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FACOM - n”13 - 2” semestre de 2004 001 Revista da Faculdade de Comunicação da FAAP Nº 13 - 2º semestre de 2004 ISSN: 1676-8221 Conselho Curador da FAAP Presidente - Sra. Celita Procopio de Carvalho Diretoria Executiva Diretor Presidente - Dr. Antonio Bias Bueno Guillon Diretor Tesoureiro - Dr. Américo Fialdini Jr. Diretor Cultural - Prof. Victor Mirshawka Assessores da Diretoria Dr. Sérgio Roberto Marchese Assessor Administrativo e Financeiro Prof. Raul Edison Martinez Assessor para Assuntos Acadêmicos Faculdade de Comunicação Diretor Prof. Dr. Rubens Fernandes Junior Vice-Diretor Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé Departamentos Profª. Elenice Rampazzo (Publicidade e Propaganda) Prof. José Gozze (Cinema) Prof. Valdir Cimino (Relações Públicas) Prof. Vagner Matrone (Rádio e Televisão) Coordenador de Extensão e Pós-Graduação Prof. Dr. Ronaldo Entler Coordenador de Pesquisa Prof. Dr. Martin Cezar Feijó Assistente da Diretoria Profª. Mônica Rugai Bastos Coordenação Editorial Prof. Dr. Rubens Fernandes Junior Editor de Arte Prof. Éric Eroi Messa Assistente de Arte Ligia Cesário de Moraes Capa Prof. Éric Eroi Messa A revista FACOM impressa na gráfica Arizona, São Paulo, é uma publicação semestral da Faculdade de Comunicação. Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores. Aceita-se permuta. FAAP - Faculdade de Comunicação Rua Alagoas, 903 - 01242-902 - São Paulo - SP Tel: 11 3662-7330 Fax: 11 3662-7334 Site: http://www.faap.br E-mail: [email protected] e d i t o r i a l com imenso prazer que apresentamos a nova ediªo da revista Facom, que sintetiza nosso compromisso com a qualidade de ensino e com a divulgaªo dos trabalhos e pesquisas acadŒmicas dos nossos professores. Balizados por esses princpios norteadores, gostaria de salientar a dedicada colaboraªo dos professores presentes nesta ediªo que, a exemplo das ediıes anteriores, contribui para situar a revista Facom entre as melhores publicaıes acadŒmicas da Ærea, conforme classificaªo atribuda pela Capes. Com a periodicidade semestral conquistada somente nos œltimos anos, podemos sentir, a cada nœmero, os professores assumindo mais e mais a revista como um espao democrÆtico de reflexªo e propagaªo de idØias. O retorno espontneo dos leitores e das instituiıes tem mostrado nosso acerto editorial que favorece a diversidade temÆtica e mantØm a abrangŒncia terica das nossas diferentes habilitaıes. O esforo para buscar esse equilbrio evidencia a importncia desse trabalho quase artesanal de produzir uma revista, cujo conteœdo e projeto grÆfico, conseguem sintetizar com precisªo nosso desejo de estabelecer atravØs da publicaªo uma enriquecedora experiŒncia de troca de conhecimento entre as diferentes instituiıes de ensino da comunicaªo da AmØrica Latina. Aproveitamos a oportunidade para publicar um pequeno relatrio das nossas principais atividades deste ano de 2004 e convidamos os leitores para mais esta estimulante tarefa de descobrir as diferentes abordagens nas Æreas de cinema, televisªo, mitologia, literatura e ecologia. E muito mais!

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Revista da Faculdade de Comunicação da FAAPNº 13 - 2º semestre de 2004

ISSN: 1676-8221

Conselho Curador da FAAPPresidente - Sra. Celita Procopio de Carvalho

Diretoria ExecutivaDiretor Presidente - Dr. Antonio Bias Bueno GuillonDiretor Tesoureiro - Dr. Américo Fialdini Jr.Diretor Cultural - Prof. Victor Mirshawka

Assessores da DiretoriaDr. Sérgio Roberto MarcheseAssessor Administrativo e Financeiro

Prof. Raul Edison MartinezAssessor para Assuntos Acadêmicos

Faculdade de Comunicação

DiretorProf. Dr. Rubens Fernandes Junior

Vice-DiretorProf. Dr. Luiz Felipe Pondé

DepartamentosProfª. Elenice Rampazzo (Publicidade e Propaganda)Prof. José Gozze (Cinema)Prof. Valdir Cimino (Relações Públicas)Prof. Vagner Matrone (Rádio e Televisão)

Coordenador de Extensão e Pós-GraduaçãoProf. Dr. Ronaldo Entler

Coordenador de PesquisaProf. Dr. Martin Cezar Feijó

Assistente da DiretoriaProfª. Mônica Rugai Bastos

Coordenação EditorialProf. Dr. Rubens Fernandes Junior

Editor de ArteProf. Éric Eroi Messa

Assistente de ArteLigia Cesário de Moraes

CapaProf. Éric Eroi Messa

A revista FACOM impressa na gráfica Arizona, São Paulo,é uma publicação semestral da Faculdade de Comunicação.Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dosautores. Aceita-se permuta.

FAAP - Faculdade de ComunicaçãoRua Alagoas, 903 - 01242-902 - São Paulo - SPTel: 11 3662-7330Fax: 11 3662-7334Site: http://www.faap.brE-mail: [email protected]

e d i t o r i a l

É com imenso prazer que apresentamos a nova ediçãoda revista Facom, que sintetiza nosso compromisso com aqualidade de ensino e com a divulgação dos trabalhos epesquisas acadêmicas dos nossos professores. Balizados poresses princípios norteadores, gostaria de salientar a dedicadacolaboração dos professores presentes nesta edição que, aexemplo das edições anteriores, contribui para situar a revistaFacom entre as melhores publicações acadêmicas da área,conforme classificação atribuída pela Capes.

Com a periodicidade semestral conquistada somentenos últimos anos, podemos sentir, a cada número, osprofessores assumindo mais e mais a revista como um espaçodemocrático de reflexão e propagação de idéias. O retornoespontâneo dos leitores e das instituições tem mostrado nossoacerto editorial que favorece a diversidade temática e mantém aabrangência teórica das nossas diferentes habilitações.

O esforço para buscar esse equilíbrio evidencia aimportância desse trabalho quase artesanal de produzir umarevista, cujo conteúdo e projeto gráfico, conseguem sintetizarcom precisão nosso desejo de estabelecer através da publicaçãouma enriquecedora experiência de troca de conhecimento entreas diferentes instituições de ensino da comunicação da AméricaLatina.

Aproveitamos a oportunidade para publicar umpequeno relatório das nossas principais atividades deste ano de2004 e convidamos os leitores para mais esta estimulante tarefade descobrir as diferentes abordagens nas áreas de cinema,televisão, mitologia, literatura e ecologia.

E muito mais!

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FAAP- Fundação Armando Alvares PenteadoFaculdade de Comunicação - FACOMRua Alagoas, 903 prédio 5- Higienópolis - São Paulo - SPCep: 01242-902 - Tel: 11 3662-7330 - Fax: 11 3662-7334

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Índice

A quinta tumba de Olga BenarioPaulo B. C. Schettino

Vídeo e Ação Social em São Paulo: novas centralidades na representação videográfica da cidadeAndre Costa

A crônica - Uma flor de dois maridosVera Maria D�agostino

Avenida Paulista: a verticalização dos casarõesNeiva Pitta Kadota

A importância dos sistemas de informação das empresasorientadas para o mercadoSilvio Luiz Tadeu Bertoncello

Transmutações do cotidianoSandra Regina Nunes

Diálogo ImpertinenteCarlos Drummond de Andrade - Fernando PessoaPaola Poma

Homero e a representação mítica da guerraMartin Cezar Feijó

004

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020

027

034

037

044

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No correr do tempoMarco Antônio Bin070

DevirPaulo Ludmer

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O grito surdo da Mata AtlânticaSueli Regina Agustini

Algumas considerações sobre o documentário, com destaque para o 33, de Kiko Goifman Camilo D�Angelo Braz

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Algumas considerações sobre odocumentário,com destaque parao 33, de Kiko GoifmanCamilo D�Angelo Braz

ResumoÉ considerável a relevância que o documentário está assumindo na produção fílmica

contemporânea. Neste ensaio, algumas formulações, a partir de teóricos como Michael Renov, NoëlCarroll e Bill Nichols, deram subsídios para a análise do documentário "33", de Kiko Goifman.Palavras-chave: cinema - documentário - �33� - análise crítica

AbstractDocumentary films are acquiring a relevant role in contemporary film production. In this essay

some formulations based on the approaches by Michael Renov, Noël Carroll e Bill Nichols were made inorder to analyse "33" a documentary film by Kiko Goifman.Keywords: cinema - documentary - �33� - analysis - review

Este trabalho compreende uma análise crítica,na forma de ensaio, - em acepção de sentidooriginal da palavra, de experimento ou tentativaincompleta � sobre o recente documentário 33,de Kiko Goifman. O objetivo principal desteensaio é o de apresentar uma reflexão sobre aatual situação da produção de documentários,investigando a trajetória deste gênero que ganhaespaços e contornos cada vez mais diversificados.O objetivo decorrente é o de estabelecer umaversão tentativa de alinhamento do escopo daanálise do documentário em geral e, dele, extrairum esboço significativo, aplicável aodocumentário de Kiko Goifman.

As lacunas no tratamento do assunto �no caso, o cinema, e, mais especificamente, odocumentário � são inevitáveis, uma vez que

sempre causa desconforto a análise do queacontece no agora, no imediato, como é o casodeste documentário em cartaz no primeirosemestre de 2004 nos circuitos universitários ede cinema. Para isso, sugiro que os conteúdosaqui tratados sejam, antes, entendidos como umgrupo conexo de sugestões com alguma utilidadeteórica e certa intenção prática, que poderáredundar em alguma contribuição na reflexãosobre as produções fílmicas atuais.

O preceito que me guiará é o deMatthew Arnold1, que, ao estudar a literatura,sugere, na atividade analítica, deixar a mente agircom liberdade em torno do assunto no qualtenha havido muita diligência e pouco esforçopara a construção de uma visão geral.

Antes de entrarmos mais diretamente

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em nossa matéria temática, vale a penadistinguirmos alguns aspectos da atividadecrítica. Eles servirão, enquanto introdução enorteamento, como função dupla: a deferramentas conceituais e a de alicerce para aanálise proposta.

A matéria da crítica de cinemaSe a matéria do cinema geralmente é

considerada como pertinente ao mundo da arte,como a considerou Rudolf Arheim2, ainda nosprimórdios do século passado, a matéria dacrítica de cinema também é uma espécie de arte.Entretanto, isso soa como se a crítica � seja a decinema, teatro ou de literatura, entre outras �fosse uma forma parasitária de uma outra arte,uma arte baseada numa outra preexistente, tiposmédios desviantes ou cópia de segunda mão daatividade criadora de outro. Para aqueles que têmessa concepção normativa, os críticos de cinemasão intelectuais que gostam de cinema, mas aosquais falta o poder de produzi-lo, formandoassim uma classe de revendedores da cultura, quea distribuem, nos meios de comunicação, comlucro para si mesmos. A concepção do críticocomo parasita, ou artista manqué, ainda éamplamente difundida, especialmente entre osartistas, que, via de regra, são antagonistasdaqueles que tentam desvendar sutilezas, virtudesou insuficiências em suas obras. Nessasincidências, ressalta-se a dúbia analogia entre afunção criativa e procriadora se opondo a�impotência� e a �esterilidade� da crítica, de suaaversão às figuras realmente criadoras.

Há uma certa corrente � bastantedifundida, também � de que se pode atingir opúblico diretamente, por intermédio de uma arte�popular�, em que a crítica seria desnecessária,por ser postiça e avessa ao gosto público natural.Atrás dessa concepção reside uma certapresunção que remonta a certas posições deLeon Tolstoi e suas teorias românticas de um�povo� espontaneamente criador, em que ocrítico seria uma reação extrema contra oprimitivo modo de ver e imaginar a arte, quepermaneceria livre da iniciação da comunidadeesotericamente civilizada dos críticos, dosintelectuais enfim. De qualquer modo, o destinodo público que tenta se prescindir da crítica �

sabe o quer e do que gosta � é o de brutalizar asartes e de perder um movimento importante deinteração entre diferentes pontos de vista noprocesso cultural.

Entretanto, um dos espaços maispertinentes para a presença da crítica (aliás,pouco lembrado) é o da função de adicionar som(conteúdo) à arte, que, geralmente, é muda. Oaxioma que a crítica propõe não é o de que a artefala por si ou ainda que o artista não sabe explicarsua arte. A atividade do crítico pondera que oartista não pode falar do que sabe. Não é difícilde se entender essa afirmativa, por maissurpreendente que ela possa parecer. Oscriadores, os sujeitos sociais que criam, rejeitamcaírem no nível de subcriação ou no da falacomprometida ao tentarem interpretar suasobras, no que resulta a elas ficarem mudas,aguardando uma fala que lhes dê uma certadesenvoltura de diálogo ou mesmo de existência.Basta se ver o gap temporal de quase 60 anos paraa inclusão da música de Gustav Mahler nosprogramas das grandes orquestras, coisa que sedeu a partir da década de 1970. Também, aintrincada relação entre o autor e sua obra; entreseu método de criação e sua obra. Os escritossobre música de Richard Wagner são bomexemplo. Embora ele destaque aspectos emetodologias de composição, não podemoscompará-los com sua obra. Wagner anota osingredientes da sua poção mágica, mas que nãodefinem sua criação em si. Talvez, nem opudesse. Escrever, racionalizar, a criação é tarefaquase que impossível, sem se cair na mistificaçãoou nos emblemas. Acrescentemos ainda umaoutra constatação: a de que nunca existiu umaúnica possibilidade de leitura da arte ou de umaimagem. O que se observa, seja por critérioslógicos ou perceptivos, é a sucessão de modos deinterpretação que a arte pode propiciar. É inútilse definir qual é o olhar mais acertado paradeterminada imagem, assim como interrogar oartista sobre o por quê de determinada escolhade representação. Gadamer3, em seu estudo dehermenêutica filosófica, conceitua, a partir deErnest Jünger, que submeter um artista àexplicação de sua obra é remetê-lo abaixo daobra, o que nos convence de que a obraestabelece uma interação/interpretação, de

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acordo com as múltiplas possibilidades do observador.Antes de passarmos para o nosso

assunto, é importante adicionar um outroelemento de reflexão sobre a crítica: trata-se dapresença da crítica intermediária. A que estamosassim chamando é a crítica daqueles que vêm deoutros saberes e, por algum motivo louvável,resolvem escrever sobre um tema que excede asua especialização: sobre o cinema, por exemplo.Há uma vertente relativamente expressiva queafirma a legitimação da crítica pelo especialista,em detrimento daquele que pode ser consideradoneófito ou alheio ao métier do cinema e que, comotal, norteará sua análise por um estoque deponderações extra-cinematográficas. Na França,por exemplo, a valoração do especialista érelativisada. Em se tratando de estudos deabordagens diversificadas, valoriza-se o fato de seescrever bem, o que possibilita, por exemplo, aEdgar Morin escrever sobre diversos assuntos,sem a demiurga expectativa de este serespecialista no tema tratado; ou, então, o debateentre Huxley e Wilberforce transcender asfronteirasda literaturae fazerpartedo interesseda biologia.

O credenciamento da melhor crítica aoprofissional da crítica também não é o desejável.Melhor seria que a experiência crítica fossealargada em número e prática � sejam críticosprofissionais ou consumidores de produtosculturais em geral � que descartam os juízos devalor e acentuam o traço distintivo da experiênciacultural. Assim, não se constrói uma ilusóriahistória do gosto pelos juízos de valor (retóricos,comparativos) mais acatados, e, sim, uma atitudesocial que examina continuamente os indíciosque o produto cultural está manifestando.

O mundo representado nos documentáriosCostuma-se agregar ao gênero

�documentário� alguns atributos que, pelomenos em mão única, são recorrentes: o deverdade, o de filmes cuja orientação principal épara a produção de documentos sobre o homemhistórico. Essa categoria � ou tendência - severifica nos documentários que pretendem, emprimeira instância, mimetizar a realidade,transportando para o cinema uma impressãoforte do �real�. O objeto do filme não é arepresentação direta do movimento ou da

profundidade, mas o da criação de um sistemaseletivo de imagens que dão a impressão absolutade movimento e de profundidade4, em últimainstância: de �realidade�. Enquadra-se nessatendência uma ampla gama de documentários,desde as origens do cinema, com os actualités deLumière, filmes de Robert Flaherty iniciados em1922, até as produções contemporâneas. Nessedomínio, incluem-se os documentários queutilizam a captação de imagens segundo ametodologia naturalista etnográfica � em que sedestacam os filmes africanos de Jean Rouch, asexperiências de Robert Gardner, em especial noForest of Bliss, que retrata as cerimônias fúnebresem Benares, Índia; também, as incursões dafamosa psicóloga Margareth Mead e seu maridona época, o fotógrafo Gregory Bateson, e suapesquisa no Bali -, a produção fílmica dosdocumentaristas é justificada, via de regra, pelointuito de se mostrar aspectos do mundohistórico - uma espécie de intenção de produçãode registros e documentos que visa a preservaçãode categorias de pensamento que definem opassado pelos seus atributos, por meio desituações e contingências sociais para aposteridade. Trata-se de um modelo deconcepção em que predomina, além da câmeraexploratória, a intenção de persuasão(ponderando-se o grau de intervenção), em quese destacou o formato instituído por JohnGrierson, na década de 1930.

Alargando suas fronteiras econquistando relevância no mundo do cinema eno gosto do público, principalmente naatualidade, a concepção da produção de registrose documentos que pretendem o �real� aindafunciona como fator distintivo nos aspectosconstitutivos da criação mundial dedocumentários. Tanto que, para Renov, amodalidade persuasiva e promocional pode serestendida a todas as formas de documentários edeve ser sempre considerada em relação a outrasfunções estéticas e retóricas dos filmes. Na baseda persuasão está a �alegação de verdade� (truthclaim) que a maioria dos documentários reivindica.

Quando se toma contato com aapreciável quantidade de estudos sobre este tema,percebe-se, inicialmente, que parece não haveruma definição aceita por todos sobre o que é o

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documentário. Neste, diferente de um telejornaldiário e suas práticas (manchetes, vinhetas,reportagem, notas, etc.), existem fronteirasmovediças que imbricam na dúvida amplamentereiterada dos documentários constituírem umacervo de filmes que se distinguem por nãovisarem à ficção. Carl Plantinga considera pordemais restritivo o termo documentário e prefereuma taxionomia mais ampla, classificando-ocomo �filme de não-ficção�. Nöel Carroll, maisinstigante e afeito à metodologia de criaçãodesses filmes, classifica o documentário comosendo um �filme de afirmação pressuposta�.Entre os teóricos mais celebrados na atualidade,Bill Nichols e Michael Renov, ambos se fixam nadenominação �documentário�, mas recusam-se aaceitar que existam fronteiras claras entre filmesde ficção e de não-ficção. Para eles, odocumentário deve ser considerado um gênerode cinema � assim como o musical, a comédia, odrama, etc � não sendo possível, portanto,distinguir-se claramente as fronteiras entre aficção e a não-ficção. De um modo sucinto,verifica-se que Nichols compreende osdocumentários como sendo filmes que dizemrespeito ao mundo no qual vivemos, mais do quea um mundo imaginado por um cineasta. Essaponderação de Nichols carrega, entre outras,duas modalidades de reflexão. A primeira é depremissa sociológica em que a construção dosentido de um filme é do espectador, por meio desuas referências culturais; a outra, é a da intençãode criação, coisa das mais capciosas einconvenientes de se analisar em um artista,particularmente em um cineasta. O que se podeafirmar mais plausivelmente é que a intenção decriação do cineasta será sempre a de secomunicar com o outro, por meio de um mundointerior e uma reflexão em que cada indivíduodispõe de um auditório social próprio bemestabelecido, em cuja atmosfera se constroemsuas deduções interiores, suas motivações,apreciações etc. (Bakhtin:112, 113). Também, ade que o �real� é uma construção e que o filmepode ser visto como um discurso sobre o outro.

Mas, prossigamos. Fixemo-nos em umadecorrência usual, atribuída aos documentários: ade que estes podem ser portadores do atributo daobjetividade e o da verdade. Sobre esses dois

platôs que recaem os principais embates teóricos,e exercem fascínio até hoje - seja para osdocumentários que os ressaltam, ou aqueles queos negam - tanto para o leigo quanto para oestudioso do tema. Muitos acreditam serimpossível estabelecer a distinção entre ficção enão-ficção, porque ambos compartilham umasérie de estruturas e técnicas de filmagem eedição: a montagem paralela, o campo/contra-campo, flash-back, câmera na mão, trucagens,etc.. No tocante à representação dos personagens(fictícios ou reais), a distinção também ficariadificultada, pois atores profissionais podemsimular, com grande realismo, uma dada situaçãoe os atores sociais (pessoas comuns) podemconferir a si próprios representações nãocorrespondentes à sua realidade. Além disso,ficção e não-ficção comungam de artifíciosdramáticos, narrativos e estéticos, o quedificultaria ainda mais sua distinção. Sem falar naideologia, que estando inevitavelmente presentena forma e no conteúdo de ambas as categorias,tornam-nas indistinguíveis.

Mas, o mais significativo, segundo essadupla perspectiva, é o valor paradigmático dodocumentário agregar para si, como aspectoconstitutivo, a questão da história e dahistoricidade em geral. Longe de ser umsubgênero do cinema, a �categoria� chamada de�documentário� está em expressiva expansão edignificada pelo acréscimo de avanços formais etécnicos em que a liberdade temática ajuda aatrair mais espectadores. Assim, surgemdocumentários sobre músicos de renome, artistasplásticos, macro-ambientes vivenciais, entre outros.

A inovação formal proporcionou paraos novos documentários uma orientação para onovo e, igualmente, uma emergente busca desentido da história da classe média, em especial aurbana, que agregam novossujeitos/personagens, exibindo, desde acontradição de um projeto coletivo e social,normalmente expondo-os à denúncia ou aamostragem das suas articulações como sujeitosindividuais frente aos dilemas e conflitoshumanos, ou um certo compromissoinstitucional de criação de relevos e significadospara algumas personalidades que se destacam nocontexto de uma mundialização da matéria cultural.

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Esses novos personagens dosdocumentários, submetidos a uma narrativatemporal, que promove uma visão própria dopresente a partir de um passado encharcado deobjetividades e significações, são abordados pormeio de depoimentos e outras manifestaçõescorrelatas (fotos, filmes caseiros, objetos etc.)inseridas na narrativa principal. O homemhistórico visado nos documentários normativos,agora, é acrescido de potencialidadesinstitucionais que funcionam como conexões queressaltam a representação para elementos alémdahistóriae mais afeitos àcriaçãoou reafirmação de símbolos.

No caso dos documentários, parece serrecorrente o procedimento de que o cineastapropõe e que o espectador tome essa proposiçãocomo um pensamento afirmado, e não comoimaginação. Há, portanto, nessa disposição umarelação de cumplicidade entre realizador e

público, para que o filme se caracterize como tal(não-ficção). Essa relação assume certo grau dequalidade e significação quando o espectador,além de compreender a intenção de sentido docineasta e de considerar o conteúdo do filmecomo pensamento afirmado, concorde com estepressuposto afirmado. Entretanto, o caminho deconstrução desse pressuposto afirmado se batecom o da seletividade, isto é, aquele mostra quetudo que vai ser filmado dependerá de umaescolha prévia do cineasta, que estaria, então,conferindo uma subjetividade ao materialfilmado, negando assim, a priori, a objetividade.Como a seletividade resulta em subjetividade, e asubjetividade implica em parcialidade (outendenciosidade), a objetividade ficariainterditada nos filmes, inclusive nos de não-ficção. Os documentários, incluindo os detemática da natureza e os de vertenteautobiográfica, segundo Raymond Spottiswoode,seriam uma apresentação dramatizada dasrelações do homem com sua vida institucional,quer seja industrial, social e política; e, na técnica,uma subordinação da forma ao conteúdo.

Podemos situar ainda o documentáriono universo do cinema como sendo uma criaçãopermeada pelo conceito de mundo projetado,cujo conjunto de pontos de vista afirmam, desdesua construção inicial, o pressuposto de que asignificação da imagem e do som age sobre omundo, transformando-o. Na comunicação dodocumentarista com o espectador por meio dofilme, além da afirmação de significados, inclui-sea intenção do espectador desenvolver percepçõesque influenciarão suas ações. A qualidade dessacumplicidade residirá no sentido e no contextoem que foram expressos ou apresentados. Umaenunciação na forma afirmativa, apoiada naimagem e no som, funciona como uma alegaçãode que aquilo que está sendo destacado éverdade, uma vez que invoca uma �concepção demundo real�. A reificação do �real� é aqui, defato, construída no interior do própriourdimento do documentário, que épotencializado e constantemente reiterado comouma escala de conteúdos extraídos diretamentedo �real�, dos documentos, fatos históricos esociais. Ao utilizar tais representações, osdocumentários têm o poder de transformar o

René Magritte, Le fils del'homme, 1964

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presente em história, numa relação em que opresente se desfamiliariza em sua forma desituação presente e se reconstrói em umadistância da imediaticidade, assumindo uma novaperspectiva no qual nos afastamos do aqui eagora, para um tipo especial de presente, que nãopode ser datado ou rotulado. A visão binoculardo cinema e a situação de espaço e de tempopassam a ser uma natureza particular dofenômeno fílmico.

O elogio à resignação: 33, de Kiko Goifman

Aqueles que sustentam que a busca daidentidade biológica era privilégio da novela, eque a concepção do sujeito nacontemporaneidade aboliu este tipo deargumento, transformando-o num clichêdesgastado e frouxo, encontrará no recentedocumentário 33 de Kiko Goifman alguns�elementos� de dúvida. Esta instância quegenericamente estamos chamando de�elementos� pode ser entendida como umdeslocamento do centro do conteúdo novelescopara a amostragem das rupturas dos discursosfílmicos no documentário atual.

Além do ineditismo da temática nomundo dos documentários � afins, logicamentecom o egotismo, a fragmentação e a reiteradaindividualização do pós-moderno � estedocumentário tem seu centro temático naambigüidade entre o privado e o público. Asolução encontrada por Goifman para trabalharessas duas esferas foi a de criar duas ordensheterogêneas entre si, mas que redundam em ummaterial de rendimento apreciável em termos decinema, particularmente no documentário.

A idéia desse dualismo é trabalhada naoposição entre o ser e o dever, que não pareceoferecer uma conciliação possível, ao longo dofilme. O ser é o do cineasta-sujeito que sematerializa no filme, que se transforma emconteúdo, argumento. O dever é o de realizar o filme.Esta instância está afeita ao processo de criação.

Como era de se esperar neste tipo dediário eletrônico, a presença da narração édestacada. Por meio dela, a representação do�real� assume graus diversos de complexidade: arazão prática que comenta e explica a situação

existencial na busca pela mãe biológica e aelaboração formal da imagem que instaura umethos da contingência. Há um perceptívelprivilégio da concepção da forma, que, aomesmo tempo em que evita a visão trágica,propõe novos pontos de vista, especialmente eminstâncias adjetivas, notadamente no tratamentoestilístico da imagem em preto e branco, apoiadasno imaginário dos filmes de detetives.

Como dissemos anteriormente, acriação está orientada para um outro, a partir deuma platéia de espectadores que o criador defilmes tem em si, ao decupar seu filme. Aplicadoeste conceito ao filme de Goifman, podemosconsiderar essa ambigüidade entre o público e oprivado como uma espécie de novo método, umalargamento temático, que possui a capacidade decoexistir perfeita e adequadamente com outrosmétodos dos documentários, uma vez que utilizasubsistemas conceituais e assuntos relacionadoscom o procedimento normativo dosdocumentários. A diferenciação, neste caso,reside na busca por uma nova forma deenunciação pela investigação mediada, em que setem um constante gerenciamento das possíveisobviedades. Embora este documentário sejaconstruído a partir de uma plataforma dedepoimentos e pesquisas diversas, ele éprocessado por intervenções do narrador quetransforma as evidências em situaçõesimprevistas e multifacetadas que evitam oprevisível: o catártico encontro do filho com sua mãebiológica 33 anos depois logicamente é evitado.

Ao se descartar as obviedades, o quedeverá ser destacado em seu lugar? Goifman,neste aspecto, optou pela rapsódia das etapas dabusca, ora em adágio, noutra em presto, que éinterrompida pelo vencimento de um prazo detempo pré-estabelecido (vence o dever, emdetrimento ao ser), ficando para o espectador, emmeio ao discurso da procura, uma espécie deausência informe de uma mãe que todosmencionam e todos se esforçam por esquecer.Em meio a isso, configura-se uma espécie denostalgia administrada � um tempo para anostalgia � que o documentário de Goifmansimultaneamente dá relevância e oculta, paraevitar o pathos narcísico. Com isso, entra-se emuma trajetória de um museu imaginário em que

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desfilam tipos humanos que reiteram o passadocom um forte apelo para o �real�, que éexplicado pela voz em off do diretor comomundo reconhecido, mas inclassificável. Trata-sede uma premonição que, ao mesmo tempo emque dá significado à narrativa, afrouxa esses seresdeslocados de seu mundo excêntrico original, aoserem trazidos para a tela como um aporte �real�do sistema presente, embora sejam umaalteridade de um passado, que agora seexperimenta como se fossem velhas fantasias deoutro modo de produção.

A paisagem pré-capitalista e brejeira,que é a Belo Horizonte da década de 1960, longede ser morbidamente exótica, faz uma espécie de

acumpliciamento pelos tipos humanos que delasurgem, revertendo sua potencialidade paraconsiderações excepcionalistas, em momentosespeciais em que a seqüência do filme investe naconstrução do discurso afetivo, tenso ecomplacente. Assim, surgem porteiros deedifícios, médicos, místicos que predizem ofuturo e, em esfera de núcleo primário, a fala dafamília, por meio do depoimento da mãe adotivae o da irmã. A construção camp dessesdepoimentos do núcleo primário funciona comouma desconstrução de qualquer conflito deidentidade que possa ter surgido. Os ditames daleitora das cartas, que também está envolvidacom o processo de adoção do diretor, é mais umestímulo para abandonar a tarefa de busca da mãebiológica. Ambas as formas de enunciação seinserem na margem de desenvolvimento danarrativa como uma espécie de modelo implícito,mas que reforça o �real�.

Com o cumprimento parcial da tarefa-ação de se encontrar a mãe biológica, o resíduofinal é o de um jogo existencial-autoral que evitao drama novelesco e banal, com altoinvestimento formal (a la mode de filme noir), querecupera o imaginário dos antigos filmes dedetetives, como os paradigmáticos O Falcão Maltêse O terceiro Homem, configurando umentrelaçamento do cinema clássico com as novaspossibilidades formais do documentário.

Estamos na fronteira movediça da não-ficção e ficção, como descrevemosanteriormente. A objetividade tão reivindicadapelos documentários, neste 33, conjuga-se com aenunciação psicológica do adulto que tomacontato com seus sistemas simbólicos,transformando a argumentação em sentimentoscontraditórios � a divisão do eu, a negação doespelho existencial e a afirmação de umainsidiosa identidade racionalizadora, queconstantemente questiona a validade da ação -,instituindo a viagem que percorre o nada ao lugarnenhum, em que se compartilha recapturar oprazer fantasiado da plenitude. Como asconceptualizações do sujeito mudam, o relatodessas ações resulta numa história - sem começo,nem fim -, cujo rendimento em um documentáriorecupera a cadeia familiar e primária, mas nãoexibe uma vida vivida, reforçando o lado singular,distintivo e único do criador de imagens.

Kiko Goifman

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NOTAS1 Cit in Frye, Northrop: Anatomia da crítica, pág.11.2 O cinema é uma arte realista mais pelo efeitoque produz do que pela naturalidade dos meios.Arnheim, Rudolf: Film as art, pág.25.3 Gadamer, Hans-Georg in Arte poética e

interpretação.4 Francastel, Pierre: L�Image, la vison et

l�imagination, pág. 196.

BIBLIOGRAFIAErik Barnow, Documentary. A History of

the Non-Fiction Film, Oxford/New York: OxfordUniversity Press, 1993.

Noël Carroll, Nonfiction Film and

Postmodernist Skepticism, in: David Bordwell &Noël Carroll, Post-Theory. Reconstructing Film

Studies, Madison: The University of WisconsinPress, 1996.

Bill Nichols, Blurred Boundaries. Questions

of Meaning in Contemporary Culture. Bloomingtonand Indiana: Indiana University Press, 1994.

Carl Plantinga, Moving Pictures and the

Rhetoric of Nonfiction Film, In: David Bordwell &Noël Carroll, Post-Theory. Reconstructing Film

Studies, Madison: The University of WisconsinPress, 1996.

Michael Renov, Re-thinking Documentary,in: Wide Angle, Vol.8, nº 3/4, 1986.

Camilo D'Angelo BrazProfessor da FACOM-FAAP, é Mestre emMultimeios pela Unicamp e doutorando emCinema e Literatura na Faculdade de Filosofia,Ciências Humanas e Letras da USP.

"Cartaz de lançamento do

filme 33", 2004

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A guerra está entre nós. A guerra está atéem meu nome. Carrego a idéia de guerra nopróprio nome, além de ser filho de militar, e ternascido num hospital do Exército em plena datacomemorativa da história nacional, aproclamação da República, que como se sabe foiantes de tudo uma quartelada. A origem do nomeMartin, andei lendo num livro sobre história desantos, mais particularmente São Martinho, vemdo latim Martem tenes � �aquele que temMarte�(no coração)2, lembrando sempre queMarte é o nome latino do deus da guerra,conhecido pelos gregos como Ares. E nosegundo nome � Cezar � nem preciso lembrar aassociação com Júlio César, conquistador editador romano, autor do livro clássico De BelloGallico � �As guerras da Gália�, que até foipersonagem de livro para-didático por mim

escrito3. A sorte neste caso é que a leitura de Astérix járidicularizou qualquer pretensão autoritária.

Mas o objetivo deste texto não éexplicar psicanalíticamente � o que seria umcontra-senso � minha predisposição para tratar otema da guerra, em si sempre intolerável, o queme faz acima de tudo um pacifista convicto emilitante. O que pretendo aqui é tratar dofascínio arcaico � e arcaizante � que temasviolentos exercem sobre nossa imaginação eemoção representados não só pela literaturaclássica ou moderna, mas principalmente nosmeios de comunicação, em particular o cinema,seja pelo mainstream do cinema de Hollywood oupela �estética da fome� de um Glauber Rocha4.E a relação entre mito, violência e poesia épicaclássica pode ser visto, por exemplo, no filme�Tróia� (Troy, Wolfgang Petersen, EUA, 2004),

�O senhor sabe:sertão é onde manda quem é forte,com as astúcias.

Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinho de metal...�

(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)

Homero e a representação míticada guerra1

Martin Cezar Feijó

ResumoA Ilíada, de Homero, praticamente inaugura a literatura ocidental. O objetivo deste texto é

analisar a relação entre mito e história, poesia e comunicação, representação e realidade quando o tema éa guerra: fascinante enquanto ficção, morte e destruição enquanto fato.Palavras-chave: poesia e teologia - mito e história - literatura e representação.

AbstractHomer's The Ilíad practically inaugurates western literature. The aim of this text is to analyze

the relation between myth and history, poetry and communication, representation and reality, when thetheme is war: fascinating as fiction, while death and destruction as fact.Keywords: poetry and theology - mith and history - literature and representation.

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que tem o ator Brad Pitt no papel do herói gregoAquiles. E nesse sentido, a guerra não serátratada aqui em seu sentido literal, como políticapor outros meios (Clausewitz), mas em suarepresentação através dos mitos, principalmentepartindo dos mitos gregos, com foco na obra queé considerada a inaugural na literatura e noimaginário ocidental: Ilíada, de Homero.

Homero não educou apenas os gregos,mas serviu de base a toda uma história da culturaatravés de seus poemas épicos. Referênciaobrigatória para poetas e escritores, também temseu espaço reservado na cultura moderna atravésda indústria de entretenimento, o cinema emparticular. Como destaca o grande escritorcontemporâneo, o norte-americano Philip Roth,através do personagem Coleman Silk, umprofessor de literatura clássica, durante uma aula,exatamente a que dá origem às mais gravestransformações em sua vida:

(...)�Vocês sabem onde começa a literaturaeuropéia? Com uma briga. Toda a literaturaeuropéia nasce de uma briga�. Então pegavasua Ilíada e lia para os alunos os primeirosversos. �Musa divina, canta a cóleradesastrosa de Aquiles.... �Começa com oconflito entre os dois, Agamenon, rei doshomens, e o grande Aquiles. E por que elesestão brigando, esses dois grandes espíritosviolentos e poderosos? Por um motivo tãosimples quanto qualquer briga de botequim.Estão brigando por causa de uma mulher....5

Marte, deus da guerraMas falar em guerra e mitologia no

mundo antigo é falar no deus da guerra já citado:Marte. Marte para os romanos, Ares para osgregos, é um deus sedutor e sanguinário, que sedivertia com as guerras que provocava entre oshomens, mas também era amante da deusaAfrodite, conhecida como Vênus pelos romanos,deusa do amor que se encantou com o charmetruculento do deus da guerra. Até um planetarecebeu o nome de Marte porque é visto comoum planeta vermelho, do sangue jorrado daviolência das guerras. No começo do século XXo compositor Gustav Holst compôs umasinfonia intitulada �Os Planetas�. A parte sobre

Marte é a mais cromática, de timbres fortes e tensão sonora. Há até uma interpretação pessoal do cineasta Ken Russel, na seqüência intitulada �Marte, o que traz a guerra�, que em 1983realizou uma montagem cinematográficainspirada em Holst. Como se pode ver na versãocinematográfica da sinfonia, na qual imagens dedesfiles militares, principalmente na Alemanhanazista com soldados dando largas passadas, mastambém na então União Soviética com ogivasnucleares, países do terceiro mundo, soldadosingleses, cenas de incêndios com cavalosqueimando, a relação entre mito e história ébastante complicada, para não dizer assustadora.Mas também, o mais assustador ainda, não deixade exercer um irracional fascínio. Compatívelcom o nosso tempo.

O tempo em que vivemosVivemos em tempos sombrios, não sei

se mais uma vez ou se nunca deixamos dele.Prenúncios, avisos e ataques de todo tipodemonstram estarmos vivendo sob o manto deMarte, o deus da guerra. Fala-se até que o 11 desetembro de 2001 marca o início de uma nova

Brad Pitt como Aquiles

em �Tróia�.

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guerra, de uma guerra de civilizações, de religiões,de fundamentalismos. O que parece uma exceçãoconfirma-se como regra: da mesma forma que ocorpo saudável parece ser um pequeno intervalonuma vida de doenças, os momentos de paz temsido ao longo da história tênues e efêmeros vaga-lumes a tentar ofuscar o clarão dos bombardeios.Cidades são destruídas pelas guerras ereconstruídas em períodos de paz eprosperidade. Mesmo assim as cidades adotampara seus próprios emblemas representandopunhos a revelar imagens de força, como nos éapresentado na bela e profética alegoria de Kafkaem �O Brasão da Cidade�.

A divisão do mundo em ocidente eoriente é mais ideológica que histórica comodemonstrou Edward Said. Foi construída atravésdos séculos de guerras e conquistas, tendo atéquem defenda que o ocidente �venceu� porquelutou por ideais democráticos ao passo que o�oriente� estaria atrelado ao autoritarismo esociedade sem mobilidade social. O que maisuma vez não deixa de ser um argumentoideológico. Mesmo assim pode-se fazer umestudo comparativo sobre representações detemas decisivos nas culturas. A pretensão inicial �bota pretensão nisso � deste estudo seria analisardois momentos poéticos fundamentais natradição mítica da representação da guerra: aocidental, com a Ilíada, de Homero, e oriental,com o Mahabarata, particularmente o Baghavad-Gita. Com ênfase em dois guerreiros, o indianoArjuna e o aqueu Aquiles. Numa perspectiva derepresentação, na relação entre fato e ficção, doisaspectos então devem ser tratados: a guerra em

si, enquanto conceito, e a guerra vista pelo mitoe pela poesia. O objetivo deste artigo é o segundoponto, relação entre guerra e poesia, o fascínio domito diante do terror da guerra. E, recuperandoVico, o que pode haver de sublime nisto.

Guerra literalmente envolve destruição,conquista, morte, mas principalmente ódio entreas partes em contenda. As motivações podem seras mais variadas, e sua interpretação depende ométodo empregado. De Marx a Freudconstruímos raciocínios lógicos que buscam umacerta racionalidade para uma vocação humanapara a barbárie, logo, irracional. Nasrepresentações míticas, o motivo pode atéimportar, mas o resultado depende da ação dosdeuses, não pertencem às condições dos homens.Mesmo assim, o ódio está presente, e os motivossão humanos, o que permite uma tentativa �mesmo que inócua - de esclarecimento naconcepção de Adorno.

A Ilíada, de HomeroA inauguração da literatura européia

como foi dito se dá através de um poema épicoque relata alguns acontecimentos de um conflitoentre gregos e troianos. O título Ilíada vem de�Ilíon�, nome grego dado à cidade de Tróia, mais�ode�, canto. O canto sobre Tróia é canto doperíodo derradeiro de uma guerra que haviacomeçado nove anos antes, mas também nãorelata o fim da mesma dez anos depois do fatogerador da mesma: o rapto ou sedução da mulherde um rei grego por um príncipe troiano. Amulher se chamava Helena e era tida como amulher mais bela do mundo, o príncipe era Páris,também belo e disputado por deusas, e o reiMenelau, de Esparta, que busca vingança peloseqüestro e conta com o apoio de vários reinosgregos, com seus heróis, mas também de deusese deusas que se dividem durante os conflitos.Mais do que uma contenda entre povos, Ilíada é ahistória de uma guerra entre heróis � Aquiles eAgamenon pela moça; Menelau e Páris porHelena; Heitor e Pátroclo pela honra; Aquiles eHeitor pela vingança; e a nobre luta de um pai,Príamo, para dar um enterrro digno a seu filho,Heitor -, conflitos entre gigantes que não temema morte nem se culpam por matar sem piedade.E é nisso que o destaque de Aquiles, �a máquina

Páris (Orlando Bloom) e

Helena (Diane Kruger) no

filme �Tróia�.

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de matar mais hipersensível da história daguerra� (Phillip Roth) . Ou como destaca HaroldBloom, �a derradeira e mais poética grandeza deAquiles é que ele não honra pacto nenhum,exceto com a morte�, sendo sempre o primeiro asuperar todos os outros6.

A origem da guerraMas a guerra de Tróia teria começado

bem antes dos acontecimentos que envolveramos guerreiros: a disputa entre deusas sobre apossibilidade de proteger um mortal, tido porelas como o mais belo entre os homens:Alexandre Páris, filho do rei Príamo de Tróia. Asdeusas Hera, mulher de Zeus, Afrodite e Atenasdisputam entre si a primazia do jovem.Oferecem-lhe proteção e conquistas: Hera, opoder; Atena, a inteligência; Afrodite, a mulhermais bela. Páris, humano, demasiadamentehumano, opta pela mulher mais bela. Bela ecasada. Mas à deusa escolhida não há limites paraconseguir a mulher escolhida. E assim Paris viajaa Esparta e conquista a mulher do rei de Esparta,Helena, o motivo da guerra. Menelau pede ajudaao irmão, o também rei Agamenon, que organizaum imenso exército formado por gregos devárias regiões e comandados por também reis,por heróis diversificados em capacidade e caráter.

Mas Ilíada só começa no nono ano daguerra, e mesmo assim não em um conflito entregregos e troianos, mas entre um grego e outro:

A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles, oirado desvario, que aos Aqueus tantas penastrouxe, e incontáveis almas arrojou no Hadesde valentes, de heróis, espólio para os cães,pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;desde que por primeiro a discórdia apartou oAtreide, chefe de homens, e o divino Aquiles.Que Deus, posto entre ambos, provocou arixa? 7

Assim começa, com tensão elevada, nodestaque da ira e da força de Aquiles, que muitosmandou para o reino dos mortos, cujos corposdeixou ao léu para o apodrecimento sem piedade,agora com raiva exatamente de seu chefeAgamenon, rei dos homens, dos gregos emcombate contra os troianos que defendem sua

cidade, por causa da exigência em devolver suapresa, Criseida, filha de sacerdote, exije outra,Briseida, �belo rosto�, que pertenceria aoguerreiro Aquiles. Sua raiva, sua ira, suaindignação é exatamente porque é obrigado aceder, aceitar as decisões do conselho e sentir-seultrajado. Aquiles resolve então como protestoretirar-se da luta, para agrado dos troianos etemores dos gregos. Tudo parecia que ostroianos, que resistiram por quase dez anos,levariam a melhor e a mulher. Puro engano, nãoera desejo de todos os deuses. A deusa Atenaprotegia os gregos junto a Zeus; a bela Afroditezelava por seu Páris. Entre a deusa da guerra einteligência e a deusa do amor e beleza a primeiralevou vantagem. E os troianos, depois dealgumas vitórias, começaram a sofrerimportantes revezes, o principal deles foi quandoAquiles volta ao combate e mata Heitor, o maiorherói troiano.

O elmo de HeitorUm dos momentos mais intensos da

obra é conheciddo como a despedida de Heitor,quando vai enfrentar Aquiles. É um grandemomento, não apenas em emoção eprofundidade, mas na capacidade de síntese deuma imagem. Heitor despede-se de sua mulher,Andrômaca, que carrega em seus braços o filhodos dois. Mas quando Heitor tenta abraçar seufilho, que demonstra medo pelo aspecto do pai, egritando porque estranhara

o inusitado fulgor do elmo aêneo de grande cimeira,

pelo galhardo e oscilante penacho de crina

encimado;

O pai e a mãe veneranda, a um só tempo,

sorriram, de gozo.

O refulgente elmo, então, da cabeça tirou o

guerreiro, pondo-o, cuidadoso, depois ao seu lado,

na terra fecunda.

E logo o filho nos braços tomando, depois de beijá-

lo, a Zeus e a todos os deuses eternos suplica,

fervente:�Zeus, poderoso, e vós outros, ó deuses

eternos do Olimpo,que venha a ser o meu filho

como eu , distinguido entre os Teucros, de igual

vigor, e que em Ílio, venha a ter o comando.

E que ao voltar dos combates, alguém diga, ao vê-

lo: �É mais ainda que o pai...� 8

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O herói troiano se dá conta que lherestava pouco tempo, afinal, diz, �aos homenstroianos � e sobretudo a mim � incumbe-nos aguerra�9. Mas Heitor não sobrevive parapresenciar o destino de seu filho, é morto porAquiles, que ainda tripudia com seu cadáveramarrado em sua biga diante dos portões dacidade de Tróia. Não querendo sequer permitirum enterrro digno, por final conseguido porPríamo, rei de Tróia, e pai do valoroso Heitor ede Páris, causador da guerra tão funesta aostroianos. O funeral de Heitor marca o final destecanto que ao lado da Bíblia são os maisimportantes textos poéticos e teológicos docânone ocidental. Base não apenas de umimaginário, mas de uma formação, de um carátera um pensamento. É de uma das maioresestudiosas mundiais da cultura clássica aconclusão que Heitor é prova da grandeza daobra:

Do lado troiano, sobressai em toda a suagrandeza a figura de Heitor, de pai, decidadão. Luta pelo seu país e pela suafamília, não apenas para alcançar honrapessoal, como Aquiles. Este tratamento deherói máximo da facção inimiga é a maisantiga prova de imparcialidade � direimesmo, da superioridade moral grega. Nãoserá a última10.

O escudo de AquilesSe o elmo de Heitor, que assusta a

criança, registra o drama, o escudo de Aquilesreforça a luta. Mas também permite uma visãoda paz no emblema da guerra. É um escudoforjado por um deus, Hefestos, a pedido de umamãe, Tétis, para a proteção de um filho, Aquiles.Nele, o ferreiro do Olimpo gravou um mundotodo, a terra, o céu e o mar. A natureza douniverso com suas estrelas, o sol que circunda aTerra, assim como a lua. Mas é na história doshomens que esculpe em detalhes toda a rica vidados mortais:

Duas cidades belíssimas de homens de curtaexistência grava também. Numa delascelebram-se bodas alegres.Saem do tálamo os noivos, seguidos por seusconvidados,pela cidade, à luz clara dearchotes; os hinos ressoam.Ao som das flautas e cítaras moçosdançavam, formando roda, em cadênciaagradável. Nas casas, de pé, junto às portas,viam-se muitas mulheres que o belo cortejoadmiravam.Cheio se achava o mercado, que dois cidadãoscontendiam sobre quantia a ser paga porcausa de um crime de morte; um declaravaante o povo que tudo saldara a contento; outronegava que houvesse, até então, recebido aimportância.Ambos um juiz exigiam, que fim a contendapusesse..11.

Na descrição minuciosa da ilustraçãodo escudo sagrado, em que festas, colheitas edanças, também �seguem os homens guiados porAres e Palas Atena� a fazer suas guerras como senão fosse esta, mesmo com elmos e escudosreluzentes mas sem o brilho dos heróis, poisbrigam por ovelhas e não por deusas. Não cabeaqui uma análise detalhada da descrição doescudo de Aquiles feito por Hefesto, mas écurioso destacar que nele se encontra umahistória diferente, cuja grandeza não está noOlimpo, mas no cotidiano das pessoas,subvertendo assim o emblema: aos invés dealegorizar a luta através de imagens carregadas desimbolismo como decoração de um escudo,

Aquiles em combate no filme

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ilustra com cenas da vida real o que éinstrumento de defesa de um semi-deus.

Mas, o que leva os heróis à guerra?Vingança para garantir uma honra, umadignidade ameaçada: areté. O que os motiva? Osdeuses. Há uma palavra grega para designar omomento em que o guerreiro perde os sentidos eage sem discernimento: ate. Isto até podeprovocar uma �cultura da vergonha�, não uma�cultura da culpa�12. Quando Agamenonreconhece que irritou Aquiles, ele não sedesculpa, porque não considera como sua culpa,mas de algo provocado por Zeus: �Mas se erreitanto, levado por meu pensamento funesto ,/quero aplacar o guerreiro com ricos e infindospresentes�13. É que Agamenon considera quefoi tomado por uma força maior que ele: �Masuma vez que fui cegado pela ate e que Zeus levoupara longe meu discernimento, estou disposto afazer minha paz e conceder abundantecompensação� .

Mesmo assim, o herói grego atende ospedidos, verdadeira súplicas, do Príamo para quehomenageasse o corpo do filho morto. E nesse sentido,há um elemento educador na atitude de Aquiles:

O guerreiro de uma crueldade primitiva, quefizera sacrifícios humanos em honra dePátroclo e rojara no pó o rosto do príncipetroiano, humaniza-se ante a impotência dePríamo e entrega-lhe aquele troféu porquetanto lutara. Caminha-se para umabrandamento dos costumes, de que este cantofornece o mais belo exemplo14.

E aqui começamos a trilhar umcaminho em que a arte do narrador épico setorna educativa, com grande presença naformação cultural de um povo que marcou todauma civilização. Mais do que a tradição mítica deuma representação da guerra, o que ficou emestrutura e influência decisiva foram os poemasatribuídos a um poeta jônico chamado Homero.Mas, quem foi Homero? Isto também despertoupesquisas e debates que levou o nome de�questão homérica� como parte decisiva de umahistória da cultura.

A questão homérica A trajetória de Homero na história da

cultura envolveu duas perguntas básicas: Aguerra de Tróia foi um fato histórico? E Homeroexistiu? Questões básicas, mas não fundamentais.Afinal, é fato concreto que as obras atribuídas aHomero foram decisivas para a formação dacultura ocidental. A começar pela cultura gregaclássica, quando os textos foram talvez pelaprimeira vez registrados na forma escrita (hádúvidas se a escrita já não existia no tempo de suacriação, por volta do século VIII a. C. ) noperíodo clássico (século V a . C.), e se tornaram abase da própria �Paidéia�, ou seja no plano queaqui nos interessa: educação, arte e cultura.

1. Homero como educador. O primeiroaspecto, estudado por Werner Jaeger15 é o deconsiderar Homero como educador. Os poemashoméricos quanto à educação referem-se aoconceito de areté, que pode ser entendido como ovalor da honra . O caráter principal consiste nofato de que Platão já havia apontado, conformeJaeger, que �a não-separação entre a estética e aética é característica do pensamento gregoprimitivo�16. E por ser predominantementeartístico, o que supõe a experiência comofundamental ao conhecimento, �a arte tem umpoder ilimitado na conversão espiritual�17, logo,na educação.2. Homero como artista. Quanto a arte podemser vistos na diferença que Aristóteles em Poética,na relação entre poesia e vida, heróismo e carátersublime, principalmente a questão poéticaapontada pelo filósofo napolitano GiambattistaVico(1668-1744), a de que a obra de Homero écompatível com uma idade heróica, favorável auma mente poética18. O que é importante paraVico é que exatamente o aspecto heróico dopoema, apesar da violência que envolve, é quenele se aspira ao sublime.

�O fato é que, com a identificação do sublimepoético ao heroísmo bárbaro, Vico atacava afutilidade e a insipidez que sentia na poesiacultivada em seu tempo, enquanto redimia aépoca homérica do desapreço em que a tinha acrítica moderna�.19

3. Homero e a história da cultura. E, por fim,quanto ao aspecto cultural, a força dessarepresentação envolve uma dimensão

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antropológica e teológica que não pode passardespercebida. A questão homérica estevepresente desde a antiguidade, quando Tucídidesquestionou seus �exageros�, mas não oquestionou enquanto historiador de fatosocorridos. Tal posição foi mantida porAristóteles, e seu aluno mais célebre, Alexandreda Macedônia tinha a Ilíada entre seusequipamentos de guerra quando avançou sobre ooriente. Desde então Homero se tornou umaquestão filológica e literária ganhando no séculoXVIII, após Vico, teses bastante consistentessobre sua não existência, mas importância por servisto como a síntese poética de um período. Noséculo XIX, o desenvolvimento da arqueologiapermitiu a localização de um terreno que poderiater sido o da cidade de Tróia, permitindo umdesenvolvimento na mesma linha que manteve apertinência da descoberta. Homero, tornou-seao lado de Cristo e Shakespeare as referências maisfundamentais da cultura ocidental e que tantointeressou ao erudito George Steiner pelo ponto emcomum de serem tão importantes e terem tantashipóteses de suas não-existências históricas20.

Muito ainda tem o que se dizer de umaobra de referência como a Ilíada de Homero,

muito ainda tem o que se filmar baseando-se nosrelatos homéricos21, e não pode ser pretensão deum texto que foi fruto de uma comunicação emdar conta de quase tudo, mas apontar para o queestá indicado em seu título: a representaçãomítica da guerra no poema homérico diz mais daemoção primitiva que sobrevive em cada um denós do que possa explicar os absurdos reais quesão cometidos em torno do que se supõem ideaisquando não passam de ideologia, como tãosomente interesses geopolíticos de dominaçãoque buscam justificativas, às vezes até em nomede Deus, mas principalmente do mercado. Isto é,não passam de pura supremacia do Império semter nada de sublime nisso, muito menos poético.A mente poética, ao contrário, através dos feitosheróicos só nos fortalece no sentido de que nãodevemos temer a violência simbólica, muitomenos aceitar os que a querem censurada, masficarmos atentos com a violência real quecotidianamente nos é imposta das mais variadasformas e pelos mais diversos pretextos.

O cavalo de Tróia

no filme

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NOTAS

1 Palestra proferida na XXVI Semana deComunicação da FACOM-FAAP, no dia 17 desetembro de 2003. Meus sincerosagradecimentos aos professores Omar Khouri eAdriana Carvalho Novaes a generosa consultoriasobre a língua grega.2 Mesmo que seja guerra contra os vícios e ospecados. �São Martinho� in Varazze Jacomo.Legenda Áurea. Vida de santos. Tradução dolatim, apresentação, notas e seleção iconográficade Hilário Franco Junior. São Paulo: Companhiadas Letras, 2003.3 Roma antiga. Crise da república. São Paulo:Ática, 2004, 10a. ed. revista e ampliada. (Col.�Cotidiano da História�)4 Sobre a questão da estética da fome e estéticada violência em Glauber Rocha, ver Feijó, MartinCezar. Anabasis Glauber. Da idade dos homens àidade dos deuses. São Paulo: Anabasis, 1996. (Háuma revisão deste texto ampliado pronto para re-publicação)5 A marca humana. Tradução Paulo HenriquesBritto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,pp.13-14. Este romance também foi adaptadopara o cinema, com Anthony Hopkins no papeldo professor Coleman Silk.6 Cf. Harold Bloom. Abaixo as verdades sagradas.Poesia e crença desde a Bíblia até nossos dias.Tradução de Alípio Correia de Franco Neto eHeitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhiadas Letras, 1993, pág. 49. .7 MHNIS. A ira de Aquiles. Canto I da Ilíada deHomero. Tradução de Haroldo de Campos eTrajano Vieira. São Paulo: Nova Alexandria,1994., pg. 31.8 Canto VI � 469-480. Tradução de CarlosAlberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.9 Canto VI � 492-93. Tradução de Haroldo deCampos10 Pereira, Maria Helena da Rocha. Estudos dehistória da cultura clássica. I Volume � Culturagrega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,2003, pág. 78.11 Canto XVIII � 490-501. Tradução de CarlosAlberto Nunes.12 Cf. Dodds, E.R. Os gregos e o irracional.Tradução de Paulo Domenech Oneto. São Paulo:Escuta, 2002.13 Canto IX � 119-120. Tradução de CarlosAlberto Nunes. Op. Cit.

14 Pereira, Maria Helena da Rocha. Op. Cit., pág. 85.15 Ver Paidéia. A formação do homem grego.Tradução Artur M. Parreiro. São Paulo: MartinsFontes, 1995. Não é objetivo deste textoaprofundar, ou mesmo inovar, sobre asbrilhantes análises do estudioso alemão. Suasimples referência demonstra a importância quese concede aqui ao conceito.16 Op. Cit. , pág. 61.17 Idem, pág. 63.18 Também não é objetivo aqui analisar acontribuição de Vico não apenas à história dacultura, mas também quanto aos aspectosestéticos e teológicos, estes últimos nomomento como tema de meu pós-doutoradoem ciências da religião na PUC-SP. De Vicopode-se ver sua monumental obra, praticamentede uma vida: A ciência nova. Tradução, prefácio enotas de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro:Record, 1999.19 Lacerda, Sonia. Metamorfoses de Homero.História e antropologia na crítica setecentista dapoesia épica. Brasília: UNB, 2003, pág. 279.20 Mesmo assim, Steiner estabelece a questãonos seus devidos termos: �O mitógrafo � o poeta� é o historiador do inconsciente�. E que talveznunca saberemos realmente, as obras assim comoo cristianismo �permanecem como fatoinatacável�. �Homero e os especialistas�. In:Linguagem e silêncio. Ensaios sobre a crise dapalavra. Tradução de Gilda Stuart e FelipeRajabally. São Paulo: Companhia das Letras,1988, pp. 205-224.21 Sobre os filmes, pode-se ler Elley, Derek. Theepic film. Mith and history. London: Routledge &Kegan Paul, 1985.

Martin Cezar FeijóCoordenador de pesquisa e professor deComunicação Comparada da FACOM-FAAP.Professor do programa de pós-graduação emEducação, Arte e História da Cultura naUniversidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorem comunicação pela ECA-USP. Autor de várioslivros.

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Diálogo ImpertinenteCarlos Drummond de Andrade -Fernando PessoaPaola Poma

ResumoNo poema "Sonetilho do Falso Fernando Pessoa", Carlos Drummond de Andrade questiona o

processo da heteronímia pessoana. Este artigo tem a intenção de mostrar que simultaneamente aoprocesso de desconstrução do mito, o poeta brasileiro acaba se enredando nas tramas do mascaramento,confirmando a grandeza poética do modernista português e a circulação das idéias e das literaturas.Palavras-chave: heteronímia - despersonalização - modernismo

AbstractIn the poem "Sonetilho by the False Fernando Pessoa", Carlos Drummond de Andrade questions

the "Pessoa" heteronomy process. It is the aim of this article to demonstrate that, concurrently with themyth deconstruction process, the Brazilian poet finds himself webbed in the masquerading plot, thusconfirming not only the poetic greatness of the modernist Portuguese poet, but also the circulation ofideas and literature.Keywords: heteronomy - despersonalization - modernism

Nas cartas trocadas entre Mário de Andradee Carlos Drummond de Andrade (1924) um dostemas em questão é o modernismo, mas ummodernismo que tenta romper com os valoresculturais europeus e fundar (com raízes originais)uma literatura representativa do Brasil, definidorada sua tradição, da sua língua e da sua etnia, ouseja, uma literatura tentando desprender-se do passadocolonial e ganhar (construir) alma própria.

Mário é o radical defensor dessapostura, colocando em risco a sua obra:�Estraçalho a minha obra. Escrevo línguaimbecil, penso ingênuo, só para chamar a atenção

dos mais fortes do que eu para este monstromole e indeciso que é o Brasil.�1 Sua atitudetambém se revela crítica em relação aos seuscontemporâneos ainda tão vinculados àmentalidade européia, porém acredita napossibilidade de tornar o Brasil universal a partirda concretização da sua nacionalidade.

Drummond não escapa à sua críticaprincipalmente por confessar-se francês: ��souhereditariamente europeu, ou antes; francês.Amo a França�agora, como acho indecentecontinuar a ser francês no Brasil, tenho querenunciar à única tradição verdadeiramenterespeitável para mim, a francesa�eu tenho que

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convencer-me a mim mesmo antes de convencer osoutros que devemos repudiar a experiência européia.�2

É possível perceber, por esses pequenostrechos, a dificuldade inicial do poeta gauche empensar uma poética desvinculada da atmosferafrancesa; um pouco mais distante, talvez, daeuropéia e, quase esquecida, da portuguesa. Dequalquer forma a sua poesia irá combater adependência em relação aos valores europeus ebuscará atingir criticamente a realidade concretado Brasil e dos seus intelectuais.

Distante três décadas da Semana de 22e um pouco mais do modernismo português, oque pensar de um poema que se refere aofundador do modernismo em Portugal,Fernando Pessoa? Conversa entre modernistasou crítica à modernidade da antiga metrópole? Aanálise do poema é que poderá revelar a intençãodo poeta, mas a qual intenção ele estaria sereferindo: à real ou à ficcional? De que poeta?

É no livro Claro Enigma - 1951 - queo poema �Sonetilho do Falso Fernando Pessoa�é publicado e o seu exame talvez possa decifraro mito ou enredá-lo em outras sete mil faces�

Sonetilho do Falso Fernando Pessoa

1. Onde nasci, morri.Onde morri, existo.E das peles que vistomuitas há que não vi.

5. Sem mim como sem tiposso durar. Desistode tudo quanto é mistoe que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,10. à deusa que se ri

deste nosso oaristo,

Drummond durante agravação do discoAntologia Poética, 1978

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eis-me a dizer: assistoalém, nenhum, aqui,mas não sou eu nem isto.

O título do poema chama atenção paradois dados fundamentais: um de ordem formal eoutro de ordem semântica. Formalmente temosum sonetilho: soneto composto de versos demedida curta. Drummond segue umaregularidade intocável tanto na metrificação,cujos versos são de seis sílabas, quanto noesquema de rimas: ABBA/ABBA/BAB/BAB.Mas qual motivo pode ter levado o poetabrasileiro a adotar uma forma clássicaintencionalmente diluída no metro popular �breve - e no tom se não jocoso ao menos um�tom menor�? Esse �tom menor� poderá ser

confirmado, pois a palavra - sonetilho - estávinculada à idéia de falsidade, contudo essaquestão será retomada no andamento da análise.

É sabido que a obra ortônima deFernando Pessoa privilegia os versos de medidacurta, acentuando assim a sua musicalidade,salientada na escolha do título �Cancioneiro�.Isso não faz da sua produção poética uma obramenor, ao contrário, apresenta dois poemas -entre outros da mesma grandeza - já vastamenteestudados, �Autopsicografia�e �Isto�3, que,tematizam e problematizam o fazer e o lerpoesia. E não seria esse último uma referênciadita (contradita) no verso final do poema deDrummond �mas não sou eu nem isto�? Idéiaque se somará à questão formal levantada,ampliando a análise.

Ora, a preocupação formal não é apenasuma técnica para mostrar a habilidade dos doispoetas; sua função ultrapassa os limitesestruturais para atingir a expressão de algo que sequer revelar, mas para isso é preciso destrinçar opoema. Como diria o filósofo italiano Pareyson aobra de arte �...é um tal fazer que, enquanto faz,inventa o por fazer e o modo de fazer� 4,portanto a forma será parte fundamental dopoema na sua completude e será posta emdiscussão a partir da análise da última estrofe.

O poema inicia-se com o uso do advérbiode lugar �Onde� - versos 1 e 2 (paralelismo)caracterizando o lugar (não - dito) e o tempo demodo ambíguo, simultaneamente lugar emomento de nascimento e morte. Nascer emorrer são situações vividas � minimamente -pois a origem do eu foi amputada pela morteprecoce; a construção dos versos, dois verbosseparados por vírgula, não alude a nenhumacontinuidade no passado, restando ao presente apossibilidade da existência. A existência, aqui, éoutra, não mais do eu original, pois a duração(imanente ao verbo existir) só é possível nomomento em que a morte daquele se realiza, oque disponibiliza um lugar para um outro eu -visto todos os verbos concordarem com a primeirapessoa do singular; logo é o outro quem dura.

A existência prescinde do passado e aoanulá-lo (anula, conseqüentemente, o eu original)promove a prioridade da ficção (�Sem mim

Fernando Pessoa na baixaLisboeta

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como sem ti/posso durar.� Versos 5 e 6).Declara-se a heteronímia, reforçada pelos versosseguintes em que o mascaramento é ditoconsciente e inconscientemente. Problematiza-sea situação. Se para Fernando Pessoa aheteronímia é um processo de despersonalizaçãodo qual possui conhecimento, já que é o criadore defensor de tal teoria, de que modo é possívelinterpretar a inconsciência em relação as outraspeles, disfarces, máscaras se a voz que se coloca éa de Pessoa, supostamente?

Retomando o título do poema, é defundamental importância pensar na adjetivaçãodada ao poeta português: �falso�. A relaçãoatributiva possessiva estabelecida entre sonetilhoe falso permite pensar em uma projeção sobre oeu lírico, organizada de modo ambíguo, pois afalsidade tanto pode vir de Fernando Pessoaquanto de Carlos Drummond de Andrade. Casovenha de Pessoa (consciente), o jogoheteronímico seria uma disposição de espelhosem que as imagens conotariam o seu caráter derealidade e de unidade, de modo a proteger aindividualidade do poeta e fazer valer a teoria dodistanciamento tão em voga no século XX, ouseja, assumiria o seu papel de criador desimulacros, até mesmo em relação ao seu euempírico (uma pseudo inconsciência). Casovenha de Drummond (inconsciente) seria acriação de uma outra pele - máscara - pessoanana tentativa de negar o mito, no momento emque se coloca como tal, assumindo a suaidentidade.

Surge, então, um novo simulacro: o �FalsoFernando Pessoa�. Situação aceita pelo eu líricoque se apresenta em primeira pessoa, portantoassumindo a criação do poema e de seu epítetoque será negada no último verso: �mas não soueu nem isto�. Porém, para se chegar a ela, énecessário percorrer o caminho da dissoluçãodessa voz que nasce individualizada, vai cedendoo lugar para o outro (�Onde morri, existo�-verso 2), nega o jogo da alteridade (�Desisto/detudo quanto é misto� - versos 6 e 7) até a recusado eu (último verso).

Percebe-se, portanto, dois discursos nopoema: o primeiro - superficial - que mimetizaFernando Pessoa e a sua criação heteronímica; osegundo - profundo - em que as pequenas

desconstruções da imagem de Pessoa aludem, àsavessas, ao seu jogo criativo e a suadespersonalização com a intenção de ironizar talteoria, que aparece brilhantemente definida nopoema �Isto�, daí a inconsciência do falso poeta.

Isto

Dizem que finjo ou mintoTudo que escrevo. Não.Eu simplesmente sintoCom a imaginação.Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passoO que me falha ou findaÉ como que um terraçoSobre outra coisa ainda.Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meioDo que não está ao péLivre do meu enleiosério do que não é.Sentir? Sinta quem lê!

O poema do ortônimo revela,belissimamente, a teoria do �poeta dramático�,cujo sentir está desvinculado da emoção, é aimaginação que cria o sentimento pertencente aoutro. Todos os sentimentos, antes de o serem,são criações, são sentimentos estéticos, o quealude não só à despersonalização, mas tambémao processo de duplicação - pois odistanciamento provoca uma deformação dosentimento real gerando uma outra possibilidadede sentir, o sentir fecundado na razão.Lembrando a primeira estrofe de�Autopsicografia�: �O poeta é umfingidor/Finge tão completamente/Que chega afingir que é dor/A dor que deveras sente.� , tem-se a confirmação da duplicação. Há duas dores: ador real e a dor estética.

O poeta traça uma importantediferenciação entre os vários modos de sentir,culminando com a despersonalização. Sentir coma imaginação difere do sentir com a emoção,destacando o uso da razão em oposição aosubjetivismo lírico impregnado na cultura

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portuguesa. Essa subjetividade só deve sercolhida na impressão do leitor, a quem cabetodos os sentimentos possíveis (�Sentir? Sintaquem lê?� - último verso), a ele é dado sentir, aopoeta dramático, não. Esse distanciamento nãodeve ser considerado um fingimento, umamentira, e sim, um modo de desconstruir arealidade por meio da arte. Nesse sentido, Pessoacompactua com o pensamento de Eliot pois��quanto mais perfeito for o artista, maisinteiramente separado estará nele o homem quesofre e a mente que cria; e com maior perfeiçãosaberá a mente digerir e transfigurar as paixõesque lhe servem de matéria - prima.�5

Se Pessoa é o simulacro de si mesmo,Drummond cria um novo a partir do já existente.Ora, diante das situações dialógicas é possívelinterpretá-las não apenas como uma conversaentre eu - outros (heteronímia), mas como umdiálogo que vai se construindo aos poucos, cujasvozes vão se definindo, sorrateiramente, numdiálogo impertinente.

A primeira estrofe apresenta,aparentemente, um eu lírico quase confessional,não permitindo nenhuma espécie deinterlocução, porém esse tom monológico seráquebrado, de modo quase imperceptível, pelatroca de eus que subjazem nos verbosnascer/morrer. Na segunda estrofe, a alteridade épercebida pela presença - definida - de umasegunda pessoa (�Sem mim como sem ti� - verso5). Presença que se concretiza na iminência dafalta, visto a duração (da obra) se sobrepor tantoao eu quanto ao tu ausentes.

O poema apresenta uma gradação naorganização, inclusão de pessoas. Agora é ditopelo eu lírico �nosso oaristo� - verso 11 e, é nomomento da assunção dialógica que ainterlocução se rompe, ironicamente, ao soar doriso da deusa, metáfora de uma situaçãoparadoxal - o oaristo. Considerando a �deusa�referência direta do poema, esse riso poderia serexplicado como uma autonomia da obra de arteem relação aos seus autores, ou seja, a existênciada obra de arte enquanto algo já acabado,construído, que ao mesmo tempo em que seliberta dos seus criadores, também permite asvárias leituras voltadas para uma única verdadeintrínseca a ela. O próprio jogo literário criado

por Fernando Pessoa seria, então, uma maneirade dialogar com a poesia, com o fazer poesia �daí o riso e a ambigüidade de Drummond. Odiálogo é impertinente pois não consegue definirclaramente as vozes que poderiam representá-lo,ora Fernando Pessoa e seus outros eus, oraDrummond e Pessoa, ora o poeta e o fazerpoesia, infinitamente.

A intimidade dessas vozes é portantoforjada e revela, na sua interioridade, uma únicapresença contrapondo-se ao espetáculo assistido.

Pelo que antes foi dito, na voz do eulírico, os extremos são excluídos -Fausto/Mefisto - e nessa condição antitéticasubentende-se a relação criador - criaturas, ou eu- outros; quebra-se, portanto, a lógica do diálogo.Não há segunda voz do discurso, nemhipoteticamente, pois o eu lírico nega a suacondição anterior. A posição de simulacropessoano enquanto aquele que aciona o dizer(quase confessional) sofre um revés: aquele quediz, agora, assiste passivamente. Abandona-se afalsa identidade para assumir-se uma outra. Seriaum outro simulacro?

Assim como no início, o poema apontaum lugar indefinido, mas revelador de umasituação: na última estrofe os advérbios de lugarretomam essa idéia de espacialização, numasituação de passividade - �assisto� - mas quecontém, paradoxalmente, um movimento - �além- aqui�- intermediado por um eu - �nenhum�.Esse falso movimento é revelador da ubiquidadedo eu lírico, agindo como uma espécie de lenteque permite focalizar vários objetos em espaçosvários; subentende-se, então, a separação do eulírico empírico em relação ao seu simulacro -agora objeto - o que permite aludir à poética dodistanciamento de Pessoa.

Esboça-se uma tentativa de cisão: o eulírico distancia-se de seu simulacro - o falsoFernando Pessoa - ao revelar sua passividade -�assisto� - diante de tal situação - �além/aqui�.Não perde sua identidade; os verbos autorizam aconcordância em uma mesma pessoa: �Eis-me adizer: assisto� - verso 12. A maneira como essesverbos são colocados permite fazer uma leituraem movimento contrário, ou seja, no momentoda passividade, em que se pressupõe ver, ouvir, oeu lírico resgata tudo o que foi dito; a exclusão, a

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duração, o mascaramento. A simultaneidade dasações causa um certo estranhamento -dizer/assistir - sugerindo uma fragmentação interna.

A cisão agora é definitiva e definidora:�mas não sou eu nem isto.� - verso 14. Oconectivo �mas� enfatiza a oposição declaradado eu lírico - �não sou eu�. O que era fragmentorompeu-se desvelando um outro eu, não maissimulacro nem falso, porém indefinido. Suaatitude é a de total negação: nega o dito e nega aonipresença, mergulhando tudo - �isto� - o quefoi demonstrado no discurso numa cínicavacuidade.

Espera-se, numa leitura convencional, queessa voz, problematizadora da alteridade, busqueuma definição, contudo permanece silenciosa.Define-se pela negação, pelo que não é,mantendo o leitor na obscuridade enquanto secamufla.

Em todas as estrofes, Drummondesculpe, nas imagens, o veio da ambigüidade, doparadoxal, do mutante, exceto no último versoem que nega não só a despersonalizaçãopessoana - �Isto�- mas o próprio fluxo da vozlírica intercambiável - �não sou eu�. Dissolve-seo falso simulacro (o que pode parecerredundante), a voz de Fernando Pessoa perde-see a voz dissonante é a que perdura. Não seria,aqui, a elaboração de um novo simulacro, não aosmoldes de Pessoa, mas aos de Drummond comofoi sugerido anteriormente?

É possível pensar em uma projeção deDrummond, pois o que está em questão,independente do ponto de vista lírico, é a criaçãoliterária, visto o sonetilho colocar em discussão oprojeto literário fundamental de Pessoa, aheteronímia. O que o eu lírico discute nomomento em que reafirma a sua anulação comovoz cindida, não só como suposto ortônimo (eseus heterônimos), são duas idéias fundamentaisda modernidade: a autonomia da obra de arte e adespersonalização em relação ao eu empírico.

Há um verso revelador dessa autonomialírica: �Sem mim como sem ti/posso durar.� -versos 5 e 6. Ora, é descartada a heteronímia, avoz de Pessoa, a voz de Drummond e a voz dequem quer que seja, pois a obra tem autonomiasobre o seu autor, as obras de arte são �comoorganismos vivendo de vida própria e dotadosde legalidade interna, e que propõe uma

concepção dinâmica da beleza artística6. Essaautonomia, só permitida na obra quando acabadae, portanto asseveradora da sua durabilidade,amplia-se e alcança a intemporalidade (aorganização social, histórica, humana fundadorasdo pensamento mobilizador do século XX, ouseja, a sua temporalidade é o termômetro para seestabelecer a intemporalidade como forma decristalizar uma idéia - nova idéia - fundadora deuma tradição - nova tradição) .

A idéia de um sujeito que sedespersonaliza para criar uma outra concepçãode realidade vigorou com bastante intensidade nofinal do século XIX e início do século XX e,Pessoa soube, como ninguém, se apropriar de talteoria e criar com brilhantismo o processo deheteronímia.

Se Drummond, de uma certa forma, negaesse processo (�Não sou eu nem isto�- versofinal), a partir da mesma negação afirma a suadespersonalização ao ter sido por instantes umavoz que não a sua; há, claramente, na elaboraçãodo �sentir� do eu lírico uma postura paradoxal.Essa voz, mascarada num tom confessional,agora se omite na indefinição. Drummond,sibilino, deixa o eu em suspenso. Pode-se, pelosilêncio, aludir à temática propriamentedrummondiana, um poeta que se quer reticenteem face ao mundo e as pessoas que o cercam, oucomo ele próprio se denominaria �um eu todoretorcido.�7

Se a possibilidade de definir a vozpresente no poema foi estancada, de que modo arelação entre a forma - sonetilho - e a idéia defalsidade - simulacro - anunciaria uma pista paradecifrá-la ?

O soneto clássico prima pelo rigor na suamétrica, decassílabo, e no seu esquema de rimas.O equilíbrio de sua forma não pode estardesvinculado de seu conteúdo, e juntamente coma organização das estrofes denotam umaestrutura compacta que assegura a medida dopensamento racional. Essa forma sofre umadistorção, ou seja, metrificação e esquema derimas, ainda moldados na regularidade,apresentam um desvio retomando a proximidadecom os metros populares. De todo modo, opoema respira tradição, ora pela vertente clássica,ora pela trovadoresca. A regularidade não está

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presente apenas no poema de Drummond, masno poema de Pessoa - �Isto� - também. Esse écomposto de três estrofes de cinco versos,metrificação em seis sílabas e esquema de rimasABABB/CDCDD/EFEFF, ou seja, dentro dasvariantes sonoras o esquema das rimas mantém-se.

São dois poetas conhecidosprincipalmente por suas poéticas modernistas, oque permite pensar em liberdade formal. Ora, oque foi feito de tal liberdade?

A regularidade interna de cada poema e acoincidência na metrificação, ambas de seissílabas, na sua tessitura formal, retomam umapossibilidade de harmonia no cosmo,característica da Idade Média, que já não pode serencontrada na vida moderna. Não pode serencontrada nem em Pessoa, o criador dasinfinitas máscaras, nem em Drummond, o euretorcido, pois a insolubilidade de suasinquietudes não lhes permite, daí a necessidadede garantir a inteireza, ao menos, externamente.

A explicação, aqui, limita-se a refletirsobre uma problemática dirigida aos dois autoresde modo simultâneo, o que é perfeitamentecabível. Porém, qual seria a intenção do poetabrasileiro ao criar um poema que constrói adissolução do eu (mais um paradoxo) que já sesabe falso?

Ao escolher como título de seu poemaduas definições - sonetilho e falso (parecer - nãoser), na verdade o poeta optou pordesconstruções: o sonetilho, que é uma espéciede diminuição da estrutura clássica; e a falsidade,que ironiza o processo heteronímico de Pessoaao criar uma voz que ilude, anunciadamente, atodos. Obviamente que para realizar taldesconstrução é imprescindível ter em mente oconhecimento da obra pessoana para, então,poder dissuadi-la de ser o que é, para deformá-la;revela-se, portanto pela contraposição, a presençade Fernando Pessoa como imagem literária nacriação de Drummond.

Assim, Drummond contrapõe o seu fazerpoesia ao de Pessoa (�mas não sou eu nem isto�),denunciando que a possibilidade dadesconstrução do mito só se realiza na suaconcretude, e por mais que se negue, o enigmalibera as suas luzes que vão retorcendo as facesdos homens.

NOTAS1Santiago, S. Correspondência Completa entreCarlos Drummond de Andrade e Mario deAndrade. Rio de Janeiro: Bem Te Vi, 2002. p. 51.2 Ibid., p. 59.3 Pessoa, F. Obra Poética...,Rio de Janeiro:Nova Aguilar, 1997 p. 164-165.4 Pareyson, L. Os Problemas da Estética. Trad.Maria Helena Nery Garcez. 2.ed. São Paulo :Martins Fontes, 1989. p. 325 Eliot, T.S. Ensaios. Tradução. Ivan Junqueira.São Paulo : Art Editora, 1989. p. 43.6 Pareyson, op. cit., p. 327 Sobre o tema do distanciamento emDrummond é interessante a leitura do ensaio deAntonio Candido “Inquietudes na Poesia deDrummond” In Vários Escritos. São Paulo :Duas Cidades, 1970.

Paola PomaProfessora de Língua Portuguesa da FACOM-FAAP. Doutora em Literatura Portuguesa-USP.

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Avenida Paulista: a verticalizaçãodos casarões

Neiva Pitta Kadota

"São Paulo, neste quase futuro é assim. Espaços infinitose incontidos, que fazem calar, emudecem e surpreendemnossa racionalidade.� Mario Sergio Cortella

ResumoEste artigo tem por objetivo resgatar de forma sintética a Avenida Paulista, um ícone de nossa

metrópole, em dois momentos: no presente e no passado, como uma homenagem aos 450 anos de SãoPaulo.Palavras-chave: Avenida Paulista - casarões e arranha-céus - memória e modernidade

AbstractSo as to pay homage to the 450th anniversary of SãoPaulo, this article aims at briefly revisiting

Paulista Avenue - an icon of our metropolis - in two moments: past and present.Keywords: Paulista Avenue - mansions and skyscrapers - memory and modernity

É quase noite. Néons. Buzinas. Outdoors.Luzes de mercúrio criam fantasmas apressados.Vultos se cruzam pelas calçadas. Nos semáforos,faces contraídas, olhares inquietos. Corposdistraídos se tocam e se retraem. Ora sedesculpam, ora se agridem em silêncio...ou não.Homens de terno, e seus note-books, se arriscamem meio a olhares suspeitos. A multidãoprossegue. Como em fotogramas, as imagens sesucedem. Um braço estendido, feminino etrêmulo, busca por um táxi. Passa lotado. Novatentativa. Um outro pára, a porta se abre e afigura esguia desaparece de cena. Outras surgem.Ouve-se com indiferença o som da freadapróxima. Os transeuntes atravessam em blocos

compactos diante da luz verde. Ninguém se olha,ninguém se vê. Os altos edifícios repetem comsuas luzes os cenários fractais de metrópolesestrangeiras. De vez em quando, o clic de umfotógrafo atento os imortaliza em um registromidiático. É Nova Iorque? Não. É São Paulo.Estamos na Paulista. E na "mais paulista dasavenidas".

Em frente ao Prédio da Gazeta,ruidosos estudantes buscam Objetivos. Naslaterais, gigantescos e retilíneos edifícios deescritórios, e de apartamentos residenciais,acompanham a rotina caótica de moradores,profissionais e turistas. Do lado oposto, amodernidade arquitetônica e a ousadia da arte -

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mesclada ao poder da elite financeira - se fundemno mármore róseo e no vítreo azulado doedifício do Citibank. É o Citicorp. Centro deendinheirados correntistas. Outras e mais outrasconstruções com ele se harmonizam ou sechocam em sua geometria. A similitude, contudo,está presente nas linhas e materiais dos arrojadosconjuntos que se aglutinam, de ambos os lados, àgeografia desse espaço urbano único. Formampor toda a sua extensão uma longa linhaluminosa, tecida de concreto, aço e asfalto,coberto em sua negritude pelas rodasinternacionais de BMWs, Hondas ou Mercedes-Benz. Paradoxalmente à sua potência,exaustivamente anunciada pelos fabricantes,deslizam lenta e nervosamente por entrefachadas iluminadas, painéis digitais, indicadoresde horas, de temperatura e qualidade do ar. Deseu interior, o motorista visualiza sem emoção mais asmilionárias e intermitentes propagandas animadas.

Logo mais à frente, rompendo com averticalidade, o Masp - Museu de Arte de São

Paulo. O mais arrojado espaço da arte paulistana,o maior vão livre até então projetado - por ondeà época de sua concepção se podia ver o centroda cidade -, inscreve-se como vanguardamuseológica e é assinado por Lina Bo Bardi.Projeto esse, contudo, adulterado em seu piso enos espelhos d'água na década de 90, quando desua reforma, mutilando, assim, o projeto originalda arquiteta italiana que, com Pietro Maria Bardi,ali construiu uma obra e um sonho. "A cirurgiaplástica rejuvenescedora feriu e deformou traçosfisionômicos que deveria preservar", diz oCaderno T, ao comentar a polêmica reforma.Essas são, sem dúvida, as cicatrizes de umacidade em contínua mutação.

De fronte ao Masp, o Trianon. Umquase bosque, resquício da Mata Atlântica,circundado por toda uma estrutura de edificaçãotambém verticalizada. Um point na longa históriadessa avenida. Próximo a ele, no cruzamento daAvenida Paulista com a Rua Augusta, o ConjuntoNacional. Nele, entre cafés, pequenas

Ga

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Edifício Citicorp, doCitibank. Retirado do livroSão Paulo 2000

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lanchonetes e antigas lojas, vários elevadoresdemocratizam o espaço. Por eles transitam dealtos executivos a simples funcionários oucuriosos estrangeiros O conjunto, que se divideem núcleos residenciais e comerciais, é, ainda,ponto de circulação de privilegiados idosos defamílias tradicionais que praticam a filosofia deDomenico de Masi do "ócio criativo". O pólo demaior atração, porém, continua sendo a antigaLivraria Cultura. Ali, exatamente como há longosanos, todas as artes e as técnicas estão muitopróximas. Os leitores vorazes saboreiam ostítulos. Alguns buscam obras sobre a antigüidade;outros, dicionários de línguas, as mais diversas; eainda outros, poesia e literatura para espanto dosespecialistas em ciências exatas. Em destaque,também, livros de Arte e, em alguns deles,imagens e relatos da cidade de São Paulo.

Nesses compêndios, descobre-se umaoutra cidade, existente apenas na memória depoucos e nos registros histórico-fotográficos. Sãotextos e imagens - fotos, cartões postais,aquarelas e croquis - que resgatam o surgimentode São Paulo e também da Avenida Paulista,concebida pelo urbanista uruguaio JoaquimEugênio de Lima e inaugurada em 1891, e astransformações nela ocorridas no percurso de

pouco mais de um século: um salto dos casarõesaos arranha-céus.

Almeida Prado na sua Crônica de Outroraafirma que "O Viaduto do Chá, aberto aotrânsito em 1893, era ainda uma novidade e aAvenida Paulista, novinha em folha, uma atraçãoturística" (AIAP, pág.12).

Hoje ela está renovada, redesenhadapela modernidade e pós-modernidade de seusprojetos arquitetônicos, e continua a atrair oolhar curioso de turistas que por ela transitam àluz do dia ou dos néons e nem suspeitam, ou selembram mais, que ela abrigou outros sonhos emoutras moradias: as mansões dos imigrantes eabastados, símbolos da aristocracia paulistana.

Perpassando esses registros, fatoscuriosos são uma constante. Na obra de JorgeAmericano São Paulo naquele tempo (1898 - 1902),pode-se ler :

"Seguindo pela Rua da Consolação, meioestrada meio rua, cortava-se um dos extremosda recente Avenida Paulista, despovoada, comalgumas chácaras, como a de Büllow echegava-se ao novo Hospital doIsolamento"(AIAP, pág.12).

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Avenida Paulista, entre oprédio do MASP e o parqueTrianon. Retirado do livroSão Paulo 2000.

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Hoje, o local despovoado no final doséculo XIX foi substituído pelo cenário urbanode incessante e diuturno movimento de veículose pessoas, e o Hospital mencionado é referênciapara todo o país na área de doenças infecto-contagiosas, portanto de isolamento, conformeseu nome de origem, além de abrigar um doscentros cardiológicos mais importantes, o INCOR.

Um fato pitoresco dessa época é oanúncio publicitário de uma propriedade naregião, registrado no Diário Popular, sob o título"Chácara na Avenida Paulista", com os seguintesdados:

"Aluga-se uma chácara e casa, a casa tem 8cômodos e um bom galinheiro e cocheira, águade poço e da Cantareira; a chácara está bemplantada de verduras e bem arborizada emede 1.500 metros de terra quadrados.Aluga-se em boas condições. Para informação naRua Marechal Deodoro, 32"(AIAP, pág.12).

Aos que chegaram depois, é impossívelassociar a chácara descrita pelo jornal àsmegaedificações que agora ocupam as laterais daPaulista, apontando ousadamente para o infinitoazul. É como se aquele fosse apenas um espaçoimaginário, uma lenda, e não um recorte de umanão tão longínqua realidade.

Um estranhamento possível seria opedido de autorização de reforma, em 1897, doarquiteto Julio Saltini, para a residência deFrancisco Matarazzo : "Projeto de um estábulo,casa de arreios e galinheiros". Ou autorização

para "aumento de galinheiro", na residência deVon Büllow.(AIAP, pág.12). O que revela ser aAvenida Paulista no fim do século XIX, e iníciodo século XX, um espaço considerado distanteda região central - certamente pela inexistênciaaqui de veículos automotores à época -, maspropício tanto à construção de propriedadesrurais quanto de moradias urbanas de famílias deelite, cercadas de jardins, horta, pomar,cavalariças e também galinheiros.

Estranho mundo nos parece aquele depouco mais de um século. Que residências seriamessas, retiradas posteriormente do cenáriopaulistano pelo efeito das demolições? Aospoucos, porém, começamos a visualizá-las. Ecom nitidez, graças aos registros que fotógrafos,urbanistas e historiadores, entre outros, nos deixaram.

No mesmo período em que eramsolicitadas autorizações para as reformasmencionadas, seguindo os moldes da culturaeuropéia, surgiam também os primeiros projetospara construção de chalets que designavam casasrurais de montanha, na Suíça, mas a maioria delesnão passou da fase de projeto. O que realmenteganhou impulso na Paulista foram as construçõesde alto luxo, para poucos privilegiados, comtorreões para se avistar do seu cume os vales e ascolinas que envolviam a cidade de São Paulo.Traçando um paralelo com o nosso tempo,teríamos as coberturas dos luxuosos edifícios quepropiciam o mesmo espetáculo cênico, hoje, mas,como antes, apenas àquela ínfima parcela dasociedade que conseguiu atingir o topo.

Com a criação da Escola Politécnica de

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Avenida Paulista no ano de 1900

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S. Paulo, em 1894, nasce oficialmente o curso dearquitetura, e o nome de Ramos de Azevedo,formado na Bélgica, em 1878, como seuorganizador. Até então, os arquitetos eramestrangeiros e a sua influência se fez por longosanos, o que justifica a impressão de um espaçoeuropeu na avenida dos abastados, a AvenidaPaulista. Mas não apenas europeus eram osprojetos, pois de várias partes do mundo eram

procedentes os nossos "arquitetos-engenheiros",assim como os imigrantes que aqui chegavam.Estes, com a riqueza rapidamente adquiridacontratavam profissionais que concretizavam osseus sonhos arquitetônicos. Assim nascia eprosperava o ecletismo na estética urbana dessasingular Avenida.

Segundo Benedito Lima de Toledo, emÁlbum Iconográfico da Avenida Paulista,

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Avenida Paulista no ano de 1900

Residência Numa de Oliveira-trecho entre a Rua Pamplona ea Alameda Joaquim Eugênio deLima. Retirado do AlbúmIconográfico da Avenida Paulista.

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"Palacetes rodeados de parques e jardins,construídos, em geral, de acordo com anacionalidade do proprietário: os de estilomourisco, em sua maioria, pertenciam aárabes, claro! Os de varandas de altascolunas, que imitavam os grandes 'palazzos'romanos antigos, denunciavam - logicamente -moradores italianos. Não era, pois, difícil,pela fachada da casa, identificar anacionalidade do dono".(AIAP, pág.18).

A diversidade de estilos e a exuberância,externa e interna, personalizavam a construção,embora muitas vezes fossem resultantes decriações do mesmo escritório de projetos. Umbom exemplo são as residências de JaymeLoureiro e Numa de Oliveira, ambas na esquinada Paulista com a Alameda Campinas. Umadiante da outra, sendo produtos dos sóciosRamos de Azevedo, a primeira, e de RicardoSevero a segunda. Vejamos como as descreveBenedito Lima de Toledo:

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Carnaval na Avenida Paulista

Carnaval na Avenida Paulista

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"A residência Jayme Loureiro vincula-se aoclassicismo francês com seus componenteshabituais: mansarda, 'porte-cochère', umacomposição equilibrada. Seus jardinsestendiam-se até a Rua São Carlos doPinhal, com estufa, caramanchão e beloarvoredo. Já a residência Numa de Oliveiraprende-se ao movimento neo-colonial e eramesmo a mais completa realização dessemovimento na Avenida"(AIAP pág.89).

Esse movimento buscava resgatar umestilo que não fosse estrangeiro, ou que sepretendia "nosso", a ponto de ser recorrente aexpressão "Se é para copiar estilos, pelo menosvamos copiar o que é nosso" (AIAP pág.89). Naverdade o que se considerava "nosso", naquelemomento, era a arte portuguesa dos séculosanteriores.

Assim, muitas residências nobres foramcompondo a artéria urbana que se dividia entre ainfinidade de estilos e a riqueza da vegetação.Seus habitantes vestiam-se com roupas e tecidosimportados e foram os primeiros a adquirir oscarros que aqui começavam a chegar para, comeles, desfilar no corso que ali se realizava nosfinais de semana e no carnaval.

Ainda que a Paulista entre os anos de1927 e 1930 tivesse recebido um novo nome:Avenida Carlos de Campos, como homenagempóstuma ao Presidente de Estado, a populaçãoinsistiu no retorno ao seu nome de origem e foiatendida.

Hoje, a Paulista não mais abriga osantigos e luxuosos casarões. Não mais é umespaço arborizado. A sinalização e os prédiosinteligentes os substituíram e passaram a orientaros nossos caminhos e a nossa postura. Seupassado se reduz a um registro iconográfico e auma história que é relatada em livros, exposiçõese documentários. Contudo, ela não perdeu aatração e a magia inexplicáveis que sempre acaracterizaram. Continua um ícone na cidade deSão Paulo, apesar das Berrinis, ou das novas"Wall Streets" que a sucederam, porque suahistória e a da cidade estão entrelaçadas e opaulistano, nos momentos de revolta ou deeuforia, para exteriorizar suas emoções conheceum só destino: Avenida Paulista.

BIBLIOGRAFIAInstituto Takano de Projetos. Caderno T, SãoPaulo, Número 10 - agosto/2001.OPPIDO, Gal. São Paulo 2000, São Paulo,ImagemData, 1999.TOLEDO, Benedito Lima de. Álbum Iconográficoda Avenida Paulista, São Paulo, Editora Ex-Libris,1987.

Neiva Pitta KadotaProfessora de Lingua Portuguesa da FACOM-FAAP. Doutora e Mestre em Comunicação eSemiótica, PUC-SP. Autora, entre outras obras,de A Construção da linguagem.

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Residência de JaymeLoureiro-Trecho entre aRua Pamplona e a AlamedaJoaquim Eugênio de Lima.Retirado do AlbúmIconográfico da Avenida Paulista

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A crônica-Uma flor de dois maridos

ResumoA crônica se revela como uma forma de resgate e memória de uma época, isto porque possui

em sua própria natureza um forte vínculo com o Tempo. Precursora da historiografia, tem, a princípio,os feitos humanos como matéria-prima. A partir de sua experiência no folhetim do século XIX, passa aser o cotidiano seu principal objeto de análise. Torna-se então híbrida ao interpretar literalmente o fatosimples do dia-a-dia, imprimindo assim tratamento estético ao episódio, ora pela penetração poética, orapela vertente do humor crítico.Palvras-chave: história - resgate - cotidiano - hibridismo - crítica social

AbstractThe chronicle reveals a form of rescue and memorys of an era, by having a strong connection

with Time. Using humans acts as prime material, it�s a modern history precursor. In a following momentit has the day-by-day as an object of analisys because of the experience in the folhetim of the XIXcentury. By interpreting literaly a simple fact, it becomes ambigüos. It also reveals an estetical treatmentto the episode by the poetical penetration or by the critical humor vein.Keywords: history - rescue - day-life - hybridism - social criticism

Vera Maria D�Agostino

A crônica é uma espécie de espiã da vida.Busca através do texto breve captar o pitoresco eo irrisório na vulgaridade diária de cada um. Masa crônica nem sempre foi assim. Apesar deaparentemente fácil quanto aos temas e alinguagem, há uma certa dificuldade em defini-la.Diz Paulo Rónai: � Para qualquer brasileiro, apalavra crônica tem um sentido claro einequívoco: designa uma composição breve,relacionada com a atualidade, publicada emjornal ou revista.�1 Esse significado estáenraizado de tal forma que poucos sabem ou

mesmo se lembram de outro, bem mais antigo,que passa despercebido, que é o da narraçãohistórica em ordem cronológica. A crônicaconstituiu-se, em um primeiro momento, numtipo de texto narrativo centrado em fatoshistóricos, organizados em ordem cronológica, jáque carrega em seu próprio nome a noção detempo � Chronos ( O senhor dos Tempos). Então,afinal, como se pode definir a crônica?

São muitos os seus significados. Mas,como afirma Davi Arrigucci Jr., � todos implicama noção de tempo. Todos representam uma

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forma de resgate e memória- um registro da vidaescoada.�2

A princípio, como já citado, a crônicafoi histórica, como por exemplo, a medieval, aqual se ocupava de fatos documentados para aposteridade, como forma de registro . E, por essavia, nas palavras de Arrigucci, �tornou-seprecursora da historiografia moderna. Tal gênerosupõe uma sociedade para qual importa aexperiência progressiva do tempo, um passadoque possa concatenar significativamente ahistória, enfim, e não apenas um tempo cíclico ourepetitivo, implicando outra forma de narrativa-o mito. Presa ao calendário dos feitos humanos enão às façanhas dos deuses, a crônica podeconstituir o testemunho de uma vida, odocumento de toda uma época ou um meio deinscrever a História no texto. Além disso, aodistanciar-se no passado, pode se transformar emfonte de imaginação: gestas românticas e outrasformas literárias nasceram dela, como o dramahistórico elizabetano, de que Shakespeare deixoutão grandes exemplos.3

É, pois, com a acepção histórica que acrônica chega, muitos séculos depois, aojornalismo. Configura-se como um embrião dareportagem, ou seja, uma narrativacircunstanciada sobre fatos observados pelojornalista num determinado espaço de tempo.

O termo será usado no Brasil de muitasformas, correspondendo, às vezes, ao que, maistarde, chamaríamos de reportagem setorial: umacobertura jornalística de uma instituição ouesfera da sociedade- crônica policial, esportiva,legislativa, jurídica etc. Muitos jornalistasatribuíram às notícias, durante muito tempo, adenominação de crônica, influenciados,provavelmente, pela raiz histórica que lhe deu origem.

A idéia de registro da vida diária surge apartir do folhetim e é exatamente com essacaracterística que a crônica brasileira é inaugurada.O folhetim do século XIX não tinha as mesmasfeições da crônica de hoje. Era uma seção dejornal dedicada aos mais variados assuntos. Umaseção de miscelânea, que quebrava a rotina dopesado estilo dos jornais de então.

Segundo Afrânio Coutinho, o folhetimno Brasil começou com Francisco Otaviano noJornal do Commercio, do Rio de Janeiro. Seus

seguidores são José de Alencar, Manuel Antôniode Almeida, Raul Pompéia, entre outros. Mas érealmente em Machado de Assis que a crônicabrasileira adquire personalidade. O autorafirmava que ao praticar esse �gênero�, sentia-se escrevendo em �brasileiro�4, o que écompreensível, pois a crônica, pela próprianatureza, configura-se a partir de umcompromisso com a linguagem coloquial,cotidiana, afastando-se, dessa maneira, do estiloempolado e discursivo presentes tanto na prosajornalística como na literária da época.

Assim, a crônica brasileira vaiformando seu perfil ambígüo, submetendo osfatos da matéria jornalística a um tratamentoestético, pela elaboração da linguagem, pelapenetração psicológica e social, bem como pelaforça poética ou pelo humor, fazendo, dessamaneira, jornalismo e literatura dialogarem.

É pelas mãos do carioca João do Rioque a crônica reforça seu lugar na imprensabrasileira. Foi flanando pelas ruas do Rio deJaneiro, no início do século XX pelos morros evielas da malandragem carioca, que o autorregistrou a vida diária, estampada no folhetim.Moldou uma nova sintaxe, mais literária por sinal,ao reportar com arte a sua experiência viva e tãoíntima com o universo mundano da cidade,emprestando um caráter urbano à crônica brasileira.

Longos anos se passaram e muitosautores, depois de Machado de Assis e Jõao doRio, lidaram com a crônica até que esta seafirmasse como uma modalidade de perfilmarcadamente nacional e como uma artebrasileira. Nos anos 30, muitos autores derenome se dedicaram à crônica como Mário deAndrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummondde Andrade e aquele, que, voltou-se,praticamente, de maneira exclusiva, para esse�gênero�: Rubem Braga. Como afirma AntônioCândido: �o panorama cultural brasileiro daquelemomento havia se modificado sensivelmente,decorrente do processo de industrialização eurbanização. A Semana de 22 serviraanteriormente como baluarte de um movimentopela brasilidade, influenciando tanto a linguagemjornalística como a literária a descobrir asimplicidade e a fala de nosso povo. Por outrolado, nossos jornais adquirem, nesse período,

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feições empresariais, incorporando a agilidade e odinamismo dos novos tempos. É, então, nessepanorama que a crônica ganhará lugar especial naimprensa brasileira, como representante legítimodessa nova fase de mutações da culturabrasileira.�5

Na noção de crônica moderna, o querestou daquela semente historicista foi, semdúvida, o espírito documental, a idéia de registrodos fatos que compõem um tempo histórico, sóque agora esses fatos serão recolhidos do tecidodo cotidiano e filtrados pela imaginação esensibilidade do cronista.

Por ter nascido no jornal, a crônicamoderna herdou deste o caráter detransitoriedade e o impulso primeiro da urgênciae da pressa. Herdou também um destino efêmerode , quem sabe, servir de papel de embrulho paraalgum leitor distraído, que nem sequer antestinha-lhe deitado os olhos. Porém, toda essafeição prosaica e fugaz, sob aparente singeleza, eum certo tom de �irresponsabilidade� escondeuma grande sensibilidade, um humordesconcertante, uma refinada ironia, uma agudacrítica na capacidade de observar com leveza efotografar com exatidão o mundo.

A crônica moderna se alimentará deepisódios, encontros , desencontros,reminiscências, reflexões, incidentes, enfim, umuniverso de experiências vividas na realidade ouna imaginação do cronista-poeta, do cronista-humorístico, do cronista-repórter, do cronista-crítico ...

Ora namorando com o jornalístico, oracom literário, a crônica, essa senhora - Flor dedois maridos- mergulhará hibridamente napaixão pela urbe, equilibrando-se entre o fio docoloquial das frases cantadas e dançadas nasconversas populares, e o fio literário damensagem elaborada, da escolha apurada dasconstruções lingüísticas, ou de refinadas imagensmetafóricas. E, percorrendo a cidade, o cronista,em seu flanar, observa agudamente o grandecenário e se torna um criador mais sensível eespontâneo ao reportar e registrar os momentosque formam nossa história cotidiana, dandograça e colorido à nossa rotina, às vezes tãomaçante e desbotada, fazendo-nos refletir compoesia sobre a vida.

NOTAS1Ronái, Paulo. Um gênero brasileiro: A crônica. In:Mello, José Marques de: A opinião no jornalismobrasileiro. Petrópolis, Vozes, 1985.2 Arrigucci Jr., Davi. Fragmentos sobre crônica.Vol.46. São Paulo, Biblioteca Mário de Andrade,1985.3 Idem, Ibiden, p. 2.4 Coutinho, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio deJaneiro, Sul-Americana,1971, cap. 50: Ensaio eCrônica.5 Cândido, Antônio. A vida ao rés- do- chão. In:Para gostar de ler. Vol V, São Paulo, Ática, 1980.

BIBLIOGRAFIACândido, Antônio. Para gostar de ler. Vol

V, São Paulo: Ática,1980.Coutinho, Afrânio. A literatura no Brasil.

Rio de Janeiro: Sul-americana, 1971.Mello, José Marques de. A opinião no

jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1985Rio, João do. A alma encantadora das

ruas. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.Sá, Jorge de. A crônica. Série Princípios. SãoPaulo: Ática, 1992.

Vera Maria D�AgostinoProfessora de Língua Portuguesa da FACOM-FAAP. Pós-graduada em Língua Portuguesapela Universidade São Judas e Mestre em Artespela ECA-USP.

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Transmutações do cotidianoSandra Regina Nunes

ResumoResumo: As narrativas fantásticas brasileiras ainda são pouco conhecidas no Brasil e na América

Latina. Filiam-se a este gênero, escritores como Murilo Rubião, J.J. Veiga, Nelson de Oliveira e JorgeMiguel Marinho. Aqui pretendo deter-me mais no último autor, pela releitura que faz em algumas de suasobras de ícones dos meios de comunicação de massa e do cânone de literatura ocidental.Palavras-chave: literatura brasileira - comunicação ficcional - narrativa fantástica - intertextualidade,influência.

AbstractBrazilian fantastic narratives are very little known in Brazil and in Latin America. Some of the

writers in this genre are Murilo Rubião, J.J. Veiga, Nelson de Oliveira and Jorge Miguel Marinho. Thisstudy aims at analyzing specially Jorge Miguel Marinho due to his rereading, in some of his work, of afew icons in mass means of communication and of the Western Literature canon.Keywords: brazilian literature - ficction - fantastic narratives - influence - intertextually.

As narrativas fantásticas brasileiras aindasão pouco conhecidas no Brasil e na AméricaLatina. Murilo Rubião, escritor mineiro, só torna-se um autor consagrado na década de 70, com olivro O Pirotécnico Zacarias, apesar de ter iniciadosua carreira literária em 1947, com o Ex-Mágico.Talvez o estranhamento de Sérgio Buarque deHolanda, em Visão do Paraíso, com a ausência do�gosto da maravilha e do mistério� nos escritosquinhentistas dos portugueses, possa serestendido ao pequeno número de estudos sobreestas formas narrativas.

A editora Casa da Palavra lançourecentemente uma boa coletânea de narrativasfantásticas, Páginas de Sombra, Contos FantásticosBrasileiros, recuperando histórias de alguns denossos principais escritores � Carlos Drummond

de Andrade, Orígenes Lessa, Lygia FagundesTelles e Murilo Rubião entre outros. Naatualidade dois nomes podem ser lembrados:Nelson de Oliveira e Jorge Miguel Marinho. Aquipretendo deter-me mais no segundo, pelareleitura que faz em algumas de suas obras deícones dos meios de comunicação de massa e docânone de literatura ocidental.

Nem Kafka, nem Borges. O escritorpaulista sempre afirmou ser tributário de ClariceLispector. Jorge Miguel Marinho declara-sedescendente de Murilo Rubião quanto ao gênerode sua obra, mas não vê muitos pontos decontato entre os seus contos e os do escritormineiro. Mas, acima de tudo, a opção pelofantástico de Marinho é por uma poética danarração. Apesar da negação da influência, a

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relação borgiana entre o milagre e o universo dosastrônomos é uma imagem forte para a obradeste escritor, que traz para o seu universoliterário uma mescla das leis naturais eimaginárias.

Em �El arte narrativo y la magia�1, oescritor argentino Jorge Luis Borges, opta poruma concepção de arte narrativa como artifício,ou construção. Ou por uma narrativa queapresenta aventuras extraordinárias e que recusaa �poética� do realismo. Não é a recusa darealidade, mas sim da forma mimética de retratá-la. É a �primitiva claridade da magia�, e suaordem �diversa, lúcida e atávica� que interessa aoescritor argentino. É esse princípio - �essaperigosa harmonia, essa frenética e precisacausalidade� � que rege a narrativa de JorgeMiguel Marinho.

Outra aproximação possível douniverso borgiano é pela leitura de suas obrascomo um processo de escrita que reflete sobre simesma. A modernidade traz um gesto para apoesia, assim como para as artes como um todo,que é o de voltar-se para si própria. Trata-se deum movimento de reflexão que coincide muitasvezes com o fazer artístico-literário. Tornando-seum espaço de reflexão, a literatura acopla ficçãoe crítica, fundindo, confundindo e distendendoaté o limite a natureza dessas duas realidades.Nesse movimento introspectivo, acentua seutraço de comentário. �Um texto é uma leitura deoutro texto�, afirma o crítico norte-americanoHarold Bloom, em sua teoria da influênciapoética. Mas não é só este o traço que define amodernidade. Tal processo de desleitura vemcarregado pelo desejo adâmico de apagar opassado e iniciar tudo a partir de si próprio.Jorge Miguel Marinho destaca-se por reescreverem seus contos personagens do cotidiano,personagens literários e personagens dos meiosde comunicação de massa. Sua carreira é iniciadacom a publicação, em 1981, do livro de poesia Otalho. A poesia, contudo, não será a opção literáriado autor. Nestes vinte anos de produção literária,Jorge Marinho torna-se um prosador singular.Compõem sua obra os livros de contos: Escarcéudos corpos (1984), Na curva das emoções (1989),

Mulher fatal (1996), Enquanto meu amor não vem(1998), Nem tudo o que é sólido desmancha no ar :ensaios de peso (2001) e 13 maneiras de amar, 13histórias de amor (2001). Para teatro, escreveu em1981, Hóspede da memória. Sua obra, também, écomposta de histórias para jovens: A menina que

sonhava e sonhou (1986), Um amor de maria-mole(1987), Dengos e carrancas de um pasto (1987), O casodas rosas amarelas e medrosas (1991), Sangue no espelho(1993), Te dou a lua amanhã... Uma biofantasia deMário de Andrade (1993.), A visitação do amor(1995), O Cavaleiro da Trístissima Figura (1996), Oamor está com pressa (2002).

A frase �existe coisa mais fantástica doque a vida real?� permeia a obra do escritorpaulista. O mundo como forma de leitura, comopossibilidade de escrita e reescrita. Jorgereescreve personagens do cotidiano, reescrevemitos da música, do cinema, da vida. Reescrevetudo o que vive e lê; e parece não desejar chegarao final de sua escrita, passando ao leitor asensação de prolongar ao máximo o desfecho deseus contos.

Em Escarcéu dos Corpos � sete histórias decarne e osso, de 1984, inicia sua carreira de contista.Este livro surge num contexto em que escritorescomo Jorge Luis Borges, Julio Cortazar, GabrielGarcía Márquez entre outros, com suas prosasclassificadas como fantástica ou realistamaravilhosa, já estão consagrados pelo público epela crítica.

O segundo livro de contos de JorgeMiguel Marinho é Mulher Fatal (Histórias de saborexplícito), publicado em 1996. Além da vida deEdith Piaf, em �As mil e uma noites de EdithPiaf �, contada pela protagonista do conto,Raquel, temos outras vidas que serão refeitascomo a de Mae West, em �Um Spotlight paraMae West�; a de Fernando Pessoa, em �A últimagravidez de Fernando Pessoa�; a de MarilynMonroe, em �Pontualmente com MarilynMonroe às 4�; a de Josephine Baker, em �A caretade Josephine Baker�; a de Elis Regina e CarmemMiranda, em �No quarto com duas pequenasnotáveis� e a de Dalila, Cleópatra e Helena deTróia, em �Elas matariam o presidente�.Personagens que vivem na região central dacidade de São Paulo.

Em Mulher Fatal o cotidiano é retratadomesclando personagens comuns com íconesculturais. As mulheres fatais que protagonizamos contos desta coletânea, assim são consideradaspela possibilidade imensa de transformação destecotidiano. O sentido de fatal é ampliado, deMarilyn Monroe, Mae West e Josephine Bakerpara as outras mulheres destas histórias. Estemonopólio feminino é quebrado por umhomem: Fernando Pessoa, em �A última gravidezde Fernando Pessoa�.

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Ilustração retirada dolivro �O cavaleiro datristíssima figura�

O subtítulo histórias de sabor explícitoironicamente faz alusão às histórias eróticas. Osabor aqui é o da narrativa, que prende a atençãodo leitor e o prazer vem das histórias contadas.Esse é o fantástico de Jorge Miguel Marinho; umfantástico que implode os limites entre as belasletras e o best seller.

Desta coletânea, o conto que nospareceu mais significativo, como imagem dapaixão pela escrita e da necessidade de reescrita,é �As Mil e uma Noites de Edith Piaf �. Nele énarrada a história da prostituta Raquel, que sediferencia das demais por ter a música presenteem seu corpo. Isto a torna objeto de desejo degrande parte dos clientes da casa. Tocando o seucorpo o outro pode ouvir uma música suave queemana de suas mãos, seios, pernas. Esta mulher-musical tem como paixão a música e a vida deEdith Piaf. Um dia aparece um estranhocavalheiro, que pede a dona do prostíbulo quecada dia lhe envie uma moça diferente parapassar a noite com ele. Na manhã seguinte, elelhes envia flores e pede que não retornem nuncamais. Todas as moças se apaixonam, sem aesperança de voltar a ver o desconhecido e demais uma vez passar a noite com ele. Raquel, noentanto, consegue quebrar essa rotina de morteslúdicas. E através da história, ou do contar ahistória, de Edith Piaf tem suas noitesprolongadas.

Impossível não associar o conto às Mile Uma Noites. Raquel é uma Sherazade dostempos modernos. Sua �morte� é prolongadapelo desejo de um leitor sedento por uma novahistória. Mas essa não é a única referência aoutro texto: Raquel vem do maior de todos ostextos : a Bíblia. Raquel é a personagem bíblicapor quem trabalha Jacó durante sete anos. Oconto dialoga, ainda, com outras histórias; EdithPiaf é mais uma destas personagens femininaspresentes na grande literatura do mundo e davida e que passa para os livros.

Se o que não existe é só o que não podeser pensado, então Jorge Miguel Marinho recriao universo das histórias em quadrinhos comoextensão do nosso cotidiano. Apesar de serconsiderado infanto-juvenil, o livro O Cavaleiroda Tristíssima Figura é não só uma releitura dosuper-herói Batman, mas também de D. Quixotede la Mancha. Neste livro, Batman tem umdiscurso da ordem, mas vive uma vida marginal.Além do suspense, a linguagem do livro ébastante parecida com a dos gibis, o que dá uma

agilidade à narrativa. O autor trabalha comdiferentes tipos de discurso, testando aspossibilidade e formas da linguagem. Neste livro,como em Mulher Fatal, Jorge Marinho abre espaçopara outra forma de influência: a dos meios decomunicação de massa. O escritor em uma de suasentrevista expõe que pela ausência de livros seuuniverso imaginário era habitado pelas personagensdas novelas de rádio.

Em Nem tudo o que é sólido desmancha no ar,Jorge Miguel Marinho recupera uma das obras maisimportantes dos anos 80 Tudo o que e sólido desmanchano ar, de Marshall Berman. Pertencentes a gênerosdistintos � ficção e não ficção � a aproximaçãopossível se dá pela temática dos seus contos: asquerelas intelectuais. Contos que são uma mesclade ensaio crítico, sátira e ficção, espelhando doisoutros livros, os dos intelectuais brasileiros PauloEduardo Arantes e Roberto Schwartz. Mesmonesta mescla ensaística, o contista não abandona ogênero que é a marca de sua obra literária: ofantástico. São três contos: �O fio da miada� �alusão à obra de Paulo Arantes: O Fio da Meada;�Diálogos intermitentes�, referência ao espaço dedebate de �temas impertinentes�, criado pela

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PUC/SP e Folha de S.Paulo; e o último�Mensagem�, referência a Duas Meninas deRoberto Schwartz.

�O fio da miada� tem por subtítulo afrase: (Tem gato na filosofia da USP) e traz trêsepígrafes distintas: �a de um discípulo nãoidentificado de Heidegger�

O que importa em Filosofia é não confundir oser do ente de Heidegger, com o ser doente do dr.Shiba Ali;

a �de Pitigrilli�

O Especialista é aquele que sabe tanto de umaparte, até saber tudo de nada;

e a da obra de PauloArantes, O fio da meada, �a Obra�

Pegue-me, abra-me e leia-me novamente �assim como o leitor me encontrou hoje,encontrar-me-á sempre.

Para o filósofo-protagonista deste conto,J. G. de Oliveira Jorge, as epígrafes sãofundamentais �como focos de iluminação dopresente relato�, que pretende fazer uma crítica àobra de Paulo Arantes, pelo que �ela significa deataque injusto e ensandecido contra um domíniodo conhecimento � a Filosofia, é lógico...�. J. Jorge� nome também do autor � é professoraposentado de Filosofia da UNIC � UniversidadeInternacional de Cuiabá.

O escracho toma conta de todo o conto,e o autor parece ir criando sem a preocupaçãocom a lógica do seu discurso. O que JorgeMarinho faz ao escolher alguns dos significantesque se distanciam do significado do mundo doconhecimento é distanciar mais ainda o nome dacoisa, mas, internamente, é o absurdo a lógicaúnica deste universo.

Mais do que crítica a um texto específico,o texto apresentado por J. G. de Oliveira Jorge éum relato do que lhe passa em uma noite de sexta-feira, 13, em 1996. Antes de começar o relato, ofilósofo, mesmo não querendo �misturar ciênciacom ficção�, cita os versos de Fernando Pessoa:

�Não sou nada/ Nunca serei nada/ Nãoposso querer nada/ À parte isso, tenho emmim todos os sonhos do mundo.

Os detalhes apresentados no texto - dia,mês e hora - também são uma grande paródiadas narrativas de horror, que pretendem causarmedo ou a hesitação no leitor, reforçando aidéia de sátira:

... o dia era 13, fato que, se não justificaos acontecimentos, ao menos se oferececomo sinal pragmático,sintomaticamente sinistro e nefasto, dashoras infernais que viria eu a passar.�

O tom burlesco e jocoso continua quando ofilósofo compara estrutura do texto de PauloArantes com os dos manuais de Astrologia:

�... organizadas invariavelmente através deestruturas frasais com um meteórico fragmentode idéia em forma de mote nuclear, espécie dealicerce suspenso e volátil empregado como basederrapante para o encadeamento sem fim deapostos, apóstrofes, adjuntos, apêndices e apartesnuma viagem a parte alguma em busca de Deuse sua época do Olimpo a Juquiá � descobri umaestratégia muito semelhante ao jargão dalinguagem esotérica, mais identificada com odiscurso poroso dos manuais de Astrologia, cujaflexibilidade semântica se distende ao máximo e,para não se derramar para o além de entrecapas,é implacavelmente aprisionado pelo apelo a um�tu� vago e evasivo, posto que não sou eu, nemos senhores, nem ninguém.�

Denunciar o poder, a moral, os costumes,faz parte do papel das obras humorísticas de todosos tempos, já que �o humor permite que se fale dequase tudo na posição onipotente de denunciar o

que se sabe sobre o Outro�.2 O discurso chistosopode ser visto como um código diferenciado nacultura do riso, pois trabalha com a materialidadeda palavra, provocando um deslocamento. Há aocorrência do chiste na medida que emissor ereceptor reconheçam a nova significação comomensagem dentro do código. Se cabe ao leitoratualizar a leitura, caberá ao receptor efetivar ochiste.

Inúmeras são as teorias elaboradassobre o riso, elemento comum de todos osfenômenos cômicos e humorísticos. Rimos do quenos remete ao que é imensamente humano, masprincipalmente do que provoca um desequilíbrioou uma perda de ritmo de uma cadeia lógica,causando uma nova cadeia.

Jorge Miguel Marinho, através de seuduplo J. Jorge, além do risível de algumas querelasintelectuais, denuncia uma impossibilidade presenteem qualquer discurso, inclusive nos filosóficos: a dese tornarem concretos, pois são apenas �palavras

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Ilustração retirada dolivro �O cavaleiro datristíssima figura�

ilust

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cia

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ão

que não transcendem a sua camada sonora, quantomais a realidade bruta da matéria...� Nietzsche em�Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-

Moral�,3 ao questionar o que é consideradoverdade para o homem, pergunta �O que é umapalavra?� E responde: �A figuração de um estímulonervoso em sons�. Neste ensaio o filósofo alemão

toca na intangibilidade do real e na incapacidade dese definir algo pelo seu �nome�. Nietzsche dirá queo que imaginamos verdade na realidade não passade ilusão, ou de uma mentira, que adquiriu o statusde verdade através do esquecimento humano daorigem desta verdade.

O humor como perda de um equilíbrio e

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quebra de uma cadeia lógica pode ser associado aofantástico, na medida em que um e outroestabelecem ligações absurdas entre as coisas. Oumais que isso, subvertem uma ordem vigente. Ostrês ensaios do livro não abandonam essa suafunção de transgressão. Há no sentido baktinianodo termo uma carnavalização do discursoacadêmico. Desta postura surge um diálogo àsavessas com os textos precedentes � os de PauloArantes e Roberto Schwartz. Jorge Marinho comos seus ensaios cria um canto paralelo, ou umaparódia. Deslê e reescreve seus �precursores�,questionando formatos tradicionais. Assim, a

designação de ensaio que se restringiu a estudoscríticos, volta-se para o formato de tentativa eexperiência. Experiência, principalmente, nosentido de construção de uma nova escrita,desestruturadora e transformadora, queantropofagicamente devora os textos e os lança emum novo contexto.

NOTAS1 Jorge Luis Borges. �El Arte y la Magia�.Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: EmecéEditores, 1990.

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Sandra Regina NunesProfessora da FACOM-FAAP. Doutora emComunicação e Semiótica pela PUC/SP, autora dapesquisa O Fantástico na Literatura Brasileira: deÁlvares de Azevedo a Jorge Miguel Marinho, peloCentro Universitário FIEO.

2 Este livro é uma coletânea de diferentes autores;aqui encontra-se seu conto: �Foi bom te ver JamesDean�.3 Almeida, Jane de. Achados Chistosos da psicanálise naescrita de José Simão. São Paulo: Editora Escuta;EDUC, 1998.4 Nietzsche, Friedrich. �Sobre Verdade e Mentirano Sentido Extra-Moral�. Obras incompletas. Seleçãode textos de Gerard Lebrun. Tradução e notas:Rubens Rodrigues. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Fotografia de São Paulo, do livro

�Te dou a Lua amanhã�. Nestabiografia as personagens de Máriosaem em sua busca.

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O grito surdo da Mata Atlântica Sueli Regina Agustini

ResumoEste artigo tem como objetivo principal ressaltar a urgência da aprovação pelo Senado do Projeto

de Lei da Mata Atlântica (PL 107/03), o qual tramita pelo Congresso Nacional há 12 anos. Tambémdiscute aspectos da exploração do bioma e, a partir do conceito de responsabilidade social, destaca aimportância de uma iniciativa não-governamental para sua recuperação : o Clickárvore.

Realizado por entidades ambientalistas e patrocinado por um grupo de empresas, o Clickárvoreé um programa interativo de reflorestamento da Mata Atlântica, com espécies nativas. A participação étotalmente gratuita e aberta a qualquer pessoa que tenha acesso à internet. Cada plantio virtualcorresponde ao plantio real de uma muda, cujo desenvolvimento será monitorado.Palavras-chave: Mata Atlântica - responsabilidade social

AbstractThis article aims to stand out the urgency for Senate approval of Atlantic Forest law project (PL

107/03), which has been in the National Congress for 12 years. It also points out some aspects about thenature exploration and, based on the concept of social responsibility, shows the importance of a non-governmental initiative for its recuperation: Clickarvore.

Organized by environmental entities and sponsored by a group of companies, Clickarvore is aninteractive reforestation program with native Atlantic Forest plants. The participation is totally free andallowed to any person that access web. Each virtual plantation corresponds to a real one and itsdevelopment is followed by specialists.Keywords: Atlantic Forest - social responsibility

Há um ano, a sociedade brasileira aguarda,pacientemente, que o Senado aprove o Projeto deLei da Mata Atlântica (PL 107/03), que trata dautilização e da proteção desse bioma1 ,, o qualconstitui a floresta nacional mais ameaçada.

É urgente uma mobilização efetiva para

exigir que o Senado aprove esse projeto, jáaprovado pela Câmara dos Deputados, no dia 3 dedezembro de 2003, após 11 longos anos de tramitação.

Muito se fala a respeito da MataAtlântica, mas, na verdade, o nível deconhecimento e de consciência sobre sua

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importância ainda é extremamente baixo. Afinal,quantos brasileiros sabem que restam apenas7,3% de sua formação original 2? Que 60% dapopulação brasileira3 vivem nos limites de seudomínio ? Que ela é considerada um dos cincoprincipais hotspots4 do mundo ? Ou, ainda, que foiclassificada como Reserva da Biosfera pela Unesco5 ?

Pela indiscutível importância dessebioma, todos os cidadãos brasileiros devem lutarpela sua preservação e recuperação, filiando-se aentidades ambientalistas ou, simplesmente,apoiando iniciativas como a "Mobilização pelaaprovação do PL da Mata Atlântica", organizadapela Fundação SOS Mata Atlântica e pela Redede ONGs da Mata Atlântica. Para participar,basta acessar o site6 e expressar o apoio.

Quantos brasileiros atentaram para aimportância da aprovação do Projeto de lei daMata Atlântica (3285/92), o qual trata dautilização e proteção do bioma, e que somentefoi aprovado no dia 3 de dezembro de 2003, após11 longos anos de tramitação pelo CongressoNacional ?

E com relação às empresas localizadas naregião ? Quantas estão contribuindo para a suapreservação ?

Responsabilidade SocialA preocupação e o cuidado efetivo com

o meio ambiente, seja por parte de pessoas, dasociedade ou de empresas, é uma dasconseqüências de cada cidadão e/ou organizaçãocompreender e assumir a sua parcela deresponsabilidade social.

Este conceito apresenta o papel dasorganizações como agentes sociais, como co-produtoras da realidade sócio-econômica e,portanto, responsáveis pela implantação,manutenção e/ou elevação do nível dascondições adequadas à vida em sociedade. Essavisão é discutida por Duarte & Dias (1986, 39)que declaram: �A responsabilidade social é oobjetivo social da empresa somada à sua atuaçãoeconômica. Ela é a inserção da organização nasociedade como agente social e não somenteeconômico�. E concluem: �existeresponsabilidade social quando a empresareconhece que é responsável não apenas peranteseus associados, mas perante toda a sociedade�.

No Brasil, o conceito deresponsabilidade social começou a ser difundidode fato por intermédio do Instituto Ethos7 deResponsabilidade Social e Empresas, fundado em1998. A entidade defende que a prática daresponsabilidade social se caracteriza pelapermanente preocupação com a qualidade éticadas relações da empresa com seus colaboradores,clientes e fornecedores, com a comunidade, como poder público e com o meio ambiente.

Alguns trechos de uma palestraproferida pelo presidente do Instituto Ethos,Oded Grajew8, e atual Assessor Especial daPresidência da República, enfatizam que aresponsabilidade social deve fazer parte domodelo administrativo adotado pela organização.

O que é esse conceito, essa cultura deresponsabilidade social das empresas ?

�Estamos tratando da relação ética, darelação socialmente responsável da empresaem todas as suas ações, em todas as suaspolíticas, em todas as suas relações. Issosignifica responsabilidade social da empresaem relação à comunidade, aos seusempregados, aos seus fornecedores, aosfornecedores de seus fornecedores, aosfornecedores dos fornecedores de seusfornecedores, ao meio ambiente, ao governo, aopoder público, aos consumidores, ao mercado,aos acionistasQuando nos propomos a abarcar todas essasrelações, estamos nos referindo à forma degestão empresarial. A responsabilidade socialempresarial é uma forma, uma filosofia degestão das empresas.�

A responsabilidade social embasa atendência mais moderna do marketing,denominada Marketing Social ou, de acordo coma sugestão de Philip Kotler9, Marketing Societal.O conceito desta tendência é a administração e aoperação das organizações, conforme ascondições dos macro e micro ambientes demarketing, em consonância com a manutençãoe/ou elevação da qualidade de vida da sociedade.Portanto, além de realizarem ações humanistas,as empresas não podem agredir o meio ambiente

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e devem contribuir para a recuperação de áreasimpactadas.

Em relação à causa da Mata Atlântica, éoportuno destacar uma iniciativa pioneira, cujaproposta é permitir a contribuição tanto de

pessoas, quanto de empresas, de modo simples,rápido e interativo. Trata-se do ProgramaClickarvore, que consiste no plantio virtual demudas nativas de árvores daquele bioma, as quais

são efetivamente plantadas e fiscalizadas duranteseu crescimento.

Antes de detalhar o Programa, mostra-se necessário apresentar as conseqüências daResponsabilidade Social e aprofundar a questãoda Mata Atlântica, a fim de que sejam dirimidastodas as dúvidas sobre a urgência de a sociedadee as empresas assumirem a responsabilidade deproteger essa floresta.

ConsciênciaEm todo o mundo, o campo da

responsabilidade social corporativa mudoudrasticamente ao longo das últimas três décadas.Nos anos 70, a responsabilidade social eraconsiderada uma questão secundária, marginal eradical, conforme observa Marlin10 (inMcIntosh, 2001, p.xi). Hoje, nos paísesdesenvolvidos, a sociedade civil organizada exigeque esse conceito faça parte da estratégiacorporativa.

Além do aspecto social propriamentedito, pesquisas comprovam que empresas emarcas que assumem uma postura socialmenteresponsável são preferidas pelos consumidores e,conseqüentemente, suas ações são maisvalorizadas.

Uma pesquisa realizada pela consultoriaitaliana Value Partners11 junto a investidoreseuropeus, em dezembro de 2002, revela que 64%deles consideraram importante para umaempresa ter sua imagem vinculada àresponsabilidade social.

Nos Estados Unidos, essa mesmaconsultoria constatou que as empresas comcertificado de responsabilidade social tiveramuma valorização, em média, 30% maior do queas que não possuem a certificação, no período de2000 a 2002. Em paralelo, cerca de 50% dasociedade norte-americana guia-se pelo consumoconsciente, afirma Hélio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu12.

No Brasil, ainda não existe certificaçãona área de responsabilidade social, mas oconceito já foi inserido no leque de atividadesempresariais. �[...]cresce, aceleradamente, apercepção das organizações quanto aosprincípios orientadores dessa nova virtudeempresarial.�13

Na visão do Instituto Ethos, as

Área de Domínio da MataAtlântica - 1500 e 2000

1500 : A Mata Atlânticaestendia-se por mais de 1milhão de Km² ecorrespondia a 15% da áreado país.

2000: Restam apenas 7,3%do bioma

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enormes carências e desigualdades sociaisexistentes no Brasil imprimem à responsabilidadesocial empresarial uma importância ainda maior.A sociedade brasileira espera que as empresascumpram um novo papel no processo dedesenvolvimento: �sejam agentes de uma novacultura, sejam atores de mudança social, sejamconstrutores de uma sociedade melhor.�14

Também é possível afirmar que asempresas devem contribuir para melhorar aqualidade de vida da comunidade em seu entornoou da sociedade como um tipo dereconhecimento por utilizar os recursos públicos.

No processo de difusão ereconhecimento das ações de responsabilidadesocial, merecem destaque as iniciativas de ONGsdesse setor, de editoras e entidades que criaramprêmios. Entre as organizações, estão o InstitutoEthos � Prêmio Ethos-Valor; o Grupo deInstituições, Fundações e Empresas � Gife e oInstituto Akatu. Já entre as editoras e entidades,encontram-se: Associação de Dirigentes deVendas e Marketing � ADVB � Prêmio Top deMarketing Social e Ecológico; Editora Referência� Prêmio Marketing Best Social e Editora Abril �Prêmio Super Ecologia e Prêmio Planeta Casa.

Em relação à influência daresponsabilidade social sobre o consumo no País,constatou-se que os consumidores conscientessão os mais preocupados com a coletividade esentem-se responsáveis pela melhoria dacomunidade em que vivem. Eles sãoconsumidores ativos, pois punem as empresasque adotam atitudes com as quais nãoconcordam e recorrem aos órgãos de defesa doconsumidor quando se sentem prejudicados.15

Durante o processo de decisão decompra de produtos e serviços, 20% dosconsumidores brasileiros consideram iniciativasde preservação do meio ambiente e decontribuição com o bem-estar social. Eles optampor empresas que sejam modelos deresponsabilidade social16.

Por fim, na área específica desimpatizantes com causas ambientais, éimportante ressaltar que eles sãoeconomicamente ativos e formadores de opinião.Seu perfil é o seguinte: homens e mulheres, entre22 e 45 anos, que possuem alta escolaridade

(superior incompleto ou mais) e residem emcentros urbanos17.

BiodiversidadeDistribuída ao longo da costa atlântica do

Brasil � daí a razão de seu nome - a MataAtlântica perfazia, na época do descobrimento,uma extensão18 de 1.306.421 km². E tambématingia áreas da Argentina e do Paraguai, naregião sudeste.

Este bioma cobria uma grande parte de17 Estados: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,Pernambuco, Paraíba, Sergipe, Alagoas, Bahia,Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, Rio deJaneiro, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná,Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Alguns aspectos da vegetação sãodescritos por Dean (1996, p.32):

�A extraordinária diversidade de suasárvores, uma das marcas características dafloresta [...] é acompanhada pela diversidadede outras espécies de plantas. [...] Árvores[...] que se elevam a 35 metros ou mais [...]podem ter mais de cem anos.[...] A florestasecundária [...] pode atingir exuberânciapróxima à da floresta intocada.[...].�

Hoje, a área de domínio da MataAtlântica, que, inicialmente, correspondia a 15%do território brasileiro, está reduzida a 1,06%dessa área19, totalizando cerca de 91,4 mil km².Isto significa que, agora, ocupa apenas 7,3% 20 desua área original.

Para compreender a gravidade dodesmatamento a que foi submetida a floresta,basta citar uma comparação apresentada pelo siteda Campanha Desmatamento Zero21 :

�Uma área de Mata Atlântica

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correspondente a um campo de futebol édestruída a cada quatro minutos. Entre1985 e 1990, a média de devastação foi de420 campos de futebol/dia. Já entre 1990 e1995, esse número baixou um pouco: para390 campos de futebol/dia.�

Apesar de toda a devastação que sofreu,a extensão da Mata Atlântica ainda é muitosignificativa, pois corresponde a duas vezes otamanho da França, ou mais de três vezes aAlemanha ou 4,5 vezes a Grã-Bretanha,conforme estimativa da ConservationInternational22.

Mesmo em sua condição atual, a MataAtlântica apresenta um alto grau debiodiversidade e de endemismo23. Conforme oAtlas dos Remanescentes Florestais da MataAtlântica � Período 1995/2000 (2002, p. 3), obioma �é um complexo e exuberante conjunto deecossistemas24 reconhecido nacional einternacionalmente no meio científico. Possuigrande importância, por abrigar uma parcelasignificativa da diversidade biológica do Brasil.�

O ex-secretário do Meio Ambiente doEstado de São Paulo, Fábio Feldmann, enfatizouessa riqueza ambiental25 :

�A Mata Atlântica possui os dois maioresrecordes mundiais de diversidade botânica,variando entre 454 e 476 espécies de árvorese arbustos em um único hectare, dados obtidosno sul da Bahia e no norte do Espírito Santo.Esses números representam mais do que todaa diversidade botânica da Alemanha.�

HotspotNesse cenário de riqueza e endemismo,

observa-se, por outro lado, elevado número deespécies ameaçadas de extinção. Infelizmente, aMata Atlântica é um dos biomas mais ameaçadosdo mundo, devido às constantes agressões ouameaças de destruição dos habitats nas suasvariadas tipologias e ecossistemas associados.

As sete espécies de animais brasileirosconsideradas extintas em tempos recentesencontravam-se distribuídas na Mata Atlântica26.E das 202 espécies de animais ameaçadas deextinção, 171 ocorrem no bioma27.

Em certos grupos, como as aves, 10%das espécies encontradas no bioma se enquadramem alguma categoria ameaçada. No caso demamíferos, o número de espécies ameaçadas deextinção atinge, aproximadamente, 14%28.

Conforme estimativa do ex-secretáriodo Meio Ambiente do Estado de São Paulo,Fábio Feldmann, �mais de 70% de todas asespécies consideradas oficialmente ameaçadas noBrasil ocorrem na Mata Atlântica�.29

Devido às suas características, a MataAtlântica foi classificada pela ConservationInternational como um dos cinco principaishotspots mundiais: as áreas mais ricas emdiversidade de espécies de fauna e flora e maisameaçadas do planeta. Segundo estudo realizadopela entidade em 1988, a Mata Atlântica ocupavao segundo lugar, perdendo apenas para asflorestas de Madagascar, na costa da África, com95% de sua área desmatada.

Atualmente, existem 25 hotspots emtodo o mundo. A identificação dessas áreas levaem consideração que a biodiversidade não estáigualmente distribuída ao redor do planeta. Deacordo com a entidade, cerca de 60% de todas asespécies de plantas e vertebrados (aves,mamíferos, anfíbios e répteis) estão concentradasem apenas 1,4% da superfície terrestre. Essaabordagem prioriza as ações nas 25 regiões maisricas em biodiversidade e, ao mesmo tempo, maisameaçadas em todo o mundo. No Brasil, além daMata Atlântica, há outro hotspot importante: oCerrado, cuja devastação já atingiu 80% de suaformação original. Como exemplo dodesmatamento sofrido por este bioma, cita-se oEstado de São Paulo: em 1972, havia 1.030.000hectares; enquanto em 1992, apenas 280.000hectares30.

EndemismoO critério mais importante na

determinação dos hotspots é a existência deespécies endêmicas, isto é, que são restritas a umecossistema específico e, portanto, sofrem maiorrisco de extinção. É o caso do mico-leão-dourado,encontrado apenas no estado do Rio de Janeiro e emmais nenhum outro lugar do mundo.

A Mata Atlântica está entre as cincoregiões mundiais que apresentam os maiores

Mico-Leão Dourado

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índices de endemismo de plantas vasculares evertebrados (incluindo peixes).

Em conjunto, os mamíferos, aves,répteis e anfíbios, que ocorrem na região, somam1.807 espécies, sendo 389 endêmicas. Issosignifica que a Mata Atlântica abriga,aproximadamente, 7% das espécies conhecidasno mundo nesses grupos de vertebrados. Comrelação às plantas, das cerca de 20 mil espécies daregião, 8 mil são endêmicas31.

Outro critério importante para a seleçãodos hotspots é o grau de ameaça ao ecossistema.Enquadram-se nessa classificação as bioregiõesonde 75% ou mais da vegetação original tenhamsido destruída. Hoje, a Mata Atlântica possuiapenas 7,3% de sua extensão original.

Patrimônio Nacional e Reserva da Biosfera A Mata Atlântica foi considerada como

Patrimônio Nacional pela Constituição Federalde 1988, por meio do Parágrafo 4º, do Artigo 225da Constituição Federal32, onde se lê:

�A Floresta Amazônica brasileira, a MataAtlântica, a Serra do Mar, o PantanalMato-Grossense e a Zona Costeira sãopatrimônio nacional, e sua utilização far-se-á,na forma da lei, dentro de condições queassegurem a preservação do meio ambiente,inclusive quanto ao uso dos recursosnaturais.�

Três anos depois, em 1991, o bioma foireconhecido como a primeira reserva da biosferado Brasil pela Unesco (Organização das NaçõesUnidas para Educação, Ciência e Cultura),passando a ser a Reserva da Biosfera da MataAtlântica.

Em novembro de 2002, essaorganização ampliou a extensão da Reserva,incluindo todas as áreas preservadas do bioma33.Essa ampliação � a quinta desde a classificação daReserva - incluiu partes da Mata da região Sul,que, antes, não eram consideradasinternacionalmente como reserva.

Entre 1991 e 1993, por solicitação doGoverno brasileiro, a Unesco havia efetuadoquatro ampliações da parcela dos remanescentesde Mata Atlântica reconhecidos como Reserva da

Biosfera34.A classificação como reserva da

Biosfera pela Unesco �é o mais altoreconhecimento que pode ser alcançado por umaárea com essas qualificações em nívelinternacional�. (CORR A35,199536)

Importância sócio-econômicaNa região da Mata Atlântica, vivem

atualmente 60% da população brasileira, ou seja,com base no Censo Populacional 2000 doInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística �IBGE, são 108 milhões de habitantes em mais de3.406 municípios, que correspondem a 62% dosexistentes no Brasil.

Desse total de municípios, 2.528possuem a totalidade dos seus territórios nobioma, ou seja, 46%. Além desses, 270 têm maisde 70% de seus territórios na Mata Atlântica e130, mais de 50% de sua área dentro do bioma,segundo dados extraídos da malha municipal do IBGE(1997), atualizada com a nova Divisão Municipal doBrasil pela Geoscape Brasil (2001)37.

Diversos rios nascem na Mata Atlântica.Além de milhares de pequenos cursos de águaque afloram em seus remanescentes, a região écortada por rios grandes como o Paraná, o Tietê,o São Francisco, o Doce, o Paraíba do Sul, oParanapanema e o Ribeira de Iguape, que sãomuito importantes para a agricultura, a pecuária epara todo o processo de urbanização do país.

A Mata Atlântica faz fronteira com obioma Campos Sulinos, que se estendem desde osul de São Paulo até o sul do Rio Grande do Sul,constituindo-se de estepes (Campanha gaúcha) ede savana estépica (Campanha)38. O Estado doRio Grande do Sul concentra a maior extensãode Campos sulinos, possuindo mais de13.000.000 hectares, em diferentes estágios deconservação.

Os domínios da Mata Atlântica e dosCampos Sulinos concentram não só as maiorescidades brasileiras, como também os maisimportantes pólos industriais, petroleiros eportuários do país, que geram 70% do ProdutoInterno Bruto � PIB nacional39.

De acordo com informações da Redede ONGs da Mata Atlântica - RMA, os principaisbenefícios proporcionados pela Mata Atlântica

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são:-proteger e regular o fluxo de mananciaishídricos, que abastecem diversas cidades e asmaiores metrópoles do país, garantindo ofornecimento de água para mais de 120 milhõesde brasileiros 40 ;-assegurar a fertilidade do solo;controlar o clima local;-proteger escarpas e encostas das serras;-preservar um patrimônio histórico e cultural devalor inestimável;-garantir a conservação de diversas comunidadesindígenas, caiçaras, ribeirinhas e quilombas.

Processo de ocupação x desmatamentoO processo de ocupação do Brasil levou

a Mata Atlântica e os Campos sulinos a umadrástica redução de sua cobertura vegetalprimitiva, resultando em sérias alterações para osecossistemas que compõem o bioma, devido, emparticular, à alta fragmentação do habitat e perdade sua biodiversidade.

Dean (1996) aponta vários aspectosdeste processo :

�Esta história da Mata Atlântica não é umahistória natural; ou seja, não é umaexplicação das criaturas da floresta e dasrelações que estas mantêm entre si. É, antes,um estudo da relação entre a floresta e ohomem. (p.28).

A história florestal corretamente entendida é,em todo o planeta, uma história de exploraçãoe destruição. (p. 23). O avanço da espécie humana funda-se nadestruição de florestas que ela está malequipada para habitar. (p. 24).�

Pau-brasil

A partir da descoberta do Brasil, a 22 deabril de 1500, começou a história da devastaçãoda Mata Atlântica, que, naquela época, recobriacerca de 1,1 milhão de km², 12% do territóriobrasileiro, conforme dados do InstitutoSócioambiental � ISA.

Essa história revela o objetivoexplorador dos colonizadores do Brasil. Aocontrário dos Estados Unidos, que receberampessoas interessadas em se instalar no continenteamericano, cultivando as terras, o Brasil sórecebeu exploradores, que desejavam encontrar eextrair recursos naturais que fossem valorizadosna Europa, a fim de comercializá-los.

�Um dos primeiros atos dosmarinheiros portugueses que [...] alcançaram defloresta do continente sul americano [...] foiderrubar uma árvore�. (DEAN, 1996, p. 59).

Não se sabe de qual espécie era essaprimeira árvore a ser derrubada. Mas,rapidamente, os portugueses encontraram osexemplares de pau-brasil.

�Essa nau mensageira, ou talvez a expediçãoseguinte, em 1501, foi a primeira a carregaramostras do primeiro dos tesouros florestaisdo Brasil. Tratava-se de uma madeira corantechamada ibirapitanga � árvore vermelha -pelos tupis, que com ela coloriam suas fibrasde algodão. Os portugueses a chamavam depau-brasil, provavelmente a partir de umabrasa. (DEAN, 1996, p. 62).�

�Terra Brasilis�, como ficou conhecidaa nova colônia de Portugal, teve a origem de seunome diretamente ligada à exploração do pau-brasil e,portanto, ao início da destruição da Mata Atlântica.

A partir do tronco do pau-brasil,produzia-se um corante avermelhado muitoutilizado pela indústria têxtil da época. Aexploração da madeira foi um sucesso, mas

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�exigiu a derrubada de aproximadamente doismilhões de árvores durante o primeiro século dotráfico�. (DEAN, 1996, p. 64).

Além do pau-brasil

O desmatamento, entretanto, não se limitouao extrativismo dos primórdios da colonização: oprocesso prosseguiu pelo Nordeste. Seja com aimplantação dos engenhos de açúcar,consumindo enormes quantidades de lenha emsuas fornalhas, ou de fazendas de gado.Paralelamente, o desmatamento aconteceu noSudeste. Em primeiro lugar, também com asgrandes derrubadas para a pecuária. Em seguida,com a extração de ouro e diamantes. No séculoXIX, a principal causa de desflorestamento daMata Atlântica foi o plantio de café. �Tal comoo século XVIII havia sido para o Brasil o séculodo ouro, o século XIX seria o século do café.Para a Mata Atlântica, entretanto, a introduçãodessa planta exótica significaria uma ameaça maisintensa que qualquer outro evento dos trezentosanos anteriores�. (DEAN, 1996, p. 193)

O cultivo de café desencadeou outrasatividades econômicas que também contribuírampara sacrificar o bioma, como a urbanização, aindustrialização e a implantação de ferrovias.

A introdução de implementos de ferropermitiu intensificar o desmatamento. Dean(1996, p. 93) refere-se ao machado e à enxada. Oprimeiro �[...] tornava bem mais fácil derrubarfloresta primária e não capoeira.[...]�. A segundapermitia o cultivo por períodos prolongados,além de aumentar as faixas cultivadas de um para2,5 ou cinco hectares por trabalhador.

Desmatamento no século XXSegundo Dean (1996, p. 278), a primeira

metade do século XX testemunhara o cerco finalda Mata Atlântica. Nesse período, a principalcausa da acelerada destruição florestal foi osignificativo crescimento da população residentena região. De acordo com dados registrados peloautor (idem, p. 254), a população do sudestebrasileiro cresceu de cerca de 7 milhões para 22 milhões.

Os recursos energéticos e materiais dafloresta remanescente continuavam comovaliosos estoques de mercadorias.

Nos anos 50, a proposta de�desenvolvimento econômico� ganhou cada vezmais adeptos e defensores:

�O desenvolvimento econômico era mais queuma política governamental; significava umprograma social de enorme abrangência, energiae originalidade. A idéia do desenvolvimentoeconômico penetrava a consciência da cidadania,justificando cada ato de governo, e até deditadura, e de extinção da natureza.(DEAN, 1996, p. 281)�

Quase todas as transformações físicas eeconômicas dos anos 50 aos anos 70, que podemser chamadas de desenvolvimento, foramconfinadas à região da Mata Atlântica.

Década de 70No decorrer da década de 70, o bioma

continuou a sofrer os impactos da políticaeconômica. Duas das soluções apresentadas pelogoverno brasileiro para a chamada �crise dopetróleo�, deflagrada em 1973, quando os árabesquadruplicaram o preço do �ouro negro�implicaram aumento da derrubada de árvores.Essas soluções foram o programa de conversão decana-de-açúcar em álcool combustível (Proálcool)e a expansão do desenvolvimento hidrelétrico.

A expansão das hidrelétricas foi o fatormais prejudicial à Mata Atlântica. A construção damaior hidrelétrica do mundo, Itaipu, próximo à fozdo Iguaçu, começou em 1973, como um projetobinacional com o Paraguai. Uma de suasconseqüências foi a inundação de 17.130 km² devegetação nativa, na região sudeste do Brasil.

Anos 80 e 90O Atlas dos Remanescentes Florestais da

Mata Atlântica mostra que, no período de 1985 a1990, houve uma perda de 6,5% da coberturaflorestal; enquanto que, de 1990 para 1995, a taxade desmatamento foi de 5,7%.

No total, de 1985 a 1995, mais de ummilhão de hectares foram desmatados em dezestados dentro do domínio do bioma. Esse totalsignificou o desflorestamento de mais de 11% dosremanescentes da Mata Atlântica.

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Proteção Apesar da destruição da Mata Atlântica

ter sido deflagrada no começo da colonização doBrasil, as principais iniciativas para a proteção dobioma surgiram somente a partir da década de 70.E se intensificaram na década de 80, com ocrescimento e profissionalização das ONGs. Nessadécada, também começou uma intensamobilização da sociedade civil pela preservação daMata Atlântica.

Em 1990, a Fundação SOS MataAtlântica e o Instituto Nacional de PesquisasEspaciais � INPE, em parceria com oInstituto Brasileiro de Meio Ambiente e dosRecursos Naturais Renováveis � Ibama,concluíram o primeiro Atlas dos RemanescentesFlorestais do Domínio da Mata At lânt ica .Esta publicação facilitou o desenvolvimentode ações efet ivas de conservação.

Entidades AmbientalistasA partir da década de 80, a sociedade civil

brasileira começou a se mobilizar pela preservaçãoda Mata Atlântica. Hoje, existem diversasorganizações não-governamentais que realizamatividades para a sua preservação. Dentre elas,destacam-se:

Fundação SOS Mata Atlântica : fundada emsetembro de 1986, é a maior entidade ambientalistanacional voltada unicamente para esta finalidade.Seus principais objetivos são defender osremanescentes da Mata Atlântica, valorizar aidentidade física e cultural das comunidadeshumanas que os habitam e conservar ospatrimônios natural, histórico e cultural dessasregiões, buscando o desenvolvimento sustentado.A sede localiza-se na cidade de São Paulo � SP.

Aliança para Conservação da Mata Atlântica :aliança entre a Fundação SOS Mata Atlântica e aConservation International (CI).

�A Conservação Internacional (CI) foi fundada

em 1987 com o objetivo de conservar o

patrimônio natural do planeta e demonstrar

que as sociedades humanas são capazes de viver

em harmonia com a natureza. Como uma

organização não-governamental global, a CI

atua em mais de 30 países, em quatro

continentes. A organização utiliza uma

variedade de ferramentas científicas,

econômicas e de conscientização ambiental,

além de estratégias que ajudam na

identificação de alternativas que não

prejudiquem o meio ambiente. A CI-Brasil

tem sede em Belo Horizonte-MG. Outros

escritórios estão localizados em Brasília-DF,

Belém-PA, Campo Grande-MS, Caravelas-

BA e Mineiros-GO.�

Rede da Mata Atlântica: rede de ONGsbrasileiras criada para defender e recuperar obioma, composta por 195 filiadas, situadas nos17 Estados por onde se estende a Mata Atlântica.A Secretaria Executiva da Rede está· sediada noGambá - Grupo Ambientalista da Bahia,contando com o apoio institucional do PD/A -Projetos Demonstrativos, subprograma do PP-G7 - Programa Piloto para a Proteção dasFlorestas Tropicais do Brasil.

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Programa ClickárvoreO Programa Clickárvore41 é um

programa de recuperação florestal da MataAtlântica, baseado na expressão virtual do desejode contribuir para o reflorestamento do biomapor parte de internautas.

A cada �clique� diário de um internauta,empresas patrocinadoras arcam com o custo deplantio e de acompanhamento do crescimento deuma muda de uma árvore nativa da MataAtlântica, durante cinco anos.

O Programa foi lançado oficialmenteno dia 3 de agosto de 2000, em um eventorealizado no Museu de Arte Moderna � MAM,em São Paulo. É resultado de uma parceria entrea Fundação SOS Mata Atlântica e o InstitutoAmbiental Vidágua42, com a participação doGrupo Abril na divulgação e realização.

Além dos realizadores, citados acima, oPrograma é viabilizado pelo patrocínio de cincoempresas e uma entidade :Organização Bradesco; Carrefour; Hopi Hari;Boehringer Ingelheim, por meio do xaropeMucosolvan; Bracelpa � Associação Brasileira de

Papel e Celulose; Arvim Ambiental, por meio doProjeto Carbono 2143.

Dados recentes sobre o ProgramaAté o dia 03 de novembro deste ano,

foram plantadas 3.597.098 mudas44 . Os últimosdados detalhados sobre o Programa Clickarvorereferem-se ao período compreendido entre oinício das atividades de reflorestamento(04/08/2000) e julho de 200445 :árvores plantadas: 3.091.247hectares reflorestados: 1.641,2projetos liberados: 158municípios atendidos: 80Estados envolvidos : Pernambuco, Bahia, MinasGerais, Mato Grosso do Sul e São Paulo.

PlantioA seleção das mudas de árvores nativas

do bioma a serem plantadas é feita a partir de umprojeto de execução de plantio, que deve serapresentado pelo solicitante das mudas erealizado por um engenheiro agrônomo. Antes

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Obs.: são apresentados os dados referentes aos 10 estados monitorados pela Fundação SOS Mata Atlântica.* DMA = Área de Domínio da Mata Atlântica originalmente ocupada pelo bioma ** Menos de 50% da área de DMA foram avaliados porque o restante estava coberto por nuvens.

Remanescentes florestais da Mata Atlântica no ano base 2000

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de ser encaminhados ao Programa Clickárvore,este projeto precisa ser previamente aprovadopelo Departamento Estadual de Parques eReservas Naturais � DEPRN.

As mudas indicadas no projeto devemestar enquadradas no rol de espéciespreferenciais para plantio na Mata Atlântica, deacordo com a Resolução SMA 21, de 2001, daSecretaria Estadual do Meio Ambiente. Essaresolução estabelece, entre outros critérios, que60% do total de mudas a serem plantadas devemser pioneiras do bioma. Além disso, o ProgramaClickárvore determina que o número mínimo deespécies selecionadas para o plantio é 60variedades. Para o desenvolvimento das mudas, oPrograma contrata viveiros especiais.Atualmente, participam 13.

As organizações que recebem as mudasassumem a responsabilidade de cuidar dasplantas por cinco anos, até sua maturidade.Durante esse período, o crescimento das mudasé acompanhado por técnicos do Programa. Apósesse prazo, os órgãos governamentaiscompetentes passam a ser responsáveis pelapreservação das áreas reflorestadas.

Prestação de contasPara garantir a transparência da

operação e manter a fidelidade dos internautas,há um rígido controle a respeito dosinvestimentos e resultados do Programa, os quaissão auditados pela empresa Ernest & Young.

O internauta também pode fiscalizar odesenvolvimento das mudas, por meio de fotosdos lotes plantados inseridas no próprio site. Acada seis meses, as fotos são renovadas parapermitir acompanhar o crescimento das árvoresdurante os primeiros cinco anos.

Banco de mudasO Programa mantém um banco de

mudas, para viabilizar o plantio. As doações dosprimeiros patrocinadores corresponderam a1.551.663 árvores virtuais. Este montanteterminou no primeiro semestre de 2003.

Os Realizadores estão prospectandonovos patrocinadores fixos, mas esta iniciativanão tem surtido os resultados esperados, devidoà situação da economia do País, explica o diretorAdauto Basílio. Para garantir a continuidade do

Programa, enquanto não conseguem novospatrocinadores fixos, os coordenadores daFundação SOS Mata Atlântica utilizampatrocínios eventuais, como os realizados pelaRodovia da Colinas e pelo Bradesco.

Floresta Pessoal Com a finalidade de obter uma nova

alternativa de financiamento para o Programa, osRealizadores conceberam uma modalidade deplantio�auto-financiada�, denominada FlorestaPessoal. A idéia é que os próprios usuáriospossam custear o plantio de mudas, ao custo deR$ 1,00 cada.

�Por meio desta ferramenta, não haverálimite de mudas a serem plantadas por dia. Ouseja, o usuário poderá plantar quantas árvoresquiser�, explica o diretor Adauto Basílio.

A estrutura da nova modalidade deplantio exigiu que o Programa fosse hospedadoem um outro provedor. A mudança começou nodia 10 junho do ano passado, com um novolayout do site do Programa. Entretanto, aindanão há uma data definida para o lançamentodessa modalidade. No site do Programa, já há olink Floresta Pessoal, porém, ao clicar-se sobreele, aparece a informação: �Em breve a FlorestaPessoal estará disponível. Aguarde�.

CidadaniaApós conhecer a importância da Mata

Atlântica e receber informações sobre a precáriasituação atual do bioma, qualquer cidadãobrasileiro percebe a necessidade absolutamentefundamental de preservar o pouco que resta dasua formação original, além de realizar ações pararecuperar o que for possível. O ProgramaClickarvore é apenas um exemplo de umainiciativa criada com essa finalidade. A sociedadecivil precisa não só aliar-se ao governo parafortalecer as iniciativas já existentes, mas tambémcriar novas alternativas. É imprescindível evitarque a conclusão de Warren Dean concretize-se:�O último serviço que a Mata Atlântica podeprestar, de modo trágico e desesperado, édemonstrar todas as terríveis conseqüências dadestruição de seu imenso vizinho do Oeste� � aFloresta Amazônica.Dean (1996, p.380)

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NOTAS1 Bioma é um grande biossistema regional ousubcontinental caracterizado por um tipo principal devegetação ou outro aspecto identificador da paisagem- como, por exemplo, o bioma da floresta tropical.(ODUM, 1988, p.3).2 Fonte: Fundação SOS Mata Atlântica e InstitutoSócio Ambiental - ISA.3 Fonte: Censo Populacional 2000 - Instituto Brasileirode Geografia e Estatística - IBGE.4 Áreas de maior biodiversidade e mais ameaçadas doplaneta, de acordo com estudo realizado pelaConservation International (CI).5 Organização das Nações Unidas para Educação,Ciência e Cultura.6 Fundação SOS Mata Atlântica :www.sosmatatlantica.org.br7 O Instituto Ethos de Empresas e ResponsabilidadeSocial, organização sem fins lucrativos, dissemina aprática da responsabilidade social por intermédio deatividades de intercâmbio de experiências, publicações,programas e eventos voltados para seus associados epara a comunidade de negócios em geral. Hoje, aentidade conta com mais de 1.000 empresasassociadas.8 Palestra proferida durante o Simpósio Nacional deResponsabilidade Social, realizado em novembro de1999, na cidade de Ribeirão Preto, interior de SãoPaulo.9 Philip Kotler é um dos principais autores mundiaisna área de Marketing. Ele escreve sobre o assuntodesde a década de 60. (vide bibliografia).10 Alice Tepper Marlin é presidente do Conselho dePrioridades Econômicas � CEP e Diretora Executivada Agência de Credenciamento deste órgão. Ela éautora do prefácio do livro Cidadania Corporativa(vide bibliografia).11 Fonte: portal Exame.12 O Instituto Akatu pelo Consumo Consciente é umaorganização não-governamental sem fins lucrativos,criado em 15 de março de 2001, no Dia Mundial doConsumidor, no âmbito do Instituto Ethos deEmpresas e Responsabilidade Social. Em tupi, apalavra Akatu significa �semente boa� ou �mundomelhor�. A missão do Akatu é educar para o consumoconsciente, informando, sensibilizando,instrumentando, mobilizando e animando cidadãospara que assimilem, nos seus comportamentos eatitudes, o conceito e a prática do consumo consciente.13 Fonte: IV Pesquisa Nacional sobreResponsabilidade Social nas Empresas/2003 (videbibliografia).14 Fonte: site da entidade (vide bibliografia).15 Estas são algumas das conclusões da pesquisa�Descobrindo o consumidor consciente: uma novavisão da realidade�, realizada pelo Instituto Akatu edivulgada em março último. Fonte: site da entidade.16 Fonte: o estudo �O consumidor brasileiro e aconstrução do futuro�, realizado pelo Instituto Akatu,em 2002 (vide bibliografia).17 Fonte: Pesquisa �O que o brasileiro pensa da

ecologia�, coordenada pela Drª Samyra Crespo (in:TRIGUEIRO - coord., 2003, p.65) � vide bibliografia.18 Fonte: Projeto �Mata Atlântica: Avaliação dosesforços de Conservação, Recuperação e UsoSustentável dos Recursos Naturais�, desenvolvido peloInstituto Sócio Ambiental � ISA.19de acordo com os limites da Mata Atlânticadefinidos pelo Decreto Federal 750/93 e pelo Mapa deVegetação do Brasil do Instituto Brasileiro de Geografiae Estatística - IBGE, 1993.20de acordo com dados da Fundação SOS MataAtlântica (vide texto Proteção, neste capítulo) e doInstituto Sócio Ambiental � ISA.21 A Campanha Desmatamento Zero é realizada pelaRede de ONGs da Mata Atlântica � RMA (videbibiografia.) 22 A Conservação Internacional (CI) foi fundada em1987 com o objetivo de conservar o patrimônionatural do planeta. Como uma organização não-governamental global, a CI atua em mais de 30 países,em quatro continentes. A CI-Brasil tem sede em BeloHorizonte-MG.23 Ocorrência de espécies peculiares em determinadaregião.24 Ecossistema é o mesmo que sistema ecológico: osorganismos que funcionam em conjunto (acomunidade biótica) numa dada área, interagindo como ambiente físico de tal forma que um fluxo deenergia produza estruturas bióticas claramentedefinidas a uma ciclagem de materiais entre as partesvivas e não-vivas. (ODUM,1988, p.9).25 Prefácio do documento resultante do WorkshopCientífico sobre a Mata Atlântica - Belo Horizonte �MG.26 Fonte: site da Conservation International .27 Fonte: site da Campanha de Desmatamento Zero .28 Fonte: relatório Avaliação e Ações Prioritárias paraa Conservação da Biodiversidade da Mata Atlântica eCampos Sulinos.29 Prefácio do documento resultante do WorkshopCientífico sobre a Mata Atlântica � Belo Horizonte �MG.30 Fonte: Campanha Desmatamento Zero.31 Conforme estudo da Conservation International.32 Fonte: LIMA & CAPOBIANCO (videbibliografia).33 Fonte: notícia publicada no jornal O Estado de S.Paulo � 11 nov. 2003 .34 Existem 425 reservas da biosfera no mundo,distribuídas por 95 países. Segundo Chade (videbibliografia), ao serem incluídas na lista da Unesco, asreservas ambientais recebem uma espécie de�certificado de excelência�, que as auxiliam a garantirrecursos. A classificação representa também umelemento fundamental para a promoção do turismo e,conseqüentemente, da economia local.35 Corrêa, F. (1995). A Reserva da Biosfera da MataAtlântica - Roteiro para o entendimento de seusobjetivos e Sistema de Gestão. Caderno no. 2.Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo,SP.

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36 apud site da Aliança para a Conservação da MataAtlântica (vide bibliografia).37 Fonte: Atlas dos Remanescentes Florestais daMata Atlântica (2002).38 Fonte: relatório de Avaliação e Ações Prioritáriaspara a Conservação da Biodiversidade da MataAtlântica e Campos Sulinos.39 Fonte: Quadro Biodiversidade - Programa RepórterEco � TV Cultura � veiculação: 19/07/03.40 Fonte: site do Projeto Quem faz o que pela MataAtlântica (vide bibliografia).41 O site do programa na Rede Mundial deComputadores é: www.clickarvore.com.br.42 ONG sem fins lucrativos, fundada em 1994 elocalizada no município de Bauru, interior de SP. (videbibliografia).43 Para maiores informações, contatarwww.carbono21.com.br44 Número exibido pelo site do Programa.45 Número fornecido pela Fundação SOS MataAtlântica.

BibliografiaADVB � Associação dos Dirigentes de Vendas eMarketing do Brasil. Instituto ADVBResponsabilidade Social. IV Pesquisa Nacional sobreResponsabilidade Social nas Empresas/2003.BRANCO, Samuel Gurgel. O meio ambiente em debate �26. ed. rev. e ampl. � São Paulo: Moderna. 1997 �(Coleção polêmica).DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história da devastação daMata Atlântica brasileira.São Paulo: Companhia dasLetras, 1996. Título original: With broadax e firebrand.DORST, Jean. Antes que a natureza morra: por uma ecologiapolítica. São Paulo: Editora Edgard Blucher em co-edição com a Editora da Universidade de São Paulo, 1973.DUARTE, Gleuso D. & DIAS, José M. ResponsabilidadeSocial: a empresa hoje. Rio de Janeiro, LTC � LivrosTécnicos e Científicos: Fundação Assistencial Brahma,1986.FERRI, Mário Guimarães. Ecologia e Poluição �(SériePrisma-Brasil). São Paulo Melhoramentos, 1976FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA. Atlas dosRemanescentes Florestais da Mata Atlântica � período1995/2000 � São Paulo, 2002..Relatório de Resultados doPrograma Clickárvore. São Paulo, fev.2003.KOTLER, Philip. Administração de Marketing: a edição domilênio.10.ed. SãoPaulo: Prentice Hall, 2001.LIMA, André R. & CAPOBIANCO, João Paulo R.(org). Mata Atlântica: avanços legais e institucionais para suaconservação. (Série Documentos ISA � nº 4). São Paulo:Instituto Sócioambiental � ISA, set. 1997.McINTOSH et al. Cidadania corporativa; estratégias bem-sucedidas para empresas responsáveis. Rio de Janeiro:Qualimark Ed., 2001.MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Avaliação eações prioritárias para a conservação da biodiversidade da MataAtlântica e Campos Sulinos. Brasília: MMA/SBF, 2000.ODUM, Eugene P. Ecologia. Rio de Janeiro: Ed.Guanabara, 1988TINOCO, João Eduardo Prudêncio. Balanço social: uma

abordagem da transparência e da responsabilidade pública dasorganizações. São Paulo, Atlas, 2001.TRIGUEIRO, André (coord.). Meio ambiente noséculo 21: 21 especialistas falam da questão ambientalnas suas áreas de conhecimento. Rio de Janeiro,Sextante: 2003.WARD, Bárbara & DUBOS, René. Uma Terra Somente:a preservação de um pequeno planeta. São Paulo:Edições Melhoramentos, com a colaboração daEditora da Universidade de São Paulo, 1973. Títulooriginal: Only one Earth.WORKSHOP científico sobre a Mata Atlântica, 1996,Belo Horizonte. Mata Atlântica:ciência, conservação e políticas. Disponível em:http://www.socioambiental.org.br. Acesso em: 08 fev.2003.

WebgrafiaAliança para a Conservação da Mata Atlântica

www. conservation.org.br/aliançaCampanha Desmatamento Zero

www.desmatamentozero.ig.com.brCBN Ecologia

www.radioclick.globo.com/cbn/Deputado Federal Fábio Feldmann

www.fabiofeldmann.com.brFundação SOS Mata Atlântica:

www.sosmatatlantica.org.brInstituto Akatu pelo Consumo Consciente

www.akatu.org.br Instituto Ambiental Vidágua

www.vidagua.org.br Instituto Ethos de Responsabilidade Social

www.ethos.org.brInstituto Sócio-Ambiental:

www.socioambiental.orgPortal Exame

www.exame.com.brPrograma Clickárvore:

www.clickarvore.com.brQuem faz o que pela Mata Atlântica

www..mataatlantica.org.br

Sueli Regina Agustini Professora da disciplina Marketing na FACOM -FAAP e na UNISA. Publicitária e Jornalista.Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP .

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Vídeo e Ação Social em São Paulo:novas central idades na representaçãovideográf ica da cidadeAndre Costa

ResumoEste artigo pretende definir alguns parâmetros para a discussão acerca das novas inserções sociais

do vídeo, considerando a recente produção de jovens ligados a projetos sociais e associações comunitáriasna periferia de São Paulo, apontando para o fato de que estas iniciativas revelam-se como um instrumentode reelaboração das formas de representação social do espaço urbano.Palavras-chave: Vídeo e Ação Social, cidade e representação videográfica, vídeo e espaço urbano,funções sociais do vídeo.

AbstractThis article presents the definition of some parameters to the discussion of the new social roles

of the video, considering the recent production of the young generation that participate on social projectsand community associations in the suburbs of São Paulo, highlighting the fact that these efforts appear asan instrument to the re-development of the forms of social representation of the urban space.Keywords : Video and Social Activity, videographic representation and the city, video and urban space,social roles of the video.

Tal qual ocorrera com as Camcorders VHS nadécada de 80, o vídeo digital promove novamenteum certo entusiasmo com relação a umaapropriação democrática dos meios de produçãoe de sua expressão. Para considerar com cuidado� mas não sem otimismo - esta empolgação emtorno do DV (digital vídeo), é preciso localizar suasfacilidades tecnológicas no âmbito de umcontexto diverso do qual o formato domésticoVHS fora disseminado. Diante do VHS (VideoHome System) também se previam as vantagenssociais que adviriam da portabilidade dos

equipamentos de gravação e da maioracessibilidade financeira da produção de vídeo.Frente a esse deste contexto tecnológico a essapromessa é que em São Paulo, em 1987,organizou-se a ABVP - Associação Brasileira doVídeo Popular1, extinta nos últimos anos e comseu riquíssimo e importante acervo de vídeospopulares ainda sem locação definida. Aassociação visava trabalhar no desenvolvimentoalternativo de distribuição dos vídeos populares,fator que adiante veremos ainda como decisivopara a consolidação das novas produções.

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O que, então, traz de novo à tona estaânimos com relação ao ressurgimento do quepodemos chamar de novas funções sociais dovídeo? Em nosso meio, mesmo tratando-se deum grupo especializado, parece imperar o sensoreducionista que entende que a novidade destaampla apropriação social da técnica e dalinguagem videográficas deve-se, sobretudo, aosavanços da tecnologia digital e à conseqüenteredução de custos dos equipamentos e materiaisde consumo para a gravação e para a edição. Sobessa ótica, o desenvolvimento de câmeras digitaiscom um formato de gravação com boa qualidadede imagem, a viabilização da edição emcomputadores de uso pessoal (desktop video)bastariam para explicar esta nova onda depopularização do interesse pela linguagem.

Há ainda toda uma discussão a ser feitae um bom campo para aprofundamento deestudo no que diz respeito a este binômio avançoda tecnologia do vídeo digital/redução de custosequipamentos, sempre tratado como óbvio, masnunca criticamente considerado. O que ocorrenesta convergência técnica da produção de vídeocom a informática são algumas mudanças nosatores principais da produção de equipamentospara vídeo, amparados em lógicas e estratégiasmuito diversas de obtenção de lucro e produçãoem escala. No entanto, não teremos aqui espaçopara seguir com este aspecto da discussão,embora consideremos que este é um ponto queainda seja necessário levar adiante, mesmo nãosendo exclusivo na explicação do fenômeno decrescimento do interesse pelo vídeo como meio deexpressão, sobretudo dentre parcelas sociaishistoricamente excluídas do acesso à produção cultural.

O que pretendems aqui é apenasencaminhar outras questões exógenas às nuancesdo negócio e do mercado de equipamentos devídeo. Neste sentido é que podemos iniciarconsiderando que a proliferação de oficinas ecursos de vídeo nas periferias de São Paulo - fatoque parece ser mais notável sobremaneira nosúltimos cinco anos - possa corresponder a umadiversificação do número e das formas deatuações do terceiro setor nestas comunidades,sobretudo as de ONGs e associações culturais debairro. Essas oficinas se estabelecem numaperspectiva de inclusão social por meio do

aprendizado e da prática cultural, na qual o vídeocomo meio de expressão e de criação artísticaengata como um dos mais recentes vagões.

Os preços dos equipamentos foramreduzidos, sem dúvida, mas hoje são raros osespecialistas que se antecipam profetizando ademocratização dos meios de produção do vídeo.A configuração básica de um núcleo de produçãoainda requer um montante de investimentos queimpõe a necessidade de apoios e financiamentosempresariais mediados pelas organizações doterceiro setor.

Esta é, aliás, uma outra face do contextoque também será necessário ter em mentesempre que conferirmos a prática videográfica naperiferia da cidade. Se a ênfase do otimismo dosanos 80 com o aporte do VHS mirava aspossibilidades de uso em movimentos sociais, hoje,no entanto, nota-se que esta apropriação dovídeo se dá no âmbito de projetos sociais. O que ébem diferente.

O vídeo e os projetos sociais: novas funçõesAs iniciativas de apropriação do vídeo

no âmbito de projetos sociais possuem, em geral,uma visão instrumental do domínio dalinguagem. Já é identificável, no entanto, umacerta distinção de níveis de utilização quepodemos rapidamente desenhar:

O vídeo como registro, documentação e posterior divulgaçãodo projeto:Os projetos sociais demandam o registropróximo de suas ações, para que se possaapresentar como uma espécie de relatórioaudiovisual, de maneira condensada e que leve oprocesso e os resultados do trabalho afinanciadores, públicos-alvos, setores do poderpúblico, parceiros etc. Esta forma de apropriaçãovisa primeiramente a elaboração de um produto(um vídeo) ilustrativo do projeto e quegeralmente assume o caráter de um discursoinstitucional. É a instituição emitindo suamensagem à sociedade, representando seutrabalho social.

O vídeo como processo de pesquisa, verificação e avaliaçãodo projeto: Diferindo da abordagem do vídeo institucional, a

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abordagem investigativa do documentáriopromove janelas e oportunidades da instituição,organização ou entidade compreender melhor oalcance de seus objetivos, diagnosticar novasnecessidades da comunidade alvo, ouvir opiniõesde parceiros, colher e sistematizar novasinformações e verificar a imagem do seu projetono meio em que se desenvolve. Aqui, esta formade apropriação, avançando com relação aanterior, visa não só à elaboração de um produto-vídeo, mas valoriza os processos do trabalhovideográfico como produtor de conhecimentoacerca do projeto. O vídeo formatado, finalizado,continua sendo um elemento que permite adivulgação da ação social de uma forma madura,mas antes, o seu processo de produção jáalimentou de maneira ampla os indicativos doprojeto, permitindo que a equipe da instituiçãovisualize uma imagem-reflexo do seu trabalho.Seu discurso atende a objetivos institucionais,mas não assume o tom institucional: ao invésdisso, alinha-se à estratégia do documentárionarrativo.A instituição não é aqui somente emissora deuma mensagem videográfica, mas está aberta acompreender este processo de via dupla.

O vídeo em sua fase de produção como processo educativoe de mobilização comunitária:Esta é a forma de apropriação queparticularmente nos interessa aqui. Porque é aque tem permitido uma ampla produçãovideográfica e o engajamento de jovensmoradores de regiões periféricas da cidade numatarefa mais ampla: promover uma representaçãodesses espaços urbanos periféricos alternativa à

que os meios de comunicação reproduzem,sobretudo a televisão e seus telejornais queenfatizam a criminalidade. A representação daperiferia na mídia acaba por aprofundar asformas de segregação simbólica, social. Areconstrução da imagem desses espaços por seuspróprios moradores, seja recolocando à suamaneira a convivência cotidiana com o circuitoda violência, seja iluminando iniciativas culturaise ações positivas na sua vizinhança, permite oengajamento e o comprometimento: provocapara a mudança.É sob este aspecto que inúmeras organizações deação social têm incorporado oficinas de técnica ede linguagem do vídeo dentre suas estratégias deformação cultural, cidadã e profissional de jovenssocialmente excluídos.

O intuito geralmente é o de aprenderuma nova linguagem para reaprender a olhar a sipróprio e a realidade que o cerca, provocandonovas formas de abordar e compreender suaidentidade étnica, sua cultura, sua condição e seupapel social.

As oficinas correspondem a umentendimento que valoriza os processos deconstrução do sentido e de elaboração denarrativas audiovisuais, pretendendo que suaassimilação deflagre possibilidades de expressãosocial. A produção audiovisual aqui não ésomente um produto a ser realizado, nemunicamente um processo a ser aproveitado pelaequipe do projeto social. Trata-se de suacompreensão como um processo a serdisseminado, compartilhado com o público-alvomesmo do projeto, pois que se revela como umaelaboração intelectual e prática que, ao se proporos desafios da representação, catalisa inúmerosoutros desenvolvimentos de reflexão e de ação.

Objetivos específicos das oficinas de vídeoObservando algumas das iniciativas de

desenvolvimento de oficinas e cursos de vídeoem associações culturais, ONGs, entidades eprojetos sociais, podemos iniciar ummapeamento preliminar dos objetivos destasformações. Muitos dos escopos partem dacompreensão de que boa parte da informaçãoque os jovens absorvem advém do meiotelevisivo, o que demanda a formação de uma

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recepção mais crítica. Outra frente de objetivosparte do pressuposto de que o conhecimento dalinguagem videográfica e dos processos deprodução da imagem podem abrir um novocampo de exploração da aprendizagem, deintegração social, de desenvolvimento crítico darecepção e de qualificação pessoal.

Estes objetivos poderiam ser aquiinicialmente levantados:- Investir no desenvolvimento de uma apreensãoaudiovisual crítica, permitindo que se criem ossubsídios teóricos básicos necessários para adecodificação e recodificação capacitada dovídeo em seus mais diversos meios. Nodesvendamento da lógica de produção e dasescolhas e recortes que pressupõe um programaem vídeo, constrói-se uma audiência inteligente;- Exercitar o olhar sobre si próprio, sobre o outroe sobre a comunidade a qual pertence, criando aoportunidade de um novo leque de parâmetrospara a reflexão e compreensão do seu papel social, dassuas escolhas e das relações com a cidade;- Desenvolver a expressão e a criatividade artística;- Iniciar uma capacitação técnica básica deindivíduos no trabalho comovideodocumentaristas em benefício da suacomunidade, dotando-os do interesse porvalorizar as manifestações culturais e osproblemas específicos do lugar;- Promover o trabalho em equipe, a vivência emprojetos coletivos e a experimentação das possibilidadesde articulação juvenil social e política.

Pensa-se, portanto, na potencialidadedo vídeo como instrumento de educação doolhar, como mediador de uma compreensãocriativa da realidade e do imagináriohumano, levando-nos a considerar sua utilizaçãonuma dimensão mais ampla de exercício dacidadania do jovem, de apropriação criativa doque o cerca: este complexo espaço de relaçõesque é a cidade.

A paisagem urbana, que emdeterminados espaços configura um discursopróprio e articulado de poder e de segregaçãosimbólico-espacial, pode de repente por estejovem ser videograficamente apropriada e setransformar num elemento de sua manifestaçãoartística e de sua paricipação política e social.

É por conta destas incursões que jovens

moradores da periferia paulistana têm formadogrupos de produção independente, mirado acâmera para a vida cultural da periferia,apresentando, por exemplo, os grupos da culturaHip Hop em suas mais diversas formas deexpressão artística, os movimentos populares quese desenvolvem em sua comunidade, osproblemas de saúde e educação presentes em seubairro entre outros inúmeros temas muitopróprios e, o que é melhor, com a possibilidadede uma abordagem também própria.

Podemos pensar na potencialidade deuma abordagem própria e de uma linguagemtambém própria, sobretudo se considerarmosque estamos tratando de uma forma peculiar deprodução, galgada na criação coletiva e nocompromisso comunitário e que suscita de umrepertório cultural rico e diferenciado:certamente um olhar já diverso com relação àcidade. Podemos pensar também nestapotencialidade se imaginarmos na outra ponta, arede de circulação destes vídeos. Esta vem seformando aos poucos, através da constituição deespaços de exibição em entidades de bairro,festas e shows comunitários, mostras em ONGse fóruns de juventude, universidades etc, o quetambém parece formar um complexo depeculiaridades que podem incidir na linguagem.

Ainda há muito que se desenvolver emtermos de consolidação de espaços de exibição eveiculação e este continua sendo uma fatorcrítico para o qual a maioria das iniciativas aindanão atentou. É preciso resgatar deste ponto noqual a ABVP tanto trabalhou até seuencerramento, revendo o contexto quecondiciona esta retomada do vídeo popular. É

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necessário pensar criativamente também estaquestão e dar condições a estes grupos juvenis detraçarem alternativas de circulação.

Um desses grupos é o Joinha Filmes,composto inicialmente por cerca de 12 jovensadvindos de bairros distantes do centro comoCidade Tiradentes, Jardim Rincão, Diadema, SãoMiguel, Jardim. Ângela e outros.

Eles compunham um grupo de açãojuvenil lotado na ONG Ação Educativa egerenciavam recursos de seu projeto para umaformação em vídeo, visando à realização de umdocumentário que apresentasse as iniciativassociais e organizações culturais de outros jovensda periferia paulistana.

O processo de formação levou àprodução do videodocumentário �Atitude naCena�, em mini DV e com 18 minutos deduração. Com o documentário embaixo dobraço, eles têm percorrido escolas públicas,associações de bairro e festivais pelo Brasildiscutindo as possibilidades de organizaçãojuvenil e de produção videográfica na periferia.

A título de breve conclusãoAinda há pouca articulação e troca entre

essas inúmeras experiências que se desenvolvemna cidade. Seria necessário urgentemente criarum espaço de discussão para que possamosvisualizar melhor este quadro, compreendendoem que medida o vídeo hoje tem incorporadonovas funções sociais e traçando o impacto queisto tem na formação e nas possibilidades deatuação profissional dos alunos que se formamem cinema e televisão. Essa compreensão dosnovos papéis sociais da profissão permite umaatuação ampla, consciente, aberta, articuladora,que seja capaz de mapear suas potencialidades

transformadoras da realidade e construir a partirdestas qualidades toda sua rotina de trabalho.

A prática videográfica destes jovens desetores populares, as recentes experiências dos�coletivos� em S. Paulo são algumas dasmanifestações que poderão ilustrar novasperspectivas no desenvolvimento de frentes deatuação artística e social do vídeo digital.

NOTAS

1 MELO, Jacira. �Vídeo popular: uma alternativade TV�. In:NOVAES, Adauto (org.) RedeImaginária: televisão e democracia. São Paulo:Companhia das Letras/ Secretaria Municipal deCultura, 1991.

Andre CostaProfessor de Vídeo, Edição e Pós-Produção daFACOM-FAAP. Mestre em Arquitetura eUrbanismo pela FAU-USP.

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A quinta tumba de Olga BenarioPaulo B. C. Schettino

ResumoO mito de Olga Benario Prestes, após oscilar entre o olvido e a memória, parece finalmente ter

encontrado o seu jazigo perfeito . Agora transformada em personagem de Cinema, adormecida descansaem seu suposto suporte material perfeito - fixada em registro, mas livre para visitar os humanos.Palavras-chave: cinema e televisão - tradução intersemiótica - mito - politíca

AbstractThe myth Olga Benario Prestes, after oscillating between forgetfulness and memory, finally seems

to have found her perfect grave. Now, she is transformed into a movie star, and fallen asleep, she rests inher presumed and perfet material support - fixed by registry, but free to visit mankindKeywords: motion picture and television - intersemiotic translation - myth - politics

A primeira vez que Olga repousou, foibem vinda. Afinal tratava-se realmente de umlugar de descanso, após uma vida de muitas lutase sofrimentos, e, é bem verdade, tambémcomposta de pequenas ilhas de alegria, orasombrias ora ensolaradas. No, entanto estaprimeira tumba significava algo mais que umlugar tranqüilo de repouso. Significava o cessarda peregrinação a construir uma história.Consistia viver o fim, colocar, finalmente o pontofinal na sua história de vida. E que vida! Quaseque tão atribulada que talvez desse um livro, ...ouuma fita de cinema, pois estava-se entre os anostrinta e quarenta.

Os maltratados despojos da carnedesapareciam com seu tempo próprio, como

normalmente acontece. As ligações químicas seenfraquecendo com a conseqüente libertação dostijolos da arquitetura do corpo físico, materialorgânico e mineral.

Porém, a partir desse instante nascia omito, algo misto dela própria e sua história, umcomposto agora etéreo, fluido, a vagar nalembrança das poucas pessoas que a conheceramem suas vestes carnais, e dividiram as emoçõesvividas em sua errância pela terra.

Assim, Olga encontrava o seu segundojazigo: a memória das pessoas, por onde elavagava com maior ou menor insistência. Oracomo um tormento - fantasma a assombrar umamente culpada, ora como uma lembrança boa emalguém que lamentava a sua ausência. Estasegunda tumba, fragmentada em mentes onde

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eventualmente ela pousava, é perecível. As partesvão-se aos poucos desaparecendo, diminuindo,sempre que morre um de seus amigos. Trata-sede um suporte material com data de validade, eseu fantasma que vaga de uma para outra, aospoucos vai perdendo os locais de pouso. Odestino parece fadá-lo ao esquecimento total,assim que o último companheiro desaparecer.

Um longo fade-out, que caminha para oburaco negro que absorve as pegadas dosviajantes, e as fazem desaparecer. Porém,iconizados por Di Cavalcanti, permaneceram suaface e os olhos tristes.

Em 1985, finalmente o livro. De FernandoMorais. Seu fantasma encontra a sua quartatumba, bem mais concreta que a anterior. Seufantasma encerrado em folhas de papel sujas detinta preta estará resguardado e guardado nasestantes das bibliotecas. Mas o traslado levantoua poeira, fez alarde. Uma grande legião deleitores passou a co-dividir o seu mito. Pensou-se então em transformá-lo em filme. O cineastaSílvio Tendler o faria. Afinal, mostraracompetência na área, provara ser um bomconstrutor de jazigo fílmico. Já o fizera com JK,e agora estava quase no fim do seu Jango. Mas,quis o destino que não o fizesse. O destino talveztenha se utilizado da fragilidade congênita docinema brasileiro. Ou outras forças acopladas aessa fragilidade.

Sem tempo para esperar, eis que o fantasma

de Olga penetra secundariamente na trama deuma telenovela, e para tanto se apossa do corpoda atriz Bettina Viany, e do diretor. Era evidenteque se sentiu bem naquele corpo.

2004 - quase 20 anos depois, como procedesempre com o folhetim, eis que a quinta tumba selhe é oferecida. O Cinema passa o bastão para aTelevisão, e em conjunto - sinal dos tempos quemuitos se recusam a ver, permitem que JaymeMonjardim a construa, agora em outro corpo, oda atriz Camila Morgado.

Tal tumba, que consegue, magicamente,amalgamar suporte material e abstrato, deixará oespírito de Olga mais livre, a vagar pelas salas deexibição do país e do mundo e penetrar emforma imaterial nas casas e mentes das pessoas.

É o jazigo perfeito! Dá-lhe a segurançaconcreta e sólida de permanência, e asas paraerrar, a seu bel prazer, de mente a mente.

Paulo B. C. SchettinoCineasta e professor de Roteiro da FACOM-FAAP. Mestre em Cinema e Doutor em Ciênciasda Comunicação pela ECA-USP.

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A importância dos sistemas dei n f o r m a ç ã o d a s e m p r e s a sorientadas para o mercadoSilvio Luiz Tadeu Bertoncello

Um acontecimento que se reproduzregularmente e que pode ser previsto com certaprecisão, como o nascer do Sol, não nos fornecequalquer informação. O conhecido, garantido,que já se sabe, é redundância segundo o termo dateoria da informação shannoniana. Umacontecimento portador de informação é umacontecimento que, ou põe termo a umaincerteza, ou traz novidade. Assim, sãoportadores de informação, por um lado, osresultados da bolsa de valores, a cotação do dólar,e por outro lado a política econômica de umnovo governo. A informação que constitui umasurpresa pode pelo contrário inquietar e provocar

ResumoEste artigo se propõe a conceituar a informação, dentro de suas características e particularidades,

descrever o sistema de informação organizacional e quais as informações necessárias das empresasvoltadas para o mercado.Palavras-chave: informação, sistems de informação, tecnologia da informação

AbstractThis article sets out to evaluate the characteristics and particulars of information, it also

describe the organizational information systems and those information�s that are necessary fromcompanies with in the business market.Keywords: information, information systems, information technology

a incerteza sobre a nossa aptidão para conceber arealidade. Compreende-se que o controletotalitário da informação se dedique a censurar asinformações que inquietam e a fornecer asinformações que tranqüilizam. Tudo o que não éredundância não é forçosamente informação.

Inúmeros acontecimentos não têminteresse para nós ou para algumas empresas eportanto, não lhe concedemos nenhuma atenção.Todos os acontecimentos que surgem emdesordem e sem significado constituem, aindano calão da teoria shannoniana, ruídos.

Porém, o que é ruído para um pode serinformação para outro. Existe ainda informação

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fraca que fornece confirmação do previsível e doprovável, como a quebra de uma empresa que jáapresentava resultados ruins por muitos anos.Em contrapartida, a informação torna-se forte seesta mesma empresa for vendida para umagrande multinacional.

A informação pode não só ser forte,mas também rica. A informação rica contémnovidade, ou seja, algo inesperado, surpresa.Assim, as informações fortes e ricas sãoproporcionadas por acontecimentosextraordinários, que nos parecem impossíveisantes de se darem, como o ataque terrorista aostrens de Madri ou a megafusão da AmBev com aInterbrew, num negócio de 23 bilhões de dólares.(EXAME, n.º 813, 17/03/2004 p. 20).

A informação dispõe de uma energiapotencial que pode ser imensa tanto para a açãocomo para o pensamento. Qualquer ação incertaou aleatória necessita de uma estratégia, e estadeve necessariamente alimentar-se deinformações. (MORIN, 1997, p. 28)

Outra abordagem interessante é adiferença entre dado e informação. Dado équalquer elemento identificado em sua formabruta que, por si só, não conduz a umacompreensão de determinado fato ou situação.Informação é o dado trabalho que permite aoexecutivo tomar decisões.

Os dados em uma empresa seriam aquantidade de produtos, custo de matéria-prima,número de empregados. A informação seria oresultado da análise desses dados, ou seja, acapacidade de produção, o custo de venda doproduto, a produtividade do funcionário, etc.Essas informações, ao serem utilizadas, podemafetar ou modificar o comportamento existentena empresa, bem como o relacionamento entreas suas várias unidades organizacionais.(DJALMA, 2001, p.36)

Processo de Valorização da InformaçãoAo longo da vida de uma pessoa ou de

uma empresa, são coletadas e apreendidasdiversas informações que mediante um processosistemático podem ser muito valorizadas.

À medida que se sedimenta umainformação, qualquer atividade pode ser elaboradacom um custo menor, com menos recursos, em

reduzido tempo e com resultado melhor.Atualmente, existem mais

computadores, periféricos, e tecnologias gerandoinformações úteis, precisas, oportunas, ricas, aum custo menor, em menos tempo, usandomenos recursos e gerando estratégias.

O processo de valorização dainformação cumpre algumas fases e passoslógicos. (Weitzen, 1994)

Estes passos podem ser assim distribuídos:- Conhecer muitas informações;- Apreender as informações;- Juntar e guardar as informações úteis;- Selecionar, analisar e filtrar as informações demaior valor;- Organizar as informações de forma lógica;- Disponibilizar e usar as informações.

Pelo menos três passos sãofundamentais para a valorização da informação,ou seja, conhecer, selecionar e usar asinformações. A seleção mal elaborada podecausar danos incalculáveis quando do uso dessasinformações. Para organizar as informações,deve-se avaliar e dar atenção às questões de usode tecnologia moderna de banco de dados,Database Management System, ou DBMS.

O DBMS é uma coleção de dadosorganizada como num arquivo convencional. OsBancos de Dados são usados para guardar emanipular dados, visando a sua transformaçãoem informações. Essa tecnologia está maisaplicada a determinado fim unificado e efetivo noapoio à tomada de decisões. Esta aplicação dizrespeito a mais uma opção para o funcionamentodos modelos de Sistemas de Informação.

Os dados são geralmente organizadosem uma hierarquia, no qual o Banco de Dadostem o nível mais alto. Nessa hierarquia, oscampos formam um registro, e os registrosformam o arquivo. A entidade de um Banco deDados é uma classe generalizada de arquivos, ouseja, registros específicos que têm seusrespectivos atributos, campos ou itens dedados.(NORTON, 1996; LAUDON, 1999)

Além do DBMS devemos integrar asinformações com ferramentas como:

Enterprise Resource Planning (ERP).Esta tecnologia Enterprise Resource

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Planning ou Planejamento de RecursosEmpresariais são pacotes (software) de gestãoempresarial ou de sistemas integrados, comrecursos de automação e informatização, visandocontribuir com o gerenciamento dos negóciosempresariais.

As empresas produtoras destatecnologia aplicada a Sistemas de InformaçãoOperacionais, Gerenciais e Estratégicos estãocrescendo em todo o mundo onde o ERP temmarcado uma nova fase dentro das empresas,integrando todos os seus processos.

A tecnologia ERP tem a prerrogativa deutilizar o conceito de base de dados única, poistodos os seus módulos ou subsistemas estão numúnico software. Ela também oferece, na maioriados casos, a ferramenta Executive InformationSystems (EIS) como opção integrada. (REZENDE,2000, p. 206)

TelemarketingO telemarketing é definido como a

aplicação do telefone para a performance dasatividades de marketing, a AT&T, uma dasmaiores prestadoras de serviço em telemarketingnos Estados Unidos, define-o como o casamentoda tecnologia de telecomunicações com astécnicas do marketing direto.(DANTAS, 1994, p. 24)

Duas das principais características dotelemarketing são:

Mídia especificamente dirigida,Fonte de mensagem bidirecional.

As Fases Evolutivas do Call Center, ferramentaimportante do telemarketing encontra-se nafigura abaixo:

O serviço de atendimento ao clienteevoluiu, assumindo várias funções, que anteseram descentralizadas em diversos

departamentos, passando a gerenciar um grandevolume de informações em tempo real, oferecendomais serviços de valor agregados aos clientes.

Customer Relationship Management (CRM)Gerenciamento do relacionamento com

o cliente.CRM é uma estratégia de negócio quediferencia a empresa pelo valor que agrega com oatendimento totalmente orientado para o cliente,e não é simplesmente mais uma tecnologia. Cadavez fica mais difícil separar a estratégia datecnologia; todavia, no caso do CRM, o sucessoda implantação dependerá da compreensão dadimensão do impacto que causará nos processosinternos ou no tipo de capacitação, para que osrecursos humanos realmente se adaptem e nãointerfiram desfavoravelmente no processo deimplantação.

Um dos fatores-chave é não subestimaras outras variáveis do composto de marketing,como o posicionamento, produto, preço e oscanais de distribuição; e a empresa deve estarpreparada para traduzir em todos os aspectos dagestão, e principalmente no desenvolvimento deprodutos, a proposição de valor que o clienteentende e valoriza. Só então, estará apta a usar oCRM para alavancar ao máximo a vantagemcompetitiva estabelecida.

Componentes de um CRM:-Banco de Dados de clientes;-PABX;-Link CTI, Customer Technology Integration;-Tecnologia de Integração;-Campanhas;-Atendimento;-Gerenciamento;-Integração Web/ Email/ Fax;-Discagem automatizada;

Data Mining ou garimpagem de dadosCompreende um conjunto de técnicas e

critérios de avaliação qualitativa e quantitativa,modelos de análise e formulação, implementaçãoetc., diretamente ligados à tecnologia de banco dedados e aos sistemas de suporte à decisão. Essetipo de ferramenta pesquisa grandes bases dedados, procurando por padrões decomportamento e respostas que permitam

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prever, com maior acuidade possível ocomportamento de clientes atuais potenciais.(BRETZKE, 2000, P. 160).

O Sistema de Informação e Bussiness IntelligenceExistem algumas definições da expressão

sistema de informações, dentre as quais podem seranalisadas e apresentadas a seguir:- O conceito de BI, Business Intelligence, de formaampla, pode ser entendido como a utilização devariadas fontes de informações para se definirestratégias de competitividade nos negócios daempresa. (BARBIERI, 2001, p. 56)- O SIM, Sistema de Informação de Marketing, éconstituído de pessoas, equipamentos eprocedimentos para a coleta, classificação,análise, avaliação e distribuição de informaçõesnecessárias de maneira precisa e oportuna para osque tomam decisões de marketing. (KOTLER,2000, p. 122)- O SADM, Sistema de Apoio a Decisão deMarketing, é uma série coordenada de dados,ferramentas de sistema e técnicas com software ehardware de apoio, com os quais a organizaçãoreúne e interpreta informações relevantes deempresas e do ambiente e as transforma numabase para a tomada de decisões gerenciais.(CHURCHILL, 2000, p. 118)- O SIG, Sistema de Informações Gerenciais, é oprocesso de transformação de dados eminformações que são utilizadas na estruturadecisória da empresa, proporcionando, ainda, asustentação administrativa para otimizar osresultados esperados. (REBOUÇAS, 2001, p. 40)

A informação nas Empresas orientadas parao mercado

A base de conhecimento de umaorganização orientada para o mercado é,provavelmente, seu ativo mais valioso. Parte doconhecimento é a matéria-prima que a empresaprocessa e vende, pense em especial no trabalhode consultores, funcionários de empresas deserviços financeiros ou de software. Maisconhecimento está profundamente embutido nosprocessos essenciais. O que distingue umaempresa orientada para o mercado é aprofundidade e a oportunidade do conhecimentodo mercado, que a capacita a antever

oportunidades no mercado e reagir mais rápidoque suas rivais. Quando este conhecimento éamplamente compartilhado, passa a ser umponto de referência comum e um conjunto dehipóteses que assegura que a estratégia sejacoerente ao invés de um conjunto desconexo deatividades.

Poucas organizações como porexemplo, se igualam a capacidade da Honda paraaprender, lembrar e agir com agilidade. Suaexperiência fornece diretriz instrutiva para oprojeto de uma memória movida pelo mercado.A unidade-chave de aprendizado é a equipemultifuncional, a qual está embutida em umaestrutura organizacional comprimida que tempoucas diferenciações hierárquicas. A ausência dehierarquia e a antiguidade tornam mais fácil queas idéias sejam julgadas por seus méritos ao invésda sabedoria convencional. Quando as equipessão desfeitas, seus membros são logo designadospara novos programas, o que acelera atransmissão de conhecimento através daorganização.

Os membros das equipes podemconstruir carreiras com possibilidades depromoções baseadas no domínio de uma área deespecialização. Eles não são especialistas comlimites intelectuais, porque têm amplasoportunidades para breves períodos de estágioem outras funções. Assim, tão logo uma equipe éformada, ela tem uma passagem para oconhecimento coletivo da Honda através doconhecimento pessoal dos seus membros e deredes de colegas com perícia semelhante.

As equipes são guiadas por uma crençaprofunda em que não é possível compreenderum mercado com base exclusivamente emrelatórios de terceiros. Espera-se que as equipesde projetos estejam no campo regularmente paraobter conhecimentos comuns.

O fracasso não é estigmatizado, o queencoraja as equipes a experimentar. Por exemplo,os cerca de 90% de projetos experimentais depesquisa que, estima-se a Honda, fracassam naprimeira vez, são analisados em busca de liçõessobre o que evitar e os resultados são guardadospara possível uso em futuros projetos (EALEY/SODERBURG, 1990, p.3-14).

As organizações orientadas para o

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mercado podem dar dois passos importantespara desenvolver uma base compartilhada deconhecimento:- Construir sistemas para distribuição sinérgicaque sejam acessíveis em toda a organização, paragarantir que fatos e critérios relevantes estejamdisponíveis quando e onde forem necessários.- Localizar o conhecimento estratégico a respeitode estrutura de mercado, resposta e criação devalor que contribui para as perspectivasnecessárias ao desenvolvimento de decisõesbem-embasadas. (DAY, 2001, p. 108)- Desenvolvimentos recentes em tecnologia dainformação são, ao mesmo tempo, inimigos eauxiliares para a obtenção e a distribuição deinformações. Por um lado, as empresas estãosendo inundadas por uma avalanche de dadossem valor, não-digeridos, que seus sistemasfornecem livremente. Ao mesmo tempo, háoutros avanços que podem ajudar a tratar estaindigestão ao mesmo tempo em que aprofundama compreensão do mercado e constroemrelacionamentos. Técnicas de garimpagem dedados, Data Mining, desvendam significadosocultos de depósitos de dados, enquanto intranetspassam as informações de forma mais livre portoda a organização. As empresas podem estaragora tão confusas quanto antes, mas em umnível mais alto.

O Conhecimento Estratégico obtido atravésde informações

Que conhecimentos as empresas devem tercomo base de sua concentração? As dúvidas maisimportantes são:- Estrutura do mercado: Como estão oscilandoas fronteiras competitivas e como estãoevoluindo os segmentos do mercado?- Respostas do mercado: Quais são osdeterminantes de valor para o cliente e da suamanutenção e como clientes, concorrentes edistribuidores reagirão a esses determinantes?- Economia do mercado: Onde estamosganhando dinheiro e que ações melhorarão nossalucratividade? Para onde está migrando o valorno mercado e como isso nos afetará?- A evolução do mercado é prevista, finalmente oesquema de segmentação deve ser semelhante aum filme que mostre como o mercado evoluiráno futuro e explique a migração de clientes entre

segmentos, ao invés de um flagrante estático deum presente que logo se tornará obsoleto.

Perguntas estratégicas para tomada de decisões:- Quais são os determinantes de satisfação e valorpara o consumidor?- Quais são as relações entre as variáveis quegerenciamos e a resposta do mercado?- Quais são as relações entre o comportamentodo cliente e medidas de desempenho comolealdade do cliente, participação de mercado elucratividade?(DAY, 2001, p. 116)

ConclusãoA busca pela eficácia e eficiência da

tomada de decisões está fortemente relacionadacom a arquitetura do sistema de informações daorganização que possui duas faces, a saber:-A sua face interna, quando consideramos osregistros resultantes dos vários processos bemcomo a gestão do conhecimento corporativo,quando consideramos as informações�agregadas� pelos funcionários como um ativo e;-A sua face ou �mundo externo�, informaçõesfornecidas pela Inteligência de Marketing ouCompetitive Intelligence.

A importância desses componentespara a gestão da empresa está relacionada com aflexibilidade e vantagem do conhecimento deinformação que privilegie e agilize a tomada dedecisão acertada e, mais que isso, que direcione asações �personalizadas�, assim sentidas pelocliente, de forma a aumentar o seu grau defidelização para com a empresa, além do que,dentro do espaço fundamental do recurso deinformações executivas, transformar os dadostransacionais em recursos informacionais.

As empresas orientadas para o mercadodevem conhecer tão bem seus mercados quedevem ser capazes de identificar e alimentar seusclientes valiosos e não têr escrúpulos paradesencorajar os que drenam lucros, aqueles quesão inconstantes e que custa caro atender. Assim,orientar-se para o mercado é ter a disciplina parafazer opções estratégicas saudáveis e implantá-lasde forma coerente e completa e não ser tudo paratodos, lógico que sem um sistema de informaçãocoerente e dinâmico isto não será possível.

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Silvio Luiz Tadeu Bertoncello

Professor da FACOM-FAAP, dos cursos deMBA Profissional e Pós-Graduação, e Pós-Graduação da Universidade Gama Filho. Mestreem Administração PUC-SP; Doutorando emAdministração na Universidade Mackenzie.

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No Correr do TempoMarco Antônio Bin

ResumoAo caminhar pelas ruas de São Paulo, Eduardo Benega conecta-se com a história de sua cidade,

desvelando acontecimentos marcantes ocorridos nos últimos 50 anos.Palavras-chave: São Paulo - história - transformação - memória

AbstractWhen walking on the streets of São Paulo, Eduardo Benega connects with the history of his

home town, observing what happened over the past 50 years.Keywords: São Paulo - history - transformation - memory

No aniversário de 400 anos da cidade,Eduardo Benega, um jovem e solitárioescrevente, saiu para um passeio matinal pelasruas do centro de São Paulo. Resolveu caminharde onde morava, na Rua São Luiz, até o Vale doAnhangabaú. Tomou em mãos o chapéu de feltrodas ocasiões singulares e na companhia deDuque, um filhote vira-lata, desceu peloelevador, atravessou o amplo saguão acarpetadoe ganhou a calçada.

Edu não se apressou em seu périplo;gostava de apreciar os fatos e se aprazia com oritmo da montagem daquele dia de júbilo paraSão Paulo. Parava aqui e ali, na praça Dom JoséGaspar, na ladeira da Memória, observando,sorrindo, franzindo o cenho, como seconfabulasse mentalmente com Duque. Eram

casais que vagavam sem pressa sob a bela manhãde sol, famílias com suas crianças brincandoanimadas, grupos de pessoas que iam chegandode longe para participar da festa.

Na Rua Xavier de Toledo oadensamento de gente tornava o caminhar maisdificultoso. O seu mundo confraternizava:vendedores de bexigas, algodão doce, crianças eidosos felizes, os passageiros que desciam dosbondes, as barracas de flores funcionando diantedo Teatro Municipal. Por que não um olhar paraa cidade tomado da balaustrada do Viaduto doChá? Eduardo admirou-se com a paisagem da�cidade que mais crescia no mundo�longamente... O belo terraço do Palacete Prates,a mulher idílica debruçada na mureta, mais aolonge o �Buraco do Adhemar�... Prosseguiria em

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seu devaneio, se seu pequeno companheiro nãoo solicitasse de volta à realidade. Acariciou acabeça do cão e retomou o passeio, no sentido daPraça do Patriarca.

Passou a discernir um rumor quetornou-se a irrupção de um drama: estudantesque se moviam, agitados, vindos da Faculdade deDireito, expressando nas faces a insatisfação domomento, tal como arautos de más notícias.Benega voltou-se para o Vale do Anhangabaú,uma lufada de ar revolveu a farta cabeleira,fechou os olhos. Ao reabri-los, viu cruzando oviaduto o que seria o indício de uma grandemanifestação com Deus pela Liberdade... Asfaixas, o clima sombroso, �O que é, algumamanifestação?�, perguntou por fim a um grupocom bandeiras que passava rumo à praça daRepública. Um dos rapazes, sereno diante dagravidade dos fatos, se deteve para acariciar ospêlos do velho cão: �Não, meu caro...vamos tirar oBrasil dos comunas!�.

Incomodado pela tensão que pairava noar, Benega prosseguiu pela Rua Líbero Badaró.No percurso, sentiu o clima de agitação perdurar,as pessoas atarefadas, os jovens perseguidos pormilitares, o vai-e-vem cada vez mais grave oscomentários entrecortados sobre os tomates dosestudantes atirados no governador, em pleno 1o.de Maio na Praça da Sé. Foi seu desejo esticar atéo Café Girondino para degustar um bom café,afinal o fôlego não era o mesmo desde que amorte de Duque o alijara dos passeios freqüentes.Mal teve tempo de enquadrar a fachada doMosteiro de São Bento, Benega notou as pessoasacorrerem para o Viaduto Santa Ifigênia: do seuvão elas se hipnotizavam com o rubor queresplandecia nos céus, ao longe, defronte à Praçadas Bandeiras. �É o Joelma...�, alguém exclamou,como que consubstanciando a tragédia. Beneganão possuía a mesma visão aquilina de outrora ecompreendeu-se impotente diante da situaçãodesoladora, de modo que logo afastou-se, nosentido de algum restaurante na Rua XV deNovembro.

Após o almoço, seguiu pelo calçadão nadireção ao Pátio do Colégio. Não lhe escapou aprofusão de estilos arquitetônicos a sua volta,prédios de diferentes épocas, testemunhos detempos mais afortunados. Enquanto se

aproximava da Praça da Sé, sentiu o fragor cadavez mais forte de uma manifestação gigantesca.Desvelou-a aos poucos, visualizando tambémpersonalidades da vida pública nacional que seuniam ao clamor de milhares de pessoas pelasDiretas-Já.

O senhor Benega acompanhou algunsdiscursos produzidos no seleto palanque eretirou-se, tendo dificuldades para sedesvencilhar da aglomeração. Alcançousucessivamente, com o apoio da indefectívelbengala, a Praça João Mendes, o Viaduto DonaPaulina e já exausto, no final da tarde, deparoucom centenas de jovens caras-pintadas e suasfaixas de Fora-Collor descendo a AvenidaBrigadeiro Luiz Antônio. Um encontro quereavivou-lhe o espírito alquebrado pelos longosanos, que fez brotar na face enrugada um sorrisode plena satisfação.

Com tantas impressões vívidas colhidasno correr de seu itinerário, o velho Benegadesejou como nunca o banco de uma praça, antesde aventurar-se mais nos espaços labirínticos dacidade. Perdeu-se nas ausências da memóriacoletiva e pessoal e tal como um indigente,tombou silenciosamente no início da noite, nasproximidades da Avenida Paulista. O menor quelevou sua carteira guardou a arma e se evadiufurtivamente do local, sem o dinheiro quedesejava e sem o remorso purificador, perdendo-se na festiva noite do domingo em que a Paulicéiaoficial comemorava seus 450 anos.

Marco Antônio BinProfessor de Comunicação Comunitária daFACOM-FAAP. Doutorando em Ciências Sociaispela PUC-SP.

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Lembrança atrai lembrançaAlvará para habitarRecordações de sabor

Lembrança atrai lembrançaSeivas que espraiam raízesEntre passado e futuro Dádiva da vida para simesma

Lembrança atrai lembrançaSemente mapa de serRachaduras de biografiaOlhos d�água na narrativaDa barriga ao coração

Lembrança atrai lembrançaDe porta a portaImagens quebradasMundo interrompidoExílio e fragmentos

Lembrança atrai lembrançaVacina anti-extermínioTradição cinza Sujeitos ocultos

Lembrança trai lembrançaDoar é narrarMigalhas ao soloDevir

Paulo LudmerProfessor de Ética na Comunicação eCriatividade da FACOM-FAAP. É artistaplástico, músico e escritor.

DevirPaulo Ludmer