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Modernismo Revisitado 21 de junho de 1925 o Jor- nal do Comércio do Recife publicou uma entrevista feita por Joaquim Inojosa com Oswald de Andrade, naquele mo- mento de passagem pel a cidade. Na ocasião, tratava O escritor paulista de expor sua comprnsão dos rumos que vinha tomando o movimento mo- dernista. Oswald de Andrade é apre- sentado pelo diário pernambucano como um "dos que em São Paulo pri- meiro ergueram a voz em defesa do movimento renovador". E acrescenta a reportagem: "preocupa-o, apenas, o que diga respeito à modernidade, re- sidindo aí o seu maior empenho". 1 Em seguida à apresentação, a palavra é do entrevistado: "Linda cidade, o Recife. Foi uma surpresa para mim. E o será para quantos o visitarem. Como é que no Brasil existe uma cidade de aspecto tão encantador, e não na conhecem todos os brasileiros, e a ignora a maioria dos sulistas? Eduardo Jardim de Moraes Sinto-me encantado com estas pai- sagens, o verde destas árvores, as palmeiras, os bananais, tudo. Sin- to-me brasileiro aqui. Aos pernam- bucanos compete trabalharem p a- ra que não desapareça, e , antes fulgure mais intensamente, o es- pírito de brasilidade. Veja as co- res destas casas antigas: excelen- tes; repare na pintura destas ca� sas modernas: horríveis. Horríveis para nós, para o nosso ambiente. A arquitetura deve refletir a pai- sagem. A daqui apresenta tonali- dades diversas, sedutoras, maravi- lhosas. Por que não aproveitá-Ia no cadinho da arte? Por que aban- doná-Ia pela importação estran- geira? E não se pense que há in- coerência nas minhas expressões. porque sou modernista. Sou-o so- bretudo, por ser brasileiro. Quero, por isso, a formação de uma arte nacional, que se há de extrair, sem dúvida, da obra dos antepas- sados. Podemos muito bem cons- truir um arranha-céu numa arte nossa, sem ser esta arquitetura de Este artigo é o desenvolvimento de uma reflexão já apresentada em meu livro A brrlsilidade modernista: sua dimensão filosófica (Rio de Janeiro, Graal. 1978). r"UdM lIistórls, Rio de Je, vaI. 1, n. 2, 1b8. p. J8.

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Estudo histórico sobre o modernismo

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Modernismo Revisitado1:

2 1 de junho de 1925 o Jor­nal do Comércio do Recife publicou uma entrevista feita por Joaquim Inojosa com

Oswald de Andrade, naquele mo­mento de passagem pela cidade. Na ocasião, tratava O escritor paulista de expor sua compreensão dos rumos que vinha tomando o movimento mo­dernista. Oswald de Andrade é apre­sentado pelo diário pernambucano como um "dos que em São Paulo pri­meiro ergueram a voz em defesa do movimento renovador". E acrescenta a reportagem: "preocupa-o, apenas, o que diga respeito à modernidade, re­sidindo aí o seu maior empenho". 1 Em seguida à apresentação, a palavra é do entrevistado:

"Linda cidade, o Recife. Foi uma surpresa para mim. E o será para quantos o visitarem. Como é que no Brasil existe uma cidade de aspecto tão encantador, e não na conhecem todos os brasileiros, e a ignora a maioria dos sulistas?

Eduardo Jardim de Moraes

Sinto-me encantado com estas pai­sagens, o verde destas árvores, as palmeiras, os bananais, tudo. Sin­to-me brasileiro aqui. Aos pernam­bucanos compete trabalharem pa­ra que não desapareça, e, antes fulgure mais intensamente, o es­pírito de brasilidade. Veja as co­res destas casas antigas: excelen­tes; repare na pintura destas ca� sas modernas: horríveis. Horríveis para nós, para o nosso ambiente. A arquitetura deve refletir a pai­sagem. A daqui apresenta tonali­dades diversas, sedutoras, maravi­lhosas. Por que não aproveitá-Ia no cadinho da arte? Por que aban­doná-Ia pela importação estran­geira? E não se pense que há in­coerência nas minhas expressões. porque sou modernista. Sou-o so­bretudo, por ser brasileiro. Quero, por isso, a formação de uma arte nacional, que se há de extrair, sem dúvida, da obra dos antepas­sados. Podemos muito bem cons­truir um arranha-céu numa arte nossa, sem ser esta arquitetura de

• Este artigo é o desenvolvimento de uma reflexão já apresentada em meu livro A brrlsilidade modernista: sua dimensão filosófica (Rio de Janeiro, Graal. 1978). r"UdM lIistórlcos, Rio de Janelro, vaI. 1, n. 2, 1988. p. 22Q.t2J8.

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cartão postal que parece dominar o Brasil inteiro."!

E mais adiante:

.. Asseguro-lhe que, para a forma­ção da pintura, da arquitetura e da poesia brasileira, tem o artista de visitar o Recife, porque aqui encontrará fontes emocionais de primeira grandeza. Nas classes p0-pulares, então, devem existir mo­tivos para uma grande poesia, sem ser importada de Heredia ... '"

Esta declaração de Oswald de An­drade traz as marcas das preocupa­ções modernistas daquele momento: o modernismo propunha a renovação no domínio da produção artística. Ao mesmo tempo, e enfaticamente, ela faz a defesa da nacionalização das fontes de inspiração do artista brasi­leiro. O que importa não é apenas compatibilizar o que é modtrno e o que é nacional. Importa m.,s apre­sentar o moderno como necessaria­mente nacional. Além destes propósi­tos, o texto introduz ainda outras duas articulações - em primeiro lugar, o compromisso do projeto modernista com a tradição. As cores das casas antigas, brasileiras, são melhores que as das casas modernas, importadas, e são as que é preciso valorizar. Em outros termos: a obra moderna há de "se extrair da obra dos antepassa­dos". E ainda, em segundo lugar, tem-se a idéia de que é nas classes populares que se deve buscar os mo­tivos da cultura nacional. Além de antigas e de brasileiras, são popula­res as "fontes emocionais" que de­vem interessar ao artista m.oderno.

A proposta de Oswald de Andrade •

e a mesma que se encontra presente nas declarações e nas obras dos par­ticipantes do movimento modernista a partir de 1924. Também é com re­lação a ela que a intelectualidade bra-

sileira da época, em seu conjunto, deverá se posicionar.

O mesmo Oswald de Andrade fora quem, com o Manifesto Pau-Brasil, formulara pela primeira vez essa pro­posta de maneira articulada. Nesse texto vem expressa uma concepção do que é modernizar a arte brasileira de maneira própria, nacional. Para o manifesto de 24, como de resto para o conjunto do modernismo, a moder­nização da cultura só se viabiliza se estiver assentada em tradições nacio­nais caracterizadas enquanto popu­lares.

E certo que na discussão aberta pela publicação do Pau-Brasil, na qual se insere o texto transcrito atrás, encontram-se maneiras diferenciadas de abordar o problema, como por exemplo na ótica de Mário da Andra­de, ou mesmo sua rejeição por com­pleto, como em Tristão de Athayde. No entanto, é nítido que, para aque­les que adotam a postura moderniza­dora ou para os que a rejeitam, o que está sempre presente na atenção dos intelectuais da época é a apreciação deste bloco de questões em que se imbricavam modernidade, brasilida­de, tradição e origens populares.

Ao comentar o manifesto em 1925, Mário de Andrade, sem discordar da proposta mais ampla que ele contém, procura retificar a articulação entre sua postura de autor erudito e as fon­tes de inspiração populares. A res­salva de Mário de Andrade diz res­peito a uma distinção de fato consi­derável entre sua maneira de enten­der o elemento popular como traço definidor da nacionalidade, e aquela encontrada em Oswald de Andrade. Sublinhada esta diferença, a proposta dos dois autores é a mesma:' ao se co­locar a exigência de modernização, esta passa pela discussão de sua ca­racterização para o ambiente bra.i-

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leiro, e daí pela reCerência ao ele­mento tradicional e ao popular.'

"Literatura suicida" é o título do comentário Ceito por Tristão de Athay­de sobre o ,mesmo tema. O crítico res­salta vivamente a importância do mo­mento por que se passava. Para ele, "nenhuma geração . . . teve necessida­de tamanha de traçar o seu roteiro como a nossa" .• O problema enfren­tado por essa geração era o da mo­dernidade. Esta só poderia ser con­cebida se relacionada à questão da entidade nacional. De forma que a rejeição da problemática do naciona­lismo trazia consigo a recusa do in­gresso na ordem moderna. Ao ata­car a proposta "independentista" de Oswald de Andrade, que propunha a elaboração de uma "poesia de expor­tação", ao afirmar ser necessária HCo­ragem literária suficiente para dizer bem alto: ainda não podemos pres­cindir de certa imitação",6 Tristão de Athayde tem, necessariamente, que optar por uma via antimodernista como é sua "ida ao clássico",

A argumentação de Tristão de Athayde busca inicialmente descarac­terizar a postura nacionalista defen­dida pelo maniCesto. Para o crítico, o que na verdade Oswald de Andrade propunha era trazer para a discussão brasileira as contribuições do dadaís­mo francês e do expressionismo ale­mão. Estes são caracterizados como dois grandes males culturais - o da­daísmo é Hesse cadáver" francês e o expressionismo é Hessa moléstia" ale­mã.7 O que está importando para Tristão de Athayde, entretanto, não é a crítica do processo de importação de padrões culturais estrangeiros, mas a qualidade do que se importa. Sua proposta não é a de uma ruptura com o processo de importação; ao contrá­rio, seu maior empenho está em rei­vindicar a adoção e a importação de formas culturais disciplinadoras,

"clássicas". Estas são localizadas "nas Corças de sani'dade a que a Europa está lançando um apelo para reagir contra a decadência": 8

"Mas desde logo renunciar, sem saudade, a essa Carândola charla­tanesca de novidades trazidas pelo último correio, a essa ânsia do no­vinho em Colha, da última moda francesa, do diferente, do extra­vagante, do nunca dito. Ir ao clás­sico é renunciar à desordem. "·

Assim, é o conjunto das questões propostas pelo modernismo que Cun­ciona como reCerencial para todos. No caso, é aquele conjunto que precisa ser rejeitado por Tristão de Athayde.

Entretanto, não foi desta forma que eclodiu a questão da modernidade em nosso ambiente intelectual. A brasili­dade, com tudo o que ela implica de dimensionamento da proposta moder­nista e até de redefinição daquilo que se entende como sendo moderno, só constituiu uma indagação para os mo­dernistas no desdobramento de sua discussão sobre a modernidade. Po­de-se mesmo aCirmar que a vocação nacionalista do modernismo que se maniCesta grosso modo a partir de 1924 é o ponto de chegada de uma linha de indagações sobre o ingresso da produção artística brasileira na ordem da modernidade. E que, ao ser colocada em toda a sua complexi­dade, a questão da brasilidade possi­bilitou, da parte daqueles que deCen­diam o projeto modernizador, a defi­nição do próprio conceito de moder­nidade para o caso brasileiro. Veja­mos como se fez este percurso.

1. Modernizar' etuerlur a produçlo cul· ture' • um novo tempo

O ano de 1917 ficou caracteriza­do na história do modernismo no

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Brasil como um ano inaugural. 10 IÔ que nele se manifesta pela primeira vez de forma clara a polêmica que opõe os modernos aos representantes e defensores da velha ordem estélica. A polêmica eclodiu a respeito da ex­posição de Anita Malfatti no final do ano. Ao conhecido artigo de Mon­teiro Lobato denunciando a paranóia ou a mistificação da obra da pintora respondia o inovador Oswald de An­drade. O que importa apontar neste momento inicial do modernismo, e também em todos os outros em que se considera este movimento do ponto de vista da sua oposição ao que ele próprio designou como passadismo, é a idéia, sempre afirmada, de que a estética moderna deveria ser enten­dida como alguma coisa de natural ou de adequado.

Vai ser preciso definir o que os modernistas entendiam por naturali­dade ou adequação. Por ora quer-se chamar a atenção para o fato de que, contra o estranhamento do discurso de Labato diante da obra moderna, a resposta de Oswald de Andrade su­blinha a sua propriedade. Com relação a Anita Malfatti, o articulista moder­no diz:

"Na arte, a realidade na ilusão é o que todos procuram. E os natu­ralistas mais perfeitos são os que melhor conseguem iludir. Anita Malfatti é um temperamento ner­voso e uma intelectualidade apu­rada, a serviço do seu século. A ilusão que ela constrói é parti­cularmente comovida, é individual e forte e carrega consigo as pró­prias virtudes e os próprios de­feitos da artista." 11

O texto expressa a opinião de que é natural adotar o ponto de vista mo­derno. IÔ da natureza do nosso século. Vale ressaltar esta dimensão clara do texto. Também foi natural para os

antigos terem sido... antigos. Pode­se mesmo dizer, de um ponto de vista artístico, já que os antigos naturalis­tas eram os que melhor iludiam, que Monteiro Lobato saiu em' defesa da melhor parte. Mas vamos nos ater aos propósitos mais nítidos da critica. Eles logo aparecem: não há porque protestar, uma vez que até certo pon­to, enquanto arte ou ilusão, não há ruptura entre o passado e o presente. No caso, entre os naturalistas e Anita Malfatti. O que importa é ver cada coisa no seu tempo e portanto relacio­nar a linguagem mode.rna ao tempo presente. Anita Malfatti, diferente­mente dos naturalistas, manifesta com seu temperamento e sua inteli­gência a época de hoje. Sua obra é dotada de uma qualidade que inte­ressa ao articulista ressaltar - a atua­lidade.

Pouco antes da Semana de 22, Má­rio de And.rade publicou na imprensa de São Paulo a série de artigos "Mes­tres do passado". São sete textos onde se pretende acertar as contas com o passadismo aqui representado pela poesia parnasiana. A argumenta­ção de Mário de Andrade se ancora em um pressuposto que percorre os textos do período - na querela dos modernos contra os antigos o que im­porta é descartar o antigo, precisa­mente por não dizer respeito ao pre­sente. Na postura parnasiana o criti­cável é sua persistência em não desa­parecer. Para o modernismo não se trata tanto de desqualificar as ma­nifestações artísticas passadistas por suas propriedades inlrlnsecas, mas de rejeitá-Ias enquanto insistem, como contemporâneas de uma época passa­da, em se imjscuir no tempo presen­te. Não é natural para os novos tem­pos a métrica e a rima parnasianas ou as ronnas "academizantes" na pin­tura. Donde o ponto de vista da cri­tica de Mário de Andrade:

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"o Mestres do Passado, eu vos saúdo! Venho depor a minha co­roa de gratidões votivas e de entu­siasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós estais mortos! E se, infelizmente para a evolução da poesia, a som­bra fantasma I dalguns de vós, trê­mula se levanta ainda sobre a terra, em noites foscas de sabat, é que esses não souberam cum­prir com magnificência e bizarria todo o calvário do seu dever! De­veriam morrer! Assim o conela­ma, na marcha fúnebre das mi­nhas lágrimas, a severa Justiça que não vacila e com a qual vos honro e dignifico! Deveriam morrer! A vida vegetal a que se agarraram, não se coaduna com o destino dos muezins duma arte do tempo in­cessante, dos troveiros alados, dos cortesãos da beleza fugitiva!. .. " "

A justiça a que se refere o texto é o próprio témpo. E a idéia sempre recorrente é a de que os mestres do passado devem ceder lugar aos ho­mens do presente. A perspectiva mo­dernizadora insiste em caracterizar-se como adequada a um novo tempo. Este não se encontra propriamente em oposição ao velho tempo. Trata­se antes de compreender o ingresso na modernidade como uma passagem de um momento a outro. Não como ruptura, mas comó evolução. E pas­sadista é aquilo que vem obstaculizar esta evolução.

Diferentemente do que ocorre em outros modernismos, onde a idéia de revolução ou de descrédito do passa­do se situa no centro das indagações, no caso brasileiro a modernização vem caracterizada como atuaJjzação, onde não está afastado o compro­misso com a tradição.

A dupla dimensão polêmica e cons· trutiva do modernismo indica por um lado a preocupação em se acentuar o caráter inatual da ordem estética até então vigente, e por outro a _necessi­dade da incorporação da discussão, cultural na ordem moderna. A crítica modernista, ilustrada aqui pelos arti­gos de Mário de Andrade, lem seus critérios elaborados a partir do reco­nhecimento da dupla tarefa do movi­mento.

Em termos propriamente construti­vos cabe a elaboração de uma nova postura estética adequada à vida mo­derna. Em outras palavras: é preciso produzir linguagens artísticas que possam dar conta da reaJjdade pre­sente. E uma espécie de realismo que o modernismo propõe. No sentido mesmo da adequação do mundo e da sua representação.

O Manifesto da Poesia Pau-Brasil haveria de frisar com justeza o esfor­ço do primeiro tempo do movimento: "O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional." 13 Tudo isto indica porlanto que se trata para O modernismo de adequar ao lempo da vida o lempo da produção intelectual.

A percepção da vida moderna é a que vem expressa na apresentaçao de KlaxonJ a primeira revista do movi­mento. A modernidade nesle momen­lO de busca de definições é a vida nos centros urbanos. Klaxon está do lado do atual, do progresso, da ciência. da racionalidade, da técnica, do enge­nheiro. Por oulto lado, e com cer­teza, os redatores da revista estavam alentos à questão da sua relação com a Iradição. E o que vem dilo a uma certa altura de "Estética", segunda parle da apresentação.

"Klaxon sabe que o progresso existe. Por isso sem renegar o pas­sado, caminha para diante, sem-

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pre, sempre. O campanile de São Marcos era uma obra-prima. De­via ser conservado. Caiu. Recons­truI-lo foi uma erronia sentimen­tal e dispendiosa - o que berra diante das necessidades contem· porâneas," U

Ao mesmo tempo em que toma estes cuidados, o que a revista trans­mite é a exigência de incorporação à ordem moderna entendida como ur­bana e suficientemente industrializa­da. O acesso à vida moderna é o acesso à racionalidade. Dal a neces­sária crítica do romantismo entendi­do como estágio pré-moderno da civi­lização. O romântico, sendo senti­mental, é pré-racional. Sendo pré-ra­cional, é pré-moderno. Donde a ne­cessária "extirpação das glândulas la­crimais",

Entendida como realidade em mo­vimento, a vida moderna encontra sua melhor forma de expressão no cinema. Os modernistas opinam: "t preciso observar-lhe a lição." 15 Já no momento da Semana de Arte Moder­na, no início de 1922, a conferência de Menotti deI Picchia no Teatro Mu­nicipal exprimia o mesmo ponto de vista:

"Hoje que, em Rio Preto, o 'cow­boy' nacional reproduz, no seu cavalo chita, a epopéia eqüestre dos Rolandos furibundos; que o industrial de visão aquilina amon­toa milhões mais vistosos do que os de Creso; que Edu Chaves re­produz com audácia paulista o sonho de tcaro, por que não atua­lizamos nossa arte, cantando essas l!íadas brasileiras? Por que prefe­rimos uma Atenas cujos destroços de Acrópole já estão pontilhados de balas de metralhadoras?

Não! Paremos diante da tragédia hodierna. A cidade tentacular ra-

dica seus gânglios numa área ter­ritorial que abriga 600.000 almas. Há na angústia e na glória da sua luta odisséias mais formidáveis que as que cantou o aedo cego: a do operário reivindicando seus direitos; a do burguês deCendendo sua arca; a dos Cuncionários des­lizando nos trilhos dos regula­mentos; a do industrial comba­tendo o combate da concorrência; a do aristocrata exibindo o seu fausto; a do político assegurando a sua escalada; a da mulher que­brando as algemas da sua escra­vidão secular nos gineceus even­Irados pelas idéias libertá rias pos­bellum ... Tudo isso - e o auto­móvel, os fios elétricos, as usinas, os aeroplanos, a arte - tudo isso Corma os nossos elementos da es­tética moderna .. . " 16

Na ótica do modernismo deste mo­mento, como se vê, o que vale é cap­tar a modernidade enquanto vida em movimento, marcada de forma im­pressionista peJo ritmo da cidade onde se abrigam desordenamente os mais variados elementos. Velocidade e va­riedade são atributos da vida urbana e moderna e como tal positivamente qualificadas. Não está importando ne­nenhuma precisão na definição. Está­se querendo chamar a atenção para o fato de que à "riqueza" da realidade deve corresponder uma nova expres­são. Também não bá uma definição precisa das formas adequadas para exprimir a realidade. O que se quer é propor o afastamento das Cormas consagradas, consideradas inatuais, e apelar para a adesão às formas mo­dernas adequadas à representação da vida presente.

A mesma linha de preocupações que se percebe na conferência de Me­notti deI Picchia está presente tam­bém no texto de Mário de Andrade.

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A escrava que não é Isaura, redigido em 1922. A nova poética é vista então como o "resultado inevitável da épo­ca". Ela é "conseqüência da eletri· cidade, telégrafo, cabo submarino, T.S.F., caminho de ferro, transatlân· tico, automóvel, aeroplano". Estes in­gredientes da vida moderna sensibi­lizando o poeta são transformados em representação estética do mundo. J! o que está expresso no início do ensaio:

"Explico: o homem pelos sentidos recebe a sensação. Conforme o grau de receptividade e de sensi­bilidade produtiva sente sem qu� nisso entre a mínima parcela de inteligência a Necessidade de Ex­pressar a sensação recebida por meio de gesto." 17

J! portanto sempre tendo por base a argumentação em moldes realistas que se deve prOduzir uma estética adequada 11 vida, e que se desquali­fica a pretensão das velhas formas artísticas em sua função expressiva.

2. Modemlur. no C.IO bralllelro, nlo .Ignlflca lOiliper com o p .... do

Ao mesmo tempo, a adesão à esté­tica moderna, que se faz pelo rec0-nhecimento da necessidade de adaptar a representação 11 nova realidade, não contém, seja na conferência de Me­notti deI Picchia, seja no ensaio de Mário de Andrade, propósitos de rup­tura com a tradição. O texto de Me­notti deI Picchia chega mesmo a ex­plicitar o sentido do compromisso que marca a opção do modernismo.

Trata-se de estahelecer uma com­paração entre o modernismo no Brasil e aquele presente em outros países. Para Menotti deI Picchia, diferente­mente do que ocorre em outras cir­cunstâncias, a modernidade que se

pretendia instaurar no país não con­tradiz a perspectiva da tradição:

"Não somos, nunca fomos futuris­tas. Eu, pessoalmente, abomino o dogmatismo e a literatura da es­cola de Marinetti. Seu chefe é. para nós, um precursor ilumina­do, que veneramos como um ge­neral da grande batalha da Refor­ma, que alarga seu 'front' em todo o mundo. No Brasil não há, p0-rém, razão lógica e social para o futurismo ortodoxo, porque o pres­tígio do seu passado não é de mol­de a tolher a liberdade da sua ma­neira de ser futura." 18

O Brasil, no que concerne ao in­gresso na modernidade, seria portanto "heterodoxo", já que a instauração do novo não se confronta com a ordem ulógica e sodal" até então vigente.

Ao responder ao crítico passadista de O Mundo Literário que rejeitara o ponto de vista moderno de Klaxon, Mário de Andrade, no terceiro nú­mero da revista, segue a mesma linha de raciocínio do texto de Menotti deI Picchia. Mais uma vez o que está em jogo é a comparação entre o moder­nismo brasileiro c o futurismo italia­no. Aqui Mário de Andrade tem o cuidado de examinar ponto por pon­to os princípios do manifesto de Ma­rinetti, comparando-os aos que foram expressos na revista brasileira. São sobretudo os aspectos que enfatizam o movimento de ruptura com o pas­sado que são rejeitados no futurismo. A idéia de se montar a modernidade sobre a evolução se expressa c1ar.­mente na passagem que afirma a ne­cessidade de se respeitar "o passado sem o qual Klaxon não seria Kla­xon".19

Esta visão da modernidade no Brasil, feita pelos modernistas já nes­te primeiro tempo do movimento, vai

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adquirir um contorno amadurecido pouco mais tarde, quando, a partir de 24, o modernismo passa a trilhar o caminho da brasilidade. Por en­quanto, na instabilidade de sua bus­ca de rumos, o modernismo vai ado­tar, mesmo reconhecendo seu compa­recimento atrasado no cenário mun­dial ou na modernidade, lima feição mais marcadamente imediatista.

3. O ImedlaUamo no acellO l ordem moderna no primeiro tempo mod.r� nl.ta - o reconhecimento do untve,­... moderno

o que se chama aqui de imedia­tismo do primeiro tempo modernista, até 1924, pode ser percebido na cor­respondência de Mário de Andrade em 1922. A 6 de fevereiro deste ano, ao escrever a Manuel Bandeira, afir­ma o escritor de São Paulo:

"Sei que dizem de mim que imito Cocteau e Papini. Será já um mé­rito ligar estes dois homens dife­rentíssimos como grácil lagoa de impetuoso mar. Il. verdade que movo com eles as mesmas águas da modernidade. Isso não é imi­tar: é segtlir o espírito duma épo­ca." 20

o que garante a possibilidade do contato do escritor brasileiro com os modernos europeus é a existência de uma ordem universal que é a própria modernidade. No caso, o ingresso do brasileiro Mário de Andrade na ordem moderna se faz de forma imediata pelo reconhecimento de um solo c0-mum - a modernidade - entendida aqui como "espírito duma época".

A discussão sobre o universalismo no modernismo brasileiro percorre toda a sua história. Nem poderia ser de outra forma, já que tal como se procura pensar o ingresso na moder­nidade. este se identifica com o in-

gresso na universalidade. Até mesmo nos momentos em que o modernismo radicalizou sua dimensão nacionalis­ta, o que está sempre em jogo é uma forma de se entender o movimento da relação entre o particular e o uni­versal. Há que se perguntar então, não importa que momento do moder­nismo se estiver analisando, de que forma está sendo entendida a parti­cipação ou o ingresso da produção cultural local em uma ordem mais ampla. Este ingresso' é pensado de uma forma imediatista, como no pri­meiro tempo? De que forma são ela­boradas as mediações dentro do na­cionalismo do segundo tempo? Não se colocar esta questão impede que se compreenda a proposta bás.ica do

• •

movunento� que tem sempre em mira de forma conjugada o ideal moderni­zador e o que se costumou chamar de participação no concerto das nações.

O primeiro tempo modernista ma­nifesta em seu conjunto um esforço de contrapor-se ao passadismo enten­dido como inatual e de produzir uma linguagem adequada ao tempo e à vi­da presentes. Para viabilizar o pro­cesso de adequação da representação à realidade nova, os modernistas dos primeiros anos vão buscar nas ten­dências inovadoras européias os ins­trumentos que lhes possibilitam efe­tuar a atualização da produção na­cional. Neste período em que o pano­rama da vida urbana é aquilo que deve passar na estética nova, e em que freqüentemente São Paulo é apre­sentada como a "Londres de nebli­nas frias, sem beleza natural, onde tudo foi feito pelo homem, a vida é intensa. mas fabrica-se e pensa-se", 21

a incorporação na modernidade, inte­gração do país no plano mundial, se faz pela absorção dos meios expres­sivos novos, importados, e pelo seu uso intensivo e polêmico na disputa com o passadismo.

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Com certeza, a produção de cultu­ra no Brasil está defasada com rela­ção aos países europeus. Isto não quer dizer - e a realidade moderna paulistana está aí a exigir esta defi­nição - que não possamos chegar ao nível de atingimento da ordem moderna já conseguido pelos países mais adiantados. Crítico de música que era, entre os versos escritos em francês por Sérgio Milliet e a cola­boração de autores italianos, Mário de Andrade não se cansa de compa­rar e de lamentar a posição atrasada de São Paulo no processo de absor­ção dos ingTedientes inovadores. A boa referência é sempre a moderni­dade pensada a partir de padrões eu­ropeus para os quais o consternado cronista acredita serem "Debussy e Ravel - músicos que já representam um passado na Europa e que inda mal são percebidos pela nossa ignara gente". t2

A observação de Mário de Andra­de não faz com que nosso ingresso na modernidade deixe de ser "natu­ral" e "necessário", Naturalidade e necessidade são atributos da arte mo­derna definida por Rubens Borba de Moraes em Klaxon. Natural também é a postura pretendida pela corres­pondência de Mário de Andrade nes­tes anos ao comentar com seus ami· gos as novidades de Paris. Para Sér­gio MilIiet, O esclHor paulista comen­ta Cocteau e Ivan Golf. E observa o que convém agora ressaltar:

"Os poemas chegaram-me justa­mente após ter eu escrito uma crônica para a Revista do Brasil, em que dizia este anseio de uni­versalidade que anima os moder­nistas de quase todo mundo.""

A mesma perspectiva, qualificada como internacionalista, já se manifes­tava na apresentação de Klaxon em

22. Ou ainda no terceim número da revista, no artigo-resposta de Mário de Andrade, na comparação com o futurismo. Apresentadas as diferenças entre o manifesto italiano e os ideais de Klaxon, mantém-se a visão da pro­blemática comum que percorre os dois movimentos:

fi E se em outras coisas aceitamos o manifesto futurista, não é para segui-lo, mas por compreender o espírito de modernidade univer· sal." �4

Também as cartas de Mário de An­drade para Tarsila do Amaral tradu­zem a opinião de quem pretende a modernização e a integração na ordem universal.

Isto tudo faz com que a conferên­cia feita por Oswald de Andrade na Sorbonne, em 1923, seja comemorada pelos nossos modernistas com orgu­lho de vencedor. Para Rubens Borba de Moraes, o reconhecimento da ma­turidade da proposta moderna brasi­leira pelos centros avançados produ­tores de cultura é comunicada em carta a Joaquim Inojosa:

"Sabes que o Oswald fez na Sor­bonne uma conferência sobre nós? O Sérgio escreveu-me con­tando que em Paris o nosso mo­vimento tem despertado o mais vivo interesse. Ivan GoIl, que pu­blicou o ano passado uma anto­logia mundial onde todos os mo­dernos dos "Cinco Continentes" (é o título do vaI.) estão reunidos. vai acrescentar um apêndice con­sagrado à poesia brasileira mo­derna." t5

O Brasil participa assim, como apêndice atrasado de uma antologia mundial, do concetto das nações cul­tas. Naquele momento era esta a for-

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ma que se percebia de garantir tegração. Precariamente.

4. A redeflnlçlo do untv.,...lIlmo no con· lexto da dlKuello sobre a br •• llldade

Aos poucos, entretanto, o sentido da impropriedade de um acesso ime­diato do pais à vida moderna começa a se esboçar. Na situação em que se encontrava, atrasado com relação ao progresso das nações mais ricas e sem conseguir diferenciar-se na ordem in­ternacional, procurando pensar a mo­dernização como repetição de um processo já realizado pelos países centrais, o Brasil só podia compare­cer no cenário internacional como um participante pobre e indefinido.

A partir de 1924, sem que seja, é claro, colocada em questão a ordem mundial, ou, o que é a mesma coisa, sem abrir mão de seu ideal univer­salista, o modernismo brasileiro vi-, v�ndo um momento que se poderia dIzer de crise de participação, passa a

. se tnteressar pelos problemas que

dIzem respeito à sua identidade e à determinação da entidade nacional. Se�á este o momento a partir do qual o mgresso na modernidade não será mais buscado dentro de uma verten­te imediata, mas. ao contrário, serão discutidas as mediações que irão ao mesmo tempo constituir o seu cami­nho e sua garantia.

ll, portanto, como exigência do •

comparecimento na ordem universal que se instaura no modernismo a q�estão da brasilidade. Isto significa dIzer que é no próprio cerne da de­finição do acesso à modernidade que ela vem se instalar.

De certa forma, 1923 já prenuncia a mudança de rumos. A conFerência de Oswald de Andrade em Paris, "O esforço intelectual do Brasil contem­porâneo", e a correspondência de Má­rio de Andrade, em particular para

Tarsila. dão bem a medida do que •

ocorria. Certamente não é por acaso que no

exato momento em que se estabele­cem relações de maior proximidade entre os autores nacionais e a produ­ção intelectual não-nacional se opera uma reorientação do movimento mo­dernista em direção à proposta nacio­nalista. A questão da brasilidade sur­ge dentro do movimento no interior de um quadro de preocupações rela­tivo à caracterização do papel que o Brasi! deve ocupar no cenário inter­nacional. Ela só pode então ser com­preendida no espaço de uma relação que tem como elementos a ordem mundial, por um lado, em uma p0-sição legisladora, e por outro lado o Brasil postulando o seu lugar.

Paulo Prado, prefaciando em 1924 o livro de Oswald de Andrade, Poe­sia Pau-Brasil, deixa clara a presença desta relação:

"A poesia 'pau-brasi!' é o ovo de Colombo - esse ovo, como dizia

• •

um Inventor meu am1go, em que ninguém acreditava e acabou en­riquecendo o genovês. Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um ateUer da Place CUchy - umbigo do mundo -descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manueUnas, a revela­ção surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia 'pau-bra­sU'," t6

A fundação de uma arte e de uma cultura nacionais se faz, neste mo­mento, a partir da experiência do contato com os centros avançados eu-

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ropeus. Seu movimento é descrito do ponto de vista da ótica do descobri· dor (trata·se do "encantamento das descobertas manuelinas"), e é nesta perspectiva que se vai explorar o mundo Ifnovo" e Hmisterioso",

Já não se está propondo nesta altu· ra a entrada do país de forma ime· diata no circuito da modernidade. Certamente é ainda esta participação do Brasil que se pretende alcançar. No entanto, diferentemente do que vinha ocorrendo no ideá rio do pri· meiro tempo do movimento, interessa agora a tematização das mediações que asseguram a viabilização do in· gresso na ordem moderna.

O modernismo da Semana de 22, de Klaxon, de Pau/icéia Desvairada pretendia dispor como instrumento do processo modernizador a absorção das fórmulas da modernidade presen· tes DOS centros mais avançados pro­dutores de cultura. Paris, basicamen· te, funcionava como o referencial pa· ra o movimento. A maneira como na­quele tempo se manifestava a crença na modernidade entendida como um universal possibilitava aos modernis· tas dispensar a consit:eração do pro­blema nacional. A ordem moderna, se dizia, pode implantar·se de forma indistinta em todos os lugares. Con· siderava·se apenas que a sua implan· tação podia fazer·se de forma mais rápida ou mais lenta de acordo com a posição que se ocupava no cenário internacional. Pensado assim, linear· mente, o ingresso do Brasil no muno do moderno consistia na repetição do percurso já feito por outras nações. Ao situar de forma imediatista o pro­cesso de incorporação na ordem da modernidade, aos modernistas resta· va lamentar a precariedade da posi· ção em que se encontravam. Cada vez mais lhes parecia que a eficácia da ótica imediatista fracassara e que seria necessário investir nos disposi·

tivos mediadores para garantir corporação pretendida.

• 8 10-

5. A br •• llidlde •• Introduz no movi­mento pari! ... agu ... r • partlclpeçlo do pai. no concerto Internacional

A problemática da brasilidade, que expressa o esforço de determinação dos predicados particulares da nação brasileira, constitui dentro do modero nismo uma resposta mais satisfatória para a viabilização da incorporação ao país na modernidade.

Sintomática da mudança de rumos é a carta enviada por Mário de An· drade para Tarsila:

"Cuidado! Fortifiquem·se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos jun· tos, Tarsila, Oswald, Sérgio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés. E se fizeram futu· ristas! hil hi! hi! Choro de inveja. Mas é verdade que considero vo­cês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na epi­derme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decaden· tes! Abandona Paris! Tarsilal' Tarsila! Vem para a mata virgem, onde não há arte negra, onde não há também �rroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o mata· virgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e a minha queridíssima Tarsila precisam." 27

A preocupação de Mário de An· drade, chamando com urgência a atenção para a solução encontrada

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MOOERNISMO REVISITADQ 231

("ovo de Colombo", haveria de dizer Paulo Prado), traduz a necessidade de situar a produção da pintora com relação aos autores europeus. Aban· donar o Gris e o Lhote não significa abrir mão da exigência moderniza· dora. Significa, antes, optar por con· ceber a modernização a partir das particularidades da realidade da na· ção.

Il sempre tendo em vista a relação existente entre a ordem internacio­nal moderna e a realidade nacional que se pensa a criação de uma arte própria. Sendo assim, a constituição do ideário nacionalista dentro do mo­dernismo do segundo tempo se apre­senta como uma proposta que se fun­damenta no reconhecimento da legis­lação da ordem mundial e na consi­deração do lugar do Brasil em sua pretensão de ser um de seus partici­pantes. Ao mesmo tempo e exata­mente no movimento da sua instau­ração, a discussão sobre a brasilida­de intervém no projeto modernista moldando de forma definitiva a con­cepção mesma de modernidade do movimento.

A partir de 1924, a proposta mo­dernista passa nitidamente a enfatizar mais e mais a necessidade de se con­siderar os compromissos que se de­vem estabelecer entre a cultura atual e a tradição na caracterização de um projeto em que esteja expressa a na­cionalidade. Il como se o ingresso na ordem mundial, portanto na vida mo­derna, ao exigir da produção cultu­ral feita no Brasil uma contribuição própria, nacional, exigisse ao mesmo tempo que esta explicitasse na sua vi­são do passado relações de cumplici­dade que viessem definir para O caso brasileiro uma forma específica de modernidade. .

A conceituação da modernidade no Brasil no tempo do modernismo que se inicia em 1924 e que constitui a

marca mais importante de todo o mo­vimento é resultado de um esforço de compatibilização do antigo e do novo. Só desta forma, através da ado­ção desta solução que busca fundar a cultura nacional nova em um registro da temporalidade próprio, nacional, onde também se abriga o passado, é que se poderá pensar o ingresso da produção cultural do país no concer­lO das nações cultas.

O Manifesto da Poesia Pau-Brasil publicado por Oswald de Andrade, centro da polêmica que se travou nos anos de 1924 e 1925, tenta uma ex­posição da solução modernista. A perspicácia do texto oswaldiano per­cebe inicialmente a distância e o dé­bito com relação ao modernismo dos primeiros anos. Sabe também situar o caso brasileiro no contexto mais amplo em que a produção nacional deveria se inscrever. Com relação ao modernismo inicial o texto é claro:

"O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época. H 18

Reconhecendo os méritos do mo­dernismo inicial, na medida em que dá continuidade ao esforço de moder­nização iniciado anteriormente, Os­wald de Andrade percebe que já agora a perspectiva modernizadora há que ser colocada dentro dos parâme­tros do nacionalismo. A categoria re­gional comparece então oposta ao ex­presso internacionalismo do primeiro tempo. Já a idéia de integração do elemento nacional na ordem mundial vem destacada da seguinte forma:

"O Brasil profiteur. O Brasil dou­tor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movi-

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mento de reconstrução gera\. Poe­sia Pau-Brasil." 29

Aqui, o projeto de elaboração de uma arte própria, a poesia pau-bra­sil, deve ser compreendido como pro­posta de participação na ordem am­pla da modernidade. O que coincide com a reconstrução geral não é um movimento de identificação imediata. IÔ, antes, a busca de uma definição própria de reconstrução para o Brasil que possibilita o comparecimento do modernismo brasileiro no cenário in­ternacional moderno.

Para isso Oswald de Andrade pro­põe inicialmente que se estabeleça uma ruptura no processo de impor­tação de padrões cullurais e que se adote a perspectiva da produção de modelos culturais próprios e adequa­dos à exportação.

"Dividamos. Poesia de importa­ção. E a Poesia Pau-Brasil, de ex­portação. Jt 30

Esta postura, que pretende a pro­dução cultural própria, é ao mesmo tempo a única que assegura a possi­bilidade da inserção na ordem da mo­dernidade. Nos termos do manifesto é ela que assegura a exportação, isto é, o reconhecimento do plano inter­nacional.

Esta opinião torna-se ainda mais nítida quando o manifesto contextua­Iiza o sentido da sua proposta. A poé­tica pau-brasil insere-se dentro do de­senvolvimento mais amplo da cultura universal. IÔ nele que ela adquire um lugar e um sentido. O texto refere-se à problemática artística do início do século caracterizando-o como um pe­ríodo revolucionário que apresenta dois momentos: no primeiro. "a de­formação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e De-

bussy até agora".3l No segundo, a que corresponde um projeto constru­tivo, inscreve-se a poética pau-brasi\. Ela participa, na sua "inocência", ,da "inocência construtiva" ampla. Esta participação, fazendo coincidir o es­forço nacional com o esforço geral. não perde de vista, ao contrário, exi­ge o ideal de elaboração de uma cul­tura nacional.

No contexto da polêmica suscitada pela pubUcação do Manifesto Pau­Brasil, Mário de Andrade se dirige, em carta, a Joaquim Inojosa, em no­vembro de 1924:

"A minha 'Escrava', derivada du­ma explícação oral que fiz da poética modernista universal, re­flete necessariamente e demasia­damente ideais europeus. Ora jsso me desgosta no livro porque é lógico que a realidade contempo­rânea do Brasil, se pode ter pon­tos de contacto com a realidade contemporânea da esfaUada civi­lização do Velho Mundo, não po­de ter o mesmo ideal porque as nossas necessidades são inteira­mente outras. Nós temos que criar uma arle brasileira. Esse é o úni­co meio de sermos artisticamente civilizados. Quem dentre nós re­fletir ideais ou apenas sentimento alemão, português ou mesmo ame· rica no do norte é um selvagem, não está no perlodo civilizado de criação. Está no período da imi­tação, do mimetismo a que o sel­vagem é levado pela dependência, pela ignorâhcia e pela fraqueza que engendra a covardia e o me­do. Se é certo que nas conseqüên­cias espirituais que a minha 'Es­crava' dita, esse abrasileiramento do brasileiro está implicitamente promulgado, é também certo que a grande maioria se esquecerá de tirar a ilação e verá mais certa-

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MOOERN ISMO REVISITADO 233

mente do livro certos ditames prá­ticos mais fáceis de apreender. Veja bem: abrasileiramento do brasileiro não quer dizer regiona­lismo nem mesmo nacionalismo = o Brasil pros brasileiros. Não é isso. Significa só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia dirigem a civilização da Terra, tem que concorrer pra esse concerto com a sua parte pes­soal, com o que o singulariza e individualiza, parte essa única que poderá enriquecer e alargar a Ci­vilização. Da mesma forma que do lado prático. Se nós quisésse­mos concorrer pra organização econô..,ica da Terra, com o trigo próprio da Rússia ou o vinho pró­prio da França ou da Itália, a nossa colaboração seria inferior, secundária, subversiva e inútil porque nem o trigo nem o vinho são específicos da nossa terra. Mas com a borracha, o açúcar e o café e a carne nós podemos alar­gar, engrandecer a economia hu­mana. Da mesma forma nós tere­mos nosso lugar na civilização artística h�.nana no dia em que concorrermos com o contingente brasileiro, derivado das nossas necessidades, da nossa formação por meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela ter­ra e clima, pro concerto dos ho-mens terrestres." S! .

Certamente é uma reorientação do modernismo que se está pretendendo. Mais uma vez está em pauta a distân­cia entre a problemática do modernis­mo inicial e a postura nacionalista do segundo tempo. Neste sentido, atento para o estabelecimento das distin­ções, Mário de Andrade faz a relei­tura de A escrava que não é ' /saura, texto de 1922.

o ideal universalista que se mani­festa a partir de 1924 na idéia de in­gresso no concerto das nações está presente nos dois tempos do movi­mento. Ocorre que agora, no segundo tempo, este ingresso, via da moderni­zação, exige a definição da vocação nacionalista do movimento. Ser mo­derno significa sempre comparecer no cenário internacional. A moderni­dade é exigência que se faz sentir no processo de incorporação. J á agora, este só é bem-sucedido ao se dispen­sar a visão imediatista e se adotar a mediação da questão nacional.

O paralelo estabelecido por Mário de Andrade entre o processo de co­mercialização das matérias-primas bra­sileiras no mercado internacional e a produção da cultura vem enfatizar o ponto de vista de Oswald de Andrade no manifesto de 1924. Nos dois auto­res a exportação é o caminho da in­corporação na vida moderna. O que define a qualidade daquilo que se deve exportar é a ordem ampla em que o país se insere e segundo a qual ele é regido.

Considerada em seus traços mais expressivos, a década de 20 se apre­senta como o campo de um debate que tem sempre por horizonte aquele feixe de questões. No que concerne ao movimento modernista, um dos seus participantes, é possível perce­ber que seus eixos principais se apro­ximam ou se afastam até o estabele­cimento de uma ruptura, na Antropo­fagia, conforme o modo como se dá o enfrentamento da questão da bra­silidade.

e . A .rgument.içlo de Mário de Andra­de - o fuga, do 8ralll no concerto Internacional , definido a partir de uma r.laçlo

Ao longo de sua obra Mário de Andrade deixará claro, a cada mo­mento, que a ênfase dada à proble-

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mática do nacionalismo deve ser encarada dentro de um movimento mais amplo de direção universalista. Assim, ao discutir a definição da "fala brasileira", em crônica de 1929, sua argumentação se desdobra percor­rendo todas as dimensões da questão:

. . Porque o Brasil é uma nação possuidora duma língua s6. Essa língua não lhe é imposta. � uma lfngua firmada gradativa e incons­cientemente no homem nacional. � a língua de que todos os social­mente brasileiros têm de se ser­vir, se quiserem ser compreendi­dos pela nação inteira. I? a língua que representa intelectualmente o Brasil na comunhão universal ." "

o raciocínio sublinha a importân­cia de se tematizar o problema da língua nacional. Imediatamente este é contextualizado na discussão mais ampla onde seu sentido se revela no âmbito da comunhão universal.

Em 1928, no Ensaio sobre música brasileira, o que está importando para Mário de Andrade é a definição do "critério de música brasileira pra atualídade" . .. Naquele momento isto significa propor "aferradamente . . . nacionalizar a nossa manifestação". Enfrentar a problemática da atualida­de, proposta básica do modernismo, consiste em defender a solução nacio­nalista. A redefinição do conceito de atualidade para o movimento exige então que se recoloque mais uma vez a questão da sua vocação universa­lista:

"E arara. Porque, imaginemos com sens()-CQmum: se um artista bra­sileiro sente em si a força do gê­nio, que nem Beethoven e Dante sentiram, está claro que deve fa­zer música nacional. Porque como gênio saberá fatalmente encontrar

os elemen tos essenciais de nacicr nulidade (Rameau Weber Wag­ner Mussorgsk.i). Terá pois um va­lor social enorme. Sem perder em nada o valor artfstico porque não tem gênio por mais nacional (Ra­belais Goya Wbitman Ocussai) que não seja do patrimônio uni­versal." 55

Valor social (compromisso com a tese nacionalista) e valor artístico é o que se procura, no texto, fazer coin­cidir. A mesma idéia poderia ser ex· pressa de outra forma afirmando que a dimensão universal da obra de arte, seu reconhecimento no plano mun­dial, advém do maior grau de nacio­nalidade que ela puder manifestar.

A perspectiva generalizante pre­sente nesta passagem do texto, de ca­ráter eminentemente polêmico, não deve entretanto encobrir uma dimen­são do raciocínio de Mário de Andra­de que visa exatamente circunstan­ciar a proposta nacionalista. Embora não explicitada neste texto, a preo­cupação de Mário de Andrade com sua proposta nacionalista diz respeito à problemática cultural dos países emergentes, países novos, e não às si­tuações culturais já sedimentadas co­mo nos palses mais adiantados.

O modernismo do segundo tempo preocupa-se em manter o ideal uni­versalista. O que está em pauta é sempre o movimento da incorporação na ordem moderna. Ocorre que agora esta incorporação se faz levando em conta as determinações de cada situa­ção cultural em sua especificidade. Se para os países mais avançados o in­gresso na modernidade se faz de for­ma imediata (eles são de fato a pró­pria ordem moderna), para os países novos, emergentes, a participação no concerto das nações deve fazer-se pe­)a afirmação dos caracteres nacionais. Na organização do cenário cultural no

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MODERNISMO REVISITADO 235

plano mundial o modernismo procura diferenciar o papel que cada partici­pante do concerto das nações deve desempenhar.

A questão do nacionalismo surge, desta forma, como manifestação no plano da cultura do esforço de incor­poração dos países novos na ordem moderna . Em sua Pequena história da música, Mário de Andrade retoma esta idéia de forma clara:

"A pesquisa do caráter nacional s6 é justificável nos países novos, que-nem o nosso, ainda não pos­suindo na tradição de séculos, de feitos, de heróis, uma constância psicológica inata." "

Tendo por base estas preocupações, o modernismo da década de 20 ela­bora uma série de "retratos" que pro­curam dar conta daquilo que consti­tui a verdadeira realidade brasileira. Estes "retratos-do-brasil " apresentam­se com uma dupla função. Em pri­meiro lugar, cabe ressaltar sua dimen­são crítica, que pretende invalidar como inadequadas as representações da realidade hrasileira feitas ao longo da nossa história cultural. A inade­quação, argumenta-se, deriva do fato de estas representações terem suas raí­zes presas em contextos culturais alie­nígenas descompromissados com a pesquisa da brasilidade. Em alguns momentos, sobrepondo-se à idéia de inadequação, o modernismo acredita que as representações tradicionalmen­te feitas a respeito da realidade da nação constituem um obstáculo para a apreensão da verdadeira entidade nacional.

Enquanto crítico e historiador da música, Mário de Andrade, em seu Ensaio sobre música brasileira, insis­te na denúncia de um divórcio 'entre a música artística brasileira e a "nos� sa entidade racial". ·7 " propósito ge-

ral do ensaio chamar a atenção para a falta de cultura nacional e para o fato correlato de os homens de cul­tura no Brasil estarem embebedados pela cultura européia. O cultivo de valores culturais estrangeiros é o que impede, para o autor, o florescimento da música nacional. " certo também que a ausência de uma música de ca­racterísticas marcadamente nacionais seria causa da impossibilidade do acesso da nação ao plano internacio­nal. As obras de Luciano Gallet, de Lourenço Feroandez e de Villa-Lobos aparecem então, dada a "orientação brasileira" que apresentam, como um padrão que deve ser aconselhado.

O modernismo já não se apresenta nestes anos como um movimento que propunha a renovação restrita do do­mínio artístico. Está antes empenhado em se afirmar como elemento chave no processo de constituição da enti­dade nacional. A 1 .0 de novembro de 1929, em sua crÔnica para o Diário Nacional, Mário de Andrade observa:

"Me parece incontestável que nós estamos atravessando um momen­to muito importante da nacionali­dade, principalmente pelas possi­bilidades que ele tem de despertar no povo brasileiro uma consciên­cia social de raça, coisa que ele nunca teve." 88

E mais adiante, após ter transcrito 11mB passagem de Mar/in Fierro, acrescenta:

"Eu acho que também temos que cantar opinando agora, pra nin­guém chegar atrasado no tragicô­mico festim. Há muito mais no­bre civilidade em se ser conscien­temente besta que grande poeta de arte pu.ra." "

O modernismo tem de si mesmo a crença de constituir o momento de

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fundação da vida cultural no pais. Cabe a ele a tarefa de desvendar os próprios fundamentos da nacionali­dade.

Se o que se denuncia é lima situa­ção de crise, crise de identidade, da consciência nacional, que se manifes­ta na existência do divórcio entre cul­tura e realidade, a superação deste estado de coisas exige o esforço para se chegar ao conhecimento da verda­deira entidade nacional.

A busca do que é próprio da na­ção brasileira, daquilo que a singula­riza e a distingue no concerto inter­nacional é o traço mais característico do segundo tempo do modernismo. Os "retratos-do-brasil" vão procurar, em sua dimensão positiva, ressaltar estes aspectos especificas, singulares - a própria brasilidade.

Traços distintivos na nacionalida­de, por um lado, na medida em que nos destacam no conjunto das nações que participam do concerto interna­cional, os elementos que constituem a brasilidade são por outro lado o que possibilita referir-se à nação bra­sileira como uma realidade una e in­divisa.

O modernismo crê poder atingir por trás do Brasil das aparências, de superfície, onde se expressa a diver­sidade, uma realidade nacional mais profunda, essencial, em que o paIs se dá como uma totalidade. Conflitos, diferenças, contradições são apenas a face externa e menos verdadeira de um ser nacional substrato que é pre­ciso trazer à luz.

Os "retratos-do-brasil" apresentam­se assim, durante toda a década, de­sempenhando um duplo papel. Por um lado, exercendo a função de crí­tica da cultura, pretendem denunciar a inadequação dos saberes vigentes na medida em que se enraízam no processo de importação de represen­tações. Por outro lado, mesmo pagan-

do o preço de pessimisticamente cons­tatar, por um momento, a nossa in­consistência de caráter, visam identi­ficar positivamente a identidade subs­tancial da nação.

O caminho que procuramos percor­rer no modernismo apresenta dois momentos diferentes . No primeiro, chamado de primeiro tempo moder­nista, pôde-se pe.rceber que o acesso à ordem da modernidade era pensa­do a partir de uma perspectiva ime­diatista. Esta sustentava-se na crença de que a modernidade constituía uma ordem universal em um sentido espe­cifico: aqui, ao menos em termos qua­litativos, não eram consideradas par­ticularidades regionais que condicio­nassem a sua implantação de forma particularizada em contextos diferen­tes. Ao contrário, imaginava-se que a adesão dos processos modernos de expressão cultural conduziria, de for­ma imediata, à incorporação da cul­tura feita no Brasil ao contexto inter­nacional. Era esta a crença que apa­recia nas afirmações de Mário de An­drade referindo-se às "mesmas águas da modernidade" onde estariam imer­sos ele próprio, Cocteau e Papini.

A opção manifestada no primeiro tempo do modernismo, entretanto, a partir de 1924, começou a parecer para os participantes do movimento como uma solução não eficiente. Ela desconhecia o fato de que era a afir­mação da mediação do nacional que viabilizava o ingresso na ordem mo­derna.

O segundo tempo modernista intro­duz no ideá rio modernista uma ver­são nova do universalismo: ela acre­dita que a ordem moderna , associada sempre à idéia de concerto interna­cional, determina para a situação bra­sileira a necessidade de propor, para viabilizar a incorporação, uma produ­ção marcada de "caráter" nacional.

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MOOERNISMO REVISITAOO 237

A exigêocia da tematização da me­diação do nacional nesta visão uni­versalista conduz ao propósito de constituição dos "retratos-do-brasil"_ A elaboração deste "retratos" está inserida, desde o início, no movimen· to de uma relação entre a parte, na­cional, e o todo, concerto internacio­nal. A existência desta relação vai de­terminar, no plano categorial, a esco­lha das vias utilizadas na elaboração destes "retratos-do-brasil"_

Ao mesmo tempo pôde-se observar que o modernismo manifestava des­de os seus primórdios uma preocupa­ção relativa ao ri/mo em que se pro­cessava a nossa modernização_ O pri­meiro tempo modernista considerava a problemática da nossa moderniza­ção a partir do ponto de vista da ótica - universalista que lhe era pró­prio. O "relógio" nacional poderia estar atrasado. Isto não significava que ele fosse regido por mecanismos que o singularizassem. Ao contrário, supunha-se que o "relógio" nacional pudesse ser acelerado no sentido de poder bater no compasso do ritmo in­ternacional marcado por um relógio que por natureza não se distinguia do nosso.

O segundo tempo modernista en­cara a situação de "atraso" do tem· po nacional como constituindo a nos­sa temporalidade. Com isso ele não se destaca dos compromissos da ótica do primeiro tempo no q�e ela tem de fundamental : seu universalismo. Ocorre que agora, no segundo tempo, este universalismo determina a cons­tituição de uma compreensão da tem­poralidade para o caso brasileiro.

A constituição de uma teoria da temporaJidade da vida nacional vai possibilitar a reavaliação da situação de "atraso" do contexto nacional. Ela vai também fornecer as bases da de­finição de um tempo da moderniza­ção próprio da nacionalidade.

No'"

1 . Joaquim I nojosa, O movimento mo­dernista em Pernambuco, Rio de Janeiro, Tupy, 1968, p. 142.

2 . Ibid., p. 142-143. 3 . Ibid., p. 144. 4 . Mário de Andrade, "Oswald de An­

drade: Pau-Brasil Sam Pareil. Pa.ris, 1925", transcrito em Marta Rossetti Batista, Telê Ancona Lopez e Yone Soares de Lima (org.) . Brasil: t ,- tempo modernista -

1917/29; documentação, São Paulo, IED, 1972, p. 225-232.

5 . Gilberto Mendonça Teles (seI. e apre­sent.), Tristüo de Athayde: teoria. crftica e hist6r;a literdria. Rio de Janeiro, Livros Téc· nicos e Cientificos e INL, 1980. p. 346.

6 . Ibid., p. 355. 7. Ibid., p. 354. 8 . Ibid., p. 356. 9 . 1bid., p. 358. 10. Esta opinião é partilhada por parti­

cipantes e intérpretes do movimento ma­dernista. Ver a conCeréncia "O movimento modernista'" de 1942, de Mário de Andra­de, incluída em Aspecto� da fitemtllra bra­sileira, 5." ed., São Paulo. �arlins, 1974. Ver os comentários de Mário da Silva Brito em sua Hisldria do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 197 1 .

1 1 . "A exposição Anita Malfatti", trans­crito em Mário da Silva Brito. op. cit .. p. 61-62.

12. "Mestres do passado", transcrito em Mário da Silva Brito. op. cit.. p. 257. . 1 3 . Oswald de Andrade, Obras comple­tas VI - Do pau-brasil à antropolagia e às utopias, Rio de Janeiro, Civilização Bra­sileira, 1972.

14. Klaxon, n.- 1. p. 2. 1 5 . Ibid. 16. "Arte moderna", em O curupira f!

o carõo, São Paulo. Hélios, 1927, t 7 . li A escrava que não é haura ", em

Obra imatura, 3." ed., São Paulo. Martins: Belo Horizonte. Itatiaia. 1980.

1 8 . O curupira e o carõo, op. cit. 19 . Klaxon, n.- 3, p. 10. 20. Cartas a Manuel Bandeira, Rio de

Janeiro, Simões. 1967, p. 24, 2 1 . Carta de Rubens Borba de Moraes

em Joaquim Inojosa. op. di .. p. 365·366, 22, Klaxon, n," I , p, 3. 23 . Paulo Duarte, M6rio de Andrade por

ele mesmo, São Paulo. EDART. 1 97 1 . p. 289.

24. Klaxon, n.' 3, p. 10. 25 . Joaquim lnojosa, op. cit . • p. 368.

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238 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1 988/2

26. Oswald de Andrade, Poesias reuni· das de Oswold de Andrade, São Paulo, Difel, 1966,

21. Aracy Amaral, TarsUa, sua obra e seu tempo, p. 369.

28. Oswald de Andrade, Obras comple-tas VI, op. cit., p. 9.

29. Ibid., p. 1. 30. Ibid., p. 7. 3 1 . Ibid. 32. Joaquim Inojosa, op. cit., p. 340-34-1. 33. "Fala brasileira - I", crônica de

25/5/1929 inc1ufda em Telê Ancona Lopez (arg.) . Táxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo, Duas Cidades·Secretaria de Cul. tura, 1976.

34. Ensaio sobre música brasileira, São Paulo, Chiarotto, 1928, p. 6.

35. Ibid. 36. Pequena IJistdria da mfÍsica. 9," ed ..

São Paulo, Martins, 1980, p. 195. 37. Op. cit., p. 3. 38. Telê Ancona Lopez (arg.) . Táxi e

crônicas . . . . op. cit., p. 155. 39. Ibid.

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Eduardo Jardim de Moraes é doutor em filosofia pela UFRJ e professor do Depar­tamento de Filosofia da PUC-R J. Em 1987 esteve na Universidade de Erlangen-Nüren­berg, Alemanha, como bolsista da Funda· ção Humboldt. PubHcou o livro A brasili. dade modernista: sua dimensão filos6fica (Rio de Janeiro, Graa1, 1978) e diversos artigos sobre filosofia e pensamento bra· sileiro.

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