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Revista Lusófona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 1, n.1, pp. 262-285, 2013 262 ENCANTARIA MARANHENSE DE DOM SEBASTIÃO Sergio F. Ferretti Universidade Federal do Maranhão, Brasil Resumo: Nas noites de lua, nas areias da Ilha dos Lençóis no Maranhão, Dom Sebastião aparece como touro encantado, e alguns conseguem ver seus tesouros nas dunas. A família de Dom Sebastião, com filhos, nobres de sua corte, cavaleiros, vaqueiros e soldados, é constituída de seres encantados que são recebidos em transe nos rituais de cura e de tambor de mina. O touro de Dom Sebastião constitui uma das vertentes formadoras do festival do bumba-meu-boi e de outras manifestações populares no Maranhão. Através de observações no batizado do boizinho de Dom Sebastião, num ritual de cura, procuramos compreender elementos do sebastianismo maranhense, analisando a presença do sincretismo e do hibridismo como forma de compreensão da religião e da cultura. Palavras-chave: Sincretismo; Hibridismo; Sebastianismo; Pajelança; Mito; Ritual 1. O Sebastianismo no Maranhão A crença num rei encantado que virá salvar o seu povo existe em muitas regiões, podendo ser considerada uma das manifestações do messianismo, ou do mito da espera de um messias ou salvador. O sebastianismo inclui-se entre essas crenças (Hermann: 1998). No Brasil, o sebastianismo foi trazido pelos portugueses, sendo registrado em várias épocas e locais, relacionando-se principalmente ao culto a El Rei Dom Sebastião, que não teria morrido na guerra contra os mouros no Marrocos, mas teria se "encantado" 1 . O sebastianismo possui manifestações e peculiaridades em diferentes regiões do Brasil. Uma de suas fontes de difusão foram os jesuítas. Waldemar Valente (1963, p. 61) comenta que em 1656, ao falecer D. João IV, o padre Antônio Vieira pregou na matriz do Maranhão, que D. João estava morto, mas haveria de ressuscitar. Diz que este sermão se perdeu como alguns outros feitos de improviso, mas suas idéias permaneceram, sendo responsável, inclusive, por Vieira ter sido processado pelo Tribunal do Santo Ofício por ter defendido as profecias de Bandarra, ter pregado a volta 1 A respeito da categoria encantado, veja-se Maués (1977, p. 40-41): "Há certo número de pessoas que não morrem e, ao invés disso, se tornam encantados. Dizem que essas pessoas são levadas, muitas vezes ainda crianças, para o encante (local de morada dos encantados), por certos encantados que se agradam delas, como as Mães d´Água. Assim, se uma criança desaparece num rio e seu corpo não for mais encontrado, dir-se-á que aquela criança foi para o encante." Ainda em relação ao termo encantado no tambor de mina e nos salões de curadores do Maranhão, Mundicarmo Ferretti informa: "Refere-se a uma categoria de seres espirituais recebidos em transe mediúnico, que não podem ser observados diretamente ou que se acredita poderem ser vistos, ouvidos ou sentidos em sonho, ou por pessoas dotadas de vidência, mediunidade ou de percepção extra-sensorial." (Ferretti, M, 2000-b, p. 15).

Encantaria Maranhense Ferretti

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    ENCANTARIA MARANHENSE DE DOM SEBASTIO

    Sergio F. Ferretti

    Universidade Federal do Maranho, Brasil

    Resumo: Nas noites de lua, nas areias da Ilha dos Lenis no Maranho, Dom Sebastio aparece como

    touro encantado, e alguns conseguem ver seus tesouros nas dunas. A famlia de Dom Sebastio, com filhos,

    nobres de sua corte, cavaleiros, vaqueiros e soldados, constituda de seres encantados que so recebidos

    em transe nos rituais de cura e de tambor de mina. O touro de Dom Sebastio constitui uma das vertentes

    formadoras do festival do bumba-meu-boi e de outras manifestaes populares no Maranho. Atravs de

    observaes no batizado do boizinho de Dom Sebastio, num ritual de cura, procuramos compreender

    elementos do sebastianismo maranhense, analisando a presena do sincretismo e do hibridismo como

    forma de compreenso da religio e da cultura.

    Palavras-chave: Sincretismo; Hibridismo; Sebastianismo; Pajelana; Mito; Ritual

    1. O Sebastianismo no Maranho

    A crena num rei encantado que vir salvar o seu povo existe em muitas regies,

    podendo ser considerada uma das manifestaes do messianismo, ou do mito da espera

    de um messias ou salvador. O sebastianismo inclui-se entre essas crenas (Hermann:

    1998). No Brasil, o sebastianismo foi trazido pelos portugueses, sendo registrado em

    vrias pocas e locais, relacionando-se principalmente ao culto a El Rei Dom Sebastio,

    que no teria morrido na guerra contra os mouros no Marrocos, mas teria se

    "encantado"1.

    O sebastianismo possui manifestaes e peculiaridades em diferentes regies do Brasil.

    Uma de suas fontes de difuso foram os jesutas. Waldemar Valente (1963, p. 61)

    comenta que em 1656, ao falecer D. Joo IV, o padre Antnio Vieira pregou na matriz

    do Maranho, que D. Joo estava morto, mas haveria de ressuscitar. Diz que este

    sermo se perdeu como alguns outros feitos de improviso, mas suas idias

    permaneceram, sendo responsvel, inclusive, por Vieira ter sido processado pelo

    Tribunal do Santo Ofcio por ter defendido as profecias de Bandarra, ter pregado a volta

    1 A respeito da categoria encantado, veja-se Maus (1977, p. 40-41): "H certo nmero de pessoas que no morrem e, ao invs disso, se tornam encantados. Dizem que essas pessoas so levadas, muitas vezes ainda crianas, para o encante (local de morada dos encantados), por certos encantados que se agradam delas, como as Mes dgua. Assim, se uma criana desaparece num rio e seu corpo no for mais encontrado, dir-se- que aquela criana foi para o encante." Ainda em relao ao termo encantado no tambor de mina e nos sales de curadores do Maranho, Mundicarmo Ferretti informa: "Refere-se a uma categoria de seres espirituais recebidos em transe medinico, que no podem ser observados diretamente ou que se acredita poderem ser vistos, ouvidos ou sentidos em sonho, ou por pessoas dotadas de vidncia, mediunidade ou de percepo extra-sensorial." (Ferretti, M, 2000-b, p. 15).

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    de D. Joo IV e previsto o advento do Quinto Imprio. O Padre Antnio Vieira, que

    viveu durante vrios anos no Maranho, foi condenado pela Inquisio em 1667, mas,

    em 1675, foi absolvido pelo Papa.

    Localizado entre a Regio Amaznica e o Nordeste do pas, o Estado do Maranho por

    muito tempo permaneceu isolado do restante do Brasil e, no perodo colonial,

    constituiu por mais de uma vez uma provncia separada do restante do pas. Este

    isolamento fez com que nele se desenvolvessem caractersticas culturais especficas e

    diferentes de outras reas. A regio recebeu fortes influncias amerndias, europias e

    africanas.

    A presena indgena sempre foi grande dado o contingente populacional amerndio e,

    at meados do sculo XVIII, lnguas indgenas eram amplamente utilizadas, mesmo na

    capital. O europeu chegou, em incios do sculo XVII e procurou expandir a lavoura,

    principalmente da cana de acar e do algodo. A catequese dos indgenas se efetuou

    atravs diversos empreendimentos missionrios catlicos. Grande nmero de escravos

    foi trazido da frica, sobretudo a partir de meados do sculo XVIII com a criao da

    Companhia de Comrcio do Gro Par e do Maranho, organizada pelo Marques de

    Pombal. Pombal expulsou os jesutas, fortaleceu as tradies e a lngua portuguesa,

    incrementou a importao de escravos e ampliou a urbanizao com a construo de

    grandes edificaes.

    No litoral do Maranho, h regies com dunas de areias denominadas de lenis,

    dentre elas, a Ilha dos Lenis, no municpio do Cururupu no litoral Norte, considerada

    como uma ilha encantada que serve de moradia ou de encantaria a Dom Sebastio e sua

    corte (Braga, 2001; Pereira: 2000; Andrade: 2002). As areias dos Lenis lembrariam a

    regio da frica em que o rei teria desaparecido. No vizinho Estado do Par, h

    tambm regies conhecidas como morada ou encantaria de Dom Sebastio (Maus,

    1977; Vergolino-Henry, 2004; Luca, 2010). Existe na Ilha dos Lenis uma comunidade

    de albinos que so denominados de filhos do Rei Sebastio. O culto ao Rei Sebastio no

    Maranho e no Par, conforme Taissa Luca (2010, p. 112):

    esvaziou a conotao messinica da crena no "Encoberto". Nenhum mineiro

    espera o retorno do rei, simplesmente porque nenhum culto afro-brasileiro possui

    caracterstica salvacionista. Nessa religio de integrao, o sagrado imanente se faz

    presente cotidianamente em meio a experincia exttica. O retorno do rei acontece

    a cada festa pblica, sempre que um filho-de-santo recebe esta entidade.

    A presena do sebastianismo no Maranho e no Par pode ser estudada como um caso

    de hibridismo cultural ou de sincretismo religioso como comentamos adiante,

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    englobando elementos culturais portugueses com tradies culturais e religiosas de

    origens amerndias e afro-brasileiras. Denominando as crenas sebsticas maranhenses

    de "sincretismo afro-caboclo" e considerando-as fruto do hibrismo, Jacqueline

    Hermann (2008, p. 40) afirma:

    Minha pesquisa sobre os sebastianismos luso-brasileiros encontrou no caso

    maranhense, diversas inovaes e especificidades que, de forma clara, agrega

    elementos da religiosidade africana e amerndia, conformando, talvez, a verso

    mais genuinamente "brasileira" da crena sebastianista, na medida em que parece

    fundir e reelaborar aspectos importantes das trs matrizes "originais" de nossa

    formao cultural.

    "Rei, Rei, Dom Sebastio, quem desencantar Lenis bota abaixo o Maranho" o

    refro de uma conhecida toada repetida nos cnticos dos terreiros em homenagem a

    Dom Sebastio, prevendo uma catstrofe com o desaparecimento do reino deste mundo

    que seria transformado no reino do outro mundo, como ocorre em muitos mitos de

    inverso. O mito da vinda de Dom Sebastio e os ritos relacionados com sua presena

    atual em So Lus constituem exemplo interessante do imaginrio de mitos de origem

    "que procuram forjar uma identidade prpria no tempo e no espao sagrado"

    (BAPTISTA, 2010). Vamos apresentar informaes sobre esse mito a partir de da

    descrio de um ritual religioso da cultura popular maranhense.

    2. Religies Afro-maranhenses

    Na cultura popular afro-maranhense, que se difunde tambm pela Amaznia, h duas

    manifestaes religiosas especficas, o Tambor de Mina e a Cura ou Pajelana, alm da

    Umbanda e do Candombl que foram trazidos de outras regies do pas.

    O Tambor de Mina mais encontrado na capital e se caracteriza pelo predomnio de

    entidades africanas, voduns e orixs e a incluso de caboclos. Estes, na maioria, no so

    de origem amerndia. Muitos so nobres europeus que se encantaram na mina ou so

    entidades brasileiras. O nome Tambor de Mina deriva da importncia do tambor entre

    os instrumentos musicais e do forte de So Jorge da Mina, na atual Repblica do Gana,

    por onde foram importados muitos escravos africanos.

    O Tambor de Mina tambm conhecido como Linha da gua Salgada, significando que

    suas entidades vieram do outro lado do oceano. Possui caractersticas semelhantes s

    demais religies afro-brasileiras como o Candombl da Bahia, mas tem especificidades

    locais que o diferenciam. Como as demais religies afro-brasileiras, o Tambor de Mina

    conserva elementos e caractersticas africanas, sendo, porm, uma religio afro-

    brasileira que se distingue das religies africanas originais. O Tambor de Mina

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    participado predominantemente por mulheres Nas casas mais antigas e tradicionais, a

    liderana sempre feminina e, em algumas, s mulheres podem receber e danar com

    as entidades. Atualmente h muitos terreiros dirigidos e com a participao de homens,

    embora com predomnio do nmero de mulheres.

    A outra vertente ou manifestao religiosa difundida, sobretudo, nas regies da Baixada

    e do Litoral Maranhense, a Cura ou Pajelana2 , denominada Linha de gua Doce,

    significando que as entidades cultuadas so brasileiras em sua maioria. A pajelana

    recebe influncia das religies amerndias, mas apresenta elementos africanos e

    europeus. Encontra-se tambm na regio Amaznica e tem semelhanas com o culto da

    Jurema do Nordeste (ASSUNO, 1999).

    H muitas diferenas entre o Tambor de Mina e a Pajelana. Na Mina, vrias pessoas

    entram em transe ao mesmo tampo e danam em roda. Diversas pessoas recebem sua

    entidade e permanecem em transe com ela durante quase todo ritual. Na Cura, o transe

    costuma ocorrer em uma pessoa que recebe sucessivamente diferentes entidades.

    Oferecem a ela duas ou trs saudaes e a entidade se retira, sendo substituda por

    outra. Ao longo da noite, o paj ou a pajoa pode receber cerca de uma centena de

    entidades que ficam pouco tempo. O paj segura um marac, um penacho de arara,

    amarrando os braos e a cintura com fitas. As entidades se agrupam em linhas e so

    considerados como encantados em pssaros, peixes, rpteis e outros animais, ou em

    prncipes, princesas e caboclos. Os instrumentos musicais da mina so dois ou trs

    tambores acompanhados de cabaas. Na cura, usam-se principalmente pandeiros e

    palmas, podendo tambm haver acompanhamento com tambores.

    Em So Lus, muitos terreiros, paralelamente aos rituais de mina, organizam uma ou

    duas vezes ao ano um brinquedo de cura para saudar as entidades da pajelana.

    Algumas vezes, na pajelana, uma entidade realiza rituais de cura para clientes,

    extraindo magicamente um objeto do seu corpo e dando conselhos ou ensinando

    remdios. No interior, este ritual mais frequente.

    As casas de Mina mais antigas que se continuam no Maranho foram fundadas por

    africanos em meados do sculo XIX, sendo uma de origem daomeana ou jeje, a Casa

    das Minas e outra de origem yorubana ou nag, a Casa de Nag. Na casa Jeje, os

    voduns se agrupam em famlias e este modelo se difundiu no Tambor de Mina, onde as

    demais entidades cultuadas tambm costumam se agrupar em famlias. As entidades

    2 O ritual de cura ou pajelana tambm chamado de brinquedo ou brincadeira de cura,

    expresso usada desde pelo menos o final do sc. XIX para encobrir prticas religiosas sob o manto de diverses profanas (Ferretti, M. 2000-a; Pacheco, G. 2004)

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    sobrenaturais no Maranho e na Amaznia so tambm denominadas de encantados,

    pois vivem num mundo ou reino especial, a encantaria.

    Uma das famlias de entidades mais importantes e conhecidas no Tambor de Mina a

    famlia do Rei da Turquia. Segundo Mundicarmo Ferretti (2000, p.129):

    O Rei da Turquia surgiu como entidade espiritual no Tambor de Mina em So Lus,

    na casa do pai-de-santo conhecido por Manuel Teu Santo (que acredita-se ter

    nascido na frica e que teria falecido no final do sculo XIX). Surgiu numa casa

    que parece ter sido mais ligada ao Terreiro do Egito [...] Seu Turquia foi recebido

    ali por Anastcia Lcia dos Santos, filha de negros de uma fazenda de algodo de

    Cod (MA) e que viera, h pouco tempo, para a capital. Esta por volta de 1889 abriu

    em So Lus o terreiro que foi o "bero" da linhagem dos turcos no Tambor de Mina

    e que ficou conhecido por Terreiro da Turquia.

    Mundicarmo Ferretti (1989) publicou diversos trabalhos sobre a famlia da Turquia no

    Tambor de Mina, tendo constatado que a fonte de informao na gnese desta famlia foi o

    romance "A Histria do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de Frana". Este livro

    foi muito difundido no Brasil no sculo XIX e teve larga divulgao na literatura de cordel.

    As lutas de Turcos e Mouros, as Cheganas e Marujadas tambm foram manifestaes

    culturais importantes no Nordeste e divulgaram informaes sobre lutas entre mouros e

    cristos. Mundicarmo Ferretti (1989) constatou que alguns personagens das Histrias de

    Carlos Magno se encontram na famlia do Rei da Turquia no Tambor de Mina, entre os

    quais, Ferrabrs (O Rei da Turquia), Guerreiro de Alexandria, Princesa Dora, Princesa

    Flora, Floripes. A maioria dos filhos desta famlia possui nome indgena ou de outras

    origens3.

    Vemos, assim, que o imaginrio religioso afro-maranhense influenciado por tradies

    procedentes de vrias regies, inclusive da Europa. Outra famlia importante de

    encantados presente no Tambor de Mina e na Pajelana a famlia de Dom Sebastio. Nos

    ltimos anos, a mitologia das religies afro-brasileiras e amerndias no Maranho tem sido

    relativamente mais estudada, embora ainda haja muito a ser conhecido.

    Na religiosidade popular maranhense, a festa de So Sebastio, no dia 20 de Janeiro, uma

    das mais importantes, sendo comemorada em quase todos os terreiros. Muitos deles

    oferecem um banquete aos cachorros para So Lzaro (Ferretti, S. 2001). Nesta festa, so

    comemorados, sobretudo os voduns da famlia de Odam ou de Acossi- Sakpat entre os jeje

    3 Mundicarmo Ferretti (2000, p. 318 - 319) relaciona diversas entidades desta famlia entre as quais Aquilital, Burlante, Caboclo Nobre, Menino Dalera, Guajajara, Iracema, Ita, Jaguarema, Japetequara, Jarina, Jariodama, Juracema, Jureminha, Maresia, Mariana, Paraense, Itabajara, Tapindar, Ubirajara.

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    e da famlia de Lgo Shapan entre os nag, tambm conhecido como Sebastio na Casa de

    Nag e em outros terreiros. A tradio do culto a Dom Sebastio, relacionada com o mito

    do sebastianismo, se constitui uma das fontes do imaginrio religioso e da cultura popular

    local. O culto famlia de Dom Sebastio est presente no Tambor de Mina e nos rituais de

    Cura ou Pajelana, englobando entidades consideradas nobres ou gentis4.

    Jos Reginaldo Prandi e Patrcia Souza apresentam muitas informaes sobre a famlia de

    Dom Sebastio, tambm conhecida como Famlia do Lenol, coletadas no terreiro de

    Tambor de Mina em So Paulo, do falecido pai-de-santo Francelino de Xapan. Prandi e

    Souza (2001, p. 220-234) informam que o chefe da famlia, Dom Sebastio se encantou no

    Maranho na Praia dos Lenis, homenageado no dia de So Sebastio junto com os

    voduns Xapan e Acossi Sakpat e sua cor predominante o vermelho. Informam tambm

    que Dom Sebastio passa de sete em sete anos na casa de Francelino e vem muito velho,

    mas demonstrando grande alegria. Segundo Prandi e Souza, trata-se de uma famlia de reis

    e fidalgos, denominados gentis5

    Em alguns terreiros, o Rei Sebastio se incorpora nos devotos na forma de um touro,

    chamado de boi Turino e a pessoa que o recebe dana ajoelhada, com as mos ciscando o

    cho e bufando como um touro. Geralmente este transe dura pouco tempo, como vimos em

    So Lus, no terreiro de Margarida Motta e na cura de dona Raimundinha, que

    comentaremos adiante. No terreiro de Santa Luzia, de dona Benedita, no Bairro da Aurora,

    assistimos a uma visita do grupo de Bumba-meu-boi Boizinho Incantado, que possui

    muitas msicas relacionadas a Dom Sebastio. Uma das entidades da famlia de Dom

    Sebastio nesta casa a princesa Jandira. Em geral, os participantes do Tambor de Mina e

    da Pajelana fazem certo mistrio e no costumam falar sobre suas entidades, sobretudo as

    relacionadas com a famlia do Rei Sebastio.

    Mundicarmo Ferretti (2004, p. 204) constata que no processo contra a paj Amlia Rosa,

    ocorrido em So Lus no sculo XIX, entre 1877-78, havia pessoas ligadas a seu grupo de

    culto que recebiam So Lzaro e Rei Sebastio, demonstrando a presena desta tradio

    em So Lus pelo menos desde a dcada de 1870. Rei Sebastio tambm cultuado no

    vizinho Estado do Par e vem em diversos devotos da Mina (Maus e Vilacorta, (2008),

    4 Em So Lus, este culto inclui entre outras entidades a princesa In, a princesa Jandira,

    Sebastiozinho, Dom Sebastio, seus vaqueiros e outras. 5 Prandi e Souza incluem entre os reis e rainhas desta famlia, alm d o Rei Sebastio, Dom Luiz,

    rei de Frana, Dom Manoel, Dom Jos Floriano, Dom Joo Rei das Minas, Dom Joo Soeira, Dom Henrique, Dom Carlos, Rainha Brbara Soeira, Rainha Dina, Rainha Rosa, Rainha Madalena. Entre prncipes e princesas: Prncipe Orias, Prncipe de Oliveira, Prncipe Alteredo, Ti Zezinho, Boo Lauro, Tia Jarina, Princesa Flora, Princesa Luzia, Princesa Oruana, Princesa Clara, Dona Maria Antnio, Moa Fina. Entre os nobres inclui: Duque Marques de Pombal, Ricardino Rei do Mar, Baro de Guar, Baro de Anapoli.

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    Vergolino-Henry (2004).

    3. Religio e festas da cultura popular no Maranho

    Muitos terreiros de Tambor de Mina e de Umbanda do Maranho costumam realizar

    festas da cultura popular oferecidas em homenagem a encantados que as apreciam e

    solicitam. Assim comum a realizao nos terreiros da Festa do Divino Esprito Santo,

    do Tambor de Crioula, do Bumba-meu-boi e outras. Geralmente, no dia em que

    determinada entidade cultuada, a ela oferecida uma ou vrias destas festas. Os

    membros dos grupos de afro-religiosos pertencem mesma classe dos participantes

    das manifestaes da cultura popular. Assim, religio e cultura popular encontram-se

    muito prximas, uma contribuindo e apoiando o desenvolvimento da outra.

    No Maranho, a Festa do Divino realizada principalmente nos grupos de culto afro-

    brasileiros de Tambor de Mina. Quase todos os terreiros de Mina organizam uma vez ao

    ano esta festa oferecida a uma entidade devota do Divino que solicita a festa em sua

    homenagem. Como muito dispendiosa, geralmente organizada na poca da

    principal festa do terreiro. Alguns terreiros a realizam no perodo de Pentecostes da

    Igreja Catlica. Outros a organizam ao longo do ano, sendo oferecida entidade na data

    de determinado santo do calendrio catlico como Senhora SantAna, So Lus, So

    Raimundo, N. Sra. da Conceio, etc. Nos terreiros, geralmente a Festa do Divino dura

    de uma a duas semanas e se continua com a realizao de festas religiosas com toques

    para as entidades cultuadas.

    Um dos elementos caractersticos dessa Festa no Maranho a presena de mulheres

    que tocam caixas ou caixeiras, que entoam cnticos conhecidos de cor ou feitos de

    improviso durante o ritual. As caixeiras se apresentam em nmero variado e so quase

    que exclusivamente mulheres. So lideradas pela caixeira rgia e pela caixeira mor, que

    conhecem todos os cnticos e elementos rituais. Em alguns momentos, elas executam

    uma dana, acompanhadas por bandeireiras, meninas que seguram bandeiras e

    danam diante do imprio ou do mastro. Acompanham o imprio durante os

    deslocamentos, visitas ou procisses e tocam por devoo, recebendo pequenas ajudas

    para deslocamentos. Devem ser cuidadosas para que no ocorram erros durante o

    ritual que pode significa um mau pressgio.

    Nas Festas do Divino Esprito Santo, comemoradas na cultura popular maranhense, a

    nosso ver, podem ser encontradas algumas conotaes messinicas e milenaristas.

    Trata-se de uma festa que apresenta elementos de fartura, de luxo, de um imprio que

    mitiga a pobreza e a fome. Os nobres devem distribuir alimentos a todos e dar as sobras

    aos mais necessitados. Arrecadam-se recursos entre os amigos e faz-se um grande

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    esforo para que a festa seja cada vez mais bonita e abundante. No deve ocorrer

    nenhum erro durante os rituais, o que costuma ser visto como pressgio de coisa ruim,

    ou da morte de pessoa importante entre os organizadores. A bandeira do mastro no

    pode ficar em posio errada; o mastro quando carregado e smbolos como a pomba, a

    coroa, o cetro tambm no podem cair. As mulheres que tocam as caixas devem cuidar

    para que todas as coisas sejam feitas sem erro, a fim de que no ocorram coisas ruins.

    Outra manifestao da cultura popular maranhense o Tambor de Crioula. Trata-se de

    uma dana folclrica de divertimento e uma forma de pagamento de promessa a So

    Benedito, a outros santos como aos Pretos Velhos e a outras entidades caboclas ou

    africanas cultuadas. Algumas casas de Mina possuem grupos de Tambor de Crioula e

    muitos grupos se apresentam regularmente em terreiros para agradar entidades que

    apreciam esta manifestao. Em 2006, o Tambor de Crioula foi includo no registro do

    Patrimnio Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico

    Nacional. Em So Lus, existem atualmente cerca de 80 grupos de Tambor de Crioula

    que, ao longo do ano, fazem apresentaes folclricas para turistas e realizam festas

    como forma de pagamento de promessa, muitas vezes em terreiro de Tambor de Mina.

    A dana feita em roda pelas mulheres que do entre si uma umbigada enquanto os

    homens tocam tambores e entoam cnticos conhecidos ou de improvisos.

    No folclore maranhense, o bumba-meu-boi constitui manifestao popular que atrai

    grande nmero de participantes. O boi no Maranho brincado, sobretudo no ms de

    junho em homenagem a So Joo, e o ciclo das festas se estende de abril a outubro. H

    mais de trezentos grupos de bumba-meu-boi organizados em So Lues, reunindo uma

    centena ou mais participantes. Os bois se subdividem em sotaques que se relacionam

    com os instrumentos, o vesturio e tipos de danas. Os sotaques mais conhecidos so os

    de matraca, de zabumba e de orquestra.

    Muitos grupos de boi se apresentam em terreiros de Umbanda e de Tambor de Mina.

    Diversos terreiros oferecem uma festa com bumba-meu-boi para entidades que

    apreciam esta manifestao e alguns possuem seu prprio boi. comum nos terreiros

    haver festa para o batizado e para a morte do boi oferecido entidade, que so

    denominados de boi de encantado. Diversos bois so organizados nos terreiros em

    homenagem a Dom Sebastio, como o Boizinho Incantado6.

    Assim no Maranho a estria de Dom Sebastio est relacionada, com os rituais e festas

    dos grupos de culto afro-religiosos de tambor de mina e de cura ou pajelana bem como 6 O Boisinho Incantado considerado um boi alternativo, com mltiplos estilos ou sotaques, utilizando pandeires, zabumba, instrumentos de corda, guitarra eltrica, gaita, etc. Possui msicas gravadas, inclusive uma que fala de Dom Sebastio no terreiro de dona Benedita.

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    com festas da cultura popular em grupos de bumba-meu-boi. As festas de boi nos

    terreiros de Mina costumam ser oferecidas a entidades diversas7 Em algumas casas, a

    festa do boi se continua com toques nos terreiros.

    4. Lendas do Sebastianismo no Maranho

    A Ilha dos Lenis no Municpio de Cururupu, no litoral norte do Maranho,

    considerada como local em que o Rei Dom Sebastio encontra-se encantado. Pessoas

    que a visitam, sobretudo os que possuem dons medinicos, umbandistas, mineiros

    curadores ou pajs, contam terem visto o rei encantado num touro e muitos dizem ter

    tido viso dos tesouros de Dom Sebastio. Dizem que Dom Sebastio costuma aparecer

    principalmente em junho, durante as festas do bumba-meu-boi, em agosto, poca do

    aniversrio da batalha de Alccer-Quibir, ou em janeiro, na festa de So Sebastio.

    Dizem tambm que, atualmente, o Rei j no est mais aparecendo porque a praia dos

    Lenis est sendo muito visitada e j possui muito morador (PEREIRA, 2000, p. 94).

    Esta no vinda reflete o pessimismo, ou idias de desastre, do imaginrio popular, de

    que, no passado, os tempos eram melhores e o presente degrada ou polui o ambiente.

    Essa crena, difundida em muitos mitos, parece estar de acordo com previses de

    ambientalistas, segundo as quais, o desmatamento e a destruio dos manguezais tm

    provocando alteraes no planeta. Os antigos dizem que era comum acharem jias na

    praia8 e por isso os visitantes so proibidos de levar qualquer coisa da Ilha. Os

    pescadores acreditam que, se algum sair levando conchas e lembranas, a embarcao

    no pode seguir viagem, pois tudo l pertence ao tesouro do rei. Se insistirem, a

    embarcao pode afundar.

    No Maranho, circulam vrias narrativas relacionadas a este mito como a do Navio

    encantado de Dom Sebastio, que visto pelos viajantes no local conhecido como

    Boqueiro, no Golfo Maranhense. H tambm a lenda do Navio encantado de Dom

    Joo, que era visto pelos frequentadores do antigo Terreiro do Egito no local prximo

    ao porto do Itaqui em So Lus. H o mito da Princesa In, filha do Rei Sebastio, que

    ficou revoltada quando seu palcio, no fundo do mar, foi perturbado pela construo do

    Porto do Itaqui (LIMA NETO, 2005).

    7 Como Seu Lgua, Seu Preto Velho, Seu Corre Beirada, Seu Beberro, Seu Surrupirinha, Seu Tombass, Seu Zezinho, Joozinho de Lgua, Luizinho, filho de Dom Lus, Rei Sebastio, Seu Lealdino vaqueiro de Dom Sebastio e outros. 8 Ver Ferretti, M. 2000-b, p. 77 e Pereira, 2000.

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    Durante a construo do porto do Itaqui9, em So Lus, aconteceram diversos acidentes

    graves e alguns escafandristas morreram. Pais-de-santo, liderados pelos falecidos Jorge

    de Itacy e Sebastio do Coroado, divulgaram a notcia que o porto era o local da

    encantaria da princesa Ina, ou In, filha do rei Dom Sebastio e que a princesa estava

    revoltada, pois seu palcio, no fundo do mar, fora perturbado pelas obras e por isso

    escafandristas estavam morrendo. Para acalmar a ira da princesa, aqueles religiosos

    prometeram oferecer sacrifcios e organizar uma grande festa, reunindo representantes

    de diversos terreiros na praia Boqueiro, prximo ao local. Foi o que ocorreu em 1970,

    com ampla divulgao pela mdia e apoio de autoridades municipais, como tivemos

    oportunidade de assistir na poca. Depois disso no ocorreram mais acidentes na

    construo do porto. Alguns pais-de-santo, entretanto, dizem que, de tempos em

    tempos, as oferendas precisam ser renovadas para evitar futuros problemas no porto.

    Estes incidentes e o mito relacionado princesa In, lembram a lenda do

    emparedado, ilustrada na Albnia por Ismail Kadar (1999), segundo a qual uma obra

    construda durante o dia era demolida noite, at que um ancio previu que, para a

    obra ser terminada, seres superiores exigiam um sacrifcio humano que conseguisse

    fazer as pazes do encontro da terra com as guas. Mitos e lendas, como sabemos,

    possuem variantes similares em regies longnquas do planeta.

    O escritor maranhense Jomar Moraes (1980, p. 20), considera que: A lenda de D.

    Sebastio , sem dvida, a que mais entranhadamente penetrou na alma maranhense,

    inspirando cantadores de boi, compositores populares, poetas, romancistas e pintores.

    Moraes exemplifica a afirmao citando vrios trabalhos de escritores, poetas, pintores,

    bem como cantigas de boi e de terreiros sobre o tema.

    5. Histria de Dona Raimundinha

    Vamos exemplificar, neste ensaio, sobre aspectos do sebastianismo no Maranho,

    narrando elementos da histria de uma curadeira. Dona Raimunda Nonata Silva

    Viegas, filha de um lavrador, nascida na cidade de Cod, importante ncleo de religies

    afro-maranhenses (FERRETTI, M., 2001), recebeu o nome de Raimunda, por promessa

    de sua me a So Raimundo Nonato. Sua av materna era parteira e curadeira.

    Raimundinha ajudava a me, que tambm era curadeira. O pai se mudava muito e ela

    9 O complexo do porto do Itaqui local de exportao do minrio extrado da Serra dos Carajs, que trazido por ferrovia construda pela Vale do Rio Doce. Pelo porto do Itaqui, so tambm exportadas barras de alumnio laminadas pela Alcoa. Sua construo, em incios da dcada de 1970, foi de grande importncia estratgica na economia do Norte do pas. O porto foi construdo nas proximidades de um canal natural muito profundo (o Boqueiro), que permite o aportamento de navios de grande calado, apesar das mars maranhenses, as mais altas do pas, que sobem e descem numa oscilao com cerca de oito metros de profundidade.

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    viveu em vrios povoados e municpios. Aos seis anos, quando a av morreu, ela

    comeou a ter problemas de mediunidade, que considera como herdeira do ventre da

    me10.

    Ela nos informou que veio para So Lus, trazida por um encantado. Era mocinha e

    veio com uma colega. Levaram-na casa do curador Z Cupertino, um dos fundadores

    da Umbanda no Maranho, onde foi encruzada, ou preparada como pajoa, em 1957.

    Morou hospedada, depois comprou uma casa prestao. Queria ser artista, gostava de

    drama, de pastores, aprendeu e fez vrios cursos, inclusive curso mdio de enfermagem

    e trabalhou num hospital e no comrcio, vendendo coisas e ganhando dinheiro. Vendia

    ouro e outras coisas, como sof e bicicleta numa casa de comrcio que registrou.

    Tambm teve uma loja de produtos de Umbanda. Foi casada por quatro anos e passou a

    se chamar Raimunda Viegas11.

    Desde o tempo em que danava no terreiro de Z Cupertino, frequentava as festas

    grandes na casa dele e, com sua autorizao, fazia tambm trabalhos religiosos em casa.

    Fazia gira aos domingos e, na semana, seo esotrica, que trabalha com chave e disse

    que gosta muito do esoterismo12. Aps o falecimento de Z Cupertino, foi iniciada no

    candombl por pai Euclides, na Casa Fanti Ashanti, e l cumpriu as obrigaes da

    feitoria.

    Dona Raimundinha atende clientes utilizando diversos tipos de terapia, sobretudo,

    preparando banhos, garrafadas e aplicando massagens13. Em maio, reza ladainha para

    10 Informou que sua me, falecida h mais de vinte anos, recebia bicho dgua (Me Dgua), foi preparada no interior de Cod pelo curador Z Colodino e por Dona Naz. Ela trabalhava com vrias ervas como angau (contra feitios), cabea de negro, jalapa, pinho branco e muitas outras. 11 Dona Raimundinha conta que uma vez decidiu ir para o Rio de navio, mas o encantado a

    pegou e a trouxe de volta. Perdeu a passagem e no foi. Depois ganhou um terreno em Braslia,

    numa promoo, quando estavam construindo a cidade. Foi vender o terreno e de l foi ao Rio,

    onde morou e trabalhou por dois anos. Estava no Rio quando passou mal, sendo internada no

    Hospital Miguel Couto. Ela teve uma hemorragia, fizeram curetagem e disseram que ela tinha

    um cisto no ovrio e teria que ser operada. Na noite de So Joo, ficou olhando numa janela do

    hospital e fez promessa para o santo de que se ficasse boa voltaria ao Maranho e iria brincar

    boi. Pediu sade a So Joo, pois queria voltar e viver bem com a me e os filhos adotivos.

    Desde criana adotou muitos filhos, pois nunca teve nenhum. O curador Z Cupertino afirmou a

    seus familiares que ela voltaria boa. Poucos dias depois, ela voltou e ficou curada daquele

    problema. Passou ento a danar como brincante, por promessa, num grupo de bumba-meu-

    boi, nos anos de 1960. 12 Participou do Crculo Esotrico Comunho do Pensamento e foi Rosa Cruz, trabalha com cristais, faz massagens, recebe audio de mensagens. Tambm fez, por muito tempo, toques para Ogum, Iemanj, Xang e organizava todos os anos em junho uma Festa do Divino no salo em sua casa. 13 Num dos dias em que a procuramos, encontramos pessoa conhecida que disse ter conseguido grande melhora de um AVC com massagens e outros tratamentos que ela realizou.

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    N. Sra. da Conceio. Em junho, fazia a festa do Divino, danava no boi e fazia a cura

    em novembro. Depois passou a fazer apenas a cura. Seu toque de cura sempre perto

    de seu aniversrio, no dia 29 de novembro, ou no fim de semana mais prximo.

    Acura de Dona Raimundinha se inicia com uma ladainha, como ocorre nas festas

    populares e que normalmente so cantadas em latim, seguida de cnticos em louvor ao

    santo comemorado. Depois faz a abertura da cura cantando paras entidades que so

    mestres, nobres, caboclos e encantados. O ritual demorado, costuma comear pelas

    vinte e trs horas e o curador ou paj dana at o amanhecer, pois preciso chamar

    todas as linhas. Dona Raimundinha nos informou que trouxe a promessa do boi para o

    ritual de cura, fazendo a juno de um ritual religioso com elementos da cultura

    popular, como comum na religiosidade afro-maranhense (FERRETTI, S, 2004-b). No

    dia seguinte, pela manh, o boi sai para visitar amigos e padrinhos antigos no bairro.

    Na volta se canta at a morte do boi no fim da tarde.

    Para o ritual da cura, ela diz que prepara uns 10 a 15 tauaris14. Durante a cura, Dona

    Raimundinha bebe ch, caf e refrigerante, mas no toma bebidas alcolicas. De

    tempos em tempos, pede ajudante que derrame bebida no seu p e afirma que os

    encantados bebem cachaa pelo p dela. Na cura, cantam para vrios nobres como

    Dona Ana da Corte, Prncipe Navalheiro, Dom Joo Guerreiro e outros.

    O nome do boi Estrela Maior, em homenagem estrela Dalva. O vaqueiro Joo Jos

    Lealdino, vaqueiro do Rei Sebastio. Segundo Dona Raimundinha, ele mora nos

    morros de areia e nos igaraps da Ilha dos Lenis (Pereira, 2000). O boi Turino o Rei

    Sebastio. Dona Raimundinha conta que j viu o palcio dele. um palcio pequeno,

    azul e branco com uma escadaria, parecido com um coreto. Na frente, h uma bandeira

    das cruzadas, com uma cruz vermelha.

    Segundo MORAES (1980), no Maranho, Dom Sebastio foi encantado num touro com

    uma estrela de ouro na testa. Se algum conseguir ferrar a estrela de ouro com a vara de

    ferro15, os Lenis vo desaparecer e vem abaixo o Maranho, como diz o refro de

    uma das toadas mais conhecidas. Dona Raimundinha conta que Dom Sebastio

    seguido por vaqueiros, prncipes e princesas. Princesa In filha dele, mora no Porto

    do Itaqui e faz corrente com as guas dos Lenis. Dom Manuel mora no Boqueiro,

    Urubarana nobre, encantada numa sereia. Princesa Flora da Ponta da Areia. O boi

    14 So cigarros, segundo ela, feitos hoje com papel de caderno, pois no existe mais papel Abade prprio para fazer cigarro. O tauari leva vrias ervas como alfazema, noz moscada, pichu, alecrim, folha de fumo e outras. 15 Vara de ferro um instrumento de madeira com cerca de dois metros, enfeitado com papel de seda colorido e recortado. Costuma ser usado em certos grupos de bumba-meu-boi de So Lus.

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    Turino do Mait, que nome de uma pedra no mar. O vaqueiro era um guerreiro fiel

    de Dom Sebastio que sempre andava ao lado do rei. Na encantaria, ele virou vaqueiro,

    mora nos morros de areia e est sempre ao lado de Dom Sebastio. Dona Raimundinha

    disse que h outros vaqueiros como Z Raimundo e que o vaqueiro Lealdino ela s

    conhece na cura de sua casa, nunca o tendo visto vir em outra pessoa. Diz que Dom

    Sebastio um senhor idoso que, em vida, na terra, gostava de corridas de porcos e de

    touradas, por isso encantou- se num touro, chamado de Boi Turino. interessante essa

    espcie de cartografia da moradia dos encantados que Dona Raimundinha descreve,

    indicando que as entidades esto encantadas em animais como o touro, sereia e em

    vrios acidentes do litoral como ilhas, praias, porto e pedras da regio.

    Vemos, na histria de vida de Dona Raimundinha, sua passagem por religies

    populares e a realizao de diversas prticas alternativas de cura e estilos de vida. Suas

    crenas e vises refletem a presena do sincretismo e do hibridismo cultural nos mitos

    e nos rituais que possuem elementos de origens variadas. Constatamos que a histria

    de vida, as crenas e as prticas religiosas de Dona Raimundinha constituem exemplo

    que pode ser encontrado em outros curadores, com entre outras pessoas da regio, em

    que podemos identificar a confluncia do sincretismo religioso e do hibridismo

    cultural.

    6. O Batizado do Boizinho de Dom Sebastio na Cura

    Vamos descrever um ritual de cura ou brinquedo de cura, em homenagem ao boizinho

    de Dom Sebastio, que assistimos algumas vezes na casa de Dona Raimundinha,

    semelhantes aos realizados em outros terreiros do Maranho.

    Assistimos cura de dona Raimundinha, tiramos fotos, fizemos gravao e filmagem de

    vdeo, com a colaborao de estudantes. Realizamos entrevistas com Dona

    Raimundinha e fomos lhe mostrar fotos e vdeo16. Ela afirma que costuma passar a

    noite anterior preparando comidas e a noite seguinte na cura17. Quando chegamos mais

    cedo, vamos aos fundos da casa esperar a abertura, quando ela chama todos para

    rezarem a ladainha.

    16 Numa entrevista, ela pediu cpia do vdeo que fizemos e nos convidou para padrinho da prxima festa do boizinho, pois soube que durante aquela cura o vaqueiro me havia entregado a vara de ferro para segurar. 17 Dona Raimundinha nos recebe sempre muito bem, dizendo que adora pesquisadores. Conta vrias coisas sobre a cura e afirma que recebe diversas ordens de mestres nobres, duques, reis, prncipes, soldados, depois os bichos de todas as categorias, peixes, aves - e que a cura dura a noite toda, pois tem que atender aos 4 elementos: terra, gua, ar e fogo. Disse que o curador conhecido como paj, ou doutor do mato, e usa vrios nomes populares relacionados com doenas e objetos, que todos tm um tipo de mediunidade, cantam cantigas comuns em todas as curas e algumas especficas de cada casa.

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    Os convidados so chamados para o jantar ou se servirem de bolo e refrigerantes. No

    dia seguinte, ela serve uma feijoada e enfeita um galho de rvore, denominado de

    mouro, junto ao qual, pelas 17 horas, ocorre o ritual da morte do boi. Atualmente, a

    festa est sendo reduzida, devido a problemas de idade e de sade da organizadora.

    No centro da casa, junto parede, colocada uma pequena mesa de cura com imagens

    de santos, charutos de tauari e vrios tipos de bebida. Durante o ritual, o padrinho do

    boi, de tempos em tempos, serve aos tocadores e aos presentes, bebida num garrafo de

    vinho. Por volta das 23 horas, comea a ladainha e, antes das 23h30, Dona

    Raimundinha abre a mesa da cura.

    Anotamos partes dos cnticos, alguns bonitos e poticos. A curadora faz gestos,

    representando a entidade para a qual se canta. Costuma estar muito animada o tempo

    todo, incentivando os presentes no salo, bebendo, fumando muito, s vezes jogando

    cachaa nos ps descalos. No incio, costuma haver poucos tocadores, de terreiros

    amigos, depois chegam outros. Geralmente usam camisa com dizeres: Lembrana da

    festa do boizinho - Estrela Maior. Os tocadores acompanham a cura tocando

    pandeiros. Amigos, clientes, pais e mes-de-santo e participantes de outros terreiros

    costumam assistir festa todos os anos.

    Aps a abertura, cantam para encantados que so princesas, nobres e para bichos,

    como borboleta, lagartixa, peixes e outros. Depois vm os cnticos de boi. A msica

    costuma ser bem tocada e muito animada. No comeo, Dona Raimundinha usa vestido

    de determinada cor, depois muda de roupa. A cada ano, na cura, ela usa roupas novas e

    diferentes. Depois de um intervalo, volta com o boi. Vem vestida de vaqueiro, com cala

    e colete de veludo colorido bordado sobre blusa, com chapu do mesmo tecido do

    colete. Traz nos braos fitas coloridas amarradas e segura o marac, que so objetos

    rituais usados na cura pelos pajs. Dona Raimundinha traz tambm uma vara na qual

    pendurado um pequeno boizinho de veludo preto, bordado e enfeitado com saia

    colorida. No outro brao, traz uma toalha e a vara de ferro. seguida pela madrinha,

    que traz uma toalha branca e uma vela acesa na mo, e pelo padrinho, que segura outra

    vara de ferro. Entrega ento a vara de ferro a um dos presentes e canta animada,

    afastando cadeiras, para que mais pessoas participassem da dana.

    Dona Raimundinha, em transe com seu vaqueiro Laurentino, estimula que todos

    cantem. s vezes reclama que esto cantando pouco e manda servirem mais bebidas.

    Em alguns momentos, canta em falsete, muito alto, que dificulta o acompanhamento do

    coro. Em dado momento, entoa o cntico de despedida e se retira do salo com o

    boizinho e os padrinhos para um intervalo, indo para um quarto trocar de roupa. Ns e

    alguns dos presentes costumamos sair neste momento, por volta das duas horas, mas

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    sabemos que a cura continua at o amanhecer, com cnticos para linhas de caboclos,

    pretos velhos, Me dgua, linha de cobra, linha de r, de peixes e outras.

    O boizinho representa um animal, mas deve ser batizado. A prpria idia de batizado

    do boi, que est muito presente na cultura e na religiosidade popular maranhense,

    reflete a presena do sincretismo e do hibridismo cultural.

    7. Observaes sobre a Cura de Dona Raimundinha

    Como vimos, dona Maria Raimunda uma lder religiosa que utiliza diversas prticas

    alternativas de cura para solucionar aflies dos que a consultam, recebendo clientes de

    diferentes camadas sociais. Ela branca, porm originria de Cod, cidade do interior

    do Maranho, onde a populao negra numerosa, e as religies de origem africana

    tm grande expresso. Informa que herdou da me e da av habilidades de cura e

    algumas entidades que cultua.

    Para Dona Raimundinha a cura uma das muitas atividades religiosas que ela realiza.

    Para fazer tratamentos, recebe mensagens das entidades, joga bzios, tar, I Ching. Diz

    que seu poder um dom que utiliza a servio dos que a procuram. Como vimos, ela tem

    uma trajetria de vida com atuao em diversas profisses, em vrias prticas

    alternativas de cura e nas religies afro-brasileiras.

    Sua festa de cura se inicia com uma ladainha catlica, como costuma acontecer nas

    festas religiosas populares locais. Depois canta para mestres, nobres, caboclos e

    encantados, chamando todas as linhas de sua cura. Canta para santos catlicos, para os

    mestres e para caboclos. Canta para diversos animais, que vai recebendo em transes

    sucessivos, como borboleta, sereia, boto e outros. Canta para nobres, prncipes e

    princesas, como ocorre sempre nos rituais de cura. Depois recebe e canta para Dom

    Sebastio, encantado no boi Turino Mait, e para seu vaqueiro Lealdino, que faz o

    batizado do boizinho e que so os personagens principais do seu ritual de cura. Os

    cnticos para o povo de Dom Sebastio contam que ele vive nas dunas e morros de

    areia da praia dos Lenis. No transe medinico, nos rituais de cura, o mdium ou

    curador recebe grande nmero de entidades que se sucedem durante a noite, cada

    entidade permanecendo no transe enquanto se oferecem a ela alguns cnticos.

    Os cnticos da cura, alguns includos em anexo, apresentam msicas e letras bonitas.

    Em geral cada srie identifica determinadas entidades. Os textos no so fceis de

    entender, pela pronncia e pelo uso de linguagem figurada. Alguns so poticos

    expressando uma filosofia de vida, como o que diz: o tempo foi o meu mestre que me

    ensinou a curar, ou pedi conselho ao vento. Alguns se relacionam com santos e

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    elementos do catolicismo, outros se referem a termos e lugares conhecidos ou mticos

    como Mait, Cabo das Tormentas, Boqueiro, Mar Ancio. Empregam palavras arcaicas

    ou pouco conhecidas, como bragado, sinnimo de malhado das manchas no couro, boi

    Turino, no sentido de touro, guarnic, termo utilizado no bumba-meu-boi do

    Maranho, com o sentido de reunir os brincantes. Aparecem os mestres da cura e

    personagens nobres como Duque do Pombal, Prncipe Navalheiro, Princesa Flora,

    Princesa In e outros, considerados parentes ou membros da corte de Dom Sebastio

    que apresentam algumas de suas caractersticas. Os cnticos refletem conhecimentos

    de uma filosofia popular que preserva imagens do passado, atualizadas no presente.

    Tais cnticos necessitam ser bem documentados para serem compreendidos.

    Na simbologia e nos cnticos, encontramos a confluncia de elementos da natureza

    local como animais e lugares, junto com personagens histricos ou criados que povoam

    o imaginrio popular. O boizinho de Dom Sebastio encontrado em muitas

    manifestaes culturais maranhenses e pode ser estudado sob diferentes pontos de

    vista. Podemos analis-lo sob a perspectiva da circularidade de culturas, do hibridismo,

    do sincretismo, do transculturalismo ou de emprstimos culturais, no contexto do

    sebastianismo nos cultos de possesso, da antropologia da performance e de acordo

    outras vises, que destacam o interesse deste ritual afro religioso, que ilustra a

    complexidade dos fenmenos da cultura popular.

    8. Concluses

    Procuramos elaborar a etnografia de um ritual, interpretando o mito de origem

    relacionado com a produo simblica e a identidade cultural de personagem da

    cultura popular. Verificamos que o imaginrio religioso assume configuraes

    particulares refletindo o dilogo entre culturas de diferentes origens e nacionalidades.

    Mito e ritual so elementos inter-relacionados e possuem uma antiga tradio de

    abordagem desde os primrdios da Antropologia, que continuam sendo analisados e

    rediscutidos. De acordo com Malinowski, os estudos da mitologia e da magia se

    apresentam inter-relacionados. Magia seria como um elo entre a mitologia e a

    realidade (1976: 232).

    Para Malinowski (1988), o mito constitui uma realidade viva que se relaciona com a

    paisagem, tem razes na tradio e atualizado nos ritos. Consideramos com

    Malinowski, que mito, ritual e magia esto inter-relacionados e se originam nas

    tradies locais, referindo-se ao espao fsico e ao tempo. Vemos que muitos nomes de

    acidentes locais so citados nos cnticos. No pretendemos, entretanto, apresentar o

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    mito e o ritual numa perspectiva holstica de um todo integrado e acabado como faz

    Malinowski.

    Tivemos a inteno, como sugere Geertz (1978), de elaborar uma descrio densa, como

    um texto preliminar, aberto a interpretaes, procurando entender no mito e no ritual a

    estrutura de significados envolvidos e considerando a cultura como um fato no

    esttico, mas dinmico, que se modifica constantemente. Na perspectiva de Geertz, esse

    estudo no deve ser fechado, no est acabado.

    Segundo Eliade (1986, p. 25), toda histria mtica que relata a origem de alguma coisa

    pressupe e prolonga a cosmogonia. Para Eliade, o mito tem funo ritual nas curas e

    a maioria dos rituais teraputicos evoca e reitera a criao do mundo como, se o xam

    suplicasse que o mundo fosse novamente criado. Conforme Eliade (1986, p. 67), a idia

    de regenerao e de recriao do mundo encontra-se em muitos mitos milenaristas

    presente em povos primitivos, que ele compara com a destruio das linguagens

    artsticas nas sociedades modernas, sobretudo na pintura e outras artes plsticas.

    Como sabemos, o sincretismo ocorre em todas as culturas e em todas as religies, mas

    em algumas delas parece ser mais evidente. O conceito que antigo foi debatido pela

    Antropologia, sobretudo nas dcadas de 1940 e 50, e depois foi praticamente relegado

    dos debates por certo esgotamento e por muitas crticas que foram feitas s teorias

    funcionalistas e de aculturao ao qual se encontrava mais vinculado. Como afirmam

    McGUIRE e MADURO (2005: 412-413), o termo em si neutro, mas costuma receber

    conotaes pejorativas devido a julgamentos teolgicos considerando que a mistura

    seria o resultado da miscigenao de uma religio doadora, pura e autntica.

    Para Stewart e Shaw (2005), com o surgimento do conceito de inveno de tradies e

    de crtica da idia de pureza ou autenticidade cultural e, com o advento da antropologia

    ps-moderna, o sincretismo passou a ser considerado um processo bsico no s da

    religio e do ritual, mas da cultura como um todo. Para Stewart e Shaw, na ps-

    modernidade, a cultura passou a ser vista como uma inveno hbrida e sincretizada.

    Os autores se indagam: Como usar o termo sincretismo hoje? A simples identificao

    de um ritual ou de uma tradio como sincrtica no diz nada, pois todas as religies

    tm origens compostas e so continuamente reconstrudas atravs de processos de

    sntese e substituio (STEWART; SHAW, 2005, p. 07)

    Hibridismo cultural outro conceito antigo que tem sido desenvolvido e utilizado por

    alguns tericos da ps-modernidade. Segundo Peter Burke (2003, p. 31): devemos ver

    as formas hbridas como o resultado de encontros mltiplos e no como o resultado de

    um nico encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos elementos mistura,

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    quer reforcem os antigos elementos. Para o autor, o hibridismo se relaciona com a

    idia de circularidade cultural e com termos ou idias como emprstimo cultural,

    crioulizao, imitao, mistura, traduo cultural e outros.

    Constatamos que os conceitos de sincretismo, juntamente com o de hibridismo

    cultural, embora negados por alguns, so importantes para a compreenso de muitos

    aspectos das culturas e das religies. Procuramos mostrar aqui a presena do

    sincretismo e do hibridismo atravs do mito e de rituais relacionados com a crena do

    sebastianismo na cultura afro-maranhense.

    Os diversos elementos presentes nos mitos e no ritual de cura, o batizado do boi de

    Dom Sebastio, os cnticos entoados, a poesia neles implcita, a dana da pajoa, seus

    gestos, os papis que desempenha, a participao dos msicos e dos presentes, a

    atuao das entidades sobrenaturais, a histria das entidades e suas relaes com o

    meio ambiente, a mitologia atualizada, tudo contribui para a representao do

    espetculo que encenado e vivido. Vemos que os rituais podem ser observados como

    espetculo cuja descrio e interpretao ajudam a entender os significados das aes

    simblicas neles contidas.

    As religies denominadas afro-brasileiras ou de matrizes africanas, possuem inmeras

    variantes como reflexos de emprstimos, do sincretismo e do hibridismo cultural, que

    esto presente em todas as religies e se refletem nos rituais e nos mitos de origem. Na

    ps modernidade, a religio e a cultura passam a ser vistas como hbridas e

    sincretizadas. A crtica ao conceito de pureza cultural e noo de inveno de

    tradies contribui para uma nova aceitao do sincretismo e do hibridismo cultural,

    que enfrentaram resistncias e hoje so novamente considerados como processo de

    compreenso no s da religio e do ritual, mas da cultura como um todo.

    A presena de Dom Sebastio na encantaria maranhense mostra a fora de mitos de

    origens, como do sincretismo entre entidades africanas, caboclas, europias e do

    catolicismo popular e entre este e as religies afro-brasileiras, bem como a influncia

    do meio ambiente na elaborao de crenas que esto muito enraizadas na mentalidade

    popular. A figura mtica de Dom Sebastio, transformado num touro encantado que

    aparece na ilha dos Lenis e recebido em transe, refora a juno entre a crena

    messinica na volta esperada do Rei, o folguedo do bumba-meu-boi e os rituais de cura

    e de tambor de mina das religies afro-maranhenses.

  • Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 1, n.1

    280

    Como foi dito na Apresentao pelo Presidente da Comisso Cientfica deste

    Congresso18, a memria histrica tem que ser encarada como um fator de diversidade

    cultural. importante definir e defender os interesses e valores comuns, preservando

    as diferenas e fazendo delas um fator de encontro e preservao do patrimnio

    cultural. A coordenadora do evento ensina que os mitos de origem esto intimamente

    conectados com a produo simblica. Verificamos, no ritual e no mito da cura de

    Dom Sebastio encantado na Ilha dos Lenis, a presena desta memria e desta

    produo simblica, como reflexo da diversidade e como fator de encontro de tradies

    que bem ilustra a riqueza das tradies culturais luso-afro-brasileiras.

    Referncias bibliogrficas

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    Sergio F. Ferretti doutor em Antropologia, professor do Departamento de Sociologia e

    Antropologia da UFMA, vinculado aos Programas de Ps-Graduao em Cincias

    Sociais e em Polticas Pblicas. Publicou diversos artigos e entre outros os livros:

    Repensando o Sincretismo (Edusp, 1995); Querebent de Zomadonu (Pallas, 2009);

    Tambor de Crioula: ritual e espetculo (CMF, 2002).

    [email protected]

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    283

    ANEXO: letras das toadas anotadas na Cura

    01) Meu Senhor que est naquela cruz, Eu vou abrir a minha mesa em nome de Jesus.

    02) Eu vou abrir a minha mesa Meu Pombo Roxo avuador.

    03) Meu Santo Antnio, meu santo protetor, Eu j abri a minha mesa, Nosso Senhor

    que mandou.

    04) O meu Deus como eu sou sozinho, cumprindo com a minha sina, tocando o meu

    marac.

    05) Maraj, Maraj tem d. Pe a rama no caminho, no deixa o contrrio entrar.

    (Derrama cachaa nos quatro cantos do salo).

    06) Eu chamo pelo meu mestre. Vou chamar pelo meu Guia. Vou buscar pelo meu

    mestre, no rolo da Maresia.

    07) Mestre Cirilo j chegou. Esse mestre e contra mestre. Ele bom curador.

    08) Eu tenho guia firme, foi meu mestre quem mandou, um o Rei dos Mestres, outro

    o Rei Nag.

    09) Eu tava brincando na areia, quando mame me chamou. Me chamou papai, me

    chamou mame, pra eu ser um mestre curador.

    10) O tempo foi o meu mestre, que me ensinou a curar, corre depressa menino, corre

    depressa e vem c, vai buscar minha conta nesta guia do meu marac. (Pardia de

    Antnio Lus Corre Beirada, filho bastardo de Dom Luiz Rei de Frana)

    11) Nos astros eu sou um mestre, na terra eu sou doutor, no mar eu sou um peixe na

    terra bom curador. (Toada de Antnio Lus)

    12) Pedi conselho ao vento, o tempo me respondeu: menino presta ateno, que o seu

    mestre sou eu. (Toada de Antnio Lus).

    13) Passei na luz da candeia e no balano do Mar, Dona Ana veio da Corte, Dona Ana

    veio da Corte. Ela veio da banda de l.

    14) Eu sou uma borboleta, eu quero voar, meu pai caador da mata real. (Princesa

    encantada numa borboleta).

    15) Na passagem do riacho, Maria me deu a mo. Mas eu sou Mariazinha, no meio do

    Boqueiro. (Princesa Maria da Conceio)

  • Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 1, n.1

    284

    16) Eu sou aquela Princesa, eu moro no Mar Ancio, meu pai o Rei Sebastio, minha

    madrinha a Virgem da Conceio. (Princesa Maria da Conceio)

    17) Eu quero .... eu quero ir l, sou a moa da Pedra Fina, moro nas ondas do mar.

    18) O mana minha, linda sereia, Urubarana senhora guerreira. (Princesa Urubarana)

    19) Princesa Flora tem papai e tem mame, Princesa Flora j foi filha hoje me. no

    luar, no luar, Princesa Flora s passei no luar.

    20) Eu sou menina do Cai Cai, do Cai Cai, do Caid, eu sou menina do Cai Cai Cai Cai

    Caid.

    21) Chegou moo Batalha, ele batalhador, na provncia onde mora ele governador.

    (Toada de Ogum)

    22) Olha o Duque, olha o Duque, olha o Duque do Pombal, olha o Duque deixa o Duque

    se sentar.

    23) No meu condado quem governa sou eu. Eu mando e ordeno, com o poder que Deus

    me deu.

    24) Sou Joo, sou Joo Soeiro, sou Guerreiro. Entre serras e batalhas eu sou Joo. Eu

    sou o Prncipe Navalheiro.

    25) No Cabo das Tormentas eu me encantei, quando meu navio afundeou, mas eu

    tambm sou nobre, sou filho do imperador.

    26) Oh! que caminho to longo. Oh! que estrada to tirana. Eu me chamo Constantino,

    sou baiano Chapu de Couro. (Toada de Baiano Grande)

    27) E s parece que a Bahia se perdeu. E s parece que o vento levou. Eu venho da

    Bahia. Eu sou baiano e moro na mina de ouro.

    28) Boi Turino, boi Turino, boi Turino Mait. Eu cavo na areia, l nas ondas do mar.

    29) Voc diz que boi na roda, boi bragado vem rodar.

    30) Meu bom vaqueiro vai buscar meu boi laranja. Esse boi meu, esse boi meu.

    31) Meu boi est no terreiro. Eu quero ver o meu boi brincar.

    32) , , boi. Morena sacode os cabelos, vem ver seu vaqueiro partir. Morena eu moro

    no morro de areia, eu vou meu gado reunir.

  • Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 1, n.1

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    33) Tremeu, tremeu, eu vi a terra tremer. Vou guarnic, o meu boi bonito fica aqui at

    o amanhecer.

    34) Vou batizar o meu boi Estrela Maior.

    35) O meu boi bonito j foi batizado, oi vaqueiro nobre vai buscar a boiada.

    36) Todo mundo quer saber o meu nome, para fazer confuso, mas eu venho das quatro

    partes do mar, guiado por So Joo.

    37) Meu glorioso So Joo. Ele meu padrinho meu santo protetor. Naquela fogueira

    que o senhor me batizou, So Pedro disse Lealdino vaquejador.

    38) Sou o vaqueiro Lealdino, eu moro num morro de areia no meio do mar, digo adeus

    a meu povo, pois eu vou me arretirar.

    39) Tenho meu cordo de ouro, meu penacho de pavo. O que moo to bonito o Rei

    Sebastio (Ouvido em outro ritual)