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Condições Étnicas e Sociais do Brasil Moderno

FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

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Condições Étnicas e Sociais doBrasil Moderno

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C or o procurei mostrar no Capitu-lo 1, os antecedentes europeus da história bra-sileira, apenas em parte é que foram euro-peus. Porque também foram africanos easiáticos. Foram complexos. A complexida-de étnica e cultural portuguesa parece tersido, desde o mais remoto começo do Brasil,um estímulo para a sua diferenciação da Eu-ropa e para sua libertação de um status es-tritamente colonial ou sub-europeu.

Geograficamente, o Brasil está mais es-treitamente relacionado com a África, do quecom a Europa. Segundo alguns ecologistas- um deles o Professor Konrad Guenther -a América do Sul é, na realidade, um conti-nente diferente da América do 'Norte. As ca-racterísticas não só de clima, mas botânicase zoológicas da América do Ncorte, fazem lem-

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180 QILBERTO PREYRË

brar antes as da Europa. As da América doSul, ao contrário, mostram um certo graude independência e individualidade. Refe-rindo-se aos sucessivos períodos geológicos docontinente sul-americano, onde se vê uma ricae diversa fauna, diz o Professor Guenther"que durante todos esses longos períodos hou-ve tempo para desenvolver-se com indepen-

dência". (1) Essa independência e essa di-

versidade alguns autores explicam com o fatoda América do Sul em tempo ter se constituí-

do de numerosas ilhas, cada uma delas com

sua própria fauna e flora.Mas explicação de uma ordem diferente

tem sido sugerida por outros geologistas e eco-logistas, que levam em conta sobretudo o lon-go isolamento do continente e a sua divisãoem muitos tipos topográficos perfeitamente

diferenciados entre si.

Do ponto de vista da ecologia animal, oProfessor Von Ihering - brasileiro de ori-gem alemã - distingue seis regiões no Brasil:a região do Amazona- s; a região do sul doPará ; o sertão do Nordeste ; o interior dos Es-tados do Sul; a zona costeira do Nordeste, nocomeço cheia de flore =tas; e a zona costeirameridional, com as suas planícies verdes oufrescas . Isto para falar sòlnente das regiões:

INTERPRETAÇÃO no BRASIL 181

as sub-regiões são em muito maior número.

Como dizem os ecologistas , a multiplicidade de

forma é a característica essencial da nature-

za, especialmente da natureza tropical, e se um

jardineiro europeu quiser projetar um jardim

no Brasil ele deverá "seguir a natureza como

a sua mestra"; e nesse caso o seu jardim, con-

forme palavras de O-uenther, há de apresentar

a principal característica da vegetação tropi-

cal, isto é, a variedade.

-4-A natureza tropical e a complexidade dosantecedentes europeus deveriam ter levado osprimeiros colonizadores portugueses que se es-tabeleceram no Brasil como plantadores decana de açúcar a uma necessária variedade nasua produção agrícola. Mas a conduta huma-na não depende de nenhuma lógica e o que sedesenvolveu foi a agricultura exclusivista, oua monocultura, especialmente a da cana de açú-car que tornou-se a característica predominan-

te da paisagem natural e social das regiões que

a invasão portuguesa dominou primeiro. Maistarde o açúcar veio a ger sutis -ntuídó pelo ca-fé, mas com as "esmas conse:; uências perni-

ciosas para a natureza e para „=ciedade hu-mana. Em ambas as esferas, a harmonia es-sencial nas relações entre as criaturas vivas

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182 GILBERTO FBEEYRE

foi destruída quando em vez de agriculturavariada ou diversificada adotou-se a mono-cultura.

Essa predominância ou exclusividade de

cultura dada, em largas regiões, a uma plan-

ta com desprezo de outras foi uma forma deperverter-se a natureza tropical essencial-mente diversificada. E pelo lado humano foiuma forma de fazer o colonizador dominar

um único tipo de organização social - o feu-

dal ou quase feudal.

Felizmente a natureza tropical ela mesmaparece ter-se revoltado contra a uniformidadeimposta pela agricultura européia monocul-tora. Pequenas ilhas de culturas secundá-rias desenvolveram-se no meio dos vastosoceanos de cana de açúcar. O fumo, o milhoe a mandioca logo contam- se entre as formasnativas e quase espontâneas de agriculturaque os portugueses adotaram dos ameríndios;ou que os ameríndios nômades cultivavam porsi mesmos, fugindo ao império da mono-cultura.

E de certo modo a mesma coisa aconte-ceu na esfera da ecolozia humana. Os índios,por exemplo, revoltaram-se contra a imposi-ção sobre eles de um sistema de plantação queos reduziria a escravos. Alguns tornaram-secolaboradores ú. ricamente dos colonos das

INTERPRETAÇÃO DO BP...SSTL 183

fronteiras, ou dos sertões.. A maioria deles

foram indomáveis inimigos dos plantadoresque praticavam a monocultura e procuravamos indígenas para escravos de seus engenhos.Os índios brasileiros eram de hábitos e gostosnômades. Vida sedentária, rotina agrícola,trabalho monótono da terra significava a mor-te para eles. Isto explica por que os negrosda África foram importados em tão grandenúmero para a América Portuguesa, e porque os seus descendentes representam hojeum elemento de tanta importância na compo-sição étnica e na estrutura social do Brasil.

Se o equilíbrio da natureza brasileira foidramaticamente perturbado quando a cana deaçúcar fez-se a única base da dominação por-

tuguesa, a introdução do negro africano nas

regiões do açúcar é considerada por alguns

historiadores e sociólogos como um motivoainda maior de perturbação. E' que o negro

fora trazido para regiões que não eram prò-priamente as suas.

Mas Henry Bates, cientista britânico quepassou muitos anos no Brasil durante' o mea-do do século XIX, chegou à conclusão de queo negro era mais feliz na América tropicaldo que o índio. Bates notou "a aversão cons-titucional ao calor'' por parte do índio em con-

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184 GILBERTO FREYRE

traste com a adaptação perfeita do negro. E

o seu bom raciocínio foi que o negro e não oíndio é que "é o verdadeiro filho dos climastropicais"; (2) o verdadeiro filho do Brasiltropical tanto como da África tropical.

Do ponto de vista das relações do homem

com a natureza, a adaptação do negro ao cli-

ma e a outras condições físicas do Brasil pa-

rece ter sido perfeita. Do ponto de vista so-

cial ele surge culturalmente mais bem prepa-rado do que o ameríndio nômade para ajustar-se ao sistema eselavagista de vida - agríco-la e doméstica - existente na América Por-tuguesa nos primeiros tempõg` de colonização.A sua adaptação às condições americanas foitão perfeita como a do plantio da cana de açú-car, o seu companheiro simbiótico no papel demodificar á paisagem brasileira transfor'.-mando-a de uma região de florestas virgensem unia outra dominada pela colonização agrá-ria, pelo latifúndio, pela agricultura monocul-tora.

Alguns dos milhões de negros importadospara as plantações do Brasil vieram das re-

giões mais avançadas da cultura negro -africa-na. Isto explica piar que houve escravos afri-canos do Brasil - homens de fé maometanae de instrução intelectual - que foram cultu-

INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 185

ralmente superiores a alguns dos seus senho-

res, brancos e católicos. ?ara mais de um es-

trangeiro, dos que visitaram o Brasil no sécu-

lo XIX, foi motivo de surpresa o fato de que

o principal livreiro francês da capital do Im-

pério contava, entre os seus fregueses, negros

maometanos da Bahia ; e por meio dele esses

negros extraordinários, alguns aparentemente

cristãos mas intimamente ma'-}metanos, im-portavam exemplares caros deis seus livros

sagrados para lê-los em segredo. Outros man-

tinham escolas. E havia também entre os ne-gros maometanos da Bahia sociedades de au-xílio mútuo, que serviram à libertação degrande número de escravos.

Na província de Minas Gerais, entre osescravos floresceram, da mesma maneira que

na Bahia, sociedades de auxílio mútuo. E oamericano Ewbank. quando de 1845 a 1846

esteve no Brasil, jantou uma vez com certo

plantador e senhor de escravos baiano que

lhe disse que os escravos de Salvador conser-

vavam a sua própria língua, assim como orga-

nizavam sociedades ou associações e traçavam

planos revolucionários - os mesmos planos

que os seus irmãos de Pernambuco várias ve-

zes tentaram exeeu:dr; e que -'_uns escravos

baianos eram capazes ele "eszcrev r fluentemen-

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te o árabe" e eram "muito superiores aos seus

senhores". (3)

Tive a sorte de achar documentos confir-

mando as palavras de Ewbank, e provando

que, ao lado de fortes escravos bons sômente

para o trabalho do campo, também veio para

o Brasil bom número de negros já de cultura

relativamente avançada. Talvez nenhuma

outra colônia da América tivesse, entre os

seus africanos importados, negros da quali-

dade dos que vieram para a Bahia. E essa

importação de negros de qualidades, cultural-

mente avançados, vindos das regiões africa-

nas sob a influência civilizadora do poder

maometano , explica por que nv Brasil, anais co-

mumente do que em qualquer outra colônia

da América, negras bonitas e até belas che-

garam a se tornar famosas como amantes de

ricos e proeminentes comerciantes portugue-

ses da Bahia, de Ouro Preto, do Rio e do Re-cife. Algumas delas excederam em prestígio

às suas rivais brancas ou ameríndias. Em

Minas Gerais mais de uma tornou-se rica ca-

sando as filhas com jovens socialmente im-

portantes e de cor branca, uns, mesmo, euro-

peus, outros brasileiros. Houve uma tal Ja-

cinta, por exemplo, que encontrei citada num

interessante documento genealógico perten-

F INTFRPRETAÇIO DO BBÃSII. 187

cente a um arquivo de família daquela região ;

muito brasileiro hoje com posição de relevo na

vida política ou profissional traz nas veias

o sangue de Jacinta.

O negros estão agora desaparecendo rà-pidamente do Brasil, fundindo-se com osbrancos. Em algumas regiões a tendência,ao que parece, é para a estabilização dos mes-tiços em um novo tipo étnico, semelhante aoda Polinésia. Embora essa tendência note-semais comumente entre os camponeses e os imi-grantes , outras Jacintas tem havido nas -ori-gens ou na história das famílias aristocráti-cas do Brasil. São raras mas têm existido.Constituem assunto de mexericos, mas demodo nenhum se sente desgraçado o indiví-duo que tenha entre seus antepassados remo-tos uma formosa africana.

Ewbank escreveu, no livro já citado sobreo Brasil no começo do reinado de Pedro II:"Tenho passado por senhoras negras vesti-das de seda e com jóias , acompanhadas de es-cravos que as seguem de libré. Hoje vi, pas-sar uma, de carro, acompanhada por um co-

cheiro e um lacaio uniformizados. Várias

delas têm maridos brancos. O primeiro mé-

dico da cidade é um homem de cor; e de cor

é também o presidente da Província". E

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188 ouLBESro PPXYM

descreve Ewbank a Viscondessa de C..-. comonegróide. (4)

Tem existido e ainda existe no Brasil dis-

tância social entre os diferentes grupos da pó-pulação. Essa distância social , porém e - ehoje mais verdadeiramente do que no tempocolonial ou durante o Império ( quando a es-cravidão era o fato central da estrutura ou dodrama social) - o resultado da consciênciade classe mais do que de qualquer preconceito

de raça ou de cor. De como é de uma largatolerância a atitude dos brasileiros em rela-

ção a pessoas que ei ibora com sangue africa-no podem passar por brancos , nada mais ex-

pressivo do que o dito popular .; " QueW esca-

pa de negro , branco é ".Já Riehard Burton havia observado no

Brasil imperial que "aqui, todos os homens,

especialmente os que são livres, quando nãosão negros são brancos ; e muitas vezes um ho-mem é oficialmente branco, mas na verdadequase negro . O que é francamente oposto ao

sistema dos Estadas Bnidos onde brancos e

negros não se misturam". (5) Visitando o

Brasil meio século depois de Burton, Bryce

o incluiu entre os pires onde a distinção en-

tre raças é unia distinção "de posição ou de

ralasse mais do que de cores". (6)

INTERPRETAÇÃO DO mt sn1

Mesmo na época colonial, se uma pessoaera politicamente ou socialmente importantenenhuma significação tinha que o seu passadoétnico não fosse virgem de sangue africano :ele ou*ela passava por branco.

Tenho procurado estudar ou examinar

esse processo brasileiro de "arianização" social

em mais de um livro. Tenho procurado desta-

car em mais de uni estudo, na solução brasi-

leira dos problemas resultantes do contacto de

raças, seu contraste com outras soluções. E

creio que a solução brasileira, em grande par-te, se explica à luz da experiência, quer social,quer cultural, peculiar aos portugueses, como

povo e transição entre Europa e África.

Outro povo de transição entre Europae outro continente de população de cor é orusso, que revela hoje ao mundo um tiponovo, sob certos aspectos, já vitorioso, de or-ganização social e que inclui a miscigena-ção, especialmente a mistura de raças conhe-cida por euro-asiática, entre suas soluçõespara os problemas sociais do homem. Emmais de um aspecto da sua situação étnica esocial, o Brasil lembra a Rússia. (7) A expe-riência de bi-continentalismo étnico e cultu-ral começada há séculos em Portugal tomounova dimensão no Brasil: trési raças e três

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culturas se fundem em condições que, de modogeral, são socialmente democráticas, aindaque até agora permitindo apenas um tipo ain-da imperfeito de democracia social ; imperf ei-to tanto na sua base econômica como nàs suasformas políticas de expressão. Mas comtodas as suas imperfeições, de base econômi-

ca e de formas políticas de convivência demo-

crática, o Brasil impõe-se hoje como uma co-munidade cuja experiência social pode servir

de exemplo ou estímulo a outras comunidades

modernas. Decerto não existe nenhuma outracomunidade moderna da complexidade étnica

da brasileira onde os problemas das relações

sociais entre os homens de origens étnicas di-

versas estejam recebendo solução mais demo-crática ou mais cristã que na América Portu-guesa. E a experiência brasileira não indica

que a miscigenação conduza à degeneração.

As conclusões do Professor Charles R.Stockard - que "a mestiçagem entre raçashumanas muito diferentes provàvelmente cau-sa a degradação e até a eliminação de certosgrupos" ; e que "a extinção de várias ra-ças antigas tem aparentemente seguido demuito perto a absorção em grande escala deescravos estrangeiros", e que, "se examinarmosa história de alguns dos países do sul da Eu-

ropa e da Ásia Menor, de um ponto de vistaestritamente biológico e genético, se acharáuma relação muito bem definida entre o amal-gamento dos brancos e dos escravos negróidese a perda da potência intelectual e social" (8)- são conclusões que não encontram confirma-ção na experiência do povo luso-brasileiro.É verdade que Portugal não tem hoje o pres-tígio intelectual e social que teve quatro sé-culos atrás. Mas isto é também verdade dos"arianos" da Holanda e dos "arianos" da Di-namarca.

De acordo com a teoria do Professor Sto-ckárd, o Brasil, onde a miscigenação fez-semais livremente do que em Portugal e na Es-panha, deveria ser bem mais inferior em po-der intelectual e social não sòmente a Portu-gal, mas a nações quase brancas da Américado Sul como a Argentina e o Chile. Os estu-dos objetivos sobre as realizações nacionais ouregionais da América Latina, e sobre o seu de-senvolvimento cultural, não parecem confir-mar a inferioridade do mestiço do Brasil com-parado com seus vizinhos mais "arianos".No Brasil e não nos países mais "arianos" daAmérica Latina é onde hoje se encontra o gru-po mais fortemente criador de jovens arqui-tetos, de jovens pintores e de jovens composi-

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192 Guia~ YU

tores da América do Sul , senão de todo o con-tinente americano ; e ainda no Brasil mesti-ço é que se encontra o grupo mais criador demédicos e de cientistas dados ao estudo dasdoenças chamadas tropicais e dos problemasde saúde e de higiene peculiares às zonas tro-picais. O Brasil é universalmente conhecidopela obra de cientistas como Osvaldo Cruz,Carlos Chagas, Cardoso Fontes, Roquette-Pin-to, os irmãos Almeida, Silva Melo, Vital Bra-sil, Afrânio do Amaral e Sinval Lins. As fe-lizes experiências científicas de investigado-res brasileiros , alguns deles mestiços, com ossoros antivenenosos para anular os efeitos doveneno das cobras, todo ano salvam centenas-de vidas em vários países.

Outro fato que parece desmentir os queenfàtieamente generalizam sobre os efeitosintelectuais e sociais do que eles chamam"mongrelização" é que durante anos as zonas

brasileiras donde sai o maior número de líde-res políticos, ou de homens de letras ou de cien-tistas, ou de homens de talento artístico, têmsido as zonas notáveis precisamente pela ex-

tensão e intensidade do amalgamento étnicoe da interpenetração cultural: o Nordeste,Bahia e Sergipe, o Rio de Janeir ; Minas Ge-rais e São Paulo. Durante o4Império, a

ixTERPRETAÇso DO MAM 193

Bahia foi conhecida como a "Virgínia Bra-

sileira" porque a maioria dos presidentes degabinete vinham dessa província. Alguns dospresidentes de gabinete do Império, aindaque oficialmente se comportassem com o mes-mo solene rigor dos membros do Parlamentobritânico, eram homens com sangue negro. Eembora as qualidades dos estadistas brasilei-ros durante o período do Império fossem imi-tativas mais do que criadoras, alguns delestornaram-se notáveis pelo seu talento políticoe, ainda, pelo seu tato e habilidade como di-plomatas.

Como Império o Brasil foi um país cujaestabilidade e paz contrastavam com a vidapolítica turbulenta da maioria das repúblicaslatino-americanas. E já então ele era gover-nado por uma aristocracia bastante democrá-tica desde que homens com sangue negro po-diam se associar a ela, se bem que, em suamais larga composição, se formasse de bran-cos ou de quase brancos ou de mestiços apenasde sangue indígena. No período republicano,entretanto, é que se intensificou a ascensão aopoder politico e aos postos de direção intelec-

tual, industrial e eclesiástica, de brasileiros deorigem africana.

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Considerada como sistema político, a Re-

pública estabelecida no Brasil em 1889 nãofoi diferente do Império : conservou-se maisimitativa do que criadora. Diminuiu a hones-tidade entre os homens públicos ; perdeu-setambém um pouco o sentido daquela elegânciae dignidade que eram bem características doParlamento brasileiro no tempo de D. Pedro

II. Mas, por outro lado, aumentou a eficiên-cia na maneira de tratar os problemas práti-cos. Não foram raros os novos líderes políti-cos que se fizeram notáveis pela sua habilidadeou capacidade no trato de problemas econômi-cos e sanitários, de algum modo -negligenciadospelos estadistas e políticos do Império.

Com a República é que surgiram audacio-sos projetos para a construção de portos e degrandes edifícios , obras hidráulicas, planosde saneamento, pavimentação, drenagem e em-

belezamento de cidades, e, ainda, planos parauma organização comercial mais eficiente daprodução do café. 0 Brasil apaixonou-se peloprogresso material. E em muitas dessas obraspode-se adivinhar a dinâmica impaciência dosbrasileiros que ingressaram na vida públicacom a República de 1889: a sua ânsia para fa-zer do Brasil um país moderno, progressista,

INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 195

diferente de Portugal e diferente da estru-

tura colonial ou monárquica do próprio Brasil.

Dos novos chefes republicanos grande nú-mero eram mestiços, homens de origem humil-

de e de modo nenhum aristocrática. Parecem

eles ter feito do regime republicano uma ex-

pressão das suas próprias aspirações a novo emelhor estado social de vida.

Isto deve explicar a importância políticaque teve o exército no novo regime. Em cen-traste com a marinha, que ostentou sempre no

Brasil com especial orgulho o fato de ter como

oficiais sômente brancos caucásicos ou indo-

caucásicos e filhos de famílias aristocráti-cas ou de burgueses ricos ; e em contras-

te também com o clero, que durante oImpério foi principalmente branco e aristo-

crático ou burguês - o exército brasileiro co-meçou a desenvolver-se 'em organização sociale Unicamente democrática, com grande núme-

ro de oficiais de origem social modesta, e alguns

com muito sangue índio e até negro nas veias.

Alguns desses homens tiveram parte ativae dinâmica na vida política da nação. Quando

o sistema agrário-patriarcal do Brasil come-

çou a desintegrar-se - desintegração esta que

se processou ràpidamente depois da abolição

dos escravos - o exército e a Ia-reja permane-

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196 ATO FREYRE

ceram os dois únicos grupos organizados dopaís. E dos dois foi o exército o mais liberal,progressista e democrático , e a Igreja, o maisconservador, ainda que raramente anti-liberalou violentamente oposto a reformas sociais.

Não poucos dos mais jovens oficiais doexército caíram sob a influência do positivismo

de Coorte, e os mais entusiastas deles, conven-cidos de que no positivismo tinham não umamas a solução de todos os problemas brasilei

ros, agiram sob esse critério. Outros republi-

canos idealistas - estes, civis - convence-

ram-se, lendo mestres ingleses e norte-ameri-

canos de política, de direito oii de finanças, de

que uma constituição federal e democrática co-.

piada da dos Estados Unidos resolveria todasas dificuldades do Brasil.

Entre esses dois grupos de ideólogos extre-mos havia os lideres republicanos cujo méto-do era o britânico de tratar cada problemacomo ele se apresentava e não de acordo comalgum rígido sistema filosófico ou algumaideologia inflexivelmente lógica. Neste tercei-ro grupo de líderes jovens mas realistas, obje-tivos, havia, como nos dois outros, brasileirosnegróides notáveis pela ambição de alcançar opoder pelo valor intelectual e pelas qualidades

INTERPRETAÇÃO DO BBAsrL 191

pessoais de sedução -, homens como FranciscoGlicério e Nilo Peçanha ; como havia tambémdescendentes de imigrantes europeus de outra

origem que não a portuguesa, filhos e netos

de camponeses ou artesãos , de franceses, ale-mães, ingleses , italianos, homens dos quais po-

deriam ser destac--ari s Lauro MüIler, filho de

colono alemão, e Paulo Frontin. filho de imi-

grante francês. P-i-ológica e suciològicamen-♦te eram todos - filhos de imigrantes e descen-

dentes mais ou n:e:os remotos de africanos ' -como peregrinos da mesma romaria : impacien-tes por se erguerem sociahnente realizandotriunfante carreira política como líderes do no-vo regime. E os mais sagazes parecem ter com-

preendido que a atitude mais inteligente era ade não se comprometerem com nenhum bem

definido sistema filosófico nem com nenhumaideologia política inflexível , cujo prestígiopudesse desaparecer ràpidamente , mas darem-se eles mesmos à causa que por muito tempo se-ria cara a quase todos os brasileiros : a causado progresso material. Daí os planos para

melhoramentos gerais como a mais caracterís-

tica expressão da atividade republicana no

Brasil: da atividade de grande farte dos no-vos líderes políticos depois de S&.

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198 GII.IIEATO FP.EYRE

Foi nesta ocasião que o Brasil contraiudívidas em grande escala , tomando emprestadoa banqueiros europeus quanto necessitava emouro para construir portos, edifícios, obras hi-dráulicas , instalações sanitárias , avenidas, es-tradas de ferro , navios de guerra . Emboramuito desse dinheirm fosse gasto extravagan-temente, não se pode negar que os dirigentesda "primeira República" enriqueceram o Bra-

sil com obras públicas notáveis, muitas delasde engenharia sanitária e essenciais não sómente ao seu desenvolvimento econômico, massocial da nação brasileira.

Tais obras materiais, tais realizações nãopodem nem devem ser sub-estimadas. Algu-mas foram valiosíssimas. Foram a primeiragrande contribuição do sistema de governo re-publicano ao progresso do Brasil.

Os antigos senhores de terra, os homens davelha aristocracia escravocrata, substituídos,como lideres políticos, por um novo elemento-da população, um elemento bem mais diferentedos seus predecessores quanto à origem sociale também quanto à c _,mposição étnica e aos in-teresses econômicos e intelectuais, essa substi-tuição deve ser considerada fato importante.A maioria daqueles predecessores não tinhados problemas sociais brasileiros senão a visão

INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 199

patriarcal , feudal ou aristocrática que lhes

convinha; eles olhavam o açúcar (e depois o

café ) como o grande problema do Brasil; con-sideravam-se patriarcalmente os chefes natu-rais de vastas famílias de escravos e semi-es-

cravos produtores de açúcar eu de café - vas-tas famílias cuja, constelação c^^nstituía o Bra-sil. Os novos d r sentes, alg ns deles remotosdescendentes ou descendentes em segunda e

terceira geração de escravos •..u de camponeses

ou de modestos imigrantes da Europa, surgi-ram com uma experiência e uma visão mais de-

mocráticas da vida. não tanta. é verdade, como

seria necessário para se fazerem líderes efeti-vos da reconstrução social do Brasil. A maio-ria deles preocupava-se mais em chegar a altassituações políticas e sociais do que com qual-

quer problema largamente humano ou social,salvo os de melhoramento sanitário das gran-des cidades, um aspecto estreitamente bur-guês do grupo de problemas sociais com quese defrontava então o povo brasileiro. E emrelação aos problemas econômicos aqueles no-vos lideres foram sempre aLtes conservadores

que inovadores do ponto de vista social.

Do contacto de alguns do-. novos lideresrepublicanos com o poder - _e era mais uma

sombra de poder - da velha aristocracia do

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200 GILBERTO P$EYf

açúcar e do café que se desintegrava com rapi-

dez, surgiu um plano para a defesa da produ-ção do café no Brasil - plano que ficou comouma das contribuições mais originais da Amé-rica Portuguesa depois de tornada republicana(intensamente mestiça e mesmo negróide nacomposição da sua elite política e intelectual)para a ciência econômica e para essa técnicaaté então ainda vaga que era o controle oficial

dos mercados.

Segundo um economista americano espe-

cialista no assunto . o plano brasileiro de "va-

lorização pelo controle do café, em 1905, foi se-guido pelo Equador em relação ao cacau, peloMéxico para controlar seu- henequén , pela Ma-

laia Britânica e Ceilão para o controle da bor-racha , por Cuba em relação ao açúcar, pelo

Egito para o algodão e pela Itália para o ci-

trato de cálcio ." Acrescenta o mesmo especia-lista que a valorização pelo processo brasileirose tem aplicado a muitos outros artigos e em

mercados puramente domésticos , como, num

exemplo familiar, seriam os esforços da Fede-

ral Farm Board para levantar o preço do trigo

nos Estados Unidos, Charles R. Whittlesey

nos diz em artigo que sobre o assunto escreveu

para a Encyclopedia of tÚe Social Sciennces que

o termo "valorização" `' foi introduzido nos

INTERPRETAÇÃO IX) BRASIL 201

países em que -e fala ó inglês desde 1906 pro-cedente do Brasil, onde tinha sido aplicado amedidas para regular o mercado de café". (9)

Bem sucedidos na valorização do seu café,os primeiros líderes republicano do Brasil nãocuidaram dos problemas humanos - não de-

senvolveram nenhum plano para a "valoriza

ção" do homem brasileiro. Vaorizar o huma-

no pareceu-lhes menos que = _.lorizar o Sub-humano.

Por muito perspicazes que tivessem 'sidono que respeita a,-.s assuntos financeiros e aosproblemas relacionados com o progresso ma-terial, fracassaram com os problemas humanosà falta de contacto mais intimo com a realida-de brasileira : a realidade hm-nana , social ecultural. Assim é que se descuidaram de pro-

blemas muitíssimo importantes como o de diri-gir a transição do trabalho escravo para o tra-balho livre . Parece mesmo que os mais realis-tas deles não consideraram tal problema dignode estadistas - homens da estirpe deles - maspara filantropos, missionários e poetas líricos.

Além disso, alguns deles - os que tinhamsangue negro de escravo nas veias - não que-

riam aparecer como campeões de unia causa

cuja defesa faria ressaltar ^. _ elemento pes-

soal ou hereditário que estavam doidos para

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GILBERTO FREYRE

esquecer ou esconder e para que também fosseesquecido por toda a gente. Daí se concentra-

rem na mística do progresso material - numapolítica de empréstimo e de construções, comela atraindo não só o capital como também o

trabalho estrangeiro.

A atração do capital e da mão de obra es-

trangeira foi de certo modo bem típica da po-

lítica estreitamente eco 3nómica adotada pelos

líderes republicano s para a europeização do

Brasil, especialmente nas cidades do litoral.

Pouca importância se dispensou ao lado hu-

mano, superiormente social e cultural do pro-

blema da colonização européia ,, Só o aspecto

mecânico ou material parece ter preocupadoaqueles líderes e mesmo alguns dos seus prede-

cessores.

Logo no século XIX começara a delibera-

da importação de imigrantes europeus, para o

Brasil. Aumentou poucos anos mais tarde,

quando os ingleses tomaram tais e tão severas

medidas contra o tráfego de escravos que bem

raros se tornaram os contrabandos de pretos,

pelos navios capazes de abastecer ilegalmente

de africanos as plantações do Brasil. Os es-

tadistas dos últimos anos do Império compre-

enderam que, em face da escassez do trabalho

INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 203

escravo, as perspectivas da agricultura brasi-leira não eram de encher os olhos de ninguém.

O problema porém não era para ser olhadosòmente do lado econômico ; mas também dolado social. Como podia um país dominadopelo sistema agrário-patriarcal. dominado por

uma agricultura m-)nocultora e cone uma or-

ganização feudal, atrair europeus ansiosos por

encontrar na América melhoro= e mais livres

condições de vida do que nos suis própriospaíses? Como podia um país quase mórbida-mente devotado à plantação do café ou da canade açúcar, em propriedades imensas , que esta-vam nas mãos de pequeno número de latifun-diários, transformar -se em um país de peque-na lavoura , de pequena propriedade , de plan-tação de café por camponeses, de agriculturavariada? Como poderia ocorrer tal transfor-mação sem ser por meio de violenta revolução`?

Um grande fazendeiro de café dos últi-mos anos do Império , Moreira de Barros,quando ocupou o Ministério das Relações Ex-teriores, mostrou-se homem de espírito rea-lista , ao observar que os imigrantes europeusdeviam "sòmente trabalhar por suas próprias

mãos e nas suas próprias terras". Mas o que

os grandes plantadores de café ou de açúcar

queriam, em matéria de imigra=es, era um ti-

Page 15: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

204 GILBERTO FPEYRE

po de trabalhadores que se conformassem em

ser meramente os sucessores passivos dos es-

cravos. E a isto é que os imigrantes europeus

não se sujeitavam.

Para ver quanto o aspecto humano do pro-

blema era desprezado em favor do estreita-

mente econômico gasta citar as tentativas de

estadistas do Iml:rio afim de trazer coolies

chineses para as plantações onde ocupariam o

lugar dos escravos negros. A nova forma de

escravidão teria sido introduzida na América

Portuguesa se em 1883, quando um tal Tong

King Sing veio ao Brasil para discutir o pro-

jeto que sobre esta matéria estava sendo séria-

mente examinado pelo governo do Brasil, não

tivesse o fato provocado no Rio e em outras

cidades forte reação do sentimento público

contra os grandes fazendeiros ou senhores de

terras. Fechados nos seus estreitos hábitos

feudalísticos e nos seus interesses puramente

econômicos, nada viam esses fazendeiros dos

problemas de maior amplitude nacional. Esse

ano de 1883 deve ser considerado um ano his-

tórico na luta pela democratização econômica

do Brasil, porque foi então que os interesses

dos plantadores eafé perderam importante

batalha. Batalha para preservar um sistema

INTERPRETAÇÃO DO BR3srL 205

que embora criador. nos c ,mef .s da agricultu-ra e da sociedade- brasileira, tornou-se total-mente parasitárií, e oposto ao desenvolvimentode novas condiç("mos de vida no país.

O fato da opinião públie -er se mostradotão enérgica contra a introdução dos coolieschineses é prova ie que, peio senos nos últi-mo anos do Imp#--rio, havia jã opinião ou sen-

timento público no Brasil. Quando intérpre-

tes superficiais da vida brasieira sustentam

que o único governa) para o Brasil é a ditadura

paternalista, sob o fundamento de que "nãoexiste opinião pública no país". é porque se

esquecem de episódios como í? dessa vigorosa

reação popular de 1883. É verdade que o Bra-

sil possuía então como imperador um homem

bom e liberal mas que" provàvelmente teria

agido como queriam que ele azisse os grandes

plantadores de café e de açúcar - em favordos seus interesse. feudalísticos - se a opinião

pública não se tivesse manifestado tão elo-quentemente.

Nessa época povo do Brasil podia expri-mir os seus. sentimentos em -- :niões públicas

e na imprensa. Era um dire_`o seu. E tão

livre era a imprensa que os a 'acionistas e os

republicanos chegavam a se referir algumas

vezes a D. Pedro II conto a "Pedro Banana",

Page 16: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

GILBERTO FREYI E1,06

para melhor o acusarei,-. 1 fraco instrumentode poderosos interesses privados - e tal qualuma banana de mole; mais banana do que unihomem.

Outros lideres de governo do mesmo tipo

paternalista têm recebido no Brasil seus ape-

lidos, porque embora homens bons, honestos,

bem intencionados, colocaram às vezes podero-sos interesses privados acima do interesse pú-

blico e das necessidades nacionais: "Tio Pi-

ta", por exemplo. Epitácio Pessoa, presidente

da i ,epública dos mais ilustres, recebeu tal ape-

lido dos homens da oposição devido às suas

tendências para o que se poderia chamar tal-

vez benevolência nepotista ou,,mais pedante-mente falando, benevolência "avuncular".

O governo de tipo paternalista não parece

dar bom resultado quando as condições sociais

deixam de ser favoráveis ao paternalismo e

exigem direção forte porém responsável da coi-

sa pública : tão diretamente responsável quan-

to possível, perante o povo ou os elementos mais

vigorosos e instruídos tia comunidade. O pa-

ternalismo parece tornar-se sempre prejudi-

cial quando não se contenta em ser simples re-

gime de transição, interessado em incorporar o

povo comum à vida cívica da nação.

Mas a reação do sentimento público não

foi a única força ie serviu para frustrar oprojeto de importação de coolie&. Outra inter-venção houve, talvez não insDxirada inteira-

mente em motivo ^manitários, e sim na es-

perança de possível competição de seus produ-tores de açúcar e café com as do Brasil --

a intervenção do Lr_-,)ério britânico. Uma car-ta significativa sol-_p- o assunto é a que foi pu-

blicada em dezembro de 1883 no Anii-SlaveryReporter de Londres - carta assinada porCharles H. Allen e :irigida ao mui nobre Con-de de Granville. Secretário Principal de Eia-do de Sua Majestade para Assuntos Estrán=geiros. Diz aí o autor da carta que os aboli-cionistas britânico` falaram francamente a

Tong King Sing doo extremo perigo de se trans-formarem virtualmente em escravos os coolieschineses, que, sob contrato, fossem importados

para o Brasil, e concluía com o seguinte : "O

Comité pede-me para agradecer a Vossa Exce-lência pelas prontas medidas que adotou, cha-

mando a atenção dos representantes de suaMajestade no Rio e Pequim para a questão da

imigração chinesa no Brasil, e para exprimira esperança de que Vossa Ex>-elência peça a

esses representantes que não se descuidem, e

bem considerem este assunto, á que poderiam

Page 17: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

208 GILBERTO FREYREo

apresentar-se no futuro planos semelhantes ao

atual e em que os plantadores poderiam ter

que tratar com cavalheiros menos astutos e não

tão generosos como o Senhor Tong KingSing".

Mais de uma vez grandes potêncías quetêm ultrapassado o regime de escravidão ou de

semi-escravidão em seu desenvolvimento eco-

nômico, têm favorecido reformas liberais e de-

mocráticas nos países mais fracos ou mais

atrasados; porque tais países, continuando ater escravos ou servos, podem se tornar compe-.

tidores perigosos, na produção agrícola, da-

quelas grandes e adiantadas„ potências. Isto

deve explicar o fato de que, em épocas diver-

sas, os liberais do Brasil têm contado com o

apoio de políticos europeus conhecidos antes

pelo realismo cru que pelos sentimentos huma-

nitários da sua política estrangeira. Deve ex-

plicar também o fato ainda mais fácil de ser

observado : que mesmo os governos ditato-

riais do Brasil e de outros países da .América

Latina contem, para surpresa de muita gente,

com o apoio dos líderes liberais e democráticos

de grandes potências interessadas menos na de-

mocratiziação das nações mais fracas do que

eiu aumentar o poder aquisitivo das mesmas

INTERPRETAÇÃO DO BRAM 209

nações em relação com os produtores daquelaspotências.

Logo que os plantadores de café do Bra-sil sentiram que não havia mais possibilidadesde importar escravz„ para suas fazendas, osmais empreendedores dentre eles procuraram

atrair camponeses europeus, alguns adotandoura sistema chama+1r, de pclreeri^r, ano muito di-ferente do sistema (1.c servidão. E' verdade,

corno têm observado críticos objetivos desse sis-tema de parceria, c ae com a qualidade de pcir-ceiro ficava ao colono a satisfação de conside-rar-se trabalhador independente : mas, como elecomeçava contraindo empréstimos , sem possuirterra, sua sorte era Sempre a de um pobre dia-bo, desde que falhasse a colheita ou que o fa-zendeiro não fosse homem de boa fé. Malchegava o colono e já era devedor: devedor dapassagem dele e da família . Recebia casapara morar e certa quantidade ie alimento, écerto . Mas era obrigado a cultivar certo nú-mero de pés de café. ou um lote de cana deaçúcar e a levar a sua produção ao moinho dodono da terra, tendo então direito a metade do

resultado, (10) em geral já absorvida pelas

despesas. Sob este sistema ele ficava inteira-

mente na dependência da boa ou aná fé do plan-tador ou senhor de terra.

Page 18: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

210 GILBERTO FREYRE

Alguns apologistas do sistema de parceria

costumam citar c.^m ênfase o fato de alemães,pés-de-boi no trabalho, que, estabelecendo-se

em S. Paulo , vindos da Baviera e de Holstein,conseguiram pagar regularmente as suas dí-vidas em quatro anos, sobrando - lhes dinheiro

depois. Mas é uri-. fato que apenas diz bem dahonestidade de alguns plantadores de café nosseus negócios core o camponês ou imigrante eu-

ropeu, desde que os podia conservar indefini-damente como semi-escravos , sempre endivida-

dos e sempre dependentes . D se contudoacrescentar que não foram os alémãe' mas ositalianos do norte da Itália , que provaram seros melhores sucessores dos éàcravos negros nasplantações de café do sul do Brasil.

A despeito dos muitos atritos entre plan-tadores brasileiros e colonos europeus durantea fase de transição da escravatura para o tra-balho livre , chegou-se eventualmente a umacordo quando nova instituição oficial, deno-minada Patronato Agrícola, passou de certomodo a regular as relações entre fazendeiros etrabalhadores brancos ou imigrantes europeus,

que, agora , ao menos assistência médica pas-saram a receber. Onde esse acordo realmentesurtiu melhor efeito foi em S. Paulo, e com acolonização italiana : tal foi o êxito dessa co-

INT`ERPEzrACÇÃO DO BRASIL 211

Ionização naquele Estado que um terço, apro-

ximadamente, da sua população atual é de san-

gue italiano e muito se distingue na vida co-mercial e industrial tanto como na vida socialda comunidade paulista.

As regiões, ou áreas, do Brasil onde a co-

lonização européia tem sido mais bem sucedida

são aquelas quase serei herança do sistema agrá-

rio-patriarcal: Rire Grande do Sul, Santa Ca-

tarina, Paraná, parte de Minas Gerais, do Rio

de Janeiro, do Espírito Santo e de S. Paulo.

Todas as tentativas para estabelecer os colonos

europeus nas vizinhanças das velhas regiões

feudais de latifúndio escravocrata - Bahia,

Rio de Janeiro e Pernambuco principalmente

- têm dado em maior ou menor fracasso.

Por outro lado fracassou também a tenta-tiva da maioria dos colonos anglo-americanos

que vieram no século XIX do sul dos Estados

Unidos para o Brasil porque era este um país

de escravos e estavam habituados a ser senho;

res de negros e a dominá-los. De dezenas de

norte-americanos do sul, que, depois. da guer-

ra civil dos Estados -Unidos, desapontados coma derrota sofrida pelos Estados escravocratas,vieram para o Brasil. poucos foram os que se

saíram bem ou prosperaram em, terra brasilei-

Page 19: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

ra. O que parece é que a maioria deles teria

vindo com pouco dinheiro, não podendo se

estabelecer corno plantadores e donos de escra-

vos, e assim viver a vida a que estavam acos-

tumados no Velho Sul dos Estados Unidos.Começar a vida ectinlo pequenos agricultores

independentes eme regiões quase virgens do

Brasil - como c,-mponeses europeus haviam

conseguido no Ri--f Grande do Sul e noutras

áreas do Brasil meridional - não era tarefa

suave para honrei que se haviam criado ro-

deados de negros que faziam por eles todo o

trabalho pesado de lavoura ou de campo.

Alguns experimentaram a cultura. do algodãomas em condições bem pouco favoráveis. E

estas condições como outros fatores é que ex-

plicam os seus muitos fracassos.

Cerca de trinta anos passados um geó-

grafo americano. L. E. Elliott, procurando in-

formar-se sobre a sorte daqueles seus patrícios

que tinham vindo para o Brasil depois da Guer-

ra de Secessão, ouviu histórias a esse respei-

to que lhe pareceram mais "cômicas do que

trágicas". Unia delas é a respeito do grupo

de americanos que foi se estabelecer em San-

ta Bárbara e aí ,,lantar. em larga escala, me-

lancia. Depois d um ano, justamente quan-do a melancia ia madurecendo, rebentou -

é o que diz a história - o cólera em São Pau-lo. Foi então proibida a venda de melões e osseus cultivadores se arruinaram. E como uninovo cônsul dos Estados Unido= tinha sido de-signado para Santos pelo novo presidente da-quele país , Cleveland, que era i} Partido De-niocrat.a, supuseram os sulistas-3^e o novo côn-sul devia também ser partia emente amigodos correligionários . Assim é .: se à sua che-gada logo lhe enviaram uma carta de congra-

onde ao mesmo templo contavam a ;si-tuação econômica difícil em que se achavam.O cônsul, ao que parece, "res)4-ondeu cordial-mente, sugerindo que, na qualidade de cônsul,iria visitá -los. Pelos colonos foi logo prepa-rada entusiástica recepção. Então , diz Elliott :"Na tarde da sua chegada à e lônia achava-se todia , a gente alinhada na plataforma da es-tação, e um Coronel sulista à frente da comis-

são de recepção. Chega o trem, abre-se a por-ta de um dos carros de primeira classe e

desce um cavalheiro com uma maleta de mão

que marcha para o Coronel cama a mão esten-dida. Era o cônsul, mas uni côas d preto comoum ás de espada . Conta-se c ---- --à o Coronelportou-se nobremente : apertou à mão do côn-sul, dando-lhe, como os oura,- = sulistas, omelhor acolhimento, mas logo ele partiu,

Page 20: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

protestaram nunca mais confiar em governo

chefiado por homem do Partido Demo-

crata". (11)Mas a maioria desses sulistas norte-ame-

ricanos que permaneceram no Brasil acaba-

ram esquecendo os seus preconceitos de raça

contra os negros e os mestiços. Isto em virtude

do contacto mesmo a que eram obrigados com

profissionais ou chefes de indústrias de im-

portância ou com senadores e deputados bra-

sileiros, nem todos homens puramente bran-cos, antes gente de sangue misturado, branco

e negro, e não de branco e ameríndio sòmente,

embora a mistura mais comum em S. Paulo

tenha sido do branco-ameríndio. Esta é a

mistura dominante que está na base da velhae orgulhosa aristocracia daquele Estado, como

de outras sub-regiões do Brasil, onde é ainda

motivo de orgulho para uma família antiga

ter entre os seus ancestrais algum ameríndio,

geralmente idealizado como herói de algumadas guerras coloniais : contra os franceses ou

contra os holandeses. Ou admirado pela suaatitude de resistência aos portugueses. Quan-

do mulher, o antepassado ameríndio, era tidapor princesa - a bela filha de algum poderoso

cacique.O primeiro cardeal da América Latina, o

Cardeal Arcoverde, era descendente de uma

INTERPRETAÇÃO DO siï 215

princesa índia de Pernambuco =- da ?Nova

Lusitânia do século XVI. U-- a Pocabontas

brasileira. Orgulhava-se aquefl• -príncipe da

Igreja" do seu sai=gue amerír io e insisten-temente falava da necessidale de um clero

brasileiro para o Brasil, isto =. ?m clero com-

posto de homens -ascidos nr• Brasil ou inte-

grados na vida firaz;11 eira, em v ^z de um clérointeiramente eo is'i*uído de res e frades

estrangeiros. Se- ser estiei ente naciona-

lista soube ver o r eripo para f.= países latino-americanos de se conservarem- colônias inte-lectuais e econômicas da Europa com a ajuda

indireta de padres que, send,-k europeus, te-

riam naturalmente uma atitude de autocráti-co paternalismo com relação aos sul-america-

nos, quando não de absoluta superioridade,

diante das populac="?es ameríndias, indo-hispâ-nicas ou afro-hispânicas.

Tal foi a extensão do indianismo no Bra-sil, não sòmente na literatura mas na vida diá-

ria, que, quando o Brasil separou-se de Portu-gal e manifestou-_e forte se--:mento contra

qualquer tentativa _portuguesa reconquista,

não foram poucas as famílias rasileiras que

trocaram o seu nr^ e de batis- ou o seu no-me de família, hr _ -^. uês ou e -peu, por no-

me ameríndio. Erann nomes, cos adotados por

Page 21: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

216 GILBERTO FREYRE

esses nativistas, na sua maioria poéticos, de

rios e plantas. Alguns deles, porém, nos soam

hoje prosaicos, ainda que expressivos: nomes

de peixes, ou que até cheiravam a mercado ou

a cozinha, como Carapeba.

Os índios do Brasil, segundo a observação

dq# cientistas nï= odernos, eram notáveis pelo

seu minucioso conhecimento da flora e da fau-

na do país; e até hoje muitos rios, plantas, ani-

mais, montanha cidades e medicamentos

têm no Brasil nomes, não europeus ou portu-

gueses, mas ameríndios. Conforme o já men-

cionado cientista europeu, Konrad Guenther,

no Brasil, como na América-Espanhola, não só

são muitas as famílias que aludem com orgu-lho à existência de caciques indígenas centre

os seus antepassados - fato a que já me re-feri -, mas muitos são os descendentes dessas

famílias que, em algumas áreas ou regiões,

fazem lembrar, pelo tipo físico, uma volta aos

caracteres do ameríndio.

No que toca ao africano pode-se dizer

que vai sendo gradual e pacificamente absor-

vido pela população branco-índia, desde que

há largos anos não vêm novos negros da Áfri-

ca para o Brasil. (12) O ecólogo alemão

Guenther - homr da época pré-nazi -, de-

pois de conhecer e Brasil, manifestou-se par-

INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 217

tidário da mistura de raças e do indianismono Brasil, como meio, a ser desenvolvido en-

tre os brasileiros, de criação dei uma civiliza-ção caracteristicamente brasileira, que cres-

cesse como que organicamente. =tas suas pró-prias forças nativas, com as suas várias for-

mas de expressão sempre ligada; à sua fonte

suprema -- a na'ureza tropie°ül. americalfabrasileira. E a prc=r"_^-ito sugeri-a que os muitos

nomes ameríndios ^ie objetos :aturais esta-

riam em harmonia ebin a origem indígena da

cultura brasileira . Pelo que recomendou quemais ainda se deveria fazer nesse sentido, po-pularizando -se entre as crianças brasileiras

contos ameríndios de animais . Novelas comoas de José de Alencar - o Co ,-,per brasileiro- e uma mais larga utilização de motivos ín-

dios na arte moderna do Brasil poderiam au-

mentar no brasileiro o orgulho da suas origens

ameríndias e dos fundamentos naturais dasua cultura.

Não devemos nos esquecer de que os in-

dígenas do Brasil foram gene de floresta

coai unia cultura ^as que sãs; tecnicamente

denominadas de i'.,resta ou _le selva. Os

ameríndios remane-eentes e ^:- sobrevivên-

r iaS das culturas iniígenas si _`lementos de

Page 22: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

218 GILBERTO FREYRE

importância na t_ :i: . brasileira . Não podem,assim, deixar de Ser levados na devida contaem qualquer pcif ica cultural brasileira quevise uma mais rir funda harmonia dos brasi-leiros com o seu meio natural. Política de

harmonia, aliás. ^uIe encontra tuna sólida basenq atitude dos _.:-J.cnos portugueses entrela-çando-se pelo ysarlento com a populaçãoameríndia : uma icude de tolerância e algu-mas vezes de cnsiasnno pelas diferenças físi-

cas e culturais apresentadas pelas populaçõesameríndias.

O próprio fato dos ameríndios , dentro doseu feitio de nêraades , terem se revelado tãomaus escravos nas primeiras plantações de

cana de açúcar estabelecidas no Brasil e com-batido com extraordinário vigor os portugue-ses que procura-,= escravizá-los, fez surgir a

lenda da. sua "independência ", "bravura" e"nobreza ". Esta lenda é responsável aindahoje pela tendênc ia, entre os brasileiros, nosentido de eonrarem o ameríndio superiorao negro, emh _.ra -í= estudo rigorosamentecientífico das (-- --ribuições de cada uni parao desenvolvime-_-^ cultural do Brasil, nos con-duza a conclusï-diversa. lias o próprioentusiasmo da -_- -ria dos brasileiros pelos

uai iolIários 'I) século XVI e da.pri-

INTERPEFrAÇÃO Do BR AM 219

meira parte do século XVII - padres que fi-zeram o possível para que se respeitasse a li-berdade dos ameríndios proclamada pelo papae pelo rei de Portugal - é baseada nessa mes-ma lenda.

A obra dos Jesuítas tem sido continuada

nos últimos anos por um oficial do ExércitoBrasileiro , cuja ação à frente do Serviço Fe-

deral ou Nacional de Proteção aos Índios tem

excedido a de qua_cluer missionário de batinados nossos dias . Quero me referir ao Gene-ral Cândido Mariano da Silva Rondou, elemesmo descendente de ameríndios. Rondoncomeçou sua obra indianista, quando aindasimples tenente, em 1890. Participou entãoda expedição oficial que, sob as ordens do Ma-jor Gomes Carneiro , foi enviada para a "re-gião dos Bororos". no Brasil Central. Pre-tendia-se a ligação telegráfica daquela parteremota da então jovem república brasileiracom as áreas mais civilizadas . Por essa épo-ca uma política inteligente de relações amisto-sas com as tribos indígenas foi inauguradapelo Exército Brasileiro.

Trata-se nada menos da trooItica de assi-milação dos ameríndios , cujo 1,?ano já haviasido esboçado, no cl-,meço do s_-il o XIX. por

José Bonifácio, líder do movimento de inde-

Page 23: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

220 GILBERTO FREYRE

pendência do Brasil e o maior estadista queteve até hoje a América Portuguesa. Boni-fácio que também era cientista - e cientista

com reputação européia -, tem sido por maisde uni crítico ou historiador retratado como

homem essencialmente idealista e prático aomesmo tempo. Conforme tem observado esses

críticos e historia nre:s da vida e das idéias domaior dos brasileiros. a principal preocupação

de José Bonifácio foi um Brasil que se desen-

volvesse em nacào caracteristicamente ameri-

cana, livre dos preconceitos europeus de raça

ou de casta . Assim uma idéia básica do seuprograma de organização social foi a assimila-

ção do indígena tanto comõ -do negro, pelo eu-ropeu. Ele não temia o mestiço ou a misturade raças . Pelo contrário : opôs-se à política

de segregação seguida pelos Jesuítas em várias

regiões do Brasil. Pouco lhe interessava avaga e -fictícia igualdade dos ameríndiosdiante da lei. O que defendia era a suaassimilação por uma cultura brasileira que

enriquecesse a ambos os elementos : o europeue o indígena. Ou o civilizado e o primitivo,

incluído no grupo primitivo , o africano.

0 Brasil teus inc•_encarar ainda o proble-ma de assimilac_zo de certas tribos ameríndias

e também daqueles pequenos grupos de des-

INTERPP..ETAÇÃ0 DO BRu8II. 221

cendentes de negros cuja cultura conserva-seainda predominantemente africana. Emboraexistam brasileiros com preconceito. europeus

de raça, que consideram desgraça afastarmo-nos de qualquer melo dos padrões de moral,

de costiunes , e jurídicos consagrados pela Eu-ropa ou pela Igr}.,a, a tendência geral, entre

os espíritos mais -se Iarecido` do Brasil, é nosentido de manter os em relação a tais afri-

canos tanto como em relação ao ameríndios,

uiva política de lenta e inteligente assimilação,

de maneira que o =rupo assimilador possa in-corporar à sua cultura valores de interessegeral ou de importância artística que se en-

contreis vivos entre sub-grupos ou sub-cultu-ras profundamente diferenciados da européia.

Unia política semelhante provàvelmente

terá que ser praticada em relação aos alemãese a outros colonos europeus , e também com osjaponeses nas sub-regiões do Brasil onde tais

elementos têm vivido por'mais de uma gera-

ção em estado de isolamento ou segregação.Alguns estudiosos desse problema acham que

os valores cult tais luso-b= :teirós, tidos

por básicos para a desenvolviu_ento do Brasil

nesses valores cerro nação e ermo conlunida-

tle largamente cristã - iuel^^i_1os o idioma

português e a li1_'et._iade portug«eia de precon-

Page 24: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

222 GILBEETO FREYRE

ceitos de raça -. devem ser considerados valo-res gerais, fundamentais, irredutíveis.

Contudo não deve existir nenhuma su-

bordinação de sub-grupos ou sub-culturas de

origem não por aguesa a uma cultura ou a

uma raça luso-lrasileira rigidamente unifor-

me. Com uma r=c^htica amplamente democrá-

tica como esta - ~camente e socialmentedemocrática - , Brasil viria a ser país idealpara aqueles eu, c,r,eus cansados tanto de es-treitos preconce_'os doe raça como de arcaicosnacionalismos M-ransigentes e de duros secta-

rismos religiosos. \ ão sòmente operários ou

artesãos haviam de encontrar num Brasil as-

sim condições favoráveis para exprimir o seupoder criador mas também o bom agricultor,o bom horticult _,r. o bom comerciante. Pois,como percebeu o =eógrafo norte-americano

Elliott, ao pior-_ro audacioso e decidido não

falta oportunidade de vitória no Brasil de ho-

je. Apenas não L e será possível continuar in-

dividualista como o homem de há um século

ou menos de há eio século, quando não exis-

tia nenhum serv ; público eficiente para pro-

teger os amerín ___s ci para conservar as flo-

restas e os reco,-s^T^s minerais das invasões deindivíduos ou gr s desprovidos de escrúpu-

los hnmanitárics _ïe sentido social de co-lonização.

São valores todos estes agora protegidos

por leis inspiradas no necessário respeito aosinteresses da comunidade brasileira mais do

que em qualquer tendência para favorecer a

exploração puramente individual da natureza

ou da economia. O programa do atual Conse-

lho de Imigração e Colonização do Brasil que

tem por chefe um oficial do exército do espí-

rito público de um Rondon - o Coronel Lima

Câmara - inclui a colonização dirigida e a

criação de "núcleos de colonização" mistospara os brasileiros (trinta Por cento) e es-

trangeiros (setenta por cento). O que re-presenta velha e.a idéia de José Bonifácio,

atualizada ou adaptada a novas condiçõesbrasileiras de vida.

O Brasil é famoso por suas revoluções"brancas" ou pacíficas. A da independência

foi uma delas. E também por uma revoluçãopacífica é que ele se transforma de Império

- porque o Brasil, ao contrário dos outros

países republicanos da América Latina, con-

servou-se até 89 Império no meio de numerosas

repúblicas - em República. E a revolução

que o transformou de uma na são esclavagista

em outra onde tt-_i o mundo :devia nascer li-

vre, também foi paacífica. T:: pacífica como

a que separou. a Igreja do Estado, re-

Page 25: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

solvendo assim suavemente um problema quetem sido fonte de muita discórdia em outros

países latinos. Ainda quase pacífica foi a re-

volução de 1930 que favoreceu grande núme-

ro de operários brasileiros das cidades com

uma legislação social que, em teoria, se não

sempre em prática, é tuna das reais avançadas

dos nossos dias, O Brasil portanto poderá

revolucionar o problema de sua política de

imigração sem que daí resulte nenhum cons-_

trangimento para os imigrantes nem para os

brasileiros antigos. Há muito por fazer liga-

do à colonização de terras não ocupadas nem

por brileiros nem ainda por imigrantes.

A -V%rização do caboclo impõe-se como umanecessidade urgente. A do caboclo e a detodo homem rural pobre, descendente de bran-co, de ameríndio ou de negro.

A falta de saúde causada especialmentepela malária, a anquilostomíase, a tuberculose, a sífilis e a doença de Manson -Pirajá ex-plica, em grande parte, a preguiça do ho-mem do campo . isto é, do caboclo brasileiro.A preguiça d.0 que esse caboclo tem sido tãoacusado por critico s estrangeiros superficiais.

Aliás tudo no ?, -incei do Brasil que desa-grada aos olhos crítio'os logo repre n-

INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 225

ta para eles urna prova dos maus efeitos damistura de ,raça ou do clima tropical . Há maisde cincoenta anos um intelectual brasileiroque sustentou algumas das idéias de José Bo-nifácio, Sílvio Romero, escreveu que os indi-

víduos de vários e misturados sangues forma-

va,in a massa da população Brasileira, acen-tuando, entretanto, que ameríndios e negros

eram peças ainda des rticulacias na cultura

e na sociedade do Brasil. É que havia então

a moda entre brasileiros sdfi tieadós de tudo

esconder que fosse de origem africana : san-gue, alimento, costumes, palavras e toda outrainfluência ou elemento possível de ocular.

Um bom traço do Brasil atual é que 'essaaquase freudiana censura da influência do in-

dígena ou do africano ou da espontaneidade

do mestiço já deixou de ser força dominantena psicologia ou na vida cultural e social dosbrasileiros. E a consequência dessa espéciede cura psicanalítica do que já era um com-

plexo nacional é que a música, a cozinha, a li-teratura e a arte brasileiras -ornam-se cada

vez mais expressão da vida, das necessidades edos valores populares, na suam valoresmestiços.

Julgados de conjunto, os ?_,' .ileiros têm o

que os psiquiatras chamam um passado trau-

Page 26: FREYRE, Gilberto. Condições Étnicas e Sociais Do Brasil Moderno

mático. A escravidão foi o seu grande trau-ma. Para muitos a cor menos branca foi em

certo tempo como a lembrança 'desagradávelde uma situação social infeliz ou de um episó-dio vergonhoso do "seu passado.

Certos oficiais do Exército Brasileiro,tradicionalmente democrático, procuraram hápouco impedir o seu desenvolvimento em ins-tituição étnica e socialmente democrática, in-troduzindo restrições de caráter étnico pelasquais os negros e os negróides evidentes não

poderiam vir a ser oficiais. Tal tentativadeve ser considerada retardada expressão neu-rótica daquele complexo. Mas foi caso a bemdizer isolado. A tendência geral no Brasildos nossos dias é para considerarmos á es-cravidão um episódio já encerrado, com refle-xo, apenas, na história da personalidade dobrasileiro. Mesmo os brasileiros com urrepassado de família ou individual que nadatenha a ver, biológica ou etnicamente, com.aÁfrica , juntam -se aos brasileiros negróides,no sentimento , agora geral ainda que nãouniversal, de que nada é honestamente ousinceramente brasileiro que negue ou esconda

a influência, direta ou indireta, próxima ouremota, do ameríndio e do negro.

A Política Exterior do Brasil e os-Fatores que a Condicionam

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