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Conheça nossa nova página: www.ibccrim.org.br Editorial Manifestações, legislação penal e Constituição As manifestações populares emergidas em junho do último ano continuam a render debates, análises e preocupações na seara pública, sobretudo à vista das tensões entre direitos fundamentais individuais e supraindividuais que comumente implicam. Recordemos: os protestos iniciaram-se a partir de reivindicações contra o aumento das passagens de ônibus em diversas capitais do país, em maio de 2013. Foram desde logo reprimidos pelas polícias dos Estados respectivos, e não raramente reputados por governantes como atos localizados de grupos de “vândalos” ou “baderneiros”. Editorialistas de grandes veículos da imprensa manifestaram-se na mesma linha, e chegaram a urgir de governos que intensificassem a repressão a fim de que fossem evitados congestionamentos no trânsito e outros aborrecimentos causados pelas manifestações. Nesse contexto, na noite de 13 de junho de 2013, a cidade de São Paulo assistiu a atos de violência física e prisões abusivas praticados por agentes da repressão em intensidade que não se via desde os anos de chumbo da ditadura instaurada em 1964. Registraram-se dezenas de prisões por fatos inexistentes ou penalmente irrelevantes – como o anedótico “porte de vinagre” –, agressões a cidadãos, uso indiscriminado de gases pimenta e lacrimogênio e disparos de balas de borracha feitos ao arrepio de protocolos de segurança e contra cidadãos indefesos. Naquela noite, ao menos dois jornalistas – que exerciam seu direito ao trabalho – foram gravemente feridos no rosto por balas de borracha disparadas por policiais em inequívoco abuso de autoridade, acarretando a um deles a perda de um olho. As imagens e descrições da anticonstitucional repressão correram o país e o mundo, e escandalizaram cidadãos. Foi precisamente a partir desse momento que se multiplicou a frequência e intensidade de manifestações populares por todo o país, reunindo insatisfeitos com governos e serviços públicos deficientes nas mais diversas áreas, gerando enorme perplexidade nas autoridades, que se viram diante de um fenômeno novo e de difícil compreensão. Protestos emergiram em áreas centrais e periferias de grandes cidades. Muita coisa aconteceu de lá para cá. Outros cidadãos foram gravemente feridos; um morreu em circunstâncias nebulosas em Belo Horizonte e, no Rio de Janeiro, o pedreiro Amarildo foi sequestrado, torturado e morto por policiais integrantes de uma Unidade de Polícia Pacificadora, ensejando mais descontentamento popular. Aos atos de violência institucional somaram- se os de violência física e patrimonial praticados por indivíduos e grupos, sem que tampouco nestes casos as polícias lograssem compreender os fenômenos e prevenir eficientemente ilícitos abstendo-se da – ineficaz e antijurídica – truculência habitual. Recentemente, projetos legislativos foram apresentados ao Congresso Nacional com vistas a estabelecer um regramento pretensamente mais adequado das manifestações, os quais invariavelmente recorrem ao simbolismo da tipificação de novos delitos e do recrudescimento punitivo para certos ilícitos já existentes. Algumas propostas chegam a correlacionar episódios de violência havidos em grandes concentrações de pessoas a um suposto terrorismo, demonstrando incrível desconhecimento de conceitos jurídicos e dos fenômenos concretos. Outras tencionam equiparar certos grupos de manifestantes a organizações criminosas, hipótese absolutamente inadmitida pela ordem constitucional vigente, a qual, ao firmar as bases de um Estado Democrático, foi generosa na previsão dos direitos de reunião e de manifestação pacífica em espaços públicos. Nesse quadro, é alvo de procedentes críticas o PLS 236/12, que, entre tantos outros problemas, pretende tipificar o “terrorismo”, cuja indeterminação conceitual implica enorme e intolerável insegurança jurídica. As mesmas vagueza e indeterminação semântica, violadoras do princípio da legalidade, recaem sobre as pretensões de incriminação da “desordem”, também proposta na esteira de fatos de grande repercussão midiática. Não obstante, está-se em vias de submeter à apreciação do Congresso Nacional o PLS nº 508/13 e seu Substitutivo, também apresentados na esteira dos conflitos assistidos em manifestações populares. De espantosa infidelidade à Constituição, seu texto original comina pena de quatro a doze anos de reclusão ao crime de “vandalismo”, definindo-o de forma amplíssima, a ponto de abarcar condutas vãs como o estímulo à participação em atos mediante a “distribuição de folhetos, avisos ou mensagens” ou a mera “presença do agente em atos de vandalismo, tendo em seu poder objetos, substâncias ou artefatos de destruição ou de provocação de incêndio ou qualquer tipo de arma convencional ou não”, ainda que nenhum ato lesivo seja sequer almejado pelo agente. E tampouco o Substitutivo apresentado à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal é aproveitável, porquanto visa a estatuir descabida agravante genérica baseada em fato penalmente irrelevante – o uso de máscara – e a prever causa especial de aumento de pena para o crime de lesão corporal e novos tipos qualificados de homicídio e dano quando cometidos “em manifestações, concentração de pessoas ou qualquer encontro multitudinário”. Se muitas manifestações do poder punitivo – seja por parte das agências executivas (polícias e órgãos do Ministério Público), seja por parte do Poder Judiciário – têm se revelado desmesuradas e abusivas na repressão a atos de cidadãos que exerciam seu direito constitucional de protestar, cabe indagar qual não seria a dimensão trágica para a democracia brasileira e para a cidadania se dispositivos legais tão arbitrários entrassem em vigor? É preciso dizer o óbvio: atos de violência praticados dolosamente em manifestações já são tipificados em nosso ordenamento, e não há necessidade de recrudescimento legislativo. É preciso, isto sim, que governantes compreendam as insatisfações populares e garantam concretamente os direitos que a Constituição prevê – inclusive o de ter uma Polícia que promova os direitos de cidadania. De resto, no que toca a manifestações populares, é indispensável que administradores e legisladores compreendam que a Carta de 1988 já estabeleceu à suficiência suas bases e limitações, não podendo o legislador ordinário impor óbices e constrangimentos que afrontem suas disposições democráticas. ANO 22 - Nº 258 - MAIO/2014 - ISSN 1676-3661 | Editorial Dráusio, Peru e direitos humanos Adauto Suannes __________________ 2 Carta a Adauto Suannes Alberto Silva Franco _______________3 Metáforas e pensamentos de Nélson Hungria René Ariel Dotti __________________4 Contra os crimes contra a família: pelo fim do Título VII da Parte Especial do Código Penal brasileiro Gerson Faustino Rosa e Gisele Mendes de Carvalho _________ 5 Extorsão criptoviral Spencer Toth Sydow _______________6 Uso de drogas e teoria da irrelevância penal do fato Patrícia Raposo Moreira e José César Naves de Lima Júnior _____ 7 Considerações sobre a hipótese de comutação de pena definida no art. 3.º do Decreto 8.172, de 24.12.2013 Irvan Antunes Vieira Filho e Domingos Barroso da Costa ________ 9 O GATE do Ministério Público do Rio de Janeiro e a perversão probatória Antonio Eduardo Ramires Santoro ___11 O caso Carli Filho e o significado descritivo e normativo do dolo Fernando Lopes __________________13 A prevenção do crime através do desenho arquitetônico Leopoldo Grecco Lisboa ___________15 O Direito Penal “amarrado ao poste” Robson de Vargas ________________16 Cadê as mulheres? Uma análise da participação feminina no IBCCRIM Tatiana Santos Perrone e Vanessa Menegueti ______________ 18 | Descasos Antonio Alexandra Lebelson Szafir _________ 19 | Caderno de Jurisprudência | O DIREITO POR QUEM O FAZ Superior Tribunal de Justiça __ 1749 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ______________ 1752 | JURISPRUDÊNCIA Supremo Tribunal Federal ___ 1753 Superior Tribunal de Justiça __ 1754 Tribunal Regional Federal ___ 1755 Tribunal de Justiça _________ 1756

Editorial | Editorial Manifestações, legislação penal e

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Conheça nossa nova página: www.ibccrim.org.brEditorial

Manifestações, legislação penal e Constituição

As manifestações populares emergidas em junho do último ano continuam a render debates, análises e preocupações na seara pública, sobretudo à vista das tensões entre direitos fundamentais individuais e supraindividuais que comumente implicam.

Recordemos: os protestos iniciaram-se a partir de reivindicações contra o aumento das passagens de ônibus em diversas capitais do país, em maio de 2013. Foram desde logo reprimidos pelas polícias dos Estados respectivos, e não raramente reputados por governantes como atos localizados de grupos de “vândalos” ou “baderneiros”. Editorialistas de grandes veículos da imprensa manifestaram-se na mesma linha, e chegaram a urgir de governos que intensificassem a repressão a fim de que fossem evitados congestionamentos no trânsito e outros aborrecimentos causados pelas manifestações.

Nesse contexto, na noite de 13 de junho de 2013, a cidade de São Paulo assistiu a atos de violência física e prisões abusivas praticados por agentes da repressão em intensidade que não se via desde os anos de chumbo da ditadura instaurada em 1964. Registraram-se dezenas de prisões por fatos inexistentes ou penalmente irrelevantes – como o anedótico “porte de vinagre” –, agressões a cidadãos, uso indiscriminado de gases pimenta e lacrimogênio e disparos de balas de borracha feitos ao arrepio de protocolos de segurança e contra cidadãos indefesos. Naquela noite, ao menos dois jornalistas – que exerciam seu direito ao trabalho – foram gravemente feridos no rosto por balas de borracha disparadas por policiais em inequívoco abuso de autoridade, acarretando a um deles a perda de um olho.

As imagens e descrições da anticonstitucional repressão correram o país e o mundo, e escandalizaram cidadãos. Foi precisamente a partir desse momento que se multiplicou a frequência e intensidade de manifestações populares por todo o país, reunindo insatisfeitos com governos e serviços públicos deficientes nas mais diversas áreas, gerando enorme perplexidade nas autoridades, que se viram diante de um fenômeno novo e de difícil compreensão. Protestos emergiram em áreas centrais e periferias de grandes cidades.

Muita coisa aconteceu de lá para cá. Outros cidadãos foram gravemente feridos; um morreu em circunstâncias nebulosas em Belo Horizonte e, no Rio de Janeiro, o pedreiro Amarildo foi sequestrado, torturado e morto por policiais integrantes de uma Unidade de Polícia Pacificadora, ensejando mais descontentamento popular. Aos atos de violência institucional somaram-se os de violência física e patrimonial praticados por indivíduos e grupos, sem que tampouco nestes casos as polícias lograssem compreender os fenômenos e prevenir eficientemente ilícitos abstendo-se da – ineficaz e antijurídica – truculência habitual.

Recentemente, projetos legislativos foram apresentados ao Congresso Nacional com vistas a estabelecer um regramento pretensamente mais adequado das manifestações, os quais invariavelmente recorrem ao simbolismo da tipificação de novos delitos e do recrudescimento punitivo para certos ilícitos já existentes. Algumas propostas chegam a correlacionar episódios de violência havidos em grandes

concentrações de pessoas a um suposto terrorismo, demonstrando incrível desconhecimento de conceitos jurídicos e dos fenômenos concretos. Outras tencionam equiparar certos grupos de manifestantes a organizações criminosas, hipótese absolutamente inadmitida pela ordem constitucional vigente, a qual, ao firmar as bases de um Estado Democrático, foi generosa na previsão dos direitos de reunião e de manifestação pacífica em espaços públicos.

Nesse quadro, é alvo de procedentes críticas o PLS 236/12, que, entre tantos outros problemas, pretende tipificar o “terrorismo”, cuja indeterminação conceitual implica enorme e intolerável insegurança jurídica. As mesmas vagueza e indeterminação semântica, violadoras do princípio da legalidade, recaem sobre as pretensões de incriminação da “desordem”, também proposta na esteira de fatos de grande repercussão midiática.

Não obstante, está-se em vias de submeter à apreciação do Congresso Nacional o PLS nº 508/13 e seu Substitutivo, também apresentados na esteira dos conflitos assistidos em manifestações populares. De espantosa infidelidade à Constituição, seu texto original comina pena de quatro a doze anos de reclusão ao crime de “vandalismo”, definindo-o de forma amplíssima, a ponto de abarcar condutas vãs como o estímulo à participação em atos mediante a “distribuição de folhetos, avisos ou mensagens” ou a mera “presença do agente em atos de vandalismo, tendo em seu poder objetos, substâncias ou artefatos de destruição ou de provocação de incêndio ou qualquer tipo de arma convencional ou não”, ainda que nenhum ato lesivo seja sequer almejado pelo agente. E tampouco o Substitutivo apresentado à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal é aproveitável, porquanto visa a estatuir descabida agravante genérica baseada em fato penalmente irrelevante – o uso de máscara – e a prever causa especial de aumento de pena para o crime de lesão corporal e novos tipos qualificados de homicídio e dano quando cometidos “em manifestações, concentração de pessoas ou qualquer encontro multitudinário”.

Se muitas manifestações do poder punitivo – seja por parte das agências executivas (polícias e órgãos do Ministério Público), seja por parte do Poder Judiciário – têm se revelado desmesuradas e abusivas na repressão a atos de cidadãos que exerciam seu direito constitucional de protestar, cabe indagar qual não seria a dimensão trágica para a democracia brasileira e para a cidadania se dispositivos legais tão arbitrários entrassem em vigor?

É preciso dizer o óbvio: atos de violência praticados dolosamente em manifestações já são tipificados em nosso ordenamento, e não há necessidade de recrudescimento legislativo. É preciso, isto sim, que governantes compreendam as insatisfações populares e garantam concretamente os direitos que a Constituição prevê – inclusive o de ter uma Polícia que promova os direitos de cidadania. De resto, no que toca a manifestações populares, é indispensável que administradores e legisladores compreendam que a Carta de 1988 já estabeleceu à suficiência suas bases e limitações, não podendo o legislador ordinário impor óbices e constrangimentos que afrontem suas disposições democráticas.

ANO 22 - Nº 258 - MAIO/2014 - ISSN 1676-3661

| EditorialDráusio, Peru e direitos humanosAdauto Suannes __________________ 2

Carta a Adauto SuannesAlberto Silva Franco _______________3

Metáforas e pensamentos de Nélson HungriaRené Ariel Dotti __________________4

Contra os crimes contra a família: pelo fim do Título VII da Parte Especial do Código Penal brasileiroGerson Faustino Rosa e Gisele Mendes de Carvalho _________ 5

Extorsão criptoviralSpencer Toth Sydow _______________6

Uso de drogas e teoria da irrelevância penal do fatoPatrícia Raposo Moreira e José César Naves de Lima Júnior _____ 7

Considerações sobre a hipótese de comutação de pena definida no art. 3.º do Decreto 8.172, de 24.12.2013Irvan Antunes Vieira Filho eDomingos Barroso da Costa ________ 9

O GATE do Ministério Público do Rio de Janeiro e a perversão probatóriaAntonio Eduardo Ramires Santoro ___11

O caso Carli Filho e o significado descritivo e normativo do doloFernando Lopes __________________13

A prevenção do crime através do desenho arquitetônicoLeopoldo Grecco Lisboa ___________15

O Direito Penal “amarrado ao poste”Robson de Vargas ________________16

Cadê as mulheres? Uma análise da participação feminina no IBCCRIMTatiana Santos Perrone eVanessa Menegueti ______________ 18

| DescasosAntonioAlexandra Lebelson Szafir _________ 19

| Caderno de Jurisprudência

| O DIREITO POR QUEM O FAZ

Superior Tribunal de Justiça __ 1749Tribunal de Justiça do Estadode São Paulo ______________ 1752

| JURISPRUDÊNCIASupremo Tribunal Federal ___ 1753Superior Tribunal de Justiça __ 1754Tribunal Regional Federal ___ 1755Tribunal de Justiça _________ 1756

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Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

ANO 22 - Nº 258 - MAIO/2014 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Nota da Coordenação: O Boletim IBCCRIM, ainda tocado pela perda do Des. Adauto Suannes, republica nesta oportunidade uma das muitas e valiosas contribuições que seu inspirado intelecto nos legou, as quais constituem patrimônio incorporado à história do Boletim e do próprio Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Dráusio, Peru e direitos humanos(1)

Adauto SuannesIndicado pela diretoria do IBCCRIM, sigo para o Peru, onde

participarei de um congresso sobre Direitos Humanos. “Justicia y Derechos Humanos”, para ser mais exato, patrocinado pelo CEAS - Centro Episcopal de Acción Social. Falarei sobre “A Tutela Efetiva dos Direitos Humanos”, quando terei oportunidade de ilustrar meu discurso com a experiência de quem se formou há quase 40 anos, foi juiz por mais de 20 anos (boa parte como corregedor da polícia e dos presídios da comarca, além de membro da inesquecível 5ª Câmara do nosso TACrim), lecionou por mais de 12 anos e, antes e acima de tudo, é filho de quem foi vice-diretor da Casa de Detenção (ao tempo em que ela estava situada na Rua Tiradentes, informo aos mais novos), ainda que por meros seis meses (sua estrutura psíquica não permitiu a meu pai suportar aquilo por mais tempo). De quebra, comissões de Direitos Humanos da OAB, aqui e em Brasília.

No aeroporto, entro na livraria que todos conhecemos e, entre “Caras” e “Bundas”, encontro o “Estação Carandiru”, de Dráusio Varella, médico cuja ponderação eu aprendera a admirar em entrevistas e programas de orientação de jovens, transmitidos pelo rádio e pela televisão. “Será uma leitura interessante”, penso ingenuamente. Quando o avião pousa em Lima, já não sei bem se devo basear meu discurso no texto que levei pronto ou deixá-lo de lado, dizendo que, depois do livro do Dráusio, ninguém mais terá desculpas para falar de um assunto tão complexo como é a execução da pena e a “ressocialização do condenado” com tanta leviandade como se ouve em muitos encontros jurídicos. Ressocializar a partir de que padrões?

Dráusio tem a enorme e dupla qualidade de não ser jurista nem pretender reformar o mundo. É apenas e tão somente um narrador. Mas um narrador que não se limita a falar de dados estatísticos e de acontecimentos lamentáveis. Aqui e ali está ele inteiro na vivência com aquela gente toda (mais de 7.000 pessoas convivendo em um espaço que ocupa menos do que um quarteirão), a que ele não se refere a não ser como seres humanos. Nem coitadinhos, nem injustiçados, nem marginalizados sociais. São pessoas que, como todos nós, têm sua história pessoal e sua capacidade de adaptação posta à prova naquele microcosmo. Pessoas que, vítimas da maldita ciffre noir, estão do lado de lá, como poderiam estar do lado de cá, convivendo conosco. Pessoas que, segundo o autor, o ensinaram a amar ainda mais a Medicina. E pessoas às quais é inútil convencê-las a mudar de vida. Quando muito, mudar de hábitos, menos por motivos éticos e mais por força da necessidade e lutar pela própria sobrevivência (a substituição da cocaína pelo crack, por exemplo, diminuiu sensivelmente os casos de Aids, informa o livro).

Se a leitura de um Foucault, há tantos lustros, com seu “Vigiar e Punir”, já me causara certo mal-estar, o “Estação Carandiru” produz

uma reação de outro tipo, já que não é obra de um scholar, mas de alguém que a vida não embruteceu (como acontece com tantos de nós que, convivendo com os dramas humanos, nos “vacinamos” sob o pretexto de que assim poderemos ser mais “objetivos” em nosso trabalho). Fica depois da leitura na cabeça do leitor uma pergunta: “em que mundo eu estive até agora?”.

Um dirigente de delegação esportiva, que é patrocinada por empresa multinacional fabricante de artigos esportivos, e cujo filho monta uma lojinha na concentração dos jogadores para vender artigos esportivos “pirateados”, está a merecer que tipo de comentário? Basta um: quantos dos clientes do dr. Dráusio Varella ali estarão pela prática de atos eticamente menos graves do que esse?

Tivéssemos no Poder Judiciário pessoas efetivamente preocupadas com a formação integral dos juízes e tal livro seria de leitura compulsória nas Escolas de Magistrados. Menos para que os réus criminais, doravante, sejam vistos com outros olhos pelos agentes do Estado encarregados de julgá-los e impor-lhes penas que, como se vê do livro, vão muito além daquela formalizada na sentença e mais para que a função judicante não transforme seres humanos – os juízes – em semideuses que sobrepairam à vida que lateja lá embaixo, na vida das pessoas comuns.

Os dias passam rápido naquela convivência fraterna. Olguita, Negrón, Sérgio e tantos outros hermanos são por mim vampirizados em seu entusiasmo e sua esperança de dias melhores para a brava gente peruana. Encerro minha participação no congresso lendo trechos do livro do Dráusio. Claro que não o trouxe de volta, pois o livro foi disputado por muitos deles. Demais disso, parti com a promessa de enviar-lhes uns tantos exemplares, que, segundo posso supor do entusiasmo daquela gente dedicada, passarão de mão em mão.

Como tantas vezes já me ocorrera antes, eu que partira na convicção de que tinha tanto para transmitir, voltei com o alforje repleto de emoções e, segundo suponho, um pouco mais humano e mais humilde.

Nota:(1) Texto originalmente publicado na edição nº 81 deste Boletim, em agosto de

1999, páginas 7-8.

Adauto SuannesDesembargador aposentado do TJSP.

Diretor consultivo do IBCCRIM.Advogado em São Paulo (1999).

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Carta a Adauto SuannesMeu caro Adauto.Dizem que os velhos – principalmente os que se encontram na quarta

idade – já viveram tanto que não serão surpreendidos por mais nada e, para tudo o que acontecer na vida, dispõem de uma fórmula (mágica, talvez?) capaz de enfrentar qualquer dificuldade. Dizem, por isso, que não há experiências pelas quais já não tenham passado e que, portanto, sabem o que fazer, agir, falar, sentir e compreender em face de qualquer fato que se lhe antolha.

A realidade não é bem assim: é mais uma das estórias que se inventam sobre a velhice. Diante de alguns acontecimentos, jovem, meia-idade, velho ou velhíssimo reagem de modo difícil de ser previsto. Creio ser a morte o episódio mais impactante, isto é, aquele que mais produz respostas inesperadas, mesmo quando ela já esteja anunciada.

Confesso-lhe – Adauto – que a palavra morte tem para mim um poder de conteúdo tão grande que, apesar de ser esperada, provoca um abalo profundo demais, de forma que, repeti-la para outras pessoas, representa um imenso desgaste emocional. O ato de separar pessoas que se conheceram, conviveram, trocaram vivências, foram companheiros de luta, tiveram sucessos e derrotas durante tantas décadas da vida, é algo extremamente doloroso. Quando, na manhã do dia 27 de março, recebi a notícia de que havia partido e não estava mais entre nós, fui possuído por uma tristeza sem limites e dentro de mim senti um vazio impreenchível, a mesma tristeza e o mesmo vazio que se repetem quando lhe escrevo essas palavras.

Reuni as forças sobrantes do meu interior para ir ao velório prestar as homenagens que lhe eram devidas e solidarizar-me com os seres queridos de quem fora marido, pai e amigo. Havia na expressão de cada uma das pessoas, que estavam presentes no local, um olhar de desalento e todo abraço apertado significava a linguagem de dois corações sofrentes. Sempre afirmo e repito que, nessas horas, não sei dizer nada: as palavras me fogem e se tivesse a capacidade de inventá-las, teria medo de proferí-las porque não saberia nunca o caminho que iriam trilhar. Passei algumas horas no velório até que, de noite, retornei ao meu apartamento com a decisão de que estaria presente, antes das sete horas do dia 28 de março, no momento em que seu corpo sairia com destino ao crematório. Tinha, na minha cabeça, a ideia fixa de que só então se daria a despedida.

Na manhã daquele dia, por volta das 6h15min., lá estava eu junto ao portão fechado do velório que me foi aberto por um funcionário do local. Julgava que outras pessoas já estivessem ali, mas quando entrei na sala: só eu e Você estávamos presentes. Apesar de meus oitenta e dois anos de vida, nunca tinha passado por situação tão singular. Eu, parado, de pé, diante do caixão. Você, deitado, coberto de flores, deixando à mostra seu rosto e suas mãos. As luzes de duas tochas tornavam sua fisionomia mais pálida, mas nela havia um toque de placidez, de plena serenidade. As mãos mostravam dedos compridos como os de um goleiro (corintiano, por certo!) e sobre elas repousava um pequeno terço esverdeado. Havia coroas de flores de mil cores espalhadas em vários cantos da sala e cadeiras vazias. Inúmeras cadeiras vazias num ambiente de gritante silêncio. Sentei-me numa delas e, por um largo espaço de tempo, rememorei fatos como se um filme estivesse passando diante de meus olhos. É óbvio que o filme seria de longa metragem (vem desde os anos 70 do século passado até os dias de hoje) e não caberia ser projetado nos limites desta carta. Mas algumas cenas necessitam ser remontadas porque explicam quem Você foi e qual o significado de suas ações:

Quem não se lembra –Adauto – de sua participação na 5.a Câmara do Tribunal de Alçada Criminal? Naquela época, as câmaras não eram como, na sua maioria, são hoje – reunião de juízes de um voto só – mas, sim, câmaras autênticas nas quais cada juiz formulava seu próprio voto, dando-se valor maior à sua qualidade e não à sua quantificação ou à jurisprudência dominante. Seus votos foram, em diversos casos, pioneiros, expressando a sua consciência de um juiz moderno, com inequívoca vocação para o social e para a defesa dos direitos fundamentais. Se alguém se der ao trabalho de reunir tais votos terá, por certo, uma nítida reconstrução histórica da

sociedade então vigente. E Você bem sabe que os votos ali proferidos não eram, normalmente, convergentes. As divergências eram muito comuns, o que dava azo a discussões que terminavam em votos vencidos. Não foi por outra razão que nosso velho amigo, Ranulfo de Melo Freire, quando Presidente daquele Tribunal, formou um grupo de desembargadores aposentados para oferecer embargos infringentes, para réus pobres, com base em votos vencidos. A experiência vivida naquela Câmara serviu para dar a cada um de seus membros, de um lado, a ideia nítida de que a Justiça se constrói no caso concreto e, de outro, o sentimento de tolerância e de generosidade, sem o qual nunca se conseguirá o julgamento justo. Tudo isso – Adauto – foi o alicerce que permitiu a aproximação pessoal dos integrantes daquela Câmara e deu fundamento a uma amizade que se projetou no tempo.

Relembro ainda o momento em que fui eleito para a vice-presidência do Tribunal de Alçada Criminal, após renhida disputa contra o candidato abertamente apoiado pelo Presidente do Tribunal de Justiça. Acabada a votação, Você pediu a palavra e surpreendeu a todos com um pronunciamento ao mesmo tempo irônico e ácido, o que deu causa a alguns protestos veementes. A verdade é que Você, em determinadas situações, não receava assumir atitudes, mesmo quando elas viessem a prejudicá-lo: a solidariedade estava acima de tudo.

Veio-me à cabeça, em seguida, o ato de nossa posse, como desembargadores no Tribunal de Justiça. Recordo-me bem de que, nomeados, decidimos, afrontando todas as tradições e pondo à margem todas as vaidades, assumirmos o cargo sem a presença de familiares ou de amigos. Lembro-me, com bastante nitidez, da expressão assustada da funcionária incumbida do cerimonial de posse e, em seguida, da fisionomia carregada do Presidente ao mandar lavrar o ato. Tenho diante de meus olhos o momento em que eu li o juramento, escrito num papel que me foi entregue e o momento em que Você, com a ousadia de sempre e o espírito desafiador, fez seu juramento com suas próprias palavras, pondo ênfase no respeito aos direitos fundamentais inseridos na Constituição Federal. Creio ter sido este um dos momentos mais corajosos e comoventes que assisti em minha vida.

E o fato que se seguiu foi um desdobramento de tudo quanto – Adauto – representou seu perfil de juiz: desapego ao texto da lei, sensibilidade em relação ao social, visão abrangente do saber, exclusão de todo corporativismo e perspectiva de garantidor dos direitos que atribuem dignidade ao ser humano. Como eu tinha sido nomeado para uma Câmara Criminal, ao concluir que pouco ou nada representaria minha presença no Tribunal de Justiça, porque seria incapaz de mover um milímetro sequer de sua estrutura petrificada, decidi aposentar-me. Como Você desejava continuar no julgamento de processos criminais, fizemos um requerimento de permuta e qual não foi nossa surpresa quando se teve notícia de que o Plenário do Tribunal de Justiça tinha indeferido – e não tenho ciência de outra decisão igual – tal permuta porque não atendia “ao interesse público”!!! Em verdade, ao contrário do que poderia parecer um agravo, tal decisão – que nos atingia – só o engrandeceu na exata medida que ficava a nu a pequenez e a ridicularia daqueles que o julgaram porque incapazes de perceber no seu caráter, na sua independência, na sua competência e no seu saber, o seu gabarito como juiz garantista por excelência.

Você prosseguiu na carreira por mais alguns meses, demonstrando que, em qualquer terreno – criminal ou cível –, caminharia com a capacidade e segurança de sempre. Depois, aposentou-se e sua vida seguiu vários atalhos sempre percorridos pelos traços de sua reconhecida genialidade. Na advocacia, fez sucesso e nunca se separou dos menos afortunados para os quais, diante de alguma flagrante injustiça, impetrava habeas corpus para Tribunais Superiores ainda que o favorecido desconhecesse a impetração. Como escultor, produziu peças de real valor, premiadas no Brasil e no estrangeiro. Guardo duas delas: a da mulher grávida e da mulher que protegia, com os braços envolventes, o filho que trazia em seu regaço. Foi pintor e gravurista. Escreveu não apenas livros jurídicos, mas também livros de literatura, alguns deles à espera de publicação. Foi cronista que lidou com o cotidiano na coluna “Circus” do site Migalhas.

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ANO 22 - Nº 258 - MAIO/2014 - ISSN 1676-3661

Nos mais diversos e longínquos mundos da realidade e da imaginação dos casos criminais, ele foi, e continua sendo, pela obra imortal – o personagem, o ator e o espectador da divina comédia da existência.

Dava gosto vê-lo escrever seja na velha máquina datilográfica, seja no computador: os dedos pressionavam as teclas na mesma velocidade com que seu cérebro funcionava e um texto, simples ou complexo, surgia como num passe de mágica.

Mesmo diante da cruel doença que o atacou nos últimos sete anos, em momento algum Você escondeu o mal que o acometia. Submeteu-se a operações de duração prolongada – uma delas quase chegou a vinte e quatro horas – e a tratamentos quimioterápicos que lhe produziam sequelas. Nos intervalos das internações hospitalares, retornava ao convívio de todos, familiares e amigos, e não perdia, em momento algum, o seu sorriso aberto, a sua ironia por vezes cáustica, a sua demonstração de apego à vida. Mesmo nos últimos momentos, cumulou lucidez e tranquilidade.

Este foi resumo apertado do filme que assisti na sala do velório. Poderia, por certo, parecer a alguns que Você só tivesse virtudes e nenhum defeito. Não é para o simples louvor que juntei estas palavras. Como qualquer ser humano Você conjugava defeitos e qualidades, tinha

momentos de arroubos irrefreáveis, e por vezes apaixonados, e de gestos de extrema humildade, passava por momentos de euforia e de depressão, demonstrava alegrias intensas e tristezas profundas, mas o saldo final, que dava nota e tom à sua personalidade, era-lhe extremamente favorável.

Digo-lhe, por derradeiro, que, no ato final de sua presença, marquei um novo encontro – como fiz com outros que já se foram –, mas não sei dizer quando – a morte não fornece sua agenda – nem onde se realizará –, se nesta galáxia ou em outra ou se, em algum lugar, onde corpo e espírito de novo se reúnam (sou homem de pouca fé). O que me parece tranquilo – e aqui me socorro de Carlos Drummond de Andrade – é que “não há falta na ausência”, porquanto “a ausência é um estar em mim” e “essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim”, de seus outros amigos, de seus irmãos, de seus parentes e, sobretudo, de seus filhos.

Até breve.

Alberto Silva Franco

Metáforas e pensamentos de Nélson HungriaRené Ariel Dotti

Este artigo é dedicado ao Dr. Clemente Hungria, filho do imortal penalista e aos jovens e talentosos criminalistas que ainda não haviam conhecido os antológicos Comentários ao Código Penal.

A teoria e a prática do Direito Criminal em nosso País não conheceram expressão mais fulgurante de mestre e humanista. Nos mais diversos e longínquos mundos da realidade e da imaginação dos casos criminais, ele foi, e continua sendo, pela obra imortal – o personagem, o ator e o espectador da divina comédia da existência. Infernos, purgatórios e paraísos, todos os cenários dantescos da vida cotidiana foram esculpidos e interpretados em suas lições.

A imensa obra de Nélson Hungria é um dos modelos ambulantes da vida, da paixão, da morte e da ressurreição da palavra como sagração e canto da condição humana.

Os seus antológicos Comentários ao Código Penal constituem a reencenação da aventura da existência, assim como o fizeram as Sagradas Escrituras. Com uma diferença, porém: os profetas que falam por intermédio das páginas de sua imensa obra não são os místicos que flutuam sobre a realidade. São as criaturas de carne e osso que escrevem, dirigem, interpretam e montam a representação da vida.

Seguem alguns extratos de metáforas e pensamentos que ilustram a exegese do art. 1.º do CP, cuja redação original foi mantida pela reforma da Parte Geral pela Lei 7.209/1984. Os fragmentos vêm dos Comentários ao Código Penal, 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, v. 1, t. I, p. 13 e s.

“A fonte única do Direito Penal é a norma legal ●● Não há Direito Penal vagando fora da lei escrita ●● Na Alemanha nacional-socialista, ao invés do ideal marxista da massa, fala-se, para servir ao ferrenho antiindividualismo de Hitler, no interesse do povo, que é defendido como ‘comunhão indissoluvelmente ligada pelo sangue e pelo território’ ou

como ‘única grandeza política’, de que o Estado é forma natural; mas o resultado é o mesmo: o indivíduo reduzido à expressão mais simples. ●● Não há direitos individuais em si mesmos. ●● Os postulados mais fundamentalmente insculpidos na consciência jurídica universal foram renegados como superstições maléficas, incompatíveis com o que por lá se chama o novo Estado, mas que, na realidade, não é mais que o retorno ao omisso hiperestatismo dos tempos medievais ●● Siegert, professor da famosa Universidade de Goettingen, assim formula o versículo do novo Evangelho: ‘Devemos seguir as proclamações do Führer como linhas de direção, a mostrar-nos, dentro do espírito nacional-socialista, o justo caminho para o reconhecimento e solução das concretas situações de fato’. ●● O Mein Kampf (esse livro que JacqueS Banville justamente qualifica de bric-à-brac de idéias pueris e charlatanices, em uma linguagem desconcertante de pedantismo) é a Bíblia do nacional-socialismo, é a craveira por onde têm de medir-se a alma e o pensamento alemães. O invocado ‘espírito do povo’ não quer dizer o que o povo pensa na realidade, mas o que deve pensar segundo a Führung, isto é, a orientação do Chefe...●● É de ver-se como os juristas de Hitler, na crítica do Direito Penal tradicional, cuidam de emprestar vulto a míseros grãos de areia. E outra ridícula teia de aranha a que procuram pendurar-se os penalistas do nazismo é o caso da ‘fraude praticada sobre os aparelhos telefônicos automáticos’. ●● A supressão do nullum crimen, nulla pœna sine lege, quer na Rússia, quer na Alemanha, não é mais que mero luxo de prepotência ●● Na pressa de se coçarem de pruridos alheios, aqueles que, entre nós, vozeiam as ideias partejadas na crise epiléptica dos países europeus, não se dão ao trabalho de passá-las pelo crivo da meditação e ponderação que nos permite a tranquilidade remansosa em que vivemos. Não percebem eles que um Direito Penal fora ou além das leis não seria um avanço, mas um recuo da civilização jurídica. Seria uma contramarcha aos crepusculares tempos medievais, em que o indefinido arbítrio judicial escreveu páginas que ainda hoje envergonham a humanidade.”

René Ariel DottiProfessor Titular de Direito Penal.

Corredator dos projetos que se converteram nas Leis 7.209 e 7.210/1984 (reforma da

Parte Geral do Código Penal e Lei de Execução Penal).Advogado.

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Contra os crimes contra a família: pelo fim do Título VII da Parte Especial do Código Penal brasileiroGerson Faustino Rosa e Gisele Mendes de Carvalho

A dignidade da pessoa humana, elevada ao status de fundamento da República Federativa do Brasil, encontra na família o solo apropriado para o seu enraizamento e desenvolvimento, daí o comando constitucional dirigido ao Estado para dar especial proteção à família. Família esta que não está em decadência, mas ao contrário, é fruto da mudança dos tempos, da própria evolução da sociedade a que pertence. Busca-se, então, por meio da repersonalização da família, salvaguardar o que há de mais valoroso: o afeto, a solidariedade, a união, a confiança, o amor, o respeito, permitindo-se o desenvolvimento pessoal de seus membros, com fulcro nos ideais democráticos, solidários, pluralistas e humanistas que a circundam.

Ao Direito Penal, no entanto, foi dada a missão fundamental de desenvolver relevante papel nessa área, motivo pelo qual trouxe no Título VII do atual Código a previsão dos crimes contra a família. Como facilmente se afere, inexiste algo mais fascinante e ao mesmo tempo misterioso que o fenômeno criminal. Não obstante, por vezes, o fato revele simplicidade, pode ele ensejar configurações que aguçam a mais excepcional das inteligências. O crime acontece no ventre social, porém, deve-se considerá-lo como um fenômeno eminentemente humano, afinal, o crime nasce com a humanidade. Houve já quem considerou o crime um fato normal, inerente à própria existência humana. O crime como fenômeno social e, portanto, humano, deve ser estudado à luz da natureza desse ser complexo cuja dignidade transcende superficiais conceitos legais estabelecidos em épocas de lógica pouco democrática. Veja-se que o delito não só é um fenômeno social normal, como também cumpre outra função importante, qual seja, a de manter aberto o canal de transformações que a sociedade precisa.

Afirmar que o ser humano tem livre-arbítrio sobre seus atos, podendo se posicionar, ou não, de acordo com a lei – sem uma coerente e necessária observação de fatores criminogenéticos, vindos da própria constituição do delinquente ou do meio social em que vive –, pode conduzir a um infecundo e arbitrário Direito Penal das presunções, mecanismo odioso do ponto de vista democrático.

Maior relevo se dá a essa questão quando associada à discussão da tutela penal da família, mais precisamente dos bens jurídicos casamento e assistência familiar. Pois a família é o lugar em que, graças a seu ambiente específico, a personalidade se constitui, devendo-lhe ser concedida plena independência, livrando-a de regulamentações estatais que interfeririam no seu modo de funcionamento. Se o Estado, por exemplo, começa a regular em detalhes a educação das crianças, se ele cria toda uma legislação de como os pais devem se comportar em relação a seus filhos, ele não apenas invade competências que não deveriam ser suas, mas prejudica seriamente a formação individual familiar, comprometendo, em suma, a própria ideia de liberdade.(1) Isso significa que a estirpe deve ser protegida, pois é o lugar da independência econômica e política, lugar que não deveria ser invadido por legislações estatais intrusivas, em especial pela ingerência penal. O Estado, ao agir assim, enfraquece os laços

familiares, contribuindo para a dissolução da família, ou seja, diminuindo as suas condições de autonomia.

Com fulcro na relação de desproporção(2) existente entre gravidade dos fatos (crimes contra a família) e gravidade da pena (criminalização das condutas descritas no Título VII, Capítulos I e III, do Código Penal), propugna-se, neste estudo, que a tutela à família seja dada, em especial, mediante a descriminalização dos delitos contra o casamento e contra a assistência familiar, uma vez que não há correlação protetora entre a família e a criminalização de tais condutas, pois essas cominações, a pretexto de salvaguardá-la, prestam-se somente a segregar e a manchar os laços fraternos, uma vez que a polícia e a justiça pouco ou nada têm a contribuir com a formação e a reestruturação familiar.

A descriminalização dos delitos contra o casamento e contra a assistência familiar é um improrrogável imperativo nascido do indispensável respeito à liberdade individual, que colocaria a legislação pátria em consonância com as novas tendências do Direito Penal Internacional minimalista, contrário ao modelo fascista italiano, que hoje é menos eficaz. Isso não significa que tais tendências incentivem a subversão da instituição familiar, mas somente tornam transparente que o Direito Penal repressor tornou-se absolutamente ineficiente neste tópico, devendo ceder passagem para as demais instâncias de controle, de assistência social e para os demais ramos do Direito, especialmente o Direito Civil.

Quanto ao casamento como bem jurídico, por óbvio, deve-se, não somente dispensar, mas evitar a intervenção da ingerência penal, a qual decorre de um tempo em que não se admitia o divórcio, quando as pessoas se uniam para a eternidade, criminalizava-se o adultério e outros fatos que hoje inexistem, especialmente em face da evolução cultural e legislativa trazida pela nova Constituição, que revolucionou o Direito de Família. Já o Capítulo III do Título VII do Código Penal trata dos crimes contra a assistência familiar, com intuito de salvaguardá-la, elevando-a à condição de bem jurídico-penal, ao criminalizar as diversas formas de abandono familiar. Entretanto, o Direito Penal não poderia ser utilizado para tutelar a assistência familiar, uma vez que o Direito Civil é não só suficiente para tanto, como também mais eficaz que o Direito Penal, em especial com relação ao delito de abandono material decorrente do não pagamento de pensão judicialmente acordada, uma vez que possibilita inclusive a prisão do alimentante inadimplente. Além disso, admite-se na esfera cível a perda do poder familiar por simples decisão judicial, ao passo que na seara criminal não será possível a perda do poder familiar pelo cometimento dos crimes de abandono, tendo em vista tais delitos preverem pena de detenção, posto que o Código Penal exige, para tanto, crime apenado com reclusão.(3)

Melhor seria, portanto, que os problemas familiares fossem solucionados pelas próprias famílias, e somente, em último caso, pela justiça cível, por intermédio das varas de família, mas nunca pelo Direito Penal, pois, como dito, trata-se de um problema, por mais reprovável que se mostre, essencialmente familiar, que gravita em uma esfera em que a

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persecução penal deve abster-se de penetrar, em especial pelas feridas perenes que poderão restar da sua intervenção.

Notas:(1) Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do

direito, ou direito natural e ciência do Estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2010, p. 11.

(2) Sobre o princípio da proporcionalidade em matéria penal, vide, por todos, Gomes, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: RT, 2003, p. 64 e ss.

(3) Prado, Luiz Regis; Carvalho, Érika Mendes; Carvalho, Gisele Mendes de. Curso de Direito Penal brasileiro. 13. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 555-556. Essa incongruência só poderia ser afastada pela declaração desse efeito na sentença condenatória, devidamente motivada, em virtude de ser a pena aplicada diversa daquela expressamente consignada nos referidos dispositivos legais.

Gerson Faustino RosaMestre em Direito pelo Centro Universitário

de Maringá (UniCesumar).Professor de Direito Penal e Processual Penal

na UNIESP (Presidente Prudente). Investigador de Polícia no Estado do Paraná.

Gisele Mendes de CarvalhoDoutora e Pós-doutora em Direito Penal pela

Universidade de Zaragoza, Espanha. Professora adjunta de Direito Penal na

Universidade Estadual de Maringá (UEM) e no Centro Universitário de Maringá (UniCesumar).

Extorsão criptoviralSpencer Toth Sydow

Não vai demorar a chegar ao Brasil a denominada extorsão criptoviral, popular e erradamente denominada “sequestro virtual”.

Prática existente e identificada desde os idos de 1996,(1) trata-se de circunstância em que alguém tem seu dispositivo informático infectado por um malware no intuito de torná-lo indisponível ou tornar indisponíveis determinadas pastas ou arquivos.

Em seguida, o vitimizado recebe instruções via email ou via caixa de diálogo (surge na tela uma janela “pop up”) informando que apenas voltará a ter acesso ao seu sistema ou dados após “pagar um resgate”. Caso contrário, seu dispositivo informático ficaria sem utilidade e seus arquivos sem acesso.

O “resgate” pode ser em dinheiro, aquisição de produtos em sites determinados, aquisição de créditos de celular ou cartão de crédito pré-pagos e, mais modernamente, aquisição de dinheiro digital (bitcoin, dogecoin etc). E os arquivos almejados são aqueles mais importantes de acordo com a profissão do usuário.

Tecnicamente, a estratégia pode ser definida como a seguir: “A extorsão criptovital é um ataque de negação de recursos que usa criptografia de chave pública. É um protocolo de três ciclos que é conduzido por um atacante em face de uma vítima. O ataque é conduzido via um criptovírus que usa um criptossistema híbrido para encriptar dados do hospedeiro enquanto apaga ou reescreve os dados originais no processo”.(2)

Encriptar significa transformar uma informação que inicialmente poderia ser lida pelo usuário em um algoritmo, de modo a impossibilitar a leitura por seu titular, limitando-a àquele que possui uma chave especial ou informação particular, no caso, o delinquente. A infecção coloca a máquina da vítima sob controle do malfeitor até que esta aceite cumprir suas exigências. Caso aceite fazer o pagamento, a chave é entregue à vítima, que retorna o acesso e o uso dos recursos normalmente.

Exemplificativamente o autor infecta o computador alheio com um malware que informa que certos arquivos do usuário estão corrompidos (como arquivos de texto ou mídias) e sugere a instalação de um aplicativo para consertar tais arquivos. O usuário, desavisado, instala o programa que aparenta estar corrigindo os arquivos falsamente corrompidos, mas que na realidade está criptografando os arquivos de acesso ao sistema ou arquivos importantes.

Assim, o autor consegue tomar controle dos dados alheios e indisponibilizá-los, tornando o sistema ou o arquivo sem acesso até que se atenda ao pagamento.

Para estabelecimento da exigência, geralmente uma tela surge ao usuário informando as condições para liberação.

Assim, a engenhosidade social está criada e o movimento principal é fazer com que o usuário vitimizado acredite que não há outra maneira de voltar a acessar seus dados a não ser aceitando e cumprindo com o estabelecido. Há, pois, verdadeiro compelimento por meio virtual, a partir do surgimento de novos e elevados valores atribuídos à informática, aos dados e à virtualidade.

Destaque-se que há um movimento de aceitação na instalação do programa por parte da vítima, fazendo com que a característica informática da interatividade esteja presente. Há, pois, uma participação da própria vítima na instalação do ransomware.

A Lei 12.737/2012 criou o art. 154-A, com duas figuras distintas:A primeira figura trata da ação de invadir dispositivo informático

alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo. É tipo complexo e que exige fim específico: invadir para obter, adulterar ou destruir dados. O objetivo do agente, nesta circunstância, são os dados em si.

Nota-se que na extorsão criptoviral, pela própria lógica inerente e etimologia, o objetivo do agente é o de obter vantagem econômica (indevida) pela utilização de um golpe de engenharia social e não obter dados.

É, em verdade, “scam” que se utiliza de armadilha informática especial, fazendo o sujeito alvo entrar em situação de angústia ou desespero. O fim do agente, portanto, é sempre o de obter vantagem e as condutas intermediárias devem ser consideradas delitos meio e devem ser absorvidas.

A segunda figura é a de instalação de vulnerabilidades para obtenção de vantagem ilícita. Por vantagem ilícita, compreende-se toda aquela reprovável e não admissível em lei e, nas palavras de Prado, “é todo o benefício ou proveito contrário ao Direito, constituindo, portanto, elemento normativo jurídico do tipo de injusto”.(3) Em nosso exemplo, tal tipo também parece ficar excluído.

Isso porque por “vulnerabilidade” entende-se a circunstância que dê condição de ataque ou ofensa à vítima. E o legislador pecou na redação da lei ao pluralizar a expressão “instalação de vulnerabilidadeS”, fato que não ocorre no caso em si. Apenas uma vulnerabilidade é instalada na máquina capaz de ofender o usuário, a partir do arquivo que modifica os arquivos de acesso aos recursos.

É dizer, portanto, que apesar de violar a disponibilidade de arquivos ou sistema e de atacar frontalmente a segurança informática que defendemos como bem jurídico autônomo, trata-se, em verdade, de situação de extorsão propriamente dita.

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Há um constrangimento virtual com grave ameaça de perdas consideráveis (patrimoniais ou morais) para que o vitimizado faça um movimento que gerará vantagem patrimonial indevida a si ou a terceiro.

Golpes semelhantes se disseminaram em dois exemplos de “scam”(4) bastante conhecidos, mas sem a infecção da máquina: (a) no primeiro ataque de tal natureza, surgia um informe na tela alertando que o usuário estaria utilizando uma versão ilegal do Windows, exigindo-se que este pagasse um valor para que não fosse alertada a polícia federal dos EUA (FBI) a título de licença do sistema operacional; (b) um segundo exemplo foi o de mensagens que surgiam na tela informando que o FBI ou outra instituição havia detectado pornografia ilegal no computador do usuário e ele deveria pagar um valor a título de fiança.

Há, portanto, conforme amadurecemos no meio ambiente informático, crescentes novas competências a serem desenvolvidas pelos usuários e crescentes novos cuidados a serem tomados.

Referências bibliográficasPrado, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2: parte especial. 7. ed.

rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2008.Sydow, Spencer Toth. Crimes informáticos e suas vítimas. São Paulo: Saraiva, 2013.young, A.; yung, M., Cryptovirology: extortion-based security threats and

countermeasures. Proceedings 1996 IEEE Symposium on Security and Privacy. p. 129. Disponível em: <http://www.techrepublic.com/blog/it-

security/ransomware-extortion-via-the-internet/2976/). Acesso em 18 mar. 2014, às 20h15min <http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.121.3120&rep=rep1&type=pdf>. Acesso em 18 mar. 2014, às 20h16min.

Notas:(1) Adam Young e Moti Yung cunharam o termo “criptovirologia” e

demonstraram seu funcionamento em 1996, através do paper Cryptovirology: Extortion-Based Security Threats and Countermeasures. Disponível em: <citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.121.3120&rep=rep1&type=pdf>. Acesso em: 18 mar. 2014, às 11h56min.

(2) Definição de Young e Yung, cf. artigo citado na nota de rodapé anterior. Original: “Crypto-viral extortion, which uses public key cryptography, is a denial of resources attack. It is a three-round protocol that is carried out by an attacker against a victim. The attack is carried out via a crypto-virus that uses a hybrid cryptosystem to encrypt host data while deleting or overwriting the original data in the process”.

(3) Prado, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2: parte especial. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2008, p. 445.

(4) Defendemos a existência de duas modalidades de scam, quais sejam o scam estelionato e o scam extorsão.

Spencer Toth SydowMestre e doutorando em Direito Penal (USP).

Professor de Graduação e Pós-graduação (UNIP, GV-Law).

Uso de drogas e teoria da irrelevância penal do fatoPatrícia Raposo Moreira e José César Naves de Lima Júnior

A teoria da irrelevância penal do fato é recente no país e tem aplicação sobre o denominado crime bagatelar impróprio. Trata-se, como é cediço, de crime que não nasce insignificante para o Direito, mas decorrido certo lapso temporal aliado a outras circunstâncias fáticas tornam a conduta inicialmente relevante sem qualquer importância. Quer se dizer com isso que a punição deixa de ser necessária nos moldes preconizados pelo art. 59 do Código Penal.

Compreenda a diferença. No crime bagatelar próprio não há tipicidade material, tendo em vista a inexistência de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora. A conduta de subtrair um palito de fósforo de uma loja se amolda formalmente ao tipo descrito no art. 155, caput, do Código Penal, todavia, não lesiona o patrimônio da vítima e por isso não é considerado crime. Assim, está sujeito ao princípio da insignificância que exclui a tipicidade do fato. Neste particular, para seu reconhecimento é necessário, segundo o Supremo Tribunal Federal, a presença cumulativa dos seguintes pressupostos: (a) mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, e (d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.(1) Ademais, a aplicação deste princípio deve, contudo, ser precedida de criteriosa análise de cada caso, a fim de evitar que sua adoção indiscriminada constitua verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos patrimoniais.

Feita a distinção, convém analisar a possibilidade de se aplicar ou não a teoria da irrelevância penal do fato ao crime de uso de drogas previsto no art. 28 da Lei 11.343/2006.

Suponha a hipótese de acusado pela prática de crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei de Drogas) preso provisoriamente durante toda ou parte da instrução que ao final do processo venha a ter sua conduta desclassificada para o uso de drogas. Devido a esse desiderato, o processo deverá ser remetido ao Juizado Especial Criminal da comarca, por ser aquele o juízo competente para aplicar as penas previstas no art. 28 da norma

especial. Nesta senda indaga-se: devido ao período que esteve custodiado poderá o juiz arrimado na teoria da irrelevância penal do fato deixar de aplica a pena ao suposto autor? Haveria a necessidade de advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa, ou o período que esteve segregado seria suficiente para a prevenção e reprovação do crime?

Conquanto prima facie seja sustentável o afastamento de possível punição em virtude do período que esteve preso, é imperioso, antes, perscrutar a natureza das medidas constantes dos incisos I, II e III do art. 28 da novel legislação para identificar esta possibilidade. Partindo-se desta premissa, cumpre salientar que a lei ao definir o uso de drogas como infração de pequeno potencial ofensivo não descriminalizou tal comportamento, mas tão somente o despenalizou.(2) Enfim, não se aplica pena privativa de liberdade a posse de drogas para uso próprio, pois a mens legis se dirige à prevenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, fato que definitivamente revela seu caráter não punitivo. Perceba que o legislador, ao instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, estabeleceu como objetivo a recuperação de usuários e dependentes de drogas nos termos dos arts. 1º e 3º, inc. I, da norma extravagante com vistas a assegurar o bem-estar social.

Dessarte, as penas descritas no rol do art. 28 e respectivos incisos devem observar as diretrizes e finalidades da lei reforçando seu caráter pedagógico, terapêutico e assistencial, mas não punitivo, durante sua aplicação pelo juiz de acordo com o disposto no art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Com isso, os serviços comunitários e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo devem sair da esfera retributiva e buscar a recuperação do usuário. Além disso, a pena de advertência somente deveria ser aplicada cumulativamente às outras duas modalidades, pois do contrário frustrará o móvel da lei, até porque isolada não revela pragmatismo e efetividade social. A fortiori, reza o § 7º do art. 28 que o juiz “determinará

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ao poder público que coloque a disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado”. Observe que o verbo determinará encontra-se no imperativo, denotando, por conseguinte, a impossibilidade de o juiz decidir com discricionariedade quanto à providência terapêutica. Vamos mais longe. O § 6º do citado art. 28 ao se referir ao rol elencado neste dispositivo denomina medidas educativas o que anteriormente, no caput, chamou de penas, revelando um mero equívoco de semântica. Demais disso, para garantir o cumprimento destas medidas o próprio § 6º impõe admoestação verbal ou multa para compelir o usuário ao cumprimento de medidas que lhe proporcionem a reinserção social, restando evidenciada a ausência de cunho sancionador.

A Lei 11.343/2006 pode ser considerada um microssistema jurídico, ou melhor, uma técnica usada pelo legislador para promover reformas densas no ordenamento de forma cirúrgica, específica, sem fomentar a criação de antinomias – conflitos com outras normas –, o que lhe confere um status de sistema em que as medidas constantes do art. 28 são penas em sentido formal, pois desprovidas de caráter punitivo. A dependência química decorrente do uso de drogas é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença multifatorial que afeta o usuário e seus familiares exigindo a observância de vários aspectos para elaboração de tratamento destinado a salvar a vida de quem corre o risco de suicídio, problemas cardíacos, crises de abstinência, estados psicóticos, ou até mesmo de uma overdose acidental.

Sumariando, pena em sentido formal significa que o comportamento da posse de drogas para uso próprio está sujeito a uma resposta da sociedade que não corresponde, propriamente, à punição de seu autor, assumindo a coatividade da ordem jurídica no sentido material uma nova feição, de natureza socioeducativa e protetiva do usuário.

A drogadição pode ter origens diversas, o que exige um tratamento individualizado, cujo período de internato em instituições especializadas pode variar de duas semanas até um ano, demonstrando-se, a toda evidência, que na verdade é um problema de saúde pública e não criminal. Por outro lado, a precariedade do Estado na área de saúde tem exigido soluções alternativas, mormente quanto aos dependentes químicos, em sua grande parte de origem humilde e sem recursos para internação em clínicas privadas. A informalidade como critério orientador dos procedimentos afetos aos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95, art. 62) provavelmente se torna um poderoso instrumento do juiz em conferir efetividade à norma em comento, diante de inúmeras alternativas que se abrem junto ao caso concreto. Explicitando melhor a ideia, defendemos que o rol de que se vale o art. 28, por suas peculiaridades, revela natureza exemplificativa sem nenhuma ofensa ao princípio da legalidade previsto nos arts. 1º do Código Penal e 5º, inc. XXXIX, da Constituição Republicana.

Como visto, o aludido preceito, se interpretado sistematicamente, não atribui caráter penalizador às medidas destinadas à prevenção e recuperação de usuários e dependentes químicos, tanto que seu descumprimento resulta em providências que visam tão somente, por sua própria natureza, compelir seu destinatário a cuidar de si mesmo. Portanto, além de serviços, cursos ou programas educativos, o destinatário da norma poderá frequentar a religião de seu crédulo, senão ateu, participar de cursos profissionalizantes, práticas desportivas, em suma, de atividades que possam lhe conferir cidadania e dignidade humana.

Sem a pretensão de um ensaio, o presente artigo não procura defender a figura do crime sem pena, mas conferir a esta última um novo sentido que esteja em sintonia com os fins sociais da norma da qual emana. Do contrário, aplicando-se a teoria da irrelevância penal do fato, em vez de beneficiar o usuário, estar-se-ia retirando a oportunidade de receber a devida assistência, à míngua do comprometimento do interesse público, pois o vício, além de fomentar a prática reiterada de crimes patrimoniais, financia o tráfico do qual deriva uma vasta gama de infrações, como o mercado ilícito de armas e seres humanos, homicídios, prostituição, contrabando, entre outros, a ponto de gerar um Estado paralelo.

Posto isso, conclui-se que a teoria da irrelevância penal do fato, mesmo na hipótese de custódia cautelar antecedente, não deve afastar a incidência das penas, em sentido formal, descritas no art. 28 da Lei de Drogas, sob pena de conspurcar o processo de recuperação de drogadiços e familiares, que reflete no bem-estar coletivo ameaçado pela ausência de políticas públicas, e deficiência do aparato do Estado que acentuam ainda mais a problemática do vício e seus efeitos malfazejos sobre o corpo social. Logo, a natureza exemplificativa do rol de medidas do reportado art. 28, advinda de interpretação sistemática da norma, representa, sobretudo, um novo enfoque ao uso de drogas no país que perpassa o campo das discussões acerca da descriminalização dispensando-se à resposta social, em sentido material, um caráter único, sui generis, quer dizer, socioeducativo e protetivo do usuário.

Referências bibliográficasCarvalho, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. Estudo criminológico

e dogmático da Lei 11.343/2006. 6. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

gomeS, Luís Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

Silva, Amaury. Lei de Drogas anotada. Leme: JH. Mizuno, 2008.

Notas (1) STF – HC 84412-SP – 2ª T. – Rel. Min. Celso de Mello – DJU 19.11.2004 –

p. 37.(2) “POSSE DE DROGA PARA CONSUMO PESSOAL: (ART. 28 DA

L. 11.343/06 – NOVA LEI DE DROGAS): Natureza jurídica de crime – 1. O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que Lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela Lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo ‘rigor técnico’, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado ‘Dos Crimes e das Penas’, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão ‘reincidência’, também não se pode emprestar um sentido ‘popular’, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C. Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de ‘despenalização’, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C. Penal, art. 107). II. Prescrição: Consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado” (STF – RE-QO 430105-RJ – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 27.04.2007).

Patrícia Raposo Moreira Pós-graduada em Direito Público.

Assessora jurídica do Ministério Público do Estado de Goiás.Professora Universitária do Curso de Direito do Instituto

Luterano de Ensino Superior de Itumbiara.

José César Naves de Lima JúniorMestre em Direito.

Especialista em Direito Civil e Processual Civil e Ciências Penais pela UNIDERP.

Membro do Ministério Público do Estado de Goiás.

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Considerações sobre a hipótese de comutação de pena definida no art. 3.º do Decreto 8.172, de 24.12.2013Irvan Antunes Vieira Filho e Domingos Barroso da Costa

Nas linhas que abaixo seguirão, pretende-se expor as primeiras impressões sobre novidade trazida pelo Dec. 8.172, publicado pela Presidente da República em edição extra do Diário Oficial da União, no dia 24.12.2013.

Como tradicionalmente ocorre próximo ao Natal de cada ano, através de decreto, o(a) Presidente(a) da República concede indulto coletivo e comutação de sanções às pessoas, nacionais e estrangeiras, condenadas a penas privativas de liberdade, substituídas, ou não, por restritivas de direitos ou multa, beneficiadas, ou não, com a suspensão condicional da pena, desde que, até 25 de dezembro de 2013, tenham cumprido determinados requisitos estabelecidos no seu corpo. Trata-se de exercício efetivo da atribuição prevista no art. 84, XII, da CF/1988, que se materializa com forte carga simbólica, considerando-se 1) o período natalino convencionado para a concessão dos indultos e comutações; 2) o público a que se destinam os benefícios; 3) a autoridade que os concede com exclusividade; e 4) a atual – calamitosa – situação do sistema prisional do Brasil.

Observadas as balizas constitucionais, é a partir do contexto que se forma pela interação das circunstâncias supraindicadas que devem ser interpretadas as disposições dos decretos presidenciais de concessão de indulto e comutação. Disposições essas que têm a especial finalidade – embora não declarada – de aliviar ao máximo a situação de nossos cárceres. Em síntese: sob as formas jurídicas do decreto presidencial natalino, há, em verdade, uma medida política de encurtamento ou extinção das penas, que visa acelerar a rotatividade no sistema prisional de modo a renovar o número de vagas sem que haja necessidade de outros investimentos em sua ampliação.

Assim, para além da necessidade de se dar interpretação restritiva a regras que restringem a liberdade – que se extrai do contexto constitucional (princípio do favor libertatis) –, fato é que o vetor político-teleológico de exame das disposições sobre indulto e comutação também indica que a análise das hipóteses de cabimento dos benefícios em questão deve se dar em sentido ampliativo da liberdade, ou seja, no sentido de encurtamento ou extinção das penas justamente para que se evite o agravamento do colapso de que padece nosso sistema prisional.

São essas as balizas de interpretação das disposições relativas a indulto e comutação, as quais, obviamente, também se aplicam ao decreto natalino de 2013, que trouxe em seu texto dispositivo merecedor de especial atenção. Refere-se, aqui, ao art. 3.º do Dec. 8.172/2013, que expressa disposição inédita a partir de texto que pode causar perplexidade ao leitor, mas que não deve ser lido fora do contexto hermenêutico acima delineado, pelas razões a seguir expostas, que, entretanto, não estão livres de polêmicas.

Fato é que o texto do referido art. 3.º ensejou interpretações diferenciadas por parte dos experientes Defensores Públicos que integram o Núcleo de Defesa em Execução Penal (Nudep/DPERS) e daqueles responsáveis pelo atendimento aos presos do Presídio Central de Porto Alegre e Penitenciária Estadual do Jacuí, as duas maiores unidades penais do Estado do Rio Grande do Sul. Diante da controvérsia surgida, do ineditismo do texto e da experiência vivida pela Defensoria

Pública do Estado do Rio Grande do Sul, adveio a necessidade de se desenvolver um breve estudo da temática, no sentido de se estabelecer parâmetros de atuação a partir da interpretação institucionalmente dada ao dispositivo.

Em definição doutrinária, Renato Marcão afirma que a anistia, a graça e o indulto são emanações da soberania do Estado, e por isso institutos considerados como indulgentia principis (indulgência soberana).(1) E, como emanação da soberania do Estado, o indulto revela-se verdadeiro ato de clemência do Poder Público, consistindo em benefício concedido privativamente pelo Presidente da República, que, a teor do disposto no art. 84, XII, parágrafo único, da CF/1988, poderá delegar sua concessão aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, observados os limites traçados nas respectivas delegações.

Conforme se tem decidido, o indulto e a comutação de penas decorrem de ato discricionário do Presidente da República, que não só pode deixar de concedê-lo, segundo seu livre critério de conveniência e oportunidade, como também poderá lhe impor restrições e condições.

Muito embora a concessão do indulto e comutação seja ato de competência privativa da Presidente da República, o Decreto que concede o benefício a sentenciados que se enquadrem nas hipóteses por ele estabelecidas não é autoexecutável. Sua aplicação depende de decisão judicial, cabendo ao juiz da execução penal verificar o preenchimento dos requisitos exigidos para identificar quais daqueles condenados são alcançados pela benesse presidencial. Ou seja, “as decisões relativas a indulto ou comutação da pena são meramente declaratórias, reportam-se às condições vigentes no dia em que o interessado fez jus aos benefícios, retroagindo seus efeitos também a essa data” (RT 583/372).

Feitas essas considerações introdutórias, cumpre agora partir para o exame específico do art. 3.º do Dec. 8.172, de 24.12.2013, que assim dispõe: “Concede-se comutação às pessoas condenadas à pena privativa de liberdade que não tenham, até 25 de dezembro de 2013, obtido as comutações, de decretos anteriores, independente de pedido anterior”.

A leitura apressada da referida disposição pode induzir o intérprete à equivocada conclusão de que o Dec. 8.172/2013 pretendeu sepultar o antiquado – e igualmente equivocadíssimo – entendimento de que, quando a Presidência da República publica um novo decreto de indulto o anterior estaria revogado.

A forma como foi redigido o dispositivo em análise pode deixar margem a plurais interpretações, mas, definitivamente, não a essa!

E isso, por razões notórias, bastando que se considere que o direito adquirido ao indulto ou à comutação previamente definidos por ato privativo do Presidente da República depende apenas de uma declaração judicial. Desnecessário, portanto, um dispositivo com a especial finalidade de esclarecer uma questão sobre a qual não há margem jurídica para dúvidas.

Ou seja, posta a comutação pelo Chefe do Executivo Nacional, o direito aperfeiçoa-se, tornando-se insuscetível de revogação, preclusão, decadência ou prescrição. Acrescente-se, ainda, que o sujeito que reuniu os pressupostos para a comutação de decretos passados e não teve declarado esse direito, evidentemente, também

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se enquadra nas previsões do art. 2.º do Dec. 8.172/2013, sendo inimaginável que uma pessoa possa perder o direito à benesse presidencial porque não declarado judicialmente, seja porque não formulou pedido, seja porque, uma vez postulado, não o teve apreciado no prazo de um ano.

Também há de se ponderar que inúmeras disposições do decreto têm caráter explicativo, como o art. 10, que afasta a exigência de pressupostos subjetivos nele não previstos, e o art. 12, que, de forma inovadora, sepultou a discussão envolvendo a concessão do benefício de indulto aos presos que cumprem pena em prisão domiciliar, afirmando seu cabimento.(2)

Pretendesse a Presidente simplesmente explicar ou afastar aquele entendimento – que talvez vigore em algum recanto do Brasil – haveria de utilizar redação mais apropriada que a expressa no art. 3.º do Dec. 8.172/2013.

Na verdade, o que se prevê no art. 3.º, e de forma até bem clara, é algo de extrema indulgência, e que se justifica no cenário penitenciário brasileiro atual conforme antecipado ao início deste estudo. Um cenário que expõe o déficit de mais de 200 mil vagas no sistema prisional e o descontrole estatal absoluto – representado em fatos como a discussão travada no âmbito do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de cumprimento da pena em prisão domiciliar quando inexistente vaga no regime semiaberto ou aberto –, a ensejar intervenção constante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA) nas questões prisionais – ex vi, as recentes recomendações envolvendo os episódios no Complexo de Pedrinhas, em São Luís do Maranhão, e case do Presídio Central de Porto Alegre. Tudo isso anunciado no ano de 2013, a revelar que nossos presídios mais se assemelham a masmorras medievais.

O que fez a Presidente, na verdade, foi prever a possibilidade de uma segunda forma geral e aberta de comutar penas, o que se percebe pela expressão afirmativa categórica do início do dispositivo, qual seja, “concede-se comutação” (sic).

A Presidente evidentemente concedeu comutação das reprimendas de todas as pessoas condenadas que não tenham, até 25 de dezembro de 2013, se beneficiado (obtido) das comutações dos decretos anteriores, mesmo que não o tenham requerido nos anos passados.

Os pressupostos dessa nova forma de comutação, portanto, são abrangentes, encontrando restrição apenas no previsto nos arts. 5.º, caput, e 9.º do Dec. 8.172/2013. Partindo-se dessa premissa, é de se concluir que, enquanto o art. 2.º(3) concede comutação da pena remanescente às pessoas condenadas à pena privativa de liberdade (não beneficiadas com a suspensão condicional da pena) que tenham cumprido determinadas frações e que já tenham se beneficiado de comutações anteriores (vide §§ 1.º e 2.º), no art. 3.º, a Presidente concede comutação às pessoas condenadas à reprimenda privativa de liberdade, independentemente se substituída por pena(s) restritiva(s) de direitos ou beneficiadas com o sursis, bastando que, até 25 de dezembro de 2013, não tenha o preso “obtido as comutações, de decretos anteriores, independente de pedido anterior”.

Enfim, quem, condenado a uma pena privativa de liberdade, nunca recebeu comutação, passa a ter direito pela vez primeira.

No referido artigo não há pressuposto temporal de cumprimento de pena (o que não é novidade, uma vez que modalidades de indulto também existem sem requisitos temporais), mas apenas o requisito especial de a pessoa não ter sido contemplada (“obtido”) com a comutação por algum dos decretos anteriores. E não é demais recordar que, para “a declaração do indulto e comutação das penas não se exigirá requisito outro, senão os previstos neste Decreto” (art. 10).

É evidente que deverão ser observadas as restrições dos demais artigos do decreto, como por exemplo, a ausência de condenação por crime impeditivo (art. 9.º), e a inexistência de aplicação de sanção por falta disciplinar de natureza grave, cometida nos doze meses de cumprimento da pena (art. 5.º, caput).

No que diz da quantidade de pena a ser comutada, certo é que a previsão coube ao art. 2.º – que concede a comutação de um quarto da pena aos não reincidentes, e de um quinto, aos reincidentes –, uma vez que o art. 3.º dele se destaca apenas no que diz da concessão da comutação independentemente de anterior gozo da benesse, sobre toda a pena (já que não se refere à sanção remanescente) às pessoas condenadas à reprimenda privativa de liberdade, independentemente se substituída por penas restritivas de direito ou suspensa sob condições (sursis).

Como antecipado, tal interpretação decorre não só do princípio do favor libertatis, mas da finalidade dos institutos do indulto e da comutação no atual contexto de nosso sistema prisional, não sendo possível outra leitura do referido dispositivo, sob pena inclusive de restar esvaziado de sentido ou utilidade.

Por tudo isso, não vislumbramos interpretação que autorize o aplicador da lei a restringir a concessão da comutação à disposição do art. 2.º, ignorando a existência do texto do art. 3.º não só em sua literalidade, mas também no sentido que lhe dá o contexto sociojurídico em que se insere e ao qual se aplicará.

Outra observação que se faz necessária diz respeito à hipótese de o mesmo condenado reunir os pressupostos fáticos das duas espécies de comutação previstas no Dec. 8.172/2013; a do art. 2.º (porque cumpriu, até 25.12.2013, um quarto da pena, se não reincidente, ou um terço, se reincidente) e a do art. 3.º (porque não obteve comutação nos decretos anteriores). A dúvida pode repousar na possibilidade da dupla redução. Não obstante, considerando que se tratam de situações subjetivas destinatárias de tratamentos diferenciados no Decreto, e diante da incompletude da norma, alternativa não resta senão estabelecer a possibilidade da cumulação.

Nesse passo, merece ser destacado que o “[...] princípio da legalidade se aplica também no âmbito da execução penal, na medida em que se constitui em um princípio constitucional, limitativo do poder do legislador, que terá que formular preceitos claros, precisos, determinados e de acordo com a Constituição, limitativo do poder jurídico do órgão acusador, que não poderá transpor as barreiras legais autorizadoras do exercício da pretensão acusatória, e limitador do poder jurídico dos Juízes e dos Tribunais, os quais estão impedidos de definir tipos penais, de aplicar sanções criminais ou restringir direitos, além da previsão legal, garantindo-se, assim, a proteção dos direitos e das liberdades fundamentais. Do princípio da legalidade se inferem três garantias penais: a) garantia criminal (descrição típica); b) garantia penal (delimitação da sanção) e garantia da execução (cumprimento da sanção)”.(4)

Assim, partindo-se do princípio da legalidade enquanto garantia fundamental máxima – em todos os seus reflexos, especialmente no que diz da necessidade de clareza dos textos legais –, é de se concluir que, nos limites dos arts. 5.º, caput, e 9.º, não poderá o Poder Judiciário recusar a declaração da comutação concedida pela Presidência da República no analisado artigo do Dec. 8.172, de 24.12.2013. A diminuição deve ser calculada sobre toda a pena imposta (já que não se refere à sanção remanescente ou já cumprida) daqueles que não tenham gozado anteriormente da benesse e que tenham sido

partindo-se do princípio da legalidade enquanto garantia fundamental máxima, é de se concluir que, nos limites dos arts. 5.º, caput, e 9.º, não poderá o Poder Judiciário recusar a declaração da comutação concedida pela Presidência da República

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condenados a pena privativa de liberdade, independentemente de sua substituição por pena(s) restritiva(s) de direitos ou de sua suspensão condicional (sursis).

Nesse ponto, subsidiariamente, considerando a inegável extensão da comutação prevista no dispositivo – nos limites dos arts. 5.º, caput, e 9.º do referido decreto, independentemente da substituição de sua pena por restritiva(s) de direitos ou de sua suspensão condicional (sursis) –, caso não se admita a extinção das frações estabelecidas sobre o total da pena, há no mínimo de se reconhecer a comutação (de 1/4, para os não reincidentes, e de 1/5, para os reincidentes), sobre a pena remanescente (art. 2.º, caput) ou “sobre o período de pena já cumprido até 25 de dezembro de 2013, se o período de pena já cumprido, descontadas as comutações anteriores, for superior ao remanescente” (art. 2.º, § 1.º). Trata-se da máxima restrição que se pode admitir à norma que se expressa pelo art. 3.º do Dec. 8.172/2013, consideradas a clareza de seu texto e o contexto sociopolítico em que se insere, circunstâncias que impedem seja o dispositivo esvaziado de sua importância, reduzido a simples regra de interpretação dos comandos do art. 2.º.

Notas: (1) Curso de execução penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, p. 286 e 289.(2) “Art. 12. Aplicam-se os benefícios contidos neste Decreto relativos ao

regime aberto às pessoas presas que cumpram pena em regime aberto domiciliar.”

(3) “Art. 2.º Concede-se a comutação da pena remanescente, aferida em 25

de dezembro de 2013, de um quarto, se não reincidentes, e de um quinto, se reincidentes, às pessoas condenadas à pena privativa de liberdade, não beneficiadas com a suspensão condicional da pena que, até a referida data, tenham cumprido um quarto da pena, se não reincidentes, ou um terço, se reincidentes, e não preencham os requisitos deste Decreto para receber indulto.

§ 1.º O cálculo será feito sobre o período de pena já cumprido até 25 de dezembro de 2013, se o período de pena já cumprido, descontadas as comutações anteriores, for superior ao remanescente.

§ 2.º A pessoa que teve a pena anteriormente comutada terá a nova comutação calculada sobre o remanescente da pena ou sobre o período de pena já cumprido, nos termos do caput e § 1.º, sem necessidade de novo requisito temporal e sem prejuízo da remição prevista no art. 126 da Lei de Execução Penal.”

(4) TJRS, Ag 70019793835, 6.ª Câm. Crim., rel. Nereu José Giacomolli, j. 28.06.2007.

Irvan Antunes Vieira FilhoDefensor Público no Rio Grande do Sul.

Assessor Institucional da Subdefensoria Pública-Geral para Assuntos Institucionais.

Domingos Barroso da CostaDefensor Público no Rio Grande do Sul.

Especialista em Criminologia e Direito Público.Mestre em Psicologia pela PUC-Minas.

O GATE do Ministério Público do Rio de Janeiro e a perversão probatóriaAntonio Eduardo Ramires Santoro

Não é incomum encontrarmos processos criminais no Estado do Rio de Janeiro nos quais o Ministério Público faça juntar algo que ora é chamado de laudo pericial, ora de parecer técnico, ora de informação técnica, subscrito por alguém apresentado como “técnico pericial” pertencente ao “GATE”.

GATE é o Grupo de Apoio Técnico Especializado do próprio Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, um órgão interno composto por profissionais que atuam por determinação dos promotores de justiça.

O que causa estranheza é que o uso deste “órgão” do Ministério Público é feito de forma a não se obedecer as normas sobre produção de prova pericial do Código de Processo Penal, sobretudo o que dispõe o art. 159 a respeito da atuação dos assistentes técnicos.

Isso porque, em vez de nomear um assistente técnico e requerer sua admissão pelo juiz, bem como aguardar a abertura do prazo para que a defesa se utilize da mesma prerrogativa, com a possibilidade de ambas as partes apresentarem quesitos, com posterior fixação de data para exame do material a ser periciado e apresentação de parecer técnico ou oitiva dos peritos e assistentes em audiência, tudo como manda os parágrafos do referido art. 159, o Ministério Público vem anexando desavisadamente um “laudo do GATE” à denúncia, como forma de instruí-la, ou remete os autos do processo ao GATE e os devolve com um requerimento de juntada de parecer técnico já elaborado sem contraditório.

De maneira geral, as defesas que se insurgem contra essa prática recebem como resposta (em regra por acolhimento pelo magistrado dos argumentos apresentados pelo Ministério Público) uma negativa assim fundamentada: (1) o “parecer técnico” juntado aos autos não é uma perícia, mas uma prova documental, portanto pode ser juntada a qualquer tempo; (2) a referida prova deve permanecer nos autos em homenagem à busca da verdade substancial.

Faz-se necessário realizar algumas reflexões teóricas sobre o assunto:

1.ª) A posição do Ministério Público de “parte imparcial” desvela uma situação institucionalmente esquizofrênica que se irradia para todos os órgãos que compõem sua estrutura.

Como consequência, além de se admitir a juntada ao arrepio do procedimento de produção da prova pericial previsto na lei processual, é muito comum que na sentença o magistrado dê ao “parecer técnico” do GATE o mesmo tratamento que é dispensado ao “laudo pericial” oficial. É a confusão corolária do tratamento do promotor como magistrado. A dificuldade de o próprio Poder Judiciário se desfazer dessa confusão se deve ao fato de que o GATE é público, pertencente à estrutura do Ministério Público que é tratado como “imparcial”, tornando-se quase inevitável (sob o ponto de vista psicológico da memória inquisitiva) considerá-lo um órgão de perícia oficial. Aduza-se a isso o fato de que o instituto de perícia oficial é parte da estrutura da polícia, que também não apresenta imparcialidade alguma. Por que, então, o órgão de perícia pertencente aos quadros da polícia seria oficial e o do Ministério Público não?

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É fato que ambos são públicos, porém não ostentam a condição de imparcialidade necessária para exercerem a função de “perito oficial” a que se refere o art. 159 do CPP e ocuparem a posição processual de auxiliares da Justiça, conforme art. 275 e ss. do CPP. De outro ponto, com honestidade e seriedade intelectual, sem discursos de hipócrita defesa da sociedade, ninguém vinculado funcionalmente às agências de persecução penal pode ser considerado imparcial.

2.ª) Há uma disseminada crença, inclusive entre a doutrina mais democrática, de que tudo que se junta aos autos é prova documental. Com isso, pareceres juntados ao arrepio do rito previsto no art. 159 do CPP são admitidos como documentos.(1)

O que causa estranheza é precisamente o fato de que esse entendimento é uma perversão da natureza da prova e não toma em conta o fato de que a diferença entre os meios de prova não está no seu resultado, mas no rito para sua obtenção.

Com efeito, se ignorarmos o procedimento de produção probatória poderíamos transformar todos os meios de prova em documental. Afinal, o fonograma, uma declaração assinada, um extrato bancário e um Hard Disk são documentos. Todavia, se o fonograma foi obtido por meio da gravação de uma ligação telefônica, ele só terá validade se observado o rito da Lei 9.296/1996. Se a declaração for de uma testemunha, sua validade está condicionada à observância do procedimento previsto no art. 202 e ss. do CPP. Se o extrato bancário do réu não for por ele juntado, só poderá ser valorado se observadas as regras de obtenção da LC 105/2001. Se o Hard Disk foi apreendido na casa do acusado sem entrega espontânea, só poderá ser utilizado como prova se cumpridas todas as exigências da busca e apreensão dispostas no art. 240 e ss. do CPP. O meio de obtenção é precisamente o que diferencia a prova documental da interceptação telefônica, da prova testemunhal, da quebra de sigilo bancário, da busca e apreensão etc.

Assim, chamar um “parecer técnico” de prova documental é ignorar que a natureza da prova está no rito de sua obtenção.

3.ª) A invocação do mito da verdade real é o subterfúgio último para fugir à dialética processual, perverter a natureza da prova e ignorar as formalidades rituais de produção probatória.

Com o costumeiro argumento de que inadmitir determinada prova pela não observância do procedimento é uma tentativa de ocultar a verdade, o que se faz em última análise é ignorar que a prova se caracteriza pelo método de obtenção, cujo rito deve ser estritamente observado para garantia de uma confrontação de perspectivas. Essa é a única epistemologia probatória possível em

um Estado Democrático de Direito, sem “verdades” unilaterais e previamente estabelecidas.

Portanto, a perícia não se compõe apenas do laudo pericial emanado do perito oficial, mas também dos pareceres apresentados pelos assistentes técnicos, dos quesitos respondidos, dos depoimentos dos peritos e dos assistentes, tudo na estrita observância das regras de produção. Isso implica que o parecer técnico do GATE não é “o laudo pericial”, mas é parte da prova pericial, desde que observadas as regras para sua elaboração, como a que permite à defesa fazer o mesmo, dando concretude aos direitos constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Frise-se, todavia, que não basta a observância do rito de obtenção de prova para a escorreita adequação à Constituição, há, ainda, que se criar um órgão de perícia autônomo e imparcial, não vinculado ao Ministério Público nem à Polícia, como forma de romper com uma das diversas amarras que ainda prendem o processo penal brasileiro ao sistema inquisitivo. Caso contrário, continuaremos reféns da verdade substancial.

Nota:(1) Esse é o entendimento, por exemplo, de Aury Lopes Jr. (loPeS Júnior,

Aury. Direito processual penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 616). Porém deve se colocar em relevo que essa posição tem origem no antigo sistema em que não se havia por definida em lei a participação dos assistentes técnicos no processo penal, sendo necessário que a defesa se valesse desse expediente para contrapor argumentos ao laudo pericial policial oficial, tanto que Antonio Scarance Fernandes (SCaranCe FernandeS, Antonio. Processo penal constitucional. 4. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 88), que admite a juntada de parecer com as alegações finais, mas não chama esta prova de documental, sustentava, antes da alteração implementada pela Lei 11.690/2008, que as partes tivessem direito à produção de prova pericial por meio de assistentes “como sucede no processo civil”, buscando dar concretude à ampla defesa constitucional. Ocorre que, em que pese o viés democrático da origem desse pensamento, ele só se justifica após a reforma do CPP (Lei 11.690/2008) se insistirmos equivocadamente em vincular institucionalmente a perícia oficial aos órgãos de persecução penal. Assim, com exceção dos casos em que o exame do objeto da perícia não for repetível, toda perícia deve seguir o rito do art. 159 do CPP, o que, portanto, implicará que as partes sejam intimadas a nomear assistentes técnicos, apresentar quesitos, arguir os peritos em audiência e juntar parecer. Tudo isso compõe a prova pericial, e não a prova documental.

Antonio Eduardo Ramires SantoroProfessor adjunto de Direito Processual Penal e Prática Penal

da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.Advogado.

DIRETORIA EXECUTIVAPresidente: Mariângela Gama de Magalhães Gomes 1.ª Vice-Presidente: Helena Regina Lobo da Costa2.º Vice-Presidente: Cristiano Avila Maronna1.ª Secretária: Heloisa Estellita2.º Secretário: Pedro Luiz Bueno de Andrade1.º Tesoureiro: Fábio Tofic Simantob2.º Tesoureiro: Andre Pires de Andrade KehdiDiretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais: Eleonora Rangel Nacif

Fundado em 14.10.92

DIRETORIA DA GESTÃO 2013/2014

CONSELHO CONSULTIVOAna Lúcia Menezes VieiraAna Sofia Schmidt de OliveiraDiogo Rudge MalanGustavo Henrique Righi Ivahy BadaróMarta Saad

OUVIDORPaulo Sérgio de Oliveira

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O caso Carli Filho e o significado descritivo e normativo do doloFernando LopesIntrodução

Há diversos casos em que um motorista embriagado, em alta velocidade, provoca a morte de pessoas. Trata-se, infelizmente, de uma realidade brasileira. Em todos esses casos sempre surge a mesma questão: seria um caso de homicídio doloso ou culposo? Atualmente, um desses casos tem mobilizado a opinião pública, pois envolve um ex-deputado, que renunciou ao mandato após provocar a morte de duas pessoas.

Ante esse contexto, verifica-se a importância de se ter na doutrina do Direito Penal critérios seguros para determinar a diferença entre o dolo e a culpa. Ocorre que esses critérios aparentemente não existem, sendo fácil encontrar na jurisprudência casos semelhantes que, todavia, foram resolvidos de forma distinta.

Feitas essas considerações, o objetivo deste artigo é o de provocar algumas reflexões, de modo a contribuir para que casos como o do acidente que envolveu o ex-deputado Carli Filho possam, no futuro, ser resolvidos com maior segurança jurídica, o que é uma exigência do princípio da legalidade.

Para tanto, será exposta a diferença entre a concepção psicológica e normativa do dolo, que, a meu entender, é o ponto chave para se compreender o porquê de existir tanta insegurança jurídica nesses casos.

Contudo, antes de passar à breve exposição doutrinária sobre a matéria, é fundamental ter como “background” algumas questões fundamentais.

Questões fundamentaisNenhuma discussão científica sobre o conceito de dolo e sobre sua

diferença em relação à culpa pode prescindir previamente de fornecer uma resposta para as seguintes questões:

1) O dolo é uma intenção que deve realmente existir no psiquismo do sujeito no momento em que pratica uma conduta perigosa, ou bastaria a existência de uma conduta perigosa para afirmar a existência do dolo?

Em outros termos, para afirmar a existência de dolo num caso de um motorista que ao dirigir a 173 km/h causara a morte de duas pessoas seria necessário exigir que ele tivesse ao menos cogitado, no caso concreto, que com sua conduta poderia provocar a morte de alguém, ou a mera conduta perigosa de dirigir a 173 km/h já seria suficiente para a afirmação do dolo?

2) Caso se reconheça que não basta a mera conduta perigosa, qual deveria ser o conteúdo do dolo? Bastaria ao motorista ter conhecimento de que dirigir a 173 km/h é uma conduta perigosa, ou ele precisaria saber isso e querer expor a vida de terceiros ao risco, por meio dessa conduta?

Isso faz diferença, porque numa preferencial, por exemplo, um motorista poderia ter colidido com um veículo que a tivesse invadido com conhecimento e vontade de expor ao risco apenas a sua própria vida.

Possíveis respostas às questõesDe um modo geral existem duas teorias que se propõem a responder

essas questões. A teoria tradicional, que encontra respaldo no senso comum, é chamada de teoria descritiva, pois entende o dolo como representando um estado intencional irredutivelmente subjetivo, ou seja, cuja existência seria passível de ser verificada empiricamente, como algo produzido pelo cérebro do sujeito.

Ou seja, de acordo com os descritivistas, o dolo é uma intenção que realmente deve existir no psiquismo do sujeito no momento em que pratica uma conduta perigosa.

Por sua vez, contrapondo-se à teoria tradicional existe a teoria normativa do dolo, que contraria o senso comum, na medida em que não

considera possível a existência de intenções irredutivelmente subjetivas.Para contrariar o senso comum, os normativistas encontram suporte

em algumas correntes contemporâneas da filosofia da linguagem e, sobretudo, da filosofia da mente,(1) no que reduzem o dolo a um mero fenômeno da linguagem, compreendendo-o como uma atribuição de significado compartilhada socialmente, e não como um estado psíquico ontológico, e irredutivelmente subjetivo.

As duas principais teorias representativas dessa controvérsia no Direito Penal são o descritivismo axiológico de Welzel, e o normativismo extremo de Herzberg.

O conceito de dolo de acordo com WelzelO esclarecimento da forma como Welzel compreendia o significado

do conceito de dolo se deve muito à sua polêmica com Engisch sobre a teoria finalista. Engisch supunha que Welzel considerava que a ação humana seria apenas a ação típica, ou seja, a ação voltada para a realização do tipo. Assim, Engisch pensava que Welzel acreditava que uma enfermeira que injetasse veneno por engano em um paciente não haveria realizado ação alguma.(2)

Welzel, contudo, tratou de recusar a crítica que lhe foi feita, delineando, de um modo mais preciso, como ele entendia o conceito pré-jurídico de ação e sua relação com a tipicidade: “Suspeito que a falta de clareza sobre a relação entre dolo do tipo e vontade finalista de ação é o principal ponto de apoio para a crítica da doutrina da ação finalista. Por isso, para deixar claro: todo dolo do tipo é uma vontade finalista de ação, mas nem toda finalidade é um dolo do tipo”. (3)

Nesse sentido, Welzel replicou a crítica de Engisch dizendo que “a enfermeira não realiza uma ação finalista de matar, mas sim uma ação finalista de injetar”. (4)

Em síntese, Welzel diferenciava a intenção final “finalität”, conceito pré-jurídico, do dolo “vorsats” que se apresenta no Direito Penal como uma intenção de praticar a conduta descrita pelo tipo, ou seja, como “tatbestandsvorsatz”.

Em outras palavras, a enfermeira que injeta veneno num paciente pensando que está injetando um remédio, possui a intenção “finalität” de injetar, enquanto aquela que injeta veneno com o fim de realizar a conduta descrita no art. 121 do CP atua com dolo “tatbestandvorsats”, pois utiliza sua conduta como um meio de matar alguém.

Logo, resta claro que para Welzel só se pode falar na existência de dolo, se o agente, no momento da prática da conduta perigosa, teve realmente a intenção de realizar a descrição contida no tipo, in casu, matar alguém, por meio de sua conduta.

Essa concepção permanece, em essência, no caso do dolo eventual, pois mesmo nesse caso a discussão ainda está centrada no núcleo do tipo, ou seja, deve o agente ter conhecimento e vontade de praticar a conduta perigosa, mesmo sabendo que sua prática poderá realizar os pressupostos objetivos do tipo.(5)

Porém, como ficaria a situação num caso em que há injeção de veneno, em quantidade suficiente para matar, o paciente morre, porém, descobre-se que a vontade da enfermeira era apenas a de causar lesões leves no paciente?

Poderia essa enfermeira ser condenada por homicídio, em vez de lesão corporal?

De acordo com o finalismo não, porque teria lhe faltado a vontade de realizar os pressupostos objetivos do tipo de homicídio. Todavia, o juízo de tipicidade poderia ser realizado de forma diversa, caso fosse adotado o normativismo de Herzeberg e Puppe.

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O conceito de dolo de acordo com os normativistasPara normativistas como Herzberg e Puppe pouco importa se a

enfermeira pretendeu lesionar o paciente em vez de matá-lo, pois o que importa é que ela conhecia um perigo que deveria ter levado a sério como um meio de matar.

Porém, o que é ainda mais importante para o que se discute neste trabalho é que os critérios para saber se ela levou ou não a sério esse perigo, ou seja, se realmente pretendia lesionar em vez de matar, são objetivos: “não interessa se o autor levou a sério um perigo conhecido, o que interessa é se ele conhece um perigo que deveria ter levado a sério”. E os critérios com base nos quais se deve valorar se o perigo é ou não levado a sério não são entregues à disposição do autor, mas sim determinados normativamente, como critérios objetivos.(6)

Portanto, enquanto o que importa para os descritivistas é saber se o autor realmente quis o resultado típico, ou quis praticar a ação típica,(7) o que importa para os normativistas é saber se o autor praticou uma conduta perigosa que, segundo critérios objetivos, ou após a adoção de uma postura intencional (intentional stance), nos termos de Dennett, permitiria atribuir a existência desse querer.

O próprio Herzberg propõe um desses critérios para saber se o agente atuou com dolo ou culpa: se causou um perigo desprotegido atuou com dolo, do contrário, com culpa: “Herzberg denomina não coberto ou assegurado um perigo quando durante ou depois da ação do sujeito há de intervir a sorte ou causalidade, unicamente, ou em grande parte para que o tipo não se realize”.(8)

Essas são, em apertada síntese, as duas principais posições no que tange ao significado do conceito de dolo.

O caso Carli FilhoDificilmente quem dirige em alta velocidade possui a vontade de

matar alguém. Em regra, mesmo os motoristas mais negligentes, sempre acreditam que possuem total controle sobre o veículo. Os homens, em geral, consideram-se exímios motoristas, e a cultura machista brasileira sempre disseminou que “dirigir devagar é coisa de mulher”.

Por outro lado, é irrefutável que apenas um motorista suicida poderia dirigir a 173km/h, caso ao menos cogitasse a possibilidade da existência de um acidente. Tanto que no acidente que envolveu o ex-deputado Carli Filho, este teve graves lesões, e escapou da morte por sorte.

Nesse sentido, tenho dúvidas que alguém possa sustentar honestamente a existência de dolo, ainda que eventual, num caso como o desse acidente, se efetivamente respeitar e seguir os pressupostos descritivos da teoria finalista.

No entanto, parece igualmente irrefutável que de acordo com a teoria normativista de Herzberg, o ex-deputado criou um perigo desprotegido, idôneo a provocar a morte de pessoas, como de fato provocou.

Portanto, verifica-se que a questão central que precisa ser resolvida pela doutrina e, sobretudo, pela jurisprudência, a fim de que casos como o que envolveu o ex-deputado Carli Filho possam ser resolvidos no futuro com segurança jurídica é se a vontade deve ser interpretada de forma descritiva ou normativa.

De igual modo, é preciso saber se o Código Penal brasileiro consagra alguma dessas duas teorias, ou nenhuma delas,(9) o que neste último caso significaria que a condenação de alguém por homicídio doloso no Brasil, em última instância, não depende da lei, mas das contingências sociais, da preferência doutrinária do julgador, da posição social do réu, da irresignação das vítimas, do clamor público, entre outros fatores aleatórios.

ConclusãoOs limites deste trabalho não dão margem a discussões mais

aprofundadas sobre as críticas existentes na doutrina jurídica a respeito das teorias descritivas e normativas do dolo, bem como não permitem uma exposição das críticas filosóficas relacionadas a seus pressupostos epistemológicos. De igual modo, não permitem discutir acerca da legalidade de uma ou outra teoria em relação ao Código Penal brasileiro, que teve em 1984 sua última reforma. Enfim, não permitem expressar

aspectos políticos existentes na aceitabilidade de uma ou outra teoria. Tudo isso deverá ser feito em outra oportunidade, pois todas essas discussões não podem ser reduzidas a algumas poucas páginas.

Porém, é possível concluir no sentido de que um caso como o do acidente que envolveu o ex-deputado Carli Filho, bem como tantos outros semelhantes, que lamentavelmente fazem parte da realidade brasileira, não podem ser decididos com base nas contingências sociais, mas a partir de fundamentos epistemológicos claros e inequívocos, que devem encontrar ainda amparo legal.

Verificou-se que entre esses fundamentos epistemológicos, o principal é a definição do aspecto normativo ou descritivo do dolo. Essa questão é inclusive mais importante que a clássica porfia entre a chamada “teoria da vontade” e a “teoria da representação”, tão discutida nos manuais brasileiros.

Com efeito, de nada adianta adotar a teoria da vontade, se esta for interpretada de acordo com as premissas filosóficas normativistas, pois estas podem reduzi-la a efetivamente nada, ou seja, podem presumi-la onde não existe.

Isso, por óbvio, caso se aceite que a vontade não é meramente uma atribuição de sentido, mas um estado mental cuja ontologia é irredutivelmente subjetiva, tal como pregam os finalistas.

Notas:(1) Daniel Dennett, por exemplo, entende que, a rigor, não existem intenções

irredutivelmente subjetivas como a “vontade de matar alguém”. Para Dennett as intenções são meras atribuições de significado, que resultam da adoção de uma postura intencional (intentional stance) por parte do intérprete: “A Postura intencional é a estratégia de interpretar o comportamento de uma entidade (pessoa, animal, artefato, qualquer coisa) tratando-a como se fosse um agente racional que governa suas escolhas de ação por uma consideração de suas crenças e desejos” (dennett, Daniel Clemente. Tipos de mentes. Rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 32). No mesmo sentido se manifesta Paulo Busato, mas com base em outros pressupostos filosóficos: “É necessário admitir que o dolo se compreende e não se reconhece a partir de uma realidade ontológica. O dolo não só é normativo como ainda vinculado a um sentido que se obtém através de um processo de comunicação” (grifo nosso) (BuSato, Paulo César. O dolo e o processo de comunicação. Lumiar: Revista de Ciências Jurídicas. Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/lumiar/article/viewFile/1626/1233>. Acesso em: 8 mar. 2014.

(2) welzel. Hans. Estudios de filosofia del derecho y derecho penal. Buenos Aires: Euro Editores, 2004, p. 5.

(3) Idem, ibidem, p. 22.(4) Idem. (5) Roxin, que pouco alterou a concepção de Welzel quanto ao tipo subjetivo, ao

falar sobre o dolo eventual, bem observou que, em vez de se conceituar este como um dolo condicionado “bedingter vorsatz”, “seria mais correto falar de um dolo sobre a base de fatos de cuja insegurança se está consciente” (roxin, Claus. Derecho penal: parte general. Tradução e notas Miguel Diaz y Garcia Conledo, Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 1997, t. I, p. 426).

(6) PuPPe, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução, introdução e notas Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 79.

(7) Não é desnecessário observar a interessante posição de Wolfgang Frisch, no sentido de que o objeto do dolo não é o resultado típico, mas a conduta típica, considerando que ninguém pode conhecer o que sequer aconteceu. roxin, Claus. Derecho penal... cit., p. 439.

(8) Idem, ibidem, p. 443.(9) Luis Greco, por exemplo, acredita que o Código Penal brasileiro sequer

decidiu a questão no que se refere a exigir ou não a vontade como integrante do dolo. E para isso cita Schröder, que malgrado seja um defensor da teoria da possibilidade (teoria cognitiva), utilizava a expressão assumir o risco “Inkaufnahme des Risikos”, presente no Código Penal brasileiro, para caracterizar o dolo (PuPPe, Ingeborg. A distinção... cit., p. 17). Se essa afirmação de Greco é correta, então estaríamos realmente muito longe da questão objeto deste artigo, que, na prática, é o que definirá a responsabilidade penal.

Fernando LopesMembro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal

Econômico IBDPE.Advogado.

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A prevenção do crime através do desenho arquitetônicoLeopoldo Grecco Lisboa

Inúmeros estudos ligam os fatores de criminalidade a situações envolvendo o espaço urbano e disposições arquitetônicas. Tal assertiva não é desprovida de conteúdo histórico, visto que, não à toa, na antiguidade, as cidades eram verdadeiras redomas, onde os grupos sociais dentro delas subsistiam, bem como castelos eram erguidos com intuito de afastar os inimigos e proteger em seu interior a população local de uma região. São exemplos clássicos que resistiram ao tempo e serviram de parâmetro aos estudos modernos, a “Muralha de Adriano”, construída por volta dos anos 122 a 126 d. C., no norte da Inglaterra, próximo à Escócia, delimitando as fronteiras de expansão do Império Romano,(1) bem como a Grande Muralha da China, iniciada em 221 a.C., e que se não evitou a invasão de mongóis e outros povos, tinha claros ideais defensivos!(2)

No seu estágio embrionário, na década de 1960 do século passado, a jornalista James Jacobs editou a obra denominada Death and Life of Great American Cities (1961), em que inaugura estudos acerca da noção de vigilância natural, em latente crítica à disposição urbana, mediante planejamento arquitetônico, atrelando ao aglomerado urbano, o cerne para o crescimento do crime como fenômeno social. Segundo a autora em comento, “a segurança do espaço urbano estaria associada ao nível de contato e laços de confiança estabelecidos entre os membros da comunidade, e não pelo seu isolamento”.(3) Assim, a ausência de uma maior proximidade entre vizinhos,(4) gera distanciamento social, fator fecundo para um isolamento, e, por conseguinte, facilitando a empreitada criminosa.

Nessa linha de pensamento, a tese anuncia uma visão multidisciplinar, em que não somente o criminoso figura como peça central do evento delitivo, mas também o ambiente físico influencia na atuação delitiva. A esse estudo, dada a sua origem, restou por denominar-se “Crime Prevention Through Environmental Design” – CPTED (prevenção do crime por meio do desenho ambiental), lastreada numa perspectiva de política intervencionista, voltada à precaução de fatores reais de delinquência.

Contudo, foi pela obra de Newman (Defensible space), publicada em 1973, que se difundiu um estudo mais abalizado de correlação entre espaço urbanístico e certos comportamentos delitivos; por uma análise sociológica e comunitária, surgem programas de orientação com enfoque nos desenhos arquitetônicos “procurando neutralizar o elevado risco criminógeno ou vitimário que ostentam certos espaços”.(5)

Com base nesse estudo, surge então a prevenção delitiva lastrada na visualização geográfica dos grandes centros urbanos, objetivando a redução do fenômeno criminógeno, pela estruturação das áreas em que oferecem maior incidência de delitos, mediante oposição de barreiras efetivas de forma a evitar um acesso do agente aos bens jurídicos tutelados. Assim, surgem “os programas de remodelação da convivência urbana que correlacionam os fatores urbanísticos e arquitetônicos com a criminalidade”.(6) Nesse sentido, “remodelando sob outros parâmetros a convivência urbana. De um lado, pretende-se dificultar o cometimento do delito (target handing) mediante a interposição de barreiras reais ou simbólicas que incrementam o risco para o infrator potencial (medidas dirigidas ao melhoramento das vias de acesso aos recintos, pontos de observação ativa e passiva, iluminação etc.)”.(7)

A partir desse novo conceito de controle social informal(8) é que se evidenciam mudanças estruturais nas arquiteturas modernas, tomando

as edificações feições semelhantes a verdadeiras fortalezas, não só no seu aspecto externo, com padrões que tornam dificultoso o acesso ao ambiente interno dessas incorporações, que posteriormente, com a evolução da tecnologia, passariam a possibilitar a inclusão de mecanismos de filmagem, em que a atuação humana por meio da fiscalização e monitoramento(9) se faz necessária na contenção da atividade criminosa.

Aliás, dentro de uma sociedade na qual o crime cresce vertiginosamente, exigindo cada vez mais um anonimato social, em que cada um procura desenvolver sua vida distante dos olhos alheios, preservando sua privacidade para além dos muros e divisas de seu habitat, foi fecundo o estudo do desenho ambiental nessa nova política social, imprescindível aos moldes atuais de uma sociedade acostumada a conviver diariamente com índices elevados de violência urbana, cediço de que “sem dúvida, o crime é seletivo na escolha do espaço ‘físico’ propício”.(10)

Certo é que, consoante o auxílio criminológico para o desenvolvimento de um novo conceito estrutural de edificações, voltada a gerar uma sensação de intransponibilidade de suas áreas internas, a quem supostamente nele almeje penetrar para fins de cometimento de comportamentos desviantes, aparentemente, o crime parece não encontrar barreiras ou muros indevassáveis. Notícias midiáticas confirmam que a segurança aparente de tais fortalezas urbanas, há muito já não afugentam o crime de seus perímetros, alvos de ataques por grupos armados, que conseguem nele penetrar, realizando crimes notadamente na seara patrimonial, e sem qualquer dificuldade, evadir-se, numa ousadia sem limites. O que era sinônimo de conforto e segurança acabou tornando-se antagonicamente, um instrumento a favor da atividade criminosa, favorecendo a atuação de certos grupos especialistas em delitos dessa natureza, tornando moradores reféns em suas próprias residências, lugar no qual supunham intangível ao comportamento delitivo, o que Ulrich Beck bem denominou de efeito bumerangue.(11) Dessa sorte, “às características arquitetônicas do espaço físico se soma uma determinada estrutura e organização social que geram atividades específicas, motivações e condutas naqueles que integram dito cenário (delinquente, vítima, espectador ou testemunha do delito etc.) e que certamente são funcionais para o êxito do fato delituoso”.(12)

Não obstante, estudiosos da criminologia, sem desconsiderar a importância de tal análise arquitetônica na prevenção do delito, são bastante críticos quanto a superdimensão dada a matéria, advertindo, com sagacidade, que tal prevenção não ilide o delito em sua gênese, que continua existindo intacto, dado a dimensão social abrangente que envolve o fenômeno criminógeno, servindo apenas como freio aparente do comportamento delitivo, afastando o delito, mas o deslocando para outras áreas onde a proteção recebe menor vigilância.

Referências BibliográficasBeCk, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. São Paulo: Editora

34, 2010.

Gamboa, Mônica Resende. Criminologia. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011.

molina, Antonio Garcia-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010.

Prevenção do crime através do desenho ambiental – CPTED. Material da 3.ª aula da disciplina Política de Segurança Pública, ministrada no curso de

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Apesar de satisfazer o anseio de alguns, agredir pessoas e amarrar ao poste como se fosse um troféu é demonstração de sadismo e crueldade. Esse quadro se agrava ainda mais quando encontra no populismo penal apoio para medidas repressivas cada vez mais duras.

Pós-graduação Lato Sensu em Criminologia, Política Criminal e Segurança Pública – Anhanguera -Uniderp/Rede LFG, 2013. Texto extraído de Filocre, Lincoln d’Aquino. 2013. Classificações de Políticas de Segurança Pública. Revista Direito e Segurança Pública, n. 1. Disponível em: <http://www.idespbrasil.org/?r=artigosRevista/ver&id=17>.

Pestana, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. IBCCRIM. São Paulo: Método, 2003.

Sumariva, Paulo. Criminologia – teoria e prática. Niterói, Rio de Janeiro: Impetus, 2013.

zomer, Ana Paula (org.). Ensaios criminológicos. São Paulo: IBCCRIM, 2002.

Notas:(1) Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Muralha_de_Adriano>.

Acesso em: 5 nov. 2013.(2) Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Muralha_da_China>. Acesso

em: 5 nov. 2013. (3) Prevenção do crime através do desenho ambiental – CPTED. Material da

3.ª aula da disciplina Política de Segurança Pública, ministrada no curso de Pós-graduação Lato Sensu em Criminologia, Política Criminal e Segurança Pública – Anhanguera -Uniderp/Rede LFG, 2013.

(4) Nesse sentido, importante estudo de Teresa Caldeira, em obra denominada Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34/EDUSP, 2000, relatado por Débora Regina Pestana em monografia específica, dando conta de que “as transformações urbanas provenientes deste estado de alarme social produziram um novo padrão de segregação espacial. Justamente no período de consolidação democrática, o medo, associado ao crime e à violência, gera uma série de novas estratégias de proteção e reação, dentre as quais a construção dos muros é a mais emblemática” (Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. IBCCRIM. São Paulo: Método,

2003, p. 68).(5) molina, A. G. P.; gomeS, L.F. Criminologia. 7.ed. rev., atual. e ampl. São

Paulo: RT, 2010, p. 375. (6) Sumariva, Paulo. Criminologia – teoria e prática. Niterói, Rio de Janeiro:

Impetus, 2013, p. 81.(7) Idem, ibidem, p. 375.(8) Elucida Paulo Sumariva, que os programas de remodelação da

convivência urbana “propõe intervir nos cenários criminógenos, a fim de prevenir a ocorrência de crimes com interposição de barreiras que incrementam o risco para o infrator, com o desenvolvimento de um ‘senso de comunidade’, responsabilidade e solidariedade entre habitantes de determinadas áreas, viabilizando assim um controle social informal” (Idem, ibidem, p. 81).

(9) Denomina-se de prevenção situacional do risco, “a técnica que incrementa a percepção do risco através de entradas e saídas de um determinado local” (gamBoa, Mônica Resende. Criminologia. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, p.123).

(10) Idem, ibidem, p. 376.(11) Explica Beck que “em sua disseminação, os riscos apresentam socialmente

um efeito bumerangue: nem os ricos e poderosos estão seguros deles” (BeCk, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010, p.44).

(12) molina, Antonio Garcia-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010, p. 376.

Leopoldo Grecco Lisboa Pós-graduado em Ciências Penais pela Uniderp/Anhanguera. Pós-graduando em Criminolgia, Segurança Pública e Política

Criminal pela Uniderp/Anhanguera. Advogado.

O Direito Penal “amarrado ao poste”Robson de Vargas

Nos últimos meses estamos presenciando a ocorrência de inúmeros episódios daquilo que podemos convencionar chamar Direito Penal “amarrado ao poste”. Neste caso, indivíduos praticantes de determinadas infrações penais (geralmente de pequena proporção e contra o patrimônio), após serem presos por populares ou pela própria vítima, acabam por serem agredidos das mais diferentes maneiras, para, logo após, serem amarrados ao poste como expressão de uma “justiça”.

Num primeiro olhar, cabe a indagação: essa justiça feita pelas próprias mãos, no modelo vingança privada ou na lei do “olho por olho, dente por dente”, pode ser indicativo de um punir melhor? Parece evidente que não. A problemática é a punição ou, como dizem alguns, a falta dela. Todavia, no campo da punição, o ingrediente da violência apenas deslegitima qualquer ordem justa e democrática fazendo com que o Direito Penal se revista de marginalização em vez de humanização.

Muito embora tais condutas tenham adesão de parte das estruturas formais de poder que acabam permitindo que terceiros realizem funções punitivas sem qualquer controle jurídico e formal, o agir com violência é indicativo de um elevado nível de ilegitimidade da punição, a qual, por sua vez, não passa de uma manifestação de poder que, quando utilizada apenas como um mecanismo a causar sofrimento, não facilita qualquer tipo de transformação social.

Se existe um modelo de Direito Penal legítimo, esse modelo deve estar afinado com um Estado e uma sociedade civil que promovam políticas públicas e particulares que minimizem a desigualdade social e que por consequência favoreçam a construção de uma crescente cidadania.(1) A esta afirmação é possível reforçar o sentido de que qualquer resposta que contribua para a legitimação do Direito Penal precisa diminuir a violência atual, responsável por criar muitos padrões de comportamento que não estão à margem da cultura, mas a integram, e que acabam por conduzir a sociedade contemporânea a uma espécie de orgia de sadismo e crueldade, que mais aberrante se torna, na medida em que passa a ser um elemento do cotidiano.(2)

Apesar de satisfazer o anseio de alguns, agredir pessoas e amarrar ao poste como se fosse um troféu é demonstração de sadismo e crueldade. Esse quadro se agrava ainda mais quando encontra no populismo penal apoio para medidas repressivas cada vez mais duras. Conforme anota Luiz Flávio Gomes, o populismo que no plano político se caracteriza pela manobra da massa, guiada por um líder carismático que visa promover o exercício tirânico do poder, no campo penal designa uma específica forma

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de exercício do poder punitivo, caracterizado pela exploração do senso comum. Desse modo, o populismo penal não se equipara simplesmente ao punitivismo, já que é sinônimo de um hiperpunitivismo, desnecessário e abusivo, que além de escamotear a vontade e emoção popular, passa a ilusão de uma solução de um problema extremamente complexo.(3)

A punição passa, então, a ser oferecida na rua como se fosse um remédio implacável contra a violência, mas, paradoxalmente, atinge apenas os incautos de plantão. Porém, é manifesto que o atual sistema de justiça penal constitui um dos sinais mais claros de deslegitimação do poder punitivo, especialmente por se apresentar seletivo, reprodutor de mais violência e lento na sua operatividade.

Aliás, tais características são estruturais do exercício do poder de todos os sistemas penais.(4) Por consequência, o que temos é um sistema penal medieval no ritual de poder, o qual deita seu olhar sobre o corpo do indivíduo, mas o objetivo não é outro senão (re)produzir um efeito social de terror, em que o poder se reproduz pela produção do medo e mais violência.(5)

A panaceia da punição (acobertada pelo discurso da ressocialização), funda-se em uma total ausência de precisão. E isso, segundo Raúl Cervini é seu principal defeito, já que não permite nenhum controle racional de seu funcionamento, nem uma análise de seu conteúdo.(6) Assim, num clima de tensão, medo e violência, a punição (mesmo corrompendo ainda mais o sistema de justiça penal), encontra terreno fértil para continuar seu processo de (in)civilização.

Desse modo, por mais que nas preocupações e discursos de alguns grupos sociais pareça clara a aproximação que se faz entre violência e crime, o que permite constatar uma quase imediata identificação da criminalidade convencional como expressão da ideia de violência (motivando o elogio e o desejo da punição),(7) a observação que fazemos é de que o Direito Penal não pode servir como um instrumento para a manutenção de um sistema penal violento, degradante e desigual.

Neste contexto, o direito penal em que as pessoas são punidas e amarradas ao poste, não é outra coisa senão o fortalecimento da crença no perigo, no risco e na ameaça. É estimular os sentimentos de medo, insegurança e mais punição. A construção de um Estado de Direito requer a sustentação de outro modelo de Direito Penal, que não promova mais segregação social e ainda mais excluídos, mas que contenha a expansão do poder punitivo e que, ao mesmo tempo, impeça a barbárie de triunfar.

Daí serem necessárias políticas que impulsionem uma mudança social e cultural que valorizem o processo civilizatório que precisa pautar nos valores mais inerentes ao ser humano. Se por um lado temos uma extraordinária capacidade de dramatizar a violência e de politizá-la,(8) por outro, devemos compreender que a adesão ao punitivismo, além de

mero simbologismo, representa tratar o conflito com mais conflito, ou tentar apagar o fogo com mais pólvora.

Referências bibliográficasBiCudo, Tatiana Viggiani. Por que punir? São Paulo: Saraiva, 2010.Cervini, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: RT, 2002.gauer, Ruth M. Chittó; Saavedra, Giovani Agostini; gauer, Gabriel J. Chittó.

Memória, punição e justiça – uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

gomeS, Luiz Flávio. Populismo penal, justiça e criminologia midiáticas. In: Bayer, Diego Augusto (coord.). Controvérsias criminais. Jaraguá do Sul: Letras e Conceitos, 2013.

haSSemer, Winfried. El destino de los derechos del ciudadano en un derecho penal “eficaz”. Doctrina Penal, ano 13, n. 49-52, 1990, p. 193-204.

karam, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luam, 1993.SantoS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981.zaFFaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas. Bogotá: Temis, 1990.

Notas:(1) BiCudo, Tatiana Viggiani. Por que punir? São Paulo: Saraiva, 2010, p.184.(2) gauer, Ruth M. Chittó; Saavedra, Giovani Agostini; gauer, Gabriel J.

Chittó. Memória, punição e justiça – uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 74.

(3) gomeS, Luiz Flávio. Populismo penal, justiça e criminologia midiáticas. In: BAYER, Diego Augusto (Coord.). Controvérsias criminais. Jaraguá do Sul: Letras e Conceitos, 2013, p. 393.

(4) zaFFaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas. Bogotá: Temis, 1990, p. 6.

(5) SantoS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 50.

(6) Cervini, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: RT, 2002, p. 39.

(7) karam, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luam, 1993, p. 167.

(8) haSSemer, Winfried. El destino de los derechos del ciudadano en un derecho penal “eficaz”. Doctrina Penal, ano 13, n. 49-52, 1990, p. 194.

Robson de VargasMestre em Ciências Criminais pela PUCRS.

Professor de Direito Público no Centro Universitário Estácio de Sá, SC.

Advogado.

BOLETIM IBCCRIM - ISSN 1676-3661COORDENADOR-CHEFE: Rogério Fernando TaffarelloCOORDENADORES ADJUNTOS: Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.CONSELHO EDITORIAL: Acacio Miranda da Silva Filho, Alberto Alonso Muñoz, Alexandre Pacheco Martins, Alexandre Soares Ferreira, Anderson Bezerra Lopes, André Azevedo, André Ricardo Godoy de Souza, Andre Pires de Andrade Kehdi, Andrea Cristina D´Angelo, Antonio Baptista Gonçalves, Átila Pimenta Coelho Machado, Bruno Salles Pereira Ribeiro, Bruno Redondo, Caroline Braun, Cecilia de Souza Santos, Cecilia Tripodi, Cláudia Barrilari, Christiany Pegorari, Conrado Almeida Corrêa Gontijo, Daniel Allan Burg, Daniel Del Cid, Daniel Kignel, Danilo Dias Ticami, Danyelle da Silva Galvão, Dayane Fanti, Décio Franco David, Douglas Lima Goulart, Eduardo Augusto Paglione, Edson Roberto Baptista de Oliveira, Eleonora Rangel Nacif, Fabiana Zanatta Viana, Felipe Mello de Almeida, Fernanda Carolina de Araújo, Fernanda Regina Vilares, Fernando Gardinali, Flávia Guimarães Leardini, Gabriel

Huberman Tyles, Guilherme Lobo Marchioni, Hugo Leonardo, Ilana Martins Luz, Jacqueline do Prado Valles, Jamil Chaim Alves, José Carlos Abissamra Filho, Karlis Mirra Novickis, Larissa Palermo Frade, Leopoldo Stefanno Gonçalves Leone Louveira, Marcel Figueiredo Gonçalves, Marco Aurélio Florêncio Filho, Maria Carolina de Moraes Ferreira, Maria Jamile José, Mariana Chamelette, Matheus Silveira Pupo, Milene Maurício, Octavio Augusto da Silva Orzari, Paola Martins Forzenigo, Pedro Augusto de Padua Fleury, Pedro Beretta, Rafael Carlsson Gaudio Custódio, Rafael Fecury Nogueira, Rafael Lira, Renato Stanziola Vieira, Ricardo Caiado Lima, Rodrigo Nascimento Dall´Acqua, Sérgio Salomão Shecaira, Taísa Fagundes, Tatiana de Oliveira Stoco, Thaís Paes, Theodoro Balducci de Oliveira e Vinícius Lapetina.COLABORADORES DE PESQUISA DE JURISPRUDÊNCIA: Ana Carolina Ziccardi Teixeira de Carvalho, Antonio Carlos Bellini Júnior, Bruna Torres Caldeira Brant, Camila Austregesilo Vargas do Amaral, Cássio Rebouças de Moraes, Cecilia Tripodi, Daniel Del Cid, Fabiano Yuji Takayanagi, Giancarlo Silkunas Vay, Guilherme Suguimori Santos, Indaiá Lima Mota, José Carlos Abissamra

Filho, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Mariana Helena Kapor Drumond, Matheus Silveira Pupo, Michelle Pinto Peixoto de Lima, Milene Mauricio, Renato Silvestre Marinho, Renato Watanabe de Morais, Roberta Werlang Coelho Beck, Sâmia Zattar, Stephan Gomes Mendonça e Suzane Cristina da Silva.PROJETO GRÁFICO: Lili Lungarezi - [email protected]ÇÃO GRÁFICA: Editora Planmark - Tel.: (11) [email protected]ão: Ativaonline - Tel.: (11) 3340-3344O Boletim do IBCCRIM circula exclusivamente entre os associados e membros de entidades conveniadas. O conteúdo dos artigos publicados expressa a opinião dos autores, pela qual respondem, e não representa necessariamente a opinião deste Instituto. Tiragem: 11.000 exemplaresENDEREÇO DO IBCCRIM:Rua Onze de Agosto, 52 - 2º andar, CEP 01018-010 - S. Paulo - SPTel.: (11) 3111-1040 (tronco-chave)www.ibccrim.org.br

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ANO 22 - Nº 258 - MAIO/2014 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Cadê as mulheres? Uma análise da participação feminina no IBCCRIMTatiana Santos Perrone e Vanessa Menegueti

Em que pese a luta pelos direitos das mulheres e a construção de uma sociedade mais igualitária, justa e democrática sejam umas das mais importantes bandeiras levadas pelo IBCCRIM, como já reconhecia o artigo intitulado “A promoção dos direitos das mulheres: o papel do IBCCRIM”,(1) em 2012, observa-se que a presença feminina tanto nas publicações do Boletim e da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCrim) quanto nos quadros de associados e participantes dos Seminários Internacionais tem demonstrado que a desigualdade de gênero não é facilmente superável.

A fim de verificar a atuação das mulheres nos espaços do IBCCRIM que, inclusive, conta com sucessivas presidências femininas, uma pesquisa feita pelas pesquisadoras do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM constatou a baixa participação de mulheres como autoras e coautoras de artigos publicados no Caderno de Doutrinas do Boletim do IBCCRIM e na Revista Brasileira de Ciências Criminais no período de 2011 a 2013. Mesmo com regras gerais de seleção e abertura a todo o público para a proposição de artigos, a predominância masculina nas publicações é gritante.

No ano de 2011, dos 142 artigos publicados, 117 foram escritos por homens, 21 por mulheres(2) e quatro por homens e mulheres em coautoria. Ou seja, apenas 25 artigos, 17,6% do total, tiveram mulheres como autora ou coautora.

No ano seguinte, observamos um pequeno crescimento da participação feminina que passa de 17,6% para 32%, voltando a cair em 2013 para 23,2%. Excluindo os artigos escritos em coautoria com homens, a participação cai para 14,8%, 25,6% e 18,6% respectivamente. Sendo que a participação masculina para os mesmos anos é de 82,4%, 67,9% e 76,7%.

Parte da participação feminina se deve à coluna “Descasos”. Essa é uma coluna quase mensal escrita por Alexandra Lebelson Szafir que começou a ser publicada em novembro de 2011. Se contabilizarmos somente os artigos enviados por colaboradoras eventuais, ou seja, excluindo a coluna “Descasos”, o percentual de artigos que são assinados apenas por mulheres cai para 13,6% em 2011, 20% em 2012 e 11,8% em 2013, evidenciando ainda mais a baixa participação feminina nos Boletins.

Quando passamos a olhar os artigos publicados na Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCrim), observamos uma participação feminina percentualmente maior em relação ao Boletim, apesar de continuar aquém do desejado. Em 2011, apenas 27,6% dos artigos trouxeram autorias femininas em oposição a 67,8% de publicações assinadas por homens, sendo 4,6% de publicações em coautoria entre homens e mulheres.

Esse patamar se manteve em 2012, quando as publicações firmadas por mulheres ficaram na casa dos 27,2% ante 66% de publicações masculinas, além de 6,8% de coautorias mistas. Esses dados sofrem certa redução em 2013, momento em que a produção feminina fica em apenas 22,1% em flagrante divergência à dos homens que alcança 70,9% do total de artigos publicados, sendo 6,8% de coautorias entre os sexos.

O cenário não se altera muito se levarmos em consideração o número de associações do IBCCRIM. De um total de 3.466 associações entre pessoas naturais e jurídicas, 1.032 são associações de mulheres, 2.374 associações de homens e 60 associações de entidades conveniadas, empresas e colaboradores. Portanto, em que pese a Ordem dos Advogados do Brasil apontar um quadro de advogadas na casa de 45% do total e de estagiárias na casa dos 52%,(3) o Instituto ainda mantém apenas 29% de suas associações feitas por mulheres em oposição a 68% de associações masculinas.

Outrossim, a presença feminina no Seminário Internacional é sempre em números menores em comparação à masculina. No 17.º Seminário Internacional, realizado em 2011, houve 39% de mulheres e 61% de homens prestigiando o evento. No 18.º Seminário Internacional, ocorrido em 2012, a presença feminina chegou ao patamar de 41% enquanto a

masculina foi de 59%. Já no 19.º Seminário Internacional, realizado em 2013, a participação feminina novamente reduziu-se a 39% em comparação a 61% de homens. Apesar de tímida, a participação feminina nos Seminários Internacionais é maior em relação à participação nos demais espaços pesquisados, confirmando que há interesse feminino pela área criminal que não está sendo revertido em publicações e associações.

Além de contabilizar os artigos escritos por mulheres, a pesquisa também levantou a quantidade de artigos publicados, no período, que abordaram a temática de gênero.

No decorrer do ano de 2011, apenas três artigos enviados por colaboradores eventuais abordaram questões de gênero no Boletim, sendo que um deles sustentava a aplicação de dispositivos da Lei Maria da Penha em favor de homens.(4) Em 2012, pode-se reconhecer que os direitos das mulheres foram de alguma forma trabalhados em seis artigos, sendo cinco deles escritos por mulheres. Já ao longo de 2013, verificou-se a presença de apenas quatro artigos publicados pelo Boletim que incluíram abordagens de gênero.

Dados semelhantes são observados nas publicações da Revista Brasileira de Ciências Criminais. No ano de 2011, de 87 artigos publicados em seis periódicos, apenas dois trataram da questão da mulher. O tímido acréscimo observado em 2012, em que cinco artigos publicados, de alguma forma, trabalharam questões de gênero, sendo dois deles escritos por mulheres, foi seguido pelo aumento do total de artigos publicados pelas revistas que passou para 103. Já no ano de 2013, houve apenas um único artigo que abordou questões de gênero diante de um total de 86 artigos publicados ao longo do ano nas seis revistas publicadas.

Certo é que não se busca com a presente pesquisa conhecer as causas de tamanho acanhamento, mas, sim, evidenciar um fato e convocar as mulheres a ocupar esse espaço que a elas sempre esteve aberto, enviando artigos ao Boletim e à RBCCrim, a fim de possibilitar que as metas de igualdade de gênero não só ocupem os ideais, mas também as páginas das publicações do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E acreditamos que para atingir esses ideais se faz necessário trazer para essas páginas mais artigos que problematizem questões de gênero.

Notas:(1) Boletim n. 238, ago. 2012.(2) Os artigos assinados apenas por homens ou por mulheres foram escritos

individualmente ou em coautoria com autores do mesmo gênero.(3) Disponível em: <http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/

quadroadvogados>. Acesso em: 17 mar. 2014.(4) Lei Maria da Penha em Favor do Homem. Boletim n. 229, dez. 2011.

Tatiana Santos PerroneDoutoranda em Antropologia pela

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestra em Antropologia pela Universidade

de São Paulo (USP). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito

e do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM.

Vanessa MeneguetiAssistente Judiciária da Vara de Execuções Criminais.

Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM.

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Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

ANO 22 - Nº 258 - MAIO/2014 - ISSN 1676-3661

Descasos

AntonioAlexandra Lebelson Szafir

Tenho um problema muito sério com alguns juízes de Varas de Execuções Criminais que parecem pensar que as suas funções se limitam a manter seus jurisdicionados presos pelo maior tempo possível, como verdadeiros carcereiros. A única diferença entre estes e aqueles é que os primeiros ficam felizes quando o número de presos diminui: a redução significa menos trabalho para eles.

Tais juízes também costumam ignorar o art. 1.º da Lei de Execuções Penais, que coloca a ressocialização como objetivo da pena. Este comando legal, na prática, hoje, não passa de balela, com poucas e honrosas exceções.(1)

Essa é a história de um desses juízes.Quando o Dr. Nagashi Furukawa iniciou a sua gestão à frente da

Secretaria de Assuntos Penitenciários, a SAP, encontrou uma situação muito semelhante à de hoje: presos com direito ao regime semiaberto cumprindo pena ilegalmente no fechado devido à falta de vagas no regime mais brando.

Sua primeira providência foi organizar uma fila em ordem cronológica, tendo como parâmetro a data em que os detentos passaram a ter direito ao regime semiaberto. Essa fila estava disponível para quem quisesse ver no site da SAP. Essa transparência, entre outras coisas, evitava negociações escusas de vagas, além de estar em inegável consonância com o mais elementar senso de justiça.(2)

Pois bem. Foi nesse cenário que se desenvolveu a história de Antonio.(3)

Ele tinha praticado um roubo muitos anos antes. Respondera em liberdade e, desde então, refizera sua vida honestamente, chegando a ocupar uma posição de destaque em uma famosa empresa paulista. Não soube quando a sentença condenatória de 5 anos e 4 meses em regime inicial semiaberto(4) foi confirmada em 2.ª instância e, consequentemente, expedido o mandado de prisão.

A poucos dias de ocorrer a prescrição da pretensão executória estatal, Antonio discutiu com um guarda de trânsito, que o prendeu em flagrante pelo crime de desacato.

Foi só na Delegacia que Antonio ficou sabendo da existência da ordem de prisão anterior. E aí começou o seu pesadelo.

Antonio foi imediatamente transferido para uma superlotada carceragem de um Distrito Policial. Quando tomamos conhecimento do seu caso, ele já estava ali havia alguns meses.(5)

Nossa primeira providência foi impetrar um habeas corpus em seu favor, no qual foi concedida uma liminar, reconhecendo a flagrante ilegalidade da situação em que Antonio se encontrava e determinando que ele aguardasse a vaga em regime aberto.

Tudo estava bem, até que poucos dias depois, no final da tarde, recebemos uma ligação de Antonio. Ele disse que naquele dia, de manhã bem cedo, antes mesmo que ele saísse para trabalhar, dois agentes foram à sua casa e o prenderam. No momento da ligação, ele se encontrava no subsolo do prédio da Vara das Execuções Criminais e estava prestes a ser transferido para o presídio semiaberto de Franco da Rocha. Só naquela hora é que tinham permitido que ele desse o telefonema para nos avisar, embora ele tivesse sido preso cerca de dez horas antes.

Antes de prosseguir, digo que até hoje acredito que essa demora na permissão do telefonema teve como objetivo evitar que a defesa tomasse providências no próprio dia. Paranoia? Diante do que vi em seguida, acredito que não. Mas prefiro que o leitor julgue por si mesmo quando souber de todos os fatos.

Ao receber a ligação de Antonio, senti que havia algo de errado.

Afinal, eu acompanhava diariamente as transferências para o regime semiaberto e ele não estava nem perto de ser o primeiro da fila! Quão errado, eu iria descobrir em seguida, quando eu lesse o despacho do juiz da Vara das Execuções.

O que aconteceu foi o seguinte: tão logo recebeu o ofício comunicando a concessão da liminar e requisitando informações, o excelentíssimo juiz mostrou ser um homem de iniciativa: determinou a imediata remoção de Antonio para o regime semiaberto, independentemente da ordem cronológica na lista de espera!

Sua Excelência ainda fez mais: em vez de intimá-lo a comparecer ao estabelecimento carcerário, como é o costume nesses casos, mandou prendê-lo.

Pus-me a pensar nos motivos que levaram o magistrado a agir com tamanha arbitrariedade, considerando que ele dispunha das seguintes informações: (i) o crime havia sido cometido mais de uma década antes e desde então, não houvera reincidência; (ii) Antonio estava trabalhando, não representando qualquer risco à sociedade, o que, em tese, poderia justificar uma medida tão drástica; e (iii) a sua prisão imediata, “furando a fila”, prolongaria a ilegalidade da situação dos presos que aguardavam em regime fechado a vaga no semiaberto a que tinham direito.

Só pude chegar a uma conclusão sobre a motivação desse juiz: em bom português, pirraça pura(6) pela concessão da liminar! Esse é um magistrado que, ilegalmente, só considera o aspecto punitivo da pena.

Seja como for, o horário do fim do expediente no Tribunal se avizinhava. Fiz o habeas corpus mais rápido da minha vida. No caminho para o Tribunal, corri como um jogador de futebol americano (de saltos altos), desviando dos muitos pedestres da Praça João Mendes. Nova liminar foi concedida, determinando o retorno de Antonio ao regime aberto. Mesmo assim, ele passou duas noites em Franco da Rocha porque no presídio “não conseguiam localizá-lo” para cumprir a liminar.(7)-(8)

Antonio cumpriu a sua pena até o fim no regime aberto. Como, é matéria para outro artigo.

Notas:(1) Entre estas, destaque-se o trabalho do então juiz Nagashi Furukawa em

Bragança Paulista, do Dr. Jayme Garcia dos Santos Junior em Guarulhos e da Dra. Lena Rocha em Natal, onde os programas de ressocialização já contam com três mil egressos, sem um único caso de reincidência. Na contramão do que hoje se vê, eles mostram que a ressocialização é possível. Basta ter vontade.

(2) Depois de pouco tempo, a falta de vagas acabou. Torno a dizer: com boa vontade e competência, tudo é possível.

(3) Nome trocado.(4) A sentença foi prolatada antes da “moda” de se fixar o regime inicial fechado

indiscriminadamente para todos os casos de roubo.(5) Embora o mandado de prisão fosse antigo, Antonio, obviamente, só entrou

na “fila do semiaberto” quando foi preso. Não poderia ser de outra maneira.(6) Agradeço se algum leitor puder apontar um motivo mais nobre.(7) O juiz deve ter ficado feliz.(8) Como se “perde” um ser humano?

Alexandra Lebelson SzafirAdvogada.

([email protected])

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais