196
13 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Expressões da identidade cultural do homem nordestino nas narrativas tradicionais de valentia: uma abordagem semiótica HERMANO DE FRANÇA RODRIGUES JOÃO PESSOA – PB 2006

Expressões da identidade cultural do homem nordestino nas ... · Quadro-resumo das Estruturas Narrativas 127 3.4. Estruturas Discursivas 129 3.4.1. Delegação de Voz e Relações

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13

UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE FFEEDDEERRAALL DDAA PPAARRAAÍÍBBAA

CCEENNTTRROO DDEE CCIIÊÊNNCCIIAASS HHUUMMAANNAASS,, LLEETTRRAASS EE AARRTTEESS

PPRROOGGRRAAMMAA DDEE PPÓÓSS--GGRRAADDUUAAÇÇÃÃOO EEMM LLEETTRRAASS

EExxpprreessssõõeess ddaa iiddeennttiiddaaddee ccuullttuurraall ddoo hhoommeemm

nnoorrddeessttiinnoo nnaass nnaarrrraattiivvaass ttrraaddiicciioonnaaiiss ddee vvaalleennttiiaa::

uummaa aabboorrddaaggeemm sseemmiióóttiiccaa

HHEERRMMAANNOO DDEE FFRRAANNÇÇAA RROODDRRIIGGUUEESS

JJOOÃÃOO PPEESSSSOOAA –– PPBB

22000066

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UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE FFEEDDEERRAALL DDAA PPAARRAAÍÍBBAA

CCEENNTTRROO DDEE CCIIÊÊNNCCIIAASS HHUUMMAANNAASS,, LLEETTRRAASS EE AARRTTEESS

PPRROOGGRRAAMMAA DDEE PPÓÓSS--GGRRAADDUUAAÇÇÃÃOO EEMM LLEETTRRAASS

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uummaa aabboorrddaaggeemm sseemmiióóttiiccaa

Dissertação elaborada por Hermano de

França Rodrigues e apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras da

Universidade Federal da Paraíba, área de

concentração Lingüística e Língua

Portuguesa, linha de pesquisa Semiótica, com

vistas à obtenção do grau de mestre em

Letras.

Orientador: Profª. Drª. Maria de Fátima

Barbosa de Mesquita Batista.

JJOOÃÃOO PPEESSSSOOAA –– PPBB

22000066

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TTEERRMMOO DDEE AAPPRROOVVAAÇÇÃÃOO

HERMANO DE FRANÇA RODRIGUES

EExxpprreessssõõeess ddaa iiddeennttiiddaaddee ccuullttuurraall ddoo hhoommeemm

nnoorrddeessttiinnoo nnaass nnaarrrraattiivvaass ttrraaddiicciioonnaaiiss ddee vvaalleennttiiaa::

uummaa aabboorrddaaggeemm sseemmiióóttiiccaa

Esta dissertação foi julgada e aprovada com distinção para a obtenção do título de Mestre em Letras, área de concentração em Lingüística e Língua Portuguesa, no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

Aprovação: João Pessoa, 10 de março de 2006.

Elisalva Madruga Dantas

Coordenadora PPGL / UFPB.

_________________________________________________________________

Profª. Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista – UFPB. Orientadora

_________________________________________________________________

Profª. Drª. Neide Medeiros Santos – FCJA. Examinadora

_________________________________________________________________

Profª. Drª. Mônica Nóbrega - UFPB Examinadora

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DDEEDDIICCAATTÓÓRRIIAA

À minha mãe, por ter desde cedo me colocado em

contato com o saber e nunca permitido que eu me

desviasse dele.

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AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS

Primeiramente a Deus, Pai de infinita bondade, que me iluminou e me

encaminhou nos estudos acadêmicos.

À minha família, por todo o incentivo positivo que me foi dado nesse

percurso.

Aos meus irmãos Gilmar, Gláucia e Cátia, por estarem sempre presentes

para me ajudar na organização deste trabalho.

Aos professores Cidmar Pais e Maria Aparecida Barbosa pelas valiosas

sugestões, dadas no Exame de Qualificação, que ampliaram este estudo.

À professora Mônica Nóbrega, pelo excelente curso de Lingüística Geral

que ofereceu contribuições importantes a meu saber científico.

Às minhas amigas Graziellen e Flávia, pela amizade e apoio ilimitado.

À amiga historiadora Mirele Rocha, pelos esclarecimentos históricos e pela

ajuda bibliográfica.

Aos amigos de curso que dividiram comigo a longa jornada do mestrado.

Enfim, a todas as pessoas, parentes e amigos que colaboraram de forma

direta ou não para a realização deste trabalho.

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Agradecimento Especial

À minha orientadora

Profª. Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

Pela exigência, intensamente positiva, pelo

comprometimento, dedicação e responsabilidade para

com os orientandos. Ela é, sem dúvida nenhuma, a

grande responsável pelo nosso crescimento cultural,

social e, precipuamente, pessoal.

Particularmente, se não fosse o seu estímulo, eu não

teria chegado aqui. Então, meu

muito obrigado...

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IIll ffaauutt bbiieenn ssee ggaarrddeerr ddee ccrrooiirree qquuee

ll’’eesspprriitt qquuii iinnvveennttee mmaarrcchhee aauu hhaassaarrdd..11

DDeessttuutttt ddee TTrraaccyy

1 É preciso não acreditar que o espírito que inventa caminha ao acaso.

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RREESSUUMMOO

O presente trabalho teve por objetivo analisar, semioticamente, as narrativas orais de valentia, buscando observar os valores sócio-culturais e históricos capazes de reverberar, explicitamente ou não, uma identidade nordestina ainda em efervescência. Como arcabouço teórico, utilizou-se os modelos atuais da Semiótica Greimasiana, mais especificamente, o da Semiótica do Discurso, que tem como principais expoentes: GREIMAS, COURTÉS, PAIS, BATISTA, FIORIN e BARROS. Realizaram-se, também, estudos sobre o Romanceiro Popular que serviram para constituir um capítulo em que se delineiam as principais características do romance oral, diferenciando-o de outros gêneros populares. O corpus constou de quatro versões do romance tradicional O Boi Espácio do qual se extraíram os dados que permitiram chegar à confirmação da hipótese norteadora da pesquisa: o povo produz, em sua literatura, formas específicas de representação, reprodução e reelaboração simbólica de suas relações sociais, o que a torna um verdadeiro registro da cultura nordestina. A análise considerou, primeiramente, uma investigação segmental das versões que possibilitou uma reconstituição dos percursos temáticos do romance. Em seguida, procedeu-se à narrativização, focalizando o agir de cada sujeito semiótico em busca de seu objeto de valor. No nível discursivo, analisaram-se as relações intersubjetivas e espaço-temporais, buscando estabelecer uma correlação entre os efeitos de sentido provocados por tais procedimentos e os valores sócio-culturais do sujeito produtor. À tematização e à figurativização coube estabelecer uma aproximação entre discurso e contexto. Como último passo, efetuou-se uma análise das estruturas fundamentais que trouxe à tona as ideologias imanentes ao discurso. No romance analisado, o boi aparece sob os aspectos da realidade e da imaginação popular, exercendo, imponentemente, o papel de protagonista. É um herói autêntico cuja caracterização reverbera, inconscientemente ou não, uma formação ideológica na qual emergem elementos culturais de auto-afirmação e de auto-reconhecimento, ou seja, o fazer-ser do animal representa, substancialmente, o ser, o ethos de um povo, de uma região. Seus dons físicos, suas façanhas extraordinárias, além de lhe garantir superioridade, contribuem, consideravelmente, para a construção de uma imagem que, ao concentrar valores de merecimento e grandiosidade, passa a servir de referência sócio-histórica para a sociedade que a concebe. Com efeito, espera-se que as análises por ora realizadas possam contribuir de alguma maneira para a ciência semiótica e sua aplicação ou possam, talvez, trazer um contributo aos estudos etnolingüísticos, antropológicos e culturais. Espera-se, também, ainda que modestamente, suscitar alguma reflexão social no tocante às constatações presentes neste estudo. Palavras-chave: Semiótica – Romanceiro – Identidade

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RREESSUUMMEENN

Este trabajo tiene el objetivo de analisar, semióticamente, las narrativas orales de valentía, buscando observar los valores socio-culturales e históricos capaces de reverberar, explicitamente o no, una identidad nordestina aún en efervescencia. Como teoría, se utilizó los modelos actuales de Semiótica Greimasiana, más especificamente, de la Semiótica del Discurso, que tiene como principales exponentes: GREIMAS, COURTÉS, PAIS, BATISTA, FIORIN y BARROS. Se realizó, también, estudios sobre el Romancero Popular que servieron para constituir un capítulo en que se delinean las principales características del romance oral, diferenciándolo de otros géneros populares. El corpus constó de cuatro versiones del romance tradicional O Boi Espácio de donde se extrayó los dados que permitieron llegar a la confirmación de la hipótesis de la investigación: el pueblo produce, en su literatura, formas específicas de representación, reproducción y reelaboración simbólica de sus relaciones sociales, lo que la hace un verdadero registro de la cultura nordestina. El análisis consideró, primeramente, una investigación segmental de las versiones que posibilitó una reconstituición de los percursos temáticos del romance. Enseguida, se procedió a la narrativización, focalizando el actuar de cada sujeto semiótico en busca de su valor. En el nivel discursivo, se analisaron las relaciones intersubjetivas y espacio-temporales, buscando establecer una correlacción entre los efectos de sentido provocados por tales procedimientos y los valores socio-culturalesdel sujeto productor. A la tematización y a la figurativización cupo establecer una aproximación entre discurso y contexto. Como último paso, se efectuó un análisis de las estructuras fundamentales que trajo las ideologías inmanentes al discurso. En el romance analisado, el buey aparece bajo los aspectos de la realidad y de la imaginación popular, ejercendo, imponentemente, el papel de protagonista. Es un héroe auténtico cuya caracterización reverbera, inconscientemente o no, una formación ideológica en la cual emergen elementos culturales de autoafirmación y de autoreconocimiento, o sea, el hacer-ser del animal representa, sustancialmente, el ser, el ethos de un pueblo, de una región. Sus dones físicos, sus hazañas extraordinarias, además de garantizarle superioridad, contribuyen, considerablemente, para la construcción de una imagen que, al concentrar valores de merecimiento y grandiosidad, pasa a servir de referencia socio-histórica para la sociedad que la concibe. Se espera que los análisis realizados puedan contribuir de alguna manera para la ciencia semiótica y su aplicación o puedan traer, tal vez, una contribución a los estudios etnolingüísticos, antropológicos y culturales. Se espera también, aún que modestamente, suscitar alguna reflexión social en lo que se refiere a las constataciones presentes en este estudio. Palabras-Clave: Semiótica, Romancero, Identidad.

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SSUUMMÁÁRRIIOO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 13

1. A TEORIA SEMIÓTICA 20

1.1. Preliminares 20

1.2. Metamodelos sincrônicos 21

1.2.1. Saussure e o objeto da Lingüística 22

1.2.2. Martinet e a dupla articulação lingüística 28

1.2.3. Chomsky e a Gramática Gerativa 32

1.3. Metamodelos Pancrônicos 36

1.3.1. Coseriu e sua visão tricotômica da linguagem 38

1.3.2. Hjelmslev e a função semiótica 40

1.3.3. Greimas e os níveis semióticos 44

1.3.3.1. Nível Fundamental 46

1.3.3.2. Nível Narrativo 50

1.3.3.3. Nível Discursivo 63

2. O ROMANCEIRO POPULAR 81

2.1. O que é um romance popular? 81

2.2. Origem do romance popular 90

2.3. Permanência e difusão do romance popular

no Nordeste do Brasil 93

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3. ANÁLISE SEMIÓTICA DO

ROMANCE ORAL O BOI ESPÁCIO 96

3.1. Preliminares 96

3.2. Organização textual: versões examinadas e segmentação 97

3.3. Estruturas Narrativas 102

3.3.1. A propósito do sujeito semiótico 1 103

3.3.2. A propósito do sujeito semiótico 2 105

3.3.3. A propósito do sujeito semiótico 3 106

3.3.4. A propósito do sujeito semiótico 4 108

3.3.5. A propósito do sujeito semiótico 5 110

3.3.6. A propósito do sujeito semiótico 6 111

3.3.7. A propósito do sujeito semiótico 7 113

3.3.8. A propósito do sujeito semiótico 8 114

3.3.9. A propósito do sujeito semiótico 9 116

3.3.10. A propósito do sujeito semiótico 10 121

3.3.11. A propósito do sujeito semiótico 11 122

3.3.12. Qualificação dos valores 124

3.3.13. Quadro-resumo das Estruturas Narrativas 127

3.4. Estruturas Discursivas 129

3.4.1. Delegação de Voz e Relações Argumentativas 129

3.4.2. Temporalização 148

3.4.3. Espacialização 153

3.4.4. Tematização e Figurativização 160

3.4.5. Leituras Temáticas 166

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3.5. Estruturas Fundamentais 167

CONSIDERAÇÕES FINAIS 179

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 183

ANEXOS 191

Versão BE1 192

Versão BE2 193

Versão BE3 194 Versão BE4 195

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CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS IINNIICCIIAAIISS

As manifestações culturais populares podem ser vistas além de sua

aparência folclórica, lúdica ou artística, numa perspectiva que as situe como

cenário de práticas sociais e de construção de identidade. São através delas que

historiadores, antropólogos e lingüistas conseguem recuperar informações

preciosas sobre a cultura e a história de um povo e de uma época.

Sob esse prisma, a Literatura Popular, em sua dupla modalidade, oral e

escrita, apresenta-se, indiscutivelmente, como uma marca da identidade do

homem nordestino e, tal como é posta, cria fronteiras culturais entre o Nordeste e

o resto do Brasil. Ela propõe novas formas de apreensão do real, deslocando,

para um exterior definido, o referencial constituinte das representações que os

indivíduos fazem de si mesmos e de sua sociedade. Dessa forma, os processos

de construção de identidades são considerados frutos das relações dos indivíduos

ou grupos com processos sociais mais amplos e, portanto, compreensíveis a

partir da busca de reconhecimento e de legitimidade para as suas

especificidades.

As compilações orais, inventário maior da literatura popular, ao serem

(re)construídas incessantemente, seja por intervenção das forças coativas do

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tempo, seja por determinações ideológicas, apresentam uma textualização

peculiar, própria, fruto de adaptações aos múltiplos contextos em que se

manifestam. Esse contínuo enunciar torna a literatura oral uma fonte inesgotável

de vestígios lingüísticos e sociológicos capazes de desvelar o saber e as

intenções discursivas de um povo, de uma gente que, embora iletrada, elabora

uma literatura, altamente produtiva, por meio da qual expressa seus valores, suas

crenças, seus comportamentos, enfim, sua visão de mundo.

Ao veicular elementos culturais, ideológicos e históricos do Nordeste, a

literatura popular consegue representar, de maneira legítima, as “engrenagens”

sociais dessa região. Nesse sentido, as peças populares representam, para o

nordestino, bem mais do que manifestações de caráter estético, artístico,

histórico; são expressões de uma prática cultural, a reatualização de uma

memória coletiva que se presentifica nos mais variados gêneros (romances,

cordéis, mitos, lendas, contos, provérbios), revelando o imaginário do tempo e do

espaço em que foi criada.

Tanto o romance oral quanto o folheto de cordel são produções culturais

que retratam, implícita ou explicitamente, a memória de um povo. A diversidade

temática dos textos é tão acentuada que podemos encontrar cordéis e romances

orais sobre uma multiplicidade de acontecimentos, desde fatos rotineiros do

cotidiano até ocasiões especiais, como narrativas históricas e religiosas, muitas

até transformadas em teatro. Esses textos relacionam-se, em sua maioria, com a

realidade popular, observada e transformada em literatura pelos autores.

As produções populares, por trazerem marcas das relações sociais

(comportamentos, crenças, valores) daqueles que as produzem, tornam-se

documentos genuínos e extremamente valiosos que permitem ao estudioso

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restaurar e apreender a visão de mundo de um povo cujos valores culturais,

embora sofrendo as imposições mutiladoras da modernidade, ainda continuam

vivos e latentes. Por isso, ao analisar peças de natureza popular, deve-se,

inicialmente, levar em consideração a sociedade na qual são produzidas, uma vez

que pertencem a um contexto sóciocultural historicamente determinado. Esse

procedimento permite enxergar o fazer e o agir do povo como processos

dinâmicos, atuais; não como algo anacrônico, uma simples sobrevivência,

resquícios do passado no presente.

A construção deste texto-dissertação comporta um estudo que tenta

contemplar a diversidade das imagens que a narrativa popular produz sobre o

Nordeste, resgatando fatos históricos e pondo em evidência aspectos humanos e

físicos da região. Procurou-se recuperar, ainda, as ideologias produzidas no

contexto sócio-cultural que lhes dá origem, reconstituindo e interpretando os

processos sociais que fazem emergir uma sociedade autônoma que conserva

inalteráveis seus valores identitários.

Para auxiliar nessa árdua trajetória, recorreu-se aos fundamentos

epistemológicos e operacionais da Semiótica Greimasiana, que forneceram os

instrumentos adequados para se debruçar sobre a concretude dos textos e extrair

dela o material necessário à confirmação das hipóteses. Evidentemente, sendo o

discurso um amálgama de outros discursos, foi inevitável tecer alguns

comentários extra-textuais que reforçam e, por vezes, cristalizam o dito.

Dada a riqueza temática das narrativas orais, especificamente das gestas

de valentia, selecionou-se um corpus que contemplou aspectos constitutivos da

sociedade nordestina, tais como história, cultura e tradição. Esses elementos,

fundidos e revestidos pelo imaginário popular, ganham dimensões ao mesmo

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tempo individuais (subjetivas) e regionais (coletivas), capazes de “denunciar” os

valores de um povo que se (re)constrói discursivamente através de suas

manifestações literárias.

Assim, para atingir os propósitos da pesquisa, foram extraídas do

Romanceiro Tradicional (1988), de autoria de Batista, quatro versões do romance

oral O Boi Espácio, coletadas em cidades do interior e da zona urbana da

Paraíba e de Pernambuco. A narrativa se estrutura em torno de um boi valente

que, simbolicamente, representa determinados valores da cultura nordestina. Por

meio dele, foi possível perceber, com acuidade e sensibilidade, os dados

identitários que se presentificam substancialmente nos textos.

A pesquisa conseguiu, satisfatoriamente, alcançar os objetivos a que se

propôs e, por conseqüência, a confirmar, como era previsto, as hipóteses que

fundamentaram as reflexões acerca do corpus e direcionaram as análises.

Buscou-se, como objetivo principal, analisar, semioticamente, o processo

de construção da identidade do homem nordestino na poesia tradicional de

valentia, a partir do exame dos aspectos culturais, ideológicos, sociais e

históricos, presentes nos textos, capazes de alicerçar uma identidade cultural e

regional. Para tanto, fez-se necessário estabelecer um percurso sistemático que

compreendeu as seguintes ações: a) realização de um estudo teórico acerca da

semiótica greimasiana e sobre o romance oral e sua permanência e difusão no

nordeste brasileiro; b) análise das estruturas narrativas, observando o agir de

cada sujeito semiótico em busca de seu objeto de valor, como também as

modalidades que, semanticamente os instauram; c) exame, no corpus

selecionado, das projeções actoriais, temporais e espaciais, descrevendo os

efeitos de sentido provocados por tais mecanismos; d) recuperação, através do

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estudo da semântica discursiva, das ideologias imanentes às narrativas de

valentia, reconstituindo e interpretando os processos socioculturais e os valores

da sociedade nordestina; e e) análise das oposições semânticas no nível da

semântica profunda, buscando determinar a axiologia, os microssistemas de

valores sustentados pelos textos.

Partiu-se das hipóteses de que: (a) o povo produz, em sua literatura,

formas específicas de representação, reprodução e reelaboração simbólica de

suas relações sociais, o que a torna um verdadeiro registro da cultura nordestina;

(b) as narrativas de valentia abarcam uma diversidade de imagens que

caracterizam tanto social quanto culturalmente o Nordeste; (c) a identidade do

homem nordestino emerge, nas diferentes narrativas de valentia, a partir do

entrecruzamento de discursos, história e cultura.

A partir dessas elucidações, dividiu-se a pesquisa em três capítulos que

comportam e direcionam as leituras, as análises, enfim, o engendramento deste

texto-dissertação.

Reservaram-se para o primeiro capítulo, os pilares teóricos que

subsidiaram com precisão as análises, dando um respaldo científico para as

reflexões que, aqui, foram realizadas. Preferiu-se não partir do tradicional

panorama histórico da semiótica por considerar que algumas inferências se

mostrariam insignificantes para o propósito da pesquisa. Optou-se, então, por

discorrer sobre as bases epistemológicas e metodológicas das principais

correntes lingüísticas, situando-as em dois grupos: os modelos sincrônicos e os

modelos pancrônicos. Tal procedimento permitiu estabelecer pontos de contato

entre abordagens que a tradição concebia como radicalmente opostas, como por

exemplo, entre o estruturalismo e o gerativismo.

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Apresentou-se a semiótica como uma ciência que se fundamenta

pancronicamente e não evolutivamente, o que possibilitou imprimir à teoria um

revestimento metodológico mais dinâmico, afastando-a da simples relação

signo↔signo. Não houve, neste trabalho, uma tentativa de negar a relação entre

os estudos do signo e a formação da semiótica, apenas privilegiou-se um outro

momento histórico da teoria: sua relação signo↔usuário dentro de uma situação

discursiva.

O percurso gerativo de sentido, unidade operatória da semiótica, foi

descrito minuciosamente em suas estruturas constituintes: narrativa, discursiva e

fundamental. Investigou-se cada nível através da exposição detalhada de seu

componente sintático e semântico.

Para o segundo capítulo, julgou-se pertinente uma “viagem” pelas origens

e difusão do romance popular para que nosso corpus fosse devidamente

justificado e coberto por olhares científicos. Procurou-se elencar as características

que identificam o romance oral, distinguindo-o de outras manifestações populares,

como a fábula, o conto e o folheto de cordel. Em seguida, discorreu-se sobre os

fenômenos que são responsáveis por sua permanência e disseminação no

nordeste do Brasil.

Ao terceiro capítulo, destinou-se um mergulho nas análises, que

permitiram decifrar as tramas discursivas, fazendo emergir os sentidos que se

instauram nas subjacências dos textos. Inicialmente, estudou-se a segmentação

de cada versão, procurando estabelecer, entre elas, convergências e

discrepâncias. Isto tornou possível uma apreensão mais sistêmica de

determinados dados que aparecem em algumas versões e estão ausentes em

outras. Logo depois, passou-se a investigar a narrativização do corpus escolhido,

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através da descrição dos percursos realizados por cada sujeito semiótico e a

constatação das modalidades que os instauram. Quando possível, examinou-se

as relações manipulatórias que se estabelecem entre os sujeitos.

A análise discursiva constituiu o terceiro passo. As relações

argumentativas entre enunciador e enunciatário foram vislumbradas a partir das

projeções actanciais, temporais e espaciais. Coube à tematização e

figurativização assumirem a correlação entre as leituras intra e extradiscursivas. A

axiologia sustentada pelos discursos foram estudadas nos três níveis, porém só

no fundamental, houve um aprofundamento e operacionalização por meio dos

octógonos semióticos.

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32

11.. AA TTEEOORRIIAA SSEEMMIIÓÓTTIICCAA

11..11.. PPrreelliimmiinnaarreess

As múltiplas correntes da lingüística moderna, quando consideradas em seus

fundamentos epistemológicos que, substancialmente, norteiam seus estudos e

aplicações, apresentam divergências no que diz respeito à noção de estrutura que

adotam. Enquanto umas legitimam um modelo estático, compreendendo a língua

apenas em sua imanência, outras, mais voltadas para questões extradiscursivas,

concebem um modelo dinâmico no qual a correlação signo-usuário é privilegiada.

Consoante Barbosa (1996), tais linhas de investigação lingüística “podem ser

agrupadas, ainda que de maneira elementar, em dois grandes grupos”, cuja

designação traduz, claramente, os alicerces teóricos que as caracterizam, ou

seja, que meta-teorias as constituem cientificamente. Propõe a autora a seguinte

divisão: os meta-modelos sincrônicos (estudos que priorizam a análise do

sistema, visto que concebem a língua como forma que se configura

sincronicamente) e os meta-modelos pancrônicos (pesquisas que

compreendem o sistema como um processo contínuo de auto-alimentação e auto

regulação, que se modifica discursivamente).

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33

Perpassando a densa cartografia das bases epistemológicas dos diversos

rumos da ciência da linguagem, é possível identificar algumas orientações

teóricas que se aproximam coerentemente, embora provenham de abordagens

distintas. Nesse âmbito, pode-se elencar as conhecidas oposições língua / fala

(Saussure), código / mensagem (Martinet e Jakobson), competência /

performance (Chomsky) e sistema / processo (Hjelmslev) em que, erigidas ou

sobre o princípio da estabilidade (as formalistas) ou se opondo a este (as

funcionalistas), encerram uma certa “semelhança”, sobretudo metodológica, na

forma de conceber binariamente o objeto-linguagem.

11..22.. MMeettaammooddeellooss ssiinnccrrôônniiccooss

O método sincrônico, gestado sob a égide do estruturalismo, caracteriza-se,

epistemologicamente, por abstrair das análises lingüísticas as considerações de

cunho histórico, para assim, “purificar” e cientificar o seu objeto, a língua,

concebida unicamente através de sua imanência.

Investigar sincronicamente os dados permanentes do fenômeno lingüístico é

concebê-los como fazendo parte de um sistema organicamente estável e

autônomo cujas unidades constituintes são fixadas, classificadas, prescritas como

imutáveis em seu momento realizador e variáveis somente a longo prazo, ao se

submeterem às forças coativas do tempo. Ademais, as questões enunciativas são

deixadas de lado ou, simplesmente, abandonadas visto que são supostas como

caóticas e extremamente instáveis, impossíveis de serem apreendidas.

Fazem parte dos meta-modelos sincrônicos as abordagens lingüísticas que

se constroem a partir de “uma noção de estrutura, entendida como um conjunto

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de relações estáticas, numa etapa sincrônica” (Barbosa, 1996, p.16). Grandes

lingüistas como Saussure, Martinet e Chomsky compartilham dessa visão.

11..22..11.. SSaauussssuurree ee oo oobbjjeettoo ddaa LLiinnggüüííssttiiccaa

Rompendo com a orientação histórica do século XIX, marcada

essencialmente por estudos de natureza comparativa, Saussure, no seu Curso de

lingüística geral, estabelece os pilares científicos de uma lingüística estrutural. Ao

tomar a língua como uma entidade autônoma, o mestre genebrino exclui,

consideravelmente, os elementos concernentes à linguagem, os quais “poderiam

ser estudados do ponto de vista de outras ciências” (Fiorin, 2002, p.27). Com isso,

postula Saussure que,

“tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita;

a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física,

fisiológica e psíquica, ela pertence ao domínio individual e ao

domínio social, não se deixa classificar em nenhuma

categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir

sua unidade” (1969, p.17)

Por situar-se no nível extra-sistêmico e, por conseguinte, pertencer à ordem

da instabilidade, a linguagem não poderia ser imobilizada pelo lingüista, o que a

torna, portanto, “inadequada” para assumir o posto de objeto científico. Contudo,

se assim ocorresse, “o objeto apareceria como um aglomerado confuso de coisas

heteróclitas, sem liame entre si e estaria aberta a porta para várias ciências, como

a Antropologia, a Psicologia, etc.” (Fiorin, p. 27, 2002). Infere, então, Saussure,

ser necessário tomar a língua como matéria e núcleo de suas reflexões:

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“[A langue constitui] um todo em si e um princípio de

classificação [...] conjunto de convenções necessárias

adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa

faculdade [da linguagem] nos indivíduos (1969, p.17); sistema

de signos [e de regras] (1969, p.23); tesouro depositado pela

prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma

comunidade (1969, p.21)”.

Dessas ponderações, resulta a clássica oposição entre os atos lingüísticos

concretos (parole) e o sistema que lhes serve de suporte (langue). Para o

lingüista suíço, a fala encontra-se no nível da manifestação individual visto que

aqueles que a utilizam sempre o fazem por iniciativa pessoal. Ela é momentânea

e heterogênea, estando, pois, situada no reino da liberdade e da criação. A

língua, por sua vez, é homogênea, um conjunto de signos interrelacionados,

obrigatório para todos os membros de uma comunidade lingüística. Esse sistema,

enquanto representação coletiva, não se define pela fala, impõe-se

inapelavelmente ao indivíduo uma vez que este não pode modificá-lo

conscientemente:

“A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o

produto que o indivíduo registra passivamente; não supõe

jamais premeditação, e a reflexão nela intervém somente

para a atividade de classificação (...)” (CLG, 1969, p.22)

Certamente, nenhuma outra posição lingüística até Saussure tinha

estabelecido com tanta acuidade e vigor o distanciamento entre a esfera

individual e a esfera social do funcionamento da linguagem. Ao mesmo tempo,

entretanto, é preciso lembrar que ele insistiu sempre na interdependência desses

dois constituintes:

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“Sem dúvida, os objetos [langue e parole] estão estreitamente

ligados e se implicam mutuamente; a língua é necessária

para que a fala seja inteligível e produza todos os seus

efeitos; mas esta é necessária para que a língua se

estabeleça”. (CLG, 1969, p.27)

A autonomia dos estudos da langue produziu resultados consideráveis para

a ciência da linguagem. A estabilização do objeto, empiricamente independente

do conhecimento histórico, permitiu ao lingüista entender e apreender

sincronicamente os princípios que “administram” o sistema. As “regras imanentes”

de cada estado de língua puderam ser percebidas conforme elas operam, se

efetivam, se transformam, evidenciando, embora sutilmente, como as formas e

sentidos se integram no sistema, num dado período, sem interferência dos

ditames da evolução, anterior ou futura. Cabe salientar, entretanto, que a

prioridade dada ao estudo sincrônico não revela que o fundador da lingüística

desconhecia o fato de ser a língua fundamentalmente histórica e inconstante.

Pelo contrário, é por ter reconhecido a mutabilidade e a historicidade da língua

que ele assinala a necessidade de distinguir fatos concernentes ao sistema

lingüístico de fatos relativos à evolução lingüística:

“a multiplicidade de signos (...) da língua nos impede

absolutamente de estudar-lhe, ao mesmo tempo, as relações

no tempo e no sistema (CLG, 1969, p.96); a langue constitui

um sistema de valores puros que nada determina fora do

estado momentâneo de seus termos. (CLG, 1969, p.95)”

Determinados constructos teóricos, acerca da variação lingüística,

formulados por Saussure e defendidos por muitos lingüistas do estruturalismo

europeu, encerram, por vezes, limitações que impedem uma compreensão mais

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apurada e mais intensa a respeito da dinamicidade lingüística. São preceitos,

investigações que, barradas pelas doutrinas científicas, ideológicas e, por que não

dizer contextuais, da época, não conseguiram apreender o fenômeno em sua

totalidade. Ao vislumbrarem o tempo como única força capaz de acarretar

mudanças profundas na língua, o exímio teórico e seus seguidores ignoraram,

potencialmente, o papel e a relevância de diversos fatores, de natureza interna e

externa, que também podem propiciar a transposição, a passagem de um estado

sincrônico para outro. Dentre alguns fatores, merecem destaque aqueles de

caráter social e cultural. Os reveses do tempo asseguram, excepcionalmente, o

reconhecimento de dois estados de língua, isto é, marcam os limites transitórios

de uma língua que detém, em seus múltiplos estágios, aspectos fônicos, mórficos,

sintáticos e estilísticos distintos.

Quando Saussure afirma, veementemente, que a língua é uma instância

puramente social, alguns esclarecimentos são relevantes para que não se

fecunde uma concepção de dinâmica sistêmica relacionada com os princípios

axiológicos, extremamente instáveis (não caóticos), que inerentemente

constituem a língua(gem). Ao abstrair a sociedade dos estudos lingüísticos,

Saussure declara explicitamente que a língua conserva princípios constitutivos e,

o mais importante, únicos. Tais princípios, abstratos, porém não irreais,

configuram um padrão que se impõe homogeneamente a todos os indivíduos de

uma dada comunidade. Daí advém a tese de que a língua é uma entidade

coletiva. A seguinte fala de Lyons assevera as idéias acima:

“Ao afirmar que os sistemas lingüísticos são fatos sociais,

Saussure estava dizendo várias coisas: que eles são

diferentes dos objetos materiais, embora não menos reais do

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que esses; que são externos aos indivíduos e sujeitam-nos à

sua força restritiva; que são sistemas de valores mantidos por

convenção social.” (1987, p. 205)

Os elementos lexicais, gramaticais e fonológicos que são interiorizados,

adquiridos, assimilados por cada indivíduo e que lhe permitem falar e entender a

língua da sociedade em que foi educado só podem ser considerados como

indícios sociais na medida em que sua aquisição e disponibilidade se processam

idêntica e indistintamente para todos os falantes.

Não estaremos agredindo o pensamento saussureano se declararmos que a

descrição sincrônica somente se sustenta a partir da identificação de língua

enquanto estrutura, visto que, convenientemente, tal formulação confere-lhe o

status de instância abstrata, sistemicamente consolidada, que independe da

substância física (ou meio) em que se realiza. Nesse sentido, a noção de sistema

solidário cujas partes constituintes estão inter-relacionadas, não amontoadas,

converge, então, para o ensinamento de que a langue é forme, non substance.

De acordo com esse ponto de vista, a língua nada mais é que um sistema de

relações, ou melhor, comporta dois níveis nos quais todas as formas lingüísticas

(fonemas, morfemas, etc.) encadeiam-se, distribuem-se, em suma, relacionam-se.

Surgem, então, as relações sintagmáticas e paradigmáticas. A primeira,

responsável pela ordenação seqüencial dos elementos no enunciado, rege o

princípio da linearidade, resultante este do pacto firmado entre os elementos que,

combinatoriamente, contrastam entre si. Essa relação opositiva não atinge

apenas os sintagmas, indo além, ocorrendo, indiscriminadamente, entre

elementos de mesma classe lingüística: fonema diverge de fonemas, morfema se

opõe a morfemas, etc., instaurando os processos distribucionais de natureza

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exclusivamente funcional. A segunda, paradigmática, de ordem associativa, opera

no eixo dos sistemas de categorias (classes) e dos elementos, engendrando

novos termos através de substituições de ordem contrastiva e/ou identitária. As

comutações se efetivam mediante abstrações de traços lingüísticos,

permanentemente comuns, que passam a figurar como paradigmas.

Essas interrelações (combinatórias e comutáveis) ganham contornos mais

nítidos quando se agregam às reflexões acerca do signo lingüístico e,

consequentemente, ao postulado de sua arbitrariedade.

Erigido diadicamente, o signo saussureano resulta da fusão de um conceito

com uma imagem acústica. Por conceito, entende-se a representação mental de

um objeto, forjada a partir da realidade social em que nos inserimos e por isso

condicionada pela formação sociocultural que nos circunda desde o nascimento.

Em outras palavras, para Saussure, conceito equivale a significado (plano das

idéias), algo como o lado espiritual da palavra, sua contraparte inteligível, em

oposição ao significante (plano da expressão), que é sua parte sensível. Por outro

lado, a imagem acústica não é o som material, coisa puramente física, mas a

impressão psíquica desse som. Melhor dizendo, a imagem acústica é o

significante. Com isso, temos que o signo lingüístico é uma entidade psíquica de

duas faces semelhante a uma moeda.

Estabelecida a acepção do signo lingüístico como entidade de duas faces,

Saussure procede à sua caracterização. Desde logo, Saussure apura a

arbitrariedade do signo. A associação entre significante e significado é arbitrária.

O vínculo que une as duas faces do signo é de natureza convencional, ele

assenta num hábito coletivo. Assim, a idéia de "mesa" não está ligada por

nenhuma relação à sucessão de sons [m] + [e] + [s] + [a] que lhe serve de

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significante; podia ser tão bem representada por qualquer outra. As diferenças

entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes comprovam tal

afirmação.

Apesar das críticas arremessadas ao saussureanismo, muitas delas

descabidas e “ingênuas”, há de se reconhecer a sua insigne importância e

fecundidade. A Lingüística só se construiu verdadeiramente quando outros

rebentos, enxertados pelas reflexões do mestre suíço, seja para refutá-las, segui-

las ou, poucas vezes complementá-las, procuraram interrogar sobre o modo como

as línguas se modificam, para, daí, saber como elas funcionam. Seu grande

mérito não jaz, unicamente, na descoberta das ilustres dicotomias, mas,

principalmente, nos questionamentos epistemológicos que foi capaz de suscitar. A

esse respeito, afirma Pais:

“l’importance de son travais découle surtout des questions

extrêmement fécondes qu’il a soulevées, sur lesquelles sés

successeurs ont dû se pencher longuement.” (1993, p.30)

11..22..22.. MMaarrttiinneett ee aa dduuppllaa aarrttiiccuullaaççããoo lliinnggüüííssttiiccaa

Adepto do funcionalismo, o lingüista francês André Martinet concebe a

linguagem como um processo no qual se sobressaem dois elementos: o código

(elementos lingüísticos que constituem o sistema) e a mensagem (a informação

operada através dos atos de fala). Para o autor, o funcionamento da língua se dá

através das escolhas do falante, que faz uso do código para satisfazer sua

intenção de comunicação. Não há lugar, em sua teoria, para o tratamento

substancial da informação, ou seja, inexiste o interesse em se investigar como

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esse fenômeno se constitui e como se efetiva mediante a presença dos

interlocutores:

“[...] o homem se serve da língua para se exprimir, ou seja,

para analisar o que sente, sem se preocupar grandemente

com as reações de eventuais ouvintes.” (Martinet, 1970,

p.06).

O termo ‘escolha’, empregado por Martinet, não traduz sequer um caráter

dinâmico de enunciação visto que o falante apenas seleciona as estruturas que

vão corporificar a mensagem. A partir de determinadas seleções, um número de

elementos da mesma classe é excluído e, com isso, atualiza-se, opositivamente,

o código. Os mecanismos que permitem a este recuperar e armazenar a

informação elaborada não são levados em consideração, o que exclui,

consideravelmente, a possibilidade de se examinar o dinamismo do sistema.

Sua definição de língua, lapidada no espírito saussureano, reflete e, ao

mesmo tempo, reforça convicções ainda estruturalistas. Situada entre as

instituições humanas, a língua, na perspectiva martinetiana, é demarcada

estaticamente como um instrumento de comunicação, cuja funcionalidade

encontra-se submetida inteiramente às necessidades de compreensão mútua dos

membros de determinado grupo social. Enquanto entidade institucional, é

organicamente formada por regras (códigos), sincronicamente apreendidas e

sistematizadas que a regem e a constituem. Tudo concorre para uma

mutabilidade sistêmica subordinada às pressões temporais e, precipuamente, às

adaptações espaciais, ambas se realizando simultaneamente, ou seja: uma

sociedade detém formas específicas de organizar linguisticamente seu

pensamento que a diferenciam de outra e, com o passar do tempo, essas formas

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tendem a variar para satisfazer as novas necessidades comunicativas dos novos

indivíduos.

Se a função central do utensílio língua é a comunicação, faz-se necessário

distingui-lo de outros sistemas, vocais ou não, que também primam pela atividade

comunicativa. Assim, como discriminar gritos e grunhidos confusos de animais,

sinalização das estradas, ou simplesmente, imagens visuais de manifestações

genuinamente lingüísticas? O teórico francês dissolve o questionamento ao

certificar que a linguagem humana, por extensão a língua, ao contrário de outras

manifestações que geram a comunicação, reserva para si o caráter da

articulação. O homem só se faz entender na medida em que produz enunciados

harmoniosamente articulados em palavras sucessivas, as quais,

semelhantemente, são constituídas por nítidas sucessões fônicas. Depreende-se,

então, que fazer a língua funcionar é articulá-la em dois planos intimamente

relacionados: um em que os enunciados se articulam em monemas (unidades

mínimas significativas), e outro em que os monemas se articulam em fonemas

(unidades mínimas distintivamente sonoras):

“Uma língua é um instrumento de comunicação segundo o

qual, de modo variável de comunidade para comunidade, se

analisa a experiência humana em unidades providas de

conteúdo semântico e de expressão fônica – os monemas.

Esta expressão fônica articula-se por sua vez em unidades

distintas e sucessivas – os fonemas –, de número fixo em

cada língua e cuja natureza e relações mútuas também

diferem de língua para língua” (Martinet, 1970, p.17-18).

A sucessividade das unidades articulatórias é desencadeada e, sobretudo,

garantida pelo princípio da linearidade, visto que em cada segmento enunciado,

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tanto concentra valor a ordem dos fonemas como a seleção destes para a

formação dos monemas. O termo acústico /amor/ comporta os mesmos

elementos sonoros que /roma/, mas os dois signos são distintos. Já nas unidades

de primeira articulação, o fenômeno apresenta certa complexidade. A estrutura O

policial prendeu o bandido não encerra a mesma significação da sucessão O

bandido prendeu o policial, porém, em determinadas estruturas, pode-se

vislumbrar o deslocamento de um signo de um ponto a outro sem que acarrete

mudança de sentido, como se sucede em Ontem fui à praia e Fui à praia

ontem.

É interessante notar que o caráter linear que perpassa as duas articulações

traz à tona a propriedade que Martinet considera fundamental para que a língua

se imponha como um instrumento comunicativo de emprego geral, a economia

lingüística. Como nenhum sentido se prende aos segmentos fônicos, não se fixa,

assim, nenhuma barreira semântica que obstrua a escolha, ou melhor, a seleção

de matéria sonora para concretização dos segmentos monêmicos. Em outros

termos, a segunda articulação concentra a vantagem de tornar independente do

valor do significado a forma do significante correspondente, atribuindo, assim,

maior estabilidade à forma lingüística. O testemunho do autor alicerça tais

ponderações:

“A articulação de uma palavra numa sucessão de fonemas

impede que o sentido dessa palavra exerça qualquer

influência sobre esta forma. Pode-se conceber cada fonema

como um hábito motor particular que permanece sempre

idêntico a si próprio, qualquer que seja o sentido do contexto

no qual aparece” (Martinet, 1975, p.16).

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As escolhas operadas pelo locutor não podem ser concebidas como ações

que desencadeiam a dinâmica do sistema. Os fatos ocorrem previsivelmente: o

sujeito falante, imbuído do desejo de comunicar, constrói um número infinito de

mensagens diferentes a partir do encadeamento de códigos, de natureza

significativa (os monemas) e de ordem sonora (fonemas). Conforme Barbosa, “em

nenhum momento, na teoria clássica de Martinet, se vislumbra a variação do

sistema. O código aparece como uma disponibilidade estática para as

atualizações e como um modelo pronto, segundo o qual se analisam as

experiências individuais” (1996, p.22). Estas, por sua vez, são responsáveis tanto

pela existência do ato comunicativo, como também pela distinção e classificação

dos fenômenos lingüísticos.

11..22..33.. CChhoommsskkyy ee aa GGrraammááttiiccaa GGeerraattiivvaa

Foi em 1957 que Noam Chomsky, lingüista americano e pedagogo, fundou a

gramática gerativo-transformacional, um sistema que revolucionou a lingüística

moderna. Publicada em seu livro Syntatic Structures, essa teoria estabelece um

novo método de análise sintática de frases que leva em consideração a diferença

entre os níveis “superficial” e “profundo”. No nível de superfície, estruturas como

“Maria está ansiosa por agradar” e “Maria é fácil de agradar” podem ser

investigadas de maneira análoga, caso se considere apenas a função sintática

dos termos que as constituem. Entretanto, do ponto de vista de seu significado

subjacente, os dois enunciados se distanciam completamente. No primeiro, jaz a

informação de que Maria deseja, aflitamente, agradar alguém; já no segundo

enunciado, tem-se o parecer de que alguém pretende ou encontra-se empenhado

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em agradar Maria. Delineiam-se, assim, os contornos de uma gramática que se

define como um sistema de regras que unem as unidades fônicas à sua

interpretação semântica. O testemunho que se segue firma, em bases sólidas, as

reflexões esboçadas:

“A estrutura profunda contém, portanto, todos os dados que

devem permitir determinar o conteúdo semântico da frase,

enquanto a estrutura superficial, todos os elementos que

devem permitir alcançar a forma fonética da frase” (Nivette,

1975, p.43).

Adentrando pelo viés metodológico, percebe-se que a teoria gerativa

apresenta limites não muito bem delimitados, ocorrendo discrepâncias que

requerem um exame apurado de determinados axiomas epistemológicos. Em

primeiro lugar, Chomsky baseia-se em argumentos racionais e em hipóteses

intuitivas sobre a linguagem para construir um modelo lógico-matemático capaz

de tornar explícito o sistema mental de regras interiorizado pelo sujeito falante e

que se encontra subjacente em todos os seus atos de realização vocal. Em

seguida, reconhece o teórico a necessidade de recorrer a ações empíricas, visto

que objetiva a certa formalização, porque não dizer, aprisionamento do objeto.

Torna-se impossível explicar a natureza das regras como também a descrição

das mesmas se um recorte sincrônico não for firmado, separando, rigorosamente,

aquilo que é inerentemente lingüístico do que não é lingüístico. Com isso, a ficção

da homogeneidade do sistema lingüístico é mais uma vez posta em cena.

A gramática gerativa surge, pois, como uma teoria visivelmente

estruturalista. Ao focalizar a língua segundo o aspecto sincrônico, considerando-a

uma estrutura, propõe-se por alvo o sistema ordenado das unidades e das

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relações. A inconstância sistêmica é atribuída ao processo de reconhecer e

formular estruturas sintaticamente aceitáveis, embora previstas e, sobretudo,

permitidas pelas regras assimiladas, automaticamente, pelos sujeitos falante-

ouvinte.

Procurando dados que sustentem a sua opinião, Chomsky concebe, ao

sabor saussureano, uma dicotomia: competência x performance. O conhecimento

que o falante-ouvinte tem das regras de sua língua, ele chamou de competência.

Ao emprego efetivo dessa língua em situações concretas, denominou de

desempenho (performance). Deduz Chomsky que a lingüística deve “apoderar-

se”, unicamente, do estudo da competência, da descrição das regras que

governam a estrutura e relegar, fortemente, a instabilidade e os “erros” de

desempenho (o uso). Eis, a respeito, a afirmação de Neto:

“Chomsky desloca a questão fundamental da teoria lingüística

para a determinação das regras que regem os “corpora

representativos”, que deixam assim de ser o ponto de partida

da teoria lingüística e passam a ser o seu ponto de chegada”.

(2004, p.99)

A atenção de Chomsky recai, portanto, sobre a competência, a qual concebe

como a possibilidade ilimitada do locutor de construir e compreender um número

infinito de frases a partir de um número finito de regras, incluído, pois, o

julgamento de sua gramaticalidade. Para o autor, a comunidade lingüística possui

um conhecimento compartilhado sobre os enunciados que podem e os que não

podem ser produzidos e é justamente este conhecimento que constitui o escopo

da gramática gerativa, de natureza inata e de idêntica disponibilidade para todos

os falantes. Atribui-se, então, à competência um caráter rigidamente sincrônico. O

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testemunho de Nivette explicita nitidamente a posição do gerativismo de negar o

desempenho:

O estudo da competência consistirá, pois, na elaboração de

teorias relativas ao poder lingüístico do homem, enquanto o

estudo do desempenho, na elaboração de teorias destinadas

a apresentar ou a explicar alguns aspectos do

comportamento do homem, quando utiliza o seu poder

lingüístico. Uma gramática gerativa pode considerar-se como

representante de uma teoria parcial do poder lingüístico; de

maneira alguma, ela não pode nem pretende ser uma

descrição dos comportamentos lingüísticos reais. (1995, p.81)

Embora Chomsky reconheça a existência de uma criatividade lingüística (a

produção de sentenças), esta se resume a um simples processo de codificação e

decodificação. Não se percebe em seu modelo lingüístico-computacional uma

dinâmica de sistema, entendida, como um conjunto de regras que sirva para

explicar a instabilidade sistêmica decorrente das coerções discursivas. Em outras

palavras, a gramática gerativa mostra-se indiferente ao processo interacional

característico dos atos comunicativos uma vez que suas “ferramentas” não

conseguem descrever a inter-relação existente entre a competência e fatores de

ordem psicológica e/ou social. A opinião de Barbosa vem a confirmar:

“(...) [Apesar de ter] constituído um notável avanço na ciência

da linguagem, a teoria sustentada por Chomsky e seus

discípulos repousa ainda numa concepção sincrônica de

sistema lingüístico”. (1996, p.27)

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11..33.. MMeettaammooddeellooss PPaannccrrôônniiccooss

É um dado empírico que todas as línguas estão sujeitas a constantes

transformações, acarretadas por inúmeros fatores, alguns dos quais bem

consolidados por algumas escolas lingüísticas. A tradição apregoou por muitos

anos que a versatilidade lingüística estava condicionada, preponderantemente, às

coerções temporais e que, ao cientista da língua cabia, unicamente, descrever os

efeitos destas para que, através de uma análise comparativa, se pudesse

estabelecer, entre línguas fronteiramente distintas, graus de identidade ou de

diferença. Era o primado dos estudos histórico-comparativos.

Outros lingüistas, já em cronologia distinta, todavia, não tão distanciada, se

propuseram a considerar, como fator desencadeador de instabilidade, a

satisfação comunicativa dos grupos sociais e a capacidade que tinha o indivíduo

para selecionar e combinar adequadamente os componentes formais da língua.

Entravam em vigor as abordagens estruturalistas.

Sintentizando, havia, na Lingüística Tradicional, a imposição metodológica

de situar a língua em dois pólos, caso se pretendesse descrever, mesmo que

superficialmente, a dinâmica do sistema lingüístico. Admitia-se ora o postulado

diacrônico segundo o qual as línguas evoluem ao longo do tempo, operando

basicamente transformações de caráter fonético e morfológico. Ora uma postura

sincrônica que permitia apropriar-se da língua enquanto entidade estática, cuja

dinamicidade aflui internamente através de movimentos associativos e

contrastivos dos signos.

Em decorrência dessas limitações, algumas linhas da Lingüística Atual, em

especial a Semiótica Francesa, estabeleceu, a fim de apreender e compreender o

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fenômeno lingüístico em sua plenitude, uma neutralização, uma fusão das

abordagens sincrônica e diacrônica. Ergue-se, então, o princípio da pancronia que

define a língua como um sistema enunciativo em incessante transformação

discursiva. É somente no e pelo discurso que a língua se constitui e, o mais

importante, funciona instavelmente. São as leis que regem o ato discursivo, entre

elas, as de caráter enunciativo e ideológico, as responsáveis, em maior grau, pela

manutenção, realização e variação sistêmica.

Compreendem, então, os meta-modelos pancrônicos os estudos teórico-

científicos que procuram examinar as relações entre os sistemas lingüísticos e os

outros sistemas semióticos atuantes nas comunidades lingüístico-culturais e de

suas funções na dinâmica sócio-histórica dessas comunidades. A semiótica

greimasiana, por exemplo, ao se voltar para o discurso buscando investigar as

relações entre linguagem e sociedade, articulando os diversos sentidos de forma

a projetar, a exteriorizar as intenções e valores daqueles envolvidos no universo

enunciativo, apresenta-se, indiscutivelmente, como uma teoria cujos fundamentos

se organizam pancronicamente.

É importante ressaltar que o gérmen da pancronia já se presentificava em

abordagens anteriores à efetivação concreta e científica das grandes linhas

teóricas, tais como, Análise do Discurso, Semiótica, Pragmática, etc. À vista

disso, faz-se necessário distinguir as abordagens que não são propriamente

pancrônicas, conquanto concentrem elementos que podem conduzir a um certo

dinamismo dos fenômenos lingüísticos. São posturas teóricas cujas ações

metodológicas se situam transitoriamente entre a sincronia e a pancronia. Nesse

patamar, podem ser mencionadas as pesquisas desenvolvidas por Coseriu e

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Hjelmslev, nas quais se observa a gestação de uma visão pancrônica de sistema

e de estrutura.

11..33..11.. CCoosseerriiuu ee ssuuaa vviissããoo ttrriiccoottôômmiiccaa ddaa lliinngguuaaggeemm

Reformulando a famosa dicotomia saussuriana língua e fala, Eugenio

Coseriu postula que a linguagem humana pode ser estudada sob um tríplice

aspecto: o sistema, a norma e a fala. Para o lingüista romeno, a oposição

bipartida, ao se deter exclusivamente na imanência da língua, procurado os dados

permanentes, não constrói dados substanciais e concretos que possam servir

para o desvelamento funcional da linguagem. Fixa, pois, um elemento

intermediário – a norma – que se sustenta como um conjunto de “leis”, de caráter

sócio cultural, responsável por reger e, ao mesmo tempo, por organizar a

atividade vocal e a inferência desta no sistema. O seguinte esquema, formulado

pelo próprio autor, situa, mais claramente, o que de fato se passa na linguagem:

O primeiro quadrado corresponde à fala, isto é, ao conjunto dos atos

lingüísticos registrados pelos falantes de um idioma, no próprio momento de

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produção. A norma, primeiro nível de abstração na análise dos fatos lingüísticos,

estaria representada pelo segundo quadrado. É de natureza dinâmica,

englobando aquilo que, no falar concreto, constitui repetição de modelos

anteriores. Por último, o terceiro quadrado nos guia ao segundo grau de

abstração lingüística, o sistema. Trata-se de uma organização abstrata,

convencional, distribuída na mente de todos os falantes de uma dada língua. Um

único indivíduo, ou uma classe ou uma parte da comunidade não possuem o

sistema em sua totalidade; ele se acha repartido em toda a comunidade

lingüística.

Dentro dessa formulação, o dinamismo lingüístico aparece hierarquizado,

atingindo os três níveis. Todo ato de fala é essencialmente acidental e, por isso,

em tempo algum se repete em idênticas condições, sejam elas de enunciado, de

enunciação ou de contexto lingüístico. A sucessão ininterrupta de atos lingüísticos

distintos faz com que determinadas diferenças se acumulem lentamente, a ponto

de acarretar uma mudança de norma. Por sua vez, as variações operadas na

norma armazenam-se, de tal forma, que motivam uma mudança ao nível do

sistema. Tem-se, então, segundo Barbosa, uma dinâmica evolutiva que pode ser

ilustrada por um esquema de três engrenagens:

Sistema Norma “uso” Fala

Constata-se, pois, que a mudança lingüística tem sua origem no processo

enunciativo, efetivando-se mediante as “ações” realizadas pelos sujeitos falante-

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ouvinte. É a expressividade lingüística do indivíduo que fere a norma, alterando-a

e, consequentemente, ajustando-a aos limites permitidos pelo sistema. Com

efeito, o equilíbrio sistêmico sofre uma nova reformulação, o que, gerencialmente

falando, impede que as condições funcionais do instrumento lingüístico sejam

afetadas. Essas reflexões aparecem solidificadas em Barbosa, quando assim se

expressa:

“[Podemos] estabelecer certas relações entre o esquema de

abordagem do método pancrônico e o modelo de evolução

concebido a partir da distinção entre sistema e norma, e das

relações que mantêm estes últimos (1996, p.44); a mudança

lingüística que atinge os níveis se inscreve no mesmo

processo dinâmico, cujo ponto de partida é sempre o

indivíduo falante-ouvinte (1996, p.43).”

11..33..22.. HHjjeellmmsslleevv ee aa ffuunnççããoo sseemmiióóttiiccaa

Fundador de uma escola radical de lingüística estruturalista, a

Glossemática, Louis Hjelmslev elabora uma teoria universal capaz de ser aplicada

a todas as línguas humanas. Seu pensamento, largamente conhecido e discutido

pela cultura lingüística internacional, apresenta-se como a explicitação das

intuições profundas de Saussure.

O teórico dinamarquês foi um dos primeiros lingüistas a se apoderar

verdadeiramente da lógica matemática e da investigação científica como

ferramentas para o desenvolvimento das concepções saussurianas sobre a língua

enquanto objeto da lingüística e desta como ciência da linguagem. Ele conserva

do Cours, sobretudo, duas reflexões. A primeira diz respeito à afirmação de que a

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língua é forma e não substância. A outra, refere-se ao fato de que toda língua tem

ao mesmo tempo expressão e conteúdo.

Tais juízos, em Saussure, se fundem na sua concepção diádica do signo,

segundo a qual o elemento sígnico é tomado como uma entidade psíquica

constituída por duas faces, intimamente opostas e interdependentes: um conceito

e uma imagem acústica. Ao primeiro, designou significado e ao segundo,

reservou a denominação significante. Apreende-se mais nitidamente esse modelo

através do seguinte diagrama:

A concepção de Saussure sobre a língua enquanto pensamento

organizado em matéria sonora, e a sua definição da língua como forma e não

substância, foram amadurecidas por Hjelmslev na teoria sobre o plano da

expressão e o plano do conteúdo. Este pode ser considerado o mundo de

pensamentos que encontram expressão na língua. Aquele constitui o aspecto

externo da língua, isto é, a cobertura sonora, gráfica ou qualquer outro envoltório

do pensamento nela materializado.

Ademais, o autor propõe uma subdivisão desses dois planos, atribuindo a

cada um deles uma forma e uma substância. Cabe à língua o papel articulador

destes dois planos. O esquema seguinte, proposto por Pais, sintetiza, mais

claramente, as reflexões acima:

SIGNIFICADO

→ conceito

SIGNO

SIGNIFICANTE

→ imagem acústica

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Substância sêmica

CONTEÚDO

Forma semêmica

Sentido

sign

ifica

do

Forma fêmica

EXPRESSÃO

Substância femêmica

Sentido sign

ifica

nte

A forma de conteúdo engloba as relações entre as unidades sêmicas, ou

seja, refere-se à própria estruturação das idéias. Já a substância de conteúdo é o

pensamento ainda não estruturado (amorfo), ou seja, a projeção mental da

realidade extralingüística. Os sons ou as letras ainda não sistematizadas na

língua constituem a substância da expressão. Esses elementos são desprovidos

de valor lingüístico. No que tange à forma de expressão, a mesma abarca as

relações estruturais entre os sons, “representa o valor funcional dos fones na

língua” (Gomes, 2003, p.61).

A interdependência existente entre os dois planos, o autor considerou

como uma grandeza, indefinível por si mesma, a qual chamou de função

semiótica. Para Hjelmslev, uma função compreende uma relação na qual dois

termos se articulam dialeticamente, opondo-se e, ao mesmo tempo, contraindo-se

solidariamente. Nesse sentido, cada termo (funtivo) só se define em relação ao

outro e “os dois só existem naquela relação e a relação só existe entre os dois

termos” (Barbosa, 1996, p.35).

É esse vínculo recíproco estabelecido entre as grandezas expressão e

conteúdo que consolida e caracteriza a função semiótica. O resultado dessa

Função Semiótica

ϕσ

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dependência é a grandeza signo, que funciona, designa e, o mais importante,

concentra uma significação.

Torna-se, agora, conveniente traçar algumas distinções entre o modelo

hjelmsleviano e aquele proposto pelo mestre de genebra. Ora, enquanto

Saussure postula que a língua é um sistema de signos, um “dicionário”

intrinsecamente estável, a abordagem do lingüista dinamarquês alicerça-se na

concepção de função semiótica, segundo a qual as coerções discursivas são as

responsáveis pelas mudanças operadas no sistema. A cada novo ato

comunicativo, as grandezas sígnicas se atualizam, adquirindo feições semânticas

distintas. Esse fenômeno recebe o nome de semiose e caracteriza-se pelo ato

produtor de significação, gerado numa correlação entre signo e discurso. A esse

respeito afirma Barbosa:

“Temos, pois, na função semiótica e na semiose que a

instaura, os elementos fundamentais para a proposição de

um modelo mais dinâmico de sistema de signos, já que,

inclusive, uma propriedade essencial do signo é a de poder

comporta-se tanto como signo-objeto – quando substitui, por

assim dizer, o ‘objeto’ do qual esse signo é signo -, quanto

poder comportar-se como meta-signo – quando substitui não

já um ‘objeto’, diretamente, mas, sim, outros signos”. (1996,

p.38)

Depreende-se, pois, que a concepção de processo, utilizada por Hjelmslev

para se referir inicialmente aos atos de fala (texto), passa a abarcar também o

sistema, cujo dinamismo semiótico organiza, continuamente, os códigos e sub-

códigos que o constituem. Nesse sentido, pode-se inferir que o sistema produz o

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discurso que, por vez, transforma o sistema, num movimento ininterrupto de auto-

alimentação e auto-regulação da função semiótica.

11..33..33.. GGrreeiimmaass ee ooss nníívveeiiss sseemmiióóttiiccooss

O estatuto de ciência da significação, alcançado pela semiótica durante a

década de 60, advém dos trabalhos do lingüista Algirdas Julien Greimas. Com

sua Semântica Estrutural (1966), ele introduziu uma semiótica, de natureza

lingüística, altamente influente e produtiva, que se tornou o núcleo de uma escola

semiótica, a École de Hautes Études em Sciences Sociales de Paris.

Greimas se opunha, radicalmente, ao conceito comum de semiótica como

ciência dos signos, uma vez que essa concepção impedia que a “nova” ciência

ultrapassasse os limites das descrições intuitivas e filosóficas. Seu objetivo, aliás,

era fazer com que a Semiótica galgasse novos “degraus” em direção às análises

discursivas. Para tanto, renuncia a mera descrição da comunicação e investe,

forçosamente, na exploração do sentido. Institui-se, a partir daí, outras reflexões

epistemológicas e novos métodos de apreensão dos universos semiológicos:

rompe-se a barreira da frase, perpassa-se o texto até atingir o discurso. A

linguagem, nessa esfera, não mais é apreendida em suas realizações

fragmentadas e dessubstanciadas, e sim, como uma rede de relações

essencialmente significativas, o que elimina, de vez, a simples concepção de

língua enquanto sistema de signos encadeados.

Na definição greimasiana, a Semiótica constitui, então, uma teoria que

integra o processo comunicativo (assentado, agora, na perspectiva da ação e da

competência dos sujeitos enunciativos) a um processo muito mais amplo: o

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engendramento da significação. Esta, por sua vez, deve ser concebida não como

um a priori já substancialmente construído, que se revela integralmente e de

forma homogênea, mas, antes, e, sobretudo, como o resultado de articulações do

sentido. Recuperar, reconstituir os sentidos que se circunscrevem no discurso é o

fim primeiro de todo semioticista, que tem no texto não o seu objeto, mas o seu

instrumento de trabalho. Eis, a declaração de Cortina & Marchezan:

“É essa constituição do sentido que a semiótica busca

expressar, opondo-se, portanto, ao posicionamento de que

sobre o sentido nada se pode ou se deve dizer, por ser

evidente ou intraduzível, recusando também a paráfrase,

pessoal, impressionista, a interpretação intuitiva” (2004,

p.394).

As inquietações da semiótica residem, pois, na explicitação do modo por

meio do qual os sentidos se manifestam e se constroem discursivamente; em

outras palavras, para se extrair o “dito”, debruça-se inicialmente no “como”.

Pretende-se chegar não aos sentidos convencionalmente verdadeiros, frutos de

abstrações, mas, antes, àqueles que, no interior do discurso, aparecem como

veridictórios, simulacros da realidade.

Considerando a produção de sentidos como uma formação significativa,

Greimas concebe a descrição desta através de um percurso gerativo, simulacro

metodológico do ato real de produção significante, que vai do mais simples e

abstrato até o mais complexo e concreto. Esse percurso, ao levar em

consideração a organização imanente do discurso, focalizando suas

dependências internas, tende a constituir um modelo que, em linhas gerais, pode

ser operacionalizado em qualquer unidade textual. Traduzindo, a descrição da

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significação, em etapas, configura um padrão de previsibilidade comum a textos

de natureza diversa: verbais, não-verbais e, sincréticos, cujas textualizações são

compreendidas e examinadas por semióticas específicas.

O percurso gerador da significação é regido por três níveis de organização,

cuja construção terminológica deixa vir à tona a inspiração chomskyana. São eles:

o Nível fundamental, que corresponde à instância inicial do percurso que gera a

significação, abarcando as oposições semânticas básicas em torno das quais o

discurso se constrói; o Nível Narrativo, que comporta o fazer de um Sujeito

semiótico em busca de seu Objeto de valor, motivado por um Destinador,

auxiliado por um Adjuvante ou prejudicado por um Oponente; e o Nível

Discursivo, que opera sobre a relação fiduciária entre os sujeitos discursivos,

cujas escolhas possibilitam a conversão da narrativa em discurso.

Os níveis, ou estruturas, como também são designados, embora estejam

articulados, definem-se cada um por uma gramática autônoma: os níveis são

regidos por leis, regras e participantes próprios. Ademais, seu funcionamento está

relacionado com a natureza sintática ou semântica de sua operacionalização.

11..33..33..11.. NNíívveell FFuunnddaammeennttaall

O nível fundamental, também dito estrutura profunda, constitui a primeira

etapa do percurso que gera a significação, ou o ponto de partida na formação do

discurso. Sua formulação obedece a princípios lógico-conceptuais estruturados

por meio de uma sintaxe e de uma semântica fundamental.

A SINTAXE FUNDAMENTAL procura explicar o modo de existência da

significação como uma estrutura elementar, isto é, como uma estrutura em que as

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categorias sêmicas de um determinado micro-universo são apreendidas,

binariamente, por meio de relações antonímicas e hipônicas, que as tornam

suscetíveis de serem reduzidas a um único núcleo sêmico. Os semas, providos

de traços inerentemente conceptuais, são ordenados de forma a fornecer uma

diagramação e virtualização do funcionamento da significação, concebida, esta,

em extrações mínimas de sentido.

Para tornar-se operatória, a estrutura elementar é representada,

graficamente, por um modelo lógico, o do quadrado semiótico. Tem-se, então,

uma primeira configuração do micro-universo semântico do discurso, onde estão

presentes, aparentemente, apenas unidades sêmicas hierarquizadas. Estas,

numa visão mais profunda, constituem um lugar privilegiado no qual se articulam

e manifestam, de modo estrutural, porém não estático, os sistemas de valores ou

axiologias, e os processos de criação de valores recorrentes ou ideologias. O

testemunho de Courtés reforça o que foi dito:

“Les structures profondes sont beaucoup plus éloignées des

objets décrits, beaucoup plus générales. Il s’agit là d’um

niveau sous-jacent, qui correspond intuitivement à une

appréhension d’ensemble d’un univers sémantique determine”

(1991, p.136).

Considerando a oposição liberdade x opressão, o quadrado semiótico fica

assim representado:

S1 S2

liberdade opressão

não-S2 não-S1 não-opressão não-liberdade

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A formalização do quadrado semiótico se dá por meio de dois termos

positivos (S1 e S2) assentado no eixo da contrariedade, desdobrados em suas

realizações negativas (não–S1 e não-S2), responsáveis pelo eixo dos

subcontrários. O vínculo entre as categorias positivas e negativas estabelece uma

segunda geração dos chamados termos contraditórios e contrários. Pode-se

afirmar que a contradição é elaborada por um esquema positivo (S1 e não-S1) e

outro negativo (S2 e não-S2) enquanto a complementaridade se institui por meio

de uma dêixis positiva (S1 e não S2) e outra negativa (S2 e não-S1).

Sintetizando, tem-se:

A) Eixo horizontal: S1 + S2 e não-S1 + não-S2 (contrariedade). O primeiro

par traduz a oposição entre liberdade e opressão, sendo que o inverso também é

possível. O segundo, abarcando os subcontrários, denuncia uma ausência

conceptual, altamente significativa, que pode vir a ocorrer entre a não-liberdade e

não-opressão em dados universos semióticos.

B) Eixo diagonal: S1 + não-S1 e S2 + não- S2 (contradição). Em linhas

gerais, pode-se dizer que não-liberdade é o contraditório de liberdade e não-

opressão é o de opressão.

C) Eixo vertical: S1 + não-S2 e S2 + não-S1 (implicação). No primeiro

esquema, evidencia-se a complementaridade existente entre liberdade e não-

opressão; já o segundo encerra o elo implicativo que aproxima a opressão e a

não-liberdade.

Na verdade, as relações estabelecidas pelos quatro termos, na estrutura

elementar da significação, fazem surgir mais quatro numa posição

hierarquicamente superior, chamados metatermos, visto que representam a

junção de dois termos. Surge, então, não mais um quadrado e sim, um octógono,

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o que motivou a terminologia octógono semiótico. O gérmen dessa

formalização, principalmente no que concerne à forma, já se presentifica nos

trabalhos de Courtés. A complexificação das relações que se estabelecem no

octógono deve-se, no entanto, a outro discípulo de Greimas: Cidmar Teodoro

Pais. Observe-se um octógono elaborado pelo criador da semiótica francesa em

seu livro Sobre o Sentido:

A tensão dialética se sustenta entre ser e parecer que são os termos

contrários e o ponto de partida na geração do discurso no universo semiótico

dado. O contraditório de ser é não-ser e de parecer e não-parecer. Ser implica em

não-parecer e parecer implica em não-ser. Desses termos, resultam quatro

metatermos: segredo (que representa a junção entre ser e não-parecer), mentira

(que se fundamenta no parecer e no não-ser); verdade (que se define pela

combinação do ser e do parecer) e falsidade (que é o não-parecer e o não-ser).

O quadrado semiótico e a sua evolução, o octógono semiótico, são

representaçãos sintáticas da estrutura elementar da significação. Através deles,

observam-se as relações que sustentam qualquer oposição lógico-conceptual

parecer ser

não-parecer não-ser

segredo mentira

verdade

falsidade

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capaz de produzir sentido. São estruturas articuladas, lógicas, acrônicas, que nos

permitem representar a arquitectura do sentido num texto e, portanto, a forma do

conteúdo.

No que tange à SEMÂNTICA FUNDAMENTAL, pode-se dizer que constitui

a unidade mais abstrata da geração do sentido do discurso. Ela pode ser

considerada como “um inventário de categorias sêmicas, suscetíveis de serem

exploradas pelo sujeito da enunciação” (Greimas & Courtés, 1979, p.399). Essas

categorias semânticas passam a ter valor para a determinação, no quadrado ou

no octógono, da categoria tímica euforia x disforia. A euforia estabelece uma

relação axiologicamente positiva, de conformidade, enquanto a disforia determina

uma relação conceptualmente negativa, de desconformidade.

São as timias que oferecem as primeiras conotações conceptuais ao texto,

e por conseguinte, revelam o conceber, embora ainda sensível, do sujeito que as

engendra. A interpretação, então, é um componente privilegiado na construção

desse “mínimo de sentido” que gera o texto. Assim, formalizadas, constituídas, as

estruturas fundamentais convertem-se em estruturas narrativas, que por sua vez,

após a sua constituição, tranformam-se em discurso. Esse itinerário será descrito

mais adiante.

11..33..33..22.. NNíívveell NNaarrrraattiivvoo

De natureza antropomórfica, o nível narrativo procura reconstituir o fazer

do homem, que transforma a história e o mundo, ao buscar os valores

necessários à sua própria existência sóciocultural. A narrativa, sobre a qual se

debruça, nesse patamar, não pode ser considerada em sua acepção literária que

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a define como simples história que se constrói por meio de uma secessão de

fatos (des)encadeados pela voz de um narrador. Deve-se, em termos semióticos,

tomá-la enquanto simulacro do ser e do agir de sujeitos, cujos conflitos e

contratos operam transformações que representam, em nível sociológico, o

próprio comportamento humano. Recorrendo ao testemunho de Barros, tem-se:

“As estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a

história do homem em busca de valores ou à procura de

sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os

relacionamentos humanos” (1990, p.16).

A organização da narrativa se processa através do estabelecimento de

seus mecanismos de estruturação sintática e da investigação de questões

semânticas de modalização.

A SINTAXE NARRATIVA se organiza em torno da atuação de um sujeito

semiótico, cognitivamente ativo, que realiza uma trajetória em busca de seu

objeto de valor. Todas as transformações operadas no universo narrativo

decorrem de modificações da relação entre esse dois pólos. É um vínculo que se

estabelece por meio de uma relação de desejo: o sujeito é aquele que quer, que

pretende o objeto. Advirta-se, no entanto, que sujeito e objeto não são

personagens, são precipuamente entidades actanciais que definem relações,

operam mudanças e conservam estados.

Na estrutura elementar da narrativa, em cujo centro estão presentes o

sujeito e o objeto, surgem outros agentes que atribuem uma dinamicidade à

relação base. Instalam-se, assim, o Destinador que incita o sujeito a adquirir o

objeto desejado; o Adjuvante que o favorece, seja física ou psicologicamente,

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para que este obtenha o valor almejado; e o Oponente, cujas ações visam

prejudicar o sujeito em sua realização. Esse espetáculo tem um caráter

permanente, ou seja, o conteúdo das ações muda todo o tempo, os actantes

variam, mas o enunciado-espetáculo mantém-se sempre o mesmo, pois a sua

permanência está garantida pela distribuição única dos papéis. Para dar uma

ilustração desse modelo, considerem-se os enunciados O professor deu um livro

ao aluno e O aluno recebeu um livro do professor. É fácil perceber que o actante

<aluno> detém, nos dois casos, o mesmo estatuto de Destinatário, do ponto de

vista da forma do conteúdo, mesmo se, ao nível da manifestação lingüística, o

seu papel sintático é evidentemente distinto. A diagramação elaborada por Batista

(1999), permite uma visualização mais sistemática das relações estabelecidas

entre os actantes da narrativa:

Anti-Destinador

Destinador → Objeto → Destinatário

Adjuvante → Sujeito ← Oponente

Anti-Sujeito

Como se pode notar, esse modelo actancial se apóia numa relação

paradigmática na qual os participantes são projetados aos pares e em

consonância com a função dialética por eles desempenhada. Tem-se, em tal

caso, uma organização de conjunto articulada em três grupos de actantes: Sujeito

(S) / Objeto (O), Adjuvante (Adj) / Oponente (Op), Destinador (Dor) / Destinatário

(Dário).

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Embora sujeito e objeto se situem em um mesmo eixo estrutural, suas

relações não são simétricas, mas antes, orientadas. Essa orientação, de natureza

transitiva, vai da permanência à mudança, do estatismo ao dinamismo, dos

estados às transformações. É precisamente esta dicotomia que serve de base

para a distinção de dois tipos de função: a fonction-jonction que corresponde à

permanência, aos états de choses e a fonction-transformation, relacionada com a

mudança, com a variação, em suma, com o dinamismo.

A função-juntiva estabelece o enunciado de estado, que se traduz na

relação entre um sujeito e um objeto, os quais se definem e se sustentam

mutuamente: não há sujeito sem objeto nem objeto sem sujeito. Em outros

termos, o liame entre sujeito e objeto permite “considerar este sujeito e este

objeto como semioticamente existentes um para o outro” (Courtés, 1979, p.82).

Como categoria sêmica, a junção pode situar-se em duas instâncias

contraditórias: a conjunção que concerne ao estado de posse ou conservação do

objeto, e a disjunção que implica o estado de privação ou de não conservação do

objeto. Esquematicamente, tem-se:

F junção (S, O)

S ∩ O (deve ler-se sujeito em conjunção com o objeto de valor)

S ∪ O (deve ler-se sujeito em disjunção com o objeto de valor)

Conforme sublinha Greimas (1975), a disjunção, sendo a denegação da

conjunção, não é ausência de relação entre os actantes sujeito e objeto, uma vez

que a destruição de qualquer vínculo entre eles conduziria à abolição da

existência semiótica. Concebe-se, então, uma virtualização da relação entre

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sujeito e objeto, mantendo-a, por sua vez, como possibilidade de conjunção. É

assim que, por exemplo, se o sujeito <príncipe> em seu percurso de salvamento

da princesa, estiver disjunto do objeto <espada> (devido a uma perda ou furto), a

relação continua a manter-se, mesmo sob a forma negativa.

Complementando o estudo sobre a dicotomia greimasiana conjunção e

disjunção, Courtés indica a possibilidade de uma outra função, a da suspensão

que corresponderia, seguindo a formulação do quadrado semiótico, à negação

simultânea da disjunção e da conjunção. Suspensão significa nem disjunção, nem

conjunção. Dessa forma, se em determinado universo semiótico o <amor>

aparece conjuntivo por oposição ao <ódio>, de caráter disjuntivo, a <indiferença>

corresponderia adequadamente ao termo neutro (suspensão). Eis um octógono

que sistematiza as ponderações realizadas:

jonction avoir ne pas avoir

conjonction disjonction

trouver perdre non- disjonction non- disjonction suspension

A função-transformação acarreta o enunciado de fazer, que implica na

passagem de uma relação de estado para uma outra (da disjunção para a

conjunção, ou inversamente). Pode-se dizer, assim, que todo enunciado de fazer

pressupõe dois enunciados de estado: um situado acima e o outro, abaixo. O

encadeamento destes se configura de maneiras distintas. A sucessão de um

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enunciado conjuntivo e de um enunciado disjuntivo, ou o contrário, que modifica

um mesmo sujeito (S) na sua relação com o objeto (O), só é garantido pela

interferência de um meta-sujeito capaz de operar a mudança, cujo estatuto formal

se explica pela fórmula:

F (transformação) (S1 → O1), onde

S1 é o sujeito que realiza a transformação e

O1 o enunciado de estado a que ela conduz.

No entanto, se considerarmos a seqüência sintagmática (S1 υ O) → (S1 ∩

O) segundo a qual o Sujeito (S1) assenta-se numa relação de disjunção com o

objeto (O), e a seguir consegue está conjunto com ele, devido a uma

transformação intermediária, deve-se admitir a intervenção de um fazer

transformador que permita obter a segunda relação de estado, executada por um

meta-sujeito (S2):

F (transformação) [ S2 → (S1 ∩ O1), onde

S2 é o sujeito do fazer transformador

S1 é o sujeito que, por meio do agir do S2, fica conjunto com o objeto (O).

É a partir desses dois tipos de enunciado – de estado e de fazer –

progressivamente construídos, que se depreende a unidade operatória da

organização narrativa de um texto, o programa narrativo (PN). Este comporta um

enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. Integra, portanto, uma

sucessão de estados e de transformações, ambos, na base da relação S – O:

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PN = F [S1 → (S2 ∩ Ov)], onde: F = função

→ = transformação

S1 = sujeito do fazer

S2 = sujeito do estado

∩ = conjunção

Ov = objeto-valor

Os semioticistas se valem da diagramação do programa narrativo a fim de

descreverem a trajetória realizada por um sujeito semiótico em perseguição ao

objeto de valor desejado. É constituído por mais de um programa hierarquizado, o

que impõe a distinção entre o programa principal (PP) ou programa de base e os

programas auxiliares (PA) ou de uso, pressupostos estes, pela existência

daquele.

A fórmula horizontal, como dá para perceber, encerra limitações visto que

não leva em consideração o desempenho dos demais actantes que

sobreorganizam a narrativa. Optam, então, os estudiosos por um modelo em

forma de retâgulo cujas regras de formalização são as seguintes: na extremidade

superior direita, direcionando o percurso, situa-se o Destinador (Dor) que,

dialeticamente, estabelece a existência, em posição paralela, do Anti-Destinador

(Dor); na extremidade esquerda, fixa-se o Destinatário (Dário), do qual parte uma

seta, de sentido vertical, em cujo extremo se posiciona o Sujeito (S). Ao seu lado,

instaura-se o Anti-sujeito (S). Uma reta, partindo do sujeito, é esboçada para

representar o seu percurso em direção ao seu Objeto de Valor (OV), que ocupa,

pois, a posição final dessa linha. O Adjunvante (Adj) e o Oponente (Op) devem

estar situados na parte inferior do retângulo da seguinte forma:

(Dor)

(S)

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Dário Dor Dor

P. Principal Adjuvante OV1 S1 S1

Oponente P. auxiliar 1 S1 OV2 P. auxiliar 2 S1 OV3

Um programa narrativo, qualquer que seja, pressupõe sempre um outro

programa narrativo de natureza contrária. Quer dizer, um programa narrativo

caracterizado pela conjunção para determinado sujeito corresponde a um

programa de disjunção para outro sujeito. Ocorre, por assim dizer, uma circulação

de objetos entre sujeitos que estabelece uma comunicação participativa e

hierarquica na qual se sobressaem dois tipos de relações: as polêmicas,

construídas no embate entre dois sujeitos pela obtenção do mesmo valor e as

contratuais, que concernem à troca de objetos entre sujeitos.

Se em dado programa narrativo, a transformação possibilita a conjunção

com o objeto, institui-se um percurso de aquisição do objeto de valor; caso resulte

em disjunção, fala-se em percurso de privação. Ambos são formulados tendo em

vista o caráter transitivo e reflexivo da mudança. O fazer transitivo implica o

revestimento actancial de S1(sujeito de estado) e S2 (sujeito de fazer) por atores

diferentes e o fazer reflexivo emerge quando os pápeis de sujeito de estado e

sujeito de fazer são concebidos por um mesmo ator. O gráfico que se segue,

apresentado por Courtés, enseja uma melhor compreensão desse fenômeno:

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(jonction)

(conjonction) (disjonction)

ACQUISTION PRIVATION

(transitive) (réfléchie) (transitive) (réfléchie) ATTRIBUTION APPROPRIATION DEPOSSESSION RENONCIATION

épreuve

don

Como se percebe, a toda conjunção corresponde em qualquer parte uma

disjunção e vice-versa. À relação conjuntiva atribui-se a ocorrência de duas

espécies de transformação: a atribuição (fruto de uma ação transitiva) e a

apropriação (resultante de um fazer reflexivo). Analogamente, o caráter dinâmico

da disjunção faz emergir duas formas de relação actancial: a despossessão, que

se efetiva por meio de um ato transitivo; e a renúncia, que se afirma através de

um agir reflexivo. A passagem do estado de apropriação a uma condição de

despossessão é garantida pela intervenção de um fazer operador, de uma prova

(épreuve). Já o fenômeno que produz solidariamente uma atribuição e uma

renúncia, denomina-se dom (don). Transpondo essas considerações para a forma

de esquema, tem-se:

F [ S1→ (S2 ∩ O) = PN de atribuição

F [ S1→ (S1 υ O) = PN de renúncia

F [ S1→ (S2 υ O) = PN de despossessão

F [ S1→ (S1 ∩ O) = PN de apropriação

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Enquanto a sintaxe narrativa se detém sobre as transformações operadas

a partir do objeto de valor, A SEMÂNTICA, desse nível, ocupa-se dos valores

modais do sujeito semiótico. São valores, de natureza semântico-cognitiva,

necessários para que o sujeito realize a ação que o levará ao estado juntivo.

A modalização como componente axiológico do percurso narrativo atinge

tanto o enunciado de estado quanto o enunciado de fazer. No primeiro, denomina-

se modalização do ser e recai sobre o sujeito de estado, atribuindo-lhe uma

existência modal. No segundo, recebe o estatuto de modalização do fazer, sendo

responsável pela competência modal do sujeito do fazer, qualificando-o para a

ação. Ambas regem, porém sob perspectivas semânticas distintas, os mesmos

predicados: o querer, o dever, o poder e o saber.

Em termos semióticos, nenhum sujeito pode realizar uma perfomance

(ação) sem ter para isso a respectiva e prévia competência. A competência

possibilita a passagem da virtualização à efetivação do PN. É da ordem do ser,

enquanto a performance pertence ao universo do fazer. Assevera, então, Greimas

que é somente a partir do agir de um sujeito modalmente competente que se

instaura uma narrativa complexa, cujo modelo cânonico, obedece a sucessão de

quatro percursos encadeados.

O primeiro corresponde ao percurso da manipulação que compreende,

simplesmente, a relação factiva (fazer-fazer) segundo a qual um enunciado de

fazer rege um outro enunciado de fazer. Esta estrutura modal tem como

particularidades a identidade formal dos predicados (os dois são de fazer) e a

diferença entre os sujeitos envolvidos. Encontram-se instaurados, nesse patamar,

um sujeito manipulador (em posição de destinador) e um sujeito manipulado

(destinatário). A seguinte formulação simbólica oferece uma visão mais sistêmica:

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F1 [ S1 → F2 [ S2 → (S3 ∩ O)

Ler-se: O sujeito manipulador (S1) faz (F1) com que o sujeito manipulado (S2)

realize (F2) a conjunção (ou, se for o caso, a disjunção) entre um sujeito de estado

(S3) e o objeto de valor (O). Pode ocorrer um sincretismo actancial entre S2 e S3.

A manipulação não se processa homogeneamente em todas as narrativas

antropologicamente situadas. Sua manifestação depende da competência do

manipulador, ora sujeito do saber, ora sujeito do poder, e da alteração modal,

operada na competência do sujeito manipulado. Se o manipulador se apóia sobre

a dimensão pragmática e propõe ao manipulado um objeto de valor positivo,

revela-se a tentação. Outra possibilidade, para o manipulador, é de fato , mover-

se pela dimensão cognitiva. Nela, a competência do manipulado é apresentada

pelo manipulador sob um ponto positivo: fala-se, então, em “adulação”, ou melhor,

em sedução.

O outro tipo de manipulação assenta sob o plano pragmático, fazendo

emergir a intimidação. Ou seja, ao invés de propor, precedentemente, um objeto

de valor positivo, o manipulador ameaça de privar, de algo extremamente

importante, o manipulado. Ainda no nível cognitivo, o manipulador apresenta ao

manipulado uma imagem negativa de sua competência. Ele a denigre, por assim

dizer, ao ponto que, este aqui, vai reagir para oferecer a ele uma imagem positiva.

Realiza-se, então, a provocação.

O quadro seguinte oferece uma descrição estrutural das formas de

manipulação:

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Competência do

destinador-manipulador

Alteração na

competência do destinatário

PROVOCAÇÃO

SABER (imagem negativa do destinatário)

DEVER-FAZER

SEDUÇÃO

SABER (imagem positiva

do destinatário)

QUERER-FAZER

INTIMIDAÇÃO

PODER (valores

negativos)

DEVER-FAZER

TENTAÇÃO

PODER (valores

positivos)

QUERER-FAZER

A segunda etapa do percurso, rumo a construção de uma narrativa

complexa, diz respeito à competência modal do sujeito transformador a qual se

define pela articulação de quatro modalidades: dever-fazer e querer-fazer, poder-

fazer e saber-fazer. As duas primeiras constituem modalidades da virtualidade,

visto que operacionaliza o desejo do sujeito. É a partir do momento em que um

sujeito quer ou deve fazer alguma coisa que se pode vislumbrar a presença ou a

instalação de um sujeito transformador. As modalidades poder-fazer e saber-fazer

são modalidades da actualidade e são qualificantes, pois avaliam a capacidade

de fazer do sujeito. Estas quatro modalidades podem atingir negativamente o

sujeito (não-dever, não-querer, não-poder e não-saber), impedindo-o assim de

passar ao ato, isto é, de agir.

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As modalidades realizantes, do ser e do fazer correspondentes a

performance do sujeito, determinam o terceiro percurso da complexificação

narrativa. Estas modalidades estão em relação de pressuposição unilateral com

aquelas concernentes à competência modal:

competência

performance

modalidades virtualizantes

modalidades actualizantes

modalidades realizantes

/querer-fazer/ /dever-fazer/

Instauração do sujeito

/saber-fazer/ /poder-fazer/

Qualificação do sujeito

/fazer/ /ser/

Realização do sujeito

O último componente do esquema narrativo canônico é a sanção, que se

apresenta sob duas formas, ou seja, leva em consideração duas dimensões,

pragmática e cognitiva. A sanção pragmática se sustenta sobre o fazer do sujeito

que realiza a performance. Ela é dupla uma vez que coloca em cena dois

actantes: o destinador julgador e o destinatário sujeito (julgado). De um lado, o

destinador julgador estabelece um julgamento epistêmico (da ordem do crer)

sobre a conformidade ou não da performance, no que concerne às atribuições do

contrato previsto. A esse julgamento, responde, do ponto de vista do destinatário,

a retribuição que é a segunda face da sanção. Por ter realizado a performance e

cumprido, assim, seu contrato, o destinatário recebe do destinador a

compensação prevista. Pode ser uma recompensa ou uma punição, a depender

da conformidade ou não de sua ação.

A segunda forma de sanção é de caráter cognitivo. Ela não se assenta

mais sobre o fazer mas sobre o ser, levando em consideração, também, os

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pontos de vista do destinador julgador e do destinatário. Reserva-se ao destinador

julgador a incumbência de estabelecer um julgamento epistêmico sobre a

realidade (intrínseca à narrativa) da performance realizada pelo destinatário,

asseverando, vigorosamente, a veracidade de suas proezas. Um exemplo simples

encontra-se no domínio das narrativas infantis. Num país distante, havia um

dragão que a cada ano exigia uma donzela que ele devorava imediatamente. A

moça era escolhida por intervenção da sorte. Ora, um dia, a sorte caiu sobre a

filha do rei. Este, aflito em salvá-la, proclamou, em todo país, que aquele que

vencesse o dragão, receberia sua filha em casamento. O herói chegou, cortou

todas as cabeças do terrível monstro e apresentou-as ao rei como signo da

verdade de sua façanha; depois, o cavaleiro desposa, como combinado, a

princesa. Tem-se, nessa narrativa, a sanção pragmática, quando o monarca

oferta ao herói, como retribuição, o casamento. Do ponto de vista cognitivo, isso

só foi possível porque o rei tem a comprovação de que o valente mancebo,

efetivamente, matou o dragão: as cabeças são, aliás, levadas ao castelo para

atestar que foi realmente o cavaleiro, e não outro personagem, o autor da vitória.

Segundo Courtés, “en l’occurrence, les choses sont ce qu’elles paraissent: d’où la

modalisation selon lê vrai” (1991, p.114).

11..33..33..33.. NNíívveell DDiissccuurrssiivvoo

Na axiologia do percurso gerativo da significação, sob o qual a semiótica

se debruça para construir os sentidos do texto, salienta-se o nível discursivo, o

patamar mais próximo da manifestação textual. Embora concebido como o

segmento superficial do percurso, sua operacionalização se efetiva

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preponderantemente nas subjacências da concretude lingüística, ou seja, detém-

se no discurso, entendido como processo semiótico constituído exclusivamente

na e pela atividade enunciativa. Convém, nesse momento, lembrar a distinção

entre as acepções de texto e discurso. Ambos conservam uma mesma

materialidade lingüística, um mesmo conjunto de estruturas (verbais ou não)

ordenadas a partir dos mecanismos pragmáticos de coesão e coerência. A

divergência entre eles não reside, assim, no caráter de sua composição, mas no

olhar que o sujeito, historicamente situado, lhe impele: uma sucessão de unidades

sígnicas deixa de ser texto para se tornar discurso, quando o leitor/ouvinte passa

a focalizar o propósito de suas intenções, a observar as ideologias que o

sustentam, em outras palavras, a vislumbrar os vestígios que o processo de

enunciação deixou na tessitura do texto.

Na organização discursiva da narratividade em língua natural, deve-se

fazer uma separação terminológica e, sobretudo, funcional entre os entes

envolvidos no processo enunciativo-discursivo. O primeiro a ser caracterizado é o

autor, o ser que assina o texto escrito ou se responsabiliza pela produção oral. É

um sujeito empírico, de existência real, passível de ser reconhecido fisicamente.

Sua atualização somente se efetiva, em instância discursiva, quando se instala

como enunciador. Nessa posição, assume o posto de agente produtor e

organizador do universo enunciativo. Ele abstrai, em conformidade com o espaço

sócio-cultural em que se insere, os signos e as estruturas lingüísticas construídos

historicamente em sua memória e atribui, a seu significado geral, um sentido

específico, convergente com ideologia que carrega. É, na verdade, um proto-

sujeito que percebe e sente, que expressa por meio de discursos sua visão de

mundo, suas intenções e, principalmente, sua ideologia. Assim como o autor que,

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ao se instaurar numa situação comunicativa, faz aparecer, pressupostamente, as

categorias de leitor/ouvinte, a função intrínseca de enunciador promove a

instalação pressuposta e dialética do enunciatário.

Em termos semióticos, o discurso é o resultado da conversão das

estruturas narrativas, quando estas se projetam na voz do sujeito da enunciação,

que faz determinadas escolhas, de ordem sintática (pessoa, tempo e espaço) e

de natureza semântica (tema e figura), fazendo expandir a narrativa e

transformando-a, através de sua enunciação, em instância discursiva. Consoante

Barros:

“O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa

‘enriquecida’ por todas essas opções do sujeito da

enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a

enunciação se relaciona com o discurso que enuncia” (1990,

p.53).

Cabe à SINTAXE do discurso estudar as projeções da enunciação no

enunciado (fator desencadeante e ordenador do discurso) e as relações entre

enunciador e enunciatário. A enunciação configura, numa primeira demarcação,

como a instância de intercessão entre o patamar narrativo e o discursivo, que

assegura, por assim dizer, a conversão da competência em performance, das

estruturas semióticas virtuais em categorias realizadas sob a forma de discurso.

É, unicamente, por meio dos traços e marcas deixados neste, que a enunciação

pode ser reconstruída e, a partir daí, servir de instrumento para a extração dos

possíveis valores sobre os quais ou para os quais o texto foi construído.

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Quando se engendra um discurso-enunciado, estabelece-se,

pressupostamente, um contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário, que

determina a verdade ou não do texto. Esse pacto de confiança mútua comporta

dois preceitos. O primeiro prescreve como o enunciatário deve perceber o texto

do ponto de vista da verdade e da realidade. Há procedimentos enunciativos,

específicos de cada cultura ou grupo social, que impõem formas de interpretação

do discurso, direcionando a leitura rumo à verdade ou à mentira. Em dados

universos culturais, narrativas que trazem o rótulo de “histórias de pescador” são

agraciadas com o título de mentirosas, carregam consigo o gérmen da

desconfiança, da descrença. Os contos, infantis ou não, que se constroem a partir

do enunciado “Era uma vez...” são considerados irreais, frutos das coerções

imaginativas. As histórias populares, principalmente aquelas concernentes ao

romanceiro popular, são tomadas como verdadeiras para aqueles que

compartilham dos valores, das crenças por elas veiculados. No entanto, trazem os

signos da ficção, da invenção, do imaginário para aqueles que se encontram

distantes desse universo, para os que não participam ativamente do macro-

universo popular. As fábulas de La Fontaine ou aquelas adaptadas por Monteiro

Lobato no Sítio do Pica Pau Amarelo continuaram, à semelhança de Esopo, a

transmitir uma lição de moral por meio da elocução de animais e/ou de seres

inanimados, o que, aparentemente, denota um certo caráter irreal. No entanto,

esses personagens agem como humanos, seus sentimentos e atitudes são reais

e, por isso, explicitam conteúdos verdadeiros.

O segundo preceito, ainda sobre o dispositivo veridictório do texto,

determina como o enunciatário deve entender o discurso-enunciado, partindo da

informação superficial, encerrada pelos significados gerais dos elementos

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constituintes da estrutura, ou seja, o conteúdo dito, o posto; ou o contrário,

recuperando aquilo que jaz sob as unidades significantes, o dizer. Existem

estratégias discursivas que assinalam se um dado enunciado deve ser

interpretado como H, alicerçando, com isso, um contrato de identidade, ou como

um não-H, estabelecendo, a partir de então, um vínculo de contrariedade.

Se numa situação específica, enuncia-se a estrutura “Muitos animais

encontram-se em extinção”, é evidente que o enunciador almeja que tal

enunciado seja concebido como H. Todavia, quando um adolescente diz “Levei

bomba na prova”, quer que o produto de sua enunciação seja interpretado como

não-H. O termo “bomba” figura como uma antífrase: não há possibilidade de

tomá-lo, aqui, como referência ao aparato bélico, uma vez que encerra um outro

sentido, o de que o aluno não obteve êxito na prova.

Segundo Courtés (1991), a enunciação é uma instância propriamente

lingüística ou, mais largamente, semiótica, logicamente pressuposta pela própria

existência do enunciado e cujos traços e marcas são recuperados nos discursos

examinados. Sua efetivação depende do sincretismo de três categorias: eu-aqui-

agora, que projetadas ou negadas no enunciado, fabricam o discurso. Dessa

forma, a discursivização é o procedimento gerador da pessoa, do espaço e do

tempo da enunciação e, ao mesmo tempo, da referencialização actancial,

espacial e temporal que, consequentemente, se inscreve no enunciado.

Os mecanismos de instauração de pessoas, espaços e tempos no

enunciado são dois: debreagem e embreagem. A debreagem consiste em

abandonar, em negar a instância fundadora da enunciação, e em fazer surgir,

como conseqüência, um enunciado cuja articulação actancial, espacial e

temporal, guarda como na memória, sobre um modo negativo, a estrutura original

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do eu-aqui-agora. É somente através dessa operação de negação que se pode

vislumbrar a passagem da esfera de produção enunciativa para o patamar da

realização, ou seja, do enunciado. Ademais, o processo de negação recai sobre

cada um dos três componentes da instância enunciadora. Assim, o não-eu, obtido

por esse procedimento, equivale então a um ele, o que Benveniste designou, em

seu célebre artigo Da subjetividade na linguagem (1976, p.284), de não-pessoa. A

terceira pessoa não implica uma pessoa em particular, porque pode representar

qualquer sujeito ou nenhum e esse sujeito, inscrito ou não no discurso, não é

jamais instaurado como actante da enunciação. Corresponde àquele de que eu e

tu falam, pertencendo, pois, ao enunciado. Paralelamente, ao não-aqui que

estabelece a debreagem espacial corresponde a categoria do algures, assim

como a denegação do agora dá lugar a um então. As reflexões acima podem ser

expressas, visualmente, pelo seguinte esquema:

O procedimento de debreagem, que assegura a passagem da instância da

enunciação à do enunciado, responde, em sentido inverso, ao mecanismo

denominado embreagem que visa o retorno à esfera da enunciação. Para dizer a

verdade, esse retorno é absolutamente impossível. Se a reconstrução da

Enunciação

eu

aqui

agora

não-eu (=ele)

não-aqui (=algures)

não-agora (=então)

enunciado

debreagem actancial

debreagem espacial

debreagem temporal

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enunciação só acontece mediante a recuperação dos traços deixados no

enunciado, a volta ao estado histórico de produção enunciativa desencadearia o

desaparecimento do enunciado, o que, por sua vez, impediria totalmente a

restauração da enunciação. O que se pode ter, de fato, é uma embreagem parcial

que corresponde, ao menos, a um esboço de um retorno e, pressupõe,

evidentemente, uma debreagem prévia:

O sistema de referencialização actorial, centrada nos mecanismos de

debreagem e embreagem, obedece a uma hierarquização que leva em

consideração as diferentes instâncias enunciativas instauradas no texto, todas

correlacionadas com a identidade do sujeito enunciador. O primeiro patamar da

enunciação goza, então, da presença do actante enunciador cuja instauração põe

em cena, numa relação de alteridade, o actante enunciatário. Ambos pertencem à

enunciação considerada enquanto quadro implícito e logicamente pressuposto

pela materialidade do enunciado, o qual retém os sinais que permitem “regenerá-

la”. Nesse âmbito, enunciador assume a função discursiva de destinador implícito

da enunciação e o enunciatário exerce o papel, também presumido, não

Enunciado

ele

algures

então

não-ele (=eu)

não-algures (=aqui)

não-então (=agora)

enunciação

embreagem actancial

embreagem espacial

embreagem temporal

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estruturalmente expresso, de destinatário da atividade enunciativa. Se eu e tu se

constroem e se posicionam, convergentemente, na situação de enunciação, pode-

se afirmar, com veemência, que o “cargo” de enunciatário não se restringe

apenas a recepcionar o discurso, mas também, e sobretudo, de produzi-lo uma

vez que se apresenta “como filtro e instância pressuposta do ato de enunciar”

(Fiorin, 2002, p.65).

O segundo patamar do ordenamento enunciativo comporta a existência de

um narrador e de um narratário instalados, explicitamente ou não, no enunciado.

Referem-se, estes, a desdobramentos diretos do sujeito da enunciação. Mesmo

nos textos construídos a partir do ponto de vista de um narrador aparentemente

ausente, há, indubitavelmente, uma esfera inscrita no enunciado que assume a

responsabilidade pelas avaliações e interpretações, em suma, pelo dito. Ainda

que se conceba um objeto semiológico desprovido de interpretação, o que, em

termos lingüísticos, é absolutamente impossível, testemunhar-se-ia, certamente,

uma organização referencial do universo enunciativo, erigida pelo sujeito

narrador, alicerçada na distribuição dos atores (interlocutores), na construção dos

espaços, nas projeções temporais, etc. Semelhantemente, todavia em nível não

tão complexo, o narratário pode vir a figurar explicitamente no discurso-

enunciado, caso o narrador estabeleça um elo direto com ele, dirigindo-lhe

concretamente a palavra, ou de modo tácito, quando constitui uma imagem

projetada estrategicamente pelo narrador.

A terceira instância concernente à hierarquização enunciativa emerge

quando o narrador delega a voz a um actante do enunciado, produzindo uma

debreagem interna que instaura um diálogo. Cria-se, então, um simulacro da

própria esfera da comunicação cuja instalação, no interior do discurso, faz surgir,

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em condição pressuposta e dialética, os actantes responsáveis, inerentemente,

pela efetivação da atividade comunicativa, o destinador e o destinatário que,

nesse contexto, exercem as funções de interlocutor e interlocutário. Observe-se a

diagramação seguinte:

É preciso dizer que esse esquema não aparece nas tramas discursivas

com esta ordenação metódica. A depender do universo de discurso, tal

hierarquização sofre determinadas transformações ou complicações. No caso da

literatura oral, especificamente nos romances tradicionais, observa-se uma

neutralização ou um apagamento da instância ocupada pelos actantes narrador e

narratário. Em determinadas peças, o sujeito enunciador e o seu correlato

dialético, o enunciatário, projetam no enunciado os interlocutores (atores) que, em

situação dialógica, passam a ter a “autonomia” do processo enunciativo. É o que

ocorre, por exemplo, no romance La condessa, cujo enredo se desenvolve a partir

do confronto dialógico fincado entre a Condessa, detentora de belas filhas, e o

cavaleiro e/ou rei, que pretende desposar uma das donzelas. Aparentemente, a

enunciação serve aos propósitos desses protagonistas:

Implícitos (Enunciação pressuposta)

Debreagem de 1ª grau

Debreagem de 2ª grau

Enunciador { Narrador { Interlocutor { Objeto Interlocutário Enunciatário Narratário } } }

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“_Ó condessa, condessinha, condessa de Aragão

Vinha te pedir uma filha das mais lindas que elas são.”

Em outras narrativas, no entanto, acontece uma convergência, uma

cumplicidade enunciativa entre os pares discursivos enunciador / enunciatário e

interlocutor / interlocutário. Nesse caso, os atores estão embreados no enunciado,

criando uma atmosfera real de comunicação, como se realmente fossem os

verdadeiros responsáveis pela materialização do discurso. Tal fenômeno atinge, a

título de exemplo, o romance popular Miguelzinho, caracterizado, em termos de

enredo, por um menino que triste com a morte da irmã se dirige, todas as

manhãs, para a tumba dela onde pede a Deus que a traga de volta. O discurso se

desenvolve em primeira pessoa, do ponto de vista de Miguelzinho, forjando a

impressão de que a história está acontecendo no momento em que é enunciada,

acentuando, dessa forma, o seu caráter veridictório:

“— Papai do céu, por favor deixa voltar a maninha

Ela nunca mais brincou está tão triste coitadinha

Lá em casa todos choram a mamãe vive a chorar

A vovó só conta estória quando a maninha voltar

Deus, atende o meu pedido ela não suja o vestido

Eu vou segurando o véu e depois que a vovó contar

A maninha voltará pra dormir com Deus no céu”

A crítica literária e diversas teorias que se dizem voltadas para o discurso

continuam postulando, erroneamente, que os mecanismos de debreagem e

embreagem criam, essencialmente, dois efeitos de sentido: o de objetividade e o

de subjetividade. Os fenômenos enunciativos não se limitam a essa visão

simplória e ingênua. Um discurso que se constrói sobre os simulacros do eu-aqui-

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agora pode ser tão ou mais objetivo quanto aquele cujas marcas de enunciação

foram eliminadas. Subjetividade e objetividade não são fenômenos estruturais que

se fincam na superfície do discurso. São antes, procedimentos ideológicos que

fazem vir à tona as intenções e valores daqueles que, competentemente, deles

fazem uso. Recorrendo mais uma vez ao universo popular, tem-se o romance

Margarida, erigido predominantemente em terceira pessoa, mas que concentra

fortes traços de subjetividade. Constate-se:

Margarida não tinha mãe Alfredo não tinha pai

Era um amor entre os dois que não se via em ninguém bis

Alfredo fez uma viagem e prometeu de voltar

Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar

Alfredo em campos de batalha seu corpo estremeceu

Quando soube da notícia que Margarida morreu

Margarida, por Deus te peço pelo Santo amor de Deus

Quando chegar lá no céu rogas por mim a Jesus bis

O enunciador, embora aparentemente distanciado do universo enunciativo,

detém um olhar, um dizer intensamente subjetivo. A caracterização de Margarida

e Alfredo assenta, já no início, sob a esfera do sofrimento, uma vez que são

órfãos, respectivamente, da figura materna e paterna. Em termos sociais, cabe à

mãe a função de educar os filhos, de dar-lhes afeto e ao pai, reserva-se o dever

de proteger a família, de provê-la. Assim, a união dos dois jovens se

complementam nessa ausência: Margarida busca o amor em Alfredo e este

almeja a realização, o abrigo em Margarida. Não é à toa que entre eles reside um

sentimento “que não se via em ninguém”. Por motivos não expressos, o valente

Alfredo viaja para lutar na guerra, mas promete à amada voltar. O destino lhes é

cruel e Margarida, não suportando a longa espera, desfalece. A causa da morte é

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evidenciada através do elemento intensificador <tanto> presente no verso

“Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar”. Há, então, uma

avaliação da condição de espera de Margarida realizada pelo enunciador, que

interfere, subjetivamente, ao apreciar o fato.

Ao receber a notícia da morte de sua amada, Alfredo fica profundamente

perturbado. Essa constatação mais uma vez sofre intervenção estratégica do

enunciador, que, para enfatizar o transtorno que a perda da mulher dileta causara

no desarfortunado mancebo, projeta sobre o discurso uma estrutura lingüística

que o lança na cena enunciativa: “Alfredo em campos de batalha seu corpo

estremeceu”. O tremer do corpo só poderia ser descrito por alguém que, de fato,

estivesse a observar Alfredo quando este foi tomado pela tristeza. Infere-se,

depois dessas ponderações, que extrair os vestígios da enunciação de um texto,

não garante que sua enunciação proceder-se-á de forma objetiva.

É de responsabilidade da SEMÂNTICA DISCURSIVA descrever e explicar

os procedimentos semiológicos que permitem a conversão dos percursos

narrativos em percursos temáticos e o revestimento destes por meio das figuras.

Na epistemologia canônica da semiótica, a tematização e a figurativização

correspondem a realizações do sujeito da enunciação que as utiliza como

mecanismos geradores e mantenedores da coerência discursiva.

Na tematização, os valores semânticos que instauram o sujeito no patamar

narrativo são convertidos, no nível discursivo, em unidades abstratas

denominadas temas, as quais se organizam em percursos. Pertencem ao domínio

das idéias, pois não se referem a algo existente no mundo exterior, mas a

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elementos capazes de organizar, distribuir e, principalmente, ordenar a realidade

apreendida por mediação dos sentidos. Em suma, os temas caracterizam-se por

seu aspecto propriamente conceptual.

Para revestir os temas, o sujeito da enunciação faz uso do processo de

figurativização que consiste em selecionar, do seu sistema de representação,

intensamente regulado e alimentado pelas coerções sociais e, sobretudo,

culturais, as figuras que poderão concretizar as categorias temáticas que,

abstratamente, tangenciam o discurso. Segundo Courtés (1991), será

considerada figura, de um dado universo de discurso (verbal ou não-verbal), todo

elemento diretamente reportado a um dos cinco sentidos tradicionais: a visão, a

audição, o olfato, o paladar e o tato. Resumindo, tudo o que se relaciona à

percepção.

Conforme o modo de concretização da estrutura narrativa, os versados em

semiótica prevêem a existência de dois tipos de texto: o temático e o figurativo.

Este se constrói sobre entidades que remetem ao mundo natural, trazendo para a

superfície discursiva, espetáculos reais, nos quais se presentificam seres

(humanos ou não), objetos, paisagens que impedem que se deforme,

interpretativamente, a realidade. Aquele, todavia, procura explicar os fatos e as

coisas do mundo exterior, buscando distinguir, organizar e, o mais importante,

interpretar a realidade que, abstratamente, se apresenta no discurso. Recuperar,

como exemplo, os textos populares, poderá didatizar o exposto. Assim, do

grandioso universo da literatura tradicional, extrair-se-á o romance oral O canário,

que narra a desventura de um pássaro (um canário) que é dado de presente a

uma menina que passa, a partir daquele momento, a engaiolá-lo. No entanto,

triste por está preso, o pobre canário adoece. Sua dona manda chamar um

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médico que o examina imediatamente. Nada adianta, e depois de alguns dias o

canário vem a falecer:

Eu tinha um canário que me deram de presente bis

Quando era de madrugada meu canário acordava a gente bis

Mandei chamar o doutor pra fazer uma operação bis

Pra salvar o meu canário da veia do coração bis

Meu canário ficou triste no domingo adoeceu bis

Na segunda, bateu asa na terça, ele morreu bis

O texto, em questão, é totalmente coerente no que diz respeito à

verossimilhança, uma vez que as projeções actanciais e temporais se revelam

condizentes e adequadas à realidade do sujeito produtor. A menina, o canário e o

doutor são interlocutores figurativos cuja existência pode ser atestada,

comprovada, e, precipuamente, aceita pelo enunciatário. A figurativização

temporal obedece a um ordenamento lógico: o canário é entregue à menina, em

seguida ele é preso, adoece posteriormente e finalmente morre. Além disso, a

forma de conceber o tempo, ao utilizar as figuras domingo, segunda, resgata uma

norma social solidificada em determinadas comunidades humanas. Em termos

temáticos, a narrativa se expande: depreende-se o tema da opressão, realizada

por aqueles que, estando em posição contrária, são indiferentes aos sentimentos

do outro. Observa-se, também, o tema da exploração velada, visto que o sujeito

menina parece apreciar a ave, mas se mostra indiferente a sua prisão. Sua

preocupação em salvar o canário, encerra um propósito negativo – ela teme

perder o objeto de prazer.

A figurativização pode apresentar-se de maneiras distintas nos diversos

tipos de discurso. Há aqueles que comportam um investimento figurativo

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esporádico, acarretando, com isso, um revestimento apenas parcial dos percursos

temáticos, que passam, então, a se constituírem de isotopias temáticas. É o que

ocorre, por exemplo, no discurso científico, predominantemente, construído sobre

enunciados abstratos. Por outro lado, as figuras podem se propagar em todo o

discurso, ordenando-se por meio de isotopias figurativas, como é o caso do

discurso literário, que requer uma referencialização enunciativa mais concreta.

Assim, é possível afirmar que não existem discursos não-figurativos, mas antes

discursos em que, ao contrário do literário, prima por um processo de

figurativização menos intenso.

As redes de figuras que se imprimem num texto contribuem para definir os

interlocutores cujos comportamentos são regidos, conduzidos e estereotipados

pelos papéis temáticos que assumem na instância discursiva. Justifica-se, então,

a posição metodológica da semiótica de abandonar a designação de interlocutor e

recuperar, do universo teatral, a denominação de ator, termo mais condizente

com a constituição físico-biológica dos personagens que se inscrevem no

enunciado e, principalmente, com as diversas funções por eles desempenhadas.

Entende-se por papel temático a qualificação ou o atributo de um ator.

Pode prender-se a uma esfera social (pai, mãe, marido, soldado), sintetizar um

conteúdo psico-sociológico (Cinderela, é caracterizada, em quase toda a

narrativa, como a pobre e humilhada donzela) e, em determinadas enunciações,

condensar uma valorização moral (a Madrasta da Branca de Neve é concebida

como má, perversa, extremamente, invejosa). A noção de ator, por sua vez,

implica uma figura, lexicalmente individualizada, capaz de assumir um ou vários

papéis. Nesse caso, apresenta-se como uma entidade estritamente semântica

que se define, linguisticamente, por abarcar os semas: a) unidade estruturalmente

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figurativa, capaz de referencializar entes de natureza antropomórfica, zoomórfica

ou outras; b) categoria animada, com competência para agir discursivamente; e c)

instância passível de individuação, materializando-se no texto pela atribuição de

nomes próprios ou papéis temáticos.

Na literatura erudita, é comum se deparar com obras cujos personagens

são ardilosamente projetados a partir de denominações específicas que garantem

a sua permanência mítica. É assim que continuam intocáveis e estáticas as

personagens Iracema, de Alencar e Isaura, de Bernardo Guimarães. São figuras

restritas ao universo imaginativo, pertencem a um tempo que não é o do leitor e,

portanto, conservam-se distantes do mundo real, exterior. Diferentemente, os

romances populares, de realização oral, primam por papéis temáticos genéricos

que estendem a narrativa, situando-a mais próxima daquele que a produz. Assim,

o cangaceiro, a condessa, o marido traído, a namorada cruel podem ser

referentes de qualquer sujeito, podem ocupar outros espaços, podem ser

enunciados em outro tempo, em suma, podem ser reconstruídos incessantemente

pela dinâmica da memória e da cultura popular. São atributos sociais e morais

que não se restringem a uma dada História, caminham e se transformam com as

gerações.

O ator concentra outras complexificações que vão além de seu

investimento semântico. Ele não se limita a ocupar o nível discursivo, estando

também integrado na narrativa, onde é o responsável direto pela ordenação

sintática. Nesse âmbito, a figura do ator aparece como o lugar de convergência e

de união das estruturas narrativas e das estruturas discursivas, do componente

sintático e do componente semântico, visto que está incumbido, simultaneamente,

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de pelo menos um papel temático e de um revestimento actancial. Trazendo à

tona a opinião de Greimas:

“É a assunção dos papéis temáticos pelos papéis actanciais

que constitui a instância mediadora que dispõe a passagem

das estruturas narrativas para as estruturas discursivas”

(1973, p.175)

Os dois níveis – narrativo e discursivo – embora estejam interligados numa

relação hierárquica ou de subordinação, não se encontram sobrepostos termo a

termo. O casamento entre ator e actante está longe de configurar um sistema de

inclusão de uma ordem numa determina classe. Assenta, na verdade, num

processo de combinação de funções, de desempenhos. Ou seja, um actante (A1)

pode ser manifestado no discurso por vários atores (a1, a2, a3) e, inversamente,

um só ator (a1) pode constituir o sincretismo de vários actantes (A1, A2, A3):

Em termos discursivos, o conflito interior, que a teoria literária admite

ocorrer somente quando o personagem mergulha num estado de inquietação e de

interrogação da sua condição humana ou social, ganha um enfoque mais

concreto e preciso, ao ser concebido como o resultado do sincretismo actancial

que atinge um determinado ator. Tem-se, então, uma estrutura actorial subjetiva,

caracterizada pela presença de um só ator que assume todos os actantes e

papéis actanciais, desencadeando uma altercação dramática em seu íntimo,

A1

a1 a2 a3

A1 A2 A3

a1

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“obrigando-o” a tomar outros rumos, ou seja, a realizar outros percursos; e uma

estrutura actorial objetiva, quando para cada actante ou papel actancial

corresponde um ator diferente, que, geralmente, realiza percursos ordenados sem

ocorrência de rupturas.

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22.. OO RROOMMAANNCCEEIIRROO PPOOPPUULLAARR

22..11.. OO qquuee éé uumm rroommaannccee ppooppuullaarr??

O lexema <romance>, dado a sua complexidade polissêmica, comporta,

comumente, sentidos que merecem ser explicitados, caso se pretenda fixar limites

concretos e nítidos entre as acepções que o termo encerra e o conceito que os

estudiosos da cultura popular estabelecem. A crítica literária, partidária e

divulgadora do saber erudito, concebe o romance como pertencendo ao gênero

narrativo. De textualização longa e estruturado em prosa, apresenta geralmente

um acontecimento ficcional que envolve várias personagens e pode tratar de

vários temas.

A partir de 1836, com o advento do Romantismo, o romance brasileiro

ganha outro atributo. A grande difusão entre as donzelas de educação refinada,

atribui ao gênero a descrição de aventuras amorosas. Essa conotação torna-se

tão profunda que faz perpetuar no cotidiano a definição de romance enquanto

ligação íntima entre homem e mulher. Cabe salientar que o público aristocrático

consolidado nessa época impediu, fortemente, que se agregassem ao romance

feições populares, embora alguns escritores, como Jose de Alencar, buscassem

inspiração nas peças oriundas do povo.

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No âmbito lingüístico, o romance ou simplesmente <romanço> corresponde

ao período intermediário da evolução das línguas românicas durante o qual a

língua utilizada não era a latina, tampouco as neolatinas atuais, mas o latim vulgar

modificado pelos diferentes substratos regionais e pelos superstratos dos

conquistadores bárbaros. Dessa forma, houve na Europa um romance português,

um francês, outro espanhol e assim por diante. Séculos depois, a denominação,

antes restrita à língua, passou a caracterizar as obras literárias escritas nessa

modalidade lingüística e, mais tarde, veio a fundir-se com a concepção retórico-

literária criada pela academia.

Os investigadores do texto popular, todavia, preferem adotar a terminologia

romance para designar a poesia oral em verso, de natureza melódica, produzida

pelo povo e transmitida ao longo das gerações, distinguindo-o, por conseguinte,

do conto e da fábula que se constroem discursivamente através da prosa e do

folheto de cordel que tem a escrita como suporte. Contudo, o romance manifesta

alguns traços que reportam a esses três gêneros. Tal como o conto, efetiva-se

mediante uma progressão narrativa, apresentando uma textualização curta e,

consequentemente, um número reduzido de personagens. Assemelha-se à fabula

por encerrar um conteúdo por vezes moralizante e apresentar, em determinadas

ocasiões, animais que têm o poder de fala. E, como o cordel, constrói-se sobre a

memória e a história de um povo.

A oralidade constitui a marca maior da literatura tradicional. É Através dela

que se dá a conservação e inovação dos romances. Estes se encontram livres

dos grilhões da autoria, da escrita, fixando-se, dinamicamente, na memória de

crianças, pais, avós, em suma, de um povo, que os (re)constrói a cada momento

que os enuncia. Eles se transformam com as ideologias dos seus produtores, com

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as inconstâncias da memória e, sobretudo, com as coerções temporais. Explica-

se, então, a textualização curta e, muitas vezes, fragmentada que apresentam.

Não é porque são produzidos pelo povo que os romances populares são

desprovidos de uma regularidade, de uma formalização, de uma estilística. No

que diz respeito à metrificação, são geralmente compostos de versos longos, de

quinze ou dezesseis sílabas, divididos em dois hemistíquios, apresentando cesura

depois da sétima ou oitava sílaba, o que comprova sua aproximação com os

poemas épicos medievais. A rima é predominantemente toante, como acontecia

também nas composições épicas da Idade Média peninsular. Como exemplo,

tem-se o romance Juliana, cuja escansão poética é a seguinte:

— Que/ é/ que/ tu/ tem,/ Ju/li/a/na?/ que es/tás/ tris/to/nha a/ cho/rar 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

— É/ por/ cau/sa/ de/ Dom/ Jor/ge/ que/ com/ ou/tra/ vai/ ca/sar

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

(JULIANA, coletado por Maria de Fátima Batista)

Outra marca formal das compilações orais é a existência de um enunciado

formular, ou seja, a presença de pequenos segmentos lingüístico-discursivos que,

ao se repetirem na tessitura textual, permitem classificar um número determinado

de composições como sendo variantes de um mesmo romance. O enunciado

formular apresenta duas funções essencialmente distintas e relacionadas com a

instância enunciativa. A primeira assenta-se sobre o enunciado, criando a ilusão

de distanciamento entre o texto e o seu produtor, contribuindo para a própria

cesura após a oitava

cesura após a sétima

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identificação do enunciado como um tipo de romance, principalmente se introduz

a narrativa:

“A formiguinha foi passear ficou presa na neve

Muito triste a pensar começou logo a chorar” (A FORMIGUINHA E A NEVE, coletado por Maria de Fátima Batista).

Como se percebe, a debreagem que se instala logo no início do romance

produz a sensação de que os dois primeiros versos sintetizam a história, dando,

dessa forma, possibilidade ao informante de projetar fatos que, talvez, não se

encontrem materializados na versão presente em sua memória, mas que podem,

coerentemente, se ligar ao enunciado formular.

A segunda função refere-se às condições que permitem ao produtor

recuperar e ordenar tematicamente o texto. Trata-se de um processo mnemônico

que tem no enunciado-formular um “gancho” capaz de atrair os segmentos

dispersos na mente, oferecendo, portanto, condições para o progresso discursivo

do romance. A narrativa O Pavão do Mestre, nas 21 versões presentes no

Romanceiro Tradicional (1988), apresenta o segmento “— Bom dia, senhor

mestre, — bom dia, meu bom ladrão”, que promove o resgate do episódio

posterior à morte do pavão. Evidentemente, o enunciado sofre modificações

provocadas por acréscimos ou ausências lexicais mas estas não afetam a sua

funcionalidade. Constatem-se algumas variações do referido enunciado-formular:

“— Bom dia Senhor mestre... tenho muito conversar”

“— Bom dia, senhor mestre —como vai, como passou?”

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“— Bom-dia, Senhor mestre — bom dia, Senhor patrão”

“— Boa-tarde, senhor mestre — boa-tarde, seu ladrão”

(PAVÃO DO MESTRE, coletado por Maria de Fátima Batista)

Quando o produtor detém, em sua memória, apenas fragmentos do

romance, ele recorre a um relato dos fatos, em estilo conversacional, para

introduzir a narrativa ou para ordenar logicamente os acontecimentos. É um tipo

de enunciado-formular específico daquela situação enunciativa e que evidencia a

fusão que se estabelece entre o texto e aquele que o “produz”. O fenômeno

atinge, em nível de exemplo, o romance “Quem geme, meu Deus, quem

geme?”, onde o informante sente a necessidade de intervir constantemente a fim

de se fazer entender por seu enunciatário:

Era uma moça que foi seduzida por um sujeito, um namorado. Ele a desprezou a ela morreu de desgosto. Um dia, ele ia passando a cavalo, à meia-noite, pelo cemitério e viu aquele gemido. Aí ele disse:

— Quem geme, meu Deus, quem geme nesta “horrive” solidão?

Vejo um vulto ali sentado acaso será visão?

— Vejo um vulto ali sentado para os céus vertendo as mãos

Com seu manto cor-de-neve é um anjo em devoção

Aí, ela respondeu:

— Zombando tu me deixaste nesta “ horrive” solidão

E por recompensamento e por recompensamento

Deus me deu a “ savalção”. (QUEM GEME, MEU DEUS, QUEM GEME ?, Coletado por Maria de Fátima Batista)

O acompanhamento musical é outra característica do romance popular. A

prática advém da Idade Média quando as poesias eram feitas para serem

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cantadas e não recitadas. Utilizavam-se instrumentos simples como a lira e a

flauta que impunham ao gênero os tons monótonos, ou seja, o ritmo constante,

sem variação melódica, como uma ária fastidiosa. Percebe-se, assim, uma

convergência entre as cantigas trovadorescas e as composições romancísticas

tradicionais. Ambas provêm de um mesmo período histórico, encerram vestígios

formais e enunciativos semelhantes e talvez, por isso, tenham ocorrido influências

e confluências entre elas. A História oficial afirma que a decadência do

mecenatismo real e o aburguesamento de Portugal foram fatores decisivos para a

expulsão das cantigas dos ambientes palacianos e sua disseminação nas

tavernas, no comércio, enfim, entre as camadas populares.

O fato é que cantigas e romances perderam, durante a travessia temporal,

o cortejo dos instrumentos e, a partir daí, tomaram rumos diferentes. As cantigas

deixaram de ser produzidas, chegando até os tempos atuais através dos

cancioneiros, que são compilações manuscritas de toda a produção do

Trovadorismo português. Foram reunidas em três volumes: o Cancioneiro da

Ajuda, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro do Vaticano. Os

romances, ao contrário, tiveram um fado mais aprazível. Eles se perpetuaram

durante os séculos e continuam a ser cantados como antes, graças à

musicalização que permaneceu viva e ativa na memória do povo, impedindo, na

maioria das vezes, seu desaparecimento. Eis, a afirmação de Batista sobre o

assunto:

“A musicalização [...] tem sido, muitas vezes, a responsável

pela conservação [do romance] no decorrer dos séculos.

Tanto é verdade que o simples solfejar da música aguça a

memória do informante, levando-o, na maioria dos casos, a

lembrar o texto por inteiro” (1999, p. 67).

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A reprodução do canto é tão importante que algumas edições de

romanceiros têm incorporado transcrições musicais quer em adaptações, quer em

fiéis registros. É o procedimento utilizado por Batista em seu romanceiro

Tradicional da Paraíba e em Pernambuco. Nele, o romance, além de receber um

revestimento lingüístico fiel ao falar dos informantes, é acompanhado por seu

registro musical, possibilitando ao estudioso da etno-literatura recuperar não só a

escrita do texto, mas reproduzi-lo com a melodia original. Observe-se o registro

musical do romance Dona Maria inserido na obra citada:

(BATISTA, O Romanceiro Tradicional da Paraíba e em Pernambuco)

Quanto à projeção actorial, o romance popular prima por personagens

predominantemente genéricos que carregam apenas qualificações sociais ou

morais. São atores que, por caminharem lado a lado com o informante, podem ser

(re)construídos em cada contexto onde a narrativa se insere. Tem-se, então, o

vaqueiro, o rei, o soldado, a princesa que são papéis temáticos de domínio

público, podendo remeter a qualquer sujeito de existência real ou fictícia que

ocupa o espaço ou o imaginário daquele que detém a enunciação. O Pavão do

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Mestre é um bom exemplo. A história centra-se em Antonino, um menino que

brincando mata o pavão do mestre. Irritado, o professor vinga-se assassinando o

pobre menino. O revestimento figurativo de pai e de mestre torna a narrativa mais

impessoal, ou seja, permite que o informante e o ouvinte se identifiquem com os

fatos, correlacionando-os com o contexto ao qual pertencem.

Antonino estava brincando com três pedrinhas na mão

Foi atirar no passarinho pegou logo no pavão

— Papai, eu fiz uma arte agora vou lhe contar

Matei o pavão do mestre o senhor é quem vai pagar

— Menino malvado para que fizesse isso?

Fazer eu pagar agora o pavão do seu Felício

— Bom-dia, senhor mestre, —bom dia, como passou?

— Vim pagar o seu pavão que Antonino matou (PAVÃO DO MESTRE, coletado por Maria de Fátima Batista)

No que diz respeito aos componentes discursivos, os romances orais

definem-se como composições poéticas de natureza estritamente narrativo-

dramática. Estruturam-se a partir de um núcleo narrativo homogêneo ou por meio

da instauração de situações dialógicas. No primeiro caso, têm-se dois tipos de

narrativas: aquelas que se constroem numa debreagem enunciativa, cujo discurso

se desenvolve em terceira pessoa e aquelas que apresentam um enunciador-ator,

embreado no enunciado, responsável por enunciar a história, criando a ilusão de

que se trata, realmente, do próprio enunciador. Numa das versões do romance O

Boi Espácio, as marcas de enunciação não se fazem presentes no enunciado. O

discurso se processa livremente como se os acontecimentos gozassem de uma

autonomia veridictória. Já na peça Miquelzinho, a narração fica sob a

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responsabilidade de um ator-enunciador, forjando a impressão de que a história

se efetiva no momento que é enunciada:

— Papai do céu, por favor deixa voltar a maninha

Ela nunca mais brincou está tão triste coitadinha

Lá em casa todos choram a mamãe vive a chorar (MIGUELZINHO, coletado por Maria de Fátima Batista)

Um caso que assucedeu no sertão do Quixelô

Um bezerro que nasceu o povo se admirou

(BOI ESPÁCIO, coletado por Maria de Fátima Batista)

No segundo caso, aparecem as narrativas cuja progressão discursiva

opera-se mediante confrontos dialógicos entre os atores inscritos no enunciado.

Estabelece-se, assim, uma dramaticidade que se assemelha às peças teatrais.

Não há estruturas lingüísticas que introduzem as falas dos atores e a mudança de

turno é percebida automaticamente pelas informações intracontextuais. Advém

daí o caráter elíptico dos romances, que impõe ao enunciatário/ouvinte o exercício

de ordenar as seqüências narrativas, reconhecendo os agentes dramáticos que

por elas são responsáveis. O seguinte testemunho de Pinto-Correia converge

para as reflexões acima esboçadas:

“Os actores e as personagens raramente são apresentados e

os diálogos não comportam anotações didascálicas. É o

intracontexto que indica a personagem que fala. [...] Algumas

versões-ocorrência dispensam mesmo qualquer anotação

narrativa, apresentando-se como monólogos, cujos

intervenientes terão de ser identificados e caracterizados pelo

receptor da mensagem romanística.” (1984, p.34).

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O romance Zé do Vale é um exemplar típico desse tipo de construção

enunciativa. O enredo se processa a partir do vínculo dialógico fixado entre a mãe

e o filho e entre ela e o presidente. Os diálogos se entrecruzam, mas se

identificam facilmente os sujeitos responsáveis pelos enunciados. O drama ganha

feições realísticas pelo uso do tempo presente e pelo simulacro do confronto

direto entre os personagens:

_A senhora dona, você por aqui

_Vim soltar um preso lá do Piauí

_Ai minha mãezinha, entre para dentro

Suba ao palácio fale ao presidente (ZÉ DO VALE, coletado por Maria de Fátima Batista)

22..22.. OOrriiggeemm ddoo rroommaannccee ppooppuullaarr

Segundo Menédez Pidal, a origem do romance tradicional encontra-se nos

fragmentos dos cantares de gesta – estilhaços da poesia épica castelhana –

difundidos na Península Ibérica durante os séculos X, XI, e XII. Nessa época,

seus assuntos eram as aventuras e as façanhas, principalmente militares, de

heróis pertencentes à alta classe da sociedade medieval, aos reis, aos condes,

aos homens ricos ou aos simples cavalheiros.

“Era poesía aristocrática, señorial, escrita originariamente pra

um público de hidalgos, cantada en el palacio, en el castillo,

en la casa solariega, en medio de lãs mesnadas preparadas

para marchar al combate; era la poesía de la casta militar,

heredera de lãs tradiciones de los visigodos” (PIDAL, 1973,

p.14).

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No entanto, essa poesia, depois de um grande e ativo florescimento,

começa a dar sinais de decadência nos séculos XIV e XV. Castilha passa a viver

uma profunda desorganização de sua nobreza, provocada pela nova estrutura

econômico-social que lhe fora imposta e que atingira todo o país. Realizada a

unidade geográfica, pacificado o reino, a Espanha começa a expandir-se e a

revelar um vigoroso espírito mercantil. Esses fatores interferem radicalmente na

produção literária da nação castelhana, que passa, então, a ganhar outros

contornos.

O processo de democratização, fruto do desenvolvimento comercial, exige

e impõe uma mudança de rumo para a epopéia, símbolo da aristocracia de

Castilha. A poesia nobre, de amplas dimensões, produzida para o deleite dos

fidalgos nos dias ociosos de paz e tranqüilidade, deu lugar a uma produção

literária mais breve, que pôde servir aos homens mais rudes, menos

descansados, ou seja, uma literatura que reflete o gosto e os anseios do povo.

Esse novo público, numeroso e heterogêneo, ao reclamar uma poesia com

a qual pudesse se identificar, promove alterações extremas na antiga epopéia de

descendência ilustre. O distinto caráter militar de valorização aristocrática foi

substituído por temas mais variados; buscou-se a simplicidade e o fascínio das

aventuras novelescas, deixando de lado os episódios épicos sobre façanhas

guerreiras. Os idílios amorosos e os conflitos deles decorrentes, nunca descritos

pelos velhos cantares de gesta, passam a agradar e a encantar o espírito dos

homens “indelicados”. E, assim, a poesia heróico-cavaleiresca se evolui,

transformando-se numa expressão novelesca de interesse mais geral. A esse

respeito, aponta Menéndez:

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“En esta larga vida, la poesía heroica salió de Castilha pra

difundirse por España entera, y entonces tuvo que ensanchar

su primitivo espíritu local y cantar héroes de otras regiones,

abandonando su exclusivismo originário” (1973, p.13).

Os romances criados pelo povo mostraram-se mais democráticos, mais

instigantes, causando enlevo a todos aqueles que traziam em sem âmago à

paixão pelas histórias. Estas, aliás, continuaram a imbuir-se de ideologias locais,

influenciando todos os segmentos sociais. Atraíram a atenção de fidalgos,

burgueses, mercadores e trabalhadores. Dessa forma, a poesia heróica, nascida

para os nobres, transforma-se na poesia de todos, dos grandes e dos pequenos,

passando, verdadeiramente, a transmitir a memória do povo.

Assim como as cantigas trovadorescas, os romances também eram

cantados em galego-português. Este era a língua usada por todos os poetas da

Península Ibérica, graças à importância de Santiago de Compostela, na Galiza,

que, em função das peregrinações, influenciou culturalmente toda a região

peninsular. Como na Galiza falava-se o galego-português, essa língua se

sobrepôs às demais. Entretanto, a partir do reinado de D. Afonso VI, as relações

entre Portugal e Espanha tornam-se tensas, o que ocasiona uma separação não

só lingüística mas sobretudo literária. Cada nação procura formas próprias de

expressão, abandonando o que era feito em comum.

As cantigas não resistiram ao desaparecimento do galego-português. Já os

romances foram paulatinamente se adaptando aos falares que despontavam. E,

com isso, foram aparecendo romances em português, em espanhol, em francês e

estes, passando de geração a geração, chegaram aos dias de hoje.

Conquanto se originem dos cantares de gesta, os romances populares não

conservam inteiramente o caráter épico que detinham em princípio. A explicação

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parece estar na fragmentação da épica castelhana que estava condicionada à

possibilidade de se poderem revestir os episódios ou seqüências isolados por um

conteúdo lírico, explorado-os numa direção afetiva e sentimental. É o que ocorre,

por exemplo, no romance Xácara de Dom Varão. O enredo centra-se na história

de um rei que, impossibilitado pela velhice de participar na guerra e sem filhos

homens para mandar, aceita o pedido da filha de representá-lo. Para isso, ela se

faz passar por cavaleiro e assume a alcunha de Dom Varão. Durante a guerra, o

filho do general apaixona-se por ela. Instala-se, assim, o conflito. Apesar de a

narrativa apresentar insígnias épicas como a batalha contra os mouros, a ida de

um filho à guerra, estas são apagadas pela tensão amorosa que se instaura como

núcleo discursivo, fazendo com que a épica figure apenas como pano de fundo e

o revestimento lírico assuma o comando. Não é à toa que o enunciatário é levado

a envolver-se com o drama de Dom Varão que assume duas identidades e a

esquecer o fato de que se tem uma donzela no campo de batalha.

—Já se formaram as guerras nos campos de Aragão

Ai de mim que já sou velho em guerra me acabarão

E das três. filhas que tive nenhuma saiu varão!

—Me mande,meu pai,a guerra que eu tenho disposição

Sou sua filha mais moça serei seu filho varão! (XÁCARA DE DOM VARÃO, coletado por Maria de Fátima Batista)

22..33.. PPeerrmmaannêênncciiaa ee ddiiffuussããoo ddoo rroommaannccee ppooppuullaarr nnoo NNoorrddeessttee ddoo BBrraassiill

A conquista de novas terras não significa apenas o aumento do território

pertencente ao país. A colonização portuguesa no Brasil representou, além de

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riqueza e exploração, a migração de uma cultura riquíssima que encontrou, nas

terras do além-mar, condições propícias para se desenvolver.

O povoamento do Brasil iniciou-se com as expedições exploradoras. Delas,

a elite nunca participou. Eram comandadas por homens com conhecimentos

náuticos – navegadores – ligados à Coroa, que, instigados pelas altas

recompensas, aventuraram-se a explorar a nova e desconhecida terra. A

tripulação que os acompanhava era composta basicamente por homens pobres,

degredados, escravos. Foram estes que principiaram a difusão do romance

tradicional aqui no Brasil. Os romances se mostraram preciosos e extremamente

úteis para amenizar as saudades da terra natal e a consolá-los nos duros

momentos de solidão.

Devido à grande extensão territorial brasileira, essas expedições não

obtiveram êxitos. Assim, entre 1534 e 1536 Dom João III estabeleceu o sistema

de capitanias hereditárias, dividindo o litoral brasileiro em quinze lotes de terras

que foram entregues a senhores chamados capitães donatários. Apenas duas

foram bem sucedidas. Entre elas a Capitania de Pernambuco. O sucesso deveu-

se ao cultivo da cana de açúcar. Para ocupar a capitania, a população pobre de

Portugal foi mais uma vez “convidada”.

Com o aumento da produção açucareira, Pernambuco assume o posto de

sede da aristocracia canavieira. Nesse momento, o romance popular fixa-se de

vez no Brasil. Numa região até então rural, sem atrativos, as mulheres passam a

utilizar as narrativas, que trazem na memória, para entreter as crianças, para

acariciá-las. No fim do dia, a família se reúne para cantar as histórias como forma

de suavizar a saudade. As tarefas domésticas revelam-se menos desgastantes

quando acompanhadas pelas melodias brandas dos romances. São atividades

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que não se perderam na história, permanecem, ainda, vivas em algumas regiões

interioranas do nordeste brasileiro. Em determinados povoados, por exemplo, as

lavadeiras cantam romances e cantigas para tornar menos cansativa a atividade

de lavar roupas sobre pedras.

Décadas depois, a pecuária surge como a mais importante atividade para a

efetivação do território, auxiliando, inclusive, no cultivo da cana de açúcar uma

vez que eram os bois que aravam as terras. A Bahia, nesse período, aparece

como o maior criador de gado do nordeste, reservando, ainda, uma cultura

canavieira em expansão. Tais características lhe conferem o posto de primeira

capital do Brasil. O desbravamento do sertão, pela busca de pastos mais férteis

para o gado, possibilita a disseminação do romance tradicional em todo o

nordeste e também para o centro-oeste e sul do Brasil.

Consolidado em terras brasileiras, o romance passa a ganhar feições locais

através da incorporação de elementos sócio-culturais nordestinos nas

composições trazidas da Ibéria. Além disso, o Nordeste passa a elaborar seus

próprios romances, dando-lhes características próprias que os tornam verdadeiros

documentos literários nos quais se podem depreender os aspectos econômicos e

ideológicos dessa região. Nesse contexto, surgem as gestas de valentia, poesias

tradicionais estreitamente vinculadas à história e à sociedade nordestinas,

principalmente no que tange aos problemas político-sociais, às lutas ocorridas,

como rebeliões políticas e o cangaço e à relação entre o nordestino e os animais

típicos da região como o boi, o cavalo, o jumento.

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33.. AANNÁÁLLIISSEE SSEEMMIIÓÓTTIICCAA DDOO RROOMMAANNCCEE OORRAALL

OO BBOOII EESSPPÁÁCCIIOO..

33..11.. PPrreelliimmiinnaarreess

O romance oral O Boi Espácio, exemplar ímpar das gestas de boi, surgido

por volta de 1880, narra a existência de um boi indomável, dotado de força física

e bravura extraordinárias, que instiga admiração e medo entre a população

sertaneja de Quixelô. Sua superioridade, advinda principalmente da força

descomunal que possui, afugenta até os renomados vaqueiros que, mesmo

unidos, não conseguem dominá-lo. Apenas ao seu dono reserva obediência.

A natureza sobrenatural que reveste o Boi Espácio o torna ainda mais

supremo. Ele nasce de manhã e, inexplicavelmente, ao meio dia, torna-se adulto.

Apenas um urro seu é capaz de fazer estremecer, fortemente, a terra. Tais

virtudes lhe conferem um grande valor monetário, além do reconhecido prestígio a

seu possuidor, o qual se recusa a vendê-lo. Todavia, o valioso e insólito animal é

morto e das partes de seu corpo são feitas importantes obras, tais como

grandiosas edificações, além de outros objetos de variados tipos e dimensões.

Como se percebe, a narrativa constrói-se numa simbiose entre a genuína

expressão social e a efervescente criatividade do imaginário popular, convergindo

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para uma analogia orgânica da ligação do homem com a natureza. Em termos

semióticos, essa união faz com que o romance apresente uma organização

discursiva peculiar, elaborada ao gosto popular, capaz de conciliar e revelar os

valores, as crenças e as intenções daquele que o produziu.

33..22.. OOrrggaanniizzaaççããoo tteexxttuuaall:: vveerrssõõeess eexxaammiinnaaddaass ee sseeggmmeennttaaççããoo

Foram levantadas do Romanceiro Tradicional da Paraíba e de

Pernambuco, de autoria da estudiosa da literatura popular Maria de Fátima

Batista, quatro versões do romance O Boi Espácio. Há uma diversificação de

títulos que provém, certamente, do itinerário temporal e cultural realizado por

todas as manifestações tradicionais que têm, na memória e na oralidade, seus

mecanismos de difusão e conservação.

O corpus selecionado apresenta as seguintes designações: Romance do

Boi Espácio / O Boi Espácio, que denotam uma particularização do animal,

atribuindo-lhe, de imediato, a posição de protagonista e, consequentemente, de

alvo discursivo; O Boi Misterioso, traduzindo uma apreciação cognitiva que recai

sobre o caráter sobrenatural, místico do boi; O Boi do Quixelô, que evidencia a

localização geográfica na qual figura o personagem, outorgando-lhe os valores

próprios da região, ou seja, o sertão. Nesse caso, o espaço físico surge como o

traço caracterizador do animal.

As versões examinadas receberam uma codificação oportuna a fim de

garantir-lhes uma recuperação mais ordenada e coerente no desenvolver da

análise. Dessa forma, têm-se:

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BE1 - ROMANCE DO BOI ESPÁCIO (Va): Cantado por Dalvanira Gadelha,

professora de música, natural de Campina Grande e coletado por Maria de Fátima

Barbosa de Mesquita Batista em 04 de abril de 1984, na cidade de Campina

Grande.

BE2 - O BOI ESPÁCIO (Vb): Cantado por Umbelina Clementina Neves

Antonino, nascida em Vila do Abel (Monteiro) e coletado por Maria de Fátima

Barbosa de Mesquita Batista em 30 de janeiro de 1988, na cidade de Campina

Grande, Abrigo de São Vicente.

BE3 - O BOI MISTERIOSO (Vc): Recitado por Severino Paulino de Farias,

agricultor, nascido no Sítio Paquivira (Macaparana-PE) e coletado por Maria de

Fátima Barbosa de Mesquita Batista em 28 de janeiro de 1987, no Sítio Pau

d’Arco (Salgado de São Félix).

BE4 - O BOI DO QUIXELÔ (Vd): Cantado por Maria do Carmo do Espírito

Santo (Dona Carmem), lavadeira e roceira nascida no Sítio Balaço (Macaparana)

e coletado por Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista em 22 de janeiro de

1987 no Sítio Pau d’Arco (Salgado de São Félix).

Devido ao caráter mutacional das compilações orais, que atinge,

radicalmente, sua textualização, o grupo de versões inspecionado apresentou ora

convergências ora discrepâncias segmentais. Estas, efetivando-se através de

supressões e acréscimos, não afetam a estrutura conteudística da narrativa, ou

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seja, aquela que permite reconhecer uma peça como pertencendo ou não a um

determinado grupo ou classe. Eis, os segmentos extraídos:

SSgg11 – O enunciador-ator, proprietário do Boi Espácio, dirige-se a seu enunciatário-ator,

mãe, para contar-lhe a origem e as peripécias do indômito animal. Essa estrutura

enunciativa projeta os demais segmentos:

SSgg22 – O nascimento do boi ocorre no sertão de Quixelô.

SSgg33 – Ainda bezerro, o boi transforma-se, bruscamente, num animal adulto.

SSgg44 – A mãe do Boi Espácio não detém as virtudes do filho, sendo pois domável e

desprovida de vigor.

SSgg55 - O povo admira e teme o porte descomunal do boi.

SSgg66 – A imponente fera atende aos chamados do dono.

SSgg77 – Aqueles que tentam domá-lo são impiedosamente massacrados.

SSgg88 – O animal emite um urro que abala, intensamente, a terra. O povo, espantado, pensa

ter acabado o mundo.

SSgg99 – Quatro açudes permanentes, em pleno sertão, surgem em decorrência de uma

“carreira” dada pelo boi robusto.

SSgg1100 – O proprietário recusa a oferta de compra do animal.

SSgg1111 – O boi é enviado, como presente, ao imperador.

SSgg1122 – Morto, sua partes são transformadas em obras e objetos grandiosos.

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A textualização do Sg1, introduzindo a história a partir de uma situação

dialógica, é exclusiva da versão codificada como Va, como também as constantes

retomadas desse vínculo durante a progressão enunciativa do romance: “Eu

chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi, eiô”. Em Vd, a enunciação se processa

diretamente em 3ª pessoa, a partir da materialização do Sg2.

“Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou” (BE1)

“Um caso que assucedeu no sertão de Quixelô” (BE4)

A obediência do animal aparece pressuposta em Vb, Vc e Vd e, apenas em

Va, aparece materializada linguisticamente. Vc apresenta-se constituída

basicamente pelo Sg8, que refencializa uma das grandes construções erigidas

pelo boi (quatro açudes duradouros nas terras áridas do sertão). Nas outras

versões, as inacreditáveis obras surgem da morte do boi, visto que é a partir de

suas partes que tais criações se originam.

A presença da vaca, genitora do Boi Espácio, manifesta-se no Sg4, cuja

ocorrência somente se processa em Vb. Esta versão, assim como Vc, é

extremamente curta, abarcando além do Sg4, o enunciado que comporta a morte e

transformação do boi, ou seja, o Sg12 (materializado, também, em Va, Vb e Vd).

Outra divergência segmental reside na responsabilidade pela morte do boi.

Enquanto em Vb, o animal é morto pelas mãos de seu possuidor, que o extirpa

para beneficiar pessoas de mesma condição sócio-cultural, nas versões

codificadas como Va e Vd, o intrépido Boi Espácio é dado ao ilustre imperador

que, pela cronologia do romance, presume-se ser D. Pedro II. Este,

pressupostamente, responde pelo extermínio do valente e valioso animal,

beneficiando-se direta ou indiretamente com isso:

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“Da ponta do Boi Espácio mandei fazer um a canoa

Para embarcar a gente de Goiana para Lisboa” (BE2)

“Das pontas do boi Espácio, mamãe, fizeram uma canoa

Pra transportar o rei, mamãe, da Bahia pra Lisboa” (BE1)

“E este boi vai de mimo pra o doutor emperiador

Das pontas deste boi quatro obra se formou” (BE4)

O quadro seguinte oferece uma distribuição mais sistemática e nítida dos

segmentos estudados:

Segmentos

Versões

Sg1

Sg2

Sg3

Sg4

Sg5

Sg6

Sg7

Sg8

Sg9

Sg10

Sg11

Sg12

TOTA

L

BE1 (Va)

X

X

X

X

X

X

X

X

X

09

BE2 (Vb)

X

X

X

03

BE3 (Vc)

X

X

02

BE4 (Vd)

X

X

X

X

X

X

X

X

X

09

Percebe-se, a partir dessa discriminação, que nenhuma das versões

apresenta a totalidade dos segmentos. Colocando-os em ordem decrescente,

tem-se:

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Versões

Segmentos

BE1 / BE4 09

BE2 03

BE3 02

A identificação dos segmentos por versões (em ordem decrescente)

Número de versões em que aparece

Identificação dos segmentos

04 S12

02 S11

02 S10

01 S9

01 S8

02 S7

01 S6

02 S5

01 S4

02 S3

02 S2

01 S1

33..33.. EEssttrruuttuurraass NNaarrrraattiivvaass

O processo de narrativização do romance oral O Boi Espácio faz emergir

11 (onze) sujeitos semióticos. O número de sujeitos pode parecer elevado se

comparado à textualização curta do romance. No entanto, determinados atores

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sincretizam mais de um papel actancial o que gera a desproporção. Dessa forma,

distribuem-se:

33..33..11.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 11

O sujeito semiótico 1 assume o revestimento figurativo do Boi Espácio,

instaurando-se, na narrativa, pela modalidade complexa do querer-ser. Motivado

por uma auto-destinação, realiza um percurso em busca da liberdade – seu objeto

de valor principal – visto que reage contra todos aqueles que tentam subjugá-lo.

As forças sobrenaturais o auxiliam em seu objetivo, atribuindo-lhe um dote físico

descomunal e uma ferocidade extraordinária. Esta, aliás, evidencia-se também

em seus urros, que fazem estremecer a terra, paralisando, de medo, os seus

opressores (oponentes). Como anti-destinador aparece a opressão da qual tenta,

bravamente, fugir.

Sujeito Versão

S1

Va, Vb, Vc, Vd

sinc

retis

mo

S2

Va, Vb, Vc, Vd

S3 Va, Vb, Vc, Vd

S4

Va, Vb, Vc, Vd

sinc

retis

mo

S5

Va, Vd

Sujeito Versão

S6 Vb

S7 Va

S8 Va, Vd

S9 Va, Vd

S10 Va, Vd

S11 Va, Vd

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Dário Dor Dor (auto-destinação) (opressão) Adjuvante: forças sobrenaturais OV1 liberdade

S1 Oponente: tangedores (Boi Espácio) OV2 S1 confronto S1 OV3

morte dos tangedores

Como se pode notar, o S1 é o responsável direto por sua transformação

juntiva, ou seja, realiza ele próprio o fazer transformador que lhe garante passar

da disjunção à conjunção. Sua competência modal, fincada na imponência,

destemor, bravura, excede, portanto, a de seus oponentes. O esquema seguinte

condensa o que foi dito:

En = F [ S1 υ OV1 → (S1 ∩ OV1)]

F imponência, força,

bravura

[Dor (desejo) → S1 (o boi) (querer-ser) ∩ Ov não-sujeição

PN de performance aquisição valores descritivos

F extirpar os opressores

[ Dor (desejo) → S1 (o boi)

(isenção de coação física ou moral)

∩ Ov liberdade

PN de competência aquisição valores modais

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33..33..22.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 22

Figurativizado pelo Boi Espácio, o S2, nesse percurso, almeja como objeto

de valor principal servir a seu dono, ao qual reserva grande obediência. O afeto

que nutre por seu possuidor constitui, por conseguinte, o seu destinador. Para

coadjuvá-lo em seu itinerário, conta mais uma vez com o sobrenatural que o

reveste de uma supremacia singular, fazendo com que seja valorizado e

apreciado por muitos, especialmente, por aquele que detém sua posse. A

oponência advém do intenso respeito que o dono tem para com o rei/imperador

que se mostra superior ao afeto que nutre pelo valoroso animal.

Tem-se, assim, um percurso que se caracteriza pela modalização

passional. O querer-ser obediente do S2 revela um estado passional afetivo que

toma a forma da estima, da fidelidade. É por estes valores, dirigidos ao dono, que

o valoroso animal deixa-se submeter. A concepção negativa da traição, por

conseguinte, mostra-se como seu anti-destinador:

Dário Dor Dor (fidelidade) (traição) Adjuvante: forças sobrenaturais OV1

S2 Oponente: rei/imperador servir ao dono (Boi Espácio) OV2 S2 obedecê-lo OV3 S2 atender aos seus chamados

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A passagem do estado de privação ao de posse do objeto desejado é

desencadeada por intervenção de um fazer transformador operacionalizado pelo

próprio S2. Este, ao doar para si próprio a competência modal de que necessita,

consegue cumprir o contrato narrativo, assegurando, dessa forma, uma sanção

positiva. Observe-se a diagramação seguinte.

En = F [ S2 υ OV1 → (S2 ∩ OV1)]

33..33..33.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 33

O S3, na figura do possuidor do animal, desenvolve um percurso, impelido

pelo desejo de afirmação social, em busca do objeto de valor prestígio, o qual

abstrai da autoridade que exerce sobre o boi. É um sujeito complexo que se

instaura pela competência modal do querer-ser.

O domínio que exerce sobre o boi constitui o adjuvante que o auxilia na

obtenção do tão almejado reconhecimento. Somente a descrença pode vir a

PN de competência aquisição valores modais

F estima, lealdade para com o dono

[Dor (o desejo) → S2 (o boi) (querer-ser obediente)

∩ Ov servir ao dono

PN de performance aquisição valores descritivos

F obediência

[Dor (desejo) → S2 (o boi)

(estima e respeito ao possuidor)

∩ Ov fidelidade ao dono

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constituir uma ameaça a sua realização. Como anti-destinador, surge a

indiferença, à qual intenta sobrepor-se.

Dário Dor Dor (o querer do sujeito) (indiferença) Adjuvante: obediência do boi OV1 S3 Oponente: a descrença o prestígio (o dono) OV2 S3 posse do boi

Averigua-se, então, que esse percurso assenta-se numa relação prévia de

conjunção. Ao receber do boi (sujeito transformador) os valores modais que o

habilitam a agir, o S3 executa uma performance que, incontestavelmente, lhe

agraciará uma sanção positiva, ou seja, obtenção do objeto. O oponente não tem

uma existência fixa, concreta no percurso, apresentando-se como um provável

obstáculo. Os esquemas seguintes trarão uma descrição mais sistêmica desse

percurso:

En = F [ S3 υ OV1 → (S3 ∩ OV1)]

PN de competência aquisição valores modais

F mostrar-se como “senhor” do boi

[Dor (o boi) → S3 (o dono) (querer-ser) ∩ Ov o prestígio

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A propósito do sujeito semiótico 4

33..33..44.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 44

Destinado pela influência que exerce sobre o boi, o S4, sob o revestimento

figurativo de dono, promove um conjunto de ações que visam persuadir o

pequeno povoado de Quixelô, fazendo-o crer, por meio de uma manipulação que

se efetiva mediante atos provocativos, que ele, assim como o boi, traz consigo os

signos da bravura, da força e, consequentemente, da imponência. Dessa forma, a

auto-promoção constitui o objeto de valor que deseja.

Tencionando, claramente, expor a fragilidade de outros vaqueiros, realiza

um passeio no qual expõe o animal em condição de docilidade, de sujeição.

Previsivelmente, essa exposição, consciente, acarreta tentativas de compra do

animal que são usadas, pelo S4, para sua auto-promoção. Ele recusa a oferta,

dizendo que outras maiores já haviam sido feitas e, o mais importante, rejeitadas.

A docilidade do animal apresenta-se como seu adjuvante e o livre-arbítrio,

inerente a qualquer indivíduo, surge como o possível oponente que poderá

impedir à efetivação do percurso. Observe-se a diagramação seguinte:

PN de performance aquisição valores descritivos

F a obediência

do boi

[Dor(desejo)→ S3 (o dono)

(prestígio) ∩ Ov bravura, força,

imponência

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Dário Dor (querer do sujeito) Adjuvante: docilidade do boi OV1 S4 Oponente: o livre-arbítrio auto-promover-se (o Boi Espácio) OV2 S4 “manipular” S4 OV3

expor o animal S4 OV4 convencer o povo

Privado do objeto de valor desejado, o S4 necessita da mediação de um

fazer transformador, no caso, o saber manipular, a fim de passar do estado

disjunto ao conjunto. A aquisição pressupõe, então, o êxito do ato manipulatório

que, por sua vez, só é obtido porque os sujeitos envolvidos compartilham dos

mesmos valores, ou seja, ambos acreditam na supremacia do boi.

En = F [ S4 υ OV1 → (S4 ∩ OV1)]

PN de competência aquisição valores modais

F posse do animal

[Dor (desejo) → S4 (o dono)

(fazer-crer) ∩ Ov auto-promover-se

PN de performance aquisição valores

descritivos

F o saber

manipular

[Dor(desejo)→ S4 (o dono)

(prestígio) ∩ Ov bravura, força,

imponência

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33..33..55.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 55

Ao passar às mãos do rei a posse do proveitoso animal, o dono assume o

papel actancial de S5. Impulsionado pelo respeito, pelo apreço estabelece um

percurso que tem como fim agradar o monarca – seu objeto de valor principal.

Para isso tem como adjuvante a imponência do boi que instiga o querer do rei,

fazendo-o aceitar o presente.

O amor que sente pelo animal não é maior que a estima, a consideração

que nutre pela autoridade. Embora inferior, tal afeto constitui o seu oponente. Por

conseguinte, o conflito que perpassa o íntimo do S5 o instaura pela modalidade do

crer, visto que é na crença da respeitabilidade real, que assenta o seu agir.

Dário Dor (respeito) Adjuvante: imponência do boi OV1

S5 Oponente: o amor agradar o rei (o dono) OV2 S5 sobrepor-se ao amor S5 OV3

dar o boi

Nesse percurso, a conjunção com o objeto de valor provém do confronto

de valores passionais: o amor, traduzido na modalidade do ser, detém um valor

menor em relação ao respeito, que se reveste da modalidade do crer. Se acreditar

pressupõe sempre uma prévia manipulação, infere-se, pois, que o fazer

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transformador advém do rei que leva o S5 a querer-fazer dar o boi. Observem-se

os esquemas seguintes:

En = F [ S5 υ OV1 → (S5 ∩ OV1)]

A propósito do sujeito semiótico 4

33..33..66.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 66

Trazendo características totalmente opostas, o S6, figurativizado pela mãe

do Boi Espácio, almeja como objeto de valor a tranqüilidade. Seu porte físico,

ausente de força e vigor, o auxilia nessa empreitada. É um sujeito que se instaura

pela modalidade do querer-ser, desenvolvendo uma trajetória marcada

essencialmente pela mansidão que lhe é inerente.

A superioridade do filho, surpreendentemente, ao contrapor-se com sua

constituição física comum e débil, configura o seu anti-sujeito. Ela, mesmo em

condições propícias (correndo sobre uma superfície plana), não consegue atingir

uma velocidade satisfatória. Conforme está em Vc, a vaca não alevantava poeira.

PN de competência aquisição valores modais

F posse do valioso

animal

[Dor (crença) → S5 (o dono) (crer) ∩ Ov agradar o rei

PN de performance aquisição valores

descritivos

F sobrepor-se ao

amor

[Dor (o rei) → S5 (o dono)

(respeitabilidade) ∩ Ov dar o boi

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Tem como destinador a paz e, logicamente, como anti-destinador a guerra. A

diagramação seguinte sintetiza o percurso:

Dário Dor Dor (a paz) (a guerra) Adjuvante: o porte frágil OV1 S6 S6 tranqüilidade (o filho) (a mãe) OV2 S6 mansidão S6 OV3

“naõ alevantava poeira”

O S6, como pode ser constatado no percurso acima, é sancionado

positivamente, ou seja, obtém a conjunção com o objeto de valor desejado. O

fazer que possibilita esse estado juntivo advém do próprio S6 que, por meio de

uma auto destinação modal, adquire competência para realizar a performance e,

consequentemente, receber a recompensa. Inexiste uma ação contrária que se

coloque entre o sujeito e aquilo que almeja. Os esquemas seguintes

consubstanciam as afirmações acima:

En = F [ S6 υ OV1 → (S6 ∩ OV1)]

PN de competência aquisição valores modais

F a mansidão

[Dor (paz) → S6 (vaca) (querer-ser) ∩ Ov tranqüilidade

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33..33..77.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 77

Aparece, na história, como S7, a mãe do possuidor do boi que, instaurada

pelo dever social para com a família, realiza um percurso no qual busca como

objeto de valor escutar o filho. Este, por sua vez, se institui como destinador visto

que atribui ao S6 a posição de julgador ouvinte. É recorrendo, constantemente, a

ela, que o filho procura conseguir o aval veridictório de que a sua história

necessita.

Para coadjuvá-lo nesse itinerário, o S7 conta com o auxílio da própria

estrutura familiar, no caso a sertaneja, que prescreve uma relação mais regrada

entre pais e filhos. Não é aleatório que é a mãe e, não outra pessoa, que o filho

procura para narrar as peripécias do boi misterioso, das quais é um participante

ativo.

Dário Dor (filho) Adjuvante: estrutura familiar OV1 S7 ouvir o filho (mãe) OV2 S7 atenção à história S7 OV3

crer na história

PN de performance aquisição valores

descritivos

F não executar

movimentos ágeis

[ Dor → S6 (vaca) (a mansidão)

(docilidade) ∩ Ov repouso, sossego

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Como se pode depreender, tudo contribui para que a aquisição se efetive

plenamente. Não há a presença de oponente que obstrua o percurso nem de anti-

sujeito que deseje o mesmo objeto. Merece ser assinalado que o estado

disjuntivo, nesse contexto, não significa a ausência de relação afetiva entre mãe e

filho, traduz apenas uma situação na qual esse vínculo ainda não se fazia

presente. A diagramação seguinte consegue oferecer uma visão mais sistêmica

do percurso:

En = F [ S7 → (S7 υ OV1)]

33..33..88.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 88

Os vaqueiros que tentam domar o Boi Espácio figurativizam o S8,

instaurando-se na narrativa pela modalidade do querer-fazer. A depender da

versão analisada, muda-se o número e caracterização dos desafortunados

tangedores. Em Va, três pretendem executar a façanha e são eles simples peões.

Na versão que traz o código Vd, aparecem vinte candidatos, vaqueiros de

PN de competência aquisição valores modais

F organização da

família

[Dor (filho) → S7 (mãe) (dever) ∩ Ov atender o filho

PN de performance aquisição valores descritivos

F participar da fala

do filho

[ Dor → S7(a mãe) (o filho)

(crer na fala do filho)

∩ Ov cuidado para com a família

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renome, dispostos a enfrentar a “fera”. Famosos ou não, todos são destinados

pela glória que a dominação sobre o boi poderá lhes oferecer. Como esta se

encontra em poder do dono do animal, este assume o papel de anti-sujeito e a

probabilidade de fracasso, em oposição ao mérito desejado, configura o anti-

destinador.

Nessa árdua trajetória, o único elemento a auxiliá-los é a coragem que, no

entanto, mostra-se ineficiente, inútil diante da supremacia física e da bravura do

boi. Estas, aliás, são os seus grandes oponentes. À vista dessa desproporção de

forças, o boi, obviamente, é agraciado com a vitória e os infaustos vaqueiros

recebem a sanção da morte. O esquema abaixo sistematiza o percurso:

Dário Dor Dor (glória) (o fracasso) Adjuvante: a coragem OV1 dominar o boi S8 S8 Oponente: supremacia do boi (dono) (vaqueiros) OV2 S8 tangê-lo/encurralá-lo

Por estar modalmente em desvantagem em relação a seu oponente, o S8

termina o percurso disjunto do objeto almejado. Sua performance, assentada no

querer-fazer, sucumbe à competência modal do poder-ser do Boi Espácio. Como

não cumpre o contrato narrativo, o S8 é punido, negativamente, ou seja, perde a

vida.

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En = F [ S8 υ OV1 → (S8 υ OV1)]

33..33..99.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 99

Destinado pelo status que lhe atribui autoridade e prestígio, o S9, na figura

do imperador, estabelece um percurso no qual se propõe a tirar proveito da

superioridade física e sobrenatural do boi – seu objeto de valor principal. Suas

ações, impelidas pela modalidade do querer, variam consoante a versão

examinada. Em Va, manda construir, com os chifres do vigoroso animal, uma

canoa para transportá-lo da Bahia até Lisboa, sendo, pois, o único beneficiário. Já

em Vd, com as mesmas partes do boi, dá ordem para edificar um açude e uma

igreja, bens que se prestam a uma coletividade, além de uma lancha e um vapor,

artefatos que, pela importância, pressupõem servir unicamente aos seus

propósitos.

Tem-se, dessa forma, um percurso que apresenta dois momentos. No

primeiro, assumindo, unicamente, o papel figurativo de rei, pretende deslocar-se

PN de competência privação valores modais

F vencer o boi

[Dor (glória) → S8 (vaqueiros) (querer-fazer) υ Ov domínio

sobre o boi

PN de performance

valores descritivos

F ter meios de domar o boi

→ suplantada pela competência do intrépido animal (força aquém

do oponente)

privação [ o boi→(S8 υ OV1)→(Anti-sujeito ∩ OV1)]

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do Brasil para Lisboa, utilizando para tal um meio de navegação, advindo do

corpo do boi, que pode ser uma canoa, uma lancha ou vapor, a depender da

versão analisada. O dono constitui o seu adjuvante, uma vez que, por respeito,

entrega ao imperador a posse do vantajoso animal. Nada impede o S9 nesse

percurso. Veja-se:

Dário Dor (status) Adjuvante: o dono OV1

S9 aproveitar-se do boi (rei/imperdor) OV2 S9 construir um transporte OV3 S9 deslocar-se até Lisboa

A conjunção com o objeto de valor é efetivada mediante intervenção

realizada pelo próprio S9 que passa, então, ao posto de sujeito operador. Em

outros termos, sendo o responsável direto por sua competência modal, adquire,

ele, condições necessárias para transformar seu estado disjunto e,

consequentemente, gozar de uma reparação recompensatória:

En = F [ S9 → (S9 υ OV1)]

PN de competência aquisição valores modais

F Receber o animal e

prover-se dele

[Dor (status) → S9 (imperador) (querer) ∩ Ov deslocar-se até Lisboa

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No segundo momento do percurso, o S9 abarca não só o revestimento de

rei, como de qualquer sujeito astuto, aproveitador, enfim, político. A construção de

uma igreja e um açude revela uma estratégia manipulatória (tentação), com a qual

o S9 objetiva convencer o povo de que é um bom monarca, um bom político. Ele

usa de métodos tentatórios ao oferecer valores importantes e desejáveis para o

manipulado: água, para o corpo, fé, para a alma. O animal que materializa esses

valores constitui o seu adjuvante e a ardileza, ou seja, o saber-enganar aparece

como o seu destinador. Inexiste, no universo em questão, a figura de um

oponente que intente prejudicar a realização do percurso. O esquema seguinte

oferece uma diagramação mais nítida do agir do S9:

Dário Dor (ardileza) Adjuvante: o boi OV1 S9 aproveitar-se do boi (rei/imperdor) OV2 S9 possuir o boi OV3 S9 construir uma igreja e um açude OV4 S9 mostrar-se “benevolente”

PN de performance aquisição valores

descritivos

F construção do

transporte

[ Dor → S9 (imperador) (o imperdor)

(Usufruto do animal)

∩ Ov vínculo ente

Brasil e Portugal

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Como os valores inscritos no ato manipulatório são almejados pelo sujeito-

manipulado, cumpre-se o contrato narrativo e o S8 recebe como sanção a

conjunção com o objeto desejado. Cabe lembrar que, numa manipulação, os

actantes manipulador e manipulado assumem sempre a função de sujeito

julgador. É por julgar a competência do povo que o imperador acredita ser

possível persuadi-lo e, por outro lado, é julgando o agir do imperador, acreditando

nas suas propostas, que o povo deixa-se manipular.

En = F [(S9 υ OV1) → (S9 υ OV1)]

PN de competência aquisição valores modais

F prover-se do animal

[Dor (astúcia) → S9 (imperador) (querer-fazer)

υ Ov mostrar-se como bom monarca

PN de performance aquisição valores descritivos

F manipular

o povo

[Dor (astúcia)→S9 (imperador)

(ludibriar o povo)

∩ Ov prestígio perante

o povo

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PERCURSO COMPLETO DO S9

1º momento 2º momento OV2 OV4 S9 construir um S9 aproveitar-se do boi transporte OV3 OV5 S9 deslocar-se até S9 possuir o boi Lisboa OV6 S9 construir uma igreja e um açude

S9 OV7 mostrar-se “benevolente”

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33..33..1100.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 1100

Na narrativa em questão, o S10, figurativizado pelo comprador que intenta

ter o Boi Espácio, inscreve-se como sujeito de um querer-fazer, sendo motivado

pelo desejo de reconhecimento, de prestígio que a posse do virtuoso animal – seu

objeto de valor principal – pode ocasionar. Nesse contexto, a riqueza surge como

seu adjuvante, uma vez que, agregando o boi um valor inestimável, apenas os

bem dotados monetariamente poderiam ser os agentes de ofertas tão tentadoras.

No entanto, o dono recusa a proposta, o que lhe confere o papel actancial de

oponente, ao obstruir a conquista, visto que o intrépido animal encontra-se em

seu poder.

Dário Dor (prestígio)

Adjuvante: riqueza OV1 S10 comprar o boi (a dama/a cometa) Oponente OV2 S10 seduzir o dono OV3 S10 ter dinheiro

A performance do S10 apresenta-se como um fazer manipulatório de ordem

tentatória, visto que objetiva alterar a competência do manipulado, o dono,

instigando-o a dever-fazer-vender o boi. Como os sujeitos envolvidos não

compartilham dos mesmos valores, a persuasão não é bem sucedida e, como

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122

conseqüência, o S10 perde o valor cobiçado, permanecendo, portanto, em estado

disjuntivo.

Um fato que merece vir à tona diz respeito à variação figurativa do S10.

Enquanto em Va, a abordagem ao dono do misterioso animal é feita por uma

dama, em Vd, a tentação é realizada por uma cometa, espécie de caixeiro

viajante. Todavia, a noção de gênero permanece invariável: ambas são mulheres.

Os esquemas seguintes ordenam, visualmente, as reflexões acima esboçadas:

En = F [ S10 υ OV1 → (S10 υ OV1)]

33..33..1111.. AA pprrooppóóssiittoo ddoo ssuujjeeiittoo sseemmiióóttiiccoo 1111

O povo figurativiza o S11, cujo objeto de valor principal é admirar o Boi

Espácio. Impulsionado pelas insígnias do sobrenatural que envolvem o animal,

transformando-o num ser grandioso, o S11 estabelece um percurso no qual se

instaura pela modalidade do querer. O sertão de Quixelô, enquanto lugar

PN de competência privação valores modais

F riqueza

[Dor (prestígio) → S10 (dama/cometa)

(querer-fazer-vender)

υ Ov possuir o

ilustre animal

PN de performance

valores descritivos

F oferecer uma

elevada quantia

→ suplantada pela competência do (desprezo pelo

dinheiro)

privação [ dono→(S10 υ OV1)→(dono ∩ OV1)]

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123

privilegiado pela existência do ilustre animal, apresenta-se como seu adjuvante.

Não há um oponente que se interponha entre o objeto desejado e o S11.

Dário Dor (sobrenatural)

Adjuvante: Quixelô

OV1 S11 admirar o boi (povo)

A passagem da disjunção à conjunção, nesse percurso, é desencadeada

pela operacionalização de um fazer transformador, promovido pela intervenção do

boi, que doa ao S11 a competência necessária para que este obtenha os valores

pretendidos. É um percurso extremamente simples. Observe-se a diagramação

seguinte.

En = F [ Boi→ (S11 υ OV1) → (S11 ∩ OV1)]

PN de competência aquisição valores modais

F habitar o mesmo

lugar do boi

[Dor (sobrenatural) → S11 (povo) (querer) ∩ Ov admiração

PN de performance aquisição valores descritivos

F poder admirar

o boi

[Dor (o boi) → S11 (povo) (lugar propício ao

sobrenatural)

∩ Ov admiração, surpresa, espanto

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124

33..33..1122.. QQuuaalliiffiiccaaççããoo ddooss vvaalloorreess

Na concepção dos sujeitos

Na concepção da sociedade

Objetos de

Valor

positivo

negativo neutro positivo

negativo

liberdade

S1, S2, S3, S4, S5, S6,

S7, S11

S8, S9, S10

-

X

-

confronto

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S10, S11

S8

S9

X

-

morte dos

tangedores

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S10, S11

S8

S9

X

-

servir ao dono

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S9, S11

S8, S10

-

X

-

obedecer ao dono

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S9, S11

S8, S10

-

X

-

prestígio

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8, S9,

S10, S11

-

S6

X

-

posse do boi

(dono)

S1, S2, S3, S4, S5, S7,

S9, S11

S8, S10

S6

X

-

auto-promover-se

S1, S2, S3, S4, S5, S8, S9, S10, S11

-

S6, S7

X

“manipular”

S3, S4, S5, S9, S10, S11

S8

S1, S2, S6,

S7

X

-

expor o animal

S3, S4, S5, S8, S9, S10,

S11

-

S1, S2, S6,

S7

X

-

convencer o povo

S3, S4, S5, S8, S9, S10

-

S1, S2, S6,

S7, S11

-

X

agradar o rei

S5, S9, S11 S3, S4

S1, S2, S6, S7, S8, S10

X

-

sobrepor-se ao

amor

S5, S9 S1, S2, S3, S4, S6, S7,

S11

S8, S10

-

X

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125

Na concepção da sociedade

Na concepção da sociedade

Objetos de

Valor

positivo

negativo

neutro

positivo negativo

dar o boi

S5, S9

S1, S2, S3, S4, S6, S7,

S10

S8

-

X

tranqüilidade

S6, S7, S1, S2, S3, S4, S5, S8, S9, S10, S11

-

X

-

mansidão

S6, S7 S1, S2, S3, S4, S5, S8, S9, S10, S11

-

X

“não alevantar

poeira”

S6, S7 S1, S2, S3, S4, S5, S8, S9, S10, S11

-

X

ouvir o filho

S3, S4, S5, S7

-

S1, S2, S6, S8, S9, S10,

S11

X

-

atenção à história

S3, S4, S5, S7

-

S1, S2, S6, S8, S9, S10,

S11

X

-

acreditar na

história

S3, S4, S5, S7

-

S1, S2, S6, S8, S9, S10,

S11

X

-

dominar o boi

S8, S9, S10 S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8, S11

-

-

X

encurralá-lo

S8

S1, S2, S3, S4, S5, S6,

S7, S11

S9, S10 -

X

aproveitar-se do

boi

S3, S4, S5, S8, S9, S10

S1, S2

S6, S7, S11

-

X

construir

transportes

S9

-

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8, S10,

S11

X

-

deslocar-se para

Lisboa

S9

-

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8, S10,

S11

X

-

mostrar-se “bom”

S9 S1, S2, S3, S4, S5, S6,

S7, S11

S8, S10 X

-

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126

Na concepção da sociedade Na concepção da sociedade

Objetos de

Valor

positivo negativo neutro positivo negativo

igreja e açude

S5, S9

-

S1, S2, S3, S4, S6, S7, S8, S10, S11

-

X

comprar o boi

S10

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S9, S11

S8 -

X

riqueza

S9, S10

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8, S11

-

-

X

admirar o boi

S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8, S9,

S10, S11

-

-

X

-

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127

33..33..1133.. QQuuaaddrroo –– RReessuummoo ddaass EEssttrruuttuurraass NNaarrrraattiivvaass

Junção

Sujeito

Semiótico

Objeto de

Valor Principal

Conjunção

Disjunção

Destinador

Anti-

destinador

Anti-

sujeito

Adjuvante

Oponente

Modalizaçã: instauração do sujeito

S1 Boi

Espácio

liberdade

X

-

desejo

opressão

-

forças sobrenaturai

s

tangedore

s

querer-ser

livre

S2 Boi

Espácio

obedecer ao dono

X

-

fidelidade

traição

-

forças sobrenaturai

s

rei/impera

dor

querer-ser obediente

S3 possuidor

do boi

o prestígio

X

-

desejo

indiferença

-

posse do

boi

descrença

querer-ser

S4 possuidor

do boi

auto-promover-

se

X

-

desejo

-

-

docilidade do boi

livre-

arbítrio

fazer-saber-crer

S5 possuidor

do boi

agradar o

rei

X

-

respeito

-

-

imponência do boi

o amor

crer

S6 mãe do boi Espácio)

tranqüilida

de

X

-

paz

guerra

suprema

cia do filho

porte físico

débil

-

ser

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128

Junção

Sujeito

Semiótico

Objeto

de Valor Principa

l

Conjunção

Disjunção

Destinador

Anti-

destinador

Anti-

sujeito

Adjuvante

Oponente

Modalização: instauração do sujeito

S7

mãe do dono

ouvir o

filho

X

-

filho

-

-

estrutura familiar

-

dever-ouvir

S8 vaqueiros

dominar

o boi

-

X

glória

fracasso

-

coragem

supremacia

do boi

querer-dominar

S9

imperador

usufruir do boi

X

-

status

-

-

o dono

-

querer-

aproveitar-se

S10 dama/cometa

comprar

o boi

-

X

reconhecimento prestígio

-

-

riqueza

possuidor do boi

querer-comprar

S11 povo

admirar o boi

X

-

forças sobrenaturais

-

-

Sertão de Quixelô

-

querer-admirar

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129

33..44.. EEssttrruuttuurraass DDiissccuurrssiivvaass

33..44..11.. DDeelleeggaaççããoo ddee VVoozz ee RReellaaççõõeess AArrgguummeennttaattiivvaass

O processo de enunciação do romance O Boi Espácio, como de toda

narrativa oral que se (re)constrói pelas forças incoativas da memória e pelas

determinações ideológicas de seu produtor, efetiva-se sob a voz de um

enunciador coletivo o qual, dialogicamente, instaura um enunciatário de mesma

natureza. Essa consonância estabelece um texto em que a distância sócio-

cultural e, sobretudo lingüística, entre enunciador e enunciatário tende a

desaparecer, atestando, nitidamente, os fundamentos de uma alteridade popular.

Imbuído de valores culturais socialmente filtrados, o enunciador, nessa

narrativa, apresenta um discurso fundamentado na tese de que, a supremacia

física do boi, aliada a sua extrema valentia, representa, simbolicamente, a

imponência e a intrepidez daquele que detém a sua posse, ou seja, o nordestino.

Para sustentar veridictoriamente tal proposição, esse enunciador delega a voz a

oito atores (interlocutores), que não são nomeados, mas revestidos de papéis

temáticos. Estes conferem à história um caráter atemporal, por não se prenderem

a seres específicos, podendo figurar aqueles que, durante a travessia temporal do

romance, desempenharam as mesmas funções e, talvez, os mesmos

comportamentos. São eles: o boi (a1), o seu dono (a2), a vaca mãe do boi (a3), a

mãe do proprietário (a4), os vaqueiros que procuram domar o boi (a5), a dama/a

cometa (a6) que pretende comprá-lo, o imperador (a7) e, em sentido geral, o povo

(a8).

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130

A designação <Espácio>, atribuída ao ator boi, recai apenas sobre duas

versões, Va e Vb, nas quais, provavelmente, constitui o fator desencadeante da

compilação dos títulos que as introduzem: Romance do Boi Espácio e O Boi

Espácio, respectivamente. As demais, ao trazerem a denominação genérica de

boi, acentuam e, ao mesmo tempo, comprovam a variabilidade e difusão do

romance.

O boi é projetado na tessitura textual por meio de uma debreagem

enunciativa, caracterizada, formalmente, pelo fazer-contar, ou seja, ele se

instaura, em todas as versões, como fruto de uma memória que é recuperada a

partir da elocução direta do próprio enunciador (Vd) ou, em segunda instância,

pela voz de seu proprietário (Va), do qual é sempre enunciatário:

“Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou

De um bezerro que nasceu, mamãe, no sertão de Quixelô” (BE1)

“Um caso que assucedeu no sertão do Quixelô

Um bezerro que nasceu o povo se admirou” (BE4)

A ausência de voz que atinge o vigoroso animal é uma das estratégicas

usadas pelo enunciador para conferir maior veracidade ao discurso que enuncia.

Colocar um animal falante, por mais místico que seja, pode ressoar como um

acontecimento falso, enganoso. Além do mais, sem poder de fala, a construção

do boi, enquanto simbologia do fazer e do ser nordestino, ganha maior ênfase,

visto que o animal ganha feições realísticas.

O mistério e o encantamento que envolvem a figura do boi não

comprometem sua apreensão enquanto ser real, antes a reforça, uma vez que

superstições e episódios sobrenaturais, embora tidos pela ciência como ficcionais,

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131

fazem parte do imaginário fantástico de um povo, de uma sociedade que os

concebe, por sua vez, como verdades irrefutáveis, espalhando-se com a dinâmica

das gerações e fixando-se nas várias memórias por meio da admiração ou do

temor que encerram. É muito comum, o sertanejo, de natureza mais interiorana,

atribuir, muitas vezes, uma alma aos animais, sentindo dificuldade em definir a

fronteira entre o mundo animal e o humano, entre o natural e o sobrenatural. Daí

a antropomorfização do boi, que passa, hiperbolicamente, a expressar os valores

de uma coletividade: a nordestina.

Ao ser descrito através de sua força e tamanho incomuns, incrível rapidez,

nascimento, criação, ações e o próprio destino impulsionados por forças

sobrenaturais, o boi recebe uma caracterização culturalmente positiva. Ele

consegue abarcar todas as virtudes apreciáveis e desejáveis para a gente e o

contexto que representa. Mesmo quando suas peripécias convergem para a

morte dos vaqueiros, há uma tentativa, explícita, do enunciador, de eximi-lo da

responsabilidade, negativa, do ato:

“Às quatro horas da tarde, mamãe, abateu três tangedor” (BE1)

“Às quatro hora da tarde, Tangeram pra o bebedor

Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador” (BE4)

Nos fragmentos acima, percebe-se que o bondoso animal é levado a matar

os tangedores, visto que são estes que tentam encurralá-lo, no intuito de, assim,

conseguirem subjugá-lo. É obvio que o enunciatário espera que o boi, na figura do

grande herói, lute contra tais opressores e, se os mata é unicamente para

defender-se. Isso ocorre, constantemente, em filmes e novelas, onde o extermínio

do vilão é aguardado, ansiosamente, por todos.

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132

A respeito do dono do boi, pode-se dizer que há uma identificação entre ele

e o enunciador, a qual se encontra alicerçada em alguns argumentos. O primeiro

reside em sua projeção no enunciado que, apesar de processar-se de maneiras

distintas, consoante a versão que o comporta, garante-lhe o papel constante e

exclusivo de ator-enunciador. Em Va, ao inscrever-se através de uma embreagem

enunciva, assume aparentemente a responsabilidade pela enunciação,

estabelecendo, inclusive, uma situação dialógica na qual recupera uma outra

enunciação da qual provém a progressão do romance. É a partir da segunda

enunciação que os demais atores são projetados. Observe-se o esquema:

De acordo com a diagramação acima, constata-se que o filho (dono do boi)

dirige-se à mãe, sua enunciatária, para contar-lhe os feitos extraordinários do Boi

Espácio. Ao iniciar a narração, ele passa a figurar como “enunciador” visto que

introduz uma outra enunciação no interior daquela em que já está inscrito. Os

efeitos de sentido obtidos por meio deste mecanismo consubstanciam-se nos

valores culturais do contar histórias. Em diversas comunidades, especialmente as

populares, a atividade de narrar causos, lendas, contos consiste numa verdadeira

Eor Eário

filho mãe

filho mãe Boi Espácio vaca vaqueiros dama/cometa povo

Eor Eário

a2 (filho)

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133

arte de ensinar. Os pais contavam e ainda contam histórias para seus filhos a fim

que eles assimilem as lições veiculadas por elas. Muitas, apesar de fabulosas,

são tomadas por seus ouvintes como reais.

No romance em questão, é o filho o agente do contar e, nessa posição,

suas palavras não carregam a confiabilidade necessária. Por isso recorre à figura

materna, símbolo do conhecimento familiar, com o propósito de oferecer

credibilidade a seu dizer. O próprio lexema <mãe>, reiterado ao logo de toda a

narrativa, sobretudo em função vocativa, comprova a busca do filho pela

aceitação e aquiescência de seu discurso.

“Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou

De um bezerro que nasceu, mamãe, no sertão de Quixelô

Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô” (BE1)

Na versão BE4, a enunciação se projeta em terceira pessoa, ou seja,

opera-se por meio de uma debreagem enunciativa. O discurso se efetiva

mediante uma voz que não diz “eu”, mas que congrega os valores de um “nós”,

reverberando, nitidamente, o sincretismo dialógico/dialético entre sujeito e

sociedade. Cabe ao enunciador a incumbência de instalar no enunciado os atores

que, nessa esfera, não têm autonomia ilocucionária. A exceção incide sobre o

possuidor do boi que, apesar de inicialmente projetado como um ator distante da

enunciação, ocupa, em seguida, o cargo de enunciador ator:

“Um caso que assucedeu No sertão de Quixelô

Um bezerro que nasceu O povo se admirou” (BE4)

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134

“O dono que vinha atrás palavra não lhe tomou

Que um conto e setecentos Por ele já se enjeitou

E este boi vai de mimo Pra o doutor imperador” (BE4)

Inconscientemente ou não, o enunciador, cúmplice enunciativo do dono,

rompe com o foco narrativo em terceira pessoa quando projeta a fala do dono do

animal de forma subjetiva, ou seja, fincando estruturas lingüísticas que remetem à

instância de enunciação. Ao relatar que o boi será dado ao imperador, enuncia-se

a estrutura “E este boi vai de mimo Pra o doutor imperador” na qual figura o

lexema <este>, de valor dêitico, que situa o fato em relação ao seu enunciador,

isto é, remete a uma voz que se coloca enquanto “eu”. O gráfico seguinte

apresenta, mais claramente, o fenômeno:

Outro argumento que reforça a fusão entre o enunciador e o dono reside

no fato de que ambos perseguem um objetivo comum. Não é ao acaso que o

proprietário do boi goza de plenas prerrogativas. Ele é o possuidor legítimo do

Eor Enunciação

Eário

a2 a3 a4

a2

a5 a6 a7 a8

...

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135

temeroso animal e o único a quem o boi reserva obediência. Ademais, as

façanhas inacreditáveis, sobrenaturais que acentuam a superioridade bestial do

Boi Espácio condicionam também a supremacia de seu dono. Isto é, sendo o boi

indomável, de força brutal, aquele que detém a sua posse, por extensão, passa a

ser, também grandioso, altivo, imponente. É, então, através da caracterização e

comportamentos do dono que o enunciador solidifica a sua tese.

“Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi, eió” (BE1)

Na citação acima, recupera-se uma estrutura lingüística, tipicamente

nordestina, que evidencia, explicitamente, o núcleo ideológico em torno do qual o

discurso se desenvolve: eiá, meu boi, eiô. Essa expressão pertence

culturalmente ao universo discursivo dos vaqueiros (peões) que fazem uso dela

em situações de contato com o gado. Depreende-se, pois, que o travestimento de

vaqueiro alia-se, harmoniosamente, à condição de filho, atribuindo ao dono do

animal um engrandecimento ao mesmo tempo moral e físico.

Reconhecidamente, o vaqueiro, no imaginário popular, reveste-se de

semas positivos que o caracterizam como bravo, forte, destemido, mas também

recebe atribuições negativas que o configuram como rude, impolido, de natureza

bruta. Estas últimas, no romance, são neutralizadas pela relação que se

estabelece entre o filho e a mãe, uma vez que o enunciatário concebe como

sendo benévolo, cortês o filho que conta histórias à mãe. Dessa forma, há um

vínculo dialógico que ultrapassa os limites do enunciado e se estende até a

instância social.

A simbologia do boi, enquanto expressão cultural de um povo, torna-se

mais evidente quando se projeta no romance a recusa, por parte do dono, em

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136

vender o valioso animal. Embora as propostas sejam tentadoras, o possuidor do

animal não deixa transparecer nenhum sinal de interesse e as rejeita

imediatamente. Com isso, ele opta por seus valores de bravura, intrepidez,

supremacia. Cabe ressaltar, que são elementos sócio-culturalmente atribuídos ao

homem, o que, certamente, converge para explicar a posse do animal, visto que

se encontra em mãos genuinamente masculinas. Ainda é bastante comum, entre

determinadas comunidades sertanejas, o homem, principalmente, valorizar sua

honra, força, valentia em detrimento do dinheiro, do poder monetário.

Os atores femininos que permeiam, debreativamente, o romance não

usufruem de privilégios, são inteligentemente colocados para reforçar a

supremacia masculina. A mãe do dono é uma enunciatária a quem não se atribui,

em nenhum momento, o poder de voz, embora ela desempenhe um papel

culturalmente superior. Essa ausência de voz constitui, indubitavelmente, uma

estratégia argumentativa, uma vez que seu silêncio ressoa socialmente como

uma aprovação à enunciação do filho.

A vaca, genitora do boi descomunal, não possui as virtudes do filho. Pelo

contrário, ela conserva um porte débil, não atinge uma velocidade espantosa,

sendo extremamente vagarosa e, o mais importante, apresenta-se dócil. É uma

caracterização que faz emanar preceitos axiológicos que estabelecem uma

oposição entre masculinidade e feminilidade. Dentro do universo semiótico em

questão, ao homem são dadas as atribuições relacionadas com a força, a

bravura, a supremacia, o poder e à mulher, conotações que remetem à

fragilidade, à docilidade, à ausência de poder.

“A vaca mãe do Boi Espácio era uma vaca maneira

Corria num baixio de terra não alevantava poeira” (BE2)

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137

Em Va, aquele que propõe ao dono à compra do Boi Espácio é,

figurativamente, uma mulher, para usar a designação que consta na narrativa,

uma dama. Essa denominação denota já uma incapacidade para as transações

comerciais, visto que confere a ela as qualificações apenas de educada, fina,

nobre, polida, ou seja, sem poder de persuasão. Sendo, assim, um homem sagaz

não pode ser “convencido” por uma mulher delicada:

“Fui passear na cidade, mamãe, uma dama me chamou

Quer vender o surubim, mamãe três contos de réis eu dou,

Três contos e oitocentos, mamãe, por ela já se enjeitou” (BE1)

O mesmo episódio, em Vd, concentra uma apreciação histórica. A mulher

permanece como o sujeito realizador da proposta, no entanto, não carrega mais

as qualificações próprias de uma dama. É caracterizada como uma cometa, ou

seja, desempenha a função de caixeiro viajante, atividade muito presente no

Brasil na época Imperial. Era uma ocupação legitimamente masculina. As

mulheres que enveredavam por este caminho não conseguiam obter a

credibilidade que só ao homem era oferecida. Dessa forma, ainda que possua

competência para o oficio, ela se mostra inadequada, socialmente, para ter em

seu poder o boi majestoso. A indiferença do dono em relação à sua investida

comprova o fato:

“Dentro de Pedra e fogo Uma cometa estralou

–Se este boi for para vender Um conto por ele eu dou,

O dono que vinha atrás Palavra não lhe tomou

Que um conto e setecento Por ele já se injeitou” (BE4)

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138

No fragmento acima, constata-se que o enunciador, ardilosamente, “dá” a

palavra ao comprador através do discurso direto, que se efetiva logo após o verbo

discendi <estralou>, o que poderia sugerir aos que se detém, unicamente, na

tessitura do texto, a existência de outro ator-enunciador. No entanto, não é a

cometa que fala diretamente no enunciado. É simplesmente uma “repetição”, uma

reprodução de um dito que o enunciador, conscientemente ou não, projeta para

criar a impressão de que o fato se processa no momento em que está sendo

enunciado. Tal recurso, utilizado, especificamente nesse segmento, revela a

necessidade de referencilizar, de criar o efeito de realidade, de desvelar,

enfaticamente, o apego aos princípios culturais e a conseqüente apatia aos bens

materiais.

A valorização masculina do dono é tão marcada e evidente que os outros

atores que trazem o signo da masculinidade não se equiparam a ele. Tem-se,

assim, os vaqueiros que, apesar de renomados, sucumbem à imponência física e

sobrenatural do Boi Espácio. Debreados enunciativamente, os vaqueiros, como

os demais atores, condensam apenas poder de audição, servindo, pois, aos

propósitos discursivos do enunciador e, consequentemente, do possuidor do

animal.

“As quatro horas da tarde Tangeram pra o bebedor

Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador” (BE4)

A reconhecida habilidade dos vaqueiros, traduzida na expressão “Vinte

vaqueiro de fama”, apresenta-se como um argumento contrário ao próprio fazer

dos desditosos peões. O vergonhoso fracasso, proveniente da tentativa frustrada

de subjugar o Boi Espácio, vai de encontro à informação pressuposta de que já

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139

haviam domado outros bois. Dessa forma, a reputação que trazem é

incisivamente destruída, fazendo-os perder as virtuosas atribuições masculinas.

Por outro lado, a ruína daqueles dá relevo a supremacia do boi valente visto que

este alcança, imponentemente, a vitória mesmo estando em desvantagem, o que

justifica sua ação violenta. Em Va, o confronto é mais cruel, culminando na morte

de três tangedores:

“As quatro horas da tarde, mamãe, abateu três tangedor” (BE)

Da inclusão do imperador/rei, outro representante da ordem masculina,

emana propósitos diversos. Primeiro, agregando os semas da autoridade, da

nobreza, da austeridade, o rei assume um revestimento masculino que não

corresponde à concepção de homem viril, forte, vigoroso construída pelo

imaginário popular. Ele traz as insígnias da ostentação, da autoridade, da

ociosidade. No entanto, esses atributos o fazem merecedor de estima e respeito.

É para ele que o dono entrega, como mimo, o suntuoso animal. Fazendo isso, o

dono nega a proeminência física do monarca que se mostra incapaz de submeter

ao seu poder o indômito animal. Tal fato parece convergir para responsabilidade

pela morte do boi, que, em duas versões, tem o rei, pressupostamente, como

mandante.

“E este boi vai de mimo Pra o doutor imperiador

Das pontas deste boi Quatro obras se formou

Um açude e uma igreja Uma lancha e um vapor” (BE4)

“Das pontas do boi espácio, mamãe, fizeram uma canoa

Pra transportar o rei, mamãe, da Bahia pra Lisboa” (BE1)

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140

O lexema <mimo> remete, potencialmente, ao ócio que recai sobre muitos

nobres, uma vez que, gozando de luxo e poder, não se dignam a trabalhar,

sobrevivem da exploração dos mais fracos. Além disso, o termo mimo parece não

ser adequado às características bestiais do boi, constituindo uma forte ironia

contra a realeza, que se mostra, por assim dizer, delicada, “primorosa”. Tem-se,

mais uma vez, um apagamento, uma neutralização dos atributos masculinos de

um ator, intensificando a proposição de que somente o dono do animal representa

os valores sertanejos.

Seguindo o encadeamento lógico das narrativas BE1 e BE4, percebe-se

que as transformações que as “partes” do boi sofrem, ocorrem posteriormente à

entrega deste ao imperador, o que alicerça a pressuposição de que provém do rei

a ordem para matar o animal. Corroborando o fato, em BE4, surge o imperador

como único sujeito a ser beneficiado com as obras advindas dos chifres do boi:

uma canoa que o transporta da Bahia para Lisboa.

Agrupando todas as obras e objetos originados das entranhas do

misterioso animal de acordo com os traços semânticos que os aproximam e os

distanciam, consideram-se dois campos: um, que abarca os elementos próprios

do povo, outro, que comporta objetos que servem à nobreza.

“Povo”

açude igreja atabaque surrão

“nobreza/elite"

canoa vapor lancha

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Os lexemas do campo semântico “elite” unem-se numa relação hiponímica

que remete ao hiperônimo <transportes marítimos>. Essa constatação parece

convergir para a indolência que, inevitavelmente, acomete os nobres. Sem vigor,

eles necessitam de meios para se locomoverem. A variedade deve-se,

certamente, à confluência social e temporal que permite ao romance adaptar-se

ao contexto que lhe dá suporte. Canoa, vapor e lancha são instrumentos que se

situam em grupos sociais distintos e pertencem a tempos também distintos. A

discordância mais evidente acontece entre o vapor, utilizado por pessoas de

posse, cujo auge se dá no século XIX e a lancha, invenção do século XX, que

agrega um grande valor monetário. A utilização de uma <canoa>, apesar de não

adequar-se à condição ilustre de monarca, pode estar relacionada com o fato de

que, no universo sócio-cultural do enunciador, talvez seja este o meio de

transporte usado por pessoas nobres, ou provavelmente, que seja a canoa o

único meio disponível para grandes locomoções.

A própria figura do rei, nas versões em que aparece, recebe conotações

conceptuais também diversas. Em Va, remete diretamente à autoridade real,

recuperando, através da referência a Lisboa, a época imperial brasileira. Aliado a

isso, a provável gênese do romance, coincidindo com tal período, autoriza dizer

que se trata de uma alusão ao ilustre imperador D Pedro II, o qual, devido à

posição que detinha, mantinha relações diretas com Portugal. Isto explica, dessa

forma, o porquê dos meios de transportes serem todos concernentes à

navegação: era a única forma de realizar o trajeto entre a metrópole e a colônia.

Já em Vd, a referência à realeza se materializa através da lexia <doutor

imperiador> que expulsa a narrativa para um outro tempo que não é o do

império. Nesse momento histórico, não era costume denominar um sujeito que

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detinha um título aristocrático, nobre de doutor. Rei, conde, barão, duque eram

designações honoríficas que sobrepujavam o próprio nome e a qualificação de

doutor era utilizada, unicamente, para nomear os profissionais ligados à medicina

ou à advocacia. Tem-se, assim,uma interferência contextual explícita, visto que a

expressão doutor imperiador pode remeter a qualquer sujeito que, no universo

sócio-cultural do enunciador, apresenta os atributos concernentes à autoridade,

ao prestígio, a um estado social elevado. No Brasil, principalmente entre os de

menor condição econômica, é comum o uso do termo <doutor> como referência a

um indivíduo que, na visão do outro, detém certa superioridade. É assim que

políticos, fazendeiros, empresários, homens de “bens” são chamados doutor, sem

que, necessariamente, tenham uma formação acadêmica que lhes garanta o

título.

Retornando ao campo semântico constituído pelas construções advindas

do boi, que se circunscrevem na esfera popular, pode-se dizer que cada elemento

corresponde a uma necessidade do povo sertanejo. Observe-se:

“Povo”

açude igreja atabaque surrão

SECA → água

RELIGIÃO → fé

EXPRESSÃO → alegria

COLHEITA → agricultura

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Água e fé são para o sertanejo bens preciosos que estão relacionados com

sua própria sobrevivência física e espiritual. Em meio ao clima árido, seco, que

maltrata animais, plantações e, sobretudo, o ser humano, os açudes são vistos

como oásis que, ao saciarem a sede, transformam-se em esperanças de sobrevir

ao hoje e de resistir ao provável amanhã. É por serem profundamente castigadas

pela carência desse líquido vivificador, que a religião se mostra tão presente e

fecunda no cotidiano de muitas comunidades interioranas. Recorrem à religião

como forma de amenizar as angústias, de alimentar as esperanças, de se

sentirem providas por um ente em que acreditam, veementemente, que irá

atendê-las. No Sertão, evidentemente, o apego acentuado à religião não é fruto

unicamente desse fenômeno sofrível que é a seca. A crença irrestrita em

milagres, promessas, oferendas, simpatias, que solidifica uma religiosidade

própria, presentifica-se em grande parte das atividades que o sertanejo realiza

(comuns e cerimoniosas) e em muitos dos comportamentos que expressa,

constituindo, na verdade, expressões de uma identidade cultural.

Dessa forma, a construção de uma igreja e um açude por parte de um

“doutor” imperador revela propósitos que provocam uma ruptura radical no tempo,

projetando a narrativa para atualidade. O fato constrói simbolicamente o

estratagema utilizado por muitos políticos brasileiros. O dono, ao se privar de um

animal grandioso, sobrepujando seus afetos para satisfazer o doutor (que não é

mais o rei ocioso) representa, explicitamente, a manobra política de “fazer

campanha”, usando, para tal, os bens retirados do próprio povo. É usufruindo

desse produto que o representante dos pobres, ardilosamente, tenta calar as

vozes contrárias e desviar as atenções, oferecendo para a “massa” bens

desejáveis e essenciais, que vão de um simples pão a um saco de cimento. No

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romance, o hábil imperiador, buscando o prestígio, doa ao povo uma igreja e um

açude. Dadas as características de seu “eleitorado”, não poderiam ter sido

oferecidos benefícios mais adequados.

A entrega do poderoso animal para o astuto doutor não prejudica o

revestimento simbólico, de expressão de uma cultura, que incide sobre o dono.

Ele é de uma benevolência ímpar ao se desfazer de um animal valioso, o qual

ama e admira, para dá-lo a uma autoridade, a quem reserva apreço, respeito e,

pressupostamente, a quem deve favores. É um valor medieval ainda muito latente

entre os de origem simples e interiorana.

Na Idade Média, marcada essencialmente pelo feudalismo, as relações de

proteção e confiança, entre os mais pobres, eram estabelecidas por meio dos

laços de servidão. Os trabalhadores rurais em geral passavam à condição de

servos de seus senhores, de quem recebiam segurança paga com produtos

agrícolas e/ou com o trabalho nas terras que pertenciam diretamente ao senhor.

Mesmo sendo intensamente explorados, tais trabalhadores viam no senhor feudal

um homem bondoso que os acolheu e que, por isso, merecia e devia ser

venerado. Era um favor que só se pagava pela obediência.

Entre os nobres, a servidão ganha contornos sutis, recebendo a

denominação de laços de suserania e vassalagem. Um nobre cavalheiro, por

exemplo, ao receber do rei uma propriedade, tornava-se imediatamente vassalo

do soberano, o que era formalizado numa cerimônia de juramento. Cabia ao

vassalo severas obrigações e fidelidade hereditária. Caso não cumprisse o

acordo, perdia todos os benefícios.

Dessa forma, a igreja e o açude surgem como favores ao povo e como tais

pressupõem uma sólida lealdade. Por isso, o dono, apesar de querer a vida do

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animal, de estimá-lo, entrega-o ao doutor imperiador. Em nenhum momento, o

dono caminha pela esfera da maldade e da indiferença. Ele suplanta o próprio

amor em favor de um sentimento mais nobre: a fidelidade.

A criação do atabaque e do surrão está relacionada com o próprio agir do

dono, materializado na versão BE2, que responde pela morte do animal. Há um

vínculo direto entre esses objetos e a parte do animal que os origina: o atabaque,

instrumento de operacionalização manual, advém das unhas do boi e o surrão,

tipo de saco usado na colheita, é fabricado a partir do couro do animal.

A projeção do atabaque revela uma outra face da literatura oral, aquela que

mostra o sincretismo de etnias amalgamadas por uma mesma cultura: a popular.

Usado nas danças e cerimônias (religiosas e profanas) afro-brasileiras, o tambor

de repercussão direta, como também é conhecido o atabaque, imprime ao

romance valores da cultura negra. Estes, devido ao processo de miscigenação,

passam a pertencer a todos os brasileiros, embora estejam em maior

efervescência entre os mais simples.

A simbologia do instrumento vincula-se à musicalidade e à dança que, por

sua vez, remetem à alegria. Esta, conforme a narrativa, é doada, através do

atabaque, ao povo de carioque. Mais uma vez, o dono do boi se desvela um

generoso sujeito, que procura, constantemente, ajudar o outro.

“Das unhas do Boi Espácio mandei fazer corrimboque

Para dar um atabaque ao povo do carioque” (BE2)

O surrão traz à tona um aspecto cultural importante do povo sertanejo que

colhe os frutos do seu trabalho, nos roçados, por meios de sacos que, colocados

sobre os ombros, permitem acumular uma quantidade razoável de milho, feijão,

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algodão, etc., propiciando uma locomoção mais fácil entre as plantações. Assim,

no romance, o dono (porta-voz do enunciador), ao mandar construir um surrão e

entregá-lo à gente do Bastião para que se faça a embarcação do milho, procura

enfatizar dois valores em ebulição na esfera nordestina: a força e a solidariedade.

“Do couro do Boi Espácio mandei fazer um surrão

Para embarcar os milho da gente do Bastião” (BE2)

Muitas famílias retiram todo o seu sustento daquilo que plantam nos

roçados. Trabalham intensamente sem se curvarem ao calor massacrante do sol,

nem a agressividade das chuvas. A atividade de arar a terra manualmente por

meio de uma enxada, de semear e de colher são executadas por crianças,

mulheres e homens. Não há divisão genérica, nem etária das atividades. Todos

lutam, unidos, pela provisão do lar. E, na época de colheita, é comum a ajuda

mútua entre estes que se vêem unidos pelo intenso esforço que fazem para

sobreviver. É também nesse sentido que o sertanejo recebe a conotação de forte,

bravo e, sobretudo, solidário.

A materialização do ator povo complementa o simulacro sócio-cultural que

se ergue no romance. Através dele, o enunciador apresenta, sob um ponto de

vista essencialmente eufórico, o universo sobrenatural que permeia e constrói o

imaginário popular. Ao admirar o misterioso animal, o povo de Quixelô manifesta,

claramente, a sua apreciação positiva sobre o misticismo que envolve o boi. É

uma concepção de mundo, um fazer e um ser que situam um povo numa dada

sociedade, identificando-o e, ao mesmo tempo, distinguindo-o de outros, que

podem até compartilhar os valores, mas certamente, darão a estes princípios

outras feições:

“Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou

De um bezerro que nasceu, mamãe, no sertão de Quixelô” (BE1)

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“Um caso que assucedeu No sertão de Quixelô

Um bezerro que nasceu O povo se admirou” (BE4)

As forças sobrenaturais caminham junto às camadas populares desde a

Antiguidade. Tornaram-se mais sólidas e mais fantásticas na Idade Média quando

o maniqueísmo cristão passou a influenciá-las diretamente. Os eventos naturais,

biológicos, econômicos foram obrigados a ocupar dois pólos: o do bem e o do

mal. O “desconhecido” que infringisse os dogmas católicos era destinado ao

diabo, representação da malevolência e os preceitos que convergiam para a

igreja, apesar de muitas vezes não serem verdadeiros, obtinham o estatuto do

correto, do irrepreensível, estando, pois, interligados a Deus, sinônimo de

bondade e justiça.

Na narrativa, o envolvimento do boi com o desconhecido confere-lhe um

poder surpreendente que o torna capaz, dentre outras coisas, de abalar,

sismicamente, a terra. Tal faculdade o impulsiona rumo à esfera da religiosidade,

fazendo emanar do povo a crença no fim do mundo. É sabido que, no imaginário

coletivo das classes populares, reside a convicção de que o apocalipse se

processará de forma violenta, com terremotos, meteoros, enchentes, em suma,

com a natureza se voltando contra próprio homem.

“Este boi deu um urro Que a terra paralisou

O povo dali disseram, O mundo se acabou

Dentro de pedra e fogo Uma cometa estralou” (BE4)

O estremecer da terra, provocado pelo urro do vigoroso boi, acarreta

desmoronamento de pedras e surgimento de fogo, sinais que reforçam a

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concepção de fim do mundo. Nesse contexto, o boi aparece, portanto, como um

mensageiro de uma divindade, um ser que, ao mostrar-se supremo, obscuro,

enigmático sinaliza a existência de uma força mística, sobrenatural que recai

sobre o animal, mas principalmente sobre ‘sertão de Quixelô’, espaço no qual

habita.

33..44..22.. TTeemmppoorraalliizzaaççããoo

No romance O Boi Espácio, o sistema temporal bifurca-se em tempo

lingüístico, que remete à instância enunciativa, situando o enunciador em relação

aos acontecimentos e o tempo crônico, que organiza a enunciação a partir de

marcos referenciais logicamente instalados no enunciado.

Em todas as versões, o enunciador encontra-se distante do tempo da

enunciação. Os fatos que compõem o enunciado são projetados,

predominantemente, nos pretéritos perfeito e imperfeito do indicativo. A única

exceção ocorre na versão BE1 onde aparece uma única locução verbal <vou

contar> que encerra, semanticamente, noção de futuro. Anterioridade e

posteridade sinalizam, então, a debreagem temporal que caracteriza o romance.

O afastamento do enunciador assenta-se num momento de referência

passado, inscrito no enunciado, que passa a ordenar a progressão do romance

<um caso que assucedeu> e <um caso...que o povo se admirou>. Este marco

temporal faz surgir três instâncias enunciativas ao mesmo tempo autônomas e

interdependentes.

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A primeira instância corresponde ao momento mnemônico da história do

Boi Espácio, ocupando, por conseguinte, um imaginário passado. O enunciador,

ao recuperar esse caso, constrói uma outra enunciação na qual se coloca,

logicamente, no tempo presente. Em seguida, a história do boi é expulsa para

uma outra esfera onde passa a ser projetada no passado. O tempo do

enunciador, cumpre salientar, é sempre o presente e a partir dele é que se

ordenam os outros tempos. Só há passado e futuro porque existe, obviamente,

um hoje. Este hoje, enquanto foco enunciativo, jamais poderá ser efetivamente

recuperado pois contrariaria o conceito de enunciação como instância

lingüisticamente pressuposta.

Essa cadeia enunciativa traz um propósito bastante claro. Através dela o

enunciador se exime da responsabilidade pelo dito, transferindo-a para o povo de

Quixelô que, admirados com o misticismo do boi, dissemina a história. Cria-se a

impressão de que as façanhas do indômito animal realmente aconteceram visto

que provêm de um povo, de um lugar e não de um único ser: o enunciador.

A identificação entre o dono do boi e o enunciador acarreta também efeitos

de sentido relacionados com o tempo. Em BE1, por assumir a função de ator-

enunciador, o dono projeta diretamente na narrativa uma estrutura de valor

temporal futuro <vou contar> que exprime uma modalidade factual, ou seja, a

veracidade do conteúdo enunciado não pode ser determinada no momento da

História do boi

“passado”

Enunciador presente

História do boi

“passado”

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enunciação. Explica-se, sintaticamente, o constante apelo do filho para que a mãe

o escute. A reiteração vocativa do vocábulo <mãe> traz o respaldo que o discurso

do dono reclama. Observe-se:

“Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou

...

Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô

...

Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô

Três contos e oitocentos, mamãe, por ela se enjeitou

...

Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô” (BE4)

Ademais, em grande parte das línguas neolatinas, a expressão formada

pelo verbo ir mais o infinitivo de outro verbo, carrega a noção de uma posteridade

mais próxima do falante. É o que ocorre no francês, no espanhol, no português

etc.

Em língua portuguesa, tal processo concentra uma particularidade. O

futuro do presente, composto por um único vocábulo (cantarei, por exemplo),

passou a pertencer à modalidade culta da língua. No falar cotidiano,

precipuamente no falar popular, prefere-se o uso do futuro perifrástico. Assim, no

romance, a utilização da estrutura <vou contar>, além de mostrar-se coerente

com o nível de linguagem do produtor, tem a finalidade de criar a ilusão de uma

proximidade maior entre o ator-enunciador o os fatos que pretende enunciar.

Na versão BE4, caracterizada pelo foco em terceira pessoa, usa-se uma

estratégia com fins opostos. O enunciador inicia a elocução do romance por meio

de uma indeterminação do lexema caso <Um caso...>, fazendo emergir uma

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pressuposição existencial, segundo a qual, o caso do Boi Espácio figura como o

único e o mais importante de Quixelô. Este, então, passa a estar totalmente

comprometido com o conteúdo veridictório da história.

O pretérito imperfeito aparece argumentativamente construído nas versões

BE1 e BE2. Nesta, ordena o episódio que relata a fraqueza e docilidade da vaca.

Naquela, sistematiza o enunciado no qual está presente a obediência do boi para

com o dono. As qualificações não valorativas da vaca, referencializadas pelo

imperfeito, enfatizam o seu estado contínuo de fragilidade e mansidão. Não são

atributos momentâneos, mas que se agregam estaticamente a ela. Dessa forma,

o misticismo do boi é fortemente acentuado visto que o animal é gerado por um

ser que foi e continua sendo frágil.

“A vaca mãe do Boi Espácio era uma vaca maneira

Corria num baixio de terra não alevantava poeira” (BE2)

O caráter durativo que recai sobre a submissão do animal revela-se mais

complexo. Primeiramente, o imperfeito marcando, excepcionalmente, este fato

provoca uma ruptura radical com o pretérito perfeito que predomina no romance.

Considerando a enunciação como algo acabado, o pretérito perfeito oferece uma

dinamicidade em relação ao marco temporal presente do enunciador, enfatizando

o aspecto de realidade do romance visto que os fatos enunciados já figuraram em

outras enunciações. Assim, essa quebra traz o animal para o presente, deixando-

o mais próximo do enunciador-(ator).

“Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô” (BE1)

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As ações <chamava> e <vinha> expressam, simultaneamente, noção de

descontinuidade e continuidade. O chamar do dono constitui um fato que se

repete no passado, porém passível de sofrer interrupções. Assume o valor de

marco referencial pretérito em torno do qual a obediência do boi se efetiva

duradouramente. Cria-se, então, a impressão de que a fidelidade do boi não está

relacionada, unicamente, com os chamados do dono.

O tempo crônico é utilizado para descrever o nascimento e a

transformação brusca do imponente animal. Para tanto, demarca-se, no

enunciado, três pontos de referência temporal que marcam a divisão de um dia:

manhã, meio-dia, quatro horas da tarde. São medidas de tempo “reais”,

estabelecidas socialmente, que reforçam o sentido de veracidade e de

exterioridade do romance.

O reduzido intervalo cronológico entre essas medidas vem a corroborar o

envolvimento místico do boi. Este, em curto período de tempo, deixa de ser um

simples bezerro para metamorfosear-se num animal de porte descomunal. Há

uma simbologia por trás de cada medida. A manhã traz os semas do princípio, do

desenvolvimento, da bondade (por oposição à noite, que remete à maldade)

convergindo para o momento do nascimento. O meio-dia comporta os semas da

maturidade, da transição, concorrendo para o estado de total supremacia do boi.

O marco quatro horas da tarde, sinalizando o fim do dia, anuncia a morte dos

tangedores.

Além disso, esses signos temporais alicerçam uma outra face da tradição

oral: aquela que rejeita a presença do capeta. Na literatura de cordel, a existência

de animais misteriosos prende-se, geralmente, a marcas crônicas que explicitam

a ligação destes com o diabo. É o que ocorre, por exemplo, no folheto “O Boi

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Misterioso” de Leandro Gomes de Barros, em que o animal de cor preta

(simbologia do mal) tem a sua ligação com o diabo marcada pelas referências

temporais meia-noite e sexta-feira. Nas produções orais, o interdito em mencioná-

lo está diretamente ligado a valores culturais. Muitas pessoas acreditam que o

signo <diabo> carrega um valor negativo e proferindo-o pode estar, de certa

forma, invocando o próprio demônio.

As condições de enunciação também interferem decisivamente para o

apagamento do diabo nas produções orais. Os informantes do romance são,

predominantemente, mulheres que desempenham praticamente duas atividades:

doméstica e professora primária. Tais funções possibilitam a essas mulheres

utilizar seu saber, sua memória romanesca para acariciar, ensinar e divertir as

crianças, as quais, provavelmente, não se sentem à vontade em cantar ou ouvir

poesias em que “o mal” aparece como personagem. Cumpre salientar que os

romances populares ainda continuam a desempenhar função didática em muitas

escolas interioranas, onde “tias” promovem a construção do saber erudito a partir

do resgate lúdico, não folclórico, dessas narrativas.

33..44..33.. EEssppaacciiaalliizzaaççããoo

Assim como o tempo, a categoria espacial do romance o Boi Espácio

divide-se em espaço lingüístico que compreende o lugar axial do discurso, onde o

enunciador se posiciona em relação à enunciação e o espaço tópico,

caracterizado pela instauração, no enunciado, de pontos referenciais em torno

dos quais o enunciador e os interlocutores se situam e localizam.

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Sendo a narrativa em questão construída por uma sucessão de três

enunciações, o espaço lingüístico muda conforme a posição que o enunciador

ocupa em cada uma dessas instâncias. A primeira corresponde ao espaço do lá,

da memória que faz emergir a história do boi valente e da qual o ente responsável

pela enunciação encontra-se espacialmente debreado. Ao manifestar as

expressões <vou contar> e <um caso que assucedeu>, o enunciador se coloca no

aqui. Porém, ao projetar os fatos no passado, constrói um outro espaço, o do

enunciado, onde mais uma vez se situa por meio de uma debreagem.

Na versão BE4, a posição aqui do enunciador se reverbera mais

claramente pelo elemento dêitico <este> que se reitera ao longo da narrativa.

Esse lexema tem a função de criar a ilusão de retorno da esfera enunciativa,

fazendo-a situar dentro do espaço do enunciador. Os efeitos de sentido estão

relacionados aos segmentos onde tal elemento aparece:

“Este boi deu um urro Que a terra paralisou

...

Se este boi for pra vender Um conto por ele eu dou

...

E este boi vai de mimo Pra o doutor emperiador” (BE4)

memória “lá”

Enunciador aqui

enunciado “lá”

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Como se percebe, a inserção do <este> “arranca” o boi de um tempo e

espaço remotos para o tempo e espaço do enunciador. Com isso, a existência do

animal passa a ser “comprovada” pelo enunciatário, dando credibilidade ao falar

do dono. Assim, três fatos passam a gozar de uma maior veracidade no romance:

a misticismo do boi (traduzido no urro), a recusa em vendê-lo e o envio deste para

o rei.

A ancoragem espacial tópica permite situar e caracterizar os atores que se

assentam no enunciado. Ocorre por meio de pontos referenciais que encerram

implicações argumentativas, deixando transparecer determinadas intenções do

sujeito enunciador. Apresentam essas características o sertão de Quixelô, Bahia e

Lisboa que formam o espaço específico.

O sertão de Quixelô constitui o meta-espaço da narrativa. À exceção da

figura do rei/imperador, os demais atores o ocupam e nele se constroem.

Compreende a cidade, o lado “urbano” e por oposição a fazenda, o ambiente

rural. Essa demarcação espacial corresponde à construção geográfica de muitas

cidades do interior nordestino, em que o núcleo urbano aparece envolto por

propriedades rurais: sítios, fazendas, pequenos povoados, etc.

O boi e o seu dono são os únicos a caminharem pelos dois subespaços. O

intrépido animal extrai do sertão-fazenda a sua origem e o seu revestimento

sobrenatural. Ao nascer nesse espaço, o boi passa a representar os mais

simples, os que estão sob o domínio de outros, os que não gozam de liberdade. É

opondo-se a esse clima de submissão que o sobrenatural age sobre o animal,

dando-lhe “armas” para que possa livrar-se dos opressores. O discurso bíblico,

fonte de inspiração do imaginário popular, apresenta episódios semelhantes.

Deus dá a Moisés o poder para que este liberte o povo de Israel da opressão

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realizada pelo Faraó. O gigante Golias, opressor do povo de Israel, é morto por

Davi, um jovem de estatura normal. A façanha é realizada quando Deus intervém

no confronto, fazendo com que uma simples pedra arremessada por Davi fizesse

cair o Gigante.

Além disso, o elemento tópico fazenda reforça o vínculo entre o boi e o seu

dono que, nesse espaço, assume os papéis temáticos de fazendeiro e vaqueiro.

Na função de vaqueiro, tem para com o animal não uma relação de posse mas de

afetividade, de companheirismo. Daí o fiel animal atender sempre aos seus

chamados.

“Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô” (BE1)

Como fazendeiro, pretende usufruir da imponência do valente animal,

convertendo-a em prestígio e auto-afirmação. É buscando o reconhecimento

perante o povo que o fazendeiro conduz o animal rumo a outro espaço: o da

cidade. Este se apresenta como o lugar da exposição, do público, do mostrar-se

poderoso. Surgem, aí, as ofertas de compra do animal e, consequentemente a

inclusão do comprador.

“Fui passear na cidade, mamãe, uma dama me chamou

Quer vender o Surubim, mamãe três contos de réis eu dou

Três contos e oitocentos, mamãe, por ele já se enjeitou” (BE4)

O passeio marca a proximidade entre os atores dono, boi, comprador ao

mesmo tempo em que afirma a cidade como o espaço do capital, das transações

comerciais. É um fato que encontra respaldo sócio-histórico. Ainda hoje, nas

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pequenas cidades, principalmente nordestinas, o comércio se situa na esfera

urbana e em dia determinado, o conhecido “dia de feira”. Nessa ocasião, a

população rural migra até a cidade para se abastecer de alimentos e muitos

criadores aproveitam o momento para exporem seus animais, ou no intuito de

vendê-los ou, simplesmente para exibi-los. É o que acontece no romance: o dono

realiza uma exibição (passeio) onde ostenta o boi, a fim de que o povo reconheça

o domínio que ele exerce sobre o indômito animal.

Os tangedores inserem-se no espaço rural, contribuindo para a

caracterização do dono enquanto fazendeiro. Eles desempenham atividades

próprias do universo administrativo de uma fazenda: o trato para com o gado. São

os tangedores que, no romance, tentam levar o indômito animal para o bebedouro

e que visam domá-lo. É uma função remunerada, revelando dessa forma a boa

condição econômica do dono do Boi Espácio.

“Às quatro horas da tarde, mamãe, abateu três tangedor” (BE1)

“Às quatro horas da tarde Tangeram pra o bebedor

Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador” (BE4)

O povo, que admira o boi, apesar de não ter voz, constitui o sustentáculo

veridictório do espaço sertão de Quixelô. Representando uma coletividade, o povo

fornece as características geográficas que permitem considerar o lugar como um

ponto referencial provável de existir. O efeito de verdade não seria obtido se o

sertão fosse ocupado simplesmente por um homem e um boi. Ademais, a

inclusão do ator povo autoriza considerar a cidade e a fazenda como um espaço

homogêneo, único.

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158

O rei ocupa dois lugares: Bahia e Lisboa. O aparecimento do primeiro pode

estar relacionado ao fato de ser o romance de origem nordestina e a Bahia figurar

no final do século XIX, como um dos maiores criadores de gado. Lisboa remete

ao período imperial brasileiro, visto que o surgimento do romance coincide com o

governo de D.Pedro II. E, nesta época, era freqüente o imperador, de

nacionalidade portuguesa, “visitar” a metrópole, sua terra natal.

“Das pontas do boi espácio, mamãe, fizeram uma canoa

Pra transportar o rei, mamãe, da Bahia pra Lisboa” (BE4)

O espaço genérico permite considerar a existência das seguintes

oposições tópicas: proximidade / distanciamento, interior / exterior e nobreza /

humildade.

Em relação à aproximação e distância, constata-se que o dono se

aproxima do boi, dos tangedores, do comprador e distancia-se apenas do rei,

embora entregue ao monarca a posse do poderoso animal. O boi mantém um

vínculo direto com o dono, o comprador, os tangedores, sendo o único a

aproximar-se do rei, o que intensifica seu valor e sua superioridade sobre os

outros. Permanece distante, porém, da vaca e da mãe do dono. Os tangedores se

aproximam somente do boi, fato que se revela coerente com a função exercida

por eles. O comprador ocupa o mesmo espaço do boi e do dono e se ausenta do

espaço dos tangedores, do comprador e do rei. A vaca aproxima-se apenas do

dono visto que pertence a ele. A mãe situa-se unicamente no espaço do filho

(dono), corroborando o vínculo cultural que se estabelece entre os dois. O rei

aproxima-se do boi e distancia-se dos demais atores.

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159

O quadro a seguir permite visualizar o afastamento e aproximação entre os

actantes do enunciado:

Don

o

Boi

Mãe

Vaca

Tang

edor

es

Com

prad

or

Rei

Dono

Ø P P P P P D

Boi

P Ø D D P P P

Mãe

P D Ø D D D D

Vaca

P D D Ø D D D

Tangedores

P P D D Ø D D

Comprador

P P D D D Ø D

Rei

D P D D D D Ø

A ausência do rei/imperador no espaço do sertão marca a distância entre

este e os outros atores. Trazendo as insígnias da realeza, o monarca não pode

aproximar-se do povo, os plebeus. Cabe, segundo o protocolo, permanecer no

interior do palácio. Foi o que sempre ocorreu na história do Brasil. Nunca houve

um vínculo direto entre rei e aqueles que financiam seu estado de indolência.

Na figura do “doutor” imperador, o afastamento denuncia a presença dos

conhecidos assessores, ministros, capangas que agem segundo as ordens que

recebem. Representam os interesses da autoridade maior. Esses “adjuntos” são

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160

responsáveis por se infiltrarem entre o povo e colher as informações necessárias

para o doutor. O postulado de que o boi denota a exploração destes para com o

povo é confirmado por ser o animal o único ator a ocupar o espaço do rei/doutor.

A relação espacial interior e exterior inscreve-se apenas entre os atores

dono/filho e mãe. O contar da história que fixa a aproximação entre eles presume-

se ocorrer no interior de um dado ambiente. É verdadeiro que a atividade de

narrar casos entre familiares se processava e ainda se efetiva geralmente no

interior da casa, numa situação que procura congregar avós, pais e filhos.

O sertão de Quixelô e Lisboa sustentam a oposição entre espaço nobre e

espaço humilde. Lisboa, na condição de cidade monárquica, traz os semas da

riqueza, do luxo sendo, por conseguinte, um ambiente freqüentado por

aristocratas e nobres. Quixelô, no entanto, figura como uma cidade do interior,

localizada no sertão e habitada por pessoas simples, sem fidalguia.

33..44..44.. TTeemmaattiizzaaççããoo ee ffiigguurraattiivviizzaaççããoo

No romance O Boi Espácio, evidencia-se a presença de temas que,

correlacionados às figuras, alicerçam algumas reflexões que vêm sendo feitas

desde o início da análise.

O tema da dominação tangencia toda a narrativa, caracterizando as

relações de poder entre os atores dono e rei. O dono exerce a sua autoridade

sobre o boi e os tangedores. É um poder outorgado respectivamente pela posse e

pela posição social. O domínio sobre o animal aparece figurativizado na

obediência deste ao atender aos chamados, ao recusar a proposta de vendê-lo e

ao entregá-lo ao rei.

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161

“Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi, eiô” (BE1)

“Três contos e oitocentos, mamãe, por ele já se enjeitou” (BE1)

“Um conto e setecento por Por ele já se injeitou” (BE4)

“E este boi vai de mimo Pra o doutor imperador” (BE4)

Em relação aos tangedores, a dominação aparece impressa na tentativa de

levarem eles o poderoso animal para o bebedouro (cumprindo,

pressupostamente, uma ordem) e de se aventurarem a domar o animal a fim de

executarem uma façanha que só o dono do animal conseguira.

“As quatro hora da tarde Tangeram pra o bebedor

Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador” (BE4)

A soberania do rei recai sobre o dono, fazendo-o acreditar que ele (o rei) é

merecedor do boi valioso. É um poder que se efetiva pelo status, pela capacidade

de enganar e de ludibriar. Essa supremacia se faz presente no envio do animal,

produto do trabalho do dono, para o usufruto do monarca.

“E este boi vai de mimo Pra o doutor emperiador” (BE4)

O tema do desapego monetário assenta sobre o agir do dono que prefere

ficar com o animal a vendê-lo por uma quantia altíssima. A moeda utilizada

(contos de réis) comprova a ligação temporal do romance com o século XIX,

período em que um conto equivale a um escravo. É bom lembrar que os escravos

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eram patrimônios de seus senhores; eram, na verdade, o ouro negro. Contava-se

a riqueza de um Senhor pela quantidade de escravos que possuía. Por outro lado,

a referência a contos de réis denuncia a atualidade da narrativa. Entre os de

menor condição financeira e analfabetos o uso do conto parece persistir na

memória, gerando uma adaptação com nova moeda do século XX, o real. É

comum ouvir-se <O objeto X custou oito conto> quando na verdade, as condições

temporais exigem <O objeto X custou oito reais>. Dessa forma, o aparecimento

do conto pode “jogar” a narrativa para o passado como também trazê-la para o

presente.

“Quer vender o Surubim, mamãe, três contos de réis eu dou

Três contos e oitocentos, mamãe, por ele já se injeitou” (BE1)

“Um conto e setecento por Por ele já se enjeitou” (BE4)

Outro tema bastante expressivo no romance corresponde à paz,

figurativizada na mansidão e na vagareza da vaca, mãe do Boi Espácio. É um

valor que, ao ser atribuído a um feminino, faz emergir uma caracterização

sóciocultural da mulher. Esta, desprovida de força e possuindo porte físico

desproporcional ao do homem, reserva-se a trabalhos mais leves e, por

conseguinte, menos ágeis (na visão masculina), como bordar, lavar, passar,

cozinhar. Esses ofícios, historicamente naturais à mulher, são executados no

interior dos lares, contribuindo decisivamente para a “paz” conjugal.

“A vaca mãe do Boi Espácio era uma vaca maneira

Corria num baixio de terra não alevantava poeira” (BE2)

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163

A História mundial é um testemunho da paz feminina. Nas grandes

revoluções, as mulheres, por serem consideradas frágeis, sempre estão ausentes

da frente de batalha. Desempenham atividades relacionas com o cuidar e com o

prover, como ocupar-se dos feridos ou alimentar as tropas. Elas não carregam os

semas da brutalidade, da frieza, da bravura, do destemor. Quando caminham pelo

universo masculino, são rejeitadas e neutralizadas. Joana D’Arc é um célebre

exemplo. Ao posicionar-se como homem, foi considerada pela igreja católica

como herege, bruxa, tendo como punição a morte na fogueira.

Imbricado ao tema da paz aparece o tema da religiosidade, impresso na

construção, a partir dos chifres do boi, de uma igreja e na crença do apocalipse,

revelada no tremor de terra e no fogo provocados pelo urro do misterioso animal.

Esses valores são apenas vestígios de um conteúdo religioso católico mais

profundo que permeia toda a narrativa. O episódio de um ser grandioso que

provém de um ser feminino frágil e pacífico remete ao mito cristão do nascimento

de Jesus. Maria, símbolo de paz e de feminilidade, concebe um ser poderoso cuja

função, no mundo, é libertar o povo do mal, dando-lhe a salvação espiritual. No

romance, o boi imponente procura libertar-se dos opressores e sua morte, assim

como a de Cristo, leva, através da materialização de uma igreja, paz e

espiritualidade para o povo de Quixelô. O gráfico que se segue estabelece a

aproximação entre o mito cristão e o romance do Boi Espácio:

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164

Maria, mulher frágil, fisicamente, concebe

um filho de uma grandiosidade ímpar

A vaca, de porte normal, engendra um

bezerro de físico e força descomunais

O povo admira-se dos feitos de Jesus

O povo admira-se dos feitos do boi

Jesus não se deixa tentar pelo diabo

A vinda de Jesus representa a salvação

do povo

O dono recusa ofertas tentadoras de compra

do animal

O sobrenatural torna o boi capaz de libertar-se

dos opressores

O boi é dado ao imperador que mata o

animal

Jesus é enviado para Roma, onde é morto

pelo imperador Pilatos

O boi transforma-se em obras que o prentificam

no sertão

Jesus ressuscita e o cristianismo

dissemina-se

O boi transforma-se numa igreja

Após a morte de Jesus, surgem as

igrejas

“o pão e o vinho” “a fé e a água”

Mito cristão Romance O BOI ESPÁCIO

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165

Diretamente ligado à religião, aparece o tema da tentação feminina,

concretizado no texto pela proposta sedutora (muito alta) de compra do animal.

As mulheres que agem sobre o dono apresentam características que reforçam o

sentido negativo da tentação. Em BE1, o ser feminino traz os semas da beleza,

da sedução corporal, da riqueza, sendo, pois, referido como uma dama. Em BE4,

a mulher manifesta os semas da verbosidade, da astúcia, típicos de um

comprador.

“Fui passear na cidade, mamãe, uma dama me chamou

Quer vender o surubim, mamãe três contos de réis eu dou” (BE1)

“_Se este boi for pra vender Um conto por ele eu dou

O dono que vinha atrás palavra não lhe tomou” (BE4)

O estereótipo da mulher enquanto agente do mal, que tenta o homem pela

beleza e pela lábia faz surgir dois estigmas femininos bastante presentes no

imaginário popular: Salomé, de existência bíblica e as Sereias, fruto da oralidade

de Homero. No discurso bíblico, Salomé, enteada de Herodes, depois de dançar

para o rei, pede como prêmio a cabeça de João Batista. Sua beleza corporal,

acentuada pelos movimentos dançantes, seduz o padrasto que atende, sem

refutar, o seu pedido. A odisséia de Homero, apesar de difundida pela e na

academia, é uma obra que se construiu na oralidade e entre o povo. Abarca o

famoso episódio do canto das sereias. Ulisses pede que seus homens o amarrem

no mastro do navio para que, dessa forma, ele seja capaz de resistir aos

chamados encantadores das terríveis sereias, que se alimentavam de carne

masculina.

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166

O tema da seca também ganha feições religiosas, uma vez que esse

fenômeno climático configura-se no imaginário popular nordestino como um

castigo enviado por Deus. Em BE3, a carreira que o Boi Espácio realiza dá origem

a quatro açudes que durante sete anos permanecem cheios. O sete é um número

muito recorrente na literatura popular e traz geralmente uma conotação bíblica.

Segundo o cristianismo, José escapa da morte ao decifrar os sonhos do faraó.

Este vivia angustiado pela visão de sete vacas magras que devoravam sete vacas

gordas, cuja interpretação revelava, na verdade, sete anos de fartura no Egito

seguidos por sete anos de seca ininterrupta. No romance os sete anos contínuos

de seca, não afetam os quatro açudes criados pelo boi, que, assim como José,

tornou possível a sobrevivência do povo durante um longo período de estiagem.

33..44..55.. LLeeiittuurraass TTeemmááttiiccaass

Os traços reiterados no decorrer da narrativa permitiram considerar as

seguintes leituras temáticas:

Primeira leitura

A força física é um atributo do homem.

Segunda leitura

O cidadão deve respeitar as autoridades.

Terceira leitura

O discurso feminino não detém credibilidade.

Quarta leitura

A beleza e a sedução são armas femininas usadas para tentar o homem.

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167

Quinta leitura

A mulher-mãe deseja sempre a paz do seu lar.

Sexta leitura

Cabe à mãe escutar os filhos.

Sétima leitura

Os políticos usam o produto que extraem do povo para se (re)elegerem.

Oitava leitura

Um favor paga-se com um voto.

Nona leitura

Deus ajuda os oprimidos.

Décima leitura

Respeito e virilidade superam o dinheiro.

Décima primeira leitura

Os monarcas têm como “atividade” o ócio.

Décima segunda leitura

O bem sempre persiste.

33..55.. EEssttrruuttuurraass FFuunnddaammeennttaaiiss

Os valores axiológicos que permeiam o romance O Boi Espácio se

estabelecem por meio de relações conflitivas que podem ser dialeticamente

hierarquizadas no octógono semiótico. Este modelo lógico-conceptual permite

uma apreensão mais profunda das ideologias que subjazem à narrativa.

Ocorre uma tensão dialética entre fidelidade e traição que define as

relações de poder entre os atores dono, boi e rei. O somatório desses dois termos

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dá origem ao metatermo posse. A fidelidade implica não-traição, fazendo emergir

uma relação que se assenta na afetividade. É o que ocorre, inicialmente, entre o

dono e o ilustre animal. A posse que os une revela o apego que o nordestino

interiorano tem para como os animais que, cotidianamente, estão ao seu lado (o

boi, o cavalo, o jumento etc). Esses animais fazem parte da alimentação, da

locomoção, do labor, representando, pois, sua própria sobrevivência.

A traição sem fidelidade, instiga a busca pelo prestígio que está

diretamente condicionado à posse do boi valente. O dono, assumindo a

caracterização de fazendeiro, sente a necessidade de mostrar-se aos outros, de

se expor como o possuidor legítimo do temido animal. Tal fato recupera a

informação de que os fazendeiros, principalmente nos dias atuais, expõem os

seus animais como prêmios, como troféus que lhe conferem reconhecimento e

prestígio.

Assim, a posse que caminha para a não-fidelidade caracteriza a relação de

exploração que se assenta sobre o agir do rei/doutor imperador. A presença

desse valor revela um Nordeste ainda oligárquico, onde o status é o grande

ordenador social. O dono priva-se de um bem valioso (o boi) para satisfazer o

rei/doutor. Estes se valem do animal (bem provindo do povo) para usufruto

próprio.

Sendo assim, a tensão fidelidade-traição acarreta a existência de três

percursos que reverberam à dinâmica narrativa:

boi↔dono

posse → fidelidade → afetividade

(eufórica) (eufórica) (eufórica)

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boi↔dono

posse → traição → não-fidelidade

(eufórica) (disfórica) (disfórica)

rei/doutor

posse ← traição → prestigio

(eufórica) (eufórica) (eufórico)

O octógono seguinte abarca com mais propriedade as percursos acima

delineados:

Outro conflito que se instaura na narrativa se processa entre dominante e

dominado, cuja junção caracteriza o agir do dono. Este mantém uma relação de

poder para com o boi e os vaqueiros, mas se deixa governar pelo respeito que

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nutre pela autoridade legítima. Esse conflito traz à tona as relações sociais que

dominaram o nordeste nas primeiras décadas do século XX e que continuam a

vigorar, veladamente, nos dias atuais. O coronel, expoente maior da oligarquia

rural, impõe repressão ao povo e, no entanto, comporta-se como um “animal fiel”

diante de pessoas com mais prestígio do que ele, como o presidente, o

governador etc.

O dominante que faz uso da autoridade para sobrepor-se aos mais fracos

caracteriza o rei e o doutor. Eles não necessitam de poder físico para se imporem

ou sobreviverem. Retiram do povo os bens necessários à sua vida de luxo e

ociosidade. No romance, a figura do rei e a do doutor não representam tipos

masculinos apreciáveis, embora gozem de prestígio. O respeito a eles dirigido é

um valor cultural intrínseco às pessoas simples que admiram as autoridades,

reservando-lhes, muitas vezes, obediência incondicional. Um bom exemplo é o

político corrupto. Ele ludibria e explora o povo mas, em período de eleição, é

venerado.

O dominado sem autoridade define os vaqueiros que estão sob o jugo de

um patrão, de um fazendeiro. Eles tentam se sobressair através da força.

Todavia, não conseguem uma vez que sucumbem ao poder da autoridade (o boi).

O fato remete às relações trabalhistas de sociedades que se respaldam por

princípios escravocratas e exploratórios. A massa tenta uma mobilidade social

através do trabalho, do esforço físico, do suor mas é barrada pelas ações

daqueles que não querem perder a mão de obra barata.

Focalizando as relações tímicas que se estabelecem entre a tensão

dominante-dominado, foi possível depreender quatro caminhos pelos quais o

discurso caminha:

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rei/doutor↔dono: autoridade → dominante → não-dominado

(eufórico) (eufórico) (eufórico)

vaqueiro/boi↔dono: obediência → dominado → não-dominante

(disfórica) (disfórico) (disfórico)

dono↔rei/doutor: obediência → dominado → não-dominante

(disfórica) (disfórico) (disfórico)

dono↔vaqueiro/boi: autoridade → dominante → não-dominado

(eufórica) (eufórico) (eufórico)

O octógono seguinte oferece uma sistematização mais nítida da tensão

que se opera entre dominante-dominado:

Tensão dialética da narrativa

dono

autoridade rei/doutor

obediência vaqueiro/boi

Ø

não-dominado não-dominante

dominante dominado

dono

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Os atores femininos encontram-se em tensão dialética entre as funções de

mãe (mulher com obrigações para com a família) e comprador (mulher sem

atributos matriarcais), que se opõem evidenciando o conflito social da mulher.

Mãe e comprador são papéis convencionalmente estipulados pela sociedade e

que ganham feições distintas a depender da cultura onde se situam. No romance,

a mãe do dono se mostra responsável pela paz familiar, estando disponível, no

lar, para ouvir o filho. É um estereótipo bastante recorrente no imaginário popular

que atribui à figura materna, além do cuidado para com os filhos, as tarefas de

zelar pelo chefe da casa e os ofícios divinos de uma boa esposa, como costurar,

cozinhar, lavar e passar.

A mãe do boi, pelas características que traz, constrói uma imagem

feminina que complementa àquela que recai sobre a mãe do dono. Revela, não a

paz que se efetiva no seio familiar, mas aquela que é inerente à mulher, ou seja, a

fragilidade, a docilidade, a polidez. É um estado de debilidade que justifica,

socialmente, a necessidade de se ter um homem, símbolo de força e valentia,

dirigindo os seus passos. Cumpre lembrar que as mulheres, em algumas regiões

interioranas, ainda são criadas para o casamento. Elas mesmas enfatizam sua

inferioridade e se sentem realizadas quando conseguem um homem que lhes dê

suporte.

À mulher autônoma, que caminha por um lugar tradicionalmente ocupado

pelo homem, reserva-se normalmente acepções negativas visto que infringe

preceitos culturais que pregam a proeminência masculina. O “tino” pelos negócios

é um atributo que, desde os primórdios da história, agrega-se ao homem. Quando

envereda por esse caminho, a mulher não possui credibilidade de fala, ou seja,

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173

seu discurso ressoa desprovido de confiança e verdade. É o que acontece no

romance. O dono não se deixa convencer pelas propostas da compradora.

Os conceitos de paz e tentação imbricados consubstanciam-se nos

dogmas religiosos. Deve-se à igreja católica, extremamente influente entre as

classes populares, a solidificação desses atributos femininos. Conforme apregoa,

desde a Idade Média, Deus abençoa o lar em que a mulher se doa aos filhos e ao

marido. Ela está encarregada pela agregação da família. Já a mulher

independente, sem um homem para orientá-la, simboliza a própria Eva. Nela, o

diabo age diretamente fazendo-a desviar da sua condição de futura “zeladora do

lar”. Encontra-se fora da igreja, afastada do lar e presente no mundo.

O comprador-mulher, em O Boi Epácio, aproxima-se, então, do coisa-ruim,

ao persuadir o dono a vender a alma do sertanejo, o boi. A recusa representa a

superioridade do homem que, ao contrário da mulher, resiste às investidas do

agente disseminador do mal.

O investimento tímico que caracteriza essa tensão permite distinguir dois

percursos:

mãe/vaca

dependência → não-autonomia → paz

(eufórica) (eufórica) (eufórica)

mulher-comprador

autonomia → não-dependência → tentação

(disfórica) (disfórica) (disfórica)

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O conflito feminino da narrativa aparece hierarquizado no octógono abaixo:

A fartura e a seca, elementos tradutores do sertão, aparecem no romance

em tensão dialética. Revestida por preceitos católicos, a religiosidade sertaneja

caracteriza-se intrinsecamente pela crença providencial, segundo a qual Deus

conserva e governa o mundo, dirigindo todos os seres ao fim que se propôs.

Assim, a seca que castiga o corpo é considerada, por mais estranho que possa

parecer, positiva. É um sofrimento que Deus enviou para comprovar as virtudes e

o merecimento do homem. Em muitos povoados nordestinos, o longo período de

estiagem é tido como um castigo pelo mal que se abateu sobre a humanidade:

filho batendo nos pais, mulheres casando de branco sem serem virgens e traindo

os maridos etc.

conflito social da mulher

paz tentação

Ø

não-autonomia não-dependência

dependência autonomia

Tensão dialética da narrativa

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Diante desse infortúnio climático que faz padecer o corpo, a única solução

é recorrer a Deus. Só ele, através da fecundidade religiosa do nordestino, pode

acalentar a alma. Justificam-se, dessa forma, as constantes novenas, missas e

procissões realizadas pelos sertanejos que têm nessas manifestações a certeza

de que Deus providenciará o alento de que tanto necessitam. O Senhor dos

homens castiga o corpo para salvar as almas.

Ergue-se, portanto, um Deus ao mesmo tempo bondoso e vingativo,

próprio do imaginário popular. A seca não é eterna. Um dia, certamente, acaba. O

retorno das chuvas marca a absolvição do povo que volta mais uma vez a ser

enxergado, com bons olhos, pelo criador.

No romance, a transformação do boi em uma igreja e um açude representa

a intervenção de Deus em prol do povo. O templo religioso constitui o

apaziguamento da alma e o açude, ao saciar a sede, simboliza o término do

padecimento do corpo. O fato dessas obras surgirem do corpo do boi acentua seu

vínculo com o divino, com Jesus. A morte do filho de Deus representa para a

humanidade a regeneração do corpo e, consequentemente, a salvação da alma.

A narrativa, nesse sentido, apresenta quatro direções, cujo revestimento

tímico deixa vir à tona o conceber do enunciador sobre cada termo que gera o

conflito:

sertão → seca → sofrimento

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

sertão → fartura → felicidade

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

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sofrimento → não-fartura → não-seca → felicidade

(disfórico) (disfórica) (eufórica) (eufórica)

A tensão entre fartura e seca pode ser melhor visualizada através do

seguinte octógono semiótico:

O boi, herói da narrativa, ocupa o centro de uma tensão dialética que se

efetiva entre luta e submissão, cujo produto culmina no metatermo revolução. O

boi, enquanto representação do povo, não se submete àqueles que tentam

oprimi-lo. Ele se insurge, bravamente, contra os vaqueiros que, pela glória,

desejam domá-lo. Nesse âmbito, o romance reporta-se, explicitamente, às

oligarquias rurais do nordeste brasileiro. Os coronéis, expressão maior do poder

nessa região, consolida o seu poder através de jagunços, assassinos cruéis, que

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levam o temor entre o povo. Esses profissionais “sujam as mãos” por seu patrão.

E quando cumprem satisfatoriamente as ordens passam a ter fama.

A liberdade, fruto da junção entre a luta e a não-submissão, simboliza a

bravura do sertanejo masculino que não se curva aos poderosos. Os cangaceiros

representam bem esse estigma de homem forte e valente que tem a liberdade

como um bem maior e pela qual, corajosamente, luta. Eles se opõem a uma

ordem social que procura estabelecer um sistema opressor sob os alicerces da

submissão e do conformismo. São considerados pelos coronéis como bandidos,

foras-da-lei, transgressores visto que impediam os propósitos da oligarquia. O

povo, no entanto, os tratava como heróis, seja porque os considerava justiceiros e

vingadores, seja pelo fato de que eles roubavam dos ricos. O fato é que eles

promovem uma ordem social própria, fundamentada nos valores de luta e não-

submissão, da qual obtêm a liberdade almejada.

Assim é o boi na narrativa. O imponente animal, buscando a liberdade,

desencadeia uma revolução ao confrontar-se com os opressores. O percurso

corresponde a uma ordem que tem a não-submisssão e a luta como fatores

indispensáveis para se chegar à liberdade.

O conflito, em sua totalidade, apresenta três caminhos nos quais os termos

axiológicos recebem revestimento tímico condizente com universo contextual da

narrativa:

revolução → luta → liberdade → não-submissão

(eufórica) (eufórica) (eufórica) (eufórica)

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revolução → submissão → opressão → não-luta

(eufórica) (disfórica) (disfórica) (disfórica)

revolução → submissão → luta → liberdade

(eufórica) (disfórica) (eufórica) (eufórica)

O octógono abaixo sintetiza melhor as reflexões acima:

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179

CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS FFIINNAAIISS

As narrativas do ciclo do boi ocupam um patamar privilegiado na literatura

popular. São histórias – verdadeiras fábulas alegóricas – nas quais se

presentificam o imaginário, o saber, a visão de mundo daqueles que se

encontram amalgamados à natureza que os rodeia. Organicamente ligadas ao

Nordeste brasileiro, elas traduzem o vínculo, a interação, o confronto do sertanejo

com um animal símbolo da região, do qual ele extrai a sua subsistência e

conquista a sua glória. Em termos discursivos, embora detenham uma

textualização curta (fator que contribui para sua memorização), apresentam um

esquema narrativo rico e complexo que inclui elementos da tradição rural e da

tradição cultural popular, religiosa e fantástica.

No romance analisado, o boi aparece sob os aspectos da realidade e da

imaginação popular, exercendo, imponentemente, o papel de protagonista. É um

herói autêntico cuja caracterização reverbera, inconscientemente ou não, uma

formação ideológica da qual emergem elementos culturais de auto-afirmação e de

auto-reconhecimento, ou seja, o fazer-ser do animal representa,

substancialmente, o ser, o ethos de um povo, de uma região. Seus dons físicos,

suas façanhas extraordinárias, além de lhe garantir superioridade, contribuem,

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consideravelmente, para a construção de uma imagem que, ao concentrar valores

de merecimento e grandiosidade, passa a servir de referência sócio-histórica para

a sociedade que a concebe.

Penetrando nas subjacências do romance O Boi Espácio, recuperam-se

marcas ideológicas que fazem emergir uma organização social pautada ainda em

dogmas patriarcais. É uma narrativa que se constrói sobre e a partir do olhar

masculino. O boi e o seu dono fundem-se num paradigma de masculinidade

extremamente desejável e apreciável pelo imaginário popular. Eles sintetizam o

sertanejo viril, valente, imponente que não se curva diante dos opressores, nem

das tentações monetárias. São princípios ordenadores de uma norma cultural que

tem o homem como representação da boa índole, do bem. Sendo assim, sua

imagem, prestígio e honra devem ser preservados.

A mulher, na narrativa, não goza de prerrogativas. Todavia, não se pode

afirmar que há um olhar discriminatório sobre ela. Impor um juízo de valor externo

é, no mínimo, um anacronismo. Sua caracterização, de Maria à Eva, assenta

sobre dogmas culturais que vêm se perpetuando desde a Idade Média e que são

concebidos, ainda hoje, como adequados, corretos e, sobretudo, necessários

entre as camadas populares interioranas.

Subordinada a um homem, a mulher mãe/esposa recebe uma conotação

valorativa visto que se encontra inserida num lar onde passa a ser a responsável

pela harmonia familiar, isto é, mostra-se totalmente disposta a escutar o filho. É

um estereótipo feminino bastante recorrente nas gestas de valentia. Nestas, a

figura da mulher-mãe geralmente aparece como intercessora do filho. É o que

ocorre também nos romances Zé do Vale em que a mãe, para livrar o filho

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cangaceiro do cárcere, tenta subornar o presidente e Tertuliano, no qual a mãe

protege o filho, transgressor da lei, que está sendo perseguido pela polícia.

À mulher independente, desprovida de um direcionamento masculino,

atribui-se um revestimento negativo. Ausentes de um lar, representa tentações

nefastas, capazes de desviar o homem do bom caminho, envolvendo-o nas

tramas do mal. Utilizando a linguagem popular é um diabo de saia.

Não só na caracterização feminina que o romance estabelece diálogos

entre o período medieval e a sociedade nordestina. A religiosidade, de natureza

estritamente católica, se faz presente através do providencialismo divino, ou seja,

a crença de que tudo o que acomete o homem provém de Deus e que só a este

cabe o julgamento. É assim que, na narrativa, a criação de uma igreja e um açude

representa a intervenção do Senhor dos homens sobre o Nordeste, que,

compadecendo-se do sofrimento advindo da seca, julga necessário aliviar o

espírito e o corpo de um povo tão trabalhador.

Amalgamados à religião, surgem os valores políticos. A concepção de

uma sociedade permeada por ações politiqueiras solidifica-se através do agir dos

sujeitos rei/doutor, personagens com exímios correspondentes no Brasil. Estes

usam os bens do povo, representados pelo boi, para se auto promoverem. É um

registro cultural importante que permite comprovar a atualidade das compilações

orais.

Pretende-se com esta pesquisa instigar o interesse pelo estudo

realmente científico do texto popular. Não aquele que se detém em abstrair seus

valores estilísticos e terminológicos, mas aquele que o concebe como um

instrumento de representação social, através do qual o povo, os “iletrados”, a

massa se expressa. Dessa forma, espera-se que este trabalho possa contribuir,

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de alguma forma, para a compreensão e resgate da cultura popular e brasileira

como um todo, em suas origens e alicerces sócio-ideológicos. Espera-se,

outrossim, que esta pesquisa possa despertar o interesse para outras análises

mais profundas, numa correlação multidisciplinar com a Psicologia, a Sociologia,

a Antropologia, ou mesmo, com outras linhas da Lingüística Atual.

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ROMANCE DO BOI ESPÁCIO BE1-Va

Cantado por Dalvanira Gadelha, 54 anos, professora de musica, Campina Grande.

1. Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou

De um bezerro que nasceu, mamãe, no sertão de Quixelô!

Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô

2. Ele nasceu de manhã, mamãe, meio-dia se assinou

Às quatro horas da tarde, mamãe, abateu três tangedor

Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô

3. Fui passear na cidade, mamãe, uma dama me chamou

Quer vender o Surubim, mamãe três contos de réis eu dou

Três contos e oitocentos, mamãe, par ela já se enjeitou.

4. Das pontas do boi espácio, mamãe, fizeram uma canoa

Pra transportar o rei, mamãe, da Bahia pra Lisboa

Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô

João Pessoa, 04 de Abril de 1984

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O BOI ESPÁCIO BE2-Vb

Cantado par Umbelina Clementina Neves Antonino, 83 anos, Vila do Abel (Monteiro)

_A vaca mãe do Boi Espácio era uma vaca maneira

Corria num baixio de terra não alevantava poeira

Da ponta do Boi Espácio mandei fazer uma canoa

Para embarcar a gente de Goiana para Lisboa

Das unhas do Boi Espácio mandei fazer corrimboque

Para dar um atabaque ao povo de carioque,

Do couro do Boi Espácio mandei fazer um surrão

Para embarcar os milho da gente do Bastião

Campina Grande, Abrigo de São Vicente, 30 de janeiro de 1988

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O BOI MISTERIOSO BE3-Vc

Recitado por Severino Paulino de Farias, 77 anos, agricultor, Sítio Paquivira (Macaparana-PE)

A carreira que meu boi deu quatro açude se formou Que com sete anos de seca, mamãe, água nele não faltou (bis)

Sítio Pau d’Arco (Salgado de São Félix), 28 de janeiro de 1987.

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O BOI DO QUIXELÔ BE4-Vd

Cantado por Maria do Carmo do Espírito Santo (Dona Carmem), 61 anos, lavadeira e roceira, Sítio Balaço (Macaparana).

Um caso que assucedeu No sertão do Quixelô

Um bezerro que nasceu O povo se admirou

Nasceu de manhãzinha A meio-dia se assinou

As quatro hora da tarde Tangeram pra o bebedor

Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador,

Este boi deu urro Que a terra paralisou

O povo dali disseram, O mundo se acabou

Dentro de Pedra e Fogo Uma cometa estralou:

_Se este boi for pra vender Um conto por ele eu dou,

O dono que vinha atrás Palavra não lhe tomou

Que um conto e setecento Por ele já se injeitou

E este boi vai de mimo Pra o doutor emperiador.

Das pontas deste boi Quatro obra se formou

Um açude e uma igreja Uma lancha e um vapor

Sítio Pau d’Arco (Salgado de São Félix), 22 de janeiro de 1987

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