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    ESCOLA DA PONTE

    Formao e transformao

    Para a Ftima, companhia de bons e maus momentos,

    cujo contributo foi imprescindvel para a realizao deste estudo.

    Para a Anita, a Geni, a Maria Jos, a Tita, a Conceio

    e todos aqueles que, num tempo em que ningum ousava ousar... ousaram.

    Para os novos professores da Escola da Ponte.

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    ndice

    Para que serve a formao? 4

    No princpio, era a Ponte... 6

    Modelos e conflito de racionalidades 9

    Um sentido ambguo de formao 14

    Crculo de estudo 21

    Contributos para a compreenso do crculo de estudo 25

    Etapas comuns na criao de crculos de estudo 37

    Caractersticas do crculo de estudo 41Projecto de formao, projecto poltico-pedaggico e reelaborao cultural 45

    A formao enquanto mediao 48

    A formao a verificao das dificuldade de ensino 51

    De uma formao individualista formao mutualista 57

    Valorizao dos adquiridos e determinao de necessidades 64

    Informalidade 67

    A permanncia no crculo 72Integrao teoria-prtica 74

    Autonomias 79

    Sinais de emancipao e senso crtico? 84

    Identidade e pensamento divergente 89

    Inquietaes, marginalidade e conflito 91

    A democraticidade em democracia se aprende 95

    Potencial e limites da formao em crculo 101Os limites de uma formao continuada que passa pela formao inicial 102

    Contributos para a definio do perfil de um formador no crculo 105

    Condies do exerccio da profisso 111

    Concluindo... 118

    ANEXO 1- Sobre a pesquisa 121

    ANEXO 1 - Casos exemplares da formao de professores 124

    Bibliografia 145

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    Que lhes valeu todo o curso que fizeram durante longos anos? Em vo le ram

    livros copiosos, beberam a caudalosa erudio dos catedrticos imponentes,

    como oradores parlamentares, fizeram provas escritas de inmeras laudas,

    com letra mida... Palavras, palavras, palavras que o vento levou...

    As aulas de psicologia ficaram geladas nos livros; as de pedagogia fecharam-

    se nas caixas de jogos; as outras no levaram em si nenhum grmen dessasduas, que so, no entanto as indispensveis a quem vai ser professor...

    Pobres alunas que no tiveram quem as orientasse a tempo! Depois de tanto

    trabalho, tero de fazer por si mesmas, e com enorme esforo, aguilhoadas

    pela pressa de quem j est no quadro do magistrio, toda a cultura tcnica

    que ningum pensou ou lhes pode fornecer no momento devido1

    (Ceclia Meireles)

    O social-histrico o colectivo annimo, o humano-impessoal que preenche

    toda a formao social, mas engloba tambm, que encerra cada sociedade

    entre as outras e as inscreve a todas numa continuidade, na qual, de certo

    modo esto presentes os que no esto, os que esto longe e mesmo os que

    esto por nascer (...) a unio e a tenso entre a sociedade instituinte e a

    sociedade instituda, da Histria feita e da Histria que se est fazendo.2

    (Castoriadis)

    1 Meireles, C. (2001). Crnicas de Educao (3). Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, pp. 158-1592 Castoriadis, C.(1975) L'instrution, l'imaginaire et la societ, Paris, Seuil, p.148

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    Para que serve a formao?

    Se a competncia dos professores fosse medida pelo nmero de cursos frequentados, a

    qualificao dos professores seria extraordinria. Se a qualidade das escolas pudesse ser medidapelo peso dos certificados de aces de formao frequentadas pelos seus professores, aconteceria

    uma revoluo em cada escola.

    Os professores fazem cursos, acumulam certificados, sem que isso corresponda a mudana

    ou responda aos desafios que encaram na sala de aula. Uma pesquisa recente3 revela que

    professores que fizeram muitos cursos no melhoraram o aprendizado dos seus alunos os

    docentes que frequentaram programas de capacitao no conseguiram que seus alunos obtivessem

    melhor desempenho no Saeb.O estudo revela algo surpreendente: quando se trata do ensino pblico e dos cursos de

    capacitao oferecidos aos professores dessas redes, a constatao que eles no esto fazendo

    diferena no desempenho dos alunos, apesar de geralmente serem divulgados como uma das

    iniciativas para melhorar o ensino. Esta preocupante realidade brasileira no difere de outras

    realidades. Em Portugal, aps o incremento da formao continuada de professores, decorrente da

    institucionalizao de um sub-sistema de formao e do investimento de milhes de euros, os

    resultados foram decepcionantes. Na prtica, pouco ou nada se alterou na atitude dos professores,

    pouco ou nada ter mudado nas suas prticas.

    O estudo efectuado no Brasil refere que o professor vai, fica ouvindo sobre vrias linhas

    pedaggicas e no fim no aprende nada que consiga usar. Estas consideraes so como o eco de

    lamentaes que escutei, h muitos anos atrs, em Portugal:

    Fui educada para comer, ouvir e calar e a formao continuada tradicional um

    massacre. As pessoas no podem ser pessoas e passam as horas a treinar-se em algo que

    lhes dizem terem de ser. Sempre gostei da formao, se eu a quiser. Gostaria de saber

    qual o segredo da Escola da Ponte, que oportunidades de formao so dadas aos

    professores da Ponte, o que os faz serem diferentes.

    Porque falharam os programas de formao? Talvez porque se tenha insistido na crena da

    transferibilidade linear de saberes pretensamente adquiridos. Talvez porque se tenha esquecido que

    o modo como o professor aprende o modo como o professor ensina. Que o modelo predominante

    3Determinantes do Desempenho Escolar do Brasil, Narcio Menezes Filho, So Paulo, 2007

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    da formao universitria , por vezes, a negao do que se pretende transmitir e que a universidade

    ... a matriz. Talvez porque se descurasse a necessidade de criar dispositivos de auto-formao

    cooperativa, que rompessem com a cultura do isolamento e auto-suficincia que ainda prevalecem

    nas nossas escolas. Talvez...

    No ser difcil caracterizar os programas de formao que serviram intuitos reformadores,

    mas que as escolas reformaram:

    Os contedos e finalidades surgem sob a forma de mdulos e etapas a percorrer, em

    funo de modelos a reproduzir;

    A planificao feita por servios centrais;

    Existe uma relao de poder vertical explcita do formador (sujeito de formao) sobre o

    professor (objecto de formao);

    a avaliao certificativa;

    a formao continuada segue a lgica das "pedagogias compensatrias", no sentido em

    que no h relao entre formao inicial e formao no-inicial, apenas se concebe como

    necessidade de remediao de lacunas da formao inicial;

    os professores so consumidores de pesquisa;

    o objectivo primordial o de adaptar os professores a "novas" tcnicas ou processos.

    A quem serviu esta prtica de formao? A avaliar pela situao que se vive nas escolas,

    talvez a ningum. E no se poder imputar a responsabilidade incipiente concepo, escassez de

    recursos, falta de financiamento dos programas ou ao tradicional individualismo dos professores.

    Se algum xito estes programas tiveram foi o de reforar o alheamento e a alienao de grande

    nmero de professores, mantendo-os como simples consumidores de formao. As avaliaes

    (quando as houve) segregaram aspectos relativos ao enquadramento dos programas no seu contexto

    scio-econmico e cultural, num quadro de racionalidade tcnico-instrumental.Poderemos concluir que j tudo foi discutido e prescrito sobre formao? Ou deveremos

    seguir a mxima de Pascal que nos avisa que, por detrs de cada verdade, preciso aceitar que

    existe uma qualquer outra verdade que se lhe ope?

    Opto pela busca. Porque acredito que a formao acontece quando um professor se decifra

    atravs de um dilogo entre o eu que age e o eu que se interroga, quando o professor participa de

    um efectivo projecto, identifica as suas fragilidades e compreende que obra imperfeita de

    imperfeitos professores. Por essa razo, procurei alternativas. Por isso, aconteceu este livro.

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    No princpio, era a Ponte...

    A busca de alternativas (que passarei a descrever) teve origem naquilo que se convencionou

    designar por crculo de estudo. Foi num crculo de estudo que o projecto Fazer a Ponte teve a suagnese.

    Em 1976, a Escola da Ponte defrontava-se com um complexo conjunto de problemas: o

    isolamento face comunidade de contexto, o isolamento dos professores; a excluso escolar e

    social de muitos alunos, a indisciplina generalizada e agresses a professores, a ausncia de um

    verdadeiro projecto e de reflexo crtica das prticas...

    Nada foi inventado na Escola da Ponte, mas quando se compreendeu que eram precisas

    mais interrogaes que certezas, foram definidos como objectivos:

    concretizar uma efectiva diversificao das aprendizagens tendo por referncia uma

    poltica de direitos humanos que garanta as mesmas oportunidades educacionais e de

    realizao pessoal para todos;

    promover a autonomia e a solidariedade;

    operar transformaes nas estruturas de comunicao e intensificar a colaborao entre

    instituies e agentes educativos locais.

    Considermos indispensvel alterar a organizao da escola, interrogar prticas educativas

    dominantes. H trinta anos, a Escola da Ponte era um arquiplago de solides. Os professores

    remetiam-se para o isolamento fsico e psicolgico, em espaos e tempos justapostos. Entregues a

    si prprios, encerrados no refgio da sua sala, a ss com os seus alunos, o seu mtodo, os seus

    manuais, a sua falsa competncia multidisciplinar, em horrios diferentes dos de outros

    professores, como poderiam partilhar, comunicar, desenvolver um projecto comum?

    O trabalho escolar era exclusivamente centrado no professor, enformado por manuais iguais

    para todos, repetio de lies, passividade... As crianas que chegavam escola com uma cultura

    diferente da que a prevalecia eram desfavorecidas pelo no reconhecimento da sua experincia

    sociocultural. Algumas das crianas que acolhamos transferiam para a vida escolar os problemas

    sociais dos bairros pobres onde viviam. Exigiam de ns uma atitude de grande ateno e

    investimento no domnio afectivo e emocional. Tambm tommos conscincia de novas e maiores

    dificuldades. Por exemplo, de que no passa de um grave equvoco a ideia de que se poder

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    construir uma sociedade de indivduos personalizados, participantes e democrticos enquanto a

    escolaridade for concebida como um mero adestramento cognitivo.

    Se os pais eram chamados escola, pedia-se castigo para o filho ou contributos para

    reparaes urgentes. A escola funcionava num velho edifcio contguo a uma lixeira. Nas paredes,

    cresciam ervas. O banheiro estava em runas e no tinha porta..

    Compreendemos que precisvamos mais de interrogaes que de certezas. E

    empreendemos um caminho feito de alguns pequenos xitos e de muitos erros, dos quais colhemos

    (e continuaremos a colher) ensinamentos, aps termos definido a matriz axiolgica de um projecto

    e objectivos que, ainda hoje, nos orientam. Na Escola da Ponte, como em outros lugares, ser

    indispensvel alterar a organizao das escolas, interrogar prticas educativas dominantes.

    urgente interferir humanamente no ntimo das comunidades humanas, questionar convices e,

    fraternalmente, incomodar os acomodados.

    Apesar dos progressos verificados ao nvel da teoria (e at mesmo contra eles), subsiste uma

    realidade que as excepes no conseguem escamotear: no domnio das prticas, o nosso sculo

    corre o risco de se completar sem ter conseguido concretizar sequer as propostas do fim do sculo

    que o precedeu. Infelizmente, no vivemos o fim do "sculo da criana", mas somente o princpio

    da Escola. Desde h sculos, somos destinatrios de mensagens que raramente nos dispomos a

    decifrar e o que acontece um regresso cclico s mesmas grandes interrogaes. Todos os

    movimentos reformadores se assemelham na rejeio do passado, mas a especulao terica sem

    cauo da prtica engendra apenas reformulaes de uma utopia sempre por concretizar.

    No h modelos, mas h referncias que podero ser colhidas neste projecto, como em

    tantos outros anonimamente construdos, cujo intercmbio urge viabilizar. A concepo e

    desenvolvimento de um projecto um acto colectivo, no quadro de um projecto local de

    desenvolvimento, e pressupe uma profunda transformao cultural. Nos ltimos anos, muitos

    professores visitaram a Ponte, muitas escolas dela se acercaram. Poderemos j falar da existncia

    de uma rede, ou fraternidade educativa. O estudo agora divulgado vem ao encontro de umanecessidade manifestada por esses professores e pelas suas escolas. Incide sobre a reelaborao da

    cultura pessoal e profissional, no contexto de uma formao indissocivel da ideia de mudana

    escolar e social.

    O projecto da Escola da Ponte constitui um sinal de esperana para todos os que

    acreditam e defendem a possibilidade de construir uma escola pblica aberta a todos os pblicos,

    baseada nos valores da democracia, da cidadania e da justia, que proporciona a todos os alunos

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    uma experincia bem sucedida de aprendizagem e de construo pessoal4. A Ponte foi inspirao

    para muitos professores que no desistiram de fazer dos seus alunos seres mais sbios e pessoas

    mais felizes.

    Ao longo de trinta anos, participei nesse projecto. Dados os excelentes resultados obtidos5,

    ele passou de mero objecto de curiosidade a locus de pesquisa. Sendo o seu maior crtico, sempre

    me manifestei relutante a mostr-lo como frmula inovadora e recusei muitos pedidos, que me

    foram dirigidos, para publicar algo que o explicasse. Nos ltimos anos, foram publicadas muitas

    obras por educadores que desenvolveram pesquisas nessa escola, na diversidade de abordagens que

    o projecto permite realizar. Agora, que decidi afastar-me (fisicamente) da Escola da Ponte, creio ser

    o momento de dar incio a algumas reflexes, no sobre um passado cristalizado a imitar, mas

    porque a Ponte representa uma singularidade, na qual possvel vislumbrar a totalidade

    sistmica dos problemas do quotidiano das escolas, bem como algumas hipteses slidas de

    possveis solues que contrariam o nosso proverbial cepticismo6.

    Nesta primeira tentativa de explicao da Ponte, meu ensejo descrever um dos modos de

    fazer coincidir a formao de professores com a construo autnoma de uma profissionalidade

    responsvel.

    4Rui Canrio, Filomena Matos, Rui Trindade et al, Escola da Ponte, Profedies, Porto (2003).

    5 O Projecto Fazer a Ponte obteve quase sempre os primeiros lugares nos concursos a que se submeteu. Os seus alunos

    obtiveram excelentes resultados em provas nacionais.6 Todas as citaes feitas neste captulo so extradas da obra citada: Escola da Ponte, Profedies, Porto (2003);apenas acrescentarei os nomes dos autores.

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    Modelos e conflito de racionalidades

    Na tradio liberal clssica, estar em formao correspondia a estar em preparao para

    ensinar. Na segunda dcada deste sculo, tomou forma uma tradio que viria a incidir emperspectivas de eficcia social. A tnica na racionalidade tcnica iria pereniz-la at aos nosso dias,

    ainda que travestizada fcil assumir de novo o papel de aluno, por mais negativa que seja a

    experincia que se possa ter da escola7.

    Na racionalidade tcnica, a actividade profissional principalmente dirigida soluo de

    problemas, pela aplicao rigorosa de teorias cientficas: o profissional um tcnico, um

    especialista que aplica com rigor as regras que derivam do conhecimento cientfico. Na

    racionalidade reflexiva, o professor trabalha com pessoas que actuam e reflectem. Os processos queda decorrem so de interaco mental, dotados de enorme singularidade. dimenso cientfica

    (tcnica) acresce a dimenso artstica. Esta componente artstica caracteriza toda a actividade

    prtica e no se confina racionalidade tcnica. Esta ltima incapaz de dar resposta

    complexidade, singularidade, incerteza e conflitos de valores prprios dos fenmenos

    formativos. Na racionalidade reflexiva, o professor age como prtico autnomo, como artista que

    reflecte, toma decises e cria no prprio processo de execuo, e detm um conjunto de

    conhecimentos em aco, de reflexes em aco e de reflexes sobre a aco8.

    Um dos pressupostos de um modelo assente na autonomia e na reflexo ser o da definio

    das finalidades bsicas que poderiam ser preconizadas para a formao continuada de professores.

    A capacidade de intervir em situaes complexas poder ser uma dessas finalidades. Podemos

    operacionaliz-la em seis dimenses:

    conscientizao da profunda relao de dependncia entre os problemas especficos do

    acto formador e os problemas sociais que o contextualizam e o condicionam;

    actuao dentro das margens possveis de autonomia face massificao cultural;

    desenvolvimento de formas de cooperao e solidariedade, de modo a contribuir para

    espaos de desenvolvimento pessoal e colectivo;

    teorizao das prticas, no sentido de consciencializar o poder individual e de grupo e no

    sentido da anlise crtica e transformadora das relaes de poder;

    resistncia prevalncia de micro-racionalidades acrticas, pois quanto mais global for o

    problema, mais locais devem ser as solues;

    7VALLGARDA, H. & NORBECK, J. (1986). Para Uma Pedagogia Participativa. Braga: Universidade do Minho:.238Schn, D.(1992) La formacin des profisionales reflexivos, Barcelona, Paids/MEC.

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    considerao do trajecto de formao como processo de conquista de significados

    pessoais e sociais.

    Porm, a lgica da "formao centrada na escola" foi contrariada pela dicotomizao entre

    espaos de formao e de aco. De um lado, as situaes de formao normalmente organizadas

    segundo uma lgica dos contedos a transmitir e das disciplinar a ensinar; do outro lado, as

    situaes de trabalho organizadas segundo uma lgica dos problemas a resolver e dos projectos a

    realizar9. Por maior debate (ou especulao...) que se produza, a formao continua eivada de um

    inevitvel empirsmo voluntarista. A formao est a, consensualmente til, independentemente

    dos contextos institucionais em que se realiza e da natureza da articulao com os lugares

    institucionais onde suposto que produza efeitos: as escolas10. A indiferena perante esta

    realidade arrasta consigo o cinismo que, tambm neste caso, como que o verniz do esprito, que

    embota qualquer perspectiva de construo de alternativas.

    Na busca de alternativas, evocarei Chantrane-Demailly11, que prope quatro modelos de

    formao. O critrio de diferenciao a relao simblica fundamental: forma universitria, forma

    escolar, forma contratual e forma interactiva-reflexiva. O modelo de formao adoptado na Escola

    da Ponte aproxima-se do quarto modelo. Surge ligado resoluo de problemas reais relacionados

    com situaes concretas do quotidiano laboral e desenvolve-se com o contributo inalienvel dos

    professores. Aproxima-se, tambm, de um modelo deprticas espontneas sob a forma de rede12

    ou ainda da aprendizagem cooperativa13, que congrega grupos constitudos ad hoc para fins

    especficos.

    Na Escola da Ponte, postulmos um modelo isomrfico de formao, que, influenciando a

    elaborao de objectivos, estabelecesse influncia na configurao das prticas pedaggicas,

    promovendo a relao entre o conjunto de saberes e saberes-fazer prvios com o que de novo se

    fazia, conferindo significado actividade, reforando a progressiva apropriao do controlo e

    conduo do processo pelos professores, privilegiando uma interaco participativa.Talvez tivssemos andado prximos da descrio elaborada por Mary-Louise Holley e

    Caven Mc Loughlin (1989): comea-se pela organizao de aces pontuais de formao e por

    encarar o professor isolado e a ttulo individual; evolui-se para a considerao de redes de

    9Finger, M. & Nvoa, A.(1988) O mtodo (auto) biogrfico e a formao, Lisboa, DRH, p.11010Canrio, R.(1991) Mudar as escolas: papel da formao e pesquisa, Inovao n 4 (1), p.7711Chantrane-Demailly, L. (1992) Modelos de Formao Contnua e Estratgias de Mudana, in Nvoa, A.(org.) OsProfessores e a sua Formao, Lisboa, D. Quixote/IIE, pp.142-14512

    Huberman, M.(1986) Um nouveau modle pour le developpment profissionel des enseignants, in Revue Franaise dePdagogie, n 75, pp. 5-1513Johnson, D. & Johnson, R.(1991) Cooperative learning and school Development, Mineapolis, U.M., pp. 2-5

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    cooperao e de colaborao profissional; deslocamo-nos da formao por catlogo para a reflexo

    na prtica e sobre a prtica; diversificamos, criamos alternativas; mudamos as nossas prticas de

    investigao sobre os professores para uma investigao com os professores e at para uma

    investigao pelos professores14.

    No campo da formao, predominam dois modelos: o que perfila um professor especialista

    em didcticas e aquele que tende a consider-lo como intelectual crtico. O primeiro dominado

    pelos mtodos de ensinar e por uma Psicologia do individual; o segundo sobrevive apoiado em

    tmidos contributos de uma Sociologia da Educao que tarda em se afirmar. Nesta tenso, no

    possvel nem til a separao arbitrria dos modelos. A oposio entre um modelo de formao

    dito tradicional e um outro que se reclama de autonomia e de criatividade pode ser mistificadora

    (...) os modelos no se anulam mutuamente15.

    Na formao concebida e desenvolvida na Ponte, os professores colheram e ultrapassaram

    solues avulsas e passaram problematizao de situaes educativas. Seleccionaram a

    informao til que uma formao mais transmissiva lhes facultara e sobre elas elaboraram novas

    leituras de situaes emergentes. Como a complexidade dessas situaes no encontrava resposta

    em solues tcnicas genricas, um terceiro modelo de formao surgiu. Esse modelo serviu a

    inteno de obstar ao desenvolvimento de uma lgica instrumental e adaptativa16, de uma

    tecnocracia da formao que, instalando-se, dificilmente seria erradicada. A sua sntese possvel

    poder ser descrita nas articulaes seguintes:

    passagem do interesse circunstancial integrao nas preocupaes pessoais e de grupo;

    possibilidades de gerar projectos de formao em margens de liberdade que no

    dispensam o trabalho intelectual organizado;

    desmistificao da funo do formador sem, contudo, fazer a economia da formalizao

    dos conhecimentos;

    preservao de autonomia na formao, no ignorando os contributos de experincias desub-sistemas sociais que tambm jogam investimentos no campo do conhecimentos em

    formao continuada.

    14Holley, M. & Mc Loughlin, (1989) Perspectives on Teacher Profissional Development, Lowes, The Falmer Press, cit.in Nvoa, A. (1991), p.7415

    Pacheco, J. (1993) Memria e Projecto, Correio Pedaggico n 74, p.816Dubard, C. (1992) Formes identitaires et socialisation professionelle, Revue Franaise de Sociologie, XXXIII, p.p.505-529

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    Entre os diversos modelos de prtica de formao (centrado no formador, no formando, no

    grupo, ou misto), optou-se pela complementaridade a Ponte aproveitou iniciativas ministeriais e

    de outras escolas e, se eram coerentes com os seus objectivos. F-lo, porm, no respeito pela

    iniciativa pessoal harmonizada com a equipa pedaggica. A considerao da pessoa na

    considerao da equipa sugere um conceito de desenvolvimento profissional que implica uma

    dimenso contextual e organizativa, na qual no apenas afectado o professor isolado, mas todos

    os profissionais associados em crculo, ou envolvidos em projectos nas escolas17. Praticou-se uma

    pedagogia hermenutica concomitante com a conflitualidade da mltipla interpretao, uma prtica

    de reflexo tica essencial. As opes que da decorreram traduzem uma relao complexa e

    intrnseca entre o domnio do saber cientfico e a validade do uso social dos seus produtos.

    Poderemos enquadrar a formao realizada na Ponte nos movimentos de revitalizao

    cultural18, devido sua capacidade de gerar sub-sistemas culturais portadores de inovao.

    Verifica-se a existncia de fases de algum modo afins das que Banks19 enumera para os grupos de

    revitalizao cultural. Estes grupos emergem como reaco a constrangimentos impostos pela

    sociedade de contexto e como reaco monorracionalidade tcnica, que caracterizam modelos de

    formao ditos tradicionais.

    Tambm se poder situar a formao realizada na Ponte prxima de teorias anarquistas e

    utpicas, dado que visou a ocorrncia de mudana interior (no indivduo), quanto a exterior (grupo

    na comunidade), pelo aumento da conscincia crtica suscitada por formas originais de

    aprendizagem uma conscincia crtica e uma sensibilidade em potencial para os seus prprios

    interesses (...) na aco crtica colectiva20. De igual modo se poder considerar essa formao

    prxima dos grupos de militncia pedaggica, pois actuou21 como tertlia mais ou menos

    estruturada, unida por um forte desejo de mudana, entre momentos e nos momentos de abertura

    propiciados pelo centro do sistema. E poder ainda ser considerada integrada em algumas das

    tendncias actuais da formao de adultos22, a saber:

    uma finalizao mais forte das formaes em relao ao seu contexto;

    um investimento do local em matria de deciso;

    17Garcia, C.(1989) Introducin a la formacin del professorado, Sevilha, S.P.U.S.18

    Banks, J.(1985), cit in Corteso, L. (1988). Contributo para a anlise da possibilidade e dos meios de produzirinovao: o caso da formao de professores. Porto: FPCE, p.7819Banks, J.(1985) Etnic Revitalization Movements and Education, Educational Review, V.37, n 2, pp.131-13920Giroux, H.(1986) Teoria Crtica e Resistncia em Educao, Petrpolis, Ed. Vozes, p. 14921

    Sobretudo na transio da dcada de 70 para a dcada de 80.22Barbier, J. et al (1991) Tendances d'volution de la formation des adultes, Rvue Franaise de Pdagogie, 97, pp.75-108

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    a individualizao dos percursos de evoluo (auto-formao, funo apropriativa);

    uma intensa ligao entre formao e investigao;

    o desenvolvimento da formao integrada na situao de trabalho (escola, sala-de-aula,

    equipa de professores);

    uma ateno particular s estratgias de aprendizagem na formao.

    Numa aproximao compreensiva s caractersticas da formao praticada na Ponte, a

    inteno mais de questionamento que de explicao causal. As caractersticas ideais no podem

    ser analisadas isoladamente, nem desligadas da situao do vivido. No se creia que a singularidade

    recusa a objectividade neste assentimento. A circunstancialidade e o registo histrico localizado so

    componentes dessa objectividade, por tudo o que de subjacente se eleva ao nvel dos processos

    explcitos, pelo que tal significa na articulao entre elementos tradicionalmente dissociados.

    A multireferencialidade da filiao (antes enunciadas) recomenda uma abordagem analtica,

    que coloque a ateno na multiplicidade das caractersticas inventariadas. S deste modo ser

    possvel obter do fenmeno inovador a compreenso mais prxima das realidades que sugere. S

    uma constelao de caractersticas pode captar o silncio que persiste em cada lngua que

    pergunta, sem que, ao observar os fenmenos, os objectualizemos em demasia, na nsia de um

    rigor que degrada e caricaturiza23. Grande nmero de anlises de formao so feitas no vazio, por

    descurarem elementos dos contextos em que se processa, ou pelo facto de um intransponvel fosso

    se instalar entre os dispositivos de anlise e os idiossincrticos dispositivos de formao.

    H neste trabalho um propsito confessado de interveno, que ultrapassa a busca da

    compreenso, para aspirar ao encontro com algumas pistas de aco. Ao estudar as representaes

    dos professores relativamente sua actividade de formao, aceita-se que no seu processo de

    elaborao e no seu contedo, elas so um produto cultural revelador das relaes no seio do grupo

    o "sujeito-activo em construo" que alcanado. Isto significa que podemos apreender o

    sujeito-professor e o grupo no seu processo de constituio de sujeito activo, de sujeito em aco eno nos limitarmos a descrev-los do exterior tentando compreender e analisar uma lgica de aco

    que nos escapa24.

    23Santos, B. (1986) Orao de Sapincia, Coimbra, pp.14-2224Benavente, A. (1990)Escolas, Professoras e Processos de Mudana. Lisboa: Horizonte, p.91

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    Um sentido ambguo de formao

    A formao de professores pode sugerir uma multiplicidade de interpretaes. Pode ser

    objectivada, em relao ao momento, como inicial, contnua (ou no inicial), permanente. Emreferncia ao modelo adoptado, tem sido designada como integrada, sequencial, por competncias,

    por objectivos. O conceito pode ainda ser referido a iniciativas pontuais ditas de formao, ou a

    currculos desenvolvidos por instituies de formao, normalmente realizadas em aces de curta

    durao.

    Giles Ferry25 aprofunda a duplicidade denotativa do vocbulo formao. Este pode ser

    considerado como funo social (...) de transmisso de saber, de saber fazer e saber ser, qu e se

    exerce em benefcio do sistema scio-econmico ou, mais geralmente, da cultura dominante,como pode ter a acepo de processo de desenvolvimento (...) estruturao interna e de ocasies

    de aprendizagem, de encontros, de experincias26. Mais ainda: a formao pode ser considerada

    como instituio porque tambm o local de aprendizagem de uma prtica com as suas normas.

    multiplicidade de significados juntarei a afirmao de Dominic27 de que o adulto se

    constri ao sabor de uma sequncia escalonada de momentos crticos. A formao nestes moldes,

    ela prpria produtora e produto de inovao. um processo complexo de apropriao e de

    ruptura, de adeso e de confronto (num) regresso cclico (de) interrogaes (...), de continuidades,

    de mudanas e de conservaes28. Deixa de ser, somente, um problema tcnico e ultrapassa o

    campo da utopia, para contemporanizar as dimenses de inteno e da aco. A formao de

    professores um processo contnuo e participado, decorrente das prticas e a elas referenciado, um

    processo contnuo de aco e reflexo crtica sobre a aco. Atravs da reflexo crtica so

    questionadas formas de legitimao (de autoridade, ou regulao moral, por exemplo).

    Entendo a formao como processo, no qual os momentos de ruptura se identificam com os

    momentos de inovao ao nvel da prtica pedaggica, num processo onde no existe separao

    entre teoria e prtica, entre a consciencializao e a contextualizao. Esta concepo afasta-se dos

    modelos em que o desenvolvimento e a avaliao da formao se processam segundo uma lgica

    centralizadora, em que no so consideradas as racionalidades dos agentes de formao, ou as suas

    representaes.

    25Ferry, G., (1983:31) cit in Corteso, L. (1988), op. cit., p.1726

    Ferry, G., (1983:31) cit in Corteso, L. (1988), op. cit., p.1727Dominic, P., (1984) cit in Corteso, L. (1988), op. cit., p.1828

    Nvoa, A., (1990)Educao e Sociedade. Porto: texto policopiado, p.12

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    Nos frequentes contactos com professores, em escolas onde acontece inovao, deparo com

    a diversidade de formas de organizao de trabalho escolar, correspondentes a diferentes formas de

    representar produtos de formao,. Analiso-as na perspectiva de Aronowitz e Giroux29, a partir de

    conceitos como o de intelectual crtico e intelectual transformador. Os professores so

    considerados intelectuais na medida em que, mais que profissionais preparados para realizar com

    eficcia objectivos que lhe so postos, se assumem na liberdade e capacidade de exerccio crtico.

    Este posicionamento permite questionar ideologias que legitimam a separao entre processos de

    conceptualizao e de execuo.

    A racionalidade tecnocrtica, que tende a separar a teoria da prtica, promove pedagogias

    que suprimem a autonomia dos professores (e dos alunos). De um modo geral, a formao

    organizada segundo este tipo de racionalidade gera formas de organizao escolar decalcadas, nas

    quais os professores exercem um controlo escasso sobre o seu trabalho. So programas que

    colocam a nfase em tcnicas pedaggicas que, em geral, evitam as questes sobre as finalidades

    e o discurso de crtica e de possibilidade30.

    A formao entendida como espao essencial de desconstruo de formas de discurso e

    teoria social e das prticas que os reproduzem interpela o contedo poltico das opes

    "pedaggicas", identifica formas subtis de autoridade, a regulao moral, ou as representaes

    transmitidas aos alunos. Esta formao ultrapassa o domnio das tcnicas para se preocupar com o

    modo como os padres de organizao e gesto de tempos, espaos e contedos curriculares

    apoiam a reproduo de relaes sociais, na sala de aula e na escola.

    As escolas so, aqui, reconhecidas como "esferas pblicas". neste sentido que poder

    tentar-se a definio de intelectual como o profissional que sustenta uma relao contemplativa,

    criativa e crtica com o mundo das ideias e das prticas. E, para introduzir uma componente

    dinmica (no sentido da interveno) juntemos a definio de M. Kohl31: intelectual tambm

    algum que tem coragem de questionar a autoridade e se recusa a agir contra a sua prpria

    experincia e valores. Com base nesta definio, remetamo-nos para o conceito de intelectualtransformador32, i., para a "possibilidade" da fuso do discurso crtico com a prtica poltica.

    Os professores da Escola da Ponte e aqueles que acompanho, num Brasil de projectos de

    mudanaestabelecem a ligao com outros agentes educativos locais, numa simbiose que cumpre

    os objectivos de problematizao de modos autoritrios do exerccio do acto educativo, na escola,

    29Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d)Educao radical e intelectuais transformadores. Porto: policopiado, p. 1130Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d.), op. cit., p. 831

    Kohl, M., cit in Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d.), op. cit., p.1132Ultrapassemos, por opo, a crtica necessria a modelos de formao que presumem o professor como intelectual"no-comprometido", no sentido em que lhe atribudo por Giroux (texto policopiado, s/d)

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    na famlia, na sociedade. O espao de formao transformadora , pois, todo o espao e tempo de

    ensino e aprendizagem. neste espao alargado que se pode conceber a prtica de modelos

    emancipatrios, no sentido de que o pedaggico e o poltico se interpenetram profundamente.

    Significa que, tal como no terreno dos conflitos sociais, as escolas representam tanto uma luta pelo

    significado das coisas, como uma luta ao nvel das relaes de poder.

    No processo de formao cruzam-se relaes entre indivduos e grupos, que ultrapassam a

    fronteira das instituies e se defrontam no campo, no somente tcnico mas, em sentido mais

    vasto, no cultural. Nesta dinmica cultural se concretizam atitudes criadoras de condies para um

    processo de formao de cidados que tm o conhecimento e a coragem para apostar seriamente

    na necessidade de conceber o desespero como estado transitrio e de dar corpo esperana33 e de,

    na teoria e prtica, transcender o ciclo vicioso da reproduo.

    O modo como o poder se manifesta nas escolas e como este poder aliado linguagem

    (entendida como instrumento de dominao) contribui para a reproduo, pode ser organizado em

    torno de questes sobre: o que conta como saber escolar; como que tal saber seleccionado e

    organizado; quais os interesses subjacentes organizao do saber; como transmitido o saber;

    como determinado o acesso ao saber; que valores culturais so legitimados e que valores so

    desorganizados pelas formas dominantes do saber escolar.34

    A oposio entre um modelo de formao dito tradicional e um outro que se reclama de

    autonomia pode ser mistificadora. O que importa reter, nos contrastes possveis, a tradicional

    hegemonia do modelo transmissivo centrado no formador e no professor isolado. As alternativas a

    tal modelo podero acolher e valorizar a formao nos contextos mutveis de trabalho e pautar-se

    pela flexibilizao e harmonizao com a aprendizagem informal. Esse um outro modelo no

    distancia a formao dos professores das realidades organizacionais em que os indivduos actuam e

    reconhece que a aco educativa apenas uma das componentes, um dos possveis momentos de

    um processo de formao de adultos, e que, per si, uma aco educativa no automaticamente

    formadora. No modelo dito tradicional, a formao concebida num espao isolado dos contextosem que a aprendizagem se desenvolve. Pressupe que a informao e a formao so dois

    momentos cumulativamente justapostos numa linearidade simples.

    No primeiro, processa-se a articulao e integrao da teoria e da prtica, na assuno de

    que uma reflexo na prtica e sobre a prtica valoriza os saberes de que os professores so

    portadores35. A oposio entre teoria e prtica ultrapassada por uma praxeologia que confere

    33

    Aronowitz, S. & Giroux, H. (s/d), op. cit., p. 1634Aronowitz, S. & Giroux, H. (s/d), op. cit., p. 2235Nvoa, A.& Popkewitz, T.(org.)(1992) Reformas Educativas e Formao de Professores, Lisboa, Educa

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    experincia um estatuto de fonte de conhecimento enquanto objecto de reflexo e de produo dos

    prprios conhecimentos.

    A formao um meio e no um fim em-si-mesma, no para os professores. Estes so

    mediadores de formao em desenvolvimento, que passam da identificao e valorizao do saber

    sua partilha, inseridos num sistema social em que detm competncias especficas.

    A realidade social vive do que j se conhece das regras, mas tambm da prpria produo

    de realidade. Uma das dimenses desse processo o que Stenhouse36 descreve como uma

    disposio para examinar a prtica com sentido crtico e sistemtico. Num outro modelo, privilegia-

    se o fornecimento de informao terica descontextualizada e prvia e a formao constitui-se em

    mais um factor de inibio de autonomia do professor ao configur-lo como executante-consumidor

    de formao.

    A formao tem em conta a histria e a aco dos professores como factores estruturantes

    das aprendizagens, das interpretaes e utilizaes que delas venham a fazer. A formao

    transforma-se num processo de conscincia do mundo e de elucidao do significado das relaes

    interpessoais, com a instituio e com o saber, e traduz-se na no-dissociao do desenvolvimento

    profissional e do desenvolvimento pessoal.

    Quando se refere o desenvolvimento pessoal e se apela ao protagonismo do professor

    individualmente considerado, no se pretende fazer uma apologia de uma formao

    "individualizada" no sentido que lhe confere a teoria neo-clssica do "capital humano", e que se

    reflecte numa simples multiplicao da oferta de formao. Tambm no campo da determinao de

    necessidades no se prope um diagnstico centrado exclusivamente no individual, mas uma

    redefinio da determinao de necessidades no pressuposto de que, no colectivo em formao, as

    necessidades individuais e de grupo so, simultaneamente, produto e produtoras de trajectrias de

    formao.

    Na Escola da Ponte, o projecto de formao foi o ponto de referncia, em torno do qual se

    podem regular os conflitos resultantes da existncia de lgicas diferentes37 e onde o grupo-sujeitoreelaborou valores, crenas, opinies... Afirmou-se como micro-cultura local, que definiu

    objectivos de formao criticamente adoptados e entendidos como instncias provisrias de recurso

    a um saber interior e exterior ao grupo, instncias de produo de saberes que contrariaram, por

    vezes, a hegemonia da distribuio de saberes considerados como legtimos. A Ponte constituiu-se

    numa comunidade de iguais, prefigurando uma profissionalidade assente na definio do professor

    como intelectual reflexivo, crtico e transformador. Ops-se a estratgias autoritrias de formadores

    36Stenhouse, L.(1981) An Introduction to curriculum research and development, London, Heinman Educational Books.37Correia, J. et al (1990) A aco educativa: Anlise psico-social, Leiria, ESEL/APPORT, p.89

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    que retomam na formao de adultos as tcnicas pedaggicas que desenvolveram na prtica

    anterior de ensino38.

    Perfilho dois lugares-comuns do discurso sobre formao continuada: a formao deve

    concorrer para aumento da qualidade do ensino; deve ser estimulada a autonomia do formando e

    das escolas. E creio que o objectivo da a formao no adquirir conhecimentos, mas sim

    criticamente adquirir a capacidade de adquirir conhecimentos que conduzam a mudanas no modo

    de ser e de agir dos professores. Mas o ajustamento a mudanas para as quais o professor contribui

    um processo inverso ao da instalao de resistncias quelas que so concebidas e comandadas

    por agentes exteriores. Mais do que a identificao da mudana, prevalece a inteno de

    compreender o processo de mudana, de modo a rejeitar aquilo que, sob aparncia de novo,

    reproduz velhas concepes.

    Cada professor estabelece as suas relaes com o saber e com os agentes educativos

    (alunos, pais, outros...), em funo de pressupostos e prticas, que constituem um determinado tipo

    de racionalidade. Os programas de formao que sobrevalorizam a racionalidade tcnico-

    instrumental determinam condies e momentos de assuno pelos professores de recursos tcnicos

    pretensamente isentos de ideologia. Esta racionalidade assenta sobre princpios de controlo, certeza

    e eficcia. Fundamenta-se, epistemologicamente, na crena de que o conhecimento parte do

    concreto e chega ao geral atravs de abstraces e generalizaes. O conhecimento, considerado

    como objectivo, colide com o discurso que faz insistente apelo a valores no-operacionalizveis

    pelas abordagens positivistas: autonomia, senso crtico, criatividade, participao, democraticidade.

    A procura da objectividade engendra um quadro preocupante em que a formao contnua de

    professores se assume como um processo marcado pela linearidade, previsibilidade e profunda

    estruturao, controlo e determinao. No h lugar para pensar sobre o prprio processo de

    pensamento39.

    As prticas da Escola da Ponte e de outros grupos de professores podero abrir espaos

    alternativos de formao, onde se confrontem diferentes racionalidades e onde, em ltima anlise, aracionalidade emancipatria produza juzos e interrogaes sobre quem e como formado, pois

    ensinar no s transmitir, mas tambm promover o desenvolvimento de aptides e mtodos de

    pensar e de agir40.

    A formao tanto poder contribuir para novas modalidades de reproduo social e cultural

    como para um processo de desenvolvimento de aptides e mtodos de pensar e de agir crticos. A

    38

    Dominic, P.(1990) L'histoire de vie comme processus de formation, Paris, L'Harmattan, p.1139GIROUX, H. (1986). Teoria Crtica e Resistncia em Educao. Rio de Janeiro: Vozes, p.24940Comisso de Reforma do Sistema Educativo (1987) Lisboa, M.E., p.209

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    formao uma rea de conflito entre a reproduo e a mudana, um territrio disputado de

    tendncias conflituais: manter e reproduzir os padres das formas tradicionais (...), tendncia de

    promover a inovao e a reforma41. A formao um ponto sensvel onde a sade do sistema

    educativo pode ser aferida e influenciada42. Neste entrecruzar permanente de intenes e prticas,

    a resistncia que molda a adeso a modelos reprodutores, ou acessibiliza a assuno de uma

    conscincia crtica, poder ser definida como resultante das interaces de racionalidades vrias,

    tantas quantos os actores do processo de formao. Da que se considere como actores, no apenas

    os professores em formao, mas tambm outros agentes, entendido o terreno de formao num

    sentido mais lato.

    Nos ltimos trinta anos de trabalho de formao na Escola da Ponte, verificmos que a

    violncia simblica das propostas educativas, os constrangimentos culturais, a reproduo da

    estratificao social, somente podero ser problematizadas no confronto com interlocutores

    tradicionalmente marginais ao processo de formao de professores: os alunos, a famlia, outros

    agentes educativos. So as escolas com projectos participados pela comunidade, os lugares

    privilegiados de formao de uma conscincia radical e de aco crtica colectiva43. Nenhuma

    mudana pode fazer a economia dos actos individuais implicados num processo de transformao

    colectivo.

    Creio que a Ponte instituiu um processo social atravs do qual os grupos humanos

    transformam o conhecimento que tm da realidade44. A mudana pressentida como transformao

    do conhecimento da realidade ultrapassa o domnio da mudana imposta, que mudana

    conjuntural ou estrutural, mas dos outros: uma mudana que no afecta, nem pe em causa o

    professor, nem o colectivo de formao. Nessa dinmica de formao possvel identificar

    diferentes posicionamentos, provavelmente dependentes dos investimentos pessoais, ou da durao

    da estadia no grupo de pertena. Vo do simples refinamento do discurso at alterao profunda

    das prticas, passando por estdios de angstia45 e frustrao, mas sempre, sempre com o centro do

    questionamento no indivduo e deste no grupo de formao.Os processos de "crescimento" dos professores, isomorficamente concebidos relativamente

    aos dos alunos, so favorecidos pela distncia ptima, seja cognitiva, afectiva ou ideolgica46. Esta

    distncia passvel de ser franqueada, entre o interior do actor social e a situao de formao

    dificilmente se opera numa situao "apresentada", oferecida. O que pressupe de partilha e

    41Lynch, J. (1973:171) cit in Corteso, L.(1988), op. cit., p.2642Lynch, J. (1973:172) cit in Corteso, L.(1988), op. cit., p.2743Giroux, H. (1986), op. cit., p.14944

    Vielle, P. (1981) L'impact de la recherche sur le changement en ducation, Perspectives, vol. XI, n 3, p. 33945Corteso, L. & Stoer, S. (1994) A possibilidade de acontecer formao, texto policopiado, p.746Corteso, L. & Stoer, S.(1994), op.cit., p.8

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    participao dos actores sociais em formao evoca situaes por estes construdas, ainda que

    acompanhadas e apoiadas por contributos externos, nomeadamente de investigadores e da

    tradicional formao de "oferta". Acontece a mudana na formao sempre que um professor se

    decifra atravs de um dilogo entre o eu que age e o eu que se interroga, reduz o desfasamento

    entre a imagem que faz de si prprio e a que os outros tm dele.47

    47Postic, M.(1977) Observation et formation des enseignants, Paris, PUF, p.318

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    Crculo de estudo

    Quando a retrica contraditria com as tendncias prticas, h espao para

    desenvolver prticas que no so propriamente as oficialmente induzidas mas que podemser justificadas e legitimadas pela retrica. H um espao de legitimao para

    desenvolver outro tipo de prticas, mesmo que estas, muito provavelmente, no tenham

    muito financiamento. H espao para realmente centrar a formao na Escola, o que

    significa, ligar a formao vida, e no para aceitar, passivamente, que a formao

    aparea quando se est "sentado na escola", ou mais especificamente, "sentado na

    turma".48

    Em meados da dcada de 1970, coube-me coordenar um programa de formao contnua de

    professores. Tratava-se de um programa ministerial com o intuito de "reciclagem dos professores"

    (como ento se designava a formao continuada) com vista introduo dos novos programas

    para o ensino. Mais por intuio do que por referncia a um quadro terico, fiz do primeiro

    momento um encontro de escuta, em grupo. Fora eleito pelos professores da regio onde trabalhava

    e era com eles (e por eles) que qualquer projecto poderia ter lugar.

    Passei a trabalhar, fora de tempo lectivo, com uma equipa de professores. Procedemos a um

    levantamento de recursos. Foi ento que detectmos a existncia de uma Biblioteca Pedaggica

    fechada numa arrecadao da Delegao Escolar. Uma biblioteca muito bem apetrechada, mas

    jamais utilizada pelos professores.

    Retirado o p, inventariados os livros, estes passaram a circular pelas escolas. O ritmo de

    requisies intensificou-se. As solicitaes das escolas, tambm, e no tnhamos descanso. Fruto da

    dinmica criada, no tardou a ser publicado o primeiro nmero do "Projecto", boletim do Centro de

    Documentao Pedaggica. O texto de abertura tinha um ttulo sugestivo: "O que foi e ser a

    formao contnua dos professores". Estvamos em 1978!...

    Esse inesperado incremento da formao de professores e as mudanas entretanto operadas

    nas escolas acompanhavam a dinmica do projecto que, desde 1976, foi desenvolvido na Escola da

    Ponte. E, nos ltimos trinta anos, com a configurao do crculo de estudo da Ponte ou outra

    qualquer, outros crculos surgiram (alguns de efmera existncia). A eles se deve um conjunto

    significativo de mudanas operadas em muitas escolas. Recentemente, a internet alargou o conceito

    de crculo, atravs da uma dialogia que se instalou em mltiplas aces de formao de professores.

    48Correia, J. (1992), in A Pgina, Outubro 1992, p. 12

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    Talvez pelo facto de se falar a mesma lngua, no Brasil essas aces conheceram um forte

    incremento.

    Para que no ocorra o desvirtuamento do crculo (o recurso internet tem riscos...),

    justificar-se- a presente obra. Senti a necessidade de caracterizar essa modalidade de formao,

    divulgando uma pesquisa efectuada num tempo em que ainda no existia internet ou computadores.

    A Sociedade da Informao contribuiu para intensificar a partilha de saberes e para gerar redes de

    experincias. Os professores que experimentam a formao em crculo podero ser

    intermedirios de uma rede de aprendizagem experiencial na qual a Ponte seja uma (entre muitas)

    referncias, no pressuposto da continuidade (j referida), da porta aberta para quem ousou entrar,

    para quem apenas assomou ombreira e para aqueles que, futuramente, queiram espreitar

    Quando, num encontro de formao, se analisava as caractersticas de um crculo de estudo,

    algum comentou: "o que ns j fizemos foi isto mesmo sem lhe darmos este nome". Retive essas

    palavras. Releio-as e evoco outros momentos de um j longo percurso de formao, ainda que no

    soubssemos" que se fazia formao em crculo.

    Foi nesses grupos (a que no dvamos nome...) que aprendemos a recomear, aps cada

    contrariedade. Quando, em 1976, cheguei Escola da Ponte, eu j havia vivido muitas situaes de

    insucesso pessoal e de frustrao profissional em outras escolas. A solidariedade do crculo de

    estudos permitiu transformar a acumulao de insucessos numa gramtica de mudana. A anlise

    dos erros cometidos permitiu desenhar uma estratgia, que conduziria criao do ncleo duro

    fundador do projecto Fazer a Ponte.

    Os crculos sempre foram raros49 e transformaram-se em moda pedaggica. So escassos os

    estudos de interpretao e de organizao crtica de experincias deste tipo. Por essa razo

    justificar-se- o seu estudo, um estudo de marginalidades, que antecederam a sua assimilao e

    descaracterizao.

    Durante trinta anos, acompanhei, do interior50, processos de auto-formao e aferi o discurso

    de professores pelas suas prticas. Foi-me permitido concluir ser hoje mais difcil que h algunsanos romper uma reflexo sobre a prtica que est cada vez mais viciada por lugares-comuns e uma

    retrica herdada da formao de modelo clssico (transmissivo, acadmico, ou o que lhe quisermos

    chamar). Pude aperceber-me, directamente, em situao de sala-de-aula, de que esse discurso no

    disfarava o conservadorismo da prtica. Um tipo mais subtil de conservadorismo consistia na

    adopo acrtica e da "cristalizao" de inovaes. Alguns sobreviventes de um militantismo tardio

    49Em Abril de 1994, das cerca de 500 aces acreditadas pelo Conselho Coordenador de Formao Contnua de

    Professores, apenas 4 eram crculos de estudos.50Partilhei o quotidiano de 76 escolas, 400 professores e 8000 alunos, directa e quase permanentemente entre 1987 e1991.

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    eram incutidos a debitar, em aces patrocinados pelo ministrio, tcnicas de iniciao ao mtodo

    global da leitura, ou outros paliativos avulsos jamais integrados na prtica pedaggica dos

    professores.

    H professores que parecem pouco preocupados com a degradao da formao e das

    prticas, enquanto outros se insurgem e constrem verdadeiras culturas de resistncia. A Lei de

    Bases estabelece como factor de valorizao profissional uma formao que privilegie uma relao

    intensa e permanente com a actividade educativa. Vemos, porm, manterem-se critrios que

    alienam esta dialctica. No campo da formao, as iniciativas foram tradicionalmente marcadas por

    uma preocupao eminentemente tcnica. Regra geral, visavam rituais de actualizao (designados

    por reciclagem) concebidos por organismos centrais ou regionais do Ministrio da Educao, com

    recurso frequente a instituies de formao inicial de professores. Os formadores reflectiam uma

    profunda ignorncia relativamente a problemas especficos deste ciclo de ensino e escudavam-se,

    inevitavelmente, na transmisso de contedos tericos. Esses encontros tiveram, porm, uma

    virtude: foram oportunidades no desperdiadas por alguns professores para interpelar a prpria

    formao.

    Algumas conjunturas foram abertura para a concepo e desenvolvimento de projectos locais.

    E, se muitos projectos foram extintos por hierarquias e acomodados, outros houve que resistiram

    eroso do tempo. Se j no vamos a tempo de recuperar o investimento (em recursos e

    expectativas) desperdiado em trinta anos de projectos falhados, poderemos, contudo, aproveitar

    mais uma das aberturas consentidas. Isto : a existncia de um regime jurdico que confere ao

    exerccio da formao contnua regras que, podem no ser ideais, mas que existem. E tambm no

    quadro do institudo que o exerccio crtico se pode concretizar, no se confinando a espaos

    perifricos.

    No campo da formao ainda so escassos os estudos que incidam em efectivas

    transformaes. O drama dos pesquisadores tem sido esse: a quem vive o quotidiano da escola, a

    quem investiga a todo o momento, no sobra tempo para fazer registos. Os que estudam sobre asprticas observam, captam o suprfluo e generalizam-no. As concluses de muitos estudos

    reflectem a origem dos pesquisadores, raramente a realidade dos investigados. Mesmo quando so

    professores a conduzir os estudos, so professores com experincia de uma escola tradicional

    fazendo, quase sempre, leituras que as suas representaes permitem.

    O drama dos que esto "dentro" consiste em tudo parecer j ter sido j dito pelos especialistas

    sobre a formao. No irnico contraponto com o real extremamente difcil assumir a humildade

    curiosa de quem compreende que na formao contnua no existe ainda um edifcio tericocoerente. Muitas pesquisas limitam-se recolha de experincias isoladas (ainda que significativas)

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    e, regra geral, sem consequncias prticas, nem continuidade. Assentam em concluses estticas,

    produtos de modelos explicativos construdos " priori", ou (o que ainda pior) so meras

    teorizaes de teorias que, entropicamente, se legitimam umas s outras. Se a investigao sobre

    (ou na) formao no serve a transformao das prticas, para que serve?

    Muita formao esgota-se em si mesma, repositrio de receitas avulsas debitadas sobre

    auditrios passivos. Os formadores so, em muitos casos, incapazes de concretizar nos seus locais

    de trabalho as propostas que recomendam. Fazem apelo terico prtica de "metodologias activas",

    mas a metodologia efectivamente utilizada na formao a completa negao da teoria. A

    dimenso tcnica no , talvez, a mais importante, mas no poder ser alienada. inconcebvel

    pois, que haja quem no tenha alguma vez passado por uma sala-de-aula e oriente formao de

    professores em domnios to sensveis como a alfabetizao.

    Manifestaes como os crculos de estudos so, regra geral, remetidas para a periferia do

    sistema e assumem-se at elas-prprias como marginais. Permanecem ignoradas, sem que delas se

    tome conhecimento, ou sobre elas se reflicta. No constituem novidade, pois estiveram presentes na

    gnese de grande parte dos movimentos pedaggicos, nas trs ltimas dcadas. No so

    dispositivos redentores dos sortilgios dos modelos tradicionais de formao. A auto-formao

    ultrapassa os quadros sociais de vida. Ela parece ser a expresso de um processo de antropognese

    que extravasa as estratificaes sociais e educativas tradicionais. Compreender e trabalhar este

    processo obriga-nos a apoiar a reflexo sobre a auto-formao (...) nas cincias emergentes da

    autonomizao.51

    A definio do crculo far-se- atravs de um esforo de sublimao de um objecto que ficou

    algures, num percurso de reflexo que continua e se aprofunda. Centrar-me-ei em processos de

    formao, no reconhecimento de que tais processos no so independentes da histria da vida dos

    sujeitos. Esta concepo delimita o objecto de estudo: centrada nas pessoas e no contexto,

    desvaloriza a vertente mais tecnicista da formao, isto , os instrumentos e os meios. Deciso que

    julgo coerente com o princpio de que no se trata de avaliar a aco de algum sobre um grupopara o conduzir a uma mudana do seu sistema de representaes. Os professores so aqui

    considerados como agentes sociais inseridos em contextos singulares que, embora sejam produtos

    destes contextos, so tambm capazes de agir sobre eles e reflectir sobre o seu processo de

    transformao52.

    Este estudo apenas mais um momento de reflexo crtica, um produto inacabado. Limito-me

    a procurar compreender onde a formao acontece e como sobrevive. Provavelmente apologtico e

    51Pineau, G. (1988) O mtodo auto-biogrfico e a formao, Ministrio da Sade, Lisboa52Correia, J. (1990) "Inovao, mudana e formao: elementos para uma praxeologia de interveno". Aprender, 12:31

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    inevitavelmente imperfeito, ser mais um contributo (s pode ser este o termo) para o

    conhecimento dos crculos e do indissocivel reconhecimento de zonas obscuras no exerccio da

    profisso de professor. Ao longo de mais de trs dcadas, assisti impotente desero de muitos e

    bons companheiros que, saturados de precariedades, rumaram dignidade em profisses melhor

    remuneradas ou de estatuto social mais elevado que a de professor. Porque resisti ao legtimo

    exlio, me obrigo a este contributo.

    Mas o que so crculos de estudos? Quais as caractersticas que os distinguem de outras

    modalidades de formao? O que determina a opo pela formao em crculo? A hegemonia do

    modelo transmissivo poder afectar, futuramente, o desenvolvimento dos crculos entendidos como

    culturas locais de formao? Onde tm origem os projectos de crculo? Quem formador no

    crculo? Como se formam os professores? Como sobrevivem os crculos? Que vantagens

    apresentam? Que potencialidades, adaptaes, limites?...

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    Contributos para a compreenso do crculo de estudo

    O crculo de estudos pode ser definido como um grupo reduzido de pessoas que se rene

    para discutir em conjunto, mas sem professor, uma matria, de forma organizada53

    . O cerneinovador ser, provavelmente, o no haver "professor" so os participantes que buscam

    conhecimentos, recolhem informaes... No exerccio de uma permanente dialogia, penetram o

    tema de estudo, relacionando-o com a sua prpria experincia e concretizando-o, ou exercitam em

    conjunto as suas aptides, ou realizam um pequeno projecto54.

    Nos pases nrdicos, o crculo de estudos foi o mais importante e reconhecido meio de

    educao de adultos, no decurso do ltimo sculo. Na Sucia, por exemplo, calcula-se que mais de

    metade da populao j tenha frequentado, pelo menos uma vez, um crculo de estudos.Nos crculos, a formao um acto total, pois os encontros que deles decorrem implicam

    uma srie de acontecimentos e de interaces que so vividos (...) na sua totalidade, ou seja, em

    contextos onde intervm no apenas a (...) biografia pessoal, mas os sistemas de valores e de

    normas, constrangimentos econmicos, jurdicos, polticos e ideolgicos, mais ou menos

    interiorizados, aceites ou impostos55. A formao no modelao, formatao traduz-se em

    mudanas de comportamento durveis nos indivduos e nos grupos, que so consequncia da

    estabilizao de comportamentos pontuais, da aquisio de conhecimentos na aco e na

    capitalizao da experincia pessoal e colectiva56.

    A designao de crculo foi dada, no caso presente, a grupos de professores que,

    anteriormente, promoviam j uma reflexo sobre as prticas. Autnticas "tertlias", cujo espao de

    interveno ultrapassou o espao da escola, estes grupos pautavam-se por um certo hedonismo, por

    rituais de encontro menos finalistas e pouco determinados pelo dever ou pelo trabalho, pela

    apropriao contnua do presente e o investimento na errncia da explorao do mundo. Estava

    neles latente um acentuado sentimento de pertena. A racionalidade dominante era a

    comunicacional. O encontro no se restringia troca de informao, mas uma reflexo-aco

    produtora de conhecimento.

    A essncia do homem , na sua realidade, o conjunto de relaes sociais. O crculo

    constitui-se em instncia de mediao entre singulares. O professor que participa do contacto com

    outros fica outro, transforma transformando-se e disso adquire conscincia. O requisito do respeito

    53Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986) Para uma pedagogia participativa, Braga, Universidade do Minho, p.1354

    Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.1555Lesne, M. (1984) Lire les pratiques de formation d'adultes, Paris, Edilig, p.8456Pain, A.(1990) ducation Informelle, Paris, L'Harmattan, p.130

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    pela autonomia do formando e da autonomia do crculo est intimamente ligado ao princpio da

    responsabilizao a que esta modalidade apela. Dada a sua organizao, o crculo um verdadeiro

    ncleo de democracia participativa, onde a responsabilidade a responsabilidade de todos, e onde

    cada elemento individualmente responsvel pelos actos do colectivo.

    A participao precedida de negociao. A negociao de planos de formao permite

    evitar um retorno abstraco e exteriorizao, tanto nas situaes de formao, como no seu

    contedo, no seu desenvolvimento e na sua avaliao57. O conhecimento emergente da

    comunicao e da partilha comandado por um interesse emancipatrio e, mais que conhecimento-

    em-si, como que uma gramtica para uma prxis emancipadora.

    Na Sucia, os crculos de estudos surgem em 190258, criados pelo movimento dito da

    temperana, mas so rapidamente desenvolvidos por diversos outros movimentos (sindicatos,

    partidos polticos, movimentos ditos de "no-conformismo", associaes de consumidores, etc.).

    Em 1947, o parlamento decide subvencion-los sistematicamente (em 80% do seu custo)59.

    Na tradio escandinava, os crculos so associados ao desenvolvimento de uma cultura

    democrtica mais vasta, tocam problemas culturais, sociais, quotidianos e polticos. No ltimo

    caso, refira-se o facto de 150.000 pessoas terem discutido em crculo de estudo a poltica nuclear do

    Governo. Em 1980, numa populao de pouco mais de oito milhes de habitantes, mais de trs

    milhes participavam da formao em crculo60. Em 1986, o quantitativo assinalado corresponde a

    um milho e meio de adultos que normalmente renem uma noite por semana, no perodo

    compreendido entre Setembro e Abril.61

    No incio do sculo XX, a "educao popular" recorria ao crculo de estudo, por lhe

    reconhecer potencial de gerar o aparecimento de novos grupos. Nos anos 1920 e 1940, estes grupos

    constituem-se em forte movimento, nomeadamente entre as organizaes sindicais e nas

    comunidades crists. Nestas, os contedos do plano de estudos excediam o domnio meramente

    religioso. A universidade acabou por se interessar por este movimento e organizou ela prpria

    crculo de estudo, por pretenderem participar no trabalho de "educao popular". A proliferao doscrculos conduziu organizao de "federaes de estudo"62, cada qual com uma conotao

    ideolgica especfica em consonncia com os diferentes movimentos populares de que emergiam.

    Actualmente, os crculos ocupam-se de assuntos to dspares como: a aprendizagem de

    lnguas estrangeiras, o artesanato, a histria regional, ou a conservao da natureza. E nunca foi

    57Peretti, A. (coord.) (1982) Rapport au ministre de l'ducation National, Paris, La Documentation Franaise, p.8358cf. Embaixada da Sucia (1981) Novas regras para os crculos de estudos suecos.59Shwartz, B.(1988), Education Permanente et formation des adultes, ducation Permanente, n 92, p.1060

    Shwatz, B. (1988), op.cit., p.1061Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.1362Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.14

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    necessrio aguardar uma nova formao de professores para se poder estudar uma nova matria,

    nem uma deciso das autoridades para se iniciar um crculo de estudo63.

    O nmero de participantes varia, normalmente, entre cinco e quinze elementos. A iniciativa

    parte de organizaes, de associaes, de sindicatos, de empresas, ou simplesmente de grupos de

    amigos. Em cada crculo existe um "lder", ou "monitor", a quem esto cometidas funes de

    organizao. As federaes de educao e as organizaes centrais providenciaram a formao

    destes monitores, sob a forma de crculo, ou de curso. O lder de crculo no remunerado.

    O plano de estudos pode ser elaborado pelo crculo, ou obtido numa associao de crculos

    de estudo, mediante as intenes expressas pelo grupo. Se o crculo se encontra inscrito numa

    qualquer associao, pode ser certificada a formao que realize.

    Nos pases nrdicos, os crculos so considerados como verdadeiras escolas de democracia

    participada, onde a autoridade exercida sempre consentida e nunca imposta. Mas a tradio de

    formao em crculo escassa nos pases de lngua portuguesa. Em meados da dcada de 1980, os

    crculos tinham-se multiplicado na regio onde a Escola da Ponte est sediada, porque professores

    de outras escolas tinham identificado vantagens na formao realizada no primeiro crculo,

    constitudo em finais da dcada de 1970, e os excelentes resultados obtidos pelo projecto Fazer a

    Ponte.

    Os participantes na formao diziam que poderiam design-los desse modo, por "se

    assemelhar ao que se vinha fazendo, h muitos anos, sem se saber que era crculo..." Ainda hoje,

    os crculos so realidades moventes, fugidias a classificaes e at, por vezes, contraditrias com o

    recorte dos crculos escandinavos. Porm, coincide com a tradio nrdica nos trs objectivos

    concretizados nesta modalidade de formao64: que os participantes adquiram conhecimentos e

    aptides relevantes, que a sua auto-confiana se fortalea e que se desenvolvam do ponto de vista

    social e democrtico. Tambm na organizao se verifica uma analogia: a existncia de um

    crculo-me65, no qual os animadores dos vrios crculos convergem para um trabalho comum de

    planificao, troca de materiais e de conhecimento. Apesar deste princpio de coordenao entre osanimadores, pertence a cada crculo a discusso e a modificao do plano de estudos, de modo

    autnomo.

    Exemplo de sntese de reflexo em crculo66:

    63Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.1564Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.2165Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.2566 Todas as citaes que no contenham indicao de autor so da autoria de professores que, no crculo de estudo da

    Escola da Ponte e em outros crculos, desenvolveram formao ligada a projectos de mudana nas suas escolas. Ascitaes foram extradas de actas e de outros documentos produzidos nos crculos. O documento mais antigo data deSetembro de 1976; o mais recente de Junho de 1993.

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    O Crculo de Estudo aproxima-se da ideia de projecto colectivo. Est implcito o

    princpio do paralelismo entre desenvolvimento pessoal e profissional, a harmonizao

    entre o individual e o colectivo. Basta a afinidade com um problema comum a outros

    professores: as dificuldades sentidas na concretizao de um projecto, a prtica de uma

    "nova avaliao etc. Basta disponibilidade, cooperao, vontade de ajudar e abertura

    para ser ajudado. Basta poder recorrer, se necessrio, a algum que saiba integrar-se no

    grupo e apontar pistas de soluo, algum que apoie professores na sntese entre teoria e

    prtica, que viabilize mudanas na prtica pedaggica. O objectivo o bem-estar no

    grupo, a melhoria das condies de trabalho do professor, que o mesmo dizer dos

    alunos que ajudamos a crescer e a formar-se."

    A experincia pioneira da formao protagonizada pela Escola da Ponte assumia que para

    criar um tipo de relao social entre indivduos em p de igualdade e no uma situao hierrquica,

    a organizao deve ser tal que permita uma relao directa entre todos os participantes, que,

    exprimindo-se e agindo diversamente, constituem uma comunidade de adultos em auto-formao,

    que surge por princpios democrticos e no-autoritrios.

    O quadro seguinte apresenta uma sntese dos contrastes entre o conceito de crculo e a

    formao de modelo escolar67:

    Em vez de:

    - Professor (formador externo)

    - Aluno

    - Lio

    - Ensino

    - Livros didcticos- Currculos

    - Perodo

    Utiliza-se:

    - Coordenador de crculo (monitor interno)

    - Participante

    - Reunio (encontro)

    - Estudo

    - Material de estudo (Centro de Recursos e Ncleo documental)- Planos de Estudo

    - poca de estudo

    Os grupos humanos transformam-se em inter-relao68 com os contextos fsicos e culturais,

    nos quais e com os quais se relacionam. O crculo ser, nesta assero, o que a escola para um

    projecto poltico pedaggico: uma organizao com uma cultura prpria. O percurso pessoal e

    67Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.2468Bronfenbrenner, V. (1987) La ecologia del desarollo humano, Buenos Aires, Pards

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    colectivo de formao pressupe dinmicas de reconstruo da cultura pessoal, profissional e

    organizacional, alteraes significativas nos sistemas de valores. Esta transformao dificilmente se

    concretiza confinada aos limites dos contedos e tempo de um curso. Envolvidos num processo

    contnuo e significativo, os professores podero aceder compreenso do tipo de racionalidade que

    molda as suas pressuposies e compreender de que modo essa racionalidade mediadora da

    cultura dominante69.

    Passar da formao individual formao em equipa um processo cultural de difcil

    concretizao, que fomenta dilemas perante os quais os professores acabam, inexoravelmente, por

    tomar posio. So imensos os riscos neste processo, em que mecanismos formais de controlo

    individual e preocupaes relacionadas com a regulao do mercado de formao conflituam com a

    cultura de formao em crculo. A modernidade confirmou o triunfo da razo sobre a tradio e do

    universal sobre o particular mas, no auge do conflito de valores que herdmos, sobrevivem culturas

    intersticiais de curto prazo, movimentos precrios, mas vitais para que a cincia compendiada ceda

    algum lugar a uma criatividade prospectiva.

    Como condies potenciadoras de novas culturas, Maisonneuve refere as interaces dos

    processos sociais e psicolgicos, ao nvel das condutas concretas, e as interaces das pessoas e

    grupos, no mbito da vida quotidiana70. No cruzamento destas interaces, emergem crculos de

    cultura71, onde a cultura como sal de formao ser a aquisio sistemtica da experincia

    humana (...) uma incorporao crtica e criadora e no uma justaposio de informes ou prescries

    doadas72.

    Dizia Paulo Freire que temos que assumir o projecto do nosso sonho para obstar aos

    efeitos de uma modernidade que nos projectou para uma tica individualista, uma macro-tica que

    nos impede de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades por acontecimentos globais73. Para a

    elaborao cultural desse "projecto do nosso sonho" justificar-se- a construo de uma sntese

    comparativa entre valores e modos de pensamento que atravessam o contexto de elaborao. Trs

    valores fundamentais norteiam a elaborao cultural nos crculos: o mutualismo (cooperao,solidariedade e interajuda, que so obstculos autonomia isolacionista e competitiva), autonomia

    crtica e transformadora (criatividade, senso crtico e responsabilidade, que conferem ao indivduo

    a possibilidade de existir com os outros como pessoa livre e consciente) e democraticidade

    69Giroux, H. (1986) Teoria Crtica e Resistncia, Petrlopis, Ed. Vozes.70Maisonneuve (1974), cit in Delome, C. (1985) De la animacin pedaggica a la investigacin-accion, Madrid,Marcea, p.4271

    Freire, P. (1971) Educao como prtica de liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.10372Freire, P. (1971), op.cit., p.10973Santos, B. (1988) O Social e o poltico na transio ps-moderna, Comunicao e Linguagem, 6/7, p.35

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    (pluralismo, participao social e assuno de cidadania, que definem o homem como interveniente

    e confirmam a transformao da substncia e das estruturas da comunicao).

    No crculo, a reflexividade concretiza-se em ciclos recursivos, que se desdobram em dois

    momentos: o momento do fazer, onde o saber se investe nas actividades, e o momento do saber,

    onde este, que j conhecido na prtica, se reelabora a um nvel superior de formalizao. A

    reflexividade no pode, porm, ser reduzida a esta alternncia. No crculo, ela um movimento

    protocolar entre formador interno e formador externo, no qual este toma, fundamentalmente, o

    desempenho de uma funo de consultadoria, a que o crculo se abre por reconhecer indispensvel

    a reflexividade externa.

    No existe um conhecimento profissional para cada caso-problema, que teria uma nica

    soluo correcta. O profissional competente actua reflectindo na aco, criando uma nova

    realidade, experimentando, corrigindo e inventando atravs do dilogo que estabelece com essa

    mesma realidade. Por isso, o conhecimento que o professor deve adquirir vai mais longe do que as

    regras, factos, procedimentos e teorias estabelecidas pela investigao cientfica74. Como

    profissionais, os professores no s dispem de um corpo sistemtico de conhecimentos bsicos,

    mas tambm de uma cultura comum: sem sair do processo de produo real (como contraponto a

    uma alternncia de situaes de formao/situaes de trabalho de eficcia discutvel) e com o

    auxlio de dispositivos pensados, preparados e organizados, a pessoa em formao pode apropriar-

    se com fora e pertinncia dos saberes e dos saberes-fazeres necessrios compreenso, conduta e

    acompanhamento dos processos profissionais ligados sua funo75. A formao, como processo

    complexo de apropriao crtica e criativa de elementos cientficos, culturais e tcnicos, implica a

    descentrao do sujeito-agente de formao e a compreenso das inter-subjectividades,

    solidariedades e autonomias vividas na resoluo de problemas comuns. No alfobre desta alquimia

    colectiva se engendram, estudam e solucionam problemas sociais e comunitrios.

    Na definio de profissionalidade docente, raramente se reconhece o professor como

    detentor de controlo sobre a profisso e as condies do seu exerccio. O controlo das condies detrabalho esto cometidas administrao escolar. No surpreende que os professores tenham

    desenvolvido atitudes defensivas, que os remeteram para nveis inferiores de autonomia e

    reconhecimento social. O professor circunscreve o exerccio da autonomia ao espao da sala de

    aula. A considerao da escola como lugar privilegiado de formao fica comprometida. O estudo

    dos dispositivos de formao na Ponte e a identificao das suas caractersticas podero ser teis

    74

    Gomez, A. (1992) O pensamento prtico do professor in Nvoa, A.(coord.) Os professores e a sua formao, Lisboa,D. Quixote/IIE, p.11075Lesne, M. & Minvielle, Y. (1988) Socialisation et formation d'adultes., ducation Permanente, 92, p.36

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    para o retomar da ideia da escola como espao e tempo de uma formao com intensa relao com

    a prtica profissional. Um crculo de estudo como um ecossistema de relaes e mudanas

    simblicas gerador de significado para a mudana pessoal e das prticas, em grupo. A formao

    acontece numa sobreposio de interrogaes crticas inseridas em contexto de trabalho.

    Toda a relao formativa uma relao entre culturas no desiderato da elaborao de uma

    cultura especfica. A organizao da cultura crculo subordinou-se a critrios como a afinidade de

    interesses, a afectividade, a proximidade das escolas. O smbolo a causa e o efeito de toda a vida

    societal. Portanto, no somente com base na conscincia ou na razo que o grupo se constitui [e]

    so os smbolos que tm origem no grupo [que] permitem a continuidade.76

    Ao procurar definir os contornos-caractersticas da formao em crculo, no estou a procurar

    mais que compreender, para revelar, este ou aquele aspecto at agora mais ignorado ou esquecido

    no campo da formao contnua. Busco a compreenso do crculo atravs da reunio de

    significados que mais no so que uma simbologia reconhecida nos traos de um discurso

    individual no colectivo. Quando se penetra no grupo atravs do sujeito este projecta

    necessariamente no discurso o seu grupo interior e revela assim as relaes especiais que ele

    mantm habitualmente com os outros.

    E no s... Torna-se tarefa difcil isolar o que especfico do que local. Todavia julgo ser

    possvel identificar quatro orientaes das culturas locais de formao a que, por necessidade de

    classificao, se convencionou designar de crculo de estudo:

    uma concertao prvia entre formando e formador, compreendendo uma negociao

    sobre o projecto e os meios que pode desembocar num contrato pedaggico;

    uma desestruturao do grupo que permite elaborar itinerrios diferenciados, de respeitar

    os ritmos de aprendizagem, de multiplicar as abordagens pedaggicas e de repensar as

    articulaes grupo-indivduo;

    uma nova articulao objecto ensinado-aprendiz-formador, na qual o formando setransforma em actor [e autor] da sua formao e o formador em "acompanhante";

    um novo modo de avaliao (...) de certificao, de regulao e de orientao.77

    Um outro conjunto de caractersticas poderia servir para a identificao de um crculo:

    76

    Maffesoli, M. (1985) A sombra de Dionsio, Rio de Janeiro, Ed. Graal Ltda., pg. 1977Aballea, F. & Froissart, C. (1988) Individualisation et formation de masse, cit. in Litard, B. (1991),L'individualisation des parcours d'evolution, Revue Franaise de Pdagogie, 97, p. 87

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    a sua autonomia em relao a outras formas (...) de formao profissional;

    o seu objectivo primeiro de socializao permanente dos indivduos e dos grupos;

    o seu carcter de proximidade;

    a descentralizao da sua gesto e da sua organizao, mais prxima dos lugares de

    emergncia das necessidades que so tambm os lugares de vida das populaes;

    a sua pilotagem estratgica (...) pela sua coordenao, a sinergia das intervenes dos

    diferentes agentes educativos;

    o seu modo de co-produo da formao pelos seus consumidores (...);

    a sua abordagem global (...) da pessoa em formao;

    a transferibilidade das aquisies.78

    Os crculos so dispositivos de formao de iniciativa local, que acessibilizam uma

    socializao concebida como funo de aprendizagem e de apropriao das regras de mudana

    social, num processo de integrao social que contrape aos constrangimentos a assuno de

    cidadania. Uma cidadania para a qual o mesmo crculo assegura meios concretos de exerccio. A

    prtica da formao em crculo permite que os seus membros se munam de meios de compreenso

    das situaes, dos meios de anlise, de sntese, de julgamento, de crtica, para lhes permitir

    posicionar-se e elaborar estratgias de aco.79

    O monitor (ou animador) escolhido pelo crculo o interlocutor perante qualquer elemento

    exterior. Funciona quase como um atenuador de interferncias. Habitualmente, fcil a tarefa da

    sua identificao. um professor reconhecido pela firmeza de atitudes, pela aceitao generalizada

    por todos ou pela maioria dos professores do crculo, emerge ao fim de algum tempo de maturao

    do grupo e num momento em que ao grupo se exige representatividade perante terceiros. Porm,

    dever-se- sublinhar o carcter precrio desta representatividade. O animador um agregador de

    vontades e no um dirigente. E pode ser substitudo em qualquer momento. As suas funes so de

    coordenao e ligao com o exterior. Uma coordenao permanente e provisoriamente outorgada.Decorre dos circunstancialismos a que o crculo, como grupo social no social, no se pode eximir.

    O crculo preserva assim uma identidade colectiva que se projecta na identidade pessoal do

    animador escolhido.

    Assiste-se mutao da identidade social em identidade pessoal enquanto esta se socializa.

    O grupo um lugar de confrontos, mas estes subtraem-se observao de estranhos pela projeco

    de si na imagem de um representante isolado. o grupo que age como regulador e facilitador do

    78Bogard, G. (1991) Pour une ducation socialisatrice des adultes, Strasbourg, Conselho da Europa, p. 9-1079Bogard, G. (1991), op.cit., p.22

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    choque das subjectividades no seu interior. o animador que age na traduo para o exterior das

    vontades conflituadas como objectivos imediatos do grupo perante terceiros.

    A formao em colectivo no subjuga projectos individuais. Esta tenso confere ao crculo

    uma qualidade especfica. O tringulo pedaggico formando-objecto de formao-formador no

    abolido, mas reelaborado. A linearidade e unicidade da transmisso magistral de saberes

    moderada por uma apropriao dos saberes, acompanhada e partilhada com os pares do crculo.

    Combina-se teoria e prtica, trabalho colectivo e trabalho individual, segundo diferentes modos de

    acesso, de indivduo para indivduo, atravs do colectivo. A preservao do individual no grupo

    sujeita-o a desestruturaes sucessivas, que podem afectar a sua coeso at ao ponto de

    desapario. Os crculos actuam pela cissiparidade. Se o conflito de intencionalidades se apresenta

    indissolvel, o crculo subdivide-se, multiplica-se para procurar novas identidades, embora

    mantenha as caractersticas do crculo original.

    O professor situa-se nas descontinuidades e previne-se para a eminncia de reformulaes

    do seu projecto pessoal; firma acordos to precrios como coerentes com o crculo, cujos contornos

    de identidade social mais se aproximam da sua identidade pessoal. O projecto pessoal sempre um

    compromisso prudente entre as possibilidades objectivas de um grupo aberto, mas apesar de tudo,

    constrangedor com determinada etapa de progresso pessoal na formao. O ineditismo deste tipo

    de tenso entre projectos permite afirmar a intimidade, sem que se processe a ausncia do outro,

    numa intimidade feita da presena de intimidades prximas.

    Provavelmente caracterstica da transformao paradigmtica, que tambm atravessa o

    campo da formao, agudiza-se a interpelao sria das escolas tericas tradicionais. So inmeros

    os sinais e imensa a criatividade marginalizada. Talvez seja tempo (ou demasiado tarde?) para nos

    determos no banal quotidiano dos professores para refazermos as certezas. Mas isso exige um

    estudo profundo, uma aprendizagem do desaprender80. O crculo propicia ao adulto em formao

    o trabalhar a seu modo, o promover rupturas ponderadas no continuum de experincias individuais

    e colectivas, o confronto reflectido com o real, na resoluo de problemas prximos, que no passapela aplicao linear de modelos tericos institudos, nem pelo decalque de experincias no-

    reflectidas.

    O crculo declina monoplios da formao, ao inscrever as suas prticas no seio de uma

    sociedade educativa mais vasta, reivindicando o princpio que afirma que a formao acontece nas

    circunstncias mais comezinhas e informais. Sem descurar a formao instituda, situa-a na sua

    incapacidade de responder s questes sobre o singular na linguagem do singular 81. Ao

    80Caeiro, A. (1979) Poemas, Lisboa, Ed. tica, p.4881Delbos, cit in Courtois, B. (1989) L'aprentissage exprientel, d. Permanente, n 100/101, p.10

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    conhecimento construdo, que privilegia a dimenso cognitiva, junta-se o conhecimento

    relativizador, que todo e qualquer fenmeno imprime na experincia individual e colectiva

    (poltica, profissional, social, cultural...).

    O crculo vai "mais longe" porque, ao promover a sntese de conhecimentos, adita-lhe a

    possibilidade efectiva de agir. O professor em crculo parte da experincia do fenmeno para agir

    sobre ele e, colectivamente, assumir as consequncias da aco. Este duplo movimento no fica

    completo sem uma actividade intelectual intensa, que permite o confronto de interpretaes e a

    integrao do conhecimento produzido. Segundo Kolb referindo-se aprendizagem experiencial

    este trabalho reflexivo pe em jogo duas operaes mentais diferentes mas ligadas: apreenso da

    experincia e a sua transformao. Cada uma destas operaes articula duas aces em si-mesmas

    diferentes: a apreenso e a compreenso para a posse da experincia: a sua interiorizao psquica e

    a sua exteriorizao social, para a sua transformao82.

    Enquanto projecto existencial, o crculo concretiza algumas das muitas correntes no campo

    da formao: o prazer que inclui a livre escolha do objecto de aprendizagem, assim como o

    momento, o lugar (...); um espao suficientemente vasto, que torna possvel a vagabundagem de

    esprito, a descoberta, a reflexo; a diversidade que estimula a curiosidade.83 Torna vivel a

    concretizao destes ensejos, por permitir a manuteno de um contexto estvel. O compromisso

    do indivduo com uma prtica deste tipo radica em projectos de existncia que de latente se torna

    deliberao e aco. O indivduo decide suportar