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ENTREVISTA COM JACQUES GUTWIRTH - scielo.br · Na minha primeira infância falei holandês, mas fui na escola na seção francesa e o francês foi e permaneceu minha primeira língua

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Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 13, n. 27, p. 313-331, jan./jun. 2007

Entrevista com Jacques Gutwirth

ENTREVISTA COM JACQUES GUTWIRTH

Esta entrevista com Jacques Gutwirth foi conduzida por Ari Pedro Oro,atravs de e-mails trocados com o entrevistado, e contou com a colaboraodos editores de Horizontes Antropolgicos na formulao das perguntas. Aos80 anos de idade, esse importante antroplogo francs ainda est ativo e fazen-do projetos. Na entrevista ele fala de sua trajetria de vida e de sua carreiraacadmica, com destaque para os anos em que viveu no Brasil, em sua juven-

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tude, e dos laos afetivos e profissionais que estabeleceu com o pas. Sua nar-rativa biogrfica confunde-se, em grande medida, com a prpria histria daantropologia a partir da segunda metade do sculo XX e incio do atual. Seupioneirismo na criao da antropologia urbana na Frana e seus estudos narea da religio marcaram a antropologia contempornea.

* * *

Ari Pedro Oro: Sua trajetria pessoal de vida, bem como de pesquisa-dor, faz do senhor um cidado do mundo, um homem da modernidade, umpoliglota. Pode retraar a sua histria pessoal de vida?

Jacques Gutwirth: Com efeito, eu sou um pouco cidado do mundo epoliglota e, em certa medida, um homem da modernidade. Para tanto, contammuito minha histria pessoal e suas circunstncias. Nasci em dezembro de1926, filho de me holandesa e pai de origem polonesa, instalados em Anvers(Anturpia), na Blgica. Na minha primeira infncia falei holands, mas fui naescola na seo francesa e o francs foi e permaneceu minha primeira lnguana escola e ao longo de toda a minha educao escolar e universitria. A Se-gunda Guerra Mundial comeou em setembro de 1939, mas a Blgica perma-neceu neutra at a invaso alem, em maio de 1940. Meus clarividentes pais,que conheciam a sorte dos judeus alemes nos campos de concentrao, deci-diram deixar a Europa. Em dezembro de 1939 meus pais, meu irmo e eudeixamos Anvers para o Rio de Janeiro, onde tivemos a chance de viver atmaio de 1947. Aprendi rapidamente o portugus; aps algumas semanas depermanncia eu lia sem grandes dificuldades o Correio da Manh, grandejornal da poca. Em maro de 1940, entrei no Liceu Franco-Brasileiro, emLaranjeiras, e obtive meu bacharelado francs em 1944. Quase no final daguerra conheci um livreiro italiano, um refugiado antifascista, que tinha sua lojana rua Bolvar, em Copacabana. Ele me iniciou no marxismo, o que me desper-tou o interesse pelos temas polticos, notadamente brasileiros. Acompanhei asperipcias do fim da ditadura de Getlio Vargas, em 1945. Numa noite de fute-bol no estdio do Fluminense, por ocasio de uma brutal interveno da polciaespecial numa das arquibancadas, o pblico do setor de scios revoltado cantouem coro a Marselhesa! Ao longo desse perodo assisti, tambm, uma reuniode Luis Carlos Prestes, que acabava de sair das prises do Estado Novo, aditadura ento agonizante.

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Por ocasio de meu retorno a Anturpia, em 1947, participei dos negcioscom diamantes de meu pai. Graas a isto, aprendi o yiddish, lngua francaentre os diamantrios. Aps o falecimento de meu pai, em 1957 fiquei doente epor ocasio de uma estada numa clnica em Davos, na Sua onde fortifiqueiminha sade, mas tambm minha prtica da lngua alem decidi abandonaros negcios, que decididamente no era o ch que eu gostava, embora eu notivesse me sado assim to mal naquela atividade. Eu queria fazer estudos su-periores sem ter, porm, naquele momento, uma vocao precisa. Inscrevi-me,em 1958, na Universidade de Paris, e obtive um primeiro ano de licenciatura,denominada ento de propedutica, sem abandonar meu domiclio de Anvers.

Em 1959, me instalei no Quartier Latin, em Paris, nmero 67 da rua Saint-Jacques, a 100 metros da Sorbonne, e comecei uma nova vida. Note-se que emmaio de 1968, eu assisti da minha sacada vrios enfrentamentos entre policiaise manifestantes. As noites eram bastante agitadas, felizmente intercaladas poruma trgua a cada dois dias, permitindo aos manifestantes e aos policiais toma-rem um pouco de flego. No segundo ano de licenciatura obtive o certificadode filologia portuguesa e um outro de estudos brasileiros. Com esses doiscertificados tornei-me, de uma certa maneira, um semiprofessor de portugus!No ano seguinte, a partir da incitao do socilogo urbano Henri Raymond,decidi fazer os cursos de sociologia e de etnologia.

Assisti, em novembro de 1960, no Museu do Homem, um primeiro cursode etnologia, ministrado por Andr Leroi-Gourhan (1911-1986). Este, que sedesigna muitas vezes como unicamente pr-histrico, era, no entanto, umnotvel etnlogo, autor de livros que permanecem hoje clssicos, muitas vezesreimpressos: LHomme et la Matire (1943); Milieu et Techniques (1945); LeGeste et la Parole 1. Technique et Langage (1964), 2. La mmoire et lesRythmes (1965). Andr Leroi-Gourhan se expressava com uma voz muito bai-xa; no era um grande orador, mas eu fui totalmente seduzido pelo contedo desua exposio, que colocava em realce todos os aspectos do homem, de seupertencimento biolgico s tcnicas, linguagem, cultura e s relaes soci-ais. Ele havia dito no incio do curso que entre uma centena de participantesno mais do que quatro se tornariam etnlogos, sobretudo em razo da falta deperspectiva de carreira. Decidi, no fundo do meu ntimo, de estar entre osquatro eleitos! Solicitei uma entrevista com Leroi-Gourhan e o encontrei, poucodepois, no seu pequeno escritrio no subsolo do Museu do Homem. Disse-lhedo meu interesse pela disciplina, sublinhando que eu j tinha 33 anos. Ele refu-tou imediatamente minha objeo: minha idade representava mesmo um trun-

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fo; em razo da minha experincia profissional, eu estava provavelmente maismaduro do que a maior parte dos estudantes mais jovens.

Aps ter obtido uma licenciatura, fui admitido a me inscrever no Centrode Formao s Pesquisas Etnolgicas (CFRE), dirigido por Leroi-Gourhan que chamvamos amigavelmente de patro e por Roger Bastide, que era osegundo titular de uma ctedra de etnologia na Universidade de Paris desde1958. O CFRE preparava os futuros etnlogos na prtica de campo. Almdisso, eu havia proposto fazer uma tese de doutorado de 3o ciclo em etnologia,ou sobre uma vila em Portugal eu no conhecia esse pas, mas tinha familia-ridade com sua lngua ou sobre uma comunidade chassdica, judeus ultra-religiosos, em Anvers. Meu cunhado, que era originrio desse meio, tinha, comsuas saborosas anedotas, despertado o meu interesse por este tema. Leroi-Gourhan considerou que os chassidim, inseridos na modernidade urbana deAnvers, constituam, de longe, o tema mais interessante e aceitou orientar mi-nha tese. Portanto, em 1961 comecei minha pesquisa de observador participan-te nessa comunidade. Diante da extenso do meu trabalho, Leroi-Gourhan pro-cedeu sua transformao em tese de Doutorado de Estado, que defendi emjunho de 1969, na famosa sala Louis Liard, na Sorbonne. O jri era compostopor Bernard Blumenkranz (historiador do judasmo), Roger Bastide, Jean Guiart(um renomado especialista na Oceania) e Leroi-Gourhan. Meu trabalho foipublicado pouco depois (Gutwirth, 1970).

Desde 1968 eu fora recrutado como pesquisador no CNRS. Trabalheitambm um pouco sobre temas franceses, notadamente as associaes de lazerem Chatillon-sur Seine, pequena cidade de Cte dOr (Gutwirth, 1972a). Em1971, fiz uma primeira incurso no continente americano, com uma pesquisasobre os chassidim em Montreal (Gutwirth, 1972b, 1973a).

Interessei-me, tambm, sobre questes epistemolgicas, em particular sobrea pertinncia cientfica do mtodo etnolgico. Fazendo referncia a Jean Piaget,psiclogo, epistemlogo, mas tambm defensor notvel, e um pouco desconhe-cido, do estruturalismo gentico (Piaget, 1968), eu defendia nossa disciplina:

[] a pesquisa etnolgica, desde seu incio em campo, particularmente fiel aoque essencial da lgica operativa do sujeito no domnio do conhecimento, isto, os processos de equilbrio cognitivo por compensaes ativas do sujeito [].No mtodo etnolgico, este conhecimento operativo se pratica efetivamente poraproximaes equilibrantes, por um jogo de antecipao e de retroao (feed-back) entre sujeito e objeto de pesquisa. (Gutwirth, 1973b, p. 775).

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Num artigo publicado em portugus, na revista de vocs (HorizontesAntropolgicos) (Gutwirth, 2001a), retomei esse tema ampliando-o questodo desconstrutivismo excessivo vindo dos Estados Unidos, cuja moda parecehoje um pouco passada.

Em 1973 e em 1974, fui destacado por dois anos como professor na Uni-versidade de Provence em Aix; depois, em 1975, obtive uma bolsa ps-docda National Science Foundation, dos Estados Unidos, e do CNRS, para a per-manncia de um ano nos Estados Unidos. De novembro de 1975 at o ano de1995, meu campo maior de pesquisa se situou nos Estados Unidos. Acrescentoque meu ingls ( americana) foi muito beneficiado.

Por certo, eu continuava minhas pesquisas sobre o chassidismo e meuprograma ps-doc comportava uma pesquisa sobre ele em Boston e em NovaIorque, mas eu tambm queria fazer uma investigao sobre judeo-cristos, oujudeus messinicos. So judeus convertidos ao cristianismo evanglico, masque mantm festas e liturgia judaicas. Eu no queria permanecer especialistasomente do chassidismo; entrementes, j havia realizado uma pesquisa no meioprotestante em Cvennes (Gutwirth, 1975, 1978a). Nos Estados Unidos eu meencontrava doravante confrontado a grupos religiosos bastante lbeis, situadosno contexto de grandssimas cidades e, para os judeo-cristos, em Los Angeles,uma imensa megalpole ps-urbana. Interessava-me, portanto, pelos proble-mas metodolgicos e epistemolgicos que resultavam desse contexto bastantediferente dos encontrados pelos etnlogos clssicos. Da meu interesse pelaantropologia urbana que havia comeado a sua forte expanso no fim dos anos1960 nos Estados Unidos e, tambm, em outros lugares. Publiquei, ento, meuprimeiro artigo sobre pesquisa no meio urbano (Gutwirth 1978b), e organizeium colquio sobre a antropologia urbana por ocasio de um grande congressoda Associao Francesa de Antropologia, em 1981, em Svres, perto de Paris.A partir das comunicaes apresentadas ocorreu a publicao, em LHomme(1982), de um nmero temtico consagrado antropologia urbana.

Em 1983, juntamente com minha amiga Colette Ptonnet, propus ao CNRSa criao de uma equipe de antropologia urbana, aceita inicialmente na formaexperimental de uma jovem equipe e, em seguida, em 1988, como laboratrioprprio do CNRS. Entrementes, continuei minhas pesquisas sobre os judeusmessinicos dos Estados Unidos, que culminaram com a publicao de um livro(Gutwirth, 1987). Foi tambm em 1985 que, instigado por Claudia Fonseca, acei-tei com prazer assumir o programa de intercmbio Capes-Cofecub entre a unida-de de ensino de Cincias Sociais da Universidade Paris V onde desde 1982 eu

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detinha um seminrio de doutorado em Antropologia Urbana e o Departa-mento de Antropologia da UFRGS, em Porto Alegre, a partir do qual realizeidiversas estadas no Brasil e mesmo uma pesquisa de campo em companhia deAri Pedro Oro (Gutwirth, 1991).

Da esquerda para a direita: Cornelia Eckert, Ruben George Oliven, Bernardo Lewgoy, Daisy Macedo de Barcellos,Claudia Lee Williams Fonseca, Maria Noemi Brito, Jacques Gutwirth, Ondina Fachel Leal e Ari Pedro Oro.

Os judeo-cristos e os evanglicos que eu encontrava me falavamfreqentemente de programas de rdio e de televiso, apresentados por prega-dores atuando na televiso, os televangelistas. Dei-me conta que essa reli-gio miditica fazia parte da cultura dos pesquisados que eu havia encontrado.Em 1985, ao trmino de minhas pesquisas sobre os judeus messinicos, decidirealizar uma pesquisa sobre este fenmeno (voltarei sobre isso mais frente),que culminou num livro (Gutwirth, 1998).

Em 1982, aps o falecimento de Suzanne, minha primeira mulher, fiel com-panheira de minhas peregrinaes na Amrica do Norte, eu havia, em 1987,casado com Christa, uma alem. A partir de 1994, resido permanentemente emFrankfurt, na Alemanha; ensinei no Institut fr Historische Ethnologie da uni-versidade da cidade, durante trs semestres, em alemo aprendi essa lngua

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somente pela prtica e leituras mas os estudantes pareciam me compreenderbem! Desde 1992 eu me encontrava, em princpio, aposentado. Doravante,enquanto diretor de pesquisa honorrio do CNRS, meu nico verdadeiro pas-satempo continuava a pesquisa! Continuei, portanto, meus trabalhos. Aps meulivro sobre os televangelistas, voltei a me interessar pelos chassidim. Trabalheicom meus prprios materiais, mas, tambm, com os resultados de outros estu-dos e informaes de diversas fontes (sobretudo da Internet) para um livrodedicado ao renascimento do chassidismo, principalmente em Anvers, nos Es-tados Unidos e em Israel. Em 1945, aps o judeocdio nazista, havia no totalaproximadamente 20 mil fiis; hoje eles so provavelmente 400 mil no mundo!Isso culminou num livro (Gutwirth 2004, 2005a).

Sou um homem de campo, mas alguns desconfortos cardiovasculares e aidade chegando tornavam a pesquisa na forma da observao participante bas-tante pesada. Ento, me interessei a certos episdios da histria recente daetnologia, aos quais, de alguma forma, participei. Assim, pesquisei sobre a his-tria e o papel do Centro de formao para a Pesquisa Etnolgica, que cumpriuum papel considervel para a formao dos etnlogos na Frana, de 1946 a1969 (Gutwirth, 2001b). Realizando este trabalho quis tambm fazer justia aLeroi-Gourhan como etnlogo que havia criado essa entidade. Aps, me inte-ressei sobre o papel de Roger Bastide como professor de etnologia na Sorbonne,de 1958 a 1968 (Gutwirth, 2005b), e, enfim, recentemente escrevi uma contri-buio sobre a histria da antropologia urbana na Frana texto que esperover publicado brevemente.

Ari Pedro Oro: Que significado teve para o senhor ter passado parte desua juventude no Brasil?

Jacques Gutwirth: Uma grande importncia. Chegamos de navio noRio em 29 de dezembro de 1939 e nos dirigimos ao hotel Central, destrudo hmuito tempo, na praia do Flamengo. Eu tinha 13 anos, mas aps o desembarquea comoo foi forte. Naquela tarde fazia bastante calor, a luz era intensa, obarulho da avenida e da praia me atordoaram e chorei copiosamente no meuquarto do hotel. A adaptao foi para mim bastante lenta. Na poca, o Rio erauma cidade relativamente tranqila, mas os ritmos e as maneiras de ser erambastante diferentes do que eu havia vivido at ento. Com o tempo, porm, mehabituei; eu e meus camaradas do Liceu Franco-brasileiro jogvamos futebolcomo os outros os rachas na praia de Copacabana.

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Enquanto na Europa a guerra fazia estragos e os judeus eram aniquilados,ns estvamos confortavelmente abrigados. Esta , alis, uma das razes queme fizeram aceitar de imediato a responsabilidade do programa de intercmbioParis V-UFRGS; eu tinha uma dvida moral em relao ao Brasil acolhedor,onde meu pai pde trabalhar imediatamente e ganhar a sua vida. Depois veiomeu interesse pela vida poltica, a cultura e a literatura brasileira. Eu ia regular-mente livraria da Civilizao Brasileira, na rua do Ouvidor, no centro da cida-de. Li Jorge Amado, Graciliano Ramos, Jos Lins do Rego, Gilberto Freire,Euclides da Cunha, etc. Eu tinha amigos brasileiros e por ocasio do meu retor-no Blgica, em 1947, fiz chegar durante muitos anos jornais cariocas que,com dois meses de atraso, me mantinham a par do que ocorria l; Internet esuas informaes instantneas estavam ainda muito distantes! Aps a Frana minha ptria de adoo a partir 1959 o Brasil o outro pas ao qual eu mesinto muito vinculado e minhas estadas no quadro do programa de intercmbioconstituram uma grande alegria para mim. Guardo muito boas amizades comos colegas de Porto Alegre.

Ari Pedro Oro: O senhor foi um dos fundadores da antropologia urbanana Frana. Que resistncias, ou desafios, foram necessrios serem superadospara introduzir, na poca, esse gnero novo de fazer antropologia?

Jacques Gutwirth: Entre 1961 e 1969, fui um dos primeiros etnlogos daFrana a realizar um trabalho numa grande cidade ocidental, em Anvers, na Bl-gica (ver acima). Tive a chance de receber o apoio intelectual e moral necessriode Hlne Balfet, tecnloga competente, que dirigia o Centro de Formao paraa Pesquisa Etnolgica (CFRE), e de Andr Leroi-Gourhan (ver acima).

Alm disso, Roger Bastide, que, como vocs sabem, tinha lecionado porlongos anos em So Paulo, de 1938 a 1954, era, desde 1958, titular de umactedra de etnologia social e religiosa na Universidade de Paris. Ora, elehavia realizado pesquisas sobre as religies afro-brasileiras, notadamente ocandombl, sobretudo em Salvador da Bahia (Bastide, 1958). A etnologia nacidade era-lhe, portanto, familiar. Roger Bastide contava, entre os seus douto-randos no Museu do Homem, com Colette Ptonnet. Com o apoio de Bastide ede Leroi-Gourhan, ela empreendeu, em 1964, uma pesquisa na periferiaparisiense e defendeu a sua tese de Doutorado de 3o Ciclo em 1967. Nessetrabalho, publicado em 1968, sob o ttulo de Ces Gens L (Ptonnet, 1968), elaestuda uma cidade de trnsito, conjunto de grandes imveis de uma aglo-

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merao de 50 mil habitantes perto de Paris. No prefcio do seu livro RogerBastide escreveu: preciso felicit-la [Colette] de ter aplicado a este sujeitoos mtodos da etnologia a cidade de Halle [J. G.: nome fictcio] revive diantede ns, com suas bisbilhotices nos corredores, seus dramas ou seus momentosde festa, os ritos secretos das caves e as aventuras dos jovens no mato dosarredores. Porque a casa aqui no somente o apartamento; , tambm, ocorredor, a escada, as caves ou o ptio, cada subgrupo, grupo sexual ou grupode idade tendo seu prprio domnio, que ele forja e que o forja (Bastide, 1968,p. 7-8). Esse trabalho de etnologia de quase 40 anos atrs, era, portanto, total-mente precursor, e sua temtica permanece e como! atual.

Com efeito, Colette e eu, apoiados pelos dois grandes patres, hava-mos realizado essas pesquisas na esteira da etnologia clssica. Como M. Jourdain,o gentil homem burgus de Molire, que fazia prosa sem sab-lo, ns fazamosantropologia urbana de maneira espontnea.

No meu caso, o trabalho tinha por objeto uma comunidade de 400 pesso-as, descrita e analisada no seu contexto mais amplo, notadamente o conjuntodos judeus de Anvers, 15 mil pessoas. Este estudo era inovador em certosaspectos: eu havia realizado uma investigao em minha cidade natal, numacomunidade, certo, ultratraditionalista, mas de criao bastante recente,porque constituda de imigrados recentes fugidos da Shoah, cujas atividadeseconmicas, principalmente com diamantes, me eram familiares. Isso nopareceu muito estranho nas instncias do Comit Nacional do CNRS. Antes dedefender minha tese, em 1969, fui nomeado, em outubro de 1968, pesquisadordo CNRS. Pessoalmente, no lamento de ter tido dificuldades. Os etnlogosclssicos africanistas e outros encontravam em minha tese, ao menos nasgrandes linhas, uma monografia bastante clssica. Para Colette, seus estudossobre as cidades de trnsito, e mais tarde sobre as cidades da periferia, susci-taram por muito tempo menos compreenso de parte de nossos colegas, masela foi, mesmo assim, recrutada no CNRS, em 1969. verdade que o apoio deLeroi-Gourhan e de Bastide fora importante, assim como, parece, o de umanotvel especialista em pr-histria, Annette Laming-Emperaire, que integra-va, com os etnlogos, o Comit Cientfico ad hoc, enquanto que o apoio deLeroi-Gourhan, mas tambm de Lvi-Strauss, havia jogado ao meu favor.

Entretanto, ao longo da primeira parte da dcada de 1970-80 tudo pareceainda imvel: nenhum colquio, na Frana nenhuma publicao coletiva se re-fere etnologia ou antropologia urbana. Enquanto isso, Colette Ptonnet e eucontinuvamos nossas pesquisas e trabalhos no meio urbano, notadamente, nomeu caso, em Montral (ver acima).

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De outra parte, Grard Althabe, um africanista discpulo de Georges Balandier,comea uma pesquisa nos HLM (imveis de locao a preo moderado). Numaentrevista (Althabe, 1977), ele trata da antropologia nesse novo contexto. Afirmaque ser cada vez mais difcil praticar a etnologia no Terceiro Mundo. Os etnlogos,entre os quais ele prprio, efetuam, portanto, um retorno ao hexgono.

Seria fastidioso evocar aqui os trabalhos dos diversos pesquisadores que,pouco a pouco, se ocupam da antropologia urbana. Citamos Marc Abels, YvesDelaporte, Michel Bozon, Gerard Toffin. Entretanto, o verdadeiro progresso danova subdisciplina data dos anos 1980. Encontros em que se trata da antropo-logia urbana se multiplicam. Assim, de 19 a 21 de novembro de 1981, em Svres,perto de Paris, a Associao Francesa de Antropologia (AFA), fundada em1979, organiza um colquio internacional intitulado A Prtica da AntropologiaHoje. De minha parte, organizei ali o ateli Estudo das Sociedades Urbanase Industriais. Graas ao apoio do CNRS, pude trazer para este ateli doisconvidados estrangeiros: Ulf Hannerz, professor na universidade de Estocol-mo, do qual eu havia lido com muita ateno um livro publicado em 1980 (Hannerz1980), traduzido para o francs a partir de minha recomendao (Hannerz1983), bem como Jack Rollwagen, fundador, em 1972, nos Estados Unidos, darevista Urban Anthropology. O colquio, no seu conjunto, obteve importanterepercusso. O jornal Le Monde, de 26 de novembro de 1981, consagrou umapgina inteira a ele. Um artigo, intitulado o futuro de um meti singular, assi-nala que para a etnologia houve notadamente uma superao das: [] pru-dncias e pudores que deixavam na sombra o ar poltico de ento contribu-indo sujeitos pouco nobres, dando doravante chances a domnios ainda noou insuficientemente explorados: a antropologia urbana [] a do trabalho e desuas representaes (Kajman, 1981).

A maior parte das intervenes do ateli Antropologia Urbana do col-quio foram publicadas no nmero temtico de LHomme, intitulado Estudos deAntropologia Urbana (1982). Pouco antes, em 1982, Ethnologie Franaisehavia publicado um nmero temtico dedicado Histria da Etnologia Urba-na. Assim, duas grandes revistas de etnologia da Frana entregavam a cartade nobreza nova subdisciplina.

Como ja disse, em 1983, Colette Ptonnet e eu obtivemos do CNRS acriao de uma equipe experimental que tornou-se, em 1988, o Laboratrio deAntropologia Urbana (LAU), UPR, unidade prpria de pesquisa do CNRS,que cresceu consideravelmente desde ento. No mbito do LAU desenvolveu-

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se um projeto de guia pedaggico que, sem ser um manual, devia mostrar,atravs de exemplos de pesquisa, como os diversos autores tinham pesquisado,construdo seu objeto de pesquisa e qual era a sua abordagem epistemolgica(Gutwirth; Ptonnet, 1987). Nessa obra, vrias contribuies dizem respeito asubrbios e a zonas da periferia urbana. A disperso no campo, muitas vezesbastante vasto, dos participantes de um ou outro grupo estudado, e, portanto, aquesto da construo do objeto, so tambm abordados nesse livro.

Pode-se dizer que a antropologia urbana estava doravante reconhecida.Com a urbanizao galopante no mundo inteiro, muitos etnlogos clssicosacompanharam suas populaes nas cidades.

Ari Pedro Oro: O senhor dedicou parte importante de sua vida intelectu-al em pesquisar e analisar o judasmo, em suas diferentes expresses. Quaisforam as motivaes para desenvolver essa linha de pesquisa?

Jacques Gutwirth: Quando descobri, a partir de 1961, os chassidim,que at ento tinham sido, para mim, terra incgnita embora eu topasse comeles diariamente nas ruas do bairro de diamantrios de Anvers tive a intuioque suas comunidades ultra-religiosas nessa cidade me dariam as chaves paracompreender a persistncia bimilenar do povo judeu no que se chama Disporaou Disperso. De fato, os chassidim que estudei na poca viviam uma existn-cia religiosa, social, cultural, e, tambm, um certo tipo de prtica econmica artesos-clivadores e metis ligados ao capitalismo comercial (sobretudo cor-retores de lotes de diamante) mas no estou seguro que minhas pesquisastrazem respostas acerca da persistncia do judasmo h dois mil anos, forjadacertamente sobre fundamentos bastante anlogos, como constataram muitosespecialistas, notadamente Max Weber (1970), Werner Sombart (1911),Abraham Lon (1968) e Walter Zenner (1980). Seja como for, creio ter apre-sentado uma pesquisa aprofundada sobre uma comunidade chassdica espec-fica que levava em conta sua vida religiosa, seu aspecto distintivo em suasnuanas vestimentas, barba, papelotes, etc., suas atividades econmicas, suasrelaes de parentesco, etc. Mostrei, tambm, que seu modo de vida e suareligiosidade, malgrado especificidades prprias do chassidismo, era herdeiradas tradies religiosas e de uma vida sociocultural pluriseculares, assegurandono plano histrico, mas tambm no presente, um mximo de identidade judia,enquanto que em outros setores da judaicidade, a assimilao e a identificaojudia esto hoje, pelo menos borradas.

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Contestaram-me de no abordar suficientemente a vida mstica e espiritu-al dos hassidim. Vrios especialistas (Scholem, Buber e alguns outros) o fize-ram, mas poucos deles evidenciaram sua vida quotidiana, nuanas e contradi-es nas comunidades, etc., o que fiz. Enfim, num trabalho recente, mais geral(Gutwirth, 2004, 2005a), mostrei como o movimento chassdico se desenvolveunos ltimos 60 anos, graas a diversos fatores, entre os quais sua presena nassociedades democrticas, condies econmicas favorveis e, tambm, umabenevolncia de instituies e meios judaicos, que compreenderam que ochassidismo, notadamente alguns dos seus setores, contriburam para a manuten-o da identidade judaica, objetivo preconizado por essas instituies e meios.

Ari Pedro Oro: Outro objeto de suas pesquisas nos Estados Unidos fo-ram os televangelistas, sobre os quais o senhor lanou um livro em 1998. Comoprocedeu metodologicamente para obter tal densidade etnogrfica, observadanesse belo livro?

Jacques Gutwirth: Etnlogo praticando a observao participante e en-trevistas informais, penso que esse tema guarda fidelidade a essas prticas;mas a etnologia tambm a bricolagem dos meios, em funo das possibilida-des de pesquisa e das fontes disponveis para atingir os fatos, a fim de dar boasdescries e anlises pertinentes, tanto quanto possveis. Com o televangelismoeu no desviava, alis, de um tema maior da etnologia, o estudo dos fatos reli-giosos. certo que, nesse caso, o contato entre os principais protagonistas e opblico ocorria, sobretudo, pela mediao de uma tela de televiso, a interaodos telespectadores em direo dos televangelistas sendo, nesse momento, lar-gamente tributrio do telefone. Mas como pesquisar etnologicamente sobre umtema to vasto? Nesse caso, a observao participante era realizada de formadiversa. De um lado, tratava-se de participar das reunies animadas pelospredicadores; assim, eu havia acompanhado uma campanha de encontros deBilly Graham em Paris, em 1986, e estive em cultos dominicais, fundamento desuas emisses televisivas de Robert Schuller na sua Crystal Cathedral, ummonumento arquitetnico modernista realizado pelo conhecido arquiteto PhilipJohnson, em Garden Grove, a cerca de 50 quilmetros de Los Angeles. Passeitambm algum tempo em Bton Rouge (Louisiana), com Jimmy Swaggart, onde,num vasto domnio que comportava uma universidade, ocorriam suas reunies,base de seus programas televisivos, ou, ainda, no campus de Christian BroadcastingNetwork, junto a Pat Robertson, em Virginia Beach, na Virginia, e, tambm, junto

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a alguns outros televangelistas menos conhecidos, como Paul Crouch, que dirigiasua rede de televiso religiosa, TBN (Trinity Broadcasting Network) situada en-to em Santa Ana, no Sul da Califrnia. Alm disso, eu me ocupava, mais oumenos longamente, com as pessoas do pblico e, em certas ocasies, com oscolaboradores prximos dos predicadores. Eu era, verdade, um observadordireto, mas, tambm, diante de um aparelho de televiso, observando os progra-mas dos televangelistas, e, por vezes, tambm junto a outros telespectadores.

Acercar-se e ouvir os televangelistas nos locais de gravaes das emissesera bastante til, porque eu os descobria tambm fora da cmera; e percebia,ento, inmeros detalhes reveladores. Alm disso, pode-se conhecer suas con-cepes e detalhes relativos a suas vidas, graas a situaes no retransmitidasem seus programas. As anedotas que eles contam, suas maneiras de se dirigir aseus colaboradores e ao pblico so, tambm, bastante reveladores de suas men-talidades e concepes. E, claro, tem suas publicaes, muitas delas cheias dedetalhes autobiogrficos. H, obviamente, entre eles, diferenas confessionais(mesmo que todos sejam protestantes), embora os mais clebres, fora Schuller,sejam fundamentalistas. H, tambm, nuanas em suas atitudes polticas, mas noconjunto eles esto mais prximos do Partido Republicano.

Pude tambm adquirir gravaes de vdeo e udio que permitiam reverprogramas j passados ou descobrir outros programas, entre eles alguns desapa-recidos na poca da pesquisa, notadamente os de Jim Bakker, implicado numavasta trapaa em relao ao seu pblico, que o conduziu priso. Certos progra-mas podiam ser vistos na Frana pelos satlites e hoje, graas Internet, desco-bre-se sem dificuldade quando e em que canais esses programas so veiculados.

Enfim, havia, de parte de certos jornalistas e de outros observadores, boasdescries das atividades dos televangelistas mais clebres ou, ainda, doenvolvimento de alguns deles com a justia e o fisco. E, por fim, h as autobio-grafias e as biografias, autorizadas ou no, dos televangelistas, especialmen-te as de Billy Graham, Jerry Falwell e Robert Schuller.

Em todo o caso, minha bricolagem, que possua o trunfo epistemolgicode permitir recortes entre informaes de fontes diversas, durou perto de dezanos e, de fato, creio ter recolhido materiais suficientes para dar uma certadensidade a meu livro.

De outro lado, num artigo bastante volumoso, para o qual dediquei pertode seis meses de trabalho, mostrei (Gutwirth, 1993) como certos televangelistas,particularmente Paul Crouch e, sobretudo, Pat Robertson, criaram ou adquiri-ram, a partir de suas emisses televisuais, estaes de rdio e de televiso que,

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com o tempo, tornaram-se vastas empresas, negcios audiovisuais, que enri-queceram consideravelmente seus fundadores, principalmente Pat Robertson.Suspeita-se que a teologia e as perspectivas polticas desses televangelistas-ho-mens de negcio sejam bastante influenciadas pelos seus interesses econmicos!

Em todo o caso, com o televangelismo eu me encontrava, em mltiplosnveis, no corao da modernidade mais marcante dos Estados Unidos, emboraa hora da Internet, hoje largamente utilizada por varios pregadores, ainda notivesse chegado.

Ari Pedro Oro: Mesmo aposentado, sabemos que mantm seu interessepela pesquisa. Que projetos desenvolve nos dias atuais?

Jacques Gutwirth: Amo realizar pesquisas etnolgicas de campo. Mas,a idade tendo chegado, a pesquisa participante torna-se uma tarefa bastantecomplexa, muito rdua; para uma conversa ou entrevista h mltiplos parmetrosque necessitam de uma grande concentrao: ser diplomata, ouvir, gravar, deuma maneira ou outra, os dizeres do interlocutor, retrucar para colocar ques-tes ou comentrios que suscitam sua fala, prestar ateno s mmicas doobservado. Nem falemos das longas horas passadas nos cultos religiosos, etc.De sorte que encontrei outros campos mais cmodos, de carter histrico,campos onde fui eu mesmo ator participante. Assim, escrevi um artigo (Gutwirth,2001b) sobre a histria do Centro de Formao para as Pesquisas Etnolgicas(CFRE), criado por Leroi-Gourhan no Museu do Homem, onde fui estagirio,mas tambm monitor e professor. Mostrei que o CFRE, que durou 27 anos, de1946 a 1969, contribuiu de maneira notvel para a formao de uma grandeparte dos melhores etnlogos da Frana da segunda metade do sculo XX.Quis tambm mostrar que Leroi-Gourhan, pouco apreciado por certos estrutu-ralistas mas Lvi Strauss havia declarado ter uma grande estima para ele(Lvi-Strauss, 1988) foi um elemento dinmico para o desenvolvimento daetnologia na Frana. Escrevi, igualmente, um artigo sobre Roger Bastide en-quanto professor de etnologia em Paris, de sua nomeao Sorbonne, em1958, at a sua aposentadoria, em 1968 (Gutwirth, 2005b). Aqui tambm soutestemunha porque tive Bastide como professor em dois diplomas universitri-os, o de Etnologia e o de Histria das Religies; enfim, estive ao seu lado noCFRE como aluno e como monitor. Tratava-se de mostrar, nas suas nuanas, opapel importante de Bastide para o dinamismo da etnologia na Frana. Leroi-Gourhan e ele haviam, durante esses dez anos, montado, conjuntamente, um

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registro de etnologia bastante completo e coerente. Digamos, para ser breve,da tecnologia etnologia religiosa, o que contribura para uma forte expansoda disciplina durante esse perodo. Enfim, recentemente escrevi um artigo (ain-da no publicado) sobre a histria da antropologia urbana na Frana, de seusincios em torno de 1960 at hoje. Ali mostro, notadamente, que a antropologiaurbana francesa no resultou dos trabalhos da Escola de Chicago. ColettePtonnet e eu mesmo simplesmente adaptamos os ensinamentos de nossosmestres Roger Bastide e Andr Leroi-Gourhan, e, como disse, com seusencorajamentos, a temas urbanos. Grard Althabe, tambm ele um fundadorda subdisciplina, em sua prtica de pesquisa igualmente ignorou essa escola.Outra constatao: alguns consideraram que a antropologia urbana era somen-te uma etapa da antropologia do prximo, isto , do mundo urbano ocidental(Abls; Rogers, 1992). Entretanto, a antropologia urbana desenvolveu-se, pri-meiramente, no distante, nos pases que pertenciam ento ao Terceiro Mun-do, ndia, frica, e tambm Brasil. Ver, sobre esse tema, por exemplo, os livrosde Gutkind (1974) e Basham (1978), sem esquecer os trabalhos mais antigosdo Rhodes Livingstone Institute, na Zmbia (por exemplo, Epstein 1958). Mes-mo na Frana, alguns trabalhos isolados realizados no meio urbano desde osanos 1950 (Balandier, 1955, 1985) foram efetuados principalmente na frica.A antropologia urbana continua hoje alegremente a sua obra. Citemos somenteum livro notvel, mesmo que no se trate de uma obra de antropologia urbanapropriamente dita: Les No-indiens. Une Religion du III Millnaire, de JacquesGalinier e Antoinette Molini (2006), uma obra consagrada nova religiosidadesincrtica dos ndios peruanos e mexicanos, essencialmente do meio urbano.

Alm disso, a abertura recente do museu Museu do Cais Branly, ou dasArts Premiers onde o interesse pelas obras de arte prima largamente o deum olhar etnolgico, que abraa o conjunto dos elementos materiais, da maissimples colher s mscaras mais sofisticadas que constituem as culturas mate-riais das sociedades includas as nossas (um dia as caarolas com presso,as velhas mquinas de escrever e de calcular, os walkman, os iPod e muitosoutros elementos figuraro, se j no o caso, nos museus de cultura e decivilizao), conduziu-me a uma reflexo sobre esse problema. Existe h, cer-tamente, 30 anos, se no mais, um divrcio entre a temtica etnolgica domi-nante, influenciada pelo estruturalismo, consagrado ao parentesco, simblica,etc., e, de outra parte, uma magra ateno s tcnicas, vida material, baseda vida dos homens. Por isso, com a colaborao de Bernard Dupaigne, doMuseu do Homem, organizo, em novembro de 2007, um ateli mesa-redonda

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sobre Museus de Etnologia e Prtica da Etnologia. Os debates desse atelidevero alimentar discusses sobre as instituies etnolgicas, por ocasio desesses plenrias da etnologia e da antropologia que acontecero em Paris,algumas semanas mais tarde.

Ari Pedro Oro: Durante anos o senhor foi o coordenador francs doacordo Capes-Cofecub realizado entre o PPGAS/UFRGS e a UniversidadeParis IV. Como analisa hoje essa experincia?

Jacques Gutwirth: De 1985 a 1992, foi uma experincia positiva emtodos os sentidos, como j disse em Memria da Antropologia no Sul doBrasil (Gutwirth, 2006). Para mim, pessoalmente, ela me permitiu reatar ma-ravilhosamente com minha segunda ptria, o Brasil, criar laos de amizadedurveis com os colegas do Departamento de Antropologia da UFRGS e seusfamiliares. Recordarei aqui somente uma outra constatao importante: essacooperao foi intelectualmente a de iguais, e ela foi proveitosa tanto para osparticipantes franceses quanto brasileiros.

Traduzido do francs por Ari Pedro Oro.

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