27
1 34º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS ST3 – CIDADES: Dimensões, Escalas e Composições GUETOS E FAVELAS: Recorrência do “déficit” de territórios nas metrópoles contemporâneas Brasilmar Ferreira Nunes (UFF/CNPq/FAPERJ) Leticia Veloso (UFF/FAPERJ)

Guetos e Favelas

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Guetos e Favelas

Citation preview

  • 1

    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

    ST3 CIDADES: Dimenses, Escalas e Composies

    GUETOS E FAVELAS: Recorrncia do dficit de territrios nas metrpoles contemporneas

    Brasilmar Ferreira Nunes (UFF/CNPq/FAPERJ) Leticia Veloso (UFF/FAPERJ)

  • 2

    GUETOS E FAVELAS: a recorrncia do dficit de territrios nas metrpoles contemporneas

    Brasilmar Ferreira Nunes (UFF)1 Leticia Veloso (UFF)2

    Introduo

    O presente artigo visa contribuir para a reflexo sobre os espaos urbanos marginalizados na contemporaneidade, atravs da seguinte pergunta: possvel pensarmos numa aproximao entre as favelas brasileiras e os guetos americanos? Quais as semelhanas e diferenas que permitiriam ou no tal comparao, e o que ganharamos

    analiticamente na compreenso de espaos urbanos marginalizados contemporneos em perspectiva comparativa? Iniciamos a discusso com um breve percurso pelos primrdios

    dos estudos sobre a excluso social em reas urbanas, consolidados a partir da primeira fase da Escola de Chicago, ainda na primeira metade do sculo XX. A seguir, discorremos sobre como alguns pressupostos daqueles primeiros estudos vm sendo repensados no caso do gueto afro-americano. Finalmente, nos debruamos sobre o caso das favelas brasileiras que, em sua especificidade, podem iluminar de forma bastante til no s o problema do gueto, mas dos espaos urbanos marginalizados em geral. O que

    haveria de semelhante, e de diferente, entre o gueto e a favela? Para iniciar esta reflexo, retomemos, portanto, os autores clssicos da Primeira

    Escola de Chicago, como Park e Burgess. Naquele momento, estudiosos se debruam

    sobre as condies gerais de vida da populao urbana (especialmente de Chicago) e procuram explicar a lgica dos processos sociais tais como migraes, marginalidade,

    violncia, profisses, dentre outros. O projeto coletivo dos intelectuais da poca deu cidade particular ateno, retirando das caractersticas da aglomerao territorial da populao as suas principais hipteses de trabalho. Estudos comunitrios, especialmente o seu rebatimento no espao fsico da cidade, na morfologia e na ecologia urbanas,

    1 Professor do Depto de Sociologia da UFF, pesquisador do CNPq e FAPERJ

    2 Professora do Depto de Sociologia da UFF, pesquisadora da FAPERJ

  • 3

    tinham como base a percepo de que estudos microscpicos permitiriam, de fato, um estudo mais detalhado, mais controlado e mais preciso de processos mais amplos.

    Embora tais paradigmas j tenham sido amplamente criticados, no h razo para deixarmos de lado alguns dos pressupostos analticos ali presentes na anlise que aqui empreendemos sobre espaos urbanos marginalizados, principalmente no que diz respeito ao conceito de gueto. Utilizado com freqncia desde o incio do sculo XX, seu significado e uso j se alteraram em algumas de suas dimenses mais importantes, conforme veremos abaixo. Recuperando rapidamente algumas reflexes de cerca de um sculo atrs, lembramos que o estudo do gueto, particularmente o gueto judeu em Chicago, faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo dirigido por Burgess (1979)3, dentro do qual Louis Wirth defende em 1928 sua tese de Doutorado o clssico The Ghetto4. Sua proposta mais ampla descrever as migraes intra-urbanas em termos de mobilidade espacial: por um lado, a progresso da populao de uma rea para outra que, segundo a hiptese, seria de um bairro mais antigo (o gueto) para bairros residenciais mais perifricos (Lawndale) e, por outro, a freqncia e amplitude destas migraes.

    Como diz Rojtman (1980)5 a obra tem tambm uma preocupao qualitativa na medida em que considera que o estudo da mobilidade espacial pode revelar tendncias de crescimento urbano, aparecendo portanto e sobretudo como um meio de analisar processos sociais, culturais e psico-sociolgicos. O fato que Wirth no prefcio incisivo quando diz: parti para estudar uma rea geogrfica, fui levado, de maneira involuntria, a examinar a histria natural de uma instituio e a psicologia de um povo. Ou seja, em sua tese de sociologia Louis Wirth toma o gueto como objeto, tratando-o como (1) instituio, (2) forma urbana, e (3) forma social. Parte o autor, essencialmente, da idia do judasmo, sua histria e seu futuro; olhar que lhe permite uma considerao simblica do gueto negro em uma Amrica dividida pela segregao de raa mais do que anti-semitismo propriamente dito.

    A tese de Wirth bem como o conjunto de estudos dirigidos por Burgess vo consolidando uma imagem dos processos scio-culturais urbanos, nos quais a existncia

    3 Burgess, W.: Croissance de la ville: introduction un projet de recherche. In Grafmeyer, W. e Joseph, I. Lcole de Chicago, Paris, Aubier, 1979.

    4 Wirth, L.: Le Ghetto. Paris, Champ Urbain, 1980

    5 Rodjtman, P.J.: Avertissement, in Wirth, L. Le ghetto op. cit.

  • 4

    de reas segregadas e de guetos culturais decorrentes de ocupaes sucessivas por migrantes representam mais do que simples produto acidental de um processo, de um fenmeno essencial, sobre o qual no tem efeitos prprios: marcam estruturalmente o espao urbano. O gueto lido, aqui, como um fenmeno transitrio, um equilbrio provisrio, tendendo a se desfazer. A passagem pelo gueto significaria ali, portanto, uma etapa no processo de assimilao.

    O que temos aqui, portanto, um tpico caso de um modelo tradicional de ocupao de reas urbanas que se reproduz nas metrpoles americanas na virada do sculo XX. Tal modelo, comumente denominado gueto j desde as primeiras dcadas do sculo XX nos Estados Unidos, fazia ento parte do senso comum e dos modos como seus habitantes descreviam-se a si mesmos e a sua localidade de residncia. A

    denominao do fenmeno concreto, ou mesmo de um espao especfico, porm, foi retirada do senso comum pela academia e adequada aos seus prprios propsitos. Assim, um fenmeno concreto e um termo habitual na auto-descrio de seus habitantes, era transformado num conceito terico que serviu como base para inmeros estudos

    sociolgicos urbanos focados em espaos marginalizados. Embora o termo admita vrias significaes distintas (porm intrinsecamente

    ligadas umas s outras), o fato que esta transposio de usos e sentidos de espao que servia de moradia a populaes especficas para conceito sociolgico abstrato teve uma srie de efeitos, positivos e negativos, sobre os estudos de espaos marginalizados urbanos. Mesmo assim, defendemos aqui a idia da relevncia sociolgica do conceito

    para compreender no apenas aqueles espaos mais comumente associados ao termo reas marginalizadas e segregadas em territrio americano como ainda outras reas

    urbanas, tambm marginalizadas e segregadas, que guardam com o gueto tanto semelhanas quanto diferenas.

    Para possibilitar tal discusso e melhor compreender o alcance e os limites do conceito do gueto, cabe um retorno s origens o termo. De fato, o termo gueto remonta da Roma antiga, e se referia na origem rea da urb habitada por judeus. Sennett (1997; 183)6 nos fala que desde o Conclio de Latro em 1179 os cristos isolaram os judeus em diferentes cidades onde esse povo procurava abrigo, obrigando-os a viver parte. Se formos junto com Sennett para a Veneza do sculo XVI notamos que o gueto se 6 Sennett, R.: Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilizao ocidental. Rio de Janeiro, Editora Record, 1977

  • 5

    reproduz, delimitando o territrio onde moravam os estrangeiros que ali no desfrutavam de nenhum privilgio de cidadania oficial vivendo permanentemente como migrantes. Interessante ressaltar que no se tratava de um territrio exclusivo de pobres ou despossudos: o gueto em Veneza continha entre seus moradores as grandes fortunas comerciais e financeiras, sobretudo dos judeus. O isolamento aqui era de natureza simblica, pois judeus eram identificados com vcios corruptores doenas venreas capaz de contaminar os cristos por vias misteriosas (sic), evitando-se inclusive o contato fsico pelo temor de ser corrompido pelo dinheiro. Estamos naquele momento em pleno perodo de surgimento do capitalismo europeu, com a expanso das navegaes e

    do comrcio entre continentes. importante chamar ainda ateno para outra caracterstica do gueto da poca,

    tambm ressaltada por Sennett (ibid.). Os moradores do gueto em Veneza apesar das restries a que eram submetidos, foram capazes de construir novas formas de vida comunitria que extrapolavam a poltica de isolamento e de conquistar algum nvel de autodeterminao. Este dado sintomtico, pois nos damos conta de que de um lugar de

    segregao imposta por cristos a judeus e/ou estrangeiros, o gueto vai constituir um espao de sociabilidade onde uma cultura pode existir e se reproduzir, ou seja, passa a ser o lugar onde o judeu pode ser judeu, numa clara indicao de que o lugar da moradia elemento ativo nos processos identitrios. Esta mesma possibilidade foi detectada por Wirth ao pesquisar o gueto de Chicago no incio do sculo XX. E isso, mesmo se, naquele momento, o gueto era lido pelos seus moradores como um lugar de passagem

    em direo a novas reas e novas posies na estrutura social.

    O Gueto Contemporneo: Exacerbao da Segregao Planejada?

    Ainda dentro do processo de reconstruo sociolgica que transformava um termo que originalmente denominava um espao em conceito explicativo, o uso do gueto foi se ampliando para se referir aos espaos marginalizados, empobrecidos e segregados

    habitados pelos afro-americanos em metrpoles como Nova York, Detroit, Chicago, Pittsburgh, Washington, D.C. e, mais tarde, Los Angeles e Philadelphia. Ao mesmo

    tempo em que o uso do gueto como conceito se expandia e se repensava, porm, o

  • 6

    gueto como espao concreto habitado por moradores de carne e osso sofria uma transformao ainda maior: do gueto comunitrio imaginado e analisado por Wirth, passou-se, cada vez mais, aos guetos degradados e abandonados da contemporaneidade.

    Wacquant (2001, 2005, 2008a, 2008b), por exemplo, demonstrou que, aps um breve apogeu do gueto americano nas dcadas de 1950 e 1960, guetos em diferentes cidades dos Estados Unidos vm passando por processos de rpida degradao que envolve, alm da deteriorao dos prdios e do espao em torno, o quadro de vida em geral, com crescimentos exponenciais no desemprego e na criminalidade violenta. Com isso, os guetos vivenciam um xodo generalizado dos moradores: aqueles que de alguma

    forma tm um mnimo de condies de fugir do gueto assim o fazem, restando apenas aqueles moradores que, desprovidos de qualquer meio de subsistncia ou sistema de

    suporte familiar, literalmente ficam presos ao gueto por total falta de condies de sada.

    Em geral, quem habita os guetos de hoje uma populao condenada a uma forma de exlio interior, agravada porque os recursos fiscais das metrpoles vo

    diminuindo medida que os ricos fogem para os subrbios (Venkatesh, 2000:148-150). Como coloca Venkatesh (2000, 2006), foras estruturais poderosas determinaram os rumos do gueto aps as dcadas de 1960 e 1970, principalmente com a ascenso do neoliberalismo desde a era Reagan. Dentro dessas novas foras neoliberais, o autor aponta dois efeitos principais. Primeiro, a retirada repentina, mais que gradual do Estado de Bem-Estar Social e, com ela, a reduo extrema das polticas sociais voltadas

    para os pobres. Segundo, e no menos importante, uma ideologia individualista exacerbada que tem como uma de suas principais manifestaes a valorizao do

    achievement individual e a conseqente responsabilizao dos pobres por sua prpria sorte. Esta conjuno de fatores foi especialmente importante para explicar a derrocada final do gueto que vimos assistindo desde fins da dcada de 1990.

    Assim, a reflexo sobre o gueto contemporneo se marca, necessariamente, pela questo da degradao, da perda, e da derrocada mesmo do antigo gueto comunitrio descrito por Wirth. Ao tentar dar conta dessas transformaes, a literatura mais recente

    tem trabalhado em cima de alguns dos pressupostos iniciais sobre o gueto j consolidados desde a obra de Wirth, repensando-os luz de suas manifestaes

    contemporneas. Assim, as idias de assimilao gradual, ou do isolamento do gueto,

  • 7

    vm sendo criticadas e repensadas por autores mais recentes, sugerindo pontes importantes com outros espaos marginalizados em outros contextos como o caso da favela brasileira. Para fins de comparao com a favela, discutimos aqui algumas das principais revises que vm sendo feitas por trs autores: William Julius Wilson (1987, 2009), Loc Wacquant (2001, 2005, 2008a, 2008b) e Sudhir Venkatesh (2000, 2006, 2008).

    Gueto e Sociedade: Relaes Ambguas

    Um dos pressupostos mais comuns e recorrentes sobre o gueto, desde os idos de

    1920, que este seria um modelo de ocupao e habitao urbana provisrio. Pensava-se o gueto, acima de tudo, como o espao de grupos recm-chegados cidade que traziam suas prprias crenas, valores e prticas. Analiticamente, portanto, o passo seguinte seria

    imaginar que, gradualmente, tais diferenas seriam assimiladas e que o gueto cada vez

    mais se fundiria cidade. Sob esse ponto de vista, o gueto seria uma soluo temporria de habitao (cf. Wirth, 1980). Porm, para os principais estudiosos contemporneos do tema nos Estados Unidos (Anderson, 1990, 1999, Venkatesh, 2000, 2006, 2008, Wacquant, 2001, 2005, 2008a, 2008b, Wilson, 1987, 2009), no s o gueto no temporrio, como as razes para sua permanncia esto se reproduzindo cada vez com maior intensidade, a partir de mecanismos ainda mais perversos do que os originais. esse processo que tenderia a tornar o gueto um espao de segregao eterna e sem soluo.

    Outro debate recorrente sobre o gueto tem a ver com a idia de desorganizao: j desde a Primeira Escola de Chicago, considera-se o gueto um espao marcado, internamente, por uma desorganizao e desestruturao intrnsecas e endmicas. Para o socilogo Sudhir Venkatesh que vem se posicionando radicalmente contra esse pressuposto (2000, 2006, 2008), o gueto no deve ser compreendido em termos de desorganizao, simplesmente porque, aquilo que aos olhos dos de fora lido como

    tal, do ponto de vista dos habitantes, reflete, apenas, as reaes dos habitantes s adversidades que enfrentam e a busca por satisfazer algumas das necessidades mais

    bsicas, como o alimento, o vesturio e a moradia. Respondem elas com os recursos que

  • 8

    tem mo, e so essas respostas que, por no obedecerem aos critrios da sociedade mainstream, so interpretados como marcas de uma desorganizao nativa, uma vez que podem envolver prticas ilegais e semi-ilegais, ou condutas tidas como desviantes Venkatesh (2000, 2006, 2008).

    Assim, o que parece mera desorganizao para o senso comum , como tambm sugere Wilson em vrios trabalhos (1987, 2009), resultado de uma deteriorao scio-econmica dos enclaves da inner city especfica a um tempo o ps-1970 e um espao as cidades ps-industriais americanas. Para ele, parte dessa deteriorao efeito de um racismo institucionalizado na sociedade americana, o qual relega os afro-americanos a

    uma posio subordinada. Por outro lado, tambm resultado da deteriorao econmica de reas antes industriais que continuam sofrendo com a desindustrializao ps-1970s. Finalmente, como aponta o mesmo autor (1987, 2009), os guetos se dilapidam e degradam cada vez mais porque, com a emergncia de uma nova classe mdia negra, todos aqueles afro-americanos com condies econmicas para escapar ao gueto assim o fazem, relegando quele espao apenas os mais pobres e mais marginalizados. Da, alis,

    a nfase desse autor na sugesto de que h algo more than just race (Wilson, 2009) em jogo na segregao e degradao dos guetos americanos, visto que se trata de uma combinao perversa entre pobreza e raa no que diz respeito dominao sofrida pelos negros.

    J para Loc Wacquant, o fator que melhor explica a derrocada do gueto o que ele chama de uma poltica urbana de abandono desconcertado desses bairros pelo

    Estado americano a partir dos anos de 1960 (Wacquant, 2008a:169), a qual explica o carter cumulativo e auto-alimentado do processo de deslocamento social

    indiscriminado. Com a exacerbao do neoliberalismo na poltica americana, diz ele, a poltica de desengajamento urbano e social do governo americano vem provocando uma desestruturao sistemtica do gueto, que segundo ele virou um verdadeiro purgatrio urbano (ibid.).

    Complementando, o olhar etnogrfico de Venkatesh (2000, 2006, 2008) e Wacquant (2001, 2005, 2008a, 2008b) que lhes permitem analisar tal suposta desorganizao a partir do ponto de vista dos prprios moradores. S atravs desse mtodo que se consegue realmente enxergar que o que est em jogo no gueto um tipo diferente de organizao social que estaria visvel a qualquer um que se preocupasse em

  • 9

    olhar de perto e com cuidado. O que se perceberia, por esse meio, que a luta diria pela sobrevivncia nessas comunidades se faz atravs de processos de luta, contestao e negociao, atravs dos quais pessoas comuns buscam garantir a viabilidade e a manuteno de suas comunidades. Ou seja, por baixo da suposta desorganizao, o que existe uma base saudvel e normativa, em meio ao empobrecimento econmico generalizado e exacerbado (Venkatesh, 2000:234-235).

    A suposio da desorganizao social esconde, diz ele (ibid.) como as necessidades dirias so atendidas atravs de uma srie de negociaes, disputas e cooperao, bem como a responsabilidade da sociedade mais ampla sobre as vidas dos

    pobres urbanos. O gueto uma comunidade extremamente organizada, mas esta organizao se faz a partir de princpios estruturantes que so especficos quele tipo de

    espao, e se constroem em resposta a um conjunto nico de restries estruturais e estratgicas que recaem sobre esses enclaves racializados da inner-city mais fortemente do que em qualquer outro segmento da populao americana em qualquer outro momento histrico (ibid.). Para alm das diferenciaes e hierarquias internas, sob esse ponto de vista, o gueto contemporneo ps-industrial uma comunidade mantida unida por laos fortes entre seus membros, os quais combinam seus parcos recursos para ajudarem-se uns aos outros na luta pela sobrevivncia (Venkatesh, 2000).

    O Gueto como Vtima da Sociedade

    Pelo que foi dito at agora, percebe-se que o gueto vem sendo pensado,

    fundamentalmente, como uma rea de renegao que, por sua vez, fruto de polticas de abandono estatal em reas como habitao e planejamento urbano. Por isso, a emergncia, consolidao e disperso do gueto so questes polticas. Cabe ainda lembrar que, para os principais autores contemporneos, o que se verifica atualmente uma exacerbao exponencial dos prprios processos que produziram, e que continuam a reproduzir a marginalidade do gueto. Wacquant compreende este processo como a

    passagem do gueto comunitrio dos tempos de Wirth para o chamado hipergueto depositrio de categorias excedentes de pessoas que no tm uso poltico ou econmico

  • 10

    para a sociedade circundante, uma mquina mortal do mais puro banimento social (2008b:56).

    Ao mesmo tempo, porm, como coloca o prprio Wacquant talvez o mais

    ardente crtico do que vem ocorrendo ao gueto (2008b) este no apenas instrumento de vitimizao e segregao forada. um instrumento de dominao, sim, mas um instrumento que possui duas faces, uma forma social que ao mesmo tempo produto e instrumento do poder, cumprindo funes opostas para os dois coletivos que se relacionam atravs dele, relao esta que interdependente porm assimtrica: o grupo dominante, segregador, e o dominado, segregado. Para a categoria dominante, a razo de

    ser do gueto confinar e controlar; mas para a categoria dominada ele tambm pode, potencialmente, servir como instrumento de integrao e de proteo, na medida em que

    livra seus membros do contato constante com os dominadores e estimula a colaborao e a construo comunitria da esfera restrita das relaes por ele criadas (2008b:82).

    De qualquer forma, vivenciamos agora tal um momento de exacerbao do hipergueto, ameaando esfacelar o carter bifacial nos termos de Wacquant, ao

    mesmo tempo arma e escudo do gueto. Ou, ao menos, enfraquec-lo sobremaneira, deixando cada vez menos espao para que se delineie sua funo escudo, e permitindo

    cada vez mais que funcione como arma. Isto porque, na medida em que mnguam os graus de completude e de autonomia institucionais do gueto, seu papel de protetor do grupo subordinado diminui; corre o gueto, ento, o risco de ser engolido por sua faceta excludente (2008b:90).

    Estendendo a discusso, parece lcito afirmar que todos os regimes de marginalidade urbana se compem de ensembles imperfeitamente articulados de

    mecanismos institucionais que juntam economia, Estado, espao e sociedade. maneira de um espelho que deforma e aumenta ao mesmo tempo, o gueto americano nos oferece

    o espetculo do tipo de relaes sociais suscetveis de serem desenvolvidas quando o Estado abandona sua misso primeira, que a de sustentar a infra-estrutura organizacional indispensvel ao funcionamento de uma sociedade urbana complexa (Wacquant, 2008b:168). Adotando uma poltica de eroso sistemtica das instituies pblicas, o Estado abandona s foras do mercado e lgica do cada um por si camadas inteiras da sociedade, em especial aquelas que, privadas de todos os recursos,

  • 11

    econmicos, culturais e polticos, dependem completamente dele para chegar ao exerccio efetivo da cidadania.

    Talvez esteja aqui a principal contribuio e utilidade do estudo do gueto contemporneo para pensarmos espaos urbanos marginais: podemos pens-lo, com Wacquant, como uma espcie de projeto sociolgico que permite ter uma idia realista dos efeitos que poderia produzir, com o tempo, a radicalizao de certos processos de dualizao hoje em germe nos subrbios degradados franceses (2008b:168). Gostaramos de sugerir que o gueto, tanto em termos comparativos como por contraste, pode ser tambm bom para pensar a favela brasileira, tanto em termos de seu

    desenvolvimento histrico quanto em suas manifestaes contemporneas. Embora se trate de dois fenmenos bastante diferentes, o fato de que ambos so os espaos urbanos

    marginalizados por excelncia em suas respectivas sociedades, permite, e at sugere, este exerccio interpretativo. Oferecemos, a seguir, uma discusso sobre a favela brasileira como fenmeno especfico ao caso brasileiro e, principalmente, carioca.

    Comentrios Iniciais sobre a Favela Brasileira

    O processo de urbanizao brasileiro se dinamizou, sobretudo, a partir dos anos 1930 quando a indstria comea a se tornar o eixo da acumulao de capital na economia do pas e o industrialismo vai ser a base da gerao de novos grupos e classes sociais. A

    velocidade com que se fez a passagem de uma populao rural para uma populao urbana no similar que ocorre em outros contextos de industrializao, pois aqui

    tivemos de um lado, um fenmeno em atraso quando comparado, por exemplo, com a Europa e mesmo os EUA e, por outro, uma dinmica industrial cujos efeitos multiplicadores so relativamente reduzidos tendo em vista, sobretudo, a importao de tecnologias para essas atividades. O processo de urbanizao ao longo do sculo XX tem ainda outra especificidade: embora o pas, tal como os Estados Unidos, tambm tenha recebido levas macias de migrantes europeus ao final do sculo XIX e incio do sculo

    XX, no Brasil um grande nmero desses imigrantes inicialmente se dirige para a zona rural, enquanto que o crescimento das grandes cidades se fez, sobretudo, atravs de

    migraes internas de brasileiros vindos dessa zona rural. O porte continental do pas,

  • 12

    aliado a um processo histrico que gerou fortes desigualdades regionais nos nveis de desenvolvimento, alm de um padro locacional da indstria concentrada em poucas grandes cidades, levaram a um deslocamento de populaes das reas deprimidas para as reas em crescimento, numa proporo superior capacidade de gerar empregos no setor formal.

    Essa discusso recorrente entre cientistas sociais e policymakers brasileiros e est na base das explicaes da enorme expanso do chamado mercado informal de trabalho ou mesmo da lgica de excluso social que se implanta nas grandes cidades do pas a partir daquele perodo. A natureza do crescimento das nossas metrpoles tem,

    portanto sua lgica definida por essas caractersticas e dado o poder de atrao de trabalhadores pelas atividades urbanas (indstria, comrcio e servios) observa-se um descompasso entre a oferta de trabalhadores e a demanda por trabalho, alimentando portanto a expanso de atividades informais: a oferta de fora de trabalho cresce exponencialmente e a sua demanda, aritmeticamente. Assim, produzem-se formas diferenciadas de insero na sociedade urbana, onde, sobretudo o trabalho informal deixa

    em situao vulnervel um elevado contingente de pessoas e famlias. O processo , portanto, especfico daquilo que sero as caractersticas das metrpoles brasileiras:

    desemprego, periferizao, favelizao, etc., que revelam uma modernidade truncada, um territrio de dficits, refletindo um processo social com diferentes velocidades, refletido nos diferentes padres de ocupao do solo urbano.

    Assim, este processo de constituio de tais territrios de dficits encontra sua

    expresso mxima nas favelas, inicialmente no Rio de Janeiro, como tambm em outras grandes cidades. Neste cenrio, as favelas serviam, embora de forma precria e

    deficitria, como espao que acolhia os migrantes vindos do campo e tambm ex-escravos, todos em busca de maior insero na economia urbana-industrial que se

    constitua. fato, portanto, que a favela no Brasil surgiu e continuou como um espao marginal, onde se aglomeravam indivduos excludos econmica e socialmente. E, embora pudesse ser tentador, para fins de comparao com os guetos americanos e caracteriz-la como uma rea de negros egressos da escravido, na verdade sua

    composio tnica era mais diversificada, misturando brancos, negros e mestios. A segregao, inicialmente, no era tnica nem racial, mas principalmente econmica.

    Sendo assim, a questo do estigma no se coloca, em princpio, to fortemente como nos

  • 13

    guetos americanos: no a raa nem a etnia que, primordialmente, marca os diferentes na favela. Pelo contrrio, ela , fundamentalmente, um ambiente de pobres na cidade,ou seja, o espao de uma pobreza que de fato se revelou ao longo do sculo, estrutural sociedade brasileira, composta por indivduos diversificados, onde a questo racial est presente, mas no de maneira exclusiva. De fato, as razes pelas quais famlias e indivduos procuram certas reas da cidade para se instalar costumam ser, sempre, inicialmente, de natureza econmica: a baixa capacidade para arcar com os custos da habitao que os leva a ocupar reas pouco atrativas para o capital imobilirio.

    Dado fundamental que a desigualdade social estrutural na sociedade brasileira.

    Entretanto, a urbanizao em nossas metrpoles no uma questo que diz respeito apenas aos grupos de renda mais elevados: trata-se de um grande negcio que tem dinmicas variadas em funo do segmento do mercado a ser atendido: grandes empreendimentos imobilirios se beneficiam de uma mais valia oferecida pelo Estado via polticas urbanas seletivas, ao lado de pequenos empreendimentos em diferentes modalidades de produo que, pelo seu grande nmero, terminam tambm por

    movimentar um expressivo volume de recursos monetrios quando visto de forma agregada. Assim evidente que entre ns a existncia de favelas reflete, por um lado, um

    dficit habitacional que no atendido pelo mercado formal da habitao, porm comprova em contrapartida a existncia de lgicas de acesso moradia e cidade que se descolam daquela formal.

    Alm das causas econmicas que se diluem para o conjunto do territrio nacional provocando fluxos migratrios constantes, h ainda no caso da favela brasileira a dificuldade em fazer a gesto das terras urbanas, sobretudo porque em geral os favelados

    invadem reas no contempladas por polticas pblicas nem aspiradas pelo capital imobilirio. reas que num primeiro momento no so prioritrias para as polticas territoriais urbanas, muitas exigindo novas tecnologias para se adaptarem cidade, portanto pouco valorizadas para a expanso da cidade formal.

    Cria-se assim o ambiente fsico-espacial prprio para expresso de preconceitos por parte da elite que, de forma recorrente em nossa histria, procurava clarear a

  • 14

    populao brasileira7. O termo favela se torna uma definio geral para as reas das metrpoles onde vivem os excludos sociais, em condies precrias de moradia e de acesso a servios coletivos. Sendo uma modalidade de uso e ocupao do territrio da metrpole e levando-se em conta que no seu ambiente temos geraes que a moram e se reproduzem de se pressupor que sua existncia gera formas de sociabilidade que guardam proximidade com sua conformao fsica. Assim, h um intenso processo de criao cultural em ao na favela, cuja cultura se cria na prpria favela, atravs de relaes de vizinhana, prticas culturais, profisses, que tm estreita relao com o lugar de moradia. So, portanto, subsidirias de um modo de vida peculiar que no se

    reproduziria da mesma maneira, fora daquele ambiente. Por conseguinte, o espao da favela produtor de um modo de ser peculiar, atuando diretamente nas formaes

    identitrias e de novas sociabilidades de seus habitantes8. O que, por sua vez, leva pergunta: seria, em alguma medida, a favela parte constitutiva da cultura urbana brasileira?

    Favelas: Territrio de Dficit e Dficit de Territrio

    No Brasil, as favelas, e suas variaes regionais, so as mais conhecidas formas de moradia dos grupos pobres ou desfavorecidos social e economicamente, em geral famlias cuja renda monetria incerta, o que leva a solues cotidianas peculiares, inclusive no que se refere moradia. Cabe insistir no termo incerta: viver em cidades pressupe acesso moeda tendo em conta a hegemonia do mercado nas interaes

    sociais. Essa regra comum a todos e no desaparece para indivduos e famlias do chamado setor informal. Quando falamos em favelas estamos, portanto, nos referindo ao padro de moradia dos que tm baixa renda ou rendas no programveis que lhes impede de usufruir do mercado formal de habitao. Porm, ressaltamos que no se trata de questo recente na sociedade brasileira. Leeds e Leeds (1978;187) afirmam que os temas

    7 - A influncia das teses racistas originrias da Europa no sculo XIX e primeira metade do sculo XX no meio social e intelectual brasileiro fato conhecido. Sobre seu debate entre nossos intelectuais, ver por exemplo, Botelho, A. e Schwarcz, L.M. (org.): Um enigma chamado Brasil: 29 interpretes de um pas. So Paulo, Cia das Letras, 2009.

    8 No se pode esquecer que a favela no Brasil (no Rio de Janeiro) uma instituio que abarca geraes de pessoas, muitas delas nascem e se socializam no ambiente. Traduz-se portanto num ambiente cultural que leva em muitos casos a opo por ali permanecer mesmo se conseguem meios de mudana de endereo.

  • 15

    de habitao e favela aparecem j por volta de 1880, mas, em termos de alcance e volume, tornam-se significativos apenas na dcada de 1940 e urgentes apenas nas de 1950 refletindo o rpido crescimento das favelas e a elaborao de resposta institucional, os quais devem ser, ambos, examinados, caso se queira compreender o que vai acontecer a partir de 1960 at os tempos atuais.

    A excluso scio-territorial um fenmeno que se observa em diferentes sociedades de mercado. No se restringe exclusivamente a sociedades perifricas ou subdesenvolvidas. De fato, observa-se sob vrias outras denominaes fenmenos que, pelo menos na dimenso fsica, so similares9. Por suas caractersticas sociais e

    econmicas, atraem a ateno da mdia de forma peculiar crimes, trfego de drogas, misria, carncia de infra-estrutura, etc. num tratamento que termina por mascarar as

    sociabilidades que ali acontecem. No so, porm, um fenmeno do capitalismo contemporneo ou de um modelo neoliberal de gesto do social. algo que estrutura a vida urbana em diferentes momentos e podemos sem dvida ter presente de que estamos nos aproximando de um fenmeno social que, como tal, dinmico, submetido a

    processos de mudana permanente. Assim, a presena das favelas nas nossas metrpoles expresso da efetiva desigualdade do acesso e da funo social da cidade.

    Podemos argumentar, com certo cuidado, que a moradia, apesar de elemento da reproduo social em si, no seria um item prioritrio. Ela s se justificaria e se apresentaria como elemento importante para as camadas populares na medida em que vm junto a ela outros itens tambm importantes. A proximidade de um trabalho, servios, apoio logstico do Estado tudo isso leva-nos a argumentar que a importncia seria, portanto sobre a localizao mais do que especialmente a qualidade da habitao.

    So esses fatores que fazem da habitao um problema insolvel para os pobres. Isso justificaria, por exemplo, a opo por habitaes precrias, mesmo que se tenha condies de algo diferente; ao longo dos anos vo se fazendo melhorias que terminam por remodelar os imveis tornando-os mais adequados. Inicialmente cabe considerar que migrantes no so aventureiros: aventureiros no fazem parte da lgica do sistema. Migrantes so indivduos com aspirao de insero social, especialmente no mercado de

    trabalho assalariado. H, ainda a valorizao do trabalho, expressa em observaes tais

    9 Favela no Brasil, poblacione no Chile, Villa misria Argentina, Cantegril no Uruguai, rancho na Venezuela, banlieu na Frana, gueto nos USA.

  • 16

    como: ele trabalhador, ele batalhador, um bom sujeito, esforado, srio, trabalhador, etc. Expresses como estas, corriqueiras refletem uma avaliao positiva do trabalho e do trabalhador, sobretudo nas camadas populares. Sem considerar ainda que o trabalho permite o acesso a uma renda monetria que pode implicar em melhora do padro de vida material.

    A chegada de pessoas em grandes cidades , assim, resultado de uma valorizao do potencial de empregabilidade que elas apresentam, sobretudo se comparadas s cidades menores ou at as zonas rurais. Nessa esfera dos valores, portanto, a cidade corresponde a uma perspectiva positiva que, alis, no necessariamente correspondida

    luz dos fatos: o emprego pode ser raro e de difcil acesso, frustrando a expectativa. Mas h ainda a prpria cidade como uma unidade de apoio s condies materiais e de

    mobilidade social: acesso educao, servios mdicos, lazer e recreao, etc. Leeds e Leeds (op.cit.) argumentam que no h necessariamente uma aspirao a alcanar padres superiores aos do grupo, mas freqentemente o de chegar a uma vida plena, confortvel no interior do quadro existente, talvez num nvel de resistncia aos padres

    hegemnicos ditados por valores de classes superiores10. Cabe, aqui, breve reflexo sobre a distino entre necessidades habitacionais e

    demanda por moradias. O termo necessidade habitacional um conceito social e se baseia em normas especficas adotadas em vrios pases; a demanda habitacional por sua vez, no considera as normas sociais. A demanda habitacional expressa o desejo por moradias, o qual as pessoas realizam ou pretendem realizar. Ou seja, existem famlias que podem representar uma demanda efetiva por novas moradias e que podem no constituir uma necessidade do ponto de vista social, pois podem acessar a moradia no mercado formal, por meio de financiamento ou por conta prpria. Por outro lado, importante parcela da populao reside em domiclios inadequados, adensados ou sem

    infra-estrutura, sem condies financeiras para adquirir ou mudar para outra residncia adquirida no mercado formal. Essa parcela da populao urbana representa uma necessidade habitacional do ponto de vista social, mas que no representa uma demanda

    10

    ...os moradores da favela, em geral, no tm idia do que a vida da alta burguesia, das elites intelectuais, do escalo militar superior ou mesmo da pequena burguesia e da maior parte da burocracia (Leeds e Leeds (op.cit.;124)).

  • 17

    econmica efetiva no mercado formal por moradia11. Em geral as favelas se situariam nesse caso, tanto pelas qualidades das construes, como pelo mercado habitacional que a existe e pela inexistncia de polticas pblicas urbanas que nelas invista parcela da mais valia nas mos do Estado. Os imveis em favelas passam tambm por um mercado submetido lei da oferta e procura, porm incorporam outras dimenses que no esto a refletidas: compadrio, crditos pessoais informais, trocas simples sem a interferncia monetria, etc., evidenciando um segmento do mercado com caractersticas prprias.

    De qualquer forma, esse conjunto de fatores de atrao exercido pela cidade vai contribuir para a ocupao de reas que, num primeiro momento, so pouco atrativas ao

    capital imobilirio: alagados, mangues, encostas de morros, etc. Pela proximidade do mercado de trabalho e da infra-estrutura social (escolas, hospitais, comrcio, servios, etc.) e at mesmo relaes de vizinhana, compensam inclusive economicamente a precria condio da moradia. Isso nos leva a considerar que a diferena entre os territrios urbanos das cidades convencionais e aqueles resultantes de ocupaes selvagens dos terrenos pelas favelas est indicando uma das lgicas dentre as mltiplas

    faces de criao do territrio das cidades brasileiras, originando comunidades urbanas com elevado grau de diferenciao no s econmica, mas social e cultural. O resultado

    que o territrio de nossas cidades caracterizado por uma elevada dose de heterogeneidade multidimensional.

    Do seu exterior, as favelas so vistas como reas desorganizadas cujo desenho desprovido de qualquer lgica racional (barracos, ruas estreitas e tortuosas, carncia de infra-estrutura, dificuldades de acesso, etc.). H de se perguntar como pessoas deixam suas reas de origem, migram para as metrpoles e vo viver em condies materiais

    precrias. Cabe ainda destacar que a exposio de nossas desigualdades econmicas atravs das construes habitacionais naturaliza essa diferenciao extrema. reas com habitaes precrias so olhadas como naturalmente sujas, perigosas, onde moram pessoas com baixo padro educacional e renda, e assim por diante. No caso do Rio de Janeiro, a expanso do trfego de drogas e da criminalidade alimenta hoje a estigmatizao dessas reas, alimentando a tradicional viso dos pobres como classes

    perigosas. 11

    Para se ter uma estimativa dessa demanda por habitao no Brasil onde inclusive h discriminao por faixas de renda familiares sugerimos Oliveira, E.L.; Givisiez, G.H.N. e Rios Neto: Demanda futura por moradia no Brasil 2003-2023: uma abordagem demogrfica. Braslia, CEDEPLAR, Ministrio das Cidades, 2009

  • 18

    O inverso tambm verdadeiro: reas onde em geral se situam boas residncias so lidas como habitadas por pessoas civilizadas, educadas, e de bom gosto. Ao mesmo tempo, enquanto certas reas de nossas cidades so absolutamente adequadas no que se refere a servios coletivos, inclusive habitacionais, h nas reas mais pobres um cenrio de algo a terminar de inacabado. Em muitas delas as casas so ainda em construo, sem pintura, com paredes ainda no completamente levantadas, com infra-estrutura precria que d esse ar de inacabado a importantes espaos construdos em nossas metrpoles. Esto a indicar que mesmo se morar, todos moram, porm os padres das moradias so indicadores fiis da posio scio-econmica de seus ocupantes:

    identificam renda, padres estticos, culturais, etc. De qualquer modo, a questo da habitao popular ou de baixa renda no Brasil

    sempre polmica, sobretudo porque ela submetida a uma avaliao da questo feita por burocratas ou elementos de classes superiores cujos padres de moradia so idealizados e diferentes dos padres utilizados por grupos de baixa renda. Observa-se, portanto, uma assimetria entre o que se aspira como modelo de urbanizao por uns, e o que se

    realmente faz em razo das posses e possibilidades dos grupos de baixa renda. Como a formulao de polticas urbanas responsabilidade daqueles grupos externos s camadas

    populares, os padres habitacionais so diferentes do praticado pelos grupos populares e as favelas passam a ser encaradas como anomalias urbanas, no sendo prioridades para os investimentos em polticas pblicas.12

    Alm do mais, no so raras experincias de remoo de favelas que redundaram

    em fracassos fenomenais, com a populao retornando s reas originrias das quais foram removidas, dadas as vantagens locacionais que apresentam. Tudo indica, portanto

    que subjetivamente e culturalmente as favelas em reas urbanas tm um principio de racionalidade inquestionvel, sobretudo locacional. Por outro lado, a omisso do poder

    pblico em termos de planejamento e ordenamento territorial adequado aos nveis socioeconmicos dessa populao termina aparecendo como conivente com a existncia da favela: ou porque no tem legitimidade para impedir a sua expanso ou por que no 12

    O exemplo recente das chuvas na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro sintomtico. A tragdia do Morro do Bumba em Niteri em abril de 2010 onde centenas de casas foram soterradas e dezenas de mortes aconteceram revelaram um dado significativo: h, segundo levantamento da Universidade Federal Fluminense, 14 comunidades carentes do municpio onde existem pontos crticos e 300 outras reas com risco eminente de deslizamento em Niteri, Cai-se num circulo vicioso onde uma parte importante das metrpoles brasileiras termina sendo descartadas das polticas urbanas, se transformando em reas clandestinas onde a presena do Estado mais na represso do que no ordenamento do uso e da ocupao do solo.

  • 19

    tem criado possibilidades habitacionais alternativas s camadas populares de baixa renda. O resultado a existncia de territrios semi-clandestinos dentro das nossas metrpoles que de forma apressada tendemos a classificar como guetos. Trata-se de reas onde o Estado no est presente ou exerce, sobretudo, a funo de controle e represso.

    A questo tanto mais premente quando a prpria tecnologia de produo de habitaes em reas pobres vem se expandindo, inclusive com crescimento vertical, como ocorre em algumas favelas no Rio de Janeiro, atestando um dinamismo prprio13. Com um dos maiores nveis de desigualdade socioeconmica caracterizando a sociedade brasileira, a luta contra a pobreza termina por se manifestar atravs de palavras de ordem

    tanto vagas como metafricas: promover o direito cidade, erradicao de favelas, favela bairro, urbanizao de favelas, etc. O discurso ganha tonalidades variadas dependendo do

    momento histrico ou da conjuntura poltica, mas podemos considerar que a pobreza e os pobres so cada vez mais tratados pelos rgos pblicos como uma questo espacial/urbana.

    Esse conjunto de caractersticas mostra que a favela segue uma trajetria contrria dos demais equipamentos urbanos no Brasil: a antiga sempre melhor que a nova, graas a um esforo cotidiano e annimo de autoconstruo permanente. O zinco e o

    papelo do lugar madeira e depois surge a alvenaria. As casas se equipam e se expandem para abrigar novas geraes, caminhos e escadarias surgem e se consolida; o pequeno comrcio se adapta, a ajuda mtua prospera, pois a necessidade comum. Esses aspectos so importantes porque nos apontam que h um processo de consolidao

    territorial de favelas, indicando uma nova ordem urbana que se firma independente do Estado e de suas polticas. esta nova ordem que vai firmar um modelo de urbanizao tpico da sociedade brasileira.

    Elementos conclusivos: h algo de novo no gueto e na favela? No caso do gueto, cujos principais debates foram rapidamente recuperados acima,

    parece claro que, se as relaes entre gueto e cidade sempre foram marcadas por uma

    13

    O Instituto Municipal Pereira Passos (IPP) do Rio de Janeiro mostrou que o avano das reas faveladas do municpio ocorreu tambm na rea ocupada: entre 1999 e 2008 a expanso foi de 7%, ou seja, um aumento de trs milhes de metros quadrados, ou o equivalente ao bairro de Ipanema inteiro. No perodo foi constatado o aparecimento de 218 novas favelas, que agora totalizam 968, contra 780 registradas no ltimo levantamento do IPP.

  • 20

    tenso intrnseca dado que se colocam uma em relao outra como reas incongruentes, cuja distncia parece intransponvel tal tenso vem crescendo de maneira exponencial nos ltimos trinta ou quarenta anos. Essa a direo apontada pela maior parte da literatura recente sobre o gueto, cujos principais expoentes, no caso americano, discutimos brevemente aqui. Contrrios s expectativas e percepes iniciais dos pioneiros no estudo do gueto (Wirth principalmente) os trs principais autores contemporneos sobre o tema nos Estados Unidos Venkatesh, Wacquant e Wilson vm demonstrando que no s a relao entre gueto e cidade e entre cidade e gueto vem se deteriorando a olhos vistos, mas o prprio gueto vem sofrendo uma srie de ataques

    por parte do Estado, mais especificamente, mas tambm da sociedade que o circunscreve que ameaam, simplesmente, sua destruio completa. Em seu estudo monumental

    sobre a ascenso e queda de um gueto americano, Venkatesh (2000) documentou este processo tanto etnograficamente quanto em termos de polticas urbanas e planejamento urbano. Assim, no s a tenso entre gueto e favela se acirra cada vez mais, como o domnio e a subjugao do gueto por parte da cidade vem tomando formas cada vez mais radicais, permitindo ao gueto muito poucas oportunidades de resposta e resistncia.

    Tambm a relao da favela com a cidade no Rio de Janeiro sempre se pautou por

    tenses. Seja em perodos onde prevalecem paradigmas higienistas de um urbanismo importado, seja em momentos de democratizao poltica onde os favelados so tratados como moedas eleitoreiras, seja em aes impositivas onde a estratgia a remoo pura e simples para reas afastadas da cidade. Historicamente, o que se percebe um tratamento

    diferenciado do fenmeno pelo Estado e uma permanente negao ou tentativa de anulao da favela por parte das elites da cidade.

    Nesse quadro de tenses estruturais os moradores de reas faveladas desenvolveram formas de viver e morar especficas resultado da ausncia efetiva de

    apoio governamental, via polticas urbanas ou mesmo polticas sociais no geral. Os movimentos sociais que eclodem em reas precarizadas das metrpoles brasileiras na segunda metade do sculo XX tm nas favelas um lugar privilegiado pois, na medida em que ganham poder poltico (pelo voto) os moradores vo assumindo por conta, a gesto do territrio. De maneira ambivalente, essa ausncia do Estado que explica grande parte da dinmica social nessas reas, particularmente o seu domnio por grupos criminosos

    ligados ao narcotrfico nas ltimas dcadas. A presena das favelas no imaginrio e na

  • 21

    representao da cidade de tal ordem que fazer, por exemplo, a histria das favelas no Rio de Janeiro ir ao cerne da histria da prpria cidade, e mesmo da sociedade brasileira, historicamente uma das mais desiguais no continente.

    A anlise que empreendemos at o momento nos permite alguns elementos em termos de concluses, mesmo que preliminares. Um primeiro aspecto que se pode extrair da anlise apresentada que temos padres diversos de urbanizao nas metrpoles do continente americano, especialmente entre os grupos de baixa renda dos USA e do Brasil. Entre processos histricos especficos de excluso social em um e outro a lgica da globalizao, que poderia ser lida como uma tendncia homogeneizante de processos

    sociais e urbanos, no consegue uniformizar padres de ocupao dos territrios metropolitanos. Tanto no caso do gueto norte-americano como na favela brasileira, a

    realidade nos aponta para diferentes modalidades de uso e ocupao do espao, cada qual apontando para sociabilidades particulares, trazendo para as reflexes a necessidade de explicar tais processos, tentando captar suas especificidades.

    consenso que a reproduo do capitalismo nos tempos atuais tem nas metrpoles seu lcus privilegiado, seja na sua capacidade de gerao de riquezas, seja como centros de mudana, se apresentando como um universo complexo, lugares de

    mltiplas determinaes. Davezies (2000) nos diz que Tkio, por exemplo, tem um produto interior bruto (PIB) prximo daquele do Reino Unido; Nova York produz mais do que o conjunto do Brasil e Paris, mais do que a Austrlia, Pases Baixos, ou Mxico. Exageros parte, se descermos um pouco mais na escala, vamos encontrar cidades

    secundrias como Milo, Mxico, Berlim ou Detroit, cada uma mais produtiva que pases como Grcia, Paquisto ou Egito. No Brasil, a metrpole de So Paulo junto com o Rio de Janeiro produzem parte substancial do PIB brasileiro.

    Ao mesmo tempo, para os socilogos, falar em cidades hoje resume praticamente o ofcio, pois constitumos sociedades dominante urbanas e, cada vez mais, metropolitanas. Em outras palavras, a questo urbana hoje resume o essencial do que se conhece como sociedade, e onde est o melhor cenrio para se fazer sociologia. Nelas, fenmenos sociais se tornam objetos visveis, sintetizando a complexidade do processo social. Poderamos considerar a definio maussiana de fato social total como a mais adequada para definir a complexidade das metrpoles contemporneas. Diz ele,

  • 22

    referindo-se s sociedades primitivas, mas que so perfeitamente adaptveis s metrpoles neste sculo XXI:

    Existe a um enorme conjunto de fatos. E fatos que so muito complexos. Neles tudo se mistura... Nesses fenmenos sociais totais exprimem-se, de uma s vez, as mais diversas instituies: religiosas, jurdicas, polticas, econmicas- estas supondo formas particulares da produo e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuio sem contar os fenmenos estticos em que resultam esses fatos e os fenmenos morfolgicos que essas instituies manifestam.(Mauss, 2003,187).

    A favela e o gueto so fenmenos scio-espaciais que refletem processos sociais

    onde esto presentes mecanismos de excluso social. A excluso econmica pode num primeiro momento ser a razo principal de seu aparecimento mas deve-se ultrapassar essa

    determinao para captarmos as lgicas inerentes aos dois fenmenos. Antes de tudo, temos que descartar a perspectiva criminalizante de tais reas. Apesar de serem reas com elevados ndices de violncia, sobretudo em funo do trfico de drogas, resumi-las a este aspecto excessivamente simplificador: criminalizamos o lugar e agregamos a

    criminalizao de todos que nele moram. Estudos mostram que de fato h uma sociabilidade violenta caracterstica de tais

    reas (cf. Machado da Silva, 2008); entretanto, a ausncia de um Estado provedor, ou o equvoco com que as aes estatais nelas atuam, talvez seja mais um fator de agravamento dessa situao. Conviria portanto que se olhasse tais reas dedicando ateno s relaes econmicas e sociais a longo prazo de tal forma a comprovar a estreita relao entre a sociedade marginal e a inclusiva. Seria tambm oportuno estudar com mais profundidade os efeitos que a sociabilidade do gueto e da favela

    provoca sobre a cultura da cidade no seu conjunto. No h dvida de que os principais fatores de atrao dessas reas e que as sustentam mesmo com a ausncia de polticas

    pblicas provedoras, decorrem dos laos sociais, geradores do sentimento de pertencimento a um grupo comum entre seus moradores.

    Se retomarmos os clssicos da Escola de Chicago (Park e Wirth) veremos que tanto no gueto como na favela estamos diante de zonas morais da cidade com suas

    caractersticas prprias que ajudam na formatao da identidade do conjunto urbano do qual fazem parte. Se isto causa estranheza aos olhares mais conservadores em razo de

    estarmos sob a hegemonia de paradigmas urbansticos que concebem uma cidade ideal, contrria a tudo que representa em termos urbansticos a favela e o gueto. Porm, neste

  • 23

    momento estamos centrando as reflexes sobre as sociabilidades, nas quais o espao construdo deixa de ser um lugar externo no qual os processos ocorrem, mas sim algo intrnseco ao desenho dos laos sociais que a se manifestam. No h dvidas de que se criam tipos urbanos peculiares em tais reas. Entretanto, essa peculiaridade pertinente a certas dimenses da vida social, adequados ao indivduo plural de nossos tempos. Os trabalhadores das favelas e dos guetos (embora estes em menor escala, devido a seu maior grau de excluso e isolamento) interagem com a cidade, no cotidiano, alm de terem a carga de, sem o devido apoio, suportarem as restries impostas por gangues e bandos marginais. Estes, embora minoritrios, conseguem impor cdigos e padres de

    comportamento na rea fora, apontando para poderes paralelos ao poder do prprio Estado. O fenmeno complexo e estamos insistindo na importncia de se valorizar a

    cultura do lugar como elemento de mudana que pode ser utilizado pelo poder pblico. Conforme tentamos mostrar tanto no gueto como na favela o que existe uma ausncia do Estado provedor e a presena quase exclusiva de um Estado repressor.

    Por outro lado, como as reas das favelas (e dos guetos) so relegadas a um plano secundrio nas polticas urbanas, acabamos por deixar ao gosto e/ou s parcas capacidades de seus moradores as modalidades de construo e mesmo de urbanizao.

    Na favela, trata-se de um caso mais bvio de autoconstruo e auto-produo de uma identidade prpria, moldada por gostos peculiares e padres sociais especficos. J no gueto a questo ainda mais difcil, pois os estudos que aqui discutimos nos mostram que, se o paradigma do gueto como desorganizado no adequado para se explicar

    toda a variedade de figuraes urbanas que ali se materializam, mesmo assim no se v, l, o mesmo grau de abertura quanto s possibilidades de autoconstruo e urbanizao.

    Se, na favela, trata-se em grande parte de padres autctones de construo, ocupao e urbanizao, no caso do gueto e, principalmente, no hipergueto o que se v hoje uma total derrocada das possibilidades mesmo da vida humana. Como bem apontam Venkatesh, Wacquant e Wilson, h ali obviamente vida criativa constituda a partir de redes sociais fortes (strong ties) atravs das quais seus moradores buscam produzir seu mundo. Mas, cada vez mais, esse espao e essas possibilidades vm se retraindo face ao

    abandono e a penalizao/criminalizao engendradas pelo Estado, arriscando transformar o gueto, definitivamente, no s em rea marginalizada, mas num no-

    espao dentro da cidade. No por coincidncia, recentemente as polticas urbanas que

  • 24

    visam lidar com o problema do gueto, em Chicago e outras cidades, tm tomado a forma literal de desmonte e imploso basta lembrar que o gueto estudado por Venkatesh nos idos da dcada de 1990 j foi, em grande parte, demolido; sendo seus moradores virtualmente expulsos. Tais eventos recentes, portanto, parecem apontar para um processo de excluso e abandono extremos, chegando s vias de fato quando guetos so literalmente derrubados para dar espao a novas reas gentrificadas. Resolve-se, assim, o problema do gueto atravs de seu virtual apagamento de dentro do espao da cidade, restando a seus moradores, muitas vezes, instalarem-se em outros espaos, sem qualquer reao possvel.

    Em ambos os casos, porm, e por diferentes motivos, o resultado so essas reas que fogem completamente ao padro legitimo de territrios urbanos, sobre os quais

    temos dificuldades em compreender sua lgica, pois fogem ao racionalismo dos modelos urbansticos, acadmicos. Alm do mais, as aes do poder pblico sobre as cidades vm sendo caracterizadas por uma lgica global, homogeneizante, atravs sobretudo de organismos internacionais como BID e BIRD, que aplicam padres urbansticos comuns

    a diferentes grupos sociais e mesmo a diferentes sociedades. A cidade, especialmente as metrpoles se tornam tema de poltica global, apontando para a tendncia

    homogeneizao dos padres de uso e ocupao do territrio da cidade. As metrpoles, submetidas a propostas homogeneizantes de interveno se apresentam como lugares de uma racionalizao extrema, onde a tradio cede lugar ao clculo interessado, onde se encontra mltiplas possibilidades de alternativas possveis para esta racionalizao. O

    resultado uma padronizao dos processos de interveno urbana, numa tentativa explicita de anular os diferentes padres urbansticos que nascem de condies peculiares

    da populao, em funo de suas possibilidades econmicas. Entretanto, surgem nelas outras modalidades urbansticas resultado justamente da ausncia das polticas oficiais.

    Vejamos isso mais de perto. O interesse de agentes financeiros (nacionais e internacionais) pela interveno no espao urbano aponta o seu potencial de acumulao do capital, mas de forma ambivalente: como selecionam reas prioritrias de ao, deixam margem parcelas importantes dos territrios das cidades. Esta situao produz

    nas metrpoles padres urbansticos mltiplos, com lgicas e dinmicas especficas, apontando para a inveno de novos territrios urbanos. Em contextos sociais com

  • 25

    hierarquias extremas (riqueza e pobreza) produzem sistemas classificatrios tambm mltiplos, onde a mudana e o novo viram rotina.

    Convivemos assim com lugares padro cujas caractersticas so comuns e descoladas de uma cultura prpria e lugares espontneos onde a improvisao e a dificuldade material produz espaos precrios porm com elevada dose de sociabilidade. Nos primeiros temos a cultura espetacular, ou a espetacularizao em geral, onde vigora, seja, a no-participao, a alienao e a passividade da sociedade; nos segundos, a participao ativa dos indivduos em todos os campos da vida social, principalmente no da cultura (Jacques, P.B.;2004). Esse territrio da favela, produto coletivo de prticas espontneas gera indivduos e prticas sociais peculiares ao ambiente, numa multiplicidade de aes, de tticas de sobrevivncia, preenchendo todos os vazios

    urbanos existentes, resultando, desse modo, em configuraes informais que escapam ao controle estatal que pressupe direcionar o crescimento da cidade. A inexistente presena do Estado, via polticas urbanas, termina gerando, nesses territrios da excluso, novos padres de urbanizao que se apresentam como alternativa padronizao das

    metrpoles contemporneas. Portanto, na contracorrente de uma cidade do pensamento nico as favelas so

    verdadeiros contra-modelos de territrios urbanos de resistncia a esse padro hegemnico de cidade. Em outras palavras, excludos desse processo de padronizao do espao urbano, elas talvez estejam apontando para sua reverso, na medida em que sintetizam um modelo de participao popular na produo do espao, na medida em que

    os moradores so os verdadeiros responsveis por sua construo efetiva, ao contrrio do morador da cidade formal, que muito raramente se sente envolvido na construo de seu

    espao urbano e, em particular, dos espaos pblicos de sua cidade (Jacques, P.B.; 2004). Caberia analisar se essa condio se repete tambm no territrio do gueto atua.

    Finalmente, queremos deixar explcito que no se est aqui fazendo apologia da misria ou da precariedade urbana. Estamos procurando um enfoque que trate a favela em um contexto mais amplo do territrio da cidade. A localizao de certas favelas, as conseqncias de polticas pblicas mesmo residuais em tais reas, o prprio contexto

    econmico do Brasil hoje, vem apontando para mudanas na estrutura social, onde parcela importante de seus habitantes ascenderam a um padro de consumo relativamente

    melhor. O efeito que se percebe certo nvel de ascenso social, mesmo sob um regime

  • 26

    jurdico de propriedade do solo ou da habitao continue ainda precrio. Nesta perspectiva, as favelas devem ser consideradas partes importantes das metrpoles nacionais, cujos territrios so produzidos margem das escolas urbansticas, do planejamento urbano ou mesmo de aes racionais do prprio capital. Tendo em conta essa constatao cabe aos estudiosos do tema considerar a sua existncia como um fato real e trat-lo como uma possibilidade plausvel de explicao da lgica urbana no mundo contemporneo.

    Referncias:

    ANDERSON, E. Streetwise. Race, Class, and Change in an Urban Community. Chicago, The University of Chicago Press, 1990.

    _________. Code of the Street. Decency, Violence, and the Moral Life of the Inner City. New York and London, Norton, 1999.

    BOTELHO, A. e Schwarcz, L.M. (Org.). Um Enigma Chamado Brasil: 29 Intrpretes de um Pas. So Paulo, Cia das Letras, 2009.

    BOURDIEU, P. (Org.). A Misria do Mundo. Rio de Janeiro, Vozes, 2003. BURGESS, W.: Croissance de la Ville: Introduction un Projet de Recherche. In: Grafmeyer, Y. e Joseph, I.: Lcole de Chicago: Naissance de lcologie Urbaine, Paris, Aubier, 1979. DAVEZIES, L.. La Ville des conomistes. In: Paguot, T. e Body-Gendrot, S. (Orgs.), La Ville et lUrbain, ltat des Saviors, Paris, ditions La Dcouverte, 2000. GRAFMEYER, Y. e Joseph, I.. Lcole de Chicago: Naissance de lcologie Urbaine, Paris, Aubier, 1979.

    JACQUES, P.B.. A Espetacularizao Urbana Contempornea. Cadernos do PPG-AU/FAUFBA, no. especial, Ano II, Salvador, BA, 2004.

    LEEDS, Anthony e LEEDS, Elisabeth. A Sociologia do Brasil Urbano, Rio de Janeiro, Zahar Edit., 1978

    MACHADO DA SILVA, Luis Antnio (Org.). Vida sob Cerco. Violncia e Rotina nas Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008.

    MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Ddiva. In Mauss,M. Sociologia e Antropologia, So Paulo, CosacNaify, 2003

    NUNES, B.F.: Notas sobre sociedades metropolitanas na era global. Cadernos do PPG-AU/FAUBA, no. especial, Ano V, UFBA-FAU, 2007.

    OLIVEIRA, E.L., Givisiez, G.H.N. e Rios Neto. Demanda Futura por Moradia no Brasil 2003-2023: Uma Abordagem Demogrfica. Braslia, CEDEPLAR, Ministrio das Cidades, 2009.

  • 27

    SENNETT, R.. Carne e Pedra: o Corpo e a Cidade na Civilizao Ocidental. Rio de Janeiro, Editora Record, 1977.

    VENKATESH, S. American Project. The Rise and Fall of a Modern Ghetto. Cambridge, MA, Harvard University Press, 2000.

    ________. Gang Leader for a Day. London, Penguin, 2008. ________. Off the Books. The Underground Economy of the Urban Poor. Cambridge, MA, 2006. WACQUANT, L. As Duas Faces do Gueto. So Paulo, Boitempo, 2008a. ________. As Prises da Misria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.

    ________. Os Condenados da Cidade. Rio de Janeiro, Revan, 2005.

    ________. Urban Outcasts. A Comparative Sociology of Advanced Marginality. Cambridge, UK, 2008b.

    WILSON, W.J. More than Just Race. Being Black and Poor in the Inner City. New York and London, 2009.

    ________. The Truly Disadvantaged. The Inner City, the Underclass, and Public Policy. Chicago, The University of Chicago Press, 1987.

    WIRTH, L.: Le Ghetto. Paris, Champ Urbain, 1980.