará certo.

Naquele momento, Mosec e Zirat chegaram. Fomos para a varanda e ali discutimos os planos para atingir Liburc. O recipiente estava com Zirat e, depois de colocá-lo sobre a mesa, começou a falar:

-Agora que fomos revestidos da responsabi-

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lidade de comandar os Ribuths, precisamos nos inteirar de tudo que existe por aqui, para então começarmos qualquer ação agressiva.

- Concordo com você. Vamos aproveitar que Mosec está aqui e visitar todos os locais reservados ao comando central dos Ribuths.

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Tudo e todos obedeciam aos planos estabele-cidos. Por questões de segurança, Mosec mandou executar os membros ativos, pois sabiam demais sobre nossa organização. Em pouco tempo, criamos um grande exército de guardas e espiões que obe-deciam cegamente as nossas ordens.

A cada ritual, os invisíveis se revezavam na materialização através dos recursos de Zirat. Trans-portavam valiosas riquezas que nos permitiam pagar bem aos que nos serviam e, com isso, aumen-tava a cada dia o numero de interessados em pres-tar serviço na guarda. Consequentemente, conquis-tamos novos aliados. Muitos dos adeptos de Liburc compareciam ao ritual da consagração no Templo de Butsá, jurando fidelidade aos Ribuths. Crescia vertiginosamente o numero de novos adeptos.

A eXPANSAo DoS RiBuTHS

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Liburc, sentindo a expansão dos Ribuths, pro-move um ataque às nossas muralhas. Foram mui-tos meses de lutas e derramamento de sangue, até que reconheceu sua impotência diante da inexorá-vel fortaleza constituída por nossas muralhas. Fra-gilizado em seu poder, retirou-se, conduzindo suas tropas de volta a Zantar.

Depois desse ataque, houve um longo período de trégua. Nossos espiões traziam constantemente informações de que Liburc e seus aliados prepara-vam apetrechos bélicos para tentar transpor nova-mente nossas muralhas. Seus feiticeiros se reuniam todas as noites próximos de nossas muralhas para praticar rituais de magia, tentando nos atingir.

Certa noite, fui acordado pelo chefe da guar-da, que insistia em falar comigo. Levantei e fui rece-be-lo. Ele estava nervoso e agitado, falou dobran-do-se diante de mim:

– Senhor, um de nossos espiões foi trazido pelos feiticeiros de Liburc e deixado diante do por-tão principal, parece estar ferido. Vim pedir autori-zação para recolhe-lo.

– Está autorizado! Levem-no aos nossos curan-

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deiros. Fiquem alerta! Avisem-me de qualquer movimento estranho próximo as nossas muralhas.

Depois das recomendações, voltei a me dei-tar. Zaíra estava acordada e quis saber o que estava acontecendo. Contei-lhe e depois me entreguei ao sono. Logo amanheceu, quis continuar dormindo, mas o canto dos pássaros me incomodava.

Levantei-me quando o almoço estava sendo servido. Zaíra me pegou pelo braço e me acompa-nhou até a mesa. Sentamos. Seu olhar me penetra-va por inteiro, parecia vasculhar meus sentimentos mais íntimos. Ela sorriu e perguntou:

- Dormiu bem?

- Não, não dormi bem. A barulheira dos pássa-ros não me deixou nem mesmo cochilar.

- O que esta acontecendo? Você gostava de ouvir o canto dos pássaros.

- Gostava, mas agora me incomodam com seus cantos estridentes.

Quando pronunciei a palavra estridentes, lembrei-me quando Zaíra me advertiu, na véspera do ritual que marcou nosso domínio sobre os Ribu-ths, sobre o que estava para acontecer:

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“Hoje à noite será o inicio de um período de maio-res preocupações. Se realmente você e Zirat conquistarem o poder sobre os Ribuths, nossa vida perderá o encanto em que estamos envolvidos. O Canto dos pássaros, que ago-ra nos acalma, tornar-se-á estridente nos nossos ouvidos, o murmurar das águas, que agora deleita nossos ouvidos, tomar-se-á um barulho insuportável. Ouça o vento asso-biando ao passar por entre os galhos das arvores, sua melo-dia é melancólica e triste. E presságio de muitos temores e sofrimentos que se abaterão sobre esta ilha. O Senhor dos Mundos está triste, por isso seu halito sopra melancólico”.

Zaíra continuava me olhando, seu olhar ago-ra era de meiguice. Ela estendeu sua mão sobre a minha e me disse:

- Zílio, depois que você assumiu o comando dos Ribuths, nossa vida não tem sido a mesma, nunca mais fomos passear em torno da floresta. Lembro-me sempre dos momentos felizes e ines-quecíveis que vivemos. Eu gosto muito me banhar na cachoeira, mas sem você por perto, não me sinto animada.

- Você tem razão. Não tenho mais tempo para as coisas simples e belas que fazíamos juntos. Mas deves entender que as obrigações que assumi não me permitem viver como viviamos.

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Ainda estávamos conversando quando Zorai-de entrou na sala e, cambaleando, caiu ao chão.

Zaíra a socorreu e a colocou sentada em uma cadeira. Seu rosto se transfigurava aos poucos. Pen-sei se tratar do espirito de meu pai, mas logo per-cebi que a fisionomia de Zoraide começava a se assemelhar com a fisionomia de minha mãe. Ela começou a falar:

- Meu filho, não se entregue ao domínio das trevas. Aproveite o poder do qual foi investido e acabe com os rituais criminosos. Procure ouvir a voz da razão, seu pai jamais quis me escutar. Eu sempre abominei a seita dos Ribuths e seus ritu-ais macabros, por isso não o acompanhei quando se instalou aqui. Sonhava criar você e Zirat longe des-te lugar, mas as trevas alcançaram nosso lar e uniu vocês nessa empreitada maligna.

Enquanto falava, meu coração parecia ter sido perfurado por uma lamina. Ela continuou:

- Aproximei Zaíra de você tentando usa-la para vos guiar, mas seu coração frágil se deixou apaixo-nar. Mesmo assim, consegui colocar algumas pala-vras em sua boca, tentando dissuadi-lo da emprei-

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tada infeliz com a qual acabou se envolvendo.

- Mãe, nos estamos cumprindo a vontade de nosso pai. Nos devemos isso a ele. Liburc não pode ficar impune pelo que fez a nossa família.

- A vingança é o instrumento dos mais fra-cos. Temos que ser fortes o bastante e resistir aos impulsos infelizes do coração, para não afundar-mos nas trevas do sofrimento. Zenc, seu pai, dei-xou-se dominar pelo ódio que o esta consumindo. Esqueceu que fomos banidos de um mundo que agora respira num clima de paz e de felicidade, a semelhança de um paraíso, exatamente porque não soubemos conter esses impulsos que ainda caracte-rizam a animalidade em nós.

Naquele momento, senti o mundo desmoro-nar sobre mim. Em meu interior, relutei para acei-tar o que minha mãe estava me propondo.

Então retruquei:

- Mãe, a vida nos fez livres! Estou vivendo um dos momentos mais importantes que essa liberda-de me proporcionou. A minha obrigação fazê-los se perpetuarem e, para isso, devo continuar lutando com todos os recursos de que disponho para me

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manter no poder, caso contrario jamais terei outra oportunidade de ser feliz como desejo ser.

- Meu filho, a felicidade que supõe estar viven-do é efémera. Não estou preocupada com essa feli-cidade passageira sobre a Terra, mas sim com vos-sa felicidade perante a eternidade. Estou tentando evitar que se comprometa ainda mais com as leis que dirigem nossos destinos. Portanto, procure ouvir o lado bom que eu lhe dei e que ainda existe em você. Não se deixe envolver pelas ilusões que poderão fazê-lo sucumbir em muitos séculos de sofrimentos.

- A senhora não entende. Eu entrei em um caminho sem volta. Nada posso fazer para conter a força do destino.

- O destino somos nos que construímos. Com apenas uma ação, podemos altera-lo para os pró-ximos séculos a nossa frente. Não se iluda com o poder transitório que desfruta agora, pois ele pode-rá levá-lo a construir séculos de escravidão.

Zoraide começou a se debater e voltou ao seu estado normal. As revelações de minha mãe me causaram um profundo conflito interior. A segu-

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rança que sentia se esvaiu, deixando o medo domi-nar meu coração. Zaíra tentava me confortar, mas o único conforto que encontrei foi na beberagem do ritual, o qual passei a consumir compulsivamente. Os rituais continuaram, Zirat não deu ouvidos as revelações de nossa mãe. Atormentado pelas duvi-das que se levantaram em meu coração, enclausu-rei-me na omissão.

Certa manhã, quando estava em casa com Zaí-ra, fui procurado pelo curandeiro, que me trouxe uma informação preocupante:

- Senhor, o espião que foi deixado ferido dian-te do portão principal trazia seu corpo marcado pela magia dos feiticeiros de Liburc.

- E qual o problema?

- O problema é que todos os que tiveram con-tato com ele adoeceram, inclusive o chefe da guar-da.

- E vocês não conseguem curá-los?

- Nossos preparados são impotentes dian-te dessa doença estranha e desconhecida de todos nós. O pior é que está se alastrando, muitos já mor-reram.

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- Que tipo de doença é essa que vossos remé-dios não conseguem curar?

- Ela ataca a respiração. Os enfermos ficam ardendo de calor e se debatem até a morte. Somam- se centenas de contaminados.

O problema me tirou da omissão. Imediata-mente convoquei Zirat e Mosec para uma reunião, pois era preciso avalias o que estava acontecendo e buscar as soluções. Reunímo-nos na sala do conse-lho e, depois que expus a situação Mosec se mani-festou:

- Eu e Zirat já sabemos de tudo. Precisamos pedir ajuda aos nossos aliados invisíveis. Estamos próximos do dia do ritual, mas até la sera necessá-rio isolarmos os doentes, para se evitar uma conta-minação maciça.

Zirat não concordou, argumentando:

- Ainda faltam trés dias para o ritual e não temos certeza de que os aliados poderão nos aju-dar. O melhor é sacrificar os infectados e queimá-los fora de nossa muralhas. Com isso, estaremos garantindo nossa segurança. Ninguém pode prever o que essa peste pode fazer em três dias.

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Retomando a palavra, Mosec considerou:

- Nossos melhores homens da guarda estão infectados, não podemos sacrifica-los sem tentar-mos a ajuda dos aliados. São homens valorosos e fiéis à nossa causa, seria injusto de nossa parte sacrificá-los.

– Não podemos arriscar perder milhares de colaboradores por causa de alguns poucos, por mais valorosos que sejam.

– Porque não isolamos aqueles que nos são caros e sacrificamos o restante dos contaminados? – sugeri, tentando o melhor.

Mosec e Zirat concordaram com minha suges-tão, mas o caso era mais grave do que parecia. Enquanto discutíamos, muitos estavam sendo con-taminados. Isolamos os escolhidos e sacrificamos os demais, porem, durante os três dias de espera, tive-mos que sacrificar dezenas de infectados.

O ritual foi realizado sem sacrifício, apenas Butsá compareceu e, com muita dificuldade, conse-guiu se materializar. Orientou-nos para que recor-recemos a ajuda de Zorac, o mago. Encerramos o ritual e, logo em seguida, Zirat partiu em busca de

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Zorac.

Retornei para casa. Sentia-me arrasado com tudo que estava ocorrendo. Zaíra, como sempre, tentava me confortar, mas só depois de tomar mui-tos goles da beberagem é que eu conseguia acal-mar a luta interminável que havia se instalado em minha consciência depois que ouvi minha mãe.

Após alguns dias da recomendação de Butsá, Zirat retornou trazendo Zorac. Mesmo com toda sua magia e com a ajuda dos curandeiros, Zorac demorou alguns anos para erradicar a peste que reduziu consideravelmente o contingente dos Ribuths. Diante disso, estabeleceu-se um clima de insegurança. Mosec, Zorac e Zirat temiam um ataque maciço de Liburc. Permaneci passivo, deixei tudo por conta de Zirat. Preenchia meus dias com o amor de Zaíra e com os delírios que a beberagem me proporcionava. Muitas vezes, em minhas alucinações, via minha mãe e discutia com ela. Outras vezes, revivia os prazeres das festividades que aconteciam apés os rituais.

Mosec, orientado por Zirat e Zorac e acom-panhado por alguns dos espiões que nos serviam,

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seguiram em uma caravana sinistra em direção a Zantar. Levavam o recipiente de barro, pois os ven-tos sopravam favoráveis a execução do plano. Sor-rateiramente, aproximaram-se das portas de Zan-tar e quebraram o recipiente dos invisíveis. Depois de alguns meses, uma terrível peste se abateu sobre os domínios de Liburc. Uma grande parce-la dos habitantes de Zantar foi atingida, centenas de doentes chegavam até nossas muralhas claman-do por socorro, porém eram mortos pelos guar-das e depois queimados, muitos eram queimados antes mesmo de morrerem. A peste causava feridas que consumiam partes do corpo e culminava com vômitos consecutivos, fazendo com que o infectado expelisse golfadas de sangue pela boca, até levá-lo a morte.

Zaíra lutou para me tirar da passividade em que havia me projetado, insistia para que eu reto-masse o comando junto a Zirat. Diante de sua insis-tência e do carinho com que me tratava, aos poucos fui reagindo até conseguir me reequilibrar. Zaíra voltou a sorrir e, com a sabedoria que demonstrava possuir, alertou-me:

– Zílio, a peste que foi semeada se espalha por

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toda a ilha. Corremos o risco de sermos também atingidos. Não vamos aguentar uma nova epide-mia. Os espiões que retornaram das imediações de Zantar foram contaminados e, por precaução, estão sendo mantidos fora das muralhas. É preciso fazer alguma coisa.

– O que podemos fazer? O que esta aconte-cendo esta fora de nosso controle.

– Convoque uma reunião com Zirat. Talvez se vocês ordenarem, Zorac movimentara recursos para conter essa desgraça.

Depois de ouvir as ponderações de Zaíra, fui ao encontro de Zirat. Meu irmão havia se trans-formado. Depois que passou a desfrutar do amplo palácio, entregou-se a sexolatria. Constantemente renovava seu harém. Tentei convence-lo do perigo que nos ameaçava, mas foi em vão. Sorrindo, senta-do entre duas belas jovens, argumentou:

– Não há com que se preocupar! Já não temos mais inimigos que possam ameaçar nossa segurança. Nem mesmo a peste poderá atravessar nossas muralhas, relaxe e aproveite para desfrutar da gloria dos vencedores. Em breve vamos invadir

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Zantar e tomar posse do que nos pertence por direito de conquista. Você não deve dar ouvidos a Zaíra, ela o ama muito e teme perdê-lo, por isso preocupa-se em demasia. Aproveite as delicias do poder, sem constrangimentos. O homem não pode pertencer a uma só mulher. Sente-se aqui e relaxe, vamos tomar o Elixir da Felicidade, a bebida que poucos tem o privilégio de saborear.

Zirat demonstrou muita determinação e con-fiança nos planos estabelecidos. Tentei argumentar, mas ele foi convincente:

– Zílio, você não percebeu que somos os vito-riosos? O mundo nos pertence! Em breve, toda a ilha sera nossa. Você age como se nos fossemos os derrotados! Tome, beba em louvor a nossa vitória.

Peguei o frasco e bebemos. Depois de alguns goles e de seus argumentos, achei que estava certo, afinal tudo estava acontecendo conforme planeja-mos. Aos poucos, consegui me descontrair. Influen-ciado pelo ambiente de luxuria que predominava naquele requintado palácio, acabei envolvido pela sensualidade daquelas belas mulheres e me entre-guei aos prazeres da carne. Permaneci ali por lon-

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go tempo. Distante de Zaíra, libertei-me de minha consciência e passei a viver dando vazão aos meus desejos.

Zirat e Mosec, depois que a peste consumiu milhares de adeptos de Liburc, alcançaram seus objetivos. Atacaram Zantar e dominaram toda a ilha. Liburc, depois de derrotado, foi executado na praça principal de Zantar. Zorac, o mago, nos-so aliado, carregado em sua cadeira pelo escravo que o servia, comandou a execução. Saciou o desejo de vingança que alimentava desde quando Liburc mandou seus guardiões lhe amputarem as pernas.

Zirat se mudou para Zantar, ampliando poder dos Ribuths. Permaneci no castelo enclausurado pelo prazer, porém não conseguia esquecer Zaíra. Vez ou outra, ia ao seu encontro e permanecia ao seu lado até suprimir a saudade. Eu a amava muito, mas o desejo de ser livre para amar também outras mulheres me dominava. Foram longos anos em que vivi me dividindo entre o amor de Zaíra e as deli-cias que o poder me proporcionava.

Certo dia, pela manha, Zoraide veio até o cas-telo e entrou em meus aposentos. Estava aflita e

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chorando. Como nada dizia, perguntei:

– O que aconteceu?

Enxugando as lagrimas com as mãos, come-çou a falar:

– A senhora Zaíra está muito doente e deseja vê-lo.

Surpreso e tomado por um terrível remorso, fui ao seu encontro. Ventos violentos sopravam em todas as direções, as nuvens escuras encobriam a luz do sol. O dia parecia se tornar noite, mal con-seguia caminhar. Lembrei-me do Senhor dos Mun-dos, quando Zaíra afirmava que o vento era o hali-to dele e refletia seus sentimentos. Senti um certo temor e quando cheguei, encontrei-a agonizando. Seu belo rosto estava oculto pelas feridas que se alastraram pelo corpo, o sangue jorrava pela boca.

No momento em que venci o medo da doença e fui abraca-la, ouvi um estrondo. As águas arre-bentaram as paredes e invadiram o lugar onde está-vamos. Debati-me, tentei agarra-la, mas foi em vão. O desespero tomou conta de meu ser e fui arrasta-do pelo furor das águas. Mal conseguia flutuar e, ao longe, pude ver que toda a extensão da ilha esta-

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va encoberta pela água que se nivelava com o mar. Senti a morte se aproximar a exaustão me impedia de continuar lutando contra a força das águas que me puxavam para baixo. Minhas forças se exauri-ram e me entreguei à fúria das águas.

Milhares de anos se passaram...

Depois dessa encarnação, que custou para mim um longo período de sofrimentos no mundo espiritual, vivi outras oportunidades em que pude resgatar minhas atitudes impensadas. Através das encarnações que me foram concedidas pela mise-ricórdia divina, peregrinei várias vezes pelos cor-redores do sofrimento, experimentando o deses-pero e a revolta, atitude que se transformou em uma característica de meu espírito, a qual tem con-tribuído para retardar minha marcha de ascensão. Em várias oportunidades, eu, Zirat,-Mosec e Zorac compartilhamos juntos de encarnações retificado-ras, onde resgatamos nossos crimes.

Em várias ocasiões, Zaíra renunciou aos mere-cimentos para me acompanhar na Terra, fim de me ajudar a conquistar o equilíbrio minhas emoções. A

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cada encarnação, ela continuou crescendo em sabe-doria e hoje resplandece plena de luz na figura de Helena, minha estimada benfeitora. Zorac, o mago, está agora reencarnado, vivendo em terras brasi-leiras. Zirat é hoje meu bom amigo Felipe, a quem devo o socorro e o esclarecimento que me devolveu à vida. Mosec é nosso estimado doutor Diógenes.*

Depois que consegui resgatar essas lembran-ças, pude compreender que muitos de nós, encar-nados e desencarnados, transitando neste mundo de expiação e de provas, já vivemos longos perí-odos envolvidos pelas trevas da impiedade e da ignorância. E o pior: quase sempre reincidindo nos mesmos erros, os quais não conseguimos con-ter e superar. Os resquícios desses períodos infeli-zes ainda estão presentes em nosso subconsciente. É por isso que muitos de nós, quando aprisiona-dos no corpo físico e cercados pelas circunstâncias que limitam nossa ação dentro do campo de nossos merecimentos, tentamos sufocar nossas frustrações

coNSiDeRAçõeS

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usando de recursos artificiais, onde acabamos nos entregando aos vícios e às ilusões do mundo, con-traindo novas dividas que, a cada encarnação, aca-bam limitando ainda mais nossa liberdade. Porém, a cada vitória que conseguimos quando superamos nossas tendências más, ampliamos o campo de nos-sos merecimentos e, consequentemente, dilatamos nossa liberdade.

Zílio

* Helena, Felipe e Diógenes, são os espíritos que receberam Zílio no mundo espiritual, constam do livro. “Um Roqueiro no Além” também de sua autoria, psicografado por Nelson Moraes.