186

Eric Hobsbawm - Bandidos (Português)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

kkk

Citation preview

  • E. J. Hobsbawm

    FORENSE-UNIVERSITRIA

    Rio de Janeiro

  • Traduzido de BANDITS

    Copyright (C) 1969 by E. J. Hobsbawm

    Traduo de: Donaldson Magalhes Garschagen Primeira Edio brasileira maio de

    1975 Segunda Edio brasileira Janeiro de 1976

    Reservados os direitos de publicao desta traduo pela

    EDITORA FORENSE-UNIVERSITRIA

    Av. Erasmo Braga, 227 Gr. 309 Rio de Janeiro, RJ

    Impresso no Brasil

  • ndice

    Prefcio ......................................................................................................... 7

    1 O que o Banditismo Social? ................................................................ 10

    2 Quem so os Bandidos? ........................................................................ 24

    3 O Ladro Nobre ..................................................................................... 36

    4 Os Vingadores ....................................................................................... 54

    5 Os Haiduks ............................................................................................. 67

    6 Os Aspectos Econmicos e Polticos do Banditismo............................... 81

    7 Os Bandidos e a Revoluo .................................................................... 96

    8 Os Expropriadores ................................................................................. 109

    9 O Bandido como Smbolo ...................................................................... 128

    Notas ............................................................................................................ 136

    Bibliografia Contempornea ........................................................................ 139

    OBS: Foi mantida a numerao de pgina original do livro impresso. A numerao est indicando sempre o final de cada pgina.

  • Prefcio

    Com exceo do Captulo 8, que se baseia em pesquisa original, a maior parte

    deste livro fundamenta-se em obras de outros autores, ainda que, em certos casos,

    sejam de difcil obteno. No que concerne aos numerosos pases cujo idioma

    desconheo, ou cujas publicaes no consegui localizar, desejo expressar minha

    gratido a amigos e colegas que, sabedores de meu interesse pelo assunto, me

    auxiliaram com entusiasmo. Este auxlio contribuiu para muitas das referncias que

    fao ao banditismo na Bulgria, Grcia, Hungria, Rssia, Turquia e Tunsia, e tambm

    para muito do que est dito a respeito de vrios pases da Amrica Latina, da ndia,

    da Itlia e da Espanha. Agradeo ainda aos especialistas em Robin Hood, e ainda a

    numerosos seminrios realizados na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos, nos quais as

    teses deste livro foram objeto de debate, e que me remeteram a fontes adicionais.

    Cabe ainda uma palavra de agradecimento Biblioteca Widener, da Universidade de

    Harvard, um dos melhores locais de pesquisa que conheo. Minhas dvidas

    particulares esto registradas em notas de rodap, que reduzi ao mnimo, na

    bibliografia e no final deste prefcio. Desejo manifestar um agradecimento especial a

    Enzo Crea, de Roma, a Antoine Tellez, de Paris, e ao Sargento Jos Avalos, de Pampa

    Grande, Argentina, agricultor e ex-policial, cujas lembranas dos bandidos de

    Corrientes e do Chaco, por ele respeitados e perseguidos, confirmam em quase todos

    os pontos a anlise do Captulo 3. Lamento s t-lo conhecido pessoalmente depois

    de haver completado o texto deste livro.

    Agora, duas breves notas metodolgicas. Em primeiro lugar, ficar claro que

    minha tese a de que o banditismo

    [pg. 7]

  • social constitui fenmeno de notvel uniformidade, em todas as pocas e

    Continentes. Pode essa tese ser testada? Sim, na medida em que prev, num sentido

    lato, como agiro os bandidos e que histrias sero contadas sobre eles em reas at

    agora no pesquisadas. Este livro desenvolve o "modelo" esboado em meu livro

    Primitive Rebels, que se baseou apenas em materiais europeus, principalmente

    espanhis e italianos; contudo, espero que no haja conflito entre os dois trabalhos.

    No obstante, quanto mais ampla a generalizao, tanto maior a probabilidade de

    serem esquecidas peculiaridades individuais.

    Em segundo lugar, baseei-me bastante numa fonte histrica um tanto

    caprichosa poemas e baladas. No que concerne aos aspectos factuais do

    banditismo, tais registros da memria pblica e do mito so, naturalmente, pouco

    dignos de crdito, ainda que se baseiem, remotamente, em acontecimentos

    verdicos; todavia, oferecem muitas informaes incidentais quanto ao meio-

    ambiente do banditismo, pelo menos na medida em que no h razo para que tais

    informaes estejam deturpadas. No entanto, h outra dificuldade mais sria. At

    onde o "mito" do banditismo esclarece quanto ao comportamento real do bandido?

    Em outras palavras, at que ponto os bandidos correspondem ao papel social que

    lhes foi atribudo no drama da vida camponesa? Evidentemente, existe alguma

    relao. Espero que, ao formul-la, eu no tenha ultrapassado os limites do bom

    senso.

    As informaes acima dirigem-se fundamentalmente aos socilogos e

    historiadores sociais, que comeam a demonstrar vivo interesse pelo banditismo.

    Entretanto, espero que este livro no interesse somente a eles, mas que possa ser

    lido e analisado, com prazer e proveito, por todos que partilham a opinio exposta

    por Charles MacFarlane, um dos primeiros a escrever sobre o assunto, em palavras

    que podem servir de epgrafe a este ensaio:

  • "Existem poucos assuntos que nos interessem mais, genericamente, do que as aventuras

    de salteadores e bandidos".

    [pg. 8]

    No que toca obteno e identificao das ilustraes, sou grato ao Prof. B.

    Cvetkova, de Sofia, a C. A. Curwen, da Escola de Estudos Orientais e Africanos, Sra.

    Feiling Black-burn, a Richard Rogers e Sra. Georgina Brckner.

    Londres, junho de 1969.

    E. J. HOBSBAWN

    [pg. 9]

  • 1

    O que o Banditismo Social?

    Somos tristes, verdade, mas porque somos sempre perseguidos. Os nobres usam a pena; ns, a carabina. Eles mandam na plancie; ns, nas montanhas.

    Um velho bandido de Roccamandolfi

    (Molise) citado em Molfese (1964), pg. 131.

    Para a lei, quem quer que pertena a um grupo de homens que atacam e

    roubam com violncia um bandido, desde aqueles que se apoderam de dinheiro

    destinado a pagamento de empregados, numa esquina de cidade, at rebeldes ou

    guerrilheiros organizados que no sejam oficialmente reconhecidos como tal. No

    entanto, os historiadores e socilogos no podem utilizar uma definio to vaga.

    Ocupar-nos-emos neste livro com apenas alguns tipos de ladres, ou seja, aqueles

    que a opinio pblica no considera criminosos comuns. Ocupar-nos-emos

    essencialmente com uma forma de rebelio individual ou minoritria nas sociedades

    camponesas. Por convenincia, omitiremos o equivalente urbano do bandido-

    rebelde rural, e pouco nos referiremos aos inmeros proscritos rurais que no so

    camponeses de origem ou por lealdade, e sim cavalheiros-salteadores empobrecidos.

    A cidade e o campo so demasiado diferentes, como comunidades humanas, para

    serem discutidas facilmente nos mesmos termos, e, seja como for, os bandidos

    rurais, como a maioria dos camponeses, no confiam nos citadinos e os odeiam. A

    nobreza marginalizada (representada sobretudo pelos "cavalheiros salteadores" da

    Alemanha, ao fim da Idade Mdia) mistura-se muito mais aos camponeses, mas o

    relacionamento, que ser discutido nos Captulos 2 e 6, obscuro e complexo.

  • [pg. 10]

    O ponto bsico a respeito dos bandidos sociais que so proscritos rurais,

    encarados como criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer

    parte da sociedade camponesa, e so considerados por sua gente como heris, como

    campees, vingadores, paladinos da Justia, talvez at mesmo como lderes da

    libertao e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e apoiados. essa

    ligao entre o campons comum e o rebelde, o proscrito e o ladro que torna o

    banditismo social interessante e significativo. Alm disso, ela o distingue de dois

    outros tipos de crime rural: as atividades de grupos originrios do "submundo"

    profissional ou de meros pilhadores ("ladres comuns") e das comunidades para as

    quais o roubo faz parte da vida normal, como, por exemplo, os bedunos. Em ambos

    os casos, vtimas e atacantes so estranhos e inimigos. Os ladres profissionais e os

    pilhadores consideram os camponeses como sua presa, e os sabem hostis. Por sua

    parte, as vtimas consideram os atacantes como criminosos, segundo seus prprios

    termos, e no apenas de acordo com que o diz a lei oficial. Seria inimaginvel que um

    bandido social se apossasse da colheita dos camponeses (mas no a do senhor) em

    seu prprio territrio, ou mesmo em outros lugares. Por conseguinte, aqueles que

    assim procedem carecem daquela qualidade peculiar que caracteriza o banditismo

    "social", claro que, na prtica, tais distines so muitas vezes menos claras do que

    na teoria. Um homem pode ser um bandido social em suas montanhas natais, e um

    simples ladro na plancie. No obstante, a anlise exige que estabeleamos a

    diferena.

    O banditismo social dessa espcie um dos fenmenos sociais mais

    universais da Histria, e um daqueles de mais impressionante uniformidade.

    Praticamente, todos os casos pertencem a dois ou trs tipos correlatos, e suas

    variaes so relativamente superficiais. Ademais, essa uniformidade no decorre de

    difuso cultural, mas constitui reflexo de situaes semelhantes nas sociedades

  • camponesas, ocorram elas na China, no Peru, na Siclia, na Ucrnia, ou na Indonsia.

    Geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Amricas, na Europa,

    no mundo islmico, na sia meridional e

    [pg. 11]

    oriental, e at na Austrlia. Do ponto de vista social, parece ocorrer em todos os tipos

    de sociedade humana que se situam entre a fase evolucionria da organizao tribal

    e de cl, e a moderna sociedade capitalista e industrial, incluindo porm as fases da

    sociedade consangnea em desintegrao e a transio para o capitalismo agrrio.

    As sociedades tribais ou consanguneas conhecem a pilhagem, mas lhes falta

    a estratificao interna que cria o bandido como uma figura de protesto e rebelio

    social. Contudo, quando tais comunidades, especialmente aquelas familiarizadas com

    as rixas e a pilhagem, como as de caadores e pastores, desenvolvem seus prprios

    sistemas de diferenciao de classe, ou quando so absorvidas em sistemas

    econmicos maiores, construdos sobre o conflito de classes, podem gerar um

    nmero desproporcionadamente grande de bandidos sociais, como na Sardenha ou

    no Kuncsg hngaro (a regio dos Cumans, um dos ltimos grupos de pastores

    nmades da sia Central a se estabelecer na Europa). Ao se estudar essas regies,

    difcil dizer precisamente em que ponto a prtica da pilhagem e as desavenas

    familiares se convertem em banditismo social, quer na forma de resistncia aos ricos,

    a conquistadores ou opressores estrangeiros, quer como resistncia a outras foras

    que estejam destruindo a ordem tradicional das coisas tudo que pode estar ligado

    nas mentes dos bandidos e, com efeito, na realidade. No entanto, com alguma sorte

    talvez possamos fixar cronologicamente a transio dentro de uma ou duas geraes.

    Nas montanhas da Sardenha, por exemplo, pode-se fixar essa transio no meio

    sculo que medeou entre as dcadas de 1880 e 1930.

    Na outra extremidade do desenvolvimento histrico, os modernos sistemas

  • agrrios, tanto capitalistas como ps-capitalistas, j no so os da sociedade

    camponesa tradicional e deixam de produzir bandidos sociais. No pas que deu ao

    mundo Robin Hood, paradigma internacional do banditismo social, no h registros

    de bandidos sociais reais aps, digamos, o comeo do sculo XVII, embora a opinio

    pblica continuasse a encontrar um substituto mais ou menos inadequado na

    idealizao de outros tipos de criminosos, como o salteador de estradas. Num

    sentido mais lato, a "modernizaco"

    [pg. 12]

    (vale dizer, a combinao de desenvolvimento econmico, comunicaes eficientes e

    administrao pblica) priva qualquer banditismo, incluso o social, das condies nas

    quais floresce. Na Rssia czarista, por exemplo, onde o banditismo era endmico ou

    epidmico em quase todo o pas, at meados do sculo XVIII, no final daquele sculo

    j desaparecera da vizinhana imediata das cidades, e por volta de meados do sculo

    XIX j recuara, de modo geral, para as regies descolonizadas e ainda no pacificadas,

    sobretudo para aquelas habitadas por grupos tnicos minoritrios. A abolio da

    servido em 1861 assinalou o fim de uma longa srie de decretos governamentais

    contra o banditismo; parece que o ltimo deles foi promulgado em 1864.

    De outra parte, o banditismo social constitui fenmeno universal, que ocorre

    sempre que as sociedades se baseiam na agricultura (inclusive as economias

    pastoris), e mobiliza principalmente camponeses e trabalhadores sem terras,

    governados, oprimidos e explorados por senhores, burgos, governos, advogados,

    ou at mesmo bancos. encontrado em uma ou outra de suas trs formas principais,

    cada uma das quais ser discutida num captulo distinto: o ladro nobre, ou Robin

    Hood, o combatente primitivo pela resistncia ou a unidade de guerrilheiros formada

    por aqueles que chamarei de haiduks e, possivelmente, tambm o vingador que

  • semeia o terror.

    No fcil determinar at que ponto tal banditismo comum. Embora as

    fontes nos proporcionem, em abundncia, exemplos de bandidos, raramente se

    encontram estimativas quanto a seu nmero total, em atividade em dada poca, ou

    comparaes quantitativas entre o nvel de banditismo em diferentes pocas.

    Evidentemente, porm, esse nvel era quase

    [pg. 13]

    sempre modesto. A regio mais conturbada da Colmbia, por ocasio do auge da

    anrquica guerra civil, depois de 1948, sustentava menos de quarenta grupos de

    camponeses armados. Considerando-se que o grupo mdio tivesse entre dez e vinte

    homens um nmero surpreendentemente uniforme no decorrer dos tempos, em

    todos os Continentes teramos um total entre 400 e 800 homens para uma rea de

    aproximadamente 23.000 km2, 166 povoaes rurais e uma populao rural de 6 a 7

    milhes de habitantes.* 1 No comeo do sculo XX, a Macednia possua um nmero

    substancialmente maior de grupos semelhantes, para uma populao de, digamos, 1

    milho de habitantes; no entanto, como eram em grande parte financiados e

    organizados por vrios governos, tambm representam muito mais do que o

    banditismo espontneo a se esperar em tal rea. Ainda assim, duvidoso que o

    nmero total de bandidos ultrapassasse um ou dois mil.2 Se considerarmos que os

    bandidos no constituem mais do que 0,1% da populao rural, estaremos com toda

    Talvez se deva fazer uma exceo possvel ou parcial para as peculiares sociedades de castas da sia Meridional hindu, onde o banditismo social inibido pela tendncia mostrada pelos ladres, como por todos os outros setores da sociedade, de formar castas ou comunidades fechadas. Contudo, como veremos, h afinidades entre alguns tipos de dacoits e os bandidos sociais.

    * O nmero real de rebeldes armados durante esse perodo foi um pouco maior, mas os dados acima no representam boa medida sequer do mximo de banditismo em situaes que no sejam de guerra civil ou desagregao social.

    1 Calculado com base em G. Guzman, O. Fals Borda, E. Umana Luna. La Violencia en Colombia. II, pgs.

    287-97 (Bogot, 1964).

    2 Le Brigandage en Macdoine: Un Raport Confidentiel au Gouvernement Bulgare. pg. 38 (Berlim, 1908);

    informao do Prof. D. Dakin, do Birkbeck College.

  • certeza, fazendo uma estimativa ultragenerosa.

    Existem, decerto, notveis variaes de regio para regio. Tais variaes se

    devem em parte geografia, em parte tecnologia e administrao, e em parte

    estrutura social e econmica. O banditismo floresce quase invariavelmente em reas

    remotas e inacessveis, tais como montanhas, plancies no cortadas por estradas,

    reas pantanosas, florestas, ou esturios, com seu labirinto de ribeires, e atrado

    por rotas comerciais ou estradas de grande importncia, nas quais a locomoo dos

    viajantes, nesses pases pr-industriais, lenta e difcil. Freqentemente, basta a

    construo de estradas modernas, que permitam viagens fceis e rpidas, para

    reduzir bastante o nvel de banditismo. Favorecem-no a ineficincia administrativa e

    a burocracia. No foi por acaso que, no sculo passado, o Imprio dos Habsburgos

    resolveu o problema do banditismo com melhor xito do que o decrpito e

    descentralizado Imprio Otomano, ou do que regies fronteirias meIhor

    [pg. 14]

    dizendo, regies de fronteiras mltiplas, como a Alemanha Central ou as partes da

    ndia divididas entre os britnicos e os inmeros principados que viviam em

    perptuas dificuldades. As condies ideais para o banditismo so aquelas em que os

    homens que exercem a autoridade so cidados naturais do lugarejo, operando em

    complexas situaes locais, e em que uma viagem de alguns poucos quilmetros

    pode colocar o bandido alm da jurisdio ou mesmo do conhecimento de um

    conjunto de autoridades e no territrio de outras, que no se importam com o que

    acontece "no exterior".*

    No obstante, fatores to bvios no explicam inteiramente as acentuadas

    disparidades regionais muitas vezes encontradas, e que levaram o cdigo criminal da

    China Imperial, por exemplo, a estabelecer distino entre "reas de banditismo"

    * D. Eeckaute, "Brigands en Russie du 17

    e au 19

    e sile (Rev. Hist. Mod. & Contemp., XII, 1965, pgs. 174-5)

  • (como as provncias de Szechuan, Honan, Anhwei, Hupeh, Shansi, partes de Kiangsu e

    Xantungue) e outras.3 Nos departamentos peruanos de Tacna e Moquegua, em tudo

    o mais perfeitamente adequados existncia de bandoleiros, no havia banditismo.

    Por qu? Porque, afirma um historiador, "no existem aqui senhores de terras,

    contratadores de mo-de-obra ou capatazes, nem domnio pleno, absoluto e

    irrevogvel sobre os suprimentos d'gua".4 Em outras palavras, porque era menor a

    insatisfao camponesa. Por outro lado, uma rea como Bantam no norte de Java,

    era um centro permanente de banditismo no sculo XIX, conquanto fosse tambm

    um centro permanente de rebelio. S um cuidadoso estudo regional pode mostrar

    porque o banditismo era endmico em certas reas e dbil em outras partes do

    mesmo pas ou da mesma regio.

    Da mesma forma, somente o estudo histrico pormenorizado pode explicar

    todas as suas variaes "diacrnicas". No entanto, podem-se fazer com toda

    segurana as seguintes generalizaes:

    O banditismo tendia a tornar-se epidmico em pocas de pauperismo ou de

    crise econmica. O ntido aumento do

    [pg. 15]

    banditismo mediterrneo em fins do sculo XVI, para o qual Fernand Braudel chamou

    ateno, refletiu o acentuado declnio das condies de vida dos camponeses nesse

    perodo. Os Aheriya de Uttar Pradesh (ndia), sempre uma tribo de caadores,

    criadores de aves e ladres, "no se transformaram em assaltantes de estradas seno

    por ocasio da grande fome de 1833".5 Numa escala temporal muito mais curta, o

    fornece boa lista de lugares na Rssia Europia, particularmente ligados ao banditismo.

    3 E. Alabaster, Notes and Commentaries on the Chinese Criminal Law, pgs. 400-2 (Londres, 1899).

    4 E.Lopez Albujar, Los Caballeros dei delito, pgs. 75-6 (Lima, 1936).

    5 W. Crooke,The Tribes and Castes of the North West Provinces and Oudhe, I, pg. 49, 4 vols. (Calcut,

    1896).

  • banditismo nas montanhas da Sardenha na dcada de 60 atingia o mximo, a cada

    ano, sempre que vencia o arrendamento das terras utilizadas pelos pastores. Essas

    observaes so de tal forma bvias que dispensam maiores explicaes. Do ponto

    de vista do historiador, mais relevante estabelecer distino entre aquelas crises

    que traduzem mudanas histricas de grande envergadura e aquelas de importncia

    secundria, embora a distino s lentamente venha a ser percebida pelos

    camponeses envolvidos, quando chegam a perceb-la.

    Todas as sociedades rurais do passado estavam habituadas escassez

    peridica ms colheitas e outras crises naturais e a catstrofes ocasionais,

    imprevisveis em si, mas que certamente viriam a ocorrer mais cedo ou mais tarde,

    como guerras, conquistas ou o rompimento do sistema administrativo do qual eram

    uma parte pequena e remota. Todas essas catstrofes tendiam a multiplicar o

    banditismo de um tipo ou de outro. Todas elas tendiam a passar, muito embora as

    perturbaes polticas e as guerras tendessem tambm a deixar atrs de si bandos de

    saqueadores e outros tipos de marginais por um considervel perodo de tempo,

    sobretudo se os governos eram fracos ou divididos. Um eficiente Estado moderno

    como a Frana aps a Revoluo foi capaz de liquidar em poucos anos a enorme

    epidemia de banditismo (no-social) que assolou a Rennia na dcada de 1790. Por

    outro lado, a desagregao social provocada pela Guerra dos Trinta Anos deixou

    como saldo, na Alemanha, toda uma rede de bandos de salteadores, alguns dos quais

    persistiram durante pelo menos mais um sculo. No obstante, no que tange

    sociedade rural, as coisas tendem a voltar ao normal (inclusive ao volume

    normalmente esperado de banditismo, social e de outros tipos) aps tais

    perturbaes tradicionais do equilbrio.

    [pg. 16]

  • A situao se mostra pouco diferente quando os fatos que desencadeiam

    uma epidemia de banditismo no so para usarmos comparaes geogrficas

    semelhantes aos terremotos no Japo ou s inundaes na Holanda, e sim reflexos de

    mudanas de vulto, como o avano de geleiras numa era glacial, ou modificaes

    irreversveis como a eroso do solo. Em tais circunstncias, as epidemias de

    banditismo representam algo mais que uma simples multiplicao de homens

    fisicamente aptos que, a passar fome, preferem tomar pelas armas aquilo de que

    necessitam. Podem refletir a desagregao de toda uma sociedade, a ascenso de

    novas classes e o surgimento de novas estruturas sociais, a resistncia de uma

    comunidade inteira ou de povos destruio de suas maneiras de viver. Ou podem

    refletir, como se v na histria da China, a exausto do "mandato divino", a

    decomposio social que no se deve a foras adventcias, mas que marca o fim

    iminente de um ciclo histrico relativamente longo, prenunciando o fim de uma

    dinastia e o surgimento de outra. Em tais pocas, o banditismo pode preludiar ou

    acompanhar movimentos sociais de vulto, como revolues camponesas.

    Alternativamente, ele prprio pode modificar-se, pela adaptao nova situao

    social e poltica, ainda que, se tal ocorrer, quase certamente, o banditismo deixar de

    ser social. No caso tpico dos dois ltimos sculos, a transio de uma economia pr-

    capitalista para uma economia capitalista, a transformao social poder destruir

    completamente o tipo de sociedade agrria que d origem aos bandidos, o tipo de

    campesinato que os sustenta, e, ao assim fazer, colocar um ponto final na histria

    daquilo que constitui o tema deste livro. Os sculos XIX e XX foram o grande

    momento do banditismo social em muitas partes do mundo, tal como foram os

    sculos XVI, XVII e XVIII, provavelmente, em muitas partes da Europa. No entanto,

    hoje em dia, ele j se encontra quase extinto, salvo em algumas poucas reas.

    Na Europa, o fenmeno s subsiste, em qualquer escala, nas montanhas da

    Sardenha, muito embora as conseqncias de duas guerras mundiais e de revolues

  • tenham feito com que ele renascesse em vrias regies. No entanto, no sul da

    [pg. 17]

    Itlia, regio clssica dos banditti, o banditismo social s atingiu o auge h um sculo,

    por ocasio da grande rebelio camponesa e das guerrilhas dos bandoleiros (1861-

    65). Na Espanha, a outra ptria clssica dos bandidos, estes eram conhecidos por

    todos os viajantes no sculo XIX. Ainda ocorre, como previsvel perigo para o turismo

    da era eduardiana, no Homem e Super-Homem de Bernard Shaw. Na Grcia e nos

    Balcs, o fenmeno provoca reminiscncias ainda mais recentes. No Nordeste do

    Brasil, onde o banditismo entrou em sua fase epidmica aps 1870, atingindo o

    apogeu no primeiro tero do sculo XX, o fenmeno chegou ao fim em 1940 e desde

    ento extinguiu-se. Existiro decerto regies sobretudo, talvez, na sia Meridional

    e Oriental, e em uma ou duas partes da Amrica Latina onde o banditismo ao

    velho estilo ainda pode ser encontrado ocasionalmente, no sendo impossvel que

    ele venha a surgir na frica subsarica numa escala mais aprecivel do que se sabe

    haver ocorrido no passado. De modo geral, entretanto, o banditismo social um

    fenmeno do passado, embora, s vezes, de um passado bastante recente. O mundo

    moderno o matou, substituindo-o por suas prprias formas de rebelio primitiva e de

    crime.

    Que papel, se existe algum, desempenham os bandidos nessas

    transformaes da sociedade? Como indivduos, so eles menos rebeldes polticos ou

    sociais, e menos ainda revolucionrios, do que camponeses que se recusam

    submisso, e que, ao faz-lo se destacam entre seus companheiros; ou so, ainda

    mais simplesmente, homens que se vem excludos da carreira habitual que lhes

    oferecida, e que, por conseguinte, so forados marginalidade e ao "crime".

    Tomados em conjunto, representam pouco mais do que sintomas de crise e tenso

    na sociedade em que vivem de fome, peste, guerra ou qualquer outra coisa que

  • abale essa sociedade. Portanto, o banditismo, em si, no constitui um programa para

    a sociedade camponesa, e sim uma forma de auto-ajuda, visando a escapar dela, em

    dadas circunstncias. Exceo feita sua disposio ou capacidade de rejeitar a

    submisso individual, os bandidos no tm outras idias seno as do campesinato

    (ou da parte do campesinato) de que fazem parte. So ativistas, e no idelogos ou

    profetas dos quais se deve esperar

    [pg. 18]

    novas vises ou novos planos de organizao poltica. So lderes, na medida em que

    homens vigorosos e dotados de autoconfiana, tendem a desempenhar tal papel;

    mesmo enquanto lderes, porm, cabe-lhes abrir caminho a faco, e no descobrir a

    trilha mais conveniente. Vrios chefes de salteadores do sul da Itlia na dcada de

    1860, como Crocco e Ninco Nanco,* demonstraram dons de comando que

    granjearam a admirao dos oficiais que os combatiam; mas, embora os "anos dos

    bandidos" sejam um dos raros exemplos de um importante levante campons

    dirigido por bandidos sociais, em nenhum momento parece que os lderes fora-da-lei

    tenham pedido a seus comandados que ocupassem a terra, e s vezes pareciam at

    incapazes de imaginar aquilo que hoje seria denominado "reforma agrria".

    Se os bandidos tm realmente um "programa", ser tal programa a defesa ou

    a restaurao da ordem de coisas tradicionais "como devem ser" (o que nas

    sociedades tradicionais significa a maneira como se acredita que tenham sido em

    algum passado real ou mtico). Os bandidos corrigem os erros, desagravam as

    injustias, e ao assim proceder aplicam um critrio mais geral de relaes justas e

    * Carmine Donatelli ("Crocco"), trabalhador rural e vaqueiro, tendo se unido ao exrcito dos Bourbons, matou um companheiro numa contenda, desertou e viveu como proscrito durante dez anos. Uniu-se aos rebeldes liberais em 1860, na esperana de uma anistia para seus crimes do passado, e posteriormente tornou-se um dos mais temveis chefes guerrilheiros e condutor de homens do partido Bourbon. Mais tarde fugiu para os Estados Papais, foi entregue ao governo italiano e sentenciado priso perptua. Muitos anos mais tarde, na priso, escreveu uma interessante autobiografia. Giuseppe Nicola Summa ("Ninco Nanco"), trabalhador sem terras de Avigliano, fugira da cadeia durante a libertao garibaldina de 1860. Na qualidade de lugar-tenente de Crocco, demonstrou tambm extraordinrios dotes como guerrilheiro. Morreu em 1864.

  • eqitativas entre os homens em geral, em particular entre os ricos e os pobres, os

    fortes e os fracos. Trata-se de um objetivo modesto, que permite aos ricos

    continuarem a explorar os pobres (mas no alm daquilo que tradicionalmente se

    aceita como "justo"), aos fortes oprimirem os fracos (mas dentro dos limites do

    aceitvel, e tendo-se em mente seus deveres sociais e morais). O objetivo dos

    bandidos dispensa que no haja mais senhores, ou mesmo que no seja normal que

    os senhores tomem as

    [pg. 19]

  • mulheres dos servos, mas apenas que, depois de faz-lo, no fujam obrigao de

    dar educao aos filhos bastardos. Nesse sentido, os bandidos sociais so

    reformadores, e no revolucionrios.

    Contudo, duas coisas podem converter esse objetivo modesto, posto que

    violento, dos bandidos e do campesinato a que pertencem em verdadeiros

    movimentos revolucionrios. A primeira a possibilidade de ele se tornar o smbolo,

    ou mesmo a ponta-de-lana, da resistncia por parte de toda a ordem tradicional

    contra as foras que a desagregam ou a destroem. Uma revoluo social no ser

    menos revolucionria

    [pg. 20]

    por ocorrer em nome daquilo que o mundo externo considera como "reao", contra

    o que ele considera "progresso". Os bandidos do reino de Npoles, como seus

    camponeses, que se levantaram contra os jacobinos e os estrangeiros em nome do

    Papa, do Rei e da Santa S, eram revolucionrios, como no o eram o Papa e o Rei

    (como um lder de salteadores inusitadamente sutil disse, na dcada de 1860, a um

    advogado cativo, que alegava apoiar, tambm ele, os Bourbons: "O senhor um

    homem educado e um advogado: o senhor acredita realmente que estejamos

    quebrando os ossos por causa de Francisco II?" 6). Combatiam no pela realidade do

    reino Bourbon muitos deles, na verdade, haviam ajudado a derrub-lo alguns

    meses antes, sob o comando de Garibaldi e sim pelo ideal da sociedade "boa de

    antigamente", simbolizada naturalmente pelo ideal da igreja "boa de antigamente" e

    do rei "bom de antigamente". Em poltica, os bandidos tendem a ser tradicionalistas

    revolucionrios.

    Tiro este exemplo de conversas com camponeses do Peru.

    Com efeito Cipriano La Gala, "negociante" analfabeto de Nola, condenado por roubo com violncia em 1855, e que fugiu da cadeia em 1860, no era um lder salteador tpico.

    6 F.Molfese, Storia del brigantaggio dopo d'Unit (Milo, edio de 1966), pg. 130.

  • O segundo motivo pelo qual os bandidos se tornam revolucionrios

    inerente sociedade camponesa. Mesmo aqueles que aceitam a explorao, a

    opresso e a submisso como norma da vida humana sonham com um mundo em

    que no existam: um mundo de igualdade, fraternidade e liberdade, um mundo

    totalmente novo, livre do mal. Raramente isto ser algo mais que um sonho.

    Raramente ser mais que uma expectativa apocalptica, embora em muitas

    sociedades persista o sonho do milnio: o Imperador Justo um dia aparecer, a

    Rainha dos Mares do Sul um dia desembarcar (como na verso javanesa dessa

    esperana submersa), e tudo mudar e ficar perfeito. No entanto, h momentos em

    que o apocalipse parece iminente; em que toda a estrutura da sociedade existente,

    cujo fim total o apocalipse simboliza e prev, parece realmente prestes a desmoronar

    e em que a minscula luz da esperana se torna a luz de uma possvel alvorada.

    Em tais momentos, os bandidos tambm se empolgam, como todos mais.

    No so sangue do sangue de sua gente?

    [pg. 21]

    No so homens que, em sua prpria maneira limitada, mostraram que a vida

    selvagem no agreste pode trazer liberdade, igualdade e fraternidade para aqueles

    que pagam o preo da falta do lar, do perigo e da morte quase certa? (Um socilogo

    moderno comparou seriamente os cangaceiros brasileiros a "uma espcie de

    irmandade de confraternidade leiga", e uma coisa que impressionava os

    observadores era a honestidade sem paralelos das relaes pessoais no seio do

    bando de cangaceiros7). No reconhecem eles, consciente ou inconscientemente, a

    superioridade do milnio ou do movimento revolucionrio em relao s suas

    prprias atividades?

    Na verdade, nada existe de mais surpreendente que essa coexistncia

    7 M. I. P. de Queirs, Os Cangaceiros: les bandits d'honneur brsiliens, pg. 164, 142 (Paris, 1968).

  • subordinada do banditismo e de revolues camponesas de vulto, das quais muitas

    vezes ele atua como precursor. A rea de Andaluzia tradicionalmente associada a

    bandoleros, nobres ou no, tornou-se a rea tradicionalmente associada ao

    anarquismo, dez ou vinte anos depois que eles entraram em declnio. O serto do

    nordeste brasileiro, regio clssica dos cangaceiros, era tambm a dos santos, os

    lderes messinicos rurais. Ambos os fenmenos floresceram juntos, mas os santos

    eram maiores. Em uma das muitas baladas que cantam suas faanhas, Lampio

    Jurou vingar-se contra todos, Dizendo "Nesse mundo s respeito O Padim Cio e mais ningum".8

    E, como veremos, foi o Padre Ccero, o Messias de Juazeiro, quem segundo a

    opinio pblica concedeu credenciais "oficiais" a Lampio. Historicamente,

    caminham de mos dadas o banditismo e o mileniarismo as mais primitivas formas

    de reforma e de revoluo. E quando sobrevm os grandes momentos apocalpticos,

    os grupos de bandidos, aumentados pela fase de tribulao e expectativa, podem

    insensivelmente converter-se em outra coisa. Podem, como em Java, fundir-se com

    os enormes contigentes de aldees que abandonam campos e casas para vaguear

    numa exaltada esperana; podem, como no sul da Itlia em 1861, transformar-se em

    exrcitos camponeses. Podem, como Crocco em 1860, deixar

    [pg. 22]

    de ser bandidos e vestir a farda de soldados da revoluo.

    Quando o banditismo se funde assim num movimento de maiores

    propores, torna-se parte de uma fora capaz de mudar a sociedade, e que

    efetivamente a muda. Uma vez que os horizontes dos bandidos so estreitos e

    8 R. Rowland, "'Cantadores' del Nordeste brasileno" (Aportes 3 Jan. 1967, pg. 138). Para as verdadeiras

    relaes entre este bandido e o Padre Ccero, mais complexas, cf. Estcio de Lima, O Mundo Estranho dos Cangaceiros, pgs. 113-14 (Salvador, Bahia, 1965) e O. Anselmo, Padre Ccero (Rio, 1968).

  • circunslitos, como os do prprio campesinato, os resultados de suas intervenes na

    Histria talvez no sejam o que eles esperavam. Podem mesmo ser o oposto daquilo

    que esperavam. Entretanto, isto no faz do banditismo uma fora histrica menor. E,

    seja como for, quantos daqueles que realizaram as grandes revolues sociais do

    mundo previram os resultados reais de seus esforos?

    [pg. 23]

  • 2

    Quem so os Bandidos?

    Na Bulgria, s so livres os pastores, os vaqueiros e os haiduks.

    Panayot Hitov

    O banditismo a liberdade, mas numa sociedade camponesa, poucos podem

    ser livres. A maioria das pessoas est presa aos grilhes da autoridade e do trabalho,

    um reforando o outro. O que faz os camponeses sucumbirem autoridade e

    coero no tanto sua vulnerabilidade econmica muitas e muitas vezes so

    praticamente auto-suficientes quanto sua imobilidade. Suas razes esto fincadas

    na terra e na casa patriarcal, e ali devem permanecer como rvores, ou antes como

    anmonas do mar ou outros animais aquticos, que se acomodam depois de uma

    fase de jovial mobilidade. Assim que um homem se casa e possui uma propriedade,

    est amarrado. Os campos tm de ser semeados, e preciso colher; at mesmo as

    rebelies camponesas tm de ser interrompidas para que se faam as colheitas. As

    cercas no podem ficar muito tempo sem ser reparadas. Mulher e filhos so como

    uma ncora que prendem um homem a um local identificvel. Somente a catstrofe,

    a aproximao do milnio ou a grave deciso de emigrar podem interromper o ciclo

    fixo da vida agrcola, porm mesmo o imigrante tem de logo se reestabelecer em

    outra parte, a menos que deixe de ser campons. A cerviz do campons est curvada

    socialmente, porque em geral ela deve estar curvada no trabalho fsico em seu

    campo.

    Isto limita seriamente o recrutamento de bandidos. No impossibilita que um

    campons adulto se torne um bandido, mas dificulta-o em muito, tanto mais porque

    o ciclo anual do

  • [pg. 24]

    roubo segue o mesmo ritmo do da agricultura, chegando ao auge na primavera e no

    vero, decaindo durante o outono e o inverno (Contudo, as comunidades para as

    quais as excurses de rapina proporcionam parte regular da renda, devem combin-

    las com a agricultura ou o pastoralismo, e por isso suas atividades rapinantes

    ocorrem fora da estao regular, como acontecia com os chuars tribais de Midnapur

    (Bengala) no comeo do sculo XIX; ou so efetuadas por grupos especiais que

    deixam atrs de si um nmero de gente suficiente para levar adiante a faina agrcola).

    Para que possamos compreender a composio social do banditismo, ento,

    devemos examinar basicamente a margem mvel da sociedade camponesa. A fonte

    bsica de bandidos, e talvez a mais importante, se encontra naquelas formas de

    economia ou de meio-ambiente rural onde a procura de mo-de-obra

    relativamente pequena, ou que so demasiado pobres para empregar todos seus

    homens aptos; em outras palavras, na populao rural excedente. As economias

    pastoris e as reas de montanhas e solo pobre, duas coisas que geralmente

    aparecem juntas, proporcionam um excedente permanente dessa espcie, que tende

    a criar suas solues institucionalizadas nas sociedades tradicionais: emigrao

    sazonal (como nos Alpes ou nas Montanhas Kabyle, na Arglia), o alistamento militar

    (como na Sua, Albnia, Crsega e Nepal), rapina ou banditismo. O "mini-fundismo"

    (preponderncia de propriedades demasiado pequenas para manter uma famlia)

    pode ter o mesmo efeito. Provoca-o tambm, por motivos ainda mais bvios, a falta

    de terras. O proletrio rural, desempregado durante grande parte do ano,

    "mobilizvel", de uma forma como no o o campons. Dos 328 "malfeitores" (ou

    antes rebeldes e guerrilheiros rurais), cujos processos foram previstos em 1863 pela

    Corte de Apelao de Catanzaro (Calbria, Itlia), 201 foram caracterizados como

    ajudantes de roa ou diaristas, apenas 51 como camponeses, quatro como

  • fazendeiros, 24 como artesos.9 bvio que em tais ambientes existe no s

    abundncia de homens que podem abandonar, pelo menos temporariamente, a

    economia rural, mas que tm de procurar outras fontes de renda. Nada mais natural

    que alguns deles se trans

    [pg. 25]

    formem em bandidos, ou que as regies montanhosas e pastoris devam ser as zonas

    clssicas de suas atividades.

    Ainda assim, nem todos os homens de tais regies tendem igualmente a se

    tornarem bandidos, ainda que sempre haja grupos cuja posio social lhes d a

    necessria liberdade de ao. O mais importante desses grupos compreende os

    homens jovens, entre a puberdade e o casamento, isto , antes que as

    responsabilidades de famlia lhes pesem nas costas (Fui informado de que nos pases

    onde se permite um fcil divrcio unilateral, o perodo entre o repdio de uma

    esposa e outro casamento pode constituir outro episdio de relativa liberdade, mas,

    como acontece na situao anloga dos vivos,

    [pg. 26]

    9 Molfese, ob. cit., pgs. 127-28.

  • tal liberdade s poder sobrevir quando no existem filhos pequenos a cuidar ou

    quando se encontram parentes que se encarreguem deles). Mesmo nas sociedades

    camponesas, a juventude uma fase de independncia e de rebelio em potencial.

    Muitas vezes unidos em grupos formais o informais da mesma idade, os jovens

    podem borboletear de emprego para emprego, brigar e errar pelo mundo. Os

    szgeny lgeny ("rapazes pobres") das plancies hngaras representavam um

  • exemplo desses bandidos em embrio; inofensivos quando ss, embora no avessos

    a furtar um ou dois cavalos, passavam facilmente ao banditismo quando unidos em

    bandos de vinte ou trinta, com um esconderijo inacessvel. Houve mesmo quem

    afirmasse (Eberhard) que os grupos de bandidos chineses eram formados,

    essencialmente, por esses dissidentes temporrios rurais. Seja como for, no resta

    qualquer dvida de que o bandido tpico era jovem. Dois teros dos salteadores de

    Basilicata, na dcada de 1860, tinham menos de 25 anos. De 59 bandidos de

    Lambayeque (Peru), 49 eram solteiros.10 Diego Corrientes, o bandido-heri clssico

    de Andaluzia, morreu com 24 anos; Janosik, seu equivalente eslovaco, com 25; e

    Lampio, o famoso cangaceiro do nordeste brasileiro, comeou sua carreira entre os

    17 e os 20 anos. Os escritores podem ser bons observadores: "Mehmed Magro", o

    heri de uma saga popular turca, homiziou-se nas Montanhas Taurus na

    adolescncia.

    O segundo grupo de homens livres mobilizveis para o banditismo, em

    importncia, so aqueles que, por um motivo ou outro, no se acham integrados na

    sociedade rural e que, por isso, so tambm forados marginalidade legal. Os

    bandos de rasboiniki que infestavam as reas sem estradas e esparsamente

    populadas da velha Rssia se compunham de tais elementos muitas vezes

    migrantes em demanda dos espaos livres do sul e do leste, onde ainda no haviam

    chegado a senhoria, a servido e o governo, em busca daquilo que mais tarde se

    tornaria a perspectiva conscientemente revolucionria de Zemlya i Volya (Terra e

    Liberdade). Alguns jamais chegavam l, e todos tinham de viver enquanto para ali se

    dirigiam. Assim, servos foragidos, homens livres arruinados,

    [pg. 27]

    fugitivos de fbricas senhoriais ou governamentais, evadidos de seminrios, prises,

    10

    E. Hobsbawm, Primitive Rebels, pg. 18 (Manchester, 1959); Lopez Albujar, ob. cit., pg. 126.

  • do Exrcito ou da Marinha, homens sem lugar determinado na sociedade, como

    filhos de popes, formavam ou se uniam a bandos de salteadores, que se podiam

    fundir com as atividades de rapina de comunidades fronteirias como os cossacos e

    minorias nacionais ou tribais (Com relao aos cossacos, vide o Captulo 5).

    Entre esses marginais, desempenhavam papel importante os soldados, os

    desertores e ex-militares. Boas razes tinha o Czar para fazer com que a conscrio

    de seus soldados fosse perptua, ou praticamente perptua, de modo que seus

    parentes liam o servio fnebre ao se despedirem deles sada da aldeia. Homens

    que voltam de longe, sem amo nem terra, representam um perigo para a

    estabilidade da hierarquia social. Os ex-militares, tal como os desertores, constituem

    matria-prima natural para engrossar as fileiras do banditismo. Com desusada

    freqncia, vemos lderes dos salteadores do sul da Itlia, depois de 1860, serem

    descritos como "ex-soldado do Exrcito Bourbon" ou "trabalhador sem terras, ex-

    soldado". Na verdade, em certas reas essa transformao era normal. Por que,

    perguntava um boliviano progressista em 1929, os ex-militares que voltam para suas

    povoaes entre os ndios aimar no atuam como educadores e agentes da

    civilizao, em lugar de "se transformarem em parasitas e degenerados que se

    convertem em lderes dos bandidos dessa regio?"11 A pergunta era justa, mas

    retrica. Os ex-militares podem servir como lderes, educadores ou funcionrios

    municipais, e todos os regimes socialmente revolucionrios usam seus exrcitos

    como escolas de treinamento com este fim. Mas quem esperaria que tal acontecesse

    na Bolvia feudal?

    Com exceo dos soldados que regressam, poucas pessoas se acham de todo,

    posto que, temporariamente, alheias economia da aldeia, embora ainda integradas

    sociedade camponesa (como normalmente no ocorre aos ciganos e outros Volk

    11

    Alejandro Franco, "El Aymara dei Siglo XX", Amauta, Lima, 23, 1929, pg. 88.

  • fahrendes, ou nmades). No obstante, a economia rural oferece algumas funes

    que se acham fora da rotina comum do trabalho e da faixa imediata de controle

    social, quer pelos governantes, quer pela opinio pblica dos governados.

    [pg. 28]

    L esto, mais uma vez, os pastores, sozinhos ou em grupos grupos especiais, s

    vezes secretos nos planaltos durante o vero, ou vagueando como seminmades

    pelas amplas plancies. Existem os homens armados e os guardas dos campos, cuja

    funo no trabalhar nas plantaes, os tropeiros, os carroceiros e os

    contrabandistas, os menestris e outros. No so vigiados, mas antes vigiam. Na

    verdade, na maioria das vezes as montanhas constituem seu mundo comum, no qual

    no entram os senhores das terras e os lavradores, e onde os homens no comentam

    muito o que vem ou que fazem. Nesse meio os bandidos se encontram com

    pastores, e os pastores imaginam se devem tornar-se bandidos.

    As fontes de bandidos em potencial que at aqui consideramos, so todas

    coletivas, ou seja, categorias sociais de homens mais tendentes a abraar o

    banditismo do que os membros de alguma outra categoria. Evidentemente, so da

    mxima importncia. Permitem-nos, por exemplo, formular generalizaes breves,

    aproximadas, porm no fundamentalmente tendenciosas como: "O grupo de

    bandidos tpico de uma rea montanhosa consiste de pastores jovens, trabalhadores

    sem terras e ex-soldados, no sendo verossmil que possua artesos ou homens

    casados com filhos". Tais frmulas no esgotam o problema, mas cobrem parte

    surpreendentemente grande do campo. Por exemplo, dos lderes de bandoleiros do

    sul da Itlia na dcada de 1860, aqueles dos quais dispomos de descries

    ocupacionais, incluem 28 "pastores", "boiadeiros", "ex-militares", "trabalhadores

    sem terras" e "guardas de campos" (ou combinaes dessas ocupaes), apenas cinco

  • outras.12 Entretanto, h outra categoria de bandidos em potencial, de certa forma a

    mais importante; a participao nessa categoria , por assim dizer, individual e

    voluntria, ainda que possa combinar em parte com as outras. Formam-na os

    homens que no esto dispostos a aceitar o papel social dcil e passivo do campons

    submisso; os arrogantes e recalcitrantes, os rebeldes individuais. So eles, na frase

    familiar clssica do campons, os "homens que se fazem respeitar".

    Talvez no haja muitos deles na sociedade, camponesa comum, mas sempre

    se encontram alguns. So eles os homens

    [pg. 29]

    que, diante de um ato de injustia ou de perseguio, no se curvam docilmente

    fora ou superioridade social, preferindo tomar o caminho da resistncia e da

    marginalidade. Pois cumpre lembrar que, se a resistncia a tais atos de opresso o

    ponto de partida caracterstico da carreira de um ladro "nobre", para cada

    campons que resiste deve haver dezenas e dezenas que aceitam a injustia. Um

    Pancho Villa, que defende a honra de uma me violada, constitui a exceo em

    sociedades em que os senhores e seus asseclas fazem o que querem com as moas

    aldes. So estes os homens que firmam seu direito de serem respeitados, inclusive

    por outros camponeses, pela luta declarada e que ao tomar essa atitude usurpam

    automaticamente o papel social de seus "superiores", que, como no sistema social

    clssico da Idade Mdia, possuem o monoplio das armas. Eles podem ser os dures,

    que apregoam sua valentia com fanfarronadas, portando armas ou bastes, mesmo

    quando os camponeses no tm o direito de us-los, vestindo-se de maneira

    descuidada e bizarra, assumindo gestos que simbolizam a valentia. O "porrete" da

    velha aldeia chinesa (geralmente traduzido como "tirano de aldeia" na velha China)

    usava o rabicho solto, com a extremidade enrolada em volta da cabea e do pescoo;

    12

    Baseado em Molfese, ob. cit., pg. 367-82.

  • os sapatos deliberadamente gastos no salto; as perneiras abertas para deixar

    aparecer o caro revestimento. Muitas vezes se dizia que ele provocava o magistrado

    "por pura gabolice".13 A roupa de vaquem dos boiadeiros mexicanos, que se tornou o

    traje clssico dos cowboys dos filmes de faroestes, e as vestimentas mais ou menos

    equivalentes dos gachos e llaneros dos pampas sul-americanos, dos btyars da

    puszta hngara, dos majos e flamencos da Espanha, so exemplos de smbolos

    semelhantes de inconformsmo no mundo ocidental. possvel que esse simbolismo

    tenha encontrado sua expresso mais elaborada nas roupas adornadas de ouro e ao

    do haiduk ou klepht balcnico. Isto porque, como em todas as sociedades tradicionais

    e de lenta transformao, at mesmo o grupo fluido dos pobres inconformistas se

    formaliza e se faz reconhecer atravs de sinais exteriores. A roupa do valento rural

    um cdigo que diz: "Este homem no um fraco".

    [pg. 30]

    Aqueles "que se fazem respeitar" no se tornam automaticamente bandidos,

    ou pelo menos bandidos sociais. Podem fugir ao destino dos camponeses tornando-

    se guardas da aldeia, servidores do senhor ou soldados (o que significa bandidos

    oficiais de vrias espcies). Podem cuidar de sua prpria vida e transformar-se numa

    burguesia rural desptica, como os mafiosi da Siclia. Podem ainda tornar-se o tipo de

    marginal a respeito dos quais os homens cantam baladas: paladinos, heris e

    vingadores. A rebelio que movem individual, solapada social e politicamente, e em

    condies normais isto , no-revolucionrias no constitui uma vanguarda de

    revolta popular, e sim o produto e contrapartida da passividade geral dos pobres.

    Representam esses homens a exceo que confirma a regra.

    As categorias analisadas acima mais ou menos esgotam as fontes das quais

    so recrutados os bandidos camponeses. Contudo, cabe-nos considerar

    13

    A. H. Smith, Village Life in China, pgs. 213-17 (Nova lorque-Chicago-Toronto, 1899).

  • sucintamente outros dois reservatrios de violncia e roubo rural, s vezes

    corretamente, mas quase sempre erroneamente, confundidos com o banditismo

    campons: robber barons e criminosos.

    Salta aos olhos que fidalgos rurais empobrecidos proporcionam uma fonte

    inesgotvel de elementos marginalizados. As armas so privilgio seu; a luta, sua

    vocao e a base de seu sistema de valores. Boa parte dessa violncia

    institucionalizada em atividades como a caa, a defesa da "honra" pessoal e familiar,

    duelos, desagravos, etc, ou canalizada por governos cuidadosos para fins

    politicamente teis ou pelo menos inofensivos, como o servio militar ou a

    administrao colonial. Os Mosqueteiros de Dumas, produto do notrio bero de

    cavalheiros sem vintm, a Gasconha, eram evidentemente pouco mais do que

    valentes bem-nascidos e portadores de licena oficial, em tudo o mais semelhantes

    aos desordeiros contratados como guardas pelos latifundirios italianos ou ibricos.

    Assim eram tambm muitos dos conquistadores espanhis. Contudo, h situaes

    em que tais fidalgotes empobrecidos se tornam verdadeiros marginais ou ladres

    (vide Captulo 6). Podemos conjecturar que mais provvel que os cavalheiros fora-

    da-lei ingressem no domnio do mito e da

    [pg. 31]

    balada populares a) quando podem fazer parte de um movimento geral de

    resistncia de alguma sociedade arcaica contra forasteiros ou contra conquista

    externa, ou b) quando s existe dbil tradio de rebelio camponesa ativa contra a

    injustia senhorial. menos provvel que tal acontea quando o elemento de luta de

    classes mais acentuado, ainda que, naturalmente, em pases com alta proporo de

    "fidalgos", como a Polnia, a Hungria ou a Espanha, onde formavam talvez 10% da

    populao, constitussem grande pblico para as baladas e romances a respeito deles

  • prprios.*

    H ainda uma diviso mais ntida entre os bandidos rurais e o submundo de

    elementos urbanos ou nmades, que existia nos interstcios da sociedade rural, mas

    que claramente no pertencia a ela. Nas sociedades tradicionais, os criminosos so,

    quase por definio, marginais que formam sua prpria sociedade isolada, seno

    uma anti-sociedade de "tortos", que reflete a dos "honrados". Normalmente, falam

    sua prpria linguagem (argot, cant, cal, Rotwelsch, gria). Suas associaes se fazem

    com outras ocupaes ou comunidades marginais, como os ciganos, cujo idioma

    forneceu to forte contribuio para a gria dos criminosos franceses e espanhis, e

    os judeus, que contriburam ainda mais para o vocabulrio alemo (A maior parte dos

    bandidos camponeses no fala nenhum tipo de gria, mas simplesmente uma verso

    do dialeto local). So inconformistas, ou, antes, anticonformistas, por prtica e por

    ideologia; tomam o lado do diabo, e no o de Deus;** se so religiosos, favorecem a

    heresia, em oposio

    [pg. 32]

    ortodoxia. No sculo XVII, os vilos cristos da Alemanha pediam para participar

    dos servios religiosos dos judeus na cadeia, e h bons indcios (que ecoam na pea

    Os Ladres, de Schiller), que bandos alemes do sculo XVIII constituam abrigo para

    sectrios libertinistas ou antinmicos, tal como os sobreviventes do anabatismo da

    Alemanha central.14 Em nenhum sentido, os bandidos camponeses so heterodoxos,

    * Dois fatores complicam a classificao das canes e baladas sobre bandidos. O primeiro a tendncia da cultura "oficial" para elev-los socialmente como preo de assimil-los; ou seja, transformar Robin Hood num injustiado Conde de Huntingdon; o segundo a tendncia de todos os homens livres das sociedades rurais do tipo feudal para assimilar seu prprio status ao nico modelo familiar de "liberdade", isto , o status da "nobreza". possvel que o ltimo fator explique a crena de que legtimos bandidos camponeses hngaros do sculo XIX, como Rosza Sandor e Sbry Jszi, fossem nobres de velha cepa.

    ** Um ladro que no houvesse feito pacto com o diabo era algo de inimaginvel, sobretudo no sculo XVI, e

    at pocas recentes o diabo tem ocupado o lugar preponderante no sistema dogmtico dos ladres". Esta era a opinio de Av-Lallemant, cuja obra, em quatro volumes, Das Deutsche Caunerthum (1858-62), constitui fonte inestimvel para o estudo do submundo pr-industrial.

    14 Para detalhes, V. G. Kraft, Historische Studien zu Schillers Schauspiel 'Die Rauber' (Weimar, 1959).

  • mas partilham do sistema de valores dos camponeses comuns, o que inclui sua

    carolice e sua desconfiana em relao a estranhos (Assim, exceto nos Balcs, a

    maioria dos bandidos sociais da Europa central e oriental antisemita).

    Onde bandos de ladres criminosos vagueiam pelos campos, como em partes

    da Europa central nos sculos XVII e XVIII, ou na ndia, podem, portanto, ser

    normalmente diferenciados dos bandidos sociais, tanto por seus membros, como por

    sua maneira de atuar. Tendem a ser formados por membros de "tribos e castas

    criminosas" ou por indivduos de grupos proscritos. Assim, o grupo de Crefeld e

    Neuss, da dcada de 1790, tal como o grupo de Keil, era composto em sua maior

    parte de amoladores de facas, ao passo que, em Hesse-Waldeck, havia um bando

    formado principalmente por maltrapilhos. Cerca de metade do bando de Salembier,

    que aterrorizava o Pas-de-Calais no mesmo perodo, era constitudo de bufarinheiros,

    receptadores, saltimbancos, etc. O temvel bando dos Pases Baixos, como a maioria

    de suas diversas subunidades, era em grande parte judeu. E assim por diante. As

    vocaes criminosas eram freqentemente hereditrias: a ladra bvara Schattinger

    mantinha uma tradio familiar de 200 anos, e mais de 20 de seus parentes, inclusive

    o pai e uma irm, estavam na cadeia ou haviam sido executados.15 No surpreende

    que no procurassem as boas graas dos camponeses que, como todas as pessoas "de

    bem", eram seus inimigos, opressores e vtimas. Assim, os bandos de criminosos

    careciam das razes locais dos bandidos sociais, mas ao mesmo tempo no estavam

    confinados pelos limites do territrio alm do qual os bandidos sociais raramente

    podiam aventurar-se com segurana. Faziam parte de redes, amplas, posto que

    frouxas, de um submundo que se podia estender sobre meio Continente,

    [pg. 33]

    15

    F. Av-Lallemant, Das deutsche Gaunerthum, I, 241 (Leipzig, 1858-62). Para confirmao das diferenas entre criminosos e bandidos, expostas por um perito mdico-legal, com experincia de ambos, V. E. de Lima, ob. cit., passim; G. Sangnier, Le brigandade dans le Pas-de-Calais, pgs. 172, 196 (Blangermont, 1962).

  • e que certamente adentravam nas cidades que constituam terra incgnita para os

    bandidos camponeses, que as temiam e odiavam. Para os vagamundos, nmades,

    criminosos e outros elementos dessa estirpe, a espcie de rea em que atuava a

    maioria dos bandidos sociais representava to-somente local de mercados ou feiras

    anuais, uma rea a ser ocasionalmente pilhada, ou, no mximo (por exemplo, se

    colocada estrategicamente perto de vrias fronteiras), quartel-general adequado

    para operaes mais amplas.

    Entretanto, no se pode simplesmente excluir os criminosos do estudo do

    banditismo social. Em primeiro lugar, onde, por um motivo ou outro, o banditismo

    social no florescera ou se extinguira, criminosos comuns adequados podiam ser

    idealizados e ganhar os atributos de Robin Hood, sobretudo quando se concentravam

    em assaltar mercadores, viajantes ricos e outras pessoas que no desfrutavam de

    muita simpatia dos pobres. Assim, na Frana, Inglaterra e Alemanha do sculo XVIII

    celebravam-se personagens como Dick Turpin, Cartouche e Schinderhannes, que

    substituam os verdadeiros Robin. Hoods que na poca j haviam desaparecido

    nesses pases.*

    Em segundo lugar, os proscritos involuntrios do campesinato, como os ex-

    soldados, desertores e pilhadores, que abundavam nos perodos de desordem e de

    guerras, serviam como elo entre o banditismo social e o anti-social. Tais homens ter-

    se-iam ajustado facilmente a bandos sociais, mas ligavam-se com a mesma facilidade

    aos outros, levando para eles alguns dos valores e pressupostos de seu meio-

    ambiente nativo. Em terceiro lugar, os imprios pr-industriais estabelecidos e

    permanentes haviam desde muito criado um submundo duplo: no s o do proscrito,

    mas tambm aquele da defesa mtua e da oposio no oficial, exemplificado pelas

    * Dick Turpin, 1705-39; Cartouche, 1693-1721; Johannes Bckler (Schinderhannes), 1783-1803. O outro heri-bandido francs do sculo XVIII, Robert Mandrin (1724-55), era um candidato um pouco menos conveniente idealizao. Era um contrabandista profissional da regio de fronteira franco-sua, profisso que ningum jamais considerou criminosa, exceto os governos; alm disso, estava empenhado numa campanha de vingana.

  • grandes e duradouras sociedades secretas da China Imperial

    [pg. 34]

    ou do Vietnam, ou talvez por organizaes como a Mfia siciliana. Tais sistemas e

    redes polticas no-oficiais, ainda muito mal compreendidos e conhecidos, podiam

    alcanar todos aqueles que se encontravam fora da estrutura oficial do poder e

    contra ela, inclusive os bandidos sociais e os grupos marginais. Podiam, por exemplo,

    proporcionar a uns e a outros alianas e recursos que, em certas circunstncias,

    transformavam o banditismo num ncleo de efetiva rebelio poltica.

    Todavia, ainda que na prtica o banditismo social nem sempre possa ser

    separado nitidamente de outros tipos de banditismo, isto no afeta a anlise

    fundamental do bandido social como um tipo especial de protesto e rebelio

    camponesa. E este o tema principal deste livro.

    [pg. 35]

  • 3

    O Ladro Nobre

    Naquela noite a lua estava baa e a luz das estrelas enchia o cu. Haviam avanado pouco mais de

    cinco quilmetros quando viram o grande nmero de carroas, e nos estandartes sobre eles se lia

    claramente: "O gro dos justos e a Toca dos Ladres Leais".

    O Shui Hu Chuan

    PERVERSO: Um homem que mata cristos sem um motivo profundo. De um teste de

    associao de palavras dado ao famoso bandido calabrs Musolino (E. Morsello

    e S. de Sanctis, Biografia di un Bandito: Giusepe Musolino de fronte alia

    psichiatria ed alla sociologia, Milo, sem data).

    Robin Hood, o ladro nobre, o tipo de bandido mais famoso e popular em

    todo mundo, o heri mais comum de baladas e canes na teoria, ainda que no seja

    assim na prtica. Nenhum mistrio existe nessa desproporo entre a lenda e o fato,

    no mais do que na divergncia entre as realidades da cavalaria medieval e o sonho

    cavalheiresco. Robin Hood aquilo que todos os bandidos camponeses deviam ser;

    entretanto, sendo as coisas como so, poucos deles possuem o idealismo, a

    abnegao ou a conscincia social para corresponder a seu papel, e talvez poucos

    possam dar-se a esse luxo. No entanto, aqueles que o fazem e h registros de

    autnticos Robin Hoods recebem a venerao devida aos heris, e at aos santos.

    Diego Corrientes (1757-81), o ladro nobre da Andaluzia, foi, segundo a opinio

    popular, semelhante a Cristo: foi trado, entregue a Sevilha num domingo, julgado

  • numa sexta-feira de maro, e jamais matara algum.16 O verdadeiro Juro Janosik

    (1688-1713) era, como a maioria dos bandidos

    [pg. 36]

    sociais, um ladro provinciano de algum confim perdido dos Crpatos, cuja existncia

    dificilmente atrairia a ateno das autoridades da capital. Entretanto, centenas de

    canes a seu respeito sobrevivem at nossos dias. Por outro lado, tamanha a

    necessidade de heris e campees que, no existindo autnticos, candidatos pouco

    adequados so levados a representar o papel fora. Na vida real, a maioria dos

    16

    C. Bernaldo de Quiros, El Bandolerismo en Espaha y Mxico, pg. 59 (Mxico, 1959).

  • Robin Hoods era tudo, menos nobre.

    Convm, portanto, que comecemos com a "imagem" do ladro nobre, que

    define tanto seu papel social como sua relao com os camponeses comuns. Seu

    papel o do campeo, aquele que corrige os erros, que dispensa a justia e promove

    a eqidade social. Sua relao com os camponeses de solidariedade e identidade

    totais. A "imagem" reflete ambas as coisas, e pode ser sintetizada em nove pontos.

    Primeiro, o ladro nobre inicia sua carreira de marginalidade no pelo crime,

    mas como vtima de injustia, ou pela

    [pg. 37]

    perseguio, pelas autoridades, devido a algum ato que consideram criminoso, mas

    que aceito pelo costume local.

    Segundo, ele "corrige os erros".

    Terceiro, "tira dos ricos e d aos pobres".

    Quarto, "nunca mata, a no ser em legtima defesa ou vingana justa".

    Quinto, "se sobrevive, retorna a sua gente como cidado honrado e membro

    da comunidade. Na verdade, ele nunca chega realmente a deixar a comunidade".

    Sexto, "ele admirado, ajudado e mantido por seu povo!".

    Stimo, "morre invariavelmente, e apenas por traio, uma vez que nenhum

    membro decente da comunidade auxiliaria as autoridades contra ele".

    Oitavo, ele " pelo menos em teoria invisvel e invulnervel".

    Nono, ele "no inimigo do rei ou imperador, fontes da Justia, mas apenas

    da nobreza local, do clero e de outros opressores".

    Com efeito, os fatos em grande parte confirmam a imagem, na medida em

    que ela representa a realidade e no a expresso de uma fantasia. Na grande maioria

  • dos casos registrados, os bandidos sociais realmente comeam suas carreiras com

    alguma disputa de carter no-criminal, questo de honra ou como vtimas daquilo

    que eles e seus vizinhos tm na conta de injustia (e que pode no passar da

    conseqncia automtica de uma disputa entre um pobre e um rico). Angelo Duca ou

    "Angiolillo" (1760-84), bandido napolitano do sculo XVIII, tornou-se um proscrito

    devido a um litgio, a respeito de reses extraviadas, com um guarda de campo do

    Duque de Martina; Pancho Villa, no Mxico, vingando a honra de sua me, vtima de

    um proprietrio de terras; Labareda, como praticamente todos Os cangaceiros do

    Brasil, por causa de uma questo de honra familiar; Giuliano um simples

    contrabandista, ocupao to honrosa quanto qualquer outra nas montanhas

    por resistir a um coletor de impostos, a quem no podia subornar, por no ter

    dinheiro. E assim por diante. E, na verdade, essencial que o Robin Hood comece

    dessa maneira, pois se fosse um criminoso de verdade, segundo

    [pg. 38]

    os padres ticos de sua comunidade, como poderia valer-se do apoio inequvoco

    dela?

    Comear como vtima da injustia significa estar imbudo da necessidade de

    desagravar pelo menos uma afronta: a que foi cometida contra o prprio bandido.

    muito natural que os verdadeiros bandidos demonstrem muitas vezes aquele

    "esprito selvagem de justia" que os observadores percebiam em Jos Maria "El

    Tempranillo" (o Don Jos, original de Carmen), que atuava nas montanhas andaluzas

    entre 1816 e 1832. Na lenda, muitas vezes esse desagravo de afrontas toma a forma

    de uma literal transferncia de riqueza. Consta que Jesse James (1847-82) haja

    emprestado a uma viva pobre 800 dlares para que ela saldasse sua dvida com um

    banqueiro, e depois assaltado o banqueiro e recuperado o dinheiro; por tudo que

  • sabemos a respeito dos irmos James, trata-se de uma histria pouco plausvel.* Em

    casos extremos, como no drama Os Ladres, de Schiller, o bandido nobre oferece sua

    prpria vida em troca de justia para algum pobre. Da mesma forma, na vida real (ou

    ter sido na lenda contempornea), Zelim Khan, o Robin Hood do Daguesto do

    comeo do sculo XX, encurralado numa caverna, mandou uma mensagem ao

    comandante opositor, atravs de um pastor:

    "V dizer ao chefe do distrito que eu me entregarei a ele quando me mostrar um telegrama ou um documento do Czar, dizendo que suspender todas as multas impostas a inocentes; e, alm disso, que sero perdoados todos os que foram presos ou exilados por minha causa. Mas se isso no acontecer, diz ento ao Prncipe Karavlov que esta mesma noite, antes da meia-noite, fugirei desta caverna, a despeito de tudo e de todos. At l, espero sua resposta."

    Na prtica, o mais comum que a justia dos bandidos tome a forma de

    vingana e retaliao, como no caso de Zelim

    [pg. 39]

    Khan, que escreveu a um oficial muulmano, um certo

    Donugayev:

    "Observe que mato os representantes da autoridade porque ilegalmente exilaram minha pobre gente para a Sibria. Quando o Coronel Popov administrava o distrito de Grozniy, houve um levante e os representantes da autoridade e do Exrcito acharam que tinham de se afirmar massacrando vrios infelizes. Ao saber disto, juntei meu grupo e saqueei um trem em Kadi-Yurt, onde matei russos por vingana."17

    Seja como for, no h dvida de que o bandido visto como um agente de

    justia, um restaurador da moralidade, e que muitas vezes considera-se assim ele

    prprio.

    Se ele tira dos ricos para dar aos pobres, outra coisa; exceto, claro, na

    medida em que ele no se pode permitir tirar dos pobres do lugar, para que conserve

    * A mesma histria narrada tendo como protagonista Mate Cosido, o principal bandido social do Chaco argentino na dcada de 1930.

    17 M. Pavlovich, "Zelim Khan et le brigandade au Caucase", Rev. du Monde Musulman, XX, 1912, pgs. 144,

    146.

  • seu apoio contra as autoridades. E, afinal, pouco h para tirar deles. No resta dvida

    de que s vezes os bandidos do aos pobres. Pancho Villa distribuiu da seguinte

    forma o botim de seu primeiro grande golpe: 5.000 pesos para sua me, 4.000 para

    parentes prximos e

    "Comprei uma alfaiataria para um homem chamado Antonio Retana, que tinha a vista muito ruim e uma famlia grande e necessitada. Contratei um homem para dirigi-la e lhe dei a mesma soma de dinheiro."18

    Nas sociedades pr-industriais, naturalmente, a liberalidade e a caridade so

    uma obrigao moral para o rico e o poderoso que deseja mostrar-se "bom". s

    vezes, como ocorre entre os dacoits da ndia, tais qualidades se acham formalmente

    institucionalizadas. Os Badhaks a mais famosa comunidade de ladres da ndia

    Setentrional separaram 4.500 rpias de um botim de 40.000 para caridade e

    sacrifcios aos deuses. Os Minas eram conhecidos por sua caridade.19 Por outro lado,

    no existem baladas a respeito dos insolventes bandidos de Piura, fato que o

    estudioso do banditismo peruano

    [pg. 40]

    explica constatando serem eles demasiado pobres para distribuir algum quinho

    entre outros pobres. Em outras palavras, tirar dos ricos para dar aos pobres

    costume familiar e arraigado, ou pelo menos uma obrigao moral ideal, seja na

    verdejante Floresta de Sherwood, seja no sudoeste norte-americano de Billy the Kid,

    que, segundo consta, "era bom para os mexicanos. Era como Robin Hood; roubava

    dos brancos ricos e dava aos mexicanos, que por isso julgava, que ele agia certo".20

    A moderao no uso da violncia, constitui parte igualmente importante da

    imagem de Robin Hood. "Ele rouba os ricos, ajuda os pobres e no mata ningum",

    18

    M. L. Guzman, The Memoirs of Pancho Villa, pg. 8 (Austin, 1965).

    19 R. V. Russell, The Castes and Tribes of the Central Provinces of ndia, I, pg. 60 (4 vols., Londres, 1916);

    Gen. Charles Hervey, Some Records of Crime, I, pg. 331 (Londres, 1892).

    20 Kent L. Steckmesser,"Robin Hood and the American Outlaw, Journal of American Folklore, 79, abril-junho

    de 1966, pg. 350.

  • dizia uma frase corrente a respeito de Diego Corrientes, de Andaluzia. Ch'ao Kai, um

    dos lderes de salteadores da novelstica chinesa clssica, da novela Margem d'gua

    pergunta aps uma incurso: "Ningum morreu?", e respondem-lhe que ningum foi

    ferido. "Ch'ao Kai, ao ouvir isso, exultou e disse 'Deste dia em diante, no feriremos

    pessoas'"21. Melnikov, um ex-cossaco, que agia perto de Orenburgo, "s raramente

    matava". Pelo menos nas baladas, os rufies catales dos sculos XVI e XVII, s

    podiam matar em defesa da honra; at mesmo Jesse James e Billy the Kid, segundo a

    lenda, s matavam em legtima defesa e por outras razes justas. Essa absteno de

    violncia indiscriminada tanto mais surpreendente quanto se sabe, que no

    ambiente onde os bandidos atuam, todos os homens andam armados, o assassinato

    fato corriqueiro e a mxima mais segura aquela que manda atirar primeiro e fazer

    perguntas depois. Seja como for, custa acreditar que contemporneos que os

    conhecessem, julgassem seriamente que os irmos James ou Billy the Kid pensassem

    duas vezes antes de matar algum.

    Por conseguinte, muito pouco provvel, que qualquer bandido real jamais

    tenha estado em condies de obedecer continuamente, a esse requisito moral

    imposto por seu status. Tampouco se pode afirmar com certeza se realmente se

    esperava que ele se comportasse desse modo; isto porque, embora os imperativos

    de uma sociedade camponesa sejam claros e definidos, homens habituados misria

    e desproteo geralmente

    [pg. 41]

    fazem tambm clara distino entre os mandamentos que so genuinamente

    compulsrios em todas as circunstncias por exemplo, no falar Polcia e

    aqueles que, por necessidade ou desuso, podem ser abandonados.* 22 E, no entanto,

    21

    All Men Are Brothers, traduo de Pearl Buck, pg. 328 (Nova Iorque, 1937).

    * Juan Martinez Alier desenvolveu essa questo com base numa srie de entrevistas com trabalhadores rurais da Andaluzia em 1964-65.

  • a prpria familiaridade com a morte e a violncia torna os homens extremamente

    sensveis a distines morais, no percebidas por sociedades mais pacficas. Existe a

    morte justa e legtima, como tambm o assassinato injusto, desnecessrio e

    indiscriminado; h atos louvveis e atos vergonhosos. Tal distino se aplica tanto ao

    julgamento daqueles que so vtimas potenciais da violncia armada, o campesinato

    submisso e dcil, como aos prprios combatentes, cujo cdigo bem pode ser o de um

    grosseiro cavalheirismo, que desaprova a morte infligida a pessoas desprotegidas e

    at mesmo ataques "desleais" contra adversrios reconhecidos como a Polcia local,

    com a qual o bandido pode manter uma relao de mtuo respeito (As regras que se

    aplicam aos forasteiros so um tanto diferentes).** Qualquer que seja a definio de

    assassinato "justo", o "bandido nobre" deve pelo menos procurar permanecer dentro

    dela, e provvel que o verdadeiro bandido social o faa. Mais tarde, teremos

    oportunidade de examinar o tipo de bandido a quem no se aplica esse tipo de

    restrio.

    Como o bandido social no um criminoso, encontra pouca dificuldade para

    regressar sua comunidade, como membro respeitado, quando deixa de estar fora

    da lei. Quanto a esse ponto, os documentos so unnimes. Na verdade, s vezes ele

    jamais deixa de fato a comunidade. Na maioria dos casos, ele tende a atuar dentro do

    territrio de sua aldeia ou

    [pg. 42]

    parentela, as quais o mantm como questo de dever familiar, bem como de bom

    senso, pois, se no o alimentarem, no se tornar ele um ladro comum? Um

    22

    J. Martinez-Alier, La Estabilidad del Latifundismo, Captulos l-VI (Paris, 1968).

    ** O romance Mehmed, my Hawk, de Yashar Kemal's, oferece bons exemplos desse tipo de relao. Ao

    surpreender, por acaso, o sargento local, que passa a maior parte do tempo a persegui-lo, o heri manda que ele busque proteo. Em outra passagem, o sargento encurrala Mehmed numa caverna, juntamente com sua mulher, seu filho recm-nascido e outra mulher. Para salv-los, Mehmed oferece sua rendio. O sargento adianta-se para prend-lo, mas uma das mulheres zomba dele: "Voc pensa que o capturou numa luta leal, mas s venceu porque ele no pode deixar a criana morrer". E o sargento v-se impossibilitado de efetuar a captura do famoso bandido, pois no haveria glria nessa vitria, e deixa que ele fuja.

  • estudioso da Bsnia e um oficial corso, da Repblica Francesa, coonestam essa

    questo: " melhor aliment-lo, para que ele no venha a roubar".23 Em reas

    remotas ou inacessveis, onde os agentes da lei s podem penetrar em incurses

    ocasionais, o bandido poder inclusive morar na aldeia, a menos que chegue aviso de

    que a Polcia se aproxima; assim acontece nos ermos da Calbria ou da Siclia. Na

    verdade, nas provncias mais remotas, onde a lei e o governo exercem pouqussima

    influncia, o bandido pode no s ser tolerado e protegido, como tambm ser

    membro influente da comunidade, como tantas vezes ocorre nos Balcs.

    Vejamos o caso de um certo Kota Christov, de Roulia, no interior da

    Macednia, no sculo passado. Christov era o bandido mais temido da regio, mas ao

    mesmo tempo o cidado mais eminente de sua aldeia, seu alcaide, mercador,

    estlajadeiro e homem de sete instrumentos. Em defesa de sua aldeia, ele resistia aos

    proprietrios de terras locais (na maioria albaneses) e desafiava os funcionrios

    turcos que vinham requisitar alimentos para soldados e gendarmes, com os quais ele

    sempre passava o dia e que nunca tentavam perturb-lo. Cristo devoto, ajoelhava-

    se diante do santurio do mosteiro bizantino da Santssima Trindade aps cada uma

    de suas faanhas, e lamentava a matana de cristos (ainda que no deplorasse,

    podemos supor, a morte de albaneses de qualquer religio).* Incontestavelmente,

    Kota no era um ladro comum, e embora extremamente vacilante, segundo os

    padres ideolgicos modernos lutou primeiro pelos turcos, depois pela

    Organizao Revolucionria Macednia Interna, e ainda mais tarde pelos gregos

    defendia sistematicamente os direitos de "seu" povo contra a injustia e a opresso.

    Alm disso, parece que fazia clara distino entre ataques permissveis e no-

    permissveis, o que pode refletir tanto um senso de justia quanto

    23

    A. V. Schweiger-Lerchenfeld, Bosnien, pg. 122 (Viena, 1878; P. Bourde, Em Corse, pgs. 218-19 (Paris, 1887).

    * Curiosamente, ele se tornou heri entre os albaneses, que tm uma cano a seu respeito. Extraio essa informao de The Greek Struggle in Macedonia, de Douglas Dakin (Salnia, 1966).

  • [pg. 43]

    sensibilidade s convenincias da poltica local. Seja como for, expulsou de seu bando

    dois elementos que haviam matado um certo Abdin Bey, embora ele prprio j

    houvesse mandado desta para melhor vrios outros tiranos locais. O nico motivo

    pelo qual tal homem no pode ser classificado simplesmente como um bandido

    social que, nas condies polticas da Macednia turca, no se pode afirmar que ele

    estivesse fora da lei, ou ao menos continuamente. Onde a fora do governo e da

    senhoria se mostrava dbil, o Robin Hood era um lder reconhecido da comunidade.

    muito natural, que o paladino do povo fosse pelos padres locais, no s

    honesto e respeitvel, como digno de toda admirao. Como vimos, a "imagem" de

    Robin Hood insiste em aes moralmente positivas, como roubar os ricos e no levar

    o morticnio ao exagero; mais que isso, porm, insiste nos atributos padres do

    cidado que obedece ao sistema tico. As sociedades camponesas no estabelecem

    distines muito claras, entre os bandidos sociais que merecem tal aprovao (ou

    que so tidos como merecedores dela) e aqueles que, embora s vezes reputados,

    temidos ou mesmo admirados, no a merecem. Com efeito, em muitas lnguas h

    palavras diferentes para esses diversos tipos de ladres. Abundam as baladas que

    terminam com o ladro de renome confessando seus pecados no leito de morte, ou

    expiando feitos tenebrosos, como o voivode haiduk Indje, que a terra expeliu de suas

    entranhas trs vezes, s encontrando repouso no tmulo quando um cachorro morto

    foi colocado ali.24 Contudo, no este o destino do ladro nobre, que no cometeu

    crime algum. Pelo contrrio, as pessoas rezam por ele, como as mulheres de San

    Stefano, em Aspromonte (Calbria), que oram pelo grande Musolino.25

    Musolino inocente E o condenaram injustamente;

    24

    F. Kanitz, La Bulgarie danubienne, pg. 346 (Paris, 1882).

    25 Nmero especial sobre a Calbria de II Ponte (1950), pg. 1.350.

  • Nossa Senhora, So Jos, Guardai-o sempre sob Vossa proteo . . . Oh, Jesus, oh, minha Nossa Senhora, Protejei-o de todo mal Agora e sempre, amm.

    [pg. 44]

  • Isto natural, pois o bandido nobre bom. Para citarmos um caso em que h

    algum conflito entre a realidade e a imagem, afirma-se que Jesse James jamais

    roubou pregadores, vivas, rfos e ex-Confederados. Alm disso, diz-se dele ter sido

    batista devoto, que dava aulas numa escola de canto da igreja. Dificilmente haver

    gente melhor que os lavradores do Missouri para estabelecer boas reputaes

    morais ...

    Obviamente, um homem de tais qualidades contaria com a ajuda de todos, e

    uma vez que ningum auxiliaria a lei contra ele, o bandido estaria praticamente

    prova de descoberta por soldados canhestros na regio que ele conhecia to bem, e

    s a traio poderia ensejar sua captura. Diz uma balada espanhola:

    Apenas por sua cabea Daro dois mil escudos de prata. Muitos conquistariam o prmio, Mas ningum o consegue. S um companheiro poderia.26

    26

    Joan Fuster, El Bandolerisme Catal, II, pg. 35 (Barcelona, 1963).

  • Na prtica, bem como na teoria, os bandidos morrem pela traio, ainda que

    a polcia possa reivindicar para si o

    [pg. 45]

    triunfo, como no caso de Giuiiano (Na Crsega, existe at um provrbio a respeito:

    "Morto depois da morte, como um bandido pela Polcia"). As baladas e os contos

    esto cheios desses traidores execrados, desde o tempo do prprio Robin Hood at o

    sculo XX: Robert Ford, que traiu Jesse James; Pat Garret, o Judas de Billy the Kid; Jim

    Murphy, que entregou Sam Bass:

    Ah, como Jim se escaldar Quando Gabriel soprar sua trombeta.

    Tambm encontramos os traidores nas histrias documentadas da morte de

    bandidos: Oleksa Dobvs, o bandido crpato do sculo XVIII, no morreu por causa

    da traio de sua amante Erzika, como dizem as canes, mas com um tiro pelas

    costas dado pelo campons Stepan Dzvinka, a quem ele ajudara. Salvatore Giuliano

    foi trado, bem como Angiolillo e Diego Corrientes. De outra forma, como poderiam

    tais homens morrer?

    No eram eles invisveis e invulnerveis? Assim se cr que sejam todos os

    "Bandidos do povo", provavelmente ao contrrio de outros fora-da-lei, e a crena

    reflete sua identificao com o campesinato. Sempre viajam pelo interior do pas

    vestindo disfarces impenetrveis, ou com roupas comuns, sem serem reconhecidos

    pelos agentes da lei, at eles prprios se identificarem. Assim, como ningum os

    denunciar, e como so indistinguveis do homem comum, so praticamente

    invisveis. As histrias que deles se contam apenas do expresso simblica a esta

    relao. Sua invulnerabilidade parece ser fenmeno um mais complexo. Em certa

    medida, tambm reflete a segurana que os bandidos desfrutam entre sua gente e

  • em seu prprio territrio. De certa forma, expressa o desejo de que o paladino do

    povo no possa ser derrotado, a mesma espcie de desejo que produz os mitos

    eternos do rei bom e do bandido bom que na verdade no morreu e um dia

    retornar, a fim de restaurar a Justia. A recusa de aceitar a morte de um ladro

    constitui critrio seguro dessa "nobreza". Assim, o Sargento Romano na verdade no

    morreu, e pode ser visto ainda vagando pelos campos em segredo e solido;

    [pg. 46]

    Pernales (um dos vrios bandidos andaluzos a respeito dos quais se contam tais

    histrias) "na verdade" fugiu para o Mxico; Jesse James, para a Califrnia. Isto

    porque a derrota e a morte do bandido a derrota de sua gente; e, pior ainda, a

    morte da esperana. Os homens podem viver sem justia e geralmente tm de

    aceitar a situao mas no podem viver sem esperana.

    Contudo, a invulnerabilidade do bandido nem sempre simblica. Quase

    invariavelmente ela se deve magia, que reflete o interesse das divindades em seus

    negcios. Os bandidos do sul da Itlia portavam amuletos bentos pelo Papa ou pelo

    Rei, e consideravam-se sob a proteo da Virgem; os do sul do Peru apelavam

    Nossa Senhora de Luren, e os do Nordeste brasileiro aos beatos locais. Em certas

    sociedades possuidoras de banditismo fortemente institucionalizado, como no

    Sudeste Asitico e na sia Meridional, o elemento mgico se encontra ainda mais

    desenvolvido, e sua significao talvez seja mais clara. Assim, o tradicional bando

    javans dos "rampok" constitui essencialmente uma "formao grupai de natureza

    mgico-mstica", e seus membros esto unidos, alm de outros laos, pelo ilmoe, um

    encantamento mgico que pode consistir em uma palavra, num amuleto, num

    adgio, porm s vezes simplesmente na convico pessoal, adquirida por sua vez

    atravs de exerccios espirituais, meditao, etc, por ddiva ou compra, ou que

    advm a um homem do nascimento, designando-o para sua vocao. isto que torna

  • os ladres invisveis e invulnerveis, que paralisa suas vtimas ou as faz dormir, e lhes

    permite fixar, por adivinhao, o lugar, o dia e a hora de suas atividades mas que

    tambm lhes probe modificar o plano depois de determinado por inspirao divina.

    O curioso nessa magia dos bandidos indonsios que, em certas circunstncias, ela

    pode ser generalizada. Em momentos de intensa excitao escatolgica, quando as

    prprias massas se colocam em expectativa, tambm elas se crem magicamente

    invulnerveis. Por conseguinte, a magia pode exprimir a legitimidade espiritual da

    ao do bandido, a funo de liderana no bando, a fora propulsora da causa. Mas

    talvez ela possa tambm ser vista como uma

    [pg. 47]

    dupla aplice de seguro: um seguro que suplementa a habilidade humana,* 27 mas

    que tambm explica o fracasso. Pois se os augrios tiverem sido interpretados

    erradamente, ou se uma ou outra das condies mgicas no tiverem sido

    cumpridas, a derrota do heri invulnervel no implica na derrota do ideal que ele

    representa. E os pobres e os fracos sabem que seus campees e defensores na

    verdade, e desafortunadamente, no so invulnerveis. Podem sempre reerguer-se

    mas tambm sero derrotados e mortos.

    Finalmente, como o ladro nobre justo, no pode encontrar em conflito real

    com a fonte da Justia, seja ela divina ou humana. Existem vrias verses da histria

    de conflito e reconciliao entre bandido e rei. Apenas o ciclo de Robin Hood contm

    diversas. O rei, aconselhado por maus consultores, como Xerife de Nottingham,