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1 GOIANA: município do Agronegócio Vera Lúcia Costa Acioli Valéria Santos O nome Goiana, segundo o historiador Varnhagem, 1 é de origem indígena e significa "guaya", gente, e "na", estimada, portanto, gente estimada. Como tantos outros municípios pernambucanos foi o município de Goiana, primitivamente habitada por índios - caetés e potiguares - e suas terras concedidas através de sesmarias a Diogo Dias e Boa Ventura Dias. A fundação de Goiana enquanto núcleo urbano não difere das demais vilas e cidades do Brasil. Sua população inicialmente fixou-se ao redor da capela sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário de Goiana. Em 1568 foi elevada a freguesia (jurisdição eclesiástica) por ocasião da visita a Pernambuco, do então bispo do Brasil, D. Frei Antonio Barreiros e tornou-se distrito da capitania de Itamaracá, tendo sido, algumas vezes, cabeça da capitania. Em 1633, três anos após a invasão dos holandeses a Pernambuco, 400 homens guiados por Calabar, invadiram Goiana e queimaram quatro engenhos, muitos canaviais, retiraram os índios das aldeias e fizeram prisioneiros os moradores do povoado. 2 Em 1640 houve um confronto entre a esquadra de D. Fernando de Mascarenhas, conde da Torre, e a esquadra holandesa, comandada por Willen Corneliszoon, em uma localidade entre Goiana e a ilha de Itamaracá, combate imortalizado em gravuras de Frans Post. Em 24 de abril de 1646 as mulheres de Tejucupapo, distrito de Goiana, venceram aos holandeses munidas do que tinham a seu alcance - paus, pedras, panelas e água fervente, episódio lembrado no imaginário popular goianense como “heroínas de Tejucupapo". Permaneceu Goiana sob o jugo holandês até a sua expulsão definitiva em 1654. O século XIX disseminou os ideais iluministas no Brasil, e esses, chegaram às províncias do Norte povoando as mentes da elite intelectual pernambucana dividida há esse tempo entre centralista e federalista. A conjuntura política pernambucana rígida e dicotomizada fermentaram os movimentos de rebeldia ocorridos próximos à ruptura dos laços coloniais. À Independência do Brasil, antecederam dinâmicas políticas em Pernambuco que pressupunham um país livre, sem amarras coloniais, sem rei, mas que levou para o centro das discussões e dos conflitos uma disputa interna. O motor revolucionário pré 1822, por meio dos “homens bons” pernambucanos, partiu da não aceitação das determinações da Corte do Rio de Janeiro. Os “liberais” de Pernambuco passaram a acompanhar as idéias da Revolução do Porto que acenavam com a possibilidade da criação de Juntas Governativas. Viam com a efetivação desses espaços de poder um caminho à recomposição do poder local, fragmentado pelo estabelecimento do poder no Rio de Janeiro. Das rebeliões de viés iluministas ocorridas em Pernambuco entre 1817 e 1922 a cidade Goiana deve ser recortada como uma importante protagonista. Foi berço de muitos vultos da revolução de 1817 e, em 1822, palco de novas articulações de milicianos, plantadores e ex-rebeldes, presos políticos de 1817, que, à época, anistiados, se instalaram na vila, fronteira com a Paraíba. Essa composição social diversificada promoveu uma ruptura com o governo provincial de Luís do Rego e sua Junta Governativa instalando a Junta Provisória de Goiana, sob o comando de Francisco de Paula Gomes dos 1 In GALVÃO, Sebastião de Vasconcelos. Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco, 3 vols., Recife: Governo de Pernambuco/CEPE, 2006, vol. I, p.281. 2 Idem.

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GOIANA: município do Agronegócio

Vera Lúcia Costa Acioli Valéria Santos

O nome Goiana, segundo o historiador Varnhagem,1 é de origem indígena e significa

"guaya", gente, e "na", estimada, portanto, gente estimada. Como tantos outros municípios pernambucanos foi o município de Goiana, primitivamente habitada por índios - caetés e potiguares - e suas terras concedidas através de sesmarias a Diogo Dias e Boa Ventura Dias.

A fundação de Goiana enquanto núcleo urbano não difere das demais vilas e cidades do Brasil. Sua população inicialmente fixou-se ao redor da capela sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário de Goiana. Em 1568 foi elevada a freguesia (jurisdição eclesiástica) por ocasião da visita a Pernambuco, do então bispo do Brasil, D. Frei Antonio Barreiros e tornou-se distrito da capitania de Itamaracá, tendo sido, algumas vezes, cabeça da capitania.

Em 1633, três anos após a invasão dos holandeses a Pernambuco, 400 homens guiados por Calabar, invadiram Goiana e queimaram quatro engenhos, muitos canaviais, retiraram os índios das aldeias e fizeram prisioneiros os moradores do povoado.2 Em 1640 houve um confronto entre a esquadra de D. Fernando de Mascarenhas, conde da Torre, e a esquadra holandesa, comandada por Willen Corneliszoon, em uma localidade entre Goiana e a ilha de Itamaracá, combate imortalizado em gravuras de Frans Post. Em 24 de abril de 1646 as mulheres de Tejucupapo, distrito de Goiana, venceram aos holandeses munidas do que tinham a seu alcance - paus, pedras, panelas e água fervente, episódio lembrado no imaginário popular goianense como “heroínas de Tejucupapo". Permaneceu Goiana sob o jugo holandês até a sua expulsão definitiva em 1654.

O século XIX disseminou os ideais iluministas no Brasil, e esses, chegaram às províncias do Norte povoando as mentes da elite intelectual pernambucana dividida há esse tempo entre centralista e federalista. A conjuntura política pernambucana rígida e dicotomizada fermentaram os movimentos de rebeldia ocorridos próximos à ruptura dos laços coloniais. À Independência do Brasil, antecederam dinâmicas políticas em Pernambuco que pressupunham um país livre, sem amarras coloniais, sem rei, mas que levou para o centro das discussões e dos conflitos uma disputa interna. O motor revolucionário pré 1822, por meio dos “homens bons” pernambucanos, partiu da não aceitação das determinações da Corte do Rio de Janeiro.

Os “liberais” de Pernambuco passaram a acompanhar as idéias da Revolução do Porto que acenavam com a possibilidade da criação de Juntas Governativas. Viam com a efetivação desses espaços de poder um caminho à recomposição do poder local, fragmentado pelo estabelecimento do poder no Rio de Janeiro. Das rebeliões de viés iluministas ocorridas em Pernambuco entre 1817 e 1922 a cidade Goiana deve ser recortada como uma importante protagonista. Foi berço de muitos vultos da revolução de 1817 e, em 1822, palco de novas articulações de milicianos, plantadores e ex-rebeldes, presos políticos de 1817, que, à época, anistiados, se instalaram na vila, fronteira com a Paraíba. Essa composição social diversificada promoveu uma ruptura com o governo provincial de Luís do Rego e sua Junta Governativa instalando a Junta Provisória de Goiana, sob o comando de Francisco de Paula Gomes dos

1 In GALVÃO, Sebastião de Vasconcelos. Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco, 3 vols., Recife: Governo de Pernambuco/CEPE, 2006, vol. I, p.281. 2 Idem.

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Santos, rico plantador que perdera quase tudo na revolução de 1817 passando a ganhar a vida como advogado3.

Conformação político, espacial e econômico de Goiana

Quando o Conselho Geral do governo da província de Pernambuco instituiu em 20 de

maio de 1833, nove comarcas para melhor administração da justiça, uma delas foi em Goiana que no ano seguinte teve como seu primeiro Juiz de Direito o Dr. Joaquim Nunes Machado, figura insigne da historiografia pernambucana. Em 5 de maio de 1840 Goiana foi elevada a cidade e constituído município de 1 de março de 1893, quando, com o advento da república, a província de Pernambuco como as outras que compunham o país, passa a Estado de Pernambuco, dividido em municípios com autonomia legislativa - Conselho Municipal - com prefeitos e vice-prefeitos, direito de organizar seus regimentos internos, códigos de posturas, orçamentos de receita e despesa e criação de suas guardas municipais.

Em 1894, não tendo Pernambuco, novo Estado da Federação, uma estatística rural pela qual se conhecesse a extensão e a qualidade das terras pernambucanas, as espécies de cultura, máquinas, instrumentos empregados, número de trabalhadores, quantidade da colheita e seu produto, o então governador, Alexandre José Barbosa Lima, procurou através de ofícios circulares conseguir informações sobre a exata arrecadação das rendas públicas a fim de planejar melhor a abertura de estradas e caminhos, segundo os interesses e necessidades do território sob sua gestão. O Ministério Público do Estado ajudou na reconstituição desses dados através de seus promotores, não só defensores intransigentes da lei, mas partícipes do cotidiano das municipalidades com seus relatórios e testemunhos privilegiados. Os promotores públicos ressaltam em cartas aos superiores hierárquicos, as dificuldades ao preencher os questionários enviados pelo governo, sobretudo, pelo temor dos comerciantes e produtores agrícolas e de criatórios por acharem que as investigações tinham um fim oculto, o imposto4. Levando-se em conta o arrojo de tal empreendimento, mesmo com a falta de várias informações, alguns dados da economia do Estado de Pernambuco podem ser salientados: a cana e o algodão são os gêneros mais cultivados, com exceção dos de subsistência (mandioca, feijão, milho); na zona do sertão as fazendas criavam na sua maioria, bezerros, bodes e carneiros; as exportações dos excedentes iam para o Recife e as importações dos gêneros de que necessitavam vinham desta mesma cidade ou transitavam nos municípios a caminho de outros centros consumidores.

Goiana, município de nossa escrita, possuía nos fins do século XIX, 73 engenhos, dos quais 9 eram movidos a água, 3 por animais e 61 a vapor; exportava 10 milhões de quilos de açúcar e produzia rapadura. As vias de comunicação, principalmente as pontes e as estradas férreas, apesar de “sofríveis”, foram construídas pelas usinas para atendê-las no transporte do açúcar, a exemplo da Usina Santa Tereza que tinha via férrea particular e pátio ferroviário implantado em suas terras (linhas, desvios, estações e armazéns).

Os principais transportes em Goiana eram a via férrea, as barcaças e o lombo dos animais; o município importava produtos de consumo vindos de municípios vizinhos, Nazaré, Timbaúba, Itambé e da Paraíba; produzia para consumo interno: milho, feijão, mandioca, cacau, arroz, fumo, coco, batata e cal; só exportava açúcar; e as madeiras eram abundantes no município: Jacarandá, Amarelo, Cedro, Pitiá-marfim, Peroba, Pau-santo, Louro, Sapucaia, Angico, Angelim e Jucá5.

3 CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco,

1817-1824. Revista Brasileira de História. vol. 18 n. 36 São Paulo 1998. On-line version ISSN 1806-9347. 4 APEJE, Coleção Promotores de Justiça, PJ 25, fl. 140/141v. 5 APEJE, Coleção Promotores de Justiça, PJ 25, fl. 335/337.

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As primeira décadas do século XX encontra Goiana com uma lavoura dirigida, sobretudo, ao comércio interno. Segundo informações de Sebastião Galvão6. A cidade possuía um maior número de engenhos do que na informação anterior dos promotores (91 por ele enumerados), uma usina e duas destilarias e restilarias7 a vapor. Sua principal indústria era o fabrico do açúcar, o comércio de exportação era o de açúcar bruto, algodão em rama, aguardente, melaço, couros salgados, sementes de carrapato, cereais e abacaxis; o comércio de importação em gêneros de consumo, nacionais e estrangeiros, era exercido por estabelecimentos de retalho bem sortidos. Nas safras regulares o açúcar atingia a cifra de 30 milhões de quilos, e levando-se em conta os dados anteriores (século XIX) dos promotores nos relatórios supracitados e os oferecidos por Galvão, cerca de 50 anos entre eles, a produção do açúcar tinha triplicado em Goiana.

Goiana no século XX de casos contados, do caso eu conto como caso foi, memórias de um defensor público8

Apanhar os contextos sociopolíticos e o econômico do estado de Pernambuco, seja ele

moldurado pelo período colonial, republicano, ou contemporâneo, é vê-lo através dos objetivos do agronegócio. Goiana não foge a essa generalização. Como um espaço territorial de concessão colonial seguiu o planejamento do sistema mercantilista português que se rebuscou no exclusivismo comercial e na monocultura exportadora. Goiana constitui-se historicamente na Capitania de Itamaracá, tornou-se cidade, entre rupturas e muitas permanências, que acompanhando o modelo original de administração portuguesa, materializou pelo uso da força, a partir do poder da terra concedida.

Assim, a cidade adentrou o cenário brasileiro do século XX ainda inserida em um contexto de ruralidade, não se furtando, entretanto, de urbanidade principalmente a partir de seu centro de administração pública, comércio varejista e a área absorvida pela FITEG9 e sua vila operária. As problematizações levantadas a partir de análises das décadas de 1960 a 1970 nessa pesquisa mostram, contudo, que Goiana foi alicerçada principalmente com as vigas da produção dos derivados da cana de açúcar. Mas, como já citado, também foi permeada, em menor intensidade, no que tange as dimensões laborais pelo espaço têxtil e na contemporaneidade pela produção do papel10.

Entretanto, os meios de produção que dominaram o espaço goianense no século XX, urbano ou rural, estiveram longe de delegar ao município o mesmo destino oriundos das ideias revolucionárias, libertadoras vividas no século XIX, tempo de resignificação de direitos. A cidade que carregou o título de a mais próspera cidade da Província11, devido à produção açucareira e ao seu comércio à moda portuguesa, entrou no século XX predestinada à inércia frente às práticas arcaicas de suas elites, seja patronal, seja política, ou ainda pela incapacidade de se impor de limites entre o público e o privado. Goiana inicia o século vinte

6 GALVÃO, Sebastião de Vasconcelos. Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco, citado, p.

288/289. 7 Restilado, destilado pela 2ª vez. 8 CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto, como o caso foi: da Coluna Prestes à queda de Arraes: memórias. São Paulo: Alfa-Omega, 1978. 9 FITEG: Fábrica de Tecidos de Goiana fundada... 10 Klabim – Ponza: No ano de 1969 chega a Goiana uma indústria ligada à produção de papel – a Florestal, Papéis, Embalagens de Papelão Ondulado e Sacos Industriais do Grupo Klabin. A Klabin, que é ainda o maior produtor de papel do Brasil, inaugurou em 1973 sua décima sétima unidade e passou a produzir celulose a partir do bagaço da cana, transformado em papelão. A fábrica na década de 1960 ficou conhecida no município como a fábrica de Papelão Ondulado do Nordeste S.A.- PONSA. 11 Idem. CAVALCANTI.

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com a gestão de mais um Albuquerque mesclado à genealogia Maranhão, também representante dos latifundiários, o Methódio Romano de Albuquerque Maranhão que assume a prefeitura da cidade em 190712.

Goiana ao longo dos anos foi dominada por poucos donos com muitas terras. As famílias latifundiárias quando não se alternou na gestão política municipal a controlou de perto, apesar do caráter absenteísta de sua permanência na cidade, local onde retornavam apenas para olhar os negócios. Como um modelo de município nordestino, essa cidade atravessou os anos retardando a consolidação legalista trabalhista com formação de mão-de-obra assalariada, mas permaneceu com práticas análogas à escravidão perpetuando a desigualdade social como forma de controle social.

Com práticas de gestão política, social e econômica destituídas de visão empreendedora, vendo-as fora de uma conjuntura de modernização imposta nacionalmente a partir de 1930, o negócio da cana de açúcar levou a cidade à estagnação de suas atividades produtivas expondo-a inerte ao deslocamento para o sudeste do centro hegemônico13 do poder alicerçados nas dinâmicas modernizantes de produção daquela região e com ele os investimentos do Estado brasileiro.

Paulo Cavalcanti relembra sua experiência - como promotor público de Goiana, afastado por desagradar os “homens bons” – e diz que a cidade era um espaço de luta desigual, lugar onde cotidianamente travou embates - face a face com os latifundiários - os donos da terra, da lei e do povo, em nome de uma população carente. As práticas de desmando chegavam, não raro, a violência e muitas vezes a morte, onde os algozes se utilizavam de sua teia protetora, seja um magistrado corrupto e omisso, um pantagruel religioso ávido pelo ofertório e protetor das causas das boas famílias goianense, um delegado bem pago e de vista grossa, capangas e vigias tidos como “trabalhadores rurais”, homens de confiança das elites patronais, mas que carregavam a função de assassinos, tal qual o vigia da Usina Santa Tereza, Lindolfo Aleixo de Barros14.

Toda essa burocracia informal e institucionalizada agia como máquina de correção social, com poderes para legitimar as arbitrariedades dos latifundiários, ora atestando mortes violentas como naturais – os cadáveres vinham dos engenhos ou das usinas com um bilhete pregado ao corpo: morreu de baço ou morreu de fígado, ora promovendo o casório de papeis passados das moças que tiveram a infelicidade de cair nas graças dos filhos do poder. As vicissitudes da história de Goiana, como município de Pernambuco frente às práticas de poder, mandos e desmandos dos donos da terra, tão contraditória daqueles tempos de ideais liberais do Período Imperial brasileiro, é descortinada nas memórias de Paulo Cavalcanti:

A monocultura da cana de açúcar, porém, reduzirá a cidade a um espectro do passado, mantendo antiquados seus padrões de desenvolvimento. Goiana agora vivia a sombra da Usina Santa Tereza e da Usina Maravilhas, além da fábrica de tecidos expandindo-se por suas ruas. Ao contrário dos senhores de engenhos que moravam na cidade (...) os usineiros residindo na capital, não mantinham o menor vínculo de relacionamento com o povo. (...). De um deles, Dinis Perilo

15, costumava-se dizer que, ao passar pelas

ruas da cidade rumo à casa grande de sua usina, tapava as narinas com um lenço e levantava os vidros de seu carro, tal ojeriza que tinha pelo povo de Goiana.

12 Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/32397693/5/SECULO-XX. Acesso em 28/07/2012. 13

Frações de Capital em Pernambuco: do isolamento relativo ao limiar da integração produtiva. (UNICAMP). Disponível em: http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/eventos/forumbnb2011/docs/2011_fracoes.pdf. Acesso em:

28/07/2012. 14 CAVALCANTI. Op. Citada. 15 Dinis Peryllo de Albuquerque Melo.

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No final do século XIX, os Albuquerques, na pessoa de Dinis Peryllo de Albuquerque Melo, o senhor de engenho citado por Cavalcanti, fundou a Usina Maravilhas. Em 1929 vendia a propriedade para Arthur de Medeiros Carneiro que também dono da Companhia Açucareira Goiana e do Textifício Santa Maria Ltda - Fábrica do Zumbi, localizada no Recife, na Avenida Caxangá. A família Carneiro construiu um império agrário em Goiana e o fez transcender ao município. Sua fábrica de sacos alicerçava a produção de açúcar à medida que atendia as demandas produzindo sacos para o transporte do produto final para toda a rede agro-açucareira.

O complexo agro-fabril era atendido por uma ferrovia dentro das terras da Usina com 60 km de extensão, também de propriedade da família. A concentração de terras, capital e dos meios produtivos durou setenta anos, não terminando ai, apenas sendo realocado a outro par na década de 1980 – os Lundgrens, e destes a Andrade Queiroz, em 1990.

Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/ferroviaspart_norte/efnsmaravilhas.htm. Acesso em 27.07.2012.

Dos casos memorialísticos de Paulo Cavalcanti salientamos outro espaço de produção

de derivados da cana de açúcar, outro latifúndio monocultor existente nas terras goianenses no período analisado, a Usina Santa Tereza que a partir de 1937 foi para as mãos do Grupo João Santos. Em 1910 o coronel Francisco Vellozo de Albuquerque Melo, João Joaquim de Mello Filho e José Henrique Cézar de Albuquerque - firma Mello, Vellozo & Cézar - estabeleceram a usina que também possuía uma linha férrea para escoar a produção16. Transformada em Companhia Agro Industrial de Goiana, a Usina Santa Tereza passou a ser controlada por João Santos e sócios17.

Assim, passou a usina Santa Tereza a fazer parte da Companhia Agro- Industrial de Goiana, criada a partir de permanências históricas na qual os Albuquerques são seus donos fundadores. Essa condução história pressupõe um entendimento de que as práticas de produção de trabalho e capital, nesse município, ficaram praticamente controladas pelo braço do agronegócio, dividindo-se apenas com a FITEG, empresa comandada por um coronel, José Albino Pimentel, apontado como sendo o maior corruptor das autoridades de Goiana18.

16 Usina Santa Tereza – Goiana - PE: Possuía na década de 1929 uma ferrovia com 60 quilômetros, cinco locomotivas e 200 carros, que transportava a cana e o álcool até o porto. Disponível em: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=154&Itemid=1. Acesso em 28/07/2012. 17 Ibidem. 18 CAVALCANTI. Op. Cit, p. 210.

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Os processos trabalhistas como fontes da história de Goiana Do estudo do município de Goiana, tendo como fonte os processos trabalhistas da

extintas Juntas de Conciliação e Julgamento da 6ª Região19 é possível observar a não observância de práticas laborais diversas. As demandas à Justiça trabalhista emergem em Goiana por desrespeitos às leis trabalhistas vigentes resultando em contendas conflituosas nas quais se fez e se refaz a precarização das relações de trabalho. Através dos processos trabalhistas da JCJ - GO é possível entender o fosso social criado e mantido pela teia patronal, em sua insistente e irracional forma de produção de capital.

Goiana, como outros municípios do Nordeste brasileiro, ou ainda, como Norte agrário, esteve envolta e carregou pelos tempos as máculas da resistência de suas elites produtoras, e mesmo tendo vivenciando uma transição “modernizante” em suas unidades produtoras de açúcar, saindo dos engenhos às usinas não se fez acompanhar das mudanças necessárias nas práticas de gestão capitalistas contemporâneas. Ficou o município arraigado as suas dinâmicas de produção arcaica e colonial, fechou-se em cerco regional não pressupondo transformações efetivas e definitivas frente às demandas de modernização impostas.

Fábio Lucas Pimentel, em sua dissertação de mestrado pela Universidade de Campinas (UNICAMP), problematiza por meio de análises ligadas ao desenvolvimento e a integração econômica do Nordeste, a trajetória da elite pernambucana agrária e sua incapacidade de adaptação e transformações em seus meios de produção resultando na perda de poder hegemônico econômico e político.

O caso nordestino, especialmente o pernambucano, é emblemático para ilustrar as possibilidades de diversificação. A dinâmica do açúcar e a predominância do capital mercantil propiciaram o desenvolvimento da atividade têxtil na região, exatamente nas últimas décadas do século XIX. Usineiros e comerciantes eram, ao mesmo tempo, proprietários de importantes estabelecimentos têxteis, o mesmo sendo válido para industriais têxteis que passaram à condição de usineiros e comerciantes. A despeito de promover alguma diferenciação na divisão social do trabalho – leia-se, de ter tido acesso a uma base de acumulação originária capaz de sustentar alguma diversificação – não se logrou romper no Nordeste a autarquia do processo típico de produção regional, que repousava na utilização de mão-de-obra [análoga a escravidão]

20 escrava.

A face da violência no município de Goiana, exercida desde a sua origem até a contemporaneidade por uma conjuntura de extrema desigualdade social, quase sempre emergiu de movimentos sociais que buscavam direitos e cidadania. No dia 04 de novembro de 1998 canavieiros do município participaram de uma greve, junto ao seu sindicato, pleiteando por condições digna de trabalho e melhoria salarial. A reação dos empregadores fez-se no

19 Desde 1932 as Juntas de Conciliação e Julgamento existiam atuando como órgãos administrativos da Justiça do Trabalho. Em 1946, o Presidente da República Eurico Gaspar Dutra usando as suas atribuições impõe o Decreto-Lei nº 9.7971 que dispõe a justiça trabalhista como órgão do Poder Judiciário, compondo-se pela 1ª; 2ª e 3ª instâncias respectivamente: as Juntas de Conciliação e Julgamento, o Tribunal Regional do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho. Inicialmente faziam parte do TRT 6ª Região cinco Juntas Conciliação e Julgamento de Pernambuco ( JCJ 6ª Região – PE) sendo acrescidas outras na medida em que as demandas trabalhistas aumentavam. 20 Grifo nosso.

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modelo colonial e resignificou mais uma vez a barbárie patronal. Adentrando os canavieiros (em número de 80) e o órgão de classe nas terras da Usina Santa Tereza, encontraram um bloqueio à frente e logo se fez uma emboscada, às costas, ocasionando ferimentos em 13 trabalhadores e a morte do trabalhador rural da Usina e do canavieiro Luís Carlos da Silva, de 27 anos, casado, pai de dois filhos e empregado da Usina Santa Tereza. A juíza Mariza Silva Borges denunciou a participação de policiais militares e de vigias da empresa21.

Assim, a documentação da Justiça do Trabalho de Pernambuco – TRT-6a Região, tutelada à Universidade Federal de Pernambuco, compõe-se como mais um caminho à análise desse espaço rural dialético no qual patrão e empregado, expõem em suas práticas laborais, através das narrativas processuais das reclamações trabalhistas, que posta à intervenção histórica podem recompor a História de Goiana, dos seus sujeitos e do seu espaço. A extinta Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana22 atendia jurisdicionalmente até o município de També, num primeiro momento, estendendo sua ação aos municípios de Camutanga e Ferreiros, no ano de 1989.

O laboratório do Projeto Memória e História TRT-6ª Região/UFPE23

Na atualidade três questões, quando respondidas, justificam a conservação documental frente a sua problematização na produção de conhecimento. Interroga-se sobre o que preservar, o porquê preservar e a função social da informação preservada. A guarda consciente na contemporaneidade lastreia-se na Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a guarda racional dos arquivos públicos e privados. Em seus três primeiros artigos se expõe o escopo das diretrizes legislativas impostas aos lugares de gestão de documento e no capítulo II, recorta-se especificamente essa dinâmica no âmbito da esfera pública. Neste capítulo incorpora-se o atual Laboratório do Projeto Memória e História da TRT-6/UFPE, espaço que abriga a massa documental das extintas Juntas de Conciliação e Julgamento de Goiana e também de outros municípios pernambucanos.

O Projeto Memória e História se corporificou no lastro dessa proposta normatizada de âmbito nacional de rememoração. Os primeiros passos desse laboratório de pesquisa só foram possíveis devido a um criterioso trabalho de produção técnica-acadêmica que envolveu competências interdisciplinares, com trânsito nas áreas de Arquivística, História e Direito.

21 Disponível em: http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/mobile/noticia/84854.php. Acesso em 04.01.2012. 22 A Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana ( JCJ-GO) foi criada em 12 de julho, 1962, a partir da Lei 4.088 juntamente mais sete Juntas de Conciliação e Julgamento: a 4ª e 5ª do Recife, Jaboatão, Nazaré da Mata, Caruaru, Escada e Palmares. 23 A HISTÓRIA POR TRÁS DA HISTÓRIA. Em meados de 2004, um grupo de pesquisadores do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco tomou conhecimento de uma grande quantidade de processos trabalhistas que iria ser doada, para reciclagem, ao

Hospital do Câncer. O consciente perigo do descarte de uma fonte de memória de inestimável importância à nossa história social, política, cultural e econômica imediatamente gerou uma mobilização e uma resistência contra tal doação. Iniciou-se, destarte, uma negociação entre a Comissão de Documentação do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região e os professores da UFPE, no intuito de preservar integralmente tão precioso acervo documental. Foi, em decorrência, firmado um convênio entre o TRT e a UFPE em 2004, e, em 2006, coleções de processos trabalhistas passaram a ser destinadas a esta instituição de ensino. Designou-se como gestora da documentação a Pós-Graduação do Departamento de História, e o projeto tem por atuais coordenadores o Professor Antônio Torres Montenegro e a Professora Vera Lúcia Costa Acioli, além de uma equipe interdisciplinar de bolsistas, amparada pela FACEPE, NEAD e ICCA.

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Como resultado tem-se hoje mais um local especializado da memória justrabalhista do Estado de Pernambuco das décadas de 50 a 8024.

Os processos trabalhistas do município de Goiana, analisados historicamente, ao findar a parceria de cooperação técnico-científica com o NEAD e IICA, estarão em plena dinâmica de gestão documental, higienizados, digitalizados, catalogados e postos à socialização. O acervo também se comporá de produções escritas como catálogos descritivos25, dispositivos informacionais existentes em banco de dados e em coleção com fotos em formato JPG dos processos digitalizados. As informações poderão ser acessadas virtualmente no endereço eletrônico – www.memóriaehistoria.trt6.gov.br.

Da intervenção histórica realizada tem sido possível descortinar relações trabalhistas precarizadas que nos tem conduzido ao entendimento do sentido que o trabalhador dá ao seu trabalho26, sentido da sua própria existência. Nessa linha analítica tentamos compreender as dinâmicas de sobrevivência como práticas de resistência como classe e como cidadão, ou melhor, como o último cidadão27.

Observar-se nos recorrentes conflitos entre o trabalhador rural da zona da mata canavieira e os donos desse agronegócio, sempre as voltas com o costumeiro jargão de mandá-los “ir embora para procurar seus direitos”28, transformações sociais que se desdobraram em uma trajetória de cultura e de direito29. Do que pensávamos ser desconhecimento ou desinformação dos direitos trabalhistas pelos próprios trabalhadores, muitas vezes não assistidos pelos seus órgãos de classe, tem-se visualizado, no acesso à Justiça trabalhista e nas narrativas testemunhais, a concretização de efetivos pleitos, não raro motivados pela despedida indireta ou falta grave do empregador - artigo 483 da Consolidação das Leis do Trabalho. O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:

a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons

costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo; c) correr perigo manifesto de mal considerável; d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo

da honra e boa fama; f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima

defesa, própria ou de outrem; g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar

sensivelmente a importância dos salários.

Entre as distintas modalidades que culminam com o término do pacto trabalhista, é de

considerável importância e freqüência a prática da despedida arbitrária e sem justa causa, que consiste na quebra do contrato de trabalho pelo empregador, como uma ação unilateral, independente da vontade do empregado.

24 MONTENEGRO, Antonio Torres e Acioli. Acervos Documentais do Departamento de História da UFPE: da colônia a atualidade. In: Estudos Universitários, revista de cultura/[ Pró-Reitoria de Extensão da UFPE]. – Vol. 1, n.1, (1962). Recife: Ed. Universitária da UFPE. 25 Catálogos descritivos e planilhas com informações levantadas no acervo do Projeto Memória/ História TRT6/UFPE, por meio de processos trabalhistas do município do Goiana de 1963 a 1973, entregues ao NEAD/IICA como produtos do convênio de 2009. 26 ANTUNES, Ricardo L. C. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009. 27 HOUTZAGER, Peter P. Os últimos Cidadãos: conflito e modernização no Brasil rural (1964 -1995). São Paulo: Globo, 2004. 28 Laboratório do Arquivo do Projeto Memória e História – convênio TRT 6ª Região – UFPE. JCJ - Goiana - Proc. nº 0229/66. 29 GOMES, Angela de Castro. Direito e cidadania: memória, política e cultura. Angela de Castro Gomes (coord.). R J: Editora FGV, 2007. p. 9.

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Um entendimento que vem se construindo das leituras processuais do município de Goiana é o do pedido de reintegração com vantagens30 pelo trabalhador demitido. Das análises feitas chega-se a uma maior compreensão da amplitude que esse pedido, de retorno a lida, representa para o trabalhador rural, apesar da vivência cotidiana em espaço31 laboral permeado de práticas desumanas.

As reclamatórias carregam em seu bojo relatos de trabalho e vida que expõem trajetórias de resistência e de sobrevivência. Em áreas cujo domínio agrário é concentrado a poucas famílias ou grupos, o pleito reintegratório é uma constante, mesmo após a incompatibilidade de convivência laboral. Os processos em que se expõe o pedido de reintegração, não raro, estão carregados de informações subliminares, que desvirtuam o vínculo laboral e agudizam a precariedade das relações do trabalho no campo.

Em janeiro de 1966, no município de Goiana, um trabalhador rural, analfabeto apresenta uma reclamatória contra a Companhia Agro Industrial de Goiana, proprietária da Usina Santa Tereza, na qual diz ter sido demitido injustamente. Relata que deseja ser reintegrado ao serviço que vinha ocupando há mais de duas décadas, sem interrupção, nos mais diversos engenhos e usinas da Companhia, só se ausentando dele quando esteve muito doente. Afirma ter piorado da saúde após ter lhe sido imposto um significativo aumento na tarefa, que passou de 10X10 cubos para 10x13 cubos por dia – “tarefa essa impossível de ser executada em apenas um dia” -, para justificar o aumento do salário mínimo regional dado por lei. Adoeceu, comunicou o fato à reclamada, não recebendo dela nenhuma ajuda ou benefício, e ao retornar ao serviço não mais foi aceito na lida. Dessa ocorrência houve um “acordo” no qual o trabalhador apenas recebeu Cr$ 30.000,00 A Junta decidiu pela procedência da ação, proferiu que para dispensar um trabalhador estável a empregadora precisaria interpor um inquérito judicial apurando as causas, que deveriam ser graves e fundamentadas no artigo 482 da CLT32.

A Companhia Agro-Industrial de Goiana registra o maior número de casos de trabalhadores demitidos sem justa causa neste município. Antônio João da Costa, brasileiro, analfabeto, vigia, assistido pelo Dr. Ozael Rodrigues Veloso, reclama contra a Companhia para quem tinha prestado serviços por 54 anos. Em contestação a reclamada defendeu-se afirmando que o reclamante espontaneamente fizera um acordo dando total quitação de seus direitos. O reclamante explicou em audiência que

realmente tinha feito um acordo de Cr$ 70.000,00, mas coagido pela reclamada, isto é, com medo que acontecesse com ele o mesmo que aconteceu com outro [trabalhador] de nome Manuel Costa, pois o referido Manuel Costa tinha sido procurado pela Usina, para fazer um acordo para a compra de sua lavoura e tendo se recusado, foi assassinado por três vigias da reclamada.

Como não foi apresentado nenhum documento relativo ao mencionado acordo, o

processo foi convertido em diligência. Concluiu a Junta de Conciliação que "trata-se de trabalhador com mais de 23 anos de serviço e a rescisão deveria ser feita na presença da autoridade competente, não tendo sido observadas tais formalidades nenhuma validade tem a

30 Reintegração com Vantagens:...... 31 A noção de espaço visualizada vai ao encontro da interpretação dada pela Professora Bartira Ferraz como: “algo dinâmico e unitário, onde há a reunião de materialidade e de ações humanas”. In. Modernização Conservadora e Desenvolvimento na Zona da Mata de Pernambuco. Patrimônio e Cultura na Zona da Mata. MATOS e Coautores. Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 224. 32 O capítulo V da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) vai dispor acerca da rescisão. No artigo 482 sistematiza, em 12 itens os motivos para a imposição patronal de uma justa causa: Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador. JCJ – GO - Processo Trabalhista nº 0558/66.

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transação". Considerando ainda que a reclamada não provou que pagou as férias do reclamante, julgou a Junta procedente a reclamação condenando a reclamada a reintegrá-lo e a pagar Cr$153.247,40 referentes as férias, ao 13° salário e aos salários que reclamante não recebeu por ser impedido de trabalhar pela reclamada, sendo descontados os Cr$ 70.000,00 que já recebidos pelo reclamante33.

Brasiliano Faustino Moreira é outro trabalhador rural, residente no Engenho Bujari,

que começou a trabalhar aos 12 anos para a Companhia Agro-Industrial de Goiana, tendo 56 anos de serviços prestados e disse nunca ter recebido férias nem a diferença salarial. Em contrapartida, tentou a reclamada provar a ilegitimidade da reclamação responsabilizando seus fornecedores de lenha, para os quais o reclamante também trabalhou. A Junta considerando a reclamação procedente em parte, condenou a reclamada a readmiti-lo e a pagar-lhe a quantia de NCr$ 189,90. Inconformado, recorreu Brasiliano ao TRT, onde foi dado provimento parcial ao seu recurso, condenando a reclamada ao pagamento de todas as férias, 13º salário de 1962 e complemento de 1963. Em termo de pagamento e quitação, a reclamada pagou ao reclamante a quantia de NCr$ 342,5534.

Entre as conciliações registre-se o caso de Severino Narciso, brasileiro, analfabeto, trabalhador braçal, residente no Engenho Megaó que reclama contra Ricardo Sechinger, alegando em petição inicial que trabalha há trinta anos para o reclamado e que há oito anos sofreu um acidente de trabalho perdendo quatro dedos da mão direita ao carregar cal para um caminhão e que não foi indenizado pelo acidente. Em contestação o reclamado ressaltou que a legislação trabalhista não regia nem protegia o trabalhador rural. Assim, estando o reclamante desamparado legalmente e por ele prestar serviço de caráter eventual, ele reclamado solicitava a improcedência da reclamação. Afirmou ainda que o acidente ocorrera quando o reclamante carregava o caminhão de propriedade do Sr. Joaquim de Paula apesar de em terras de seu engenho. A ação foi conciliada em Cr$ 2.000,00 com a condição do reclamado construir uma casa para o reclamante em Tejucupapo e permitir que ele pescasse no rio que corta a sua propriedade, como também continuasse a retirar os produtos de sua lavoura localizada no terreno de propriedade do reclamado35. Para a Junta a conciliação oportunizando ao reclamante moradia e subsistência era a forma mais correta de reparar a invalidez para o trabalho.

A fala dos trabalhadores, levadas a termo nas peças reclamatórias elaboradas por agentes do judiciário, por advogados, ou mesmo pelos sindicatos; a narrativa contida nas atas de audiência; as decisões de 1ª Instância (as Juntas); os votos ementados pelos juízes do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região de Pernambuco e os acórdãos proferidos pelos Ministros do Tribunal Superior do Trabalho vêem se expondo como um terreno fértil frente à problematizações contemporâneas do país. Esses testemunhos fazem parte de uma memória coletiva dos trabalhadores, de um lugar social, Zona da Mata de Pernambuco, e também, são signos de um lócus institucional, o da Justiça do Trabalho da 6ª Região, que vem subsidiando questões no âmbito mundial, nacional e a estadual. São relatos que possibilitam o não desaparecimento da história do “andar de baixo”36, bem como a recomposição da história

33 JCJ – GO – Processo nº 0174/63. 34 JCJ – GO – Processo nº 0444/66. 35 JCJ – GO – Processo nº 0108/63. 36 Elio Gaspari em matéria jornalística no Jornal Correio do Povo em 11 de setembro de 2011 conceitua a história do andar de baixo como sendo a história dos trabalhadores contida nos processos jurídicos. A matéria aborda a recomendação nº 34 que normatiza o descarte, ou melhor, a preservação - a partir de “amostras estatísticas” - de milhares de processos trabalhistas. Para Gaspari essa medida recomendada pelo ministro Cezar Peluso fez “reaparecer o perigo do apagão da memória do judiciário”. Ele exemplifica essa possibilidade de perda da memória a partir de um processo hoje inexistente que relatava o acidente de trabalho de um jovem metalúrgico, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Disponível

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tradicional, resignificando-as, para não desapareçam, na medida em que eles passam a fazer parte da historiografia brasileira.

Memórias de um líder político na cena pernambucana da Ditadura Militar:

Adauto Freire da Cruz - um certo “Adauto de tal”37

No dia 10 de janeiro de 1966, na cidade de Goiana, município localizado na Mata Norte

de Pernambuco, mais um trabalhador procurou a Justiça do Trabalho para dirimir um conflito trabalhista. Sebastião Vieira da Silva, trabalhador rural, que disse saber assinar o nome, casado, residente no sítio Tira Couro, onde também exercia suas atividades laborais, foi à Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana38 para reclamar contra D. Jovina Cesar Tavares39.

Seu testemunho levado a termo transformou-se em petição inicial, na qual foram relatados os motivos que o levou a Justiça do Trabalho. Começa suas explicações, descrevendo o seu vínculo com a terra, o sítio Tira Couro, e com o seu trabalho, diz que nasceu nesse sítio iniciando suas atividades no semeio com a idade de 10 anos. Aos 15 anos já dava conta dos vários serviços da lavoura, há esse tempo sobre as ordens do coronel Mário Tavares, à época da reclamação, já falecido, esposo de D. Jovina, que com os anos de vivência laboral no mesmo lugar chegou a ocupar as funções de cabo e de feitor. Enfim expõe que a querela trabalhista foi iniciada devido às mudanças impostas no seu trabalho, causando-lhe prejuízo. Informa o reclamante que D. Jovina Cesar Tavares arrendou as terras e o colocou em outra propriedade - sítio Santa Rita - para “trabalhar por empréstimo”, que a permuta do local de trabalho ocasionou alterações no exercício de suas funções diminuindo sua remuneração.

Assim, sendo assistido pelo órgão justrabalhista do seu município o trabalhador rural pedia para voltar a sua antiga condição como empregado da reclamada e com a mesma remuneração. Histórias como a de Sebastião perpassam, guardando as singularidades de cada uma, a maior parte dos processos trabalhista do município de Goiana. Histórias de homens, de mulheres e de crianças, que se sentindo prejudicados no exercício profissional, vão à Justiça expor os fatos e pedir providências. Em fato, essa busca por reparação é um direito deles, às vezes não entendido como tal, mas já pressupondo um entendimento, tornando-se uma prática, um costume e fomentando uma cultura de direito40.

Sete meses depois do início do processo, não havendo concordância entre as partes, o presidente Delecarlindo Nilo Albuquerque Rios e os vogais decidem pela procedência (em parte); a decisão não contemplou o pagamento das férias, tendo a Junta se apoiado no relato da reclamada que disse, “nunca pagou férias ao reclamante por falta de condições financeiras”.

As razões finais proferidas pelo advogado do reclamante - Dr. Djalma G. Raposo41 - vão dar uma dimensão histórica a narrativa. A escrita expõe-se carregada de signos e símbolos de

em:http://www.correiodopovo.com.br/Impresso/?Ano=116&Numero=346&Caderno=0&Editoria=110&Noticia=336816. Acesso em 01 de junho de 2012. 37 JCJ Goiana - Proc. nº 0021/66: 38 Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana foi criada juntamente com duas do Recife a 4ª e 5ª e as Nazaré da Mata, Jaboatão, Caruaru, Escada e Palmares por meio da Lei Ordinária nº 4.088 do dia 12 julho de 1962. 39 JCJ Goiana - Proc. nº 0021/66. Acervo do Arquivo do Projeto Memória e História – convênio TRT 6ª Região – UFPE. 40 GOMES, Angela de Castro. Direito e cidadania: memória, política e cultura. Angela de Castro Gomes (coord.). R J: Editora FGV, 2007. p. 9. 41 Djalma G. Raposo. OAB – PE 431. Atuou como advogado na defesa de muitos trabalhadores rurais de Goiana. Foi assassinado na frente de sua casa no bairro dos Aflitos, Recife, Pernambuco, por pistoleiro a mando dos donos da Usina Santa Tereza. In CARNEIRO, Ana & Cioccari, Marta. Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962 – 1985,

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um tempo histórico que pressupõe um período de lutas dos trabalhadores rurais, que assistidos pelos sindicatos, ou não, lutavam por direitos trabalhistas e cidadania. Deixam também descortinar o caráter incertezas que povoou a mentalidade de uma coletividade de que as ações coletivas (mobilização social, paralisação e greve), sejam concretizadas via órgão de classe ou individual, pelos líderes sindicais, eram sinônimo de confusão, anarquia, desrespeito, subversão da paz e da ordem estabelecida. Ao expor sua narrativa em defesa do trabalhador, seu advogado deixa enunciado o mal estar que boa parte da população demonstrava ter, frente às mobilizações sociais de resistência e de luta no campo nas décadas de 1960 a 1970.

O reclamante exercia “cargo de confiança” porque era obrigada, naquele tempo, a reclamada, se valer do que pudesse dispor temendo as invasões e greves comandadas pelos diretores do Sindicato chefiado por um “Adauto de tal”.

O Dr. Djalma G. Raposo homem letrado, advogado que foi um representante contumaz do trabalhador nos litígios demandados contra a elite patronal de Goiana, contudo, imbuia em suas defesas a construção ideológica vigente que associava as lutas no campo ao terror e ao medo. Mesmo para ele, um homem cujo cotidiano foi envolto por causas e conflitos sociais, se pode pressupor, há esse tempo, uma cegueira política, ou discursiva, que turvando a vista, podia conduzir militantes sociais a uma miopia da conjuntura histórica.

Talvez essa visão distorcida dos movimentos sociais e sindicais tenha sido cristalizada pelo advogado como a de um “tenebroso período adaulesco” – tempo de perigo - que não lhe foi apreendido como um processo de (re) significação social dinâmico de resistência aos desmandos dos donos do agronegócio, tais quais suas lutas nos tribunais em defesa dos trabalhadores rurais.

Em seu livro Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962 – 1985, as pesquisadoras Ana Carneiro e Marta Cioccari, em 2012, propuseram uma recomposição historiográfica sobre a memória dos trabalhadores rurais em seus embates frente às preeminentes cenas de desrespeito e violação de seus direitos sociais. Singularmente, dizem:

o que apresentamos aqui é um mapeamento, certamente inacabado, da violência política ocorrida no campo no período de 1962 a 1985. Nem por isso menos impactante. O que pode lhe faltar em amplitude é revelado pelas intensidades das narrativas.

Com o subtítulo: Nordeste, uma região “perigosa”, as autoras recortam a militância desses atores nos estados nordestinos de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão, Bahia e Rio Grande do Norte, alguns deles, além de anônimos trabalhadores, eram líderes classistas que exerceram suas práticas sociais e políticas de resistências no período supracitado frente a um cotidiano de repressão. Nesse contexto temporal a tônica foi à violência. Veladas ou não, as práticas arbitrárias imporiam quase sempre a tortura física e/ou psicológica, condenando muitos desses trabalhadores a viverem na clandestinidade, às vezes, sob a legenda de desaparecidos, ou ainda silenciados pelo medo e, não raro, os fizeram sucumbir à morte.

A história de Adauto Freire da Cruz, ou, por vezes, Celestino Alves da Silva (nome utilizado na clandestinidade), pode ser recomposta tendo como fonte o processo trabalhista em ponte elucidativa com o que foi revelado na escrita das autoras por meio da chamada: “Adauto Freire da Cruz: ex-militante das Ligas viveu quase toda a sua vida com nome falso para fugir da repressão”.

O “Adauto de tal” foi um paraibano nascido na cidade de Bananeiras que atuou nas Ligas Camponesas, contemporaneamente a Francisco Julião, fez parte do grupo de líderes camponeses, viajou para Cuba, em 1961, a convite de Fidel Castro e teve uma militância ativa nas Ligas Camponesas de Pernambuco, atuando no município de Goiana. Morreu no Estado do Rio de Janeiro em 13 de maio de 1979. Foi espancado por policiais dentro de um ônibus que seguia do Rio de Janeiro para Teresópolis, quando, em companhia da sua companheira

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Deuzuite da Costa Silva, acabara de distribuir panfletos em defesa da anistia. A violência ocasionou uma fratura na perna e um enfarto que o levou a óbito.

A análise justifica o trabalho que o Laboratório do Projeto Memória e História TRT6/UFPE vem fazendo ao longo de quase cinco anos, frente a uma demanda de resposta social de uma produção acadêmica. Ratificam-se pensamentos já explicitados; entende-se que além da análise de um dossiê, as práticas laborais, o conflito trabalhista e os testemunhos processuais dessa documentação desnudam episódios históricos que possibilitam uma revisão na historiografia.

Assim se expõe a intervenção histórica em um processo trabalhista da Junta de Conciliação de Goiana do ano de 1966, no qual, além das análises balizadas na História cotidiana das relações do trabalho, do trabalhador, do patronato rural e do acesso desses à Justiça do Trabalho para dirimir conflitos e reparar perdas e danos, encontramos fragmentos de testemunho do período de exceção de direitos pelo qual o Brasil passou no período da Ditadura Civil-Militar. Essas narrativas judiciais trabalhistas podem ajudar como referências cruzadas, às ações de recomposição da memória nacional, que em resposta às demandas sociais tardias estão buscando por verdade e justiça.