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Revista Portuguesa de Filosofia O Fim da Filosofia da Ciência na História da Filosofia Analítica Author(s): Henrique Carlos Jales Ribeiro Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 54, Fasc. 3/4, Filosofia da Ciência (Jul. - Dec., 1998), pp. 395-428 Published by: Revista Portuguesa de Filosofia Stable URL: http://www.jstor.org/stable/40337291 . Accessed: 26/09/2013 13:49 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp . JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. . Revista Portuguesa de Filosofia is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Revista Portuguesa de Filosofia. http://www.jstor.org This content downloaded from 128.228.173.41 on Thu, 26 Sep 2013 13:49:06 PM All use subject to JSTOR Terms and Conditions

Filosofia da Ciência || O Fim da Filosofia da Ciência na História da Filosofia Analítica

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Revista Portuguesa de Filosofia

O Fim da Filosofia da Ciência na História da Filosofia AnalíticaAuthor(s): Henrique Carlos Jales RibeiroSource: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 54, Fasc. 3/4, Filosofia da Ciência (Jul. - Dec., 1998),pp. 395-428Published by: Revista Portuguesa de FilosofiaStable URL: http://www.jstor.org/stable/40337291 .

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O FIM DA FILOSOFIA DA CIENCIA NA

HISTORIA DA FILOSOFIA ANALITICA

Introdugao Urn fim anunciado

A ideia de que a filosofia da ciencia morreu parece ser um resultado mais ou menos aquirido da evolu9ao recente da filosofia analitica contemporanea. W. v. O. Quine sugeriu geralmente essa ideia nos anos sessenta com a sua famosa concep9ao da "epistemologia naturalizada",1 e tanto R. Rorty como P. Feyerabend tern vindo a defende-la de forma expressa nos ultimos vinte anos, embora numa perspectiva diferente da de Quine.' O que esta essencialmente em questao com a

Ver Quine, W. v. O., Ontological Relativity and Other Essays, Ed. Columbia University Press, New York e London, 1969; trad, francesa de J. Largeault, Relativite de I'ontologie et quelques autres essais, Ed. Aubier, Paris, 1977, especialmente, cap. 3, "L'epistemologie devenue naturelle", pp. 83-106. Para uma leitura das teses de Quine, nesse capitulo, veja-se Kornblith, H., "What is Naturalized Epistemology?", in Naturalizing Epistemology, Ed. H. Kornblith, The Mit Press, Cam- bridge-Massachusetts/London-England, 1994, pp. 1-14.

"Ver alguns importantes ensaios de R. Rorty, em Philosophical Papers: Objectivity, Relati- vism, and Truth, vol. 1, Ed. Cambridge University Press, 1991, nomeadamente, "Science as Solida- rity" (pp. 35-45) e "Is Natural Science a Natural Kind?" (pp. 46-62). Para uma interpretacao de alguns aspectos da teoria de Rorty a respeito do fim da filosofia da ciencia, ver Reading Rorty: Critical Responses to 'Philosophy and the Mirror of Nature' (and Beyond), Ed. A. R. Malachowski, Blackwell, Oxford-United Kingdom/Cambridge-USA, 1990. Sobre a teoria de Feyerabend, veja-se Against Method, Ed. New Left Books, London, 1975 (traducSo, utilizada neste trabalho, de M. Serras Pereira, Contra o Metodo, Ed. Relogio d'Agua, Lisboa, 1988); Science in a Free Society, Ed. New Left Books, London, 1978; e Farewell to Reason, London, 1987. Para uma interpretacao espe- cializada do autor, veja-se Beyond Reason: Essays on the Philosophy of P. K. Feyerabend, Ed. de G. Munevar, Kluwer Academic Publishers, Dordrecht/Boston/London, 1991. W. H. Newton-Smith oferece uma discussao das teorias de Rorty e de Feyerabend na filosofia da ciencia contemporanea em The Rationality of Science, Ed. Routledge, London e New York, 1981. E M. Tiles e J. Tiles discutem as implicates epistemologicas dessas teorias em An Introduction to Historical Epistemo- logy: The Autority of Knowledge, Ed. Blackwell, 1993 (especialmente, pp. 107-207).

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ideia de que a filosofia da ciencia morreu, nao e, evidentemente, que a propria ciencia tenha morrido,3 mas o fim da filosofia da ciencia tradicional, ou da filoso- fia da ciencia tal como ela foi praticada desde Descartes e Kant ate aos nossos dias e, em particular, ao positivismo logico; mas outros desenvolvimentos mais recentes da filosofia da ciencia, que concorreram para a emergencia da ideia de uma morte dessa filosofia, como o de T. Kuhn, parecem ser postos tambem em questao especialmente pelas teorias de Feyerabend e (sobretudo) de Rorty sobre o assunto.4 Nem Rorty nem Feyerabend excluem completamente que seja possivel um novo discurso sobre a "ciencia", o qual, em todo o caso, nao seria chamado "filosofia da ciencia", uma vez que o fim desta fara parte de um contexto mais amplo em que o que chega ao seu terminus e a propria filosofia tradicional, e, fundamentalmente, uma vez que nao havera qualquer possibilidade de demarcar de forma essencial a "ciencia" da "nao-ciencia" (ou das outras areas da cultura em geral);5 ao inves, esse discurso teria como finalidade promover a autoconsciencia

3Esta e uma interpretacao erronea, que e feita por vezes. Por exemplo, e a interpretacao de Holton, G., Science and Anti-Science, Ed. Harvard University Press, Cambridge-Massa- chusetts/London, 1994. Veja-se, especialmente, cap. 5, "The Controverse over the End of Science", pp. 145-190. Holton interpreta a teoria da ciencia de O. Neurath como se esta defendesse um fim, nao da filosofia da ciencia tradicional, mas justamente um fim da propria ciencia (o mesmo acontece com a sua interpretacao da teoria de H. Putnam). (Veja-se Idem, ibidem, p. 140 e ss.). Isso e, sem duvida, falso, sobretudo a respeito de um homem (como Neurath), que dedicou grande parte da sua vida a defender e promover um ideal da ciencia e da sua inteligiblidade. Faremos algumas referenci- as a este respeito no final do presente trabalho (pp. 30-3 1 ).

Kuhn seguramente nao subscreveria a ideia, de Feyerabend, segundo a qual ciencia e ideolo- gia identificam-se, em ultima analise, embora aceite a versao de Feyerabend a proposito da inco- mensurabilidade das teorias cientificas. Em "Reflections on My Critics", reagindo a "defense of irrationality in science" feita por Feyerabend a proposito das suas proprias teorias, ele faz notar que isso "seems to me not only absurd but vaguely obscene." Em contraste, o que Kuhn ele mesmo quer mostrar e que "existing theories of rationality are not quite right and that we must readjust or change them to explain why science works as it does." (KUHN, T., "Reflections on My Critics", in Criti- cism and the Growth of Knowledge, Ed. I. Lakatos & A. Musgrave, Cambridge University Press, 1982, pp. 263-264. Veja-se tambem o trabalho de Feyerabend publicado na mesma edicao, "Conso- lations for the Specialists", pp. 197-230, especialmente, pp. 219-220) A critica da nocao holista de incomensurabilidade, que Rorty intitula frequentemente de "versao Kuhn-Feyerabend", e feita ge- ralmente logo em Philosophy and the Mirror of Nature, Ed. Princeton University Press, 1979 (aqui citado na trad, portuguesa de Jorge Pires, A Filosofia e o Espelho da Natureza, Ed. Dom Quixote, Lisboa, 1988), especialmente, cap. VI, seccao 2.

Rorty concluira do seguinte modo "Is Natural Science a Natural Kind?": "'Scientific rationa- lity' is, on this view, a pleonasm, not a specification of a particular, and paradigmatic, kind of ratio- nality, one whose nature might be clarified by a discipline called 'philosophy of science'. We will not call it science if force is used to change belief, not unless we can discern some connection with our ability to predict and control. But neither of these criteria for the use of the term 'science' su- ggests that the demarcation of science from the rest of culture poses distinctively philosophical

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historica necessaria, por parte da sociedade em geral, de que a (anteriormente suposta) "racionalidade cientifica" e basicamente um "mito" (Rorty) ou uma "ideologia" (Feyerabend) ao servi9O de interesses (por ela) historicamente cons- tituidos, e, por esta via, seja promover a solidariedade e uma nova virtude moral assente na persuasao e no dialogo (Rorty), seja promover a liberdade individual face a opressao ideologica da ciencia e a banalizaijao da cultura em geral (Feyera- bend).6

problems." (RORTY, R., Objectivity, Relativism, and Truth, p. 62) Feyerabend, por sua vez, afirma: "As entidades postuladas pela ciencia nao sao descobertas, e nao constituem um 'estadio objectivo' para todas as culturas ao longo da historia. Sao moldadas por grupos, culturas, civilizacoes particu- lares; e sao moldadas a partir de um material que, segundo o modo como for tratado, e susceptivel de nos fornecer deuses, espiritos, uma natureza que mais e companheira do homem do que um laboratorio das suas experiencias, como quarks, campo, moleculas, placas tectonicas." (FEYERA- BEND, P., Contra o Metodo, cap. 20, p. 328)

As criticas da filosofia da ciencia, por parte de Rorty e de Feyerabend, tern pois finalidades morais distintas; e isso parece resultar do modo como cada um deles encara as relacoes entre a ciencia e a moral. Rorty mostra como a "racionalidade cientifica" e pressuposto de uma concepcao da moral, e, como esta, uma vez destronada aquela, deve ser ela propria abandonada: "... It is temp- ting-though, on a pragmatist view, illusory-to think that the prevalence of such virtues [honestida- de, paciencia, razoabilidade, etc.] among scientists has something to do with the nature of their procedures.... But if, as I do, one views pragmatism as a sucessor movement to romanticism, one will see this notion of reason as one of its principal targets. So we pragmatists are inclined to say that there is no deep explanation of why the same people who are good at providing us with te- chnology also serve as good examples of certain moral virtues.... On a pragmatist view, rationality is not the exercise of a faculty called 'reason'-a faculty which stands in some determinate relation to reality. Nor is the use of a method. It is simply a matter of being open and curious, and of relying on persuation rather than force." (RORTY, R., "Is Natural Science a Natural Kind?", in op. cit., pp. 61- 62). Rorty opoe, pois, a ciencia como "objectividade", a ciencia como "solidariedade": "the only sense in which science is exemplary is that it is a model of human solidarity", na medida em que ela, nao pretende ser "more 'objective' or 'logical' or 'methodical' or 'devoted to truth'", mas "give con- cretness and detail to the idea of 'unforced agreement'" ou "free and open encounter." (RORTY, R., "Science as Solidarity", in op. cit., p. 39) Veja-se ainda de Rorty, Contingency, Irony and Solidarity, Ed. Cambridge University Press, Cambridge, 1989, cap. 9, "Solidarity"; trad, portuguesa de N. F. da Fonseca, Continencia, Ironia e Solidariedade, Ed. Presenca, Lisboa, 1994, pp. 235-246.- Poderia- mos dizer que Rorty apela ainda para a moral quando critica a moral da "racionalidade cientifica". Esse tipo de apelo parece estar ausente da teoria de Feyerabend. A "racionalidade cientifica" e sino- nimo, para ele como para Rorty, de autoritarismo e falta de liberdade individual, mas a alternativa anarquista que ele propoe e geralmente independente de apelos morais: "o plural ismo de ideias e formas de vida e parte essencial de qualquer inquiricao racional acerca da natureza das coisas.... E um metodo que encoraja a variedade e tambem o unico metodo compativel com uma perspectiva de humanidade." (FEYERABEND, P., op. cit., p. 50). Mais a frente, contudo, ele fala-nos de certos pressupostos morais da sua filosofia: "Pensei que se considerassemos todas as realizacoes transito- rias, restritas e pessoais, e toda a verdade como criada pelo nosso amor, e nao como 'descoberta', poderiamos impedir a deterioracao das promessas dos contos de fadas de outrora, e pensei tambem

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Uma vez dito isto, o que signiflcara a morte da filosofia da ciencia e quais serao as implica9des desse (suposto) facto, e um problema que esta longe de ser pacifico no proprio ambito da filosofia analitica. Quine seguramente subscreveria a ideia de que a filosofia nao pode mais proporcionar as funda9oes da ciencia no seu proprio quadro (quer dizer, num saber primeiro e exterior ao saber cientifico propriamente dito), e, deste ponto de vista, de que a filosofia da ciencia tradicio- nal morreu, as pretensoes fundacionalistas tradicionais nao tendo mais sentido; mas, ao mesmo tempo, por certo defenderia tambem a legitimidade de um discur- so da ciencia sobre ela propria, no ambito do qual filosofos e cientistas, lado a lado, ocupar-se-iam de certos problemas especificos de uma psicologia natural i- zada.7 Tanto Quine como, de um outro ponto de vista, H. Putnam, sem diivida recusariam aceitar a ideia, defendida por Rorty e de Feyerabend, de que a episte- mologia e a ontologia elas proprias morreram com o fim da filosofia da ciencia tradicional.8 Por outro lado, Rorty e Feyerabend provavelmente louvariam o ata- que de Quine a filosofia da ciencia tradicional, mas, pela razao ja aludida, critica- riam a limitatjao filosofka quer dos seus pressupostos quer dos seus resultados,

que era necessario elaborar uma filosofia nova ou uma religiao nova para dar conteudo a esta con- jectura sistematica." (IDEM, ibidem, p. 362)

Ver, neste sentido, o trabalho de Quine "Epistemology Naturalized", citado mais acima (nota 1). Quine defende expressamente que a sua epistemologia naturalizada e ainda, em certa medida, "filosofia da ciencia": "L'ancienne epistemologie aspirait a contenir, en un sens, la science de la nature, qu'elle aurait voulu construire a partir des donnes sensorielles. Inversement, dans sa nouvelle presentation, la science de la nature contient 1'epistemologie, a titre de chapitre de la psychologic L'ancienne relation de contenant a contenu subsiste tout de meme a sa facon. Nous cherchons comment le sujet humain, que nous etudions, postule des corps et projette sa physique a partir de ses donnees, et nous tenons compte que notre situation dans l'univers est juste la meme que la sienne. Notre entreprise epistemologique proprement dite, la psychologie dont cette entreprise est un chapi- tre, l'ensemble de la science de la nature dont la psychologie est un tome,- tout cela est notre propre construction ou notre propre projection a partir de stimulations analogues a celles dont nous faisions les honneurs a notre sujet epistemologique. II y a done relation de contenant a contenu, et, re'ei- proquement, bien qu'en des accept ions differentes, de 1'epistemologie dans la science de la nature, et de la science de la nature dans 1'epistemologie." (QUINE, W. v. O., "L'epistemologie devenue naturelle", in op. cit., p. 97, sub. nosso)

Ver, neste, Gibson, R. F., "Translation, Physics, and Facts of the Matter", in The Philosophy ofW. v. O. Quine, Ed. E. Hahn e P. A. Schilpp, La Salle, Illinois University, Open Court, 1986. pp. 139-154; e a resposta de Quine, "Reply to Roger F. Gibson", in ibidem, pp. 155-158. Ou ainda. Quine, W. v. O., "Let Me Accentuate the Positive", in Rereading Rorty, pp. 117-119. Sobre a critica do relativismo de Putnam ao relativismo, e particularmente as suas objeccoes a Rorty e a Feyera- bend, veja-se Putnam, H., Reason, Truth and History, Cambridge University Press, Cambridge, 1981, cap. V (trad, francesa de A. Gerschenfeld, Raison, Verite et Histoire, Ed. Les Editions de Minuit, Paris, 1984, pp. 1 19-143).

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emparceirando tanto o autor de Um Ponto de Vista Logico como o de O Realismo com Rosto Humano, em ultima analise, com a filosofia (da ciencia) tradicional.9 Finalmente, Rorty e Feyerabend eles mesmos discordariam entre si, o primeiro acusando a filosofia do segundo de ser expressao dos mesmos pressupostos epis- temologicos que, apesar de tudo, critica na filosofia da ciencia tradicional, e de conduzir nao so precisamente as mesmas consequencias que esta como, ainda, de lhes acrescentar o relativismo;10 e o segundo argumentando, possivelmente, que, se nao partisse desses pressupostos, a dita tarefa nao poderia ser acometida.1 !

Seja como for, dois aspectos fundamentals parecem caracterizar a ideia da morte da filosofia da ciencia:

1) Contra a filosofia da ciencia tradicional, a filosofia nao pode oferecer a fundacpao da ciencia ou do (suposto) "conhecimento cientifico" em geral, porque

a) nao existe qualquer base objectiva na realidade de um tal "conhecimen- to" e, portanto, qualquer meio de demarcar a "ciencia" da "nao-ciencia"; e, (a]) mesmo que essa base existisse, nao teriamos qualquer possibilidade de a conhe- cer, porque ela (dada a relatividade semantica que caracteriza a relac^ao lingua- gem/mundo em geral) seria essencialmente inderminada e, na pratica, inacessi- vel;12

9Rorty e claro sobre este ponto j a desde Philosophy and the Mirror of Nature. Veja-se A Filo-

sofia e o Espelho da Natureza, trad, cit., cap. IV, secgao 4, pp. 155-169, e cap. V, sec£ao 2, p. 1 17 e ss.. Em "Is Natural Science a Natural kind?", ele insiste na mesma perspective desta feita a propo- sito do problema da demarcagao: "Quine, and many other holists, persisted in the belief that the science-nonscience distinction somehow cuts culture at a philosophically significant joint." (ROR- TY, R., Objectivity, Relativism, and Truth, p. 47).

10De novo, veja-se A Filosofia e o Espelho da Natureza, cap. VI, secc.ao 2, especialmente pp. 212-213; e "Is Natural Science a Natural Kind?", in Objectivism, Relativism, and Truth, pp. 47-48. Rorty, neste ultimo texto, rejeita claramente a assimilacao da sua filosofia ao relativismo: "As far as I can see, relativism (either in the form of 'many truths' or 'many worlds') could only enter the mind of somebody who, like Plato and Dummett, was andecedently convinced that some of our true beliefs are related to the world in a way in which others are not." (IDEM, ibidem, p. 51) Veja-se sobre o assunto,- especialmente, pp. 5 1-53. 11

Feyerabend diz-nos muito pouco sobre as teorias de Rorty, em contraste com o que se passa no sentido oposto desde o inicio dos anos noventa. Na sua autobiografia (Killing Time. The Univer- sity of Chigaco Press, 1995) ha. entretanto, uma curiosa apreciagao de Rorty e da "communaute d'intellectuels", que "commence maintenant a me trouver quelque interet, ce qui veut dire qu'elle m'a eleve a sa hauteur, m'a contemple brievement pour me laisser tomber aussi sec." (FEYERABEND. P., Tuer le temps: une autobiographic Ed. du Seuil, 1996, p. 186)

a,) (tal como no alinea seguinte bl)pretende indicar a tese de Feyerabend, porque Rorty apresenta as suas ideias sobre a inexistencia de uma base objectiva para a ciencia independente- mente, de maneira geral, de um argumento holista. Isto nao significa que Rorty nao aceite este tipo de argumento e nao o utilize ocasionalmente, mas, antes, que ele nao o emprega por principio. Em

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b) a investigate) cientifica nao se caracteriza por qualquer metodo parti- cular que a orientaria e que a filosofia da ciencia teria por competencia estudar, e (bj), mesmo que um tal metodo existisse, ele proprio (tal como a suposta base

objectiva da ciencia) seria essencialmente indeterminado e, na pratica, inacessi- vel;13

Philosophy and the Mirror of Nature, Rorty nao se serve desse argumento para criticar a epistemo- logia, em contraste com Quine, talvez por considerar que o argumento holista implica certos pressu- postos (a existencia de uma realidade objectiva, ex hypothesis) que sao ja, de certa maneira, episte- mologicos. Em "Solidarity or Objectivity?", ele fala-nos de uma tradicao da objectividade "which centers around the notion of the search for Truth, a tradition which runs from the Greek philoso- phers through the Enlightenment", e que toma "the idea of Truth as something to be pursued for its own sake." (RORTY, R., Objectivity, Relativism, and Truth., p. 21) "Those who wish to ground solidarity in objectivity... have to construe truth as correspondence to reality. So they must cons- truct a metaphysics which has room for a special relation between beliefs and objects which will differenciate true from false beliefs. They also must argue that there are procedures of justification of belief which are natural and not merely local. So they must construct an epistemology which has room for a kind of justification which is not merely social but natural, springing from human nature itself, and made possible a link between that part of nature and the rest of nature." (IDEM, ibidem, p. 22) - Feyerabend nao tern os escrupulos de Rorty. Ele reconhece, e certo, aquilo a que chama o "principio da autonomia dos factos", mas este e simplesmente uma condicSo regulativa da possibili- dade da investigacao cientifica, porque "Nao so a descricao de todo o facto isolado depende de uma teoria (que pode ser, e claro, muito diferente da teoria a por a prova), mas existem tambem factos que nao podem ser descobertos excepto com o auxilio de alternativas a teoria a por a prova, e que se tornam inacessiveis assim que essas alternativas sao excluidas." (FEYERABEND, P., op. cit., p. 45)

Rorty insiste muito menos do que Feyerabend sob os aspectos epistemologicos da questao. Em "Is Science a Natural Kind?", a utilizacao do argumento holista a respeito do metodo ocorre de passagem, a proposito do problema da demarca9ao: "Hempel and others, however, showed that demarcation was not as easy it had first appeared. The increasing plausibility of Neurathian holism, once it had been revivified by Quine's Two Dogmas' and by Wittgenstein's Philosophical Investi- gations, further undermined attempts to isolate 'the scientific method', because it undermined attempts to isolate piecemeal connections between scientific theories and the world." (RORTY, R., op. cit., p. 46) - Feyerabend poe o acento sobre os aspectos epistemologicos da rejeicao do metodo. O seu anarquismo metodologico, "nao e so um facto da historia da ciencia. Trata-se de algo ao mesmo tempo racional e absolutamente necessdrio no progresso do conhecimento. Mais especifi- camente, e possivel demonstrar o seguinte: dada qualquer regra, embora 'fundamental' ou 'racional', ha sempre circunstancias em que e aconselhavavel nao so ignorar a regra, como contraria-la. Por exemplo, ha circunstancias em que e aconselhavel introduzir, elaborar e defender hipoteses ad hoc, ou hipoteses que contrariam resultados experimentais bem estabelecidos e geralmente aceites, ou hipoteses cujo conteudo e menor do que o conteudo da alternativa existente e empiricamente ajusta- da, ou hipoteses inconsistentes nos seus proprios termos, e assim por diante." (FEYERABEND, P., op. cit., p. 28)

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c) em consequencia, os pressupostos epistemologicos e ontologicos da filo- sofia da ciencia tradicional nao fazem mais sentido e devem ser claramente rejei- tados;14

2) A ciencia nao e mais do que um produto historico, cultural e social, da evolu9ao da nossa civiliza9ao, tal como a magia ou a religiao, e nao constitui, pois, qualquer saber privilegiado, mas, em ultima analise, uma ideologia entre outras. (A suposta objectividade cientifica, bem como a epistemologia e a ontolo- gia que justificaram a sua existencia ao longo da historia da filosofia desde Des- cartes, nao sao mais, precisamente, do que esse tipo de ideologia.)15

Um ponto essencial em toda esta problematica, sobre o qual nos ocupare- mos ao longo deste trabalho, e que, sem duvida, a (suposta) morte da filosofia da ciencia nao e um resultado aleatorio da evolucpao recente da filosofia analitica mas uma consequencia inevitdvel da evolu9ao do movimento analitico ao longo da historia da filosofia analitica. Se a filosofia analitica conclui hoje em dia que a

14Trata-se de uma tese que decorre das afirmacoes anteriores. Feyerabend (veja-se, mais aci- ma, nota 5) serve-se, geralmente, do mesmo tipo de argumento holista que levou Quine a dizer que as entidades da ciencia sao postyladas: "For my part I do... believe in physical objects and not in Homer's gods... But in point of epistemological footing the physical objects and the gods differ only in degree and not in kind. Both sorts of entities enter our conception only as cultural posits. The myth of physical objects is epistemological superior to most in that it was proved more efficacious than other myths as a device for working a manageable structure into the flux of experience." (QUINE, W. v. O., "Two Dogmas of Empiricism", in From a Logical Point of View, Ed. Harvard University Press, Cambridge-Massachusetts/London, 1994 (la ed. 1953), p. 44). 1 A epistemologia da ciencia, em geral, e claramente identificada por Feyerabend com uma "ideologia" ao servic.o de interesses sociais, politicos e culturais em geral (veja-se, deste ponto de vista, o cap. 20 de Against Method (trad, portuguesa, p. 328 e ss.). Rorty parece concordar com o conceito de "ideologia", de Feyerabend, quando ele proprio subscreve as implicacoes sociais e culturais que Feyerabend tira do seu anarquismo metodologico, embora nao subscreva aquilo que considera ser o "relativismo de Feyerabend": "I think that Feyerabend is right in suggesting that until we discard the metaphor of inquiry, and human activity generally, as converging rather than proliferating, as becoming more unified rather than more diverse, we shall never be free of the motives which once led us to posit gods.... Feyerabend seems to me right in trying to develop such a self-image for us, but his project seems misdescribed, by himself as well by his critics, as 'relati- vism'." (RORTY, R., op. cit., pp. 27-28). E, logo a seguir, Rorty coloca o problema em termos sociais e politicos: "I think that putting the issue in moral and political terms, rather than in episte- mological or metaphilosophical terms, makes clearer what is at sake. For now the question is not about how to define words like 'truth' or 'rationality' or 'knowledge' or 'philosophy', but about what self-image our society should have itself. The ritual invocation of the 'need to avoid relativism' is most comphreensible as an expression of the need to preserve certain habits of contemporary Euro- pean life.... So the real question about relativism is whether these same habits of intellectual, social, and political life can be justified by a conception of rationality as criterionless muddling through, and by a pragmatist conception of truth." (IDEM, ibidem, p. 28)

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filosofia da ciencia morreu, tal nao se deve simplesmente a reflexao esfor9ada de Rorty e de Feyerabend, mas, essencialmente, a certos pressupostos filosoficos que informaram o desenvolvimento da propria filosofia analitica. Dito por outras pa- lavras: Rorty e Feyerabend nao sao, na realidade, os verdadeiros autores dessa morte da filosofia da ciencia, mas, antes, os seus agentes historicos mais visiveis; eles nao fizeram mais, em certa medida, do que levar ate ao seu fim a explicita9ao historica progressiva de pressupostos que incarnam, na propria constitui9ao do que hoje entendemos por "filosofia analitica", uma morte anunciada da filosofia da ciencia, para nao dizer, como por certo diriam Rorty e Feyerabend, da filosofia em geral. Este facto e frequentemente ignorado na literatura analitica e em geral, porque, como se sugerira neste trabalho, a filosofia analitica alheou-se persisten- temente nas ultimas decadas da problematica da sua propria historia e da historia da filosofia em geral.

Que a ideia da morte da filosofia da ciencia, tal como acima a caracteriza- mos, e um resultado complexo da conjugacpao de varios factores historico- filosoficos aparentemente isolados, e algo que nao surpreende um estudioso mais atento, dado que, sem aquilo a que Quine chamou a "indetermina9ao da referen- da" e Kuhn a "incomensurabilidade dos paradigmas", teria sido impossivel con- cluir a tese a);16 de igual modo, sem a conhecida oposi9ao da filosofia inglesa da linguagem ordinaria a epistemologia e a ontologia, e oposi9oes similares no cam-

l6Recorde-se que Kuhn propos o conceito de incomensurabilidade em The Structure of Scien- tific Revolutions, em 1962, e que o conceito de " indeterminacy da referenda", de Quine, aparece em alguns trabalhos do autor tambem do inicio dos anos sessenta, e publicados em Ontological Relativity (veja-se, mais acima, nota 1, e na traducao francesa citada, os cap.s 1 e 2). Ambos os conceitos tern uma significacjio semantica e holista, e, em certa medida, conduzem as mesmas con- sequencias. Para Kuhn, os paradigmas "are the source of methods, problem-field, and standards of solution accepted by any mature scientific community at any given time." Isto quer dizer que eles medeiam de forma essencial a pratica cientifica no interior de cada comunidade, ou que essa pratica resulta fundamental mente da propria natureza do paradigma. "As a result, the reception of the new paradigm often necessitates a redefinition of the corresponding science" e "The normal-scientific tradition that emerges from a scientific revolution is not only incompatible but often actually inco- mensurable with that which has gone before." (KUHN, T., The Structure of Scientific Revolutions, Ed. International Encyclopedia of Unified Science, vol. 2, n° 2. 1970, p. 103). A tese da incomensu- rabilidade significa, pois, que nao e possivel traduzir os termos de um paradigma nos termos de um outro. Quine, de modo similar, aceita que nao faz sentido falar dos objectos de uma teoria, dada a relatividade semantica teoria-objectos (e o que significa a sua "indeterminacao da referenda"). Mas recusaria a tese extrema de que duas teorias a respeito dos mesmos objectos sao incomensuraveis entre si: "il n'y a pas de sens a dire ce que sont les objects d'une theorie, on peut tout juste dire comment interpreter ou ̂ interpreter cette theorie dans une autre", ou seja, dizer "comment une theorie d'objects est interpretable ou reinterpretable dans une autre, non point de vouloir dire ce que sont les objects d'une theorie, absolument parlant." (QUINE. W. v. O., "Relativite de ontologie", in Relativite de I 'ontologie et quelques autres essais, p. 63).

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O Fim da Filosofia da Ciencia na His tor ia da Filosofia Analitica 403

po do positivismo logico no que respeita particularmente a ontologia, nao teria sido possivel concluir a tese c), nem, provavelmente, as versoes da tese a) pro- postas por Quine e por Kuhn respectivamente, ou, pelo menos, estas versoes nao seriam o que sao;17 por outro lado, sem o falsificacionismo de K. Popper e os "programas de investigacjao" de I. Lakatos, a par da abordagem sociologica de Kuhn, dificilmente a tese b) seria concebida;18 finalmente, sem o naturalismo anti- fundacionalista de O. Neurath ou o pragmatismo de J. Dewey qualquer uma das teses anteriores estaria longe de poder vingar e obter o sucesso que indiscutivel- mente gozam hoje em dia.19 Mais uma vez, entretanto, importa observar que a

17Este, precisamente, e um dos temas do presente trabalho, sobretudo da secc.ao 2: como ler o destino da filosofia da ciencia na historia da filosofia analitica.

Feyerabend reconhece, de maneira geral, a divida da sua filosofia para com Kuhn e Lakatos. Sobre o primeiro, ele observou, entretanto, que a ideia de incomensurabilidade na sua filosofia nao se deve ao autor de The Structure of Scientific Revolutions, mas foi descoberta independentemente de Kuhn tao cedo quanto 1952. (Veja-se Feyerabend, P., "Concluding Unphilosophical Conversati- on", in Beyond Reason: Essays on the Philosophy of P. Feyerabend, p. 526). Mas a respeito de Lakatos, em contraste, ele sempre reconheceu claramente essa divida, particularmente quanto a noc.ao lakatiana dos "programas de investigacao" (Veja-se Contra o Metodo, p. 9). Quanto a Popper, finalmente, a sua atitude e de claro menosprezo. Ele observa a respeito da importancia concedida ao falsificacionismo de Popper nos anos cinquenta: "A filosofia deve estar num estado desesperado... se essas trivialidades podem ser consideradas descobertas fundamentais." {Ibidem, p. 355) O facto e que, embora o falsificacionismo de Popper nao rejeitasse completamente a ideia de metodo, ele atacava os fundamentos epistemologicos dessa ideia em geral, ai incluindo os da propria noc.ao popperiana de metodo. Parece ter sido este, alias, o principal contributo de Popper para os progra- mas de Lakatos. (Veja-se Lakatos, I., "Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes", in Criticism and the Growth of Knowledge, Ed. I. Laktos & A. Musgrave, Cambridge University Press, 1992, secc.ao 2, p. 93 e ss.). Rorty, por outro lado, ignora geralmente as contribui- coes propriamente epistemologicas (nao incluindo, pois, a contribuic.ao sociologica de Kuhn) para as suas concepc.6es. Uma referenda importante a Popper, contudo, pode ler-se em "Solidarity or Ob- jectivity?", onde Rorty elogia a atitude popperiana a respeito da verdade: "This attitude toward truth, in which the consensus of a community rather than a relation to a nonhuman reality is taken as central, is associated not only with the american pragmatic tradition but with the work of Popper and Habermas." (RORTY, R., op. cit., p. 23, nota 1)

Dewey e uma referenda constante nos trabalhos de Rorty, e, nalguns casos, o seu contributo e visto ao lado do de Neurath: "He [Dewey] was... constantly criticized, from the positivist left, for a light-minded relativistic instrumentalism which paid too little attention to 'hard facts', and for trivializing the notion of 'truth' by this neglect. [Nota 32: "so, simultaneously, was Neurath-who is beginning to get a better press these days.]" (RORTY, R.. "Pragmatism, Davidson and Truth", in ibidem, p. 32). Tal como Rorty geralmente nao faz referencias historicas aos contributos epistemo- logicos para as suas teorias. Feyerabend, por sua vez, ignora com frequencia as referencias aos contributos propriamente filosoficos para as suas, como e o caso de Dewey ou de Neurath. (Uma referenda indirecta a Neurath, em Contra o Metodo, p. 198, com base num texto de Popper, pode servir como exemplo disso mesmo). - Por outro lado, o contributo de Popper para a tese (2) dificil- mente pode ser ignorado (embora seja isso precisamente que aconteca nos trabalhos de Feyerabend

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ideia de um fim da filosofia da ciencia e algo que devemos compreender histori- camente nao apenas a luz desse contexto analitico relativamente recente, a que acabamos de aludir, mas, fundamentalmente, a luz dos pressupostos fundadores da propria filosofia analitica. Trata-se aqui, com efeito, de mostrar a genealogia dessa ideia ao longo da evolu9ao da filosofia analitica, e de justificar a tese de acordo com a qual ela decorre naturalmente dos pressupostos referidos, assumin- do diferentes expressoes historico-filosoficas, mas sem se alterar de forma radical.

1. Como ler a historia da filosofia analitica para compreender o destino da filosofia da ciencia

Uma das novidades fundamentais da filosofia analitica contemporanea na historia da filosofia e a sua reiterada pretensao nas duas ultima decadas de, apesar de todas as dissensoes ou disputas internas no passado e no presente, constituir um movimento historicamente continuo e filosoficamente solidario, que sera a expressao por excelencia da possibilidade do trabalho filosofico no interior de uma comunidade unida por um programa de investiga?ao mais ou menos consen- sual, em contraste, precisamente, com o caracter desarticulado e individualista da chamada "filosofia continental" em geral, que faz com que a filosofia comece iterativamente cada vez que um novo sistema filosofico vem a luz do dia.20 E correntemente suposto que a filosofia analitica nao so teve os seus fundadores numa epoca relativamente recuada (Bolzano e Brentano, Frege, Russell ou o Wi- ttgenstein do Tractatus, consoante as versoes), como ainda que eles Ian9aram as funda9oes nao apenas desta ou daquela concep£ao filosofica especial, que os ca- racterizaria, mas da propria filosofia analitica enquanto tal, ou, o que significa o mesmo, que eles criaram as bases do desenvolvimento do pensamento analitico

e Rorty), porque uma das suas teses centrais, em 1945, consiste justamente em mostrar que a ciencia e um fenomeno social, cultural e politico em sentido amplo. (Veja-se Popper, K., The Open Society and Its Enemies, Ed. Routledge & Kegan Paul, London, 1974, 2° vol., especialmente, caps. 23 e 24). Popper nao aceitaria, contudo, que a ciencia seja apenas um tal tipo de fenomeno, quer dizer, ele nao subscreveria a tese de que nao e possivel demarcar a ciencia das outras areas da cultura. Veja-se Popper, K., The Postcript of the Logic of Scientific Discovery, Ed. Hutchinson, London, 1983, cap. II (trad, francesa de A. Boyer e D. Andier, Le re'alisme et la science: Post-scriptum a la Logique de la de'couverte scientifique, Ed. Hermann, Paris, 1990, cap. II, "La demarcation", pp. 177-212). " Este e um tema recorrente na historiografia filosofica contemporanea. Veja-se, por exemplo, West, D., An Introduction to Continental Philosophy, Ed. Polity Press, Cambridge, 1996. Dois exemplos recentes, do lado continental, sao La Philosophie Anglo-Saxone, Dir. de M. Meyer, Ed. PUF, Paris, 1994; e Engel, P., La dispute: une introduction a la philosophie analytique, Ed. Les Editions de Minuit, Paris, 1997.

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ele mesmo ate aos nossos dias. Neste sentido, as diferentes etapas da evolmpao do movimento analitico serao outras tantas contribui9des fundamentais para esse desenvolvimento, af incluindo a propria apercep<?ao mais ou menos final de al- guns filosofos (como Rorty ou Feyerabend) de que a filosofia analitica (e, com ela, a filosofia em geral) teria chegado ao seu fim, abrindo-se, assim, uma nova era na historia da filosofia ocidental.21

De uma maneira geral, os filosofos analiticos contemporaneos nao se aper- ceberam ainda da natureza claramente meta-historica e meta-filosofica desta re- presenta9ao da historia da sua propria filosofia. Um primeiro aspecto essencial que importa sublinhar, deste ponto de vista, e que essa representa9ao e relativa- mente recente: os seus autores declarados, em meados dos anos setenta, sao M. Dummett, com o livro Frege: Filosofia da Linguagem?2 e R. Rorty, alguns anos depois, com o livro (ja referido) A Filosofia e o Espelho da Natureza. Antes de Dummett e de Rorty, que nos oferecem duas versoes dessa representa9ao geral- mente diferentes mas complementares em varios pontos fundamentais, os filoso- fos analiticos nao tinham, de facto, pensado a filosofia analitica na historia da filosofia em geral, ou, se assim se preferir, nao tinham pensado historicamente a filosofia analitica. Na verdade, como um estudo minucioso poderia mostrar, so come9a a existir "filosofia analitica" e a utilizar-se sistematicamente, sem hesita- 9oes e escrupulos historiograficos, um tal conceito, em rigor, poucos anos antes dos livros de Dummett e de Rorty.23 Uma outra forma de enunciar esta ideia, que tern um largo acolhimento nos livros de Dummett e de Rorty que foram mencio- nados, e dizer que a representacjao dos filosofos analiticos da historia da sua pro- pria filosofia antes desses autores, e particularmente aquela que nos e oferecida pela filosofia inglesa da linguagem ordinaria, e manifestamente anistorica.24 Nao

21Veja-se Rorty, R., A Filosofia e o Espelho da Natureza, cap. VIII, pp. 277-304, especial- mente, seccao 5.

"Dummett, M., Frege: Philosophy of Language, Ed. Duckworth, Worcester/London, 1973 (doravante aqui citado na edicjio de 1 98 1 ).

G. von Wright foi um dos primeiros a fazer notar que, enquanto os conceitos de "analise fi- losofica" e de "analise conceptual" eram vulgarmente utilizados desde a epoca do positivismo logico vienense, o conceito de "filosofia analitica" so entrou no uso corrente, surpreendentemente, muito mais tarde, por volta dos finais dos anos cinquenta. (Veja-se von Wright, G., "Analytic Philosophy: a Historico-Critical Survey", in The Tree of Knowledge and Other Essays, Leiden, 1993, p. 41 e ss..) Para alguns esclarecimentos complementares sobre o assunto, veja-se Hacker, P. M. S., Wittgens- tein's Place in Twentieth-century Analytic Philosophy, Ed. Blackwell, London, 1996, nota2.

24Rorty alude indirectamente ao assunto, por diversas vezes, em Philosophy and the Mirror of Nature. Veja-se, por exemplo, trad, cit., "Prefacio", pp. 19-20. Similarmente, quanto a Dummett, veja-se Dummett, M, op. cit., cap. 19, p. 665 e ss.. Um exemplo classico dessa visao anistorica da historia da analise por parte da filosofia inglesa da linguagem ordinaria, e Urmson, J. O., "Histoire

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406 Revista Portuguesa de Filosofia

se defende e justifica ai numa perspectiva historiografica, ao contrario das repre- senta96es mais recentes (incluindo as de Dummett e de Rorty), que haja uma fun- daqao da filosofia analitica enquanto tal por qualquer dos filosofos-fundadores acima mencionados, e muito menos, ainda em contraste com essas representa9oes, que a filosofia analitica deva regressar a qualquer um deles em ordem a repensar a sua propria possibilidade de desenvolvimento (Dummett), ou, como tambem e sugerido, em ordem a finalmente compreender que, de facto, tera chegado ao terminus de um tal desenvolvimento, restando-lhe abrir caminho para o que vira a seguir (Rorty)." Resumidamente: ate ao final dos anos sessenta, e, mais particu- larmente, ate as representa9des de Dummett e de Rorty, o positivismo logico (americano, de maneira geral, depois da sua epoca vienense), a filosofia inglesa da linguagem ordinaria e o pragmatismo americano, quer dizer, as tres correntes principais do movimento analitico, conviviam entre si com a mesma animosidade que separa escolas filosoficamente diferentes e sem historia, e nao, seguramente, com a cumplicidade de quern tern, indirectamente, uma qualquer origem comum; o merito de Dummett e de Rorty, em grande parte, consistiu precisamente em terem procurado oferecer a essas tres correntes, cada um a seu modo, uma repre- senta9ao historica comum que as constituia como "filosofia analitica", ao mesmo tempo que dotavam esta ultima, dos respectivos pontos de vista, de um programa de investiga9ao igualmente comum.

A "viragem linguistica", que e suposto constituir a etapa inicial e fundadora da filosofia analitica com Frege e/ou com Wittgenstein, por exemplo, e, na verda- de, um conceito introduzido por Rorty em 1967, alguns antes de A Filosofia e o Espelho da Natureza, na introdu9ao de A Viragem Linguistica: Ensaios Recentes sobre o Metodo Filosofico.26 Por outras palavras, e pondo esta problematica na unica linguagem em que pode ser verdadeiramente compreendida por agora (a historiografica): a "viragem linguistica" da filosofia analitica comeqa de facto com

de l'Analyse", in La Philosophie Analytique, Cahiers de Royaumont, Ed. de Minuit, Paris, 1962, pp. 11-22.

25Nao ha para Urmson, como nao ha para os filosofos ingleses da linguagem ordinaria em ge- ral durante os anos cinquenta e sessenta, "fundadores" da filosofia da analise (ai incluindo Wi- ttgenstein). Esta nascera mais contra a "filosofia classica" do que propriamente a favor desta ou daquela tese particular em materia de filosofia da linguagem. Veja-se de Urmson, para alem do trabalho citado na nota anterior, Philosophical Analysis: Its Development Between the Two World Wars, Ed. Clarendon Press, Oxford, 1956. "

Veja-se The Linguistic Turn: Recent Essays in Philosophical Method, Ed. R. Rorty, The University of Chicago Press, Chicago e London, 1975 (la ed. 1967), "Introduction", pp. 1-39. Rorty ele proprio foi buscar o conceito de "linguistic turn" a G. Bergmann. Veja-se Bergmann, G., "Logi- cal Positivism, Language, and the Reconstruction of Metaphysics", in The Linguistic Turn, pp. 63- -71, especialmente, pp. 64-65.

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Rorty, e so num sentido meta-historico e meta-filosofico, que importa analisar, e que Frege ou Wittgenstein podem ser creditados, como o sao correntemente hoje em dia, com a descoberta do continente analitico. O que a "viragem linguistica" significa essencialmente e a projec9ao da filosofia analitica na historia da filoso- fia, e a necessidade de repensar uma origem historica comum, mais ou menos programatica, para uma filosofia analitica a "constituir" fundamentalmente. De igual modo, a geografia filosofica deste continente a explorar, nomeadamente, a clara identifica9ao do pensamento analitico com uma via "pura" de investiga^o, quer dizer, com uma investiga<?ao que se pretendia completamente livre de pres- supostos epistemologicos e psicologicos (em contraste com o que se passaria na filosofia tradicional), e originalmente um programa de Dummett e de Rorty para a filosofia analitica nos dois livros acima mencionados, o qual, por razoes essenci- almente meta-historicas e meta-filosoficas, ambos atribuem a Frege.27 Finalmente, o diagnostico da crise que impediu que a filosofia analitica, no passado, se apre- sentasse como um movimento solidario e orientado por uma programa de investi- ga9ao comum, e ainda apresentado nesses livros, e uma mesma causa fundamen- tal e apontada nas proprias origens da filosofia analitica: a contaminafao do pen- samento filosofico pelos pressupostos fundacionalistas da epistemologia e da metafisica que lhe esta associada (contamina9ao que teria uma origem mais ou menos remota, em Descartes e em Kant, e uma outra relativamente recente e muito mais actual, em Russell).28

Esta fffunda9aoff da filosofia analitica, por Dummett e Rorty, nao foi tao inocente e desinteressada como, a primeira vista, pode parecer. Em ordem a apre- sentar-se historicamente no ambito mais geral da historia da filosofia ocidental, e a justificar quer a sua existencia anterior mais ou menos errante quer a possibili- dade de um ab initio, a filosofia analitica (atraves de Dummett e de Rorty) neces- sitava, ja o dissemos, de conceber a sua funda9ao e, portanto, a funda9ao da sua propria historia; e um tal desiderato passava fundamentalmente pela projec9ao na historia da filosofia desse programa de que falamos mais acima e do diagnostico das causas fundamentais da crise que, anteriormente, impediram a filosofia anali- tica de se constituir enquanto tal, a que tambem ja nos referimos. O resultado fundamental desta projec9ao foi a idealiza9ao filosofica de um periodo inicial em que era suposto Frege ter fornecido as funda96es da filosofia analitica atraves do programa referido e, em contraste, Russell ter contaminado o desenvolvimento

27Dummett e Rorty sao ambos apologistas de um regresso a Frege, como se disse, mas Rorty, ja desde The Linguistic Turn, poe a enfase na necessidade de uma filosofia pos-analitica.

28Veja-se Dummett, M., op. cit., cap. 19, "Frege's Place in the History of Philosophy", sobre- tudo, p. 667 e ss.; e Rorty, R., A Filosofia e o Espelho da Natureza, cap. VI, "Epistemologia e Filo- sofia da Linguagem", p. 203 e ss..

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posterior do movimento analitico com certos pressupostos epistemologicos espii- rios, que teriam corrompido de forma mais ou menos decisiva esse desenvolvi- mento.29 Urn tal periodo e, na verdade, uma proto-historia, ou, se assim se prefe- rir (utilizando a linguagem mais recente de Rorty e de Feyerabend), faz parte es- sencialmente da "ideologia analitica" que visou, com o Dummett e Rorty dos anos setenta, a legitimagao historica e filosofica, e, de maneira geral, a Iegitima9ao social e institucional, do que ambos chamaram, de perspectivas diferentes, "filo- sofia analitica'1.30 Indo mais longe, Dummett e Rorty sao os primeiros autores de uma serie de proto-historias da filosofia analitica que, com outros autores e dife- rentes fundadores, programas e diagnosticos para a mesma, tern caracterizado a historiografia analitica nos ultimos vinte anos.31 (No que concerne ao conceito de "ideologia", utilizado frequentemente por Feyerabend a respeito da ciencia, falar de "ideologia analitica" e talvez surpreendente e curioso, mas nao deixa de ser, historica e filosoficamente falando, perfeitamente correcto.)32 Seja como for, as

29 A filosofia de Russell e uma figura central tanto para Dummett como para Rorty quanto a essa corrupcao epistemologica da filosofia analitica. Mas, atribuindo a Russell um tal papel, ambos os autores nao fazem mais do que retomar uma velha acusacao da filosofia inglesa da linguagem ordinaria. Veja-se, a este respeito, Urmson, J. O., "Histoire de l'Analyse", p. 19 e ss..

A ideia de que certas vertentes do movimento analitico, como a filosofia inglesa da lingua- gem ordinaria, procuraram atraves da filosofia uma legitimagao institucional, foi sugerida inicial- mente por E. Gellner, em Words and Things. A Critical Account of Linguistic Philosophy, and a Study in Ideology, with an Introduction by Bertrand Russell, Ed. Victor Gollancz, Bungay, Suffolk, 1959. Mais recentemente, ela foi retomada por J. Ree, em "La philosophie anglaise des annees cinquante", in Philosophie analytique et histoire de la philosophie, Ed. Jean-Michel Vienne, Ed. J. Vrin, Paris, 1997, pp. 17-60.

P. M. S. Hacker formulou recentemente a proposta de uma dessas proto-historias, que poe a filosofia de Wittgenstein claramente na genese da filosofia analitica (veja-se o livro citado mais acima na nota 23). Mas outras proto-historias foram apresentadas nos ultimos anos, geralmente em conexao com a historiografia filosofica sobre o positivismo logico vienense. E o caso de R. Haller, em Studien zur Osterreichischen Philosophie, Ed. Rodopi, Amsterdam, 1 979, que ve a genese da filosofia analitica em Bolzano e em Brentano, ou de A. Coffa, em The Semantic Tradition from Kant to Carnap: To the Vienna Station, Ed. L. Wessels, Cambridge University Press, 1991, que, como Haller, a incarna igualmente na filosofia austriaca da ultima metade do seculo XIX. Uma outra fonte de pensamento claramente proto-historico, sem contar com os inumeraveis estudos sobre a filosofia de Frege, sao certos estudos no ambito da filosofia de Russell, como os de P. Hylton, e particular- mente o seu livro Russell, Idealism, and the Emergence of Analytic Philosophy, Ed. Clarendon Press, Oxford, 1990.

"O que Feyerabend disse a respeito da "racionalidade cientifica", tendo em mente a sua "orien- tacjio quantitative a partir da epoca moderna, pode (e deve, a nosso ver) ser aplicado quase literal- mente a propria filosofia analitica: "Tal como a ascensao do racionalismo ocidental... esta orienta- cao nao foi o resultado de uma investigacao empirica; foi parte de um desenvolvimento social com- plexo ainda nao inteiramente compreendido. Ou, para dizer o mesmo de outro modo, mais 'subjecti- vamente', foi o resultado de interesses novos e diferentes: na prdtica, 'inteligencia' ou 'racio-

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proto-historias de Dummett e de Rorty projectaram claramente a filosofia analiti- ca na historia, oferecendo a historiografia analitica posterior, em geral, uma her- meneutica da historia da analise que nao existia anteriormente e que, de diferentes modos, veio a informar decisivamente as investiga9oes historicas especiais sobre cada urn dos diferentes filosofos analiticos, e, em particular, sobre Russell e sobre Frege.

Este ultimo aspecto e fundamental para se poder ler correctamente a histo- ria da filosofia analitica. Nao ha, importa salienta-lo, uma historia da filosofia analitica inocente ou gratuita: ela tern sido essencialmente um instrumento de legitima^o historica e filosofica, com implica9oes institucionais e sociais evi- dentes, por parte do movimento analitico contemporaneo. Dummett e Rorty so parcialmente alteraram o caracter anistorico da filosofia analitica que os precedeu, entre outras razoes porque, evidentemente, nao puderam perspectivar na historia as suas proprias representa9oes da historia da filosQfia analitica; na verdade, a representa9ao da historia da filosofia analitica de cada um continua a ser essenci- almente anistorica;33 e o mesmo, poderia dizer-se, e valido para as outras proto- historias da filosofia analitica conhecidas, depois das proto-historias desses filoso- fos. Fazer de Frege o fundador dessa filosofia (ou de Russell, ou de Wittgenstein), e fazer mitologia e, no fundo, ideologia, se pensarmos (como Feyerabend e o Rorty dos anos oitenta pensam a respeito da ciencia) na inevitavel auto- Iegitima9ao que essa e outras proto-historias continuam a trazer para os filosofos analiticos e as respectivas concep9oes da analise; nao e algo muito diferente, com

nalidade1, significa concorddncia com os interesses fundamentals de um grupo, cultura ou civiliza- cdo, e a 'realidade ' e determinada por esses interesses; nao se trata de uma entidade culturalmente independente" (FEYERABEND, P., op. cit., p. 339, o ultimo sublinhado e nosso).

33Esse caracter anistorico e patente sobretudo no facto de que a referida representacao consti- tui, como dissemos, uma projeccjio na historia de pressupostos meta-historicos e metafilosoficos que estao longe de ter uma verdadeira expressao historica. Neste sentido, o Frege de uma filosofia "pura", de Dummett e de Rorty, isto e, o Frege que desenvolveria uma filosofia completamente isenta de pressupostos epistemologicos, parece existir apenas para esses autores (nao na historia real das ideias). (Veja-se, sobre esta problematica, Sluga, H.. Goblot Frege, Ed. Routledge and Kegan Paul, London, 1980, pp. 1-7). Similarmente. o Russell de Dummett e de Rorty parece estar longe de corresponder ao verdadeiro Russell, isto e, ao Russell historico, e ser, de facto, uma simples carica- tura: o primeiro e representado por vezes como um fllosofo que aceitaria, sem mais, a tradicao filosofica, cartesiana ou kantiana. em materia de teoria de epistemologia, sem lhe acrescentar nada de novo do ponto de vista da sua propria filosofia; ou ainda, e caricaturado como um propagandista incansavel, no seio do movimento analitico, de uma concepcao erronea da analise. Qualquer uma destas leituras nao tern uma verdadeira justificacao historica (Dummett e Rorty, alias, nao se preo- cupam muito com um tal justificacao, academicamente falando), antes parece decorrer de uma leitura corrente de Russell que era propria dos filosofos ingleses da linguagem ordinaria durante os anos cinquenta e sessenta, e que tanto Dummett como Rorty aceitam sem discussao.

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as devidas distancias historicas, das projec9oes magicas que antecederam a racio- nalidade cientifica.34

Agora, essa legitimatpao ideologica da filosofia analitica parece ter essen- cialmente por finalidade, pelo menos desde a filosofia inglesa da linguagem ordi- naria, nao apenas a rejei9ao da metafisica e da ontologia em geral, mas a rejeitjao da propria epistemologia. E a razao porque isso acontece e que esta ultima rejei- 9ao e, aparentemente, um dos pressupostos fundamentals da possibilidade da "vi- ragem linguistica" em geral: fazer da linguagem o verdadeiro cerne da reflexao filosofica passa, com efeito, pela rejei9ao da dissocia9ao entre a linguagem e o mundo, a qual e precisamente, como sabemos, um dos pressupostos fundamentais da teoria do conhecimento "tradicional". Mas, se de facto e assim, sera essencial- mente a rejei9§o da epistemologia e, com ela, a rejei9ao da propria filosofia da ciencia, que parece estar na base da Iegitima9ao historico-filosofica da filosofia analitica, ou, como tambem ja lhe chamamos, da "ideologia analitica". E isso que veremos na sec9ao seguinte.

2. Como ler o destino da filosofia da ciencia na historia da filosofia analitica

Um aspecto essencial que e comum as proto-historias de Dummett e de Rorty, a que ja aludimos, e a clara rejei9ao de que a epistemologia possa constitu- ir, de algum modo, um dominio da filosofia analitica, ou de que ela tenha qual- quer coisa a ver com as funda9oes dessa filosofia. Falando de "epistemologia" estamos a falar nao apenas de teoria do conhecimento, mas tambem, e principal- mente, de filosofia da ciencia; porque um dos pressupostos fundamentais tanto de Dummett como de Rorty, nos anos setenta, e que a teoria do conhecimento esta na base da filosofia tradicional, por oposi9ao a filosofia analitica, e que a primeira apresentou-se, desde Descartes e particularmente desde Kant, essencialmente como filosofia da ciencia?5 Este ultimo conceito, entretanto, nao e explicitamente

j4A comparaQao entre ciencia e magia, recorde-se, e do proprio Feyerabend. Veja-se Feyera- bend, P., op. cit., p. 328 e ss.. J O conceito de "filosofia da ciencia", no caso de Descartes e de Kant, significa evidente- mente que a filosofia fornece as fundacoes metafisicas da ciencia (ou do conhecimento cientifico), e, atraves delas, do conhecimento em geral. Por isso, na leitura de Dummett e de Rorty o empreendi- mento cartesiano e kantiano tern por base, nao simplesmente ajustificacao da possibilidade da cien- cia empirica (a fisica), mas essa justificacao da possibilidade do conhecimento em geral. A relacao entre a filosofia da ciencia assim compreendida e as interpretacoes mais recentes da mesma, por exemplo, aquela que a referida leitura atribui (indevidamente) a Russell, assenta precisamente na teoria do conhecimento ou na epistemologia. E nesta perspectiva ampla de "ciencia" que Dummett

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utilizado por esses autores, por razoes que teremos oportunidade de analisar, a ideia geral sendo que ele identificar-se-a, em ultima analise, com o conceito de "epistemologia".36 O que Dummett e Rorty, cada um a seu modo, rejeitam clara- mente, e em ultima analise, pois, que a "filosofia da ciencia" possa constituir um dominio da investiga^o analitica, na justa medida em que a epistemologia em geral estara basicamente ao servi9o daquela: a "filosofia da ciencia", analitica- mente falando, nao fazia mais sentido para ambos esses autores.

Este fim da filosofia da ciencia para a filosofia analitica dos anos setenta nao e, entretanto, o primeiro certificado de obito na materia passado pelos filoso- fos analiticos; o seu interesse para nos aqui consiste no facto de que ele e, sem diivida, o primeiro certificado escrito a luz de uma representa9ao da historia da filosofia analitica. Em todo o caso, uma leitura mais atenta dos pressupostos his- torico-filosoficos que estao na base dessa representa9ao permite-nos por em evi- dencia a ideia, absolutamente essencial para os nossos propositos, de que, quando Dummett e Rorty certificaram nos respectivos programas para a filosofia analitica o fim da filosofia da ciencia, esta estava ha muito tempo morta para certas ver- tentes fundamentals do movimento analitico desde os anos cinquenta, no caso, para a filosofia inglesa da linguagem ordinaria e, em larga medida, para o que Dummett chamou, em A Verdade e Outros Enigmas, a "escola americana" (Qui- ne, Putnam, D. Davidson, etc.).37 E, neste ponto, e necessario abordar alguns as- pectos da historia mais ou menos oculta do movimento analitico entre os anos cinquenta e os livros de Dummett e de Rorty, nos anos setenta, que temos vindo a analisar. Veremos que a ideia de um fim da filosofia da ciencia, nessa epoca, e algo corrente. Nao nos referimos apenas a redu9ao da filosofia da ciencia a uma "epistemologia natural izada", feita por Quine no inicio dos anos sessenta, nem a

escreve: "Descartes had made the theory of knowledge the foundation of philosophy because he had conceived the task of philosophy as being that of introducing rigour into science (where 'science' is taken in a very general sense, as referring to the whole body of things we conceive ourselves to know). Descartes, like other rationalists after him, thought that it was necessary for all knowledge to achieve the condition that Euclid was thought to have conferred upon geometrical knowledge-to make it completely sharp and absolutely certain. If, in this process, certain things had passed for knowledge were exposed as not truly so, so much the better. Thus, for Descartes, the question 'What do we know?', was not only the starting-point of philosophical enquiry, but the central question of philosophy." (DUMMETT, M., Frege: Philosophy of Language, p. 676).

Tanto Dummett como Rorty, de facto, nao empregam em lado algum a expressao "filosofia da ciencia" nos livros que temos vindo a citar, servindo-se ambos sistematicamente da designac^o tradicional "epistemologia", que era geralmente adoptada pela filosofia inglesa da linguagem ordina- ria durante os anos cinquenta e sessenta.

37Veja-se Dummett M., "Can Analytical Philosophy be Systematic, and Ought it to Be?", in Truth and Other Enigmas, Ed. Duckworth, Worcester/London, 1978, p. 441 .

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sua visao holista da epistemologia em "Os Dois Dogmas do Empirismo", no prin- cipio dos anos cinquenta; temos em mente, mais geralmente, a filosofia britanica dessa epoca de maneira geral. Abordar a "Introdufao" de Rorty a A Viragem Lin- guistics deste ponto de vista, e um bom pretexto para corr^ar.

Uma das curiosidades filosoficas dessa edi9ao de Rorty e que o texto de Quine seleccionado para publica9ao sao algumas passagens do livro A Palavra e o Objecto, onde Quine retoma as teorias de Carnap a proposito da no<?ao de "ascen- sao semantica".38 Trata-se, para dizer a verdade, de um texto essencial, ainda hoje em dia, para os comentarios sobre Quine, mas nao pelas razoes que, provavel- mente, levaram Rorty a incluf-lo na sua edi9ao.39 Rorty ignorou expressamente quer "Os Dois Dogmas" quer outros textos de Quine onde a critica do positivismo logico vienense e feita na perspectiva da reformula9ao da concep9ao tradicional da filosofia da ciencia, e, mais precisamente, da naturaliza9ao da epistemologia. Possivelmente, ele fe-lo porque essas concep9des de Quine nao tinham a impor- tancia que come9ou a ser-lhes atribuida nos anos setenta; o filosofo americano, nessa altura, era uma figura menor do movimento analitico. Mas, com muito mais verosimilhan9a, ele fe-lo porque o fim da filosofia da ciencia, e nao apenas a re- formulagao desse conceito (por maior que fosse essa reformula9ao, como aconte- ce na filosofia de Quine), era algo inteiramente pacifico para a filosofia inglesa da linguagem ordinaria, e Rorty, que adoptava na altura as posi9oes claramente anti- epistemologicas de M. Black, J. Urmson e G. Ryle, entre outros, seguramente nao atribuia interesse filosofico as concep9oes relativamente isoladas de Quine e ou- tros filosofos da "escola americana".4

38Veja-se Quine, W. v. O., "Semantic Ascent", in The Linguistic Turn, pp. 168-172. O texto de Quine e retirado de Word and Object, The Massachusetts Institut of Technology Press, Cam- bridge-Massachusetts, 1960, pp. 270-276. O texto de Quine na edicao de Rorty e, alias, significati- vamente precedido de uma forte critica da revalorizacao analitica da ontologia geralmente defendida em Word and Object. Veja-se Cornman, J., "Language and Ontology", in The Linguistic Turn., pp. 160-167.

j9Rorty, como mostra a sua introducao a The Linguistic Turn, nao valorizava na altura nem muito nem pouco a problematica do holismo em filosofia; e e isso que esta essencialmente em questao na critica de Carnap feita por Quine em "Semantic Ascent". Veja-se sobre essa problemati- ca, por exemplo, Hookway, C, Quine: Language, Experience and Reality, Ed. Stanford University Press, Stanford, California, 1988; e Heal, J., Fact and Meaning: Quine and Wittgenstein on Philo- sophy of Language, Ed. Basil Blackwell, Oxford, 1989.

Quine, tanto quanto pudemos verificar, nao e referido uma unica vez na "Introducao" de Rorty a The Linguistic Turn. Em contraste, os filosofos ingleses da linguagem ordinaria e os positi- vistas logicos, isto e, os filosofos pertencentes aquelas correntes do movimento analitico que prati- camente deixaram de ter importancia no panorama filosofico contemporaneo, sao sistematicamente comentados.

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Esta interpreta9ao tem um forte acolhimento na "Introdi^ao" a A Viragem Linguistics Rorty passa em revista os pressupostos das diferentes vertentes inter- nas da filosofia britanica nos anos sessenta (pondo em evidencia o caracter con- flituoso desses pressupostos entre si), em ordem a avaliar das possibilidades de constitui9ao da filosofia analitica como tal, quer dizer, como um movimento su- bordinado coerentemente a um mesmo programa de investiga^o, que realizaria, finalmente, o desiderato da "viragem linguistica". A conclusao a que ele chega nao podia ser mais catastrofica: enquanto os filosofos analiticos nao depurarem completamente as suas investiga9des de todos os pressupostos de origem episte- mologica, essa possibilidade de constitui9ao esta claramente afastada, de tal modo que, a prazo, e a propria filosofia analitica que parece estar irremediavelmente condenada.41 Rorty nao justifica a luz da historia da filosofia analitica essa con- clusao, nem faz apelo para qualquer tipo de argumenta9ao de caracter semantico, como Quine, de modo a fundamental ja nao diremos a ideia da morte da filosofia analitica, que ele sugere explicitamente ao longo da sua "Introdu9ao", mas a ideia da morte da filosofia da ciencia e da epistemologia em geral.42 Em contraste, a sua argumenta9ao tem aquela mesma veia dogmatica e pouco filosofica das investidas dos filosofos da linguagem ordinaria contra a dita "filosofia tradicional", como Black ou como Urmson: analise de pressupostos "meta-filosoficos", como ele diz, contradi9ao entre os pressupostos, logo..., refuta9ao dos pressupostos! (Estamos longe ainda do Rorty do livro A Filosofia e o Espelho da Natureza, publicado doze anos depois de A Viragem Linguistica.) Na verdade, Rorty, em 1967, era (talvez sem o saber) um filosofo "ingles" da linguagem ordinaria, senao nas inten- 9oes, pelo menos nas consequencias.

O que a filosofia inglesa da linguagem ordinaria ha muito dizia insistente- mente, com efeito, era que a teoria do conhecimento e a epistemologia em geral sao essencialmente, se nao apenas, um resultado da falta de compreensao filosofi- ca da "logica" propria da linguagem ordinaria, investigada a qual elas perderiam toda a legitimidade que a filosofia tradicional lhes tinha atribuido, durante secu-

4ICf. a conclusao de Rorty: "I should wish to argue that the most important thing that has ha-

ppened in philosophy during the last thirty years is not the linguistic turn itself, but rather the begin- ning of a thoroughgoing rethinking of certain epistemological difficulties which have troubled phi- losophers since Plato and Aristotle. 1 would argue that if were not for the epistemological difficulti- es created by this account, the traditional problems of metaphysics...- ...would never be conceived. If the traditional 'spectatorial' account of knowledge is overthrown, the account of knowledge which

replaces it will lead to reformulations everywhere else in philosophy, particularly in metaphiloso- phy." (RORTY, R., op. cit., p. 39, sub. nosso).

O argumento de Quine a proposito da indeterminacao semantica da linguagem em geral, como se disse ja, parece ser completamente estranho a Rorty, em 1967. O mesmo, como se vera mais a frente, acontece com a filosofia inglesa da linguagem ordinaria no seu conjunto.

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los, como o verdadeiro cerne do pensamento filosofico.43 (Feyerabend, na sua autobiografia, nao deixa de assinalar a importancia deste facto e a sua influencia sobre o seu proprio pensamento.)44 Esta tese assumia diferentes versoes consoante os filosofos em questao: Black era, talvez, o mais consistente e inteligente deles, recusando explicitamente fazer apelo para pressupostos epistemologicos na sua filosofia da linguagem - o que o envolveria, por vezes, numa retorica linguistica que so J. Austin, do seu proprio ponto de vista, ultrapassaria -, e tornando-se, de facto, no "ideologo" da nova filosofia linguistica;45 P. Strawson, que come9ou por ser um ferveroso defensor dessa filosofia, pondo a sua reflexao ao servi<?o da mesma numa das tarefas mais delicadas (a critica da teoria das descri9oes, de Russell), acabou por por de lado a partir dos anos sessenta, com alguns escnipu- los, as suas velhas repugnancias, aceitando pacificamente a importancia, em geral, da epistemologia e da ontologia;46 e Ryle, que iniciou a sua carreira analitica pro-

43Veja-se Urmson, J. O., op. cit., Part III, "The Beginnings of Contemporary Philosophy", pp. 163-187.

44Merece a pena citar o texto da autobiografia de Feyerabend, por extenso, porque o autor subscreve claramente a repugnancia (anti-epistemologica) da filosofia inglesa da linguagem ordina- ria a respeito da logica: "Je ne pouvais pas rester en place quand un debat sur des resultats scientifi- ques etait interrompu par une tentative de 'clarifier1, cette clarification consistant en une traduction dans une sorte quelconque de logique pidgin. 'Vous etes comme les savants du Moyen Age, objec- tais-je, qui ne comprenaient rien sans une traduction en latin'. Mes doutes augmentaient des qu'une reference a la logique etait utilisee non seulement pour clarifier, mais pour echaper aux problemes scientifiques. 'II s'agit d'un point de logique', declaraient les philosophes quand l'ecart entre leurs principes et le monde devenait assez evident. Compares a un tel souple langage, les deux 'dogmes de rempirisme' de Quine sont apparus comme un souffle d'air frais. John L. Austin, que j'avais entendu a Berkeley, dissolvait la 'philosophic d'une maniere differente. Ses cours (publies plus tard sous le titre Sense and Sensibilia) etaient simples, mais tres convaincants. Utilisant Les Fondements de la connaissance empirique, d'Ayer, Austin nous invitait a lire le texte litteralment, a porter reellement toute notre attention aux mots imprimes. Ce que nous faisions. Et des enonces qui nous avaient semble evidents et memes profonds cessaient soudain d'avoir du sens. Nous realisions egalement que les manieres ordinaires de parler etaient plus flexibles et plus subtiles que leurs substituts philo- sophiques. De telle sorte qu'il y avait maintenant deux types de tumeurs a eradiquer - la philoso- phie des sciences et la philosophic generate (I'etique, Vepistemologie, etc.) - et deux champs de I'activite humaine qui pouvaient survivre sans elles - la science et le sens commun." (FEYERA- BEND, P., Tuer le temps: Une Autobiographic, p. 181, sub. nosso).

Exemplos de uma tal retorica serao, provavelmente, alguns dos seus ensaios reunidos Lan- guage and Philosophy: Studies in Method, Ed. Cornell University Press, Ithaca e London, 1970 (la ed. 1949), por exemplo, "Linguistic Method" {ibidem, pp. 3-22), e "Vagueness": An Exercise in Logical Analysis" (ibidem, pp. 25-58). Por outro lado, um dos trabalhos de Black que atesta clara- mente da sua lideranca teorica da nova filosofia e "Language and Reality" (1958), editado por H. D. Lewis em Clarity is not Enough: Essays in Criticism of Linguistic Philosophy, Ed. George Allen and Unwin, London, 1963, pp. 170-184.

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curando estender ao campo linguistico algumas teorias de Russell, para depois as adaptar, a seu modo, a certas teorias do proprio Wittgenstein, sempre cultivou secretamente, no fundo, a ideia tradicional a respeito da importancia da episte- mologia e da ontologia, embora, evidentemente, a rejeitasse quando se tratava de justificar as suas concep9oes.47 Para os filosofos ingleses da linguagem ordinaria, no seu conjunto, como para Rorty e Feyerabend nos anos oitenta, a teoria do co- nhecimento e a epistemologia em geral, quer dizer, mais uma vez, a filosofia da ciencia, nao passava de uma perigosa ilusao da filosofia tradicional, desde Des- cartes, a qual tinha agora chegado ao seu terminus completamente, e nao a uma simples esta9ao de passagem da historia da filosofia analitica.

O facto de os filosofos britanicos nao usarem expressamente o conceito de "filosofia da ciencia", mas sim o de epistemologia, nao e, entretanto, historica e filosoficamente indiferente. O uso explicito e reiterado do conceito, em sentido claramente pejorativo,48 por parte dos filosofos analfticos so se verificara mais recentemente, num contexto complexo em que, por um lado, a nova abordagem antipositivista da ciencia de Popper, Lakatos, Kuhn e outros, pareceu reabilitar, apesar de tudo, a filosofia da ciencia no ambito analitico,49 e, por outro lado, o

46Veja-se "On Referring" (1950), in Strawson, P., Logico-Linguistic Papers, Ed. Methuen, London e New York, 1971, pp. 1-27. Essa evolucao de Strawson e patente no seu ultimo livro, Analysis and Metaphysics: An Introduction to Philosophy, Oxford University Press, 1992, e faz-se notar, sobretudo, a partir do inicio dos anos sessenta, com o livro Individuals: An Essay in Descrip- tive Metaphysics, Ed. Methuen, 1 959. Podemos dizer que a partir dessa altura Strawson abandona, de facto, a filosofia linguistica de Oxford.

47Veja-se Addis, L., e Douglas, L., Moore and Ryle: Two Ontologists, Ed. Martinus Nijhoff, The Hague, 1965.

48Em "How to Be a Good Empiricist: A Plea in Favor of Tolerance in Matters Epistemologi- cal" (in Philosophy of Science: The Delaware Seminar, Ed. B. Baurmin, New York, 1963, pp. 3-39), Feyerabend poe em evidencia essa carga negativa do conceito, quando observa: "... De tout cela, il s'ensuit qu'il est toujours necessaire de poursuivre la lutte pour la tolerance en matiere scientifique et la lutte pour le progres scientifique. Ce qui est change, c'est la denomination des ennemis. II y a quelques decennies, c'etaient des pretres ou des 'philosophes d'ecole'. Aujourd'hui, ils se donnent le nom de 'philosophes des sciences' ou 'empiristes logiques'." (FEYERABEND, P., "Comment etre un bon empiriste: plaidoyer en faveur de la tolerance en matiere epistemologique", in De Vienne a Cambridge, Ed. Gallimard sous la direction de Pierre Jacob, Paris, 1980, p. 269)

49No final dos anos setenta, quando a visao positivista da ciencia parecia completamente des- tronada, nao ha ainda qualquer vestigio da ideia de fim da filosofia da ciencia, nem, aparentemente, do caracter nefasto da teoria do conhecimento e da epistemologia em geral, no balanco que F. Suppe apresenta a respeito, precisamente, da "filosofia da ciencia". Ele observa: "Philosophy of science today is ceasing to view the Weltanschauen analysis as offering promising avenues for the develo- pment of an adequate understanding of science, the activity of scientific theorizing, or the nature of knowledge resulting from such directions. It is seeking such understanding in new directions." (SUPPE, F., The Structure of Scientific Theories, Ed. with a Critical Introduction and Afterword by

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impacto da critica de Quine da epistemologia fundacionalista tradicional de modo geral, a partir dos anos setenta, conduziu, de facto, a apercep9§o mais ou menos generalizada de que a filosofia da ciencia em geral, ai incluindo em certa medida a propria abordagem sociologica de Kuhn, tinha chegado ao seu fim. De certa maneira, nao foram os filosofos analiticos propriamente ditos que come9aram a re-utilizar o conceito de "filosofia da ciencia", depois do estadio positivista que ele atravessou,50 mas, em rigor, os criticos do positivismo logicos eles mesmos, embora alguns, como Kuhn, tivessem compreendido que ele nao servia mais os propositos da nova abordagem antipositi vista da ciencia.51 (Quine emprega siste-

Frederick Suppe, University of Illinois Chicago Press, Urbana and Chicago, 1977, p. 648). Deste ponto de vista, e usual ainda hoje em dia falar de uma "filosofia da ciencia analitica". Veja-se Brown, H. I., Perception, Theory and Commitment. The New Philosophy of Science, Precedent Publishing, Chicago-Illinois, 1977; e Jacob, P., "Qu'est-ce que la philosophie analytique des scien- ces?", in La philosophie des sciences aujourd'hui, Ed. Bordas, Dir. de J. Hamburger, Paris, 1986, pp. 63-102.

50Os positivistas logicos nao utilizaram mais o conceito de "filosofia da ciencia" do que os novos filosofos (anti-positivistas) da ciencia, como T. Hanson, S. Toulmin, K. Popper e outros. Mas, sem duvida, existe um sentido em que esse conceito e especialmente positivista. E aquele em que ( 1 ) o seu uso contemporaneo parece ter uma embebencia claramente kantiana, e (2) o positivismo logi- co parece retomar geralmente esta concepcao kantiana. (1)0 filosofo da ciencia, como diz J. De- santi, tern por tarefa "remettre en chantier les enonces de statut scientifique en les reproduisant dans ce lieu 'transcendental' ou demeure le secret de leur ultime constitution. La 'philosophie des sciences' apparait alors comme une tache specifique et qu'on ne saurait confondre sans dommage avec 1'oeu- vre de la science. Dans la division technique du travail intellectuel, apparait allors une espece nou- velle de 'producteur'. Quelqu'un qui, n'ayant a la rigueur jamais produit un seul enonce de charactere scientifique, se reconnait cependant le pouvoir de les reproduire tous en leur fondement premier." (DESANTI, J., La philosophie silentieuse ou critique des philosophes de la science, Ed. du Seuil, Paris, 1975, p. 21) (2) M. Friedman chamou a atencao, justamente, para o facto de que "the logical positivists are in clear agreement with Kant about the paradigmatic status of mathematics and ma- thematical physics as exemplars of objective and rational knowledge. Further, the positivists also agree with Kant on the underlying reason for this privileged status. Mathematics and mathematical physics are paradigmatic* of objectivity and rationality because it is only by ordering, interpreting, and structuring our sensory perceptions within a rigorous mathematical framework that we can first 'objectify' them-that is, transform them from mere appearance into objective experience." (FRI- EDMAN, M., "Philosophy and the Exact Sciences", in Inference, Explanation, and Other Frustati- ons: Essays in the Philosophy of Science, Ed. J. Earman, University of California Press, Berkeley- Los Angeles-Oxford, 1992, p. 89). Rorty estendera esta analogia com Kant a propria filosofia anali- tica (isto e, a uma filosofia analitica a superar essencialmente): "A filosofia 'analitica' e mais uma variante da filosofia kantiana... Porque a filosofia analitica esta ainda empenhada na construcao de um quadro permanente e neutro para o inquerito e, por conseguinte, para o resto da cultura." (ROR- TY, R., A Filosofia e o Espelho da Natureza, pp. 18-19).

Kuhn abordou pela primeira vez claramente o problema de saber em que medida a sua abor- dagem sociologica da ciencia poderia ser intitulada "filosofia da ciencia" em 1971, num trabalho que seria reeditado em The Essential Tension: Selected Studies in Scientific Tradition and Change.

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maticamente o conceito de "epistemologia", no sentido em que esta se identifica- ra nao apenas a teoria do conhecimento, mas, sobretudo, a filosofia da ciencia). Quando Rorty e Feyerabend, mais recentemente, nos falam de "filosofia da cien- cia", eles estao a reformular, de acordo com esse novo contexto historico- filosofico a que nos referimos no comefo deste trabalho, o velho conceito analiti- co de "epistemologia", sempre rejeitando o primeiro, no fundo, pelas mesmas razoes que rejeitariam o segundo.

Com efeito, parece muito verosimil, que, sem a conjuga9ao do impacto da critica anti-epistemologica de Quine com o da nova filosofia da ciencia (a de Kuhn, designadamente), as consequencias dessa critica no que concerne a no<?ao de filosofia da ciencia em geral nao teriam o poderoso alcance historico-filosofico que hoje conhecemos. E isto porque, como ja se referiu de passagem, nem o ata- que de Quine a no<?ao tradicional de epistemologia nem as suas objec96es mais ou menos finais a filosofia da ciencia do positivismo logico, que estao estreitamente associadas a esse ataque, representavam verdadeiramente uma novidade para a filosofia inglesa da linguagem ordinaria. As redoes entre esta ultima e o positi- vismo foram sempre, desde o principio, redoes de franca hostilidade, a ponto de podermos dizer que, de facto, o grande inimigo daquela era, nao a metafisica tra- dicional ou o M. Heidegger que R. Carnap tinha elegido a certa altura como alvo principal,52 mas precisamente os positivistas eles proprios e Carnap em particu- lar.53 O porno essencial da discordia entre as duas "escolas" era, evidentemente, o papel fundamental que os positivistas conferiam a epistemologia e a filosofia da ciencia, o qual, para os filosofos ingleses da linguagem ordinaria, nao era essenci- almente diferente do da filosofia tradicional. Esses filosofos, e Black em especial, nao deixavam de valorizar a importancia da filosofia da linguagem para os positi- vistas, que lhes parecia constituir um facto geralmente positivo, mas punham seri- as reservas quer quanto a justificafao logico-matematica de uma tal filosofia (em Carnap, designadamente), quer, sobretudo, quanto a sua fundamental episte-

Ai, ele expressa as suas reservas quanto a disciplina "filosofia da ciencia", acusando esta de oferecer uma "reconstrucjio irreconhecivel da ciencia tanto pelos historiadores como pelos proprios cientis- tas", e argumentando em favor de uma abordagem (como a sua) em que a historia se identifica em ultima analise com a sociologia. Veja-se "As Relacoes entre a Historia e a Filosofia da Ciencia", in A Tensao Essencial, Ed. 70, trad, de Rui Pacheco, Lisboa, 1989, pp. 29-49.

Veja-se Carnap, R., "Uberwindung der Metaphysik durch Logishe Analyse der Sprache", Erkenntnis, II, 1931; trad. Francesa, "Le depassement de la metaphysique par l'analyse logique du langage", in Manifeste du Cercle de Vienne et autres ecrits. Carnap-Hahn-Neurath-Schlick- Waismann-Wittgenstein, Ed. PUF sous la direction de A. Soulez, Paris, 1985, pp. 153-179.

Veja-se Dummett, M., "Can Analytical Philosophy be Systematic, and Ought it to Be?", in Truth and Other Enigmas, p. 437.

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mologica.54 O resultado essencial destas divergencias, como se disse, foi que, durante aproximadamente duas decadas, as duas escolas se ignoraram (e detesta- ram) mutuamente. Neste contexto, o ataque de Quine ao positivismo logico era seguramente benvindo pela filosofia inglesa da linguagem ordinaria, e, em ultima analise, nao representava algo de verdadeiramente novo; nao porque, obviamente, o holismo e o relativismo semanticos de Quine fossem compreendidos por essa filosofia, mas justamente porque os filosofos ingleses nao estavam preparados, em geral, para perceber o seu significado.55 Foi necessario esperar pela nova filo- sofia da ciencia, e em particular pela no<?ao de "incomensurabilidade entre para- digmas" (de Kuhn), para que o holismo e relativismo de Quine entrassem no ima- ginario filosofico contemporaneo.

Urn dos papeis mais importantes no movimento analitico dos filosofos a quern Dummett chamou, nos anos setenta, "escola americana", foi, sem diivida, o terem constituido uma ponte entre os filosofos ingleses da linguagem ordinaria e o positivismo logico. Nao se tratou apenas de Quine, mas, em geral, de Putnam, de Goodman, de Rorty, e outros. Dummett, pertinentemente, assinalou o facto, vendo nele a expressao da possibilidade essencial de um "alinhamento historico do movimento analitico" que estaria na base das suas proprias propostas, com Frege: Filosofia da Linguagem e textos seguintes, para um "desenvolvimento sistematico da filosofia analitica".56 Mas as razoes que Dummett apresenta para justificar esse "alinhamento", designadamente, a possibilidade que se abriria (com a contribui9ao da "escola americana" em geral) para o desenvolvimento de uma teoria da significado "pura" ou isenta dos pressupostos epistemologicos tradicio- nais (ai incluindo os do positivismo logico), nao parecem ser inteiramente cor- rectas, porque tanto Quine como Putnam, por exemplo, continuavam ainda a pen- sar a filosofia, em larga medida, na esteira da epistemologia.57 O aspecto funda- mental desse alinhamento parece ser, em vez disso: se e verdade que a "escola americana" procedia a um ataque mais ou menos sistematico da filosofia da cien- cia do positivismo logico, e, portanto, ia de encontro a oriental geral (anti-

54Veja-se Black, M., Problems of Analysis: Philosophical Essays, Ed. Cornell University Press, Ithaca, New York, 1959, cap. XIV, "Carnap on Semantics and Logic", pp. 255-290.

Uma visao holista, semantica, da filosofia, parece estar completamente ausente das concep- coes dos filosofos ingleses da linguagem ordinaria. Veja-se, neste sentido, as reaccoes de Ayer, de Ryle e de Hare a conferencia de Quine "Le Mythe de la Signification", in La Philosophie analyti- que, Les Editions de Minuit, Paris, 1962, pp. 139-187.

Veja-se Dummett, M, op. cit., p. 454 e ss.. Isso e algo que o proprio Dummett reconhece tao cedo quanto Frege: Philosophy of Lan-

guage. Veja-se op. cit., sobre Quine, p. 590 e ss., e, sobre Putnam, p. 603 e ss.. A esperanca de Dummett, em 1973, era que seria possivel de algum modo reorientar essa atitude de Quine e de Putnam.

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epistemologica) da filosofia inglesa da linguagem ordinaria, por outro lado, ela estava longe de subscrever as teses puramente linguisticas dessa filosofia, embora, implicitamente pelo menos, as respeitasse de maneira geral; ela dava com uma mao, pois, o que retirava com um outra.58 No fim, quer dizer, quando a filosofia britanica come9ou a sofjobrar claramente no inicio dos anos setenta, e quando o proprio positivismo logico deu igualmente sinais de estertor por volta da mesma epoca, foi essa estrategia da "escola americana" que lhe valeu a dominatpao sem disputa no pensamento filosofico anglo-saxonico contemporaneo.59

Esta atitude ambigua da "escola americana" perante tanto o positivismo lo- gico como a filosofia inglesa da linguagem ordinaria, pode certamente explicar- se, em parte, atraves da biografia intelectual de alguns dos seus membros mais importantes, como Quine, que fizeram uma parte significativa da sua aprendiza- gem filosofica primeiro com Carnap e os outros fundadores do Circulo de Viena, e, depois, com a "escola de Oxford" em geral. Mas este tipo de explica9ao, segu- ramente, e insuficiente, por duas razoes essenciais. A primeira, e que essa atitude de ambiguidade parece decorrer geralmente da mesma visao a respeito da historia da filosofia que atribuimos genericamente ao movimento analitico antes das pro- to-historias de Dummett e de Rorty: Quine, nomeadamente, partilha daquela visao anistorica da filosofia inglesa da linguagem ordinaria que levou Urmson nao ape- nas a rejeitar, avant la lettre, a ideia de que a filosofia da analise tivesse quaisquer fundadores historicos (como Frege, como Russell, ou como Wittgenstein), mas tambem a sugerir explicitamente a ideia de um ab initio revolucionario dessa filo- sofia com os filosofos de Oxford; como tambem partilhara, se nao da mesma vi- sao anistorica do positivismo logico em geral na sua epoca americana, pelo me- nos, da sua evidente falta de interesse a respeito da historia da filosofia e do lugar, ai, da filosofia analftica em particular.60 E a segunda, que se prende com a primei-

58Putnam, por exemplo, veio em socorro da filosofia inglesa da linguagem ordinaria em "Re- view of The Concept of a Person" (1960), que constitui uma reaccao a critica dessa filosofia por parte de A. J. Ayer no livro que aparece citado. Veja-se art. cit., in Philosophical Papers: Mind, Language and Reality, Ed. Cambridge University Press, 1986 (la ed. 1975), vol. 2, pp. 132-138. Quine, por seu lado, teve geralmente uma atitute mais critica, dirigindo, aqui e ali, algumas observa- coes sarcasticas a certos membros da "escola de Oxford", como Strawson. Veja-se "Mr. Strawson on Logical Theory", in Quine, W. v. O., The Ways of Paradox and Other Essays, Ed. Harvard Univer- sity Press, Cambridge-Massachusetts/London-England, 1996 (Ted. 1994), pp. 136-157.

59Dummett observara a respeito do colapso da filosofia inglesa da linguagem ordinaria: "An era had ended, not with a bang, but with a whimper, and the moment was propitious for the ameri- can counter-attach." (DUMMETT, M, "Can Analytical Philosophy be Systematic, and Ought it to Be?", in Truth and Other Enigmas, p. 445).

60Em contraste com a epoca vienense, a epoca americana dos positivistas logicos (designada- mente, Carnap) caracteriza-se pelo facto notavel de que a historia da filosofia deixou de ter propria-

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ra mas e sem duvida muito mais importante (por razoes a que aludimos na seccjao anterior), e que essa visao anistorica constituiu, surpreendentemente, um instru- mento de legitimate* historica e filosofica da obra do proprio Quine, e, sobretu- do, da sua concep^o da ciencia. Temos aqui em vista, especialmente, a interpre- ta<?ao que Quine nos oferece sobre a historia do positivismo logico vienense e o seu papel na evolu9ao do movimento analitico em geral.

Uma das caracteristicas essenciais dessa interpreta?ao e a identifica9ao do positivismo logico vienense com uma filosofia da ciencia essencialmente reducio- nista e antinaturalista. Para Quine, que toma como exemplo privilegiado Carnap, o positivismo subscrevia a ideia, na esteira de Russell e, em parte de Wittgenstein, de que todo o conhecimento cientifico deveria reduzir-se por fim aos dados dos. sentidos, e fazia assim da filosofia um empreendimento de funda<?ao da ciencia precisamente atraves dessa base supostamente ultima do conhecimento.61 Ora, segundo ele, este projecto e verdadeiramente impossivel de realizar, porque a sua prossecu9ao conduz a contradi9oes insanaveis na propria teoria da ciencia positi-

mente interesse para a reflexao filosofica. A justificacjio a luz da historia (nao temos aqui em mente, evidentemente, a historia dos problemas, mas o enquadramento historico mais geral dos mesmos), que era um tema frequente nos escritos da primeira epoca, deu lugar, na segunda, a uma analise cerrada e exaustiva dos temas epistemologicos, que parece realizar plenamente o mesmo ideal me- todologico da "logica da ciencia" da Logische Syntax der Sprache (1934), mas sem o sabor historio- grafico da epoca vienense. Curiosamente, e nas reedicoes inglesas de textos dessa epoca, como o Der Logische Aujbau der Welt (veja-se The Logical Structure of the World, Routledge & Kegan Paul, London, 1961, "Preface to the Second Edition", pp. v-xi), que Carnap regressa ao seu velho estilo. No panorama bibliografico positivista, ha duas ou tres importantes excepcoes a esta situacao que importa salientar: P. Frank e uma delas, com uma colectanea de trabalhos que muito tern influ- enciado a historiografia sobre o positivismo logico vienense (veja-se Modern Science and its Philo- sophy, Harvard University Press, Cambridge, 1950, especialmente, "Introduction: Historical Back- ground", pp. 1-53); H. Feigl e uma outra, nao menos significativa (veja-se Inquiries and Provocati- ons: Selected Writings 1929-1974, Ed. Reidel Publishing Company, Dordrecht / Boston / London, 1981); e E. Nagel parece ser uma outra. Veja-se Logic Without Metaphysics, Ed. The Free Press, 1956, First Part, cap. IX (trad, espanhola de J. M. Botassis, La logica sin metafisica, Ed. Tecnos, 1974, "Impresiones y valoraciones de la filosofia analitica en Europa", pp. 167-212).- A situacao que comecamos por referir, tern expressao numa certa pobreza da historiografia positivista sobre a historia do proprio positivismo logico, que nao vai muito para alem dos grandes rasgos historicos, sem qualquer rigor cientifico. Exemplos eloquentes disso sao Joergensen, J., "The Development of Logical Empiricism", in The Development of Logical Empiricism, International Encyclopedia of Unified Science, vol II, n° 9, Chicago-Illinois, 1952, pp. 1-100; ou mesmo Pap, A., Elements of Analytic Philosophy, Ed. MacMillan, New York, 1949.- E compreensivel que tambem na obra de Quine, que fez o seu percurso filosofico tanto com os positivistas logicos como com a filosofia inglesa da linguagem ordinaria, se constate a mesma falta de interesse a respeito do alcance propri- amente filosofico da historia da filosofia. 61

Veja-se Quine, W. v. O., "Two Dogmas of Empiricism", in From a Logical Point of View, seccjio 5, "The Verification Theory and Reductionism", p. 37 e ss., particularmente, p. 39.

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vista.62 Numa primeira versao da sua critica antipositivista, durante os anos cin- quenta, Quine tirou a conclusao nao so de que o projecto positivista fracassou, mas, mais do que isso, de que esse fracasso e a expressao do fracasso da episte- mologia fundacionalista em geral. Ao reducionismo, argumenta ele, importa do- ravante opor uma visao claramente holista da ciencia, na perspectiva da qual e impossivel justificar a existencia de qualquer base ultima para o conhecimento cientifico, e mesmo proceder a qualquer demarcacpao epistemologica razoavel no interior da propria ciencia; o unico criterio legitimo de justifica9ao da ciencia, acrescenta Quine, e a sua capacidade para predizer e controlar, mas urn tal criterio nao e epistemologico, porque constitui a essencia da propria actividade cientifica enquanto tal.63 Ao anti-naturalismo, por sua vez, Quine opoe a ideia de que a filo- sofia deve renunciar completamente a sua pretensao de fundar a ciencia e o "conhecimento" em geral, identificando-se em ultima analise, de um forma que fica por elucidar de modo geral, com a ciencia ela mesma.64

Agora, como a literatura especializada a respeito da historia do positivismo logico vienense mostrou claramente nas duas ultimas decadas, esta representa9ao dessa historia e claramente falsa numa serie de pontos fundamentais. E falso, por exemplo, que a caracteristica essencial da filosofia da ciencia positivista seja o reducionismo: O. Neurath, M. Schlick, P. Frank, R. Carnap e H. Reichenbach defenderam sob diversas formas, desde o principio dos anos vinte, perpectivas epistemologicas indiscutivelmente holistas, que, como acontece com Neurath,

62Veja-se Idem, ibidem, p. 40. 63Veja-se Idem, ibidem, pp. 43-44. Veja-se Idem, ibidem, pp. 43 e 45. Quine apela para a ideia de que as entidades da ciencia

em geral sao "only posits", e para um relativismo cuja essencia e, de facto, de natureza, fundacio- nalista: "Ontological questions, under this view, are on a par with questions of natural science", diz ele. E depois acrescenta a respeito da sua teoria da quantifi cacao: "Now Carnap has maintained that this is a question not of matter of facts but of choosing a convenient language form, a conveninent conceptual scheme or framework for science. With this I agree, but only on the proviso that the same be conceded regarding scientific hypotheses in general." (IDEM, ibidem, p. 45). E a mesma teoria que ele defende em "On What There Is" a respeito da importancia relativa das diferentes teorias da ciencia e das fundacoes da matematica em competic.ao nos anos cinquenta: "Which should prevail? Each has its advantages; each has its special simplicity in its own way. Each, I suggest, deserves to be developed; each may be said, indeed, to be the more fundamental, though in different senses" {IDEM, art. cit., in op. cit., p. 17). Esta teoria, em contraste com o que vira a ocorrer nos anos sessenta, ignora manifestamente o problema do proprio Quine a respeito da relatividade se- mantica, o qual passa, sobretudo, pelas famosas indeterminacoes da traducao e da referenda. Em especial, ela parece orientar-se num sentido essencialmente diverso do da ideia de que "ontological questions are on a par with questions of natural science."

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anticipam de uma forma notavel as concep9oes do proprio Quine.65 E e igual- mente falso que toda a filosofia da ciencia positivista seja anti-naturalista, e, em particular, que a filosofia de Neurath o seja: desde 1915, o conhecido ideologo e propagandista do Circulo de Viena vinha a defender precisamente o mesmo tipo de teses que, quarenta anos mais tarde, a filosofia de Quine tornara celebres, no- meadamente, que e enganador demarcar ontologicamente a ciencia do mundo em geral em ordem a, por essa via, transforma-la em objecto da epistemologia, e que o verdadeiro interesse da ciencia consiste na sua utilidade social, quer dizer, na prossecu<?ao de algo que, em ultima analise, e nao-filosofico.66

Seria muito benevolente da nossa parte, sem duvida, dizer simplesmente que Quine estava errado historicamente, que ele, por exemplo, nao teve em conta

65O primeiro a sugerir esta perspectiva foi R. Haller, em "New Light on the Vienna Circle", Monist, 65, pp. 25-37, 1982 (tambem em Studien zur Osterreichischen Philosophie, 1979). Ela foi depois geralmente adoptada pela historiografia do positivismo logico em geral, por exemplo, por A. CofTa e R. Cicera. Veja-se, do primeiro, o ja citado livro The Semantic Tradition from Kant to Car- nap, e "Le positivisme logique, la tradition semantique et I'a priori", in Le Cercle de Vienne: doctri- nes et controverses, Ed. Klincksieck, dir. de J. Sebestik e A. Soulez, Paris, 1986, pp. 81-102; e do segundo, Cicera, R., Carnap and the Vienna Circle Empiricism and Logical Syntax, Ed. Rodopi, Atlanta, 1994. Outros trabalhos apontaram uma conexao mais estreita, sugerindo que os positivistas logicos anticiparam algumas das principais descobertas da nova filosofia da ciencia. E o caso de Reisch, G. A., "Did Kuhn Kill Logical Empiricism?", Philosophy of Science, n° 58, pp. 264-277; ou de Earman, J., "Carnap, Kuhn, and the Philosophy of Scientific Methodology", in World Changes: Thomas Kuhn and the Nature of Science, Ed. P. Horwich, A Bradford Book, The Mit Press, Cam- bridge-Massachusetts/London, 1993, pp. 9-36.

Alguns destes temas sao explicitamente sugeridos no manifesto do Circulo de Viena (Wis- senschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis, 1 929), de que, como se sabe, Neurath foi urn dos principais redactores (ao lado de Frank e de Carnap). A ele se devem seguramente as inumeras criticas da metafisica (e mesmo da teoria do conhecimento e da epistemologia) ai presentes, bem como certas afirmacoes claramente antifundacionalistas e naturalistas: "// n'y a pas de philosophie comme science fondamentale et universelle, a cote ou au-dessus des differ ents domaines de Vunique science de V experience', il n'existe aucun chemin qui mene a la connaissance d'un contenu, a part le chemin de l'experience." {Manifeste du Cercle de Vienne et autres e'erits: Carnap- Hahn-Neurath- Schlick-Waismann-Wittgenstein, Ed. PUF, trad, de B. Cassin e outros, Paris, 1985, p. 127. No texto, o termo "experiencia" e interpretado numa perspectiva hegeliana, de que o final do manifesto e tambem testemunho). Mas eles sao particularmente desenvolvidos no conhecido trabalho de Neu- rath, "Protokollsatze" (Erkenntnis, II, 1932, pp. 432-465). Ai, no quadro da critica do reducionismo que Carnap tinha evidenciado desde 1930 na polemica sobre o estatuto dos enunciados protocolares, e patente claramente o naturalismo e antifundacionalismo de Neurath e, em especial, o seu holismo: "II n'y a pas de tabula rasa. Nous sommes tels des navigateurs obliges de reconstruire leur bateau en haute mer, sans jamais pouvoir le demonter dans un dock et le rebatir a neuf avec meilleures pieces. Seul la metaphysique peut disparaitre sans trace."(NEURATH, O., in Manifeste du Cercle de Vienne e autres e'erits, op. cit., p. 223). Para urn estudo mais detalhado de alguns dos temas mencio- nados, ver Otto Neurath: Philosophy Between Science and Politics, Ed. N. Cartwright, J. Cat, L. Fleck, T. Uebel, Cambridge University Press, 1996, Part 2, p. 89 e ss..

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todos os dados conhecidos, ou que ele os interpretou mal, porque uma tal explica- <?ao, mais uma vez, seria seguramente muito insatisfatoria a luz do que sabemos da biografia intelectual desse autor.67 Em contraste, a explicatpao adequada nao pode ser outra senao aquela que sugerimos na seccpao anterior: a historia da filoso- fia aparece, em Quine como nos filosofos analiticos em geral, essencialmente como urn instrumento de legitima^o das suas proprias concep9oes filosoficas, e, em especial, deste ou daquele paradigma de analise a desenvolver, que caracteriza cada uma delas. E foi isso, de facto, o que aconteceu posteriormente com a critica antipositivista contemporanea no seu conjunto, em grande parte na sequencia de Quine: o positivismo logico como um todo foi erroneamente identificado com uma filosofia anti-holista e antinaturalista, e com ele, precipitadamente, tambem o foram os supostos responsaveis dessa situa9ao eles mesmos, isto e, Russell e Wit- tgenstein.68 No caso de Quine, como se disse acima, os pressupostos historico- filosoficos da sua leitura da historia da analise coincidem de modo geral com aqueles, claramente anistoricos, da filosofia inglesa da linguagem ordinaria nos anos cinquenta e sessenta: ruptura clara com a historia da filosofia em geral, ai incluindo o parente proximo dos filosofos ingleses (o positivismo vienense); e um novo ab initio para o movimento analitico. Mas esta e uma particularidade histo- rica relativamente secundaria para nos aqui. Com os "Dois Dogmas do Empiris- mo" estamos ainda a cerca de vinte anos das proto-historias de Rorty e de Dum- mett, e de um outro ab initio, desta feita concebido explicitamente a luz da histo- ria da filosofia e da historia da filosofia analitica em especial.

O exemplo de Quine e interessante, sobretudo, daquele ponto de vista es- sencial em que nos colocamos ate aqui a respeito do papel da filosofia da ciencia na evolu9ao da filosofia analitica : e que Quine, com a sua rejei<?ao da epistemo- logia fundacionalista, esta a reclamar um novo ponto de partida para a filosofia analitica dos anos cinquenta que tinha sido, cerca de quarenta anos antes, o ponto de partida proposto ao positivismo logico por aquele que foi, indiscutivelmente, o seu grande ideologo e promotor (Neurath); mas, pondo de lado o problema da prioridade historica a que acabamos de aludir, ele esta a por novamente no centro

67Veja-se, neste sentido, Koppelberg, D., "Why and How to Naturalize Epistemology", in Perspectives on Quine, Ed. R. Barrett e R. Gibson, Ed. Blackwell, 1993, pp. 200-21 1.

Isso nao acontece apenas com Quine, mas com toda uma serie de autores da critica antiposi- tivista contemporanea, como N. Hanson, S. Toulmin, K. Popper, H. Putnam, P. Feyerabend, etc.. Popper, por exemplo, mantem a mesma acusac.ao de reducionismo e a mesma imputacao de respon- sabilidades a Russell e a Wittgenstein que Quine, e precisamente na mesma epoca em que este publicou "Two Dogmas of Empiricism". Veja-se Popper, K., "The Nature of Philosophical Pro- blems and Their Roots in Science" (1952), in Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge, Ed. Routledge and Kegan Paul, London, 1972 (la ed. 1963), pp. 63-96, especialmente, seccao II, pp. 69-71.

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do debate analitico, com a clareza possivel, a questao de saber como e que e pos- sivel pensar a filosofia analitica, e a filosofia tout court, independentemente de pressupostos epistemologicos. E a mesma questao, no fundo, que o proprio Quine reequacionara durante os anos sessenta, que Rorty e Dummett lerao a luz da histo- ria da filosofia em meados dos anos setenta, e que esta na origem do pleonasmo de Rorty e Feyerabend, actualmente, a respeito do "fim da filosofia da ciencia".

Observagoes finals Filosofia da ciencia: lendo a filosofia na historia e a historia na filosofia

A tese de que a filosofia da ciencia chegou ao fim, de Rorty e de Feyera- bend, esta longe de constituir, como vimos ao longo deste trabalho, um facto in- teiramente novo na historia da filosofia analitica. Sem diivida, quer a ideia de que e impossivel demarcar a ciencia das outras areas da cultura, quer a ideia de e im- possfvel caracterizar essencialmente a ciencia atraves de um metodo especial ou de uma rela9ao especial com a realidade, sao relativamente novas na filosofia analitica contemporanea. Mas a argumenta9ao filosofica de qualquer uma dessas ideias tern como pano de fundo fundamental a mesma rejei?ao da ontologia e, em particular, da epistemologia que levou os filosofos analiticos no passado (por exemplo, que levou os filosofos ingleses da linguagem ordinaria durante os anos cinquenta e sessenta) a rejeitar a possibilidade da existencia de qualquer coisa que pudesse ser chamada "filosofia da ciencia". Na verdade, e precisamente num tal pano de fundo que devemos compreender a no9ao analitica hodierna de um fim da filosofia da ciencia; Rorty e Feyerabend nao fazem mais, em certo sentido, do que reformular essa rejei9ao analitica tradicional da filosofia da ciencia, dando-lhe uma justifica9ao mais ampla no contexto de uma reorienta9ao da filosofia da cien- cia contemporanea que resultou do fracasso da epistemologia positivista e que nao e especificamente analitica (Popper, Lakatos, Kuhn e outros).

Esta perca relativa da originalidade das teses de Rorty e de Feyerabend nao significa, contudo, que elas tenham perdido mais ou menos decisivamente a sua actualidade, porque a discussao desta ultima, em ultima analise, implica precisa- mente uma discussao mais geral a respeito da actualidade posssivel da rejei9ao da epistemologia no ambito da propria historia da filosofia analitica. A historia da filosofia analitica, com efeito, nao e mais do que um longo epitafio sobre o fim da epistemologia e, sobretudo, da filosofia da ciencia. Discutir a possibilidade desta ultima, hoje em dia, significa, portanto, discutir as razoes historicas e filosoficas

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que levaram os filosofos analiticos no passado a rejeita-la mais ou menos explici- tamente, e, claro esta, discutir a legitimidade dessa rejeiQao; e isso passa, em grande parte, por uma discussao a respeito da teoria analitica da historia da filoso- fia, na medida em que, como se sugeriu neste trabalho, uma tal teoria assenta em certos pressupostos meta-historicos e metafilosoficos que estao longe de ser com- pletamente evidentes ou inocentes, e que parecem constituir (eles sim) um facto inteiramente novo na historia da filosofia ocidental (pelo menos, quando compa- rados com os pressupostos usuais ou tradicionais).

O questionamento desses pressupostos, e em especial o de que a epistemo- logia nao faz sentido e deve ser abandonada, parece indicar que, numa serie de aspectos fundamentais, a leitura da historia da filosofia feita pelos filosofos anali- ticos no passado e ela mesma historica e filosoficamente discutivel, e parece abrir, assim, uma via alternativa e inesperada de reflexao a respeito do papel da episte- mologia no proprio ambito analitico. O que se sugeriu neste trabalho nao e que essa leitura seja inteiramente falsa, ou que ela nao de conta a seu modo de todos os factos historicos relevantes, mas, antes, que ela era a linica leitura possivel de acordo com o pressuposto mais ou menos adquirido da rejei9ao e abandono da epistemologia; e, por outro lado, o que se deduziu finalmente dessa sugestao e que, dado o caracter parcial e enganador da leitura analitica da historia da filoso- fia, nos temos todas as razoes, hoje em dia, para questionar a legitimidade da pro- pria rejeifao analitica da epistemologia. Uma tal dedu9ao, importa referi-lo, nao assenta numa argumenta9ao de caracter metafilosofico como aquela que resultaria de estarmos contra ou a favor da epistemologia ou, muito menos, da filosofia analitica. Pelo contrario, a nossa sugestao principal consiste em procurar ver a filosofia na historia e, complementarmente, a historia na filosofia, seguindo ge- ralmente a ideia de que essa e talvez a forma mais adequada (embora nao seja, sem diivida, a mais usual) de pensar o destino da filosofia da ciencia hoje em dia.

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HENRIQUE CARLOS JALES RIBEIRO Faculdade de Letras - Univ. de Coimbra

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Abstract:

The author deals with the historical and philosophical pressupositions of the idea of the end of philosophy of science supported by both Rorty and Feyerabend over the last twenty years. It is particularly stressed that such an idea has been, in different ways, explicitely suggested throughout the evolution of the analytic movement, both by the logical positivists of Vienna, and by the english philososophers of ordinary language. In the present essay, the justification of this perspective is based upon a reformulation of the commonly accepted concept of the history of analytic philosophy, which, it is suggested, is wrongly believed to be at the origin of the also commonly accepted but, generally speaking, equally false, notion that that end of analytic philosophy is characteristic only of the contemporary analytic philosophy. On the contrary, the author suggests that neither Rorty nor Feyerabend are the authors of the philosophy of science's death, but rather his historical and more visible agents in the history of analytic philosophy.

Resumo:

O autor ocupa-se dos pressupostos historico-filosoficos da ideia de um fim da filosofla da ciencia, defendida por Rorty e Feyerabend nos ultimos vinte anos. Em especial, mostra-se que essa ideia foi, de diversas formas, explicitamente sugerida ao longo da evolucao do movimento analitico quer entre os positivistas logicos vienenses quer na filosofia inglesa da linguagem ordinaria. A justificacSo desta perspectiva passa, neste trabalho, por uma reformulacao do conceito corrente de historia da filosofia analitica, que sugere-se estar na origem, enganadoramente, da nocao igualmente corrente, mas falsa de um modo geral, de que esse flm da filosofia da ciencia e algo caracteristico apenas da filosofia analitica contemporanea. Em contraste, o autor sugere que Rorty e Feyerabend nao sao, na realidade, os verdadeiros autores dessa morte da filosofia da ciencia, mas, antes, os seus agentes mais visiveis na historia da filosofia analitica.

428 Revista Portuguese! de Filosofia

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