Dossiê: Livro didático 'Por uma vida melhor' (por ALAB)

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Por uma vida melhorIntelectuais, pesquisadores e educadores falam sobre o livroVERSO FINAL

Maio junho 2011

SumrioEntenda o caso .............................................................................................................................................................. 3 Artigos de intelectuais, pesquisadores e educadores favorveis ao livro ....................................................................... 4 Posicionamento da Associao de Lingustica Aplicada do Brasil ..................................................................................... 5 Lngua e Ignorncia ........................................................................................................................................................... 7 Educao de Jovens e Adultos e Programa Nacional do Livro Didtico/ EJA .................................................................... 9 Nota pblica ANPED, ANPAE, ANFOPE, CEDES E CNTE ................................................................................................... 10 Pasquale Cipro Neto. O que discutir sobre o polmico livro? ....................................................................................... 11 Marcos Bagno (Unb). Uma falsa polmica ..................................................................................................................... 13 Srio Possenti (Unicamp). Analisar e opinar. Sem ler ..................................................................................................... 14 Maria Alice Setubal e Maurcio Ernica. A batalha da lngua na guerra das culturas ..................................................... 16 Thas Nicoleti de Camargo.O senso comum confunde a lngua com a norma culta ...................................................... 18 Cristvo Tezza. O poder do erro ................................................................................................................................... 19 Ana Maria Stahl Zilles (entrevista)Fala mais variada que escrita............................................................................. 20 Carlos Alberto Faraco. Polmica vazia ........................................................................................................................... 21 Lucia Furtado de Mendona Cyranka. Ns pega o peixe ............................................................................................ 23 Miriam Lemle. Uma nao com variadas lnguas ........................................................................................................... 24 Jos Miguel Wisnik. Dona Norma .................................................................................................................................. 26 Jos Miguel Wisnik. Analfabetismo funcional ................................................................................................................ 28 Lus Nassif. O escndalo do livro que no existia ........................................................................................................... 30 Affonso Romano. Escandalizado com o escndalo ........................................................................................................ 32 Janice Ascari. Recebendo e prestando esclarecimentos ................................................................................................ 34 Hlio Schwartsman. Uma defesa do "erro" de portugus ............................................................................................. 36 Eliane Brum. O que os livro contam? .......................................................................................................................... 39 Ludmila Thom de Andrade (UFRJ). Do dialeto da classe educada brasileira, pode-se falar? ...................................... 43 Darcilia Marindir Pinto Simes (UERJ). Um bom momento para refletir sobre o que ensinar e saber a lngua portuguesa como lngua materna ................................................................................................................................... 45 Dante Lucchesi (UFBA).Preconceito lingustico ou ensino democrtico e pluralista? ................................................... 47 Srgio Fausto (IFHC). Educao para o debate ............................................................................................................... 54 Silviano Santiago. Alquimia potica e utopia ................................................................................................................. 56 Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB). Por que toda essa celeuma referente incluso de tpicos de variao lingustica em livro didtico? ........................................................................................................................................................... 58 Formandos Letras PUC-SP. Desinformao e desrespeito na mdia brasileira .............................................................. 60 Arnaldo Bloch e Hugo Sukman. Um Elogio AO ERRO (Entre aspas) ............................................................................... 64 Clarice Assalim (CUFSA). Quem deve discutir lngua linguista! ................................................................................... 67 Luiz Costa Pereira Junior. Tempestade em copo dgua ..................................................................................... 68 Ricardo Semler. ltima flor do lao ................................................................................................................................ 71 Livia Perozim. Lngua, que bicho esse? ........................................................................................................................ 73 Adilson de Carvalho. Por um debate para alm do obscurantismo ............................................................................... 76 Livia Perozim.Falsa questo............................................................................................................................................ 78 Paquito. Dois Rossi e a Lngua Brasileira ........................................................................................................................ 80 Rodrigo Ratier. O desafio de ensinar a lngua para todos .............................................................................................. 82 Maria Amlia Dalvi. Ainda em torno do livro didtico ................................................................................................... 84 Bruno Ribeiro. Imprensa, ignorncia e o apresentador ................................................................................................. 87 Chico Arruda. Competncia textual e norma culta ........................................................................................................ 89 Fbio Jos Reis de Araujo. Tentativa de censurar livros didticos ................................................................................. 91 Luciana Romagnolli. Poliglotas da prpria lngua........................................................................................................... 93 Mariana Mandelli. Principais universidades exigem que candidato diferencie forma oral e culta ............................. 95 Nota pblica da Ao Educativa ....................................................................................................................... 97 Nota pblica SECADI-MEC ................................................................................................................................ 98 Esclarecimentos sobre o livro Por uma vida melhor, para Educao de Jovens e Adultos ..................................... 99 O que dizem os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) ................................................................................ 100 Lista de vdeos e reportagens em udio disponveis na internet ......................................................................... 101

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Entenda o casoDesde o ltimo 12 de maio de 2011, muitas notcias, debates e artigos foram veiculados pelos meios de comunicao acerca de um trecho presente em uma pgina do livro Por uma vida melhor que trata do que se denomina de variao lingustica. Informaes incorretas ou imprecisas foram divulgadas com base em uma frase retirada de seu contexto. Considerando esses equvocos, a Ao Educativa, responsvel pela construo da proposta pedaggica da obra, informa que: 1. O livro destinado EJA Educao de Jovens e Adultos. Ao falar sobre o tema, muitos veculos omitiram este detalhe e a mdia televisiva chegou a ilustrar VTs com salas de crianas. Nessa modalidade, necessrio levar em considerao a bagagem cultural do adulto para incentiv-lo a adquirir novos conhecimentos. 2. O captulo Escrever diferente de falar, como o prprio ttulo indica, prope, em um trecho especfico, apresentar ao estudante da modalidade de Educao de Jovens e Adultos (EJA) as diferenas entre a norma culta e as variantes que ele aprendeu at chegar escola, ou seja, variantes populares do idioma. 3. Os autores no se furtam a ensinar a norma culta. Pelo contrrio, a linguagem formal ensinada em todo o livro, inclusive no trecho em questo. No captulo mencionado, os autores apresentam trechos inadequados norma culta para que o estudante os reescreva e os adeque ao padro formal, de posse das regras aprendidas. Por isso, leviana a afirmao de que o livro despreza a norma culta. Ainda mais incorreta a afirmao de que o livro contm erros gramaticais, ou ainda que ensina a falar e escrever errado.4. O livro Por uma vida melhor faz parte do Programa Nacional do Livro Didtico e est

plenamente de acordo com o que est proposto nos Parmetros Curriculares Nacionais para a lngua portuguesa, publicados em 1997. Por meio do PNLD, o MEC promove a avaliao de dezenas de obras apresentadas por editoras, submete-as avaliao de especialistas e depois oferece as aprovadas para que secretarias de educao e professores faam suas escolhas. O livro produzido pela Ao Educativa foi submetido a todas essas regras e escolhido, pois se adequa aos parmetros curriculares do Ministrio e aos mais avanados parmetros da educao lingustica.5. A Ao Educativa tem larga experincia no tema, e a coleo Viver, Aprender um dos

destaques da rea. Seus livros j foram utilizados como apoio escolarizao de milhes de jovens e adultos, antes de ser adotado pelo MEC, em vrios estados.

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Artigos de intelectuais, pesquisadores e educadores favorveis ao livro

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Posicionamento da Associao de Lingustica Aplicada do BrasilPolmica em relao a erros gramaticais em livro didtico de Lngua Portuguesa revela incompreenso da imprensa e populao sobre a atuao do estudioso da linguagemA divulgao da lista de obras aprovadas pelo Programa Nacional de Livros Didticos (PNLD)

para o ensino da lngua portuguesa na Educao de Jovens e Adultos (EJA) provocou verdadeira celeuma na imprensa e comunidade acadmica sobre a aprovao de obras com erros de lngua portuguesa. Frases como Ns pega o peixe, os menino pega o peixe, Mas eu posso falar os livro e outras que transgridem a norma culta, publicadas no livro Por uma Vida Melhor, aprovado pelo PNLD e distribudo em escolas da rede pblica pelo MEC, causaram a indignao de jornalistas, professores de lngua portuguesa e membros da Academia Brasileira de Letras.

Ao contrrio de

contribuir para uma agenda partidria de manuteno da ignorncia, acusao levianamente imputada ao livro e ao PNLD, os erros em O grande incmodo, relacionado ao fato do livro relativizar o uso da norma culta, substituindo a concepo questo, se interpretados de certo e errado por adequado e inadequado, retrata a contextualizadamente e incompreenso da imprensa e populao em relao ao explorados de forma escopo de atuao de pesquisadores que se ocupam em interessante em sala de compreender e analisar os usos situados da linguagem. aula, contribuem para o desenvolvimento da A polmica em torno deste relativismo, assim como a interpretao deturpada de pesquisas na rea da conscincia lingustica, linguagem, no so novas. Em novembro de 2001, na mostrando que apesar de reportagem de capa da Revista Veja, intitulada Falar e todas as variedades serem escrever bem, eis a questo, Pasquale Cipro Neto dirigiuaceitveis, o domnio da se ofensivamente a pesquisadores da rea de linguagem que defendem a integrao de outras variedades no ensino norma culta fundamental para efetiva participao de lngua portuguesa como uma corrente relativista e esquerdistas de meia pataca, idealizadores de tudo o que nas diversas atividades popular inclusive a ignorncia, como se ela fosse sociais de mais prestgioatributo, e no problema, do "povo" (Fonte, Veja Online, consultada em 20.05.2011).

Mais de uma dcada aps a publicao dos PCN e da instituio do PNLD de Lngua Portuguesa, ambos frutos das pesquisas destes estudiosos relativistas, a imprensa e populao continuam a interpretar de forma deturpada a proposta de ensino defendida nas diretrizes curriculares e transpostas didaticamente nas colees aprovadas no PNLD. 5

Tal deturpao ressalta um problema srio de leitura, muito provavelmente decorrente da prtica cristalizada historicamente de se ensinar a gramtica pela gramtica, de forma abstrata e no situada. Pois, ao situar e inscrever as frases incorretas responsveis por tanto desconforto no contexto concreto em que foram enunciadas, fica clara a inteno da autora de mostrar que precisamos adequar a linguagem ao contexto e optar pela variante mais adequada situao de comunicao, preceito bsico para participao nas diversas prticas letradas em que nos engajamos no mundo social. Assim, ao contrrio de contribuir para uma agenda partidria de manuteno da ignorncia, acusao levianamente imputada ao livro e ao PNLD (e, portanto, aos estudiosos da linguagem), os erros em questo, se interpretados contextualizadamente e explorados de forma interessante em sala de aula, contribuem para o desenvolvimento da conscincia lingustica, mostrando que apesar de todas as variedades serem aceitveis, o domnio da norma culta fundamental para efetiva participao nas diversas atividades sociais de mais prestgio. Se, portanto, situarmos a linguagem, no h razo para polmica ou desconforto e a crtica daqueles preocupados em garantir o ensino da norma culta torna-se absolutamente nula, sem sentido. O niilismo desta crtica est claramente estampado no enunciado de Pasquale, citado naquela reportagem de uma dcada: "Ningum defende que o sujeito comece a usar o portugus castio para discutir futebol com os amigos no bar", irrita-se Pasquale. "Falar bem significa ser poliglota dentro da prpria lngua. Saber utilizar o registro apropriado em qualquer situao. preciso dar a todos a chance de conhecer a norma culta, pois ela que vai contar nas situaes decisivas, como uma entrevista para um novo trabalho". (Fonte, Veja Online, consultada em 20.05.2011) A relativizao veementemente criticada parece, por fim, ter sido tomada como verdade no interior do mesmo enunciado. Dez anos depois vemos em livros didticos a possibilidade de formar poliglotas na lngua materna. Isso , sem dvida, um progresso. Resta ainda melhorar as leituras da populao sobre os estudos situados da linguagem. Neste sentido, a Associao de Lingustica Aplicada do Brasil expressa seu repdio atitude autoritria e unssona de vrios veculos da imprensa em relao concepo deturpada de erro e convida seus membros a se posicionarem nestes veculos de forma mais efetiva e veemente sobre questes relacionadas a ensino de lnguas e polticas lingusticas, construindo leituras mais situadas, persuasivas e plurilngues.QUEM

A Associao de Lingustica Aplicada do Brasil (ALAB) foi fundada em 1990.

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Lngua e IgnornciaMaria Jos Foltran - Presidente da AbralinNas duas ltimas semanas, o Brasil acompanhou uma discusso a respeito do livro didtico Por uma vida melhor, da coleo Viver, aprender, distribuda pelo Programa Nacional do Livro Didtico do MEC. Diante de posicionamentos virulentos externados na mdia, alguns at histricos, a ASSOCIAO BRASILEIRA DE LINGUSTICA - ABRALIN - v a necessidade de vir a pblico manifestar-se a respeito, no sentido de endossar o posicionamento dos linguistas, pouco ouvidos at o momento. Curiosamente de se estranhar esse procedimento, uma vez que seria de se esperar que estes fossem os primeiros a serem consultados em virtude da sua expertise. Para alm disso, ainda, foram muito mal interpretados e mal lidos. O fato que, inicialmente, chama a ateno foi que os crticos no tiveram sequer o cuidado de analisar o livro em questo mais atentamente. As crticas se pautaram sempre nas cinco ou seis linhas largamente citadas. Vale notar que o livro acata orientaes dos PCN (Parmetros Curriculares Nacionais) em relao concepo de lngua/linguagem, orientaes que j esto em andamento h mais de uma dcada. Alm disso, no somente este, mas outros livros didticos englobam a discusso da variao lingustica com o intuito de ressaltar o papel e a importncia da norma culta no mundo letrado.

Os crticos notiveram sequer o cuidado de analisar o livro em questo mais atentamente

Portanto, em nenhum momento houve ou h a defesa de que a norma culta no deva ser ensinada. Ao contrrio, entende-se que esse o papel da escola, garantir o domnio da norma culta para o acesso efetivo aos bens culturais, ou seja, garantir o pleno exerccio da cidadania. Esta a nica razo que justifica a existncia de uma disciplina que ensine lngua portuguesa a falantes nativos de portugus.

A lingustica se constituiu como cincia h mais de um sculo. Como qualquer outra cincia, no trabalha com a dicotomia certo/errado. Independentemente da inegvel repercusso poltica que isso possa ter, esse o posicionamento cientfico. Esse trabalho investigativo permitiu aos linguistas elaborar outras constataes que constituem hoje material essencial para a descrio e explicao de qualquer lngua humana. Uma dessas constataes o fato de que as lnguas mudam no tempo, independentemente do nvel de letramento de seus falantes, do avano econmico e tecnolgico de seu povo, do poder mais ou menos repressivo das Instituies. As lnguas mudam. Isso no significa que ficam melhores ou piores. Elas simplesmente mudam. Formas lingusticas podem perder ou ganhar prestgio, podem desaparecer, novas formas podem ser criadas. Isso sempre foi assim. Podemos ressaltar que muitos dos usos hoje to cultuados pelos puristas originaram-se do modo de falar de uma forma alegadamente inferior do Latim: exemplificando, as formas noscum e voscum, estigmatizadas por volta do sculo 7

III, por fazerem parte do chamado latim vulgar, originaram respectivamente as formas conosco e convosco. Outra constatao que merece destaque o fato de que as lnguas variam num mesmo tempo, ou seja, qualquer lngua (qualquer uma!) apresenta variedades que so deflagradas por fatores j bastante estudados, como as diferenas geogrficas, sociais, etrias, dentre muitas outras. Por manter um posicionamento cientfico, a lingustica no faz juzos de valor acerca dessas variedades, simplesmente as descreve. No entanto, os linguistas, pela sua experincia como cidados, sabem e divulgam isso amplamente, j desde o final da dcada de sessenta do sculo passado, que essas variedades podem ter maior ou menor prestgio. O prestgio das formas lingusticas est sempre relacionado ao prestgio que tm seus falantes nos diferentes estratos sociais. Por esse motivo, sabe-se que o desconhecimento da norma de prestgio, ou norma culta, pode limitar a ascenso social. Essa constatao fundamenta o posicionamento da lingustica sobre o ensino da lngua materna.

entende-se que esse o papel da escola, garantir o domnio da norma culta para o acesso efetivo aos bens culturaisIndependentemente da questo didtico-pedaggica, a lingustica demonstra que no h nenhum caos lingustico (h sempre regras reguladoras desses usos), que nenhuma lngua j foi ou pode ser corrompida ou assassinada, que nenhuma lngua fica ameaada quando faz emprstimos, etc. Independentemente da variedade que usa, qualquer falante fala segundo regras gramaticais estritas (a ampliao da noo de gramtica tambm foi uma conquista cientfica). Os falantes do portugus brasileiro podem fazer o plural de o livro de duas maneiras: uma formal: os livros; outra informal: os livro. Mas certamente nunca se ouviu ningum dizer o livros. Assim tambm, de modo bastante generalizado, no se pronuncia mais o r final de verbos no infinitivo, mas no se deixa de pronunciar (no de forma generalizada, pelo menos) o r final de substantivos. Qualquer falante, culto ou no, pode dizer (e diz) vou compr para comprar, mas apenas algumas variedades diriam 'd' para 'dor'. Estas ltimas so estigmatizadas socialmente, porque remetem a falantes de baixa extrao social ou de pouca escolaridade. No entanto, a variao da supresso do final do infinitivo bastante corriqueira e no marcada socialmente. Demonstra-se, assim, que falamos obedecendo a regras. A escola precisa estar atenta a esse fato, porque precisa ensinar que, apesar de falarmos vou compr precisamos escrever vou comprar. E a lingustica ao descrever esses fenmenos ajuda a entender melhor o funcionamento das lnguas o que deve repercutir no processo de ensino. Por outro lado, entendemos que o ensino de lngua materna no tem sido bem sucedido, mas isso no se deve s questes apontadas. Esse um tpico que demandaria uma outra discusso muito mais profunda, que no cabe aqui. Por fim, importante esclarecer que o uso de formas lingusticas de menor prestgio no indcio de ignorncia ou de qualquer outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorncia no est ligada s formas de falar ou ao nvel de letramento. Alis, pudemos comprovar isso por meio desse debate que se instaurou em relao ao ensino de lngua e variedade lingustica.QUEM A Associao Brasileira de Lingstica foi fundada em 1969. Conta com mais de 1.000 pesquisadores associados em todo o pas. Saiba mais em www.abralin.org.br. Maria Jos Foltran professora do Departamento de Lingstica, Letras Clssicas e Vernculas da Universidade Federal do Paran, com doutorado em Lingstica pela USP.

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Educao de Jovens e Adultos e Programa Nacional do Livro Didtico/ EJAA cada ano, nos meses de outubro, assistimos a campanhas miditicas sobre o dia dos professores. Sobre como a profisso deve ser dignificada, valorizada, e que educao ainda no prioridade. Isso, a princpio, demonstra um reconhecimento, por parte da sociedade, acerca da importncia do profissional de educao. Entretanto, nessas ltimas semanas, a sua capacidade discricionria vem sendo posta em xeque. O livro "Por uma vida melhor", pautado pela imprensa nessas ltimas semanas, foi escrito por professores com experincia em educao de jovens e adultos; sua seleo para o PNLD/ EJA (Programa Nacional do Livro Didtico/ Educao de Jovens e Adultos) foi feita por professores de universidades pblicas; sua escolha, para ser utilizado em escolas pblicas, feita por professores. E a isso, em momento algum, foi atribuda a relevncia devida nas notcias veiculadas. O estudante de Eja enfrenta diversos obstculos para continuar seus estudos. Os principais so a baixa auto-estima causada pela defasagem idade/ srie e a necessidade de dividir seu tempo e sua dedicao com trabalho, escola e famlia. A escola tem por obrigao ajud-lo nesse processo. Reconhecer suas vivncias, sua cultura, seu conhecimento, sua linguagem o primeiro passo. Acaso o exemplo do livro, relativo variante popular da norma culta, fosse "tava" (estava) ou expresses de cacofonias comumente usadas "l tinha" ou "por cada", a polmica seria to grande assim? O controle pblico deve ser exercido pela comunidade escolar e pela sociedade em geral. direito do cidado. Mas preciso garantir que os argumentos sejam expostos, lidos, interpretados sem conceitos preestabelecidos e que no haja manipulao por interesses polticos ou econmicos o que, sabe-se, difcil de acontecer em um programa do porte do PNLD e que envolve o mercado editorial. Sobretudo preciso reconhecer e respeitar o protagonismo do professor no processo de ensino-aprendizagem. ele o profissional preparado para essa mediao e esse debate. Braslia, 27 de maio de 2011

CLEUZA RODRIGUES REPULHO Dirigente Municipal de Educao de So Bernardo do Campo/ SP Presidenta da Undime 9

Nota pblica ANPED, ANPAE, ANFOPE, CEDES E CNTEA Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao (ANPEd); a Associao Nacional de Poltica e Administrao da Educao (ANPAE); a Associao Nacional pela Formao dos Profissionais da Educao (ANFOPE), o Centro de Estudos Educao e Sociedade (CEDES) e a Confederao Nacional dos Trabalhadores em Educao (CNTE) vm a pblico manifestarem-se sobre a polmica instaurada pela imprensa sobre a adoo do livro "Por uma vida melhor", de autoria de Heloisa Ramos, pelo Ministrio da Educao. Consideraram que as crticas que vm sendo difundidas pelos meios de comunicao so infundadas, alm de contriburem para o preconceito e a discriminao social. Diante disso, as referidas entidades assumem o depoimento da pesquisadora Marlene Carvalho, como expresso de sua posio crtica. Braslia, 27 de maio de 2011. Eliza Bartolozzi Ferreira

A fala dos pobres: muito barulho por nada Trabalho h mais de 20 anos com formao inicial e continuada de professores do ensino fundamental e tenho procurado discutir com eles sobre a legitimidade dos falares populares, a necessidade de reconhecer que a lngua dos pobres tem regras prprias, expressividade e economia de recursos. No prestigiada socialmente, no tem valor no mercado de empregos de colarinho branco, no admitida na Academia, mas, do ponto de vista lingustico, to boa quanto o dialeto chamado padro. A diferena maior que os falantes do dialeto padro tm o poder poltico, social e econmico que falta aos pobres. No cabe escola ignorar, ou censurar as variantes populares, mas sim respeitar a fala dos alunos e, ao mesmo tempo, ensinar a todos a empregar tambm a norma culta em ocasies sociais que exigem um registro formal da lngua e, principalmente, como us-la na escrita. Sobre isso que interessa discutir agora, e no dar continuidade a esta polmica estril sobre um livro destinado a jovens e adultos que reconhece a existncia e a legitimidade de formas verbais tpicas dos dialetos populares. As pessoas que criticaram o livro em questo que provavelmente no leram - devem ler o captulo "Escrever diferente de falar", para constatar que a autora assume uma posio equilibrada e academicamente justificada em relao s variaes dialetais. Alm disso, o captulo contm numerosos exerccios de concordncia nominal e verbal e pontuao, rigorosamente de acordo com a gramtica da norma culta. Uma ou duas frases, fora do contexto do captulo, esto sendo utilizadas para condenar um livro e a posio da autora em favor da lngua dos pobres. Marlene Carvalho, professora aposentada da Universidade Catlica de Petrpolis (UCP) e pesquisadora do Laboratrio de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educao (LEDUC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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O que discutir sobre o polmico livro?Pasquale Cipro Neto Em 1988, eleita prefeita de So Paulo, a professora Luiza Erundina nomeou Paulo Freire secretrio da Educao do municpio. Antes de assumir, o consagrado educador disse mais ou menos isto: "A criana ter uma escola na qual a sua linguagem seja respeitada (...) Uma escola em que a criana aprenda a sintaxe dominante, mas sem desprezo pela sua (...) Precisamos respeitar a sua sintaxe mostrando que sua linguagem bonita e gostosa, s vezes mais bonita que a minha. E, mostrando tudo isso, dizer a ele: "Mas para tua prpria vida tu precisas dizer a gente chegou em vez de dizer a gente cheguemos". Isto diferente, a abordagem diferente. assim que queremos trabalhar, com abertura, mas dizendo a verdade". A declarao de Freire causou barulho semelhante ao que causou (e ainda causa) o livro "Por uma Vida Melhor", em que se mostram fatos relativos s variaes lingusticas. Nele, d-se como exemplo de norma popular a frase "Os livro ilustrado mais interessante esto emprestado". Dado o exemplo, explica-se isto: "O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente". O livro prossegue: "Reescrevendo a frase no padro culto da lngua, teremos: "Os livros ilustrados mais interessantes esto emprestados". Voc pode estar se perguntando: "Mas eu posso falar 'os livro'?" Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situao, voc corre o risco de ser vtima de preconceito lingustico". H uma certa contradio na explicao, j que na frase popular a forma verbal ("esto") est no plural. Nessa variedade, o que se usa "t". O caso abordado no livro tecnicamente chamado de "plural redundante". Traduo: na forma culta ("Os livros ilustrados mais interessantes esto emprestados"), todos os elementos que se referem a "livros" (ncleo do sujeito) esto no plural (os, ilustrados, interessantes, esto, emprestados). assim que funciona a norma culta do espanhol, do portugus, do italiano e do francs, por exemplo. Em francs, o plural redundante se d essencialmente na escrita; na fala, singular e plural muitas vezes se igualam.

Definitivamente, no se pode dizer que o livro "ensina errado"

Em ingls, pluraliza-se o substantivo; o artigo, o possessivo e o adjetivo so fixos (na escrita e na fala). Quanto ao verbo, a terceira do singular do presente diferente das demais pessoas em 99,99% dos casos; no pretrito e no futuro, h apenas uma forma para todas as pessoas. O fato que a ausncia do plural redundante no se restringe variedade popular do portugus do Brasil. Tambm fato que, apesar de algumas afirmaes pueris (""Mas eu posso falar "os livro'?" Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situao, voc corre o risco de ser vtima de preconceito lingustico"), em nenhum momento o livro nega a existncia da norma culta, como tambm no se nega a mostr-la e ensin-la. H vrios exerccios em que se pede a passagem da norma popular para a culta. Definitivamente, no se pode dizer que o livro "ensina errado". O cerne da questo outro. O que expliquei sobre o exemplo do livro assunto da lingustica, que, grosso modo, pode ser definida como "estudo da linguagem e dos princpios gerais de funcionamento e evoluo das lnguas" ("Aulete"). A lingustica no discute como deve ser; discute como , como funciona. O 11

que parece cabvel discutir se princpios de lingustica devem ser abordados num livro que no se destina a alunos de letras, em que a lingustica disciplina essencial. Esse o verdadeiro debate. No faltam opinies fortes dos dois lados. isso.

Pasquale Cipro Neto, 02/06/2011O ltimo texto (sobre o livro "Por uma Vida Melhor") deu o que falar. Inmeros leitores me agradeceram pelas explicaes tcnicas que dei sobre a questo. Alguns perguntaram por que no tomei partido. Tomei. Afirmei que pueril a passagem do livro sobre o preconceito lingustico. Afirmei categoricamente que a obra no ensina (o) errado. Disse tambm que o cerne da questo a pertinncia ou no da aplicao de princpios da lingustica num livro que no se destina a alunos de letras. Afirmei isso em respeito a colegas srios que acham descabida essa aplicao. E tambm porque a realidade mostra que muita gente ligada ao ensino errou feio (e ainda erra) na leitura do que se diz na obra (viu as referncias variedade popular como pregao do valetudo). Professores me escreveram para perguntar "sobre as novas regras da gramtica". No faltaram jornalistas querendo entrevistar-me sobre o mesmo "tema". Sou um tanto suspeito para falar da questo toda porque, mutatis mutandis, aplico esses conceitos h 36 anos, na sala de aula, h 17, na TV Cultura, e h 14, na Folha. Termino com trechos das mensagens (convergentes) que troquei com o eminente professor Adilson Rodrigues, coautor, com a no menos eminente professora Magda Soares, de obras magnas sobre o ensino da lngua materna. Diz o Mestre: "A gramtica "formal" no pode nem deve ser uma ditadura da linguagem. Ela tem que ser esclarecedora e no discriminadora. (...) A questo aceitar o que ele (o aluno) traz, at como elemento de cultura, e acrescentar a aprendizagem TAMBM da norma culta, at como forma de propiciar a ascenso econmica e social do aluno". isso.

QUEM Pasquale Cipro Neto professor de portugus desde 1975, tambm colunista dos jornais Folha de S.Paulo, O Globo e Dirio do Grande ABC, entre outros, e da revista literria Cult. o idealizador e apresentador do programa Nossa Lngua Portuguesa, transmitido pela Rdio Cultura (So Paulo) AM e pela TV Cultura, e do programa Letra e Msica, transmitido pela Rdio Cultura AM.

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Uma falsa polmicaMarcos Bagno (Unb) Publicado em 23/05/2011 A discusso em torno do livro didtico "Por uma vida melhor" nos revela, para comear, a patente ignorncia que impera nos nossos meios de comunicao a respeito de lngua e de ensino de lngua. Ignorncia porque o tratamento da variao lingustica, como fenmeno inerente a toda e qualquer lngua humana, est presente no currculo educacional h pelo menos quinze anos, desde que foram publicados, em 1997, os Parmetros Curriculares Nacionais, na primeira gesto do professor Paulo Renato frente do Ministrio da Educao. Esse dado factual j deixa evidente que a acusao de que "isso coisa de petistas" que querem "ensinar a falar errado como o Lula" no tem o menor fundamento, a no ser, de novo, a cabal ignorncia dos que a pronunciam. Ao fazer tanto alarde em torno de algo que para os educadores uma prtica j consolidada, essa falsa polmica, na verdade, mero pretexto para os que se empenham em reunir mais munio para desacreditar o governo da presidente Dilma Rousseff: os mesmos que, amparados pela grande mdia (comprometida at as entranhas com os interesses das elites de um pas campeo mundial das desigualdades), tornaram a ltima campanha presidencial um desfile de mentiras grotescas. Por isso, melhor procurar em outro canto, porque aqui a "culpa" no deste governo, mas vem de muito antes. O mais chocante nesse caso a facilidade leviana com que muitas pessoas tm abordado a questo. S de terem ouvido falar do caso, elas se acham suficientemente municiadas para fazer comentrios. Muitas deixam evidente que nunca viram a cor do livro didtico mencionado e que falam da boca para fora, inspiradas nica e exclusivamente em suas crenas e supersties sobre o que uma lngua e o que significa ensin-la. Dizer que o livro "ensina a falar errado" uma inverdade sem tamanho. O livro apenas quer fazer o trabalho honesto de apresentar a seus usurios a realidade do portugus brasileiro em suas mltiplas variedades. Ser que vamos ter de excluir dos livros de Histria toda meno escravido porque hoje "errado" promover o trabalho escravo? Ao abordar a escravido o livro de Histria por acaso est "ensinando" algum a escravizar outros seres humanos? Muitos bons resultados tm sido obtidos na educao de jovens e adultos quando, como preparao do terreno para ensinar a eles as normas prestigiadas de falar e de escrever, lhes mostramos que seu prprio modo de falar no absurdo nem ilgico, mas tem uma gramtica prpria, segue regras to racionais quanto as que vm codificadas pela tradio normativa. Alis, as regras das variedades populares so, muitas vezes, bem mais racionais do que as regras normatizadas. Criando-se assim um ambiente acolhedor e culturalmente sensvel, o aprendizado da to reverenciada "norma culta" se torna menos traumtico do que sempre foi. O repdio ao tratamento da variao lingustica na sala de aula , como sempre, o secular repdio que nossas elites sempre tm manifestado contra tudo o que "vem de baixo" e contra todo esforo de democratizao efetiva da nossa sociedade.QUEM MARCOS BAGNO linguista, escritor, tradutor e professor do Instituto de Letras da Universidade de Braslia.

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Analisar e opinar. Sem lerBateram duro em um livro com base na leitura de apenas uma das pginas de um dos captulos Srio Possenti (Unicamp), 22/05/2011 Caderno Alis Cesse tudo o que a musa antiga canta / que outro valor mais alto se alevanta (...) dai-me uma fria grande e sonorosa / e no de agreste avena ou frauta ruda / mas de tuba canora e belicosa (os lusadas, canto i) O jornalismo nativo teve uma semana infeliz. Ilustres colunistas e afamados comentaristas bateram duro em um livro, com base na leitura de uma das pginas de um dos captulos. Houve casos em que nem entrevistado nem entrevistador conheciam o teor da pgina, mas apenas uma nota que estava circulando (meninos, eu ouvi). Nem por isso se abstiveram de "analisar". S um exemplo, um conselho e uma advertncia foram considerados. E dos retalhos se fez uma leitura enviesada. Se fossem submetidos ao PISA, a classificao do pas seria pior do que a que tem sido. Disseram que o MEC distribuiu um livro que ensina a falar errado; que defende o erro; que alimenta o preconceito contra os que falam certo. Mas o que diz o captulo? a) que h diferenas entre lngua falada e escrita. s um fato bvio. Quem no acredita pode ouvir os prprios crticos do livro em suas intervenes, que esto O jornalismo nos sites (no uma crtica: eles abonaram a constatao do livro); b) que cada variedade da lngua segue regras diferentes das de outra variedade. O que tambm bvio. Qualquer um pode perceber que os livro, as casa, as garrafa seguem uma regra, um padro. So regulares: plural marcado s no primeiro elemento. Consta-se ouvindo ou olhando, como se constata que tucanos tm bico desproporcional. Ningum diz que est errado; todos os tucanos tm bico igual, seu bico regular, seu bico "certo"; c) que h diferenas entre lngua falada e escrita, que no se restringem gramtica, mas atingem a organizao do texto (um teste gravar sua fala, e transcrever; quem pensa que fala como escreve leva sustos);

d) que na fala e na escrita h nveis diferentes: no se escreve nem se fala da mesma maneira com amigos e com autoridades (William Bonner acaba de dizer "vamo l sorti a prxima cidade". Houve outros dados notveis nos estdios: "onde fica as leis da concordncia?" e "a lngua onde nos une"...); e) deve-se aprender as formas cultas da lngua: todo o captulo insiste na tese ( bem conservador!) e todos os exerccios pedem a converso de formas faladas ou informais em formas escritas e formais. O que mais se pode querer de um livro didtico? Ento, por que a celeuma? Tentarei compreender. Foram trs as passagens do texto que causaram a reao. O restante no foi comentado. 14

nativo teve uma semana infeliz. Ilustres colunistas e afamados comentaristas bateram duro em um livro, com base na leitura de uma das pginas de um dos captulos

Uma questo refere-se ao conceito de regra: quem acha que gramtica quer dizer gramtica normativa toma o conceito de regra como lei e o de lei como ordem: deve-se falar / escrever assim ou assado; as outras formas so erradas. Mas o conceito de regra / lei, nas cincias (em lingstica, no caso), tem outro sentido: refere-se regularidade (matria atrai matria, verbos novos so da primeira conjugao etc.). Os livro segue uma regra. E uma gramtica conjunto de regras, tambm descritivas. Outro problema foi responder "pode" pergunta se se pode dizer os livro. "Pode" significa possibilidade (pode chover), mas tambm autorizao (pode comer buchada). No livro, "pode" est entre possibilidade e autorizao. Foi esta a interpretao que gerou as reaes. Alm disso, comentaristas leram "pode" como "deve". E disseram que o livro ensina errado, que o errado agora certo (a tese ganhou a defesa de Jos Sarney!). A terceira passagem atacada foi a advertncia de que quem diz os livro pode ser vtima de preconceito. Achou-se que no h preconceito lingustico. Mas a celeuma mostra que h, e est vivssimo. Uma prova foi a associao da variedade popular ao risco do fim da comunicao. Li que o portugus "correto" efeito da evoluo (pobre Darwin!). Ouvi que a escrita (!) separa os homens dos animais! Esse discurso quer dizer que "eles" no pensam direito. O curioso que os comentaristas so todos letrados, falam vrias lnguas. Mas no se do conta de que um ingls diz THE BOOKS, e que a falta de um plural no constitui problema; que um francs diz LE LIVR(e), para les livres, e que a falta dos "ss" no impede a veiculao do sentido "mais de um". Mas pior que a negao do preconceito foi a leitura segundo a qual o livro estimula o preconceito contra os que falam ""certo"", discurso digno de Bolsonaro, embora em outro domnio: foi o nobre deputado que entendeu a defesa dos homossexuais como um ataque aos heterossexuais. Um gnio da hermenutica! Mas h um problema ainda mais grave do que todos esses. De fato, ele sua origem. Eles no defendem a gramtica. Nossos "intelectuais" no conhecem gramticas. Nunca as leram inteiras, incluindo as notas e citaes, e considerando as discordncias entre elas (acham que as adjetivas explicativas "vm" entre vrgulas!). Eles conhecem manuais do tipo "no erre" (da redao etc.), que so teis (tenho vrios, para usar, mas tambm para rir um pouco) como ferramentas de trabalho em certos ambientes, em especial para defensores da norma culta que no a dominam. Mas o suprassumo foi a insinuao de que o livro seria a defesa da fala "errada" de Lula. Ora, este tipo de estudo se faz h pelo menos 250 anos, desde as gramticas histricas. Alguns acharam que estas posies so de esquerda. No so! Os "esquerdistas" detestam os estudos variacionistas. Consideram-nos funcionalistas, vale dizer, burgueses. Por que defend-los, ento? Porque permitem que os estudos de lngua cheguem pelo menos poca baconiana (Bacon o nome do autor do Novum Organon, um cara do sculo XVI. No toucinho defumado).QUEM Srio Possenti Professor do Departamento de Lingustica da Universidade Estadual de Campinas e autor de Por que (no) ensinar gramtica na escola, Os humores da lngua, Os limites do discurso, Questes para analistas de discurso e Lngua na Mdia

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A batalha da lngua na guerra das culturasMaria Alice Setubal e Maurcio Ernica "O fato de um livro aprovado pelo Ministrio da Educao (MEC) afirmar que legtimo, sim, usar modos de falar populares reavivou antigas polmicas. Como de hbito, vrias vozes se levantam, a maioria contrria posio do livro, e com muita frequncia se manifestam com tom carregado de paixes. Antes de tudo, antecipamos nosso ponto de vista: a escola deve assegurar aos alunos a aprendizagem da variante culta da lngua portuguesa, que a variante usada nos principais debates sobre as questes da vida pblica, na produo cientfica e em grande parte de nossa produo cultural. No que diz respeito a esse objetivo, no se devem fazer concesses de espcie alguma. Isso posto, cabe-nos dizer que o debate embola uma srie de questes diferentes e seria produtivo se pudssemos ter clareza sobre elas e discuti-las com alguma serenidade. Primeiro: somos, ainda hoje, culturalmente refns de uma gramtica normativa e de um ideal de correo lingustica muito distanciados da norma culta falada e escrita efetivamente praticada. Para ficarmos com uma ilustrao simples: de acordo com a gramtica normativa e os manuais de redao, deveramos usar sempre o verbo gostar com a preposio de. Uma pesquisa realizada pelo linguista Carlos Alberto Faraco, da Universidade Federal do Paran (UFPR), mostra, porm, que jornais de grande circulao e peas de publicidade rompem com essa regra, escrevendo, por exemplo, do jeito que voc gosta e no do jeito de que voc gosta. Esse um exemplo simples, mas usual. Todos temos a lembrana de aulas de gramtica que nos mostravam que falamos uma lngua errada. Na verdade, somos refns de uma gramtica normativa anacrnica e de uma idealizao do que seria o modo correto de falar e de escrever, que no reconhece a validade e a adequao sequer da nossa variante culta escrita, tal como praticada de fato. Segundo: no h uma lngua portuguesa nica, mas vrias. A lngua varia na histria e nos grupos sociais. As variaes no esto apenas no sotaque ou no vocabulrio das regies e grupos, esto tambm nas construes sintticas. Muitos dizem os livro; h quem pergunte quer ficar aqui mais eu?. Os mineiros dizem estou apaixonado com, os cariocas, tu vai e, os paulistas que algum aposentou (sem o se). So exemplos simples, mais uma vez. No estamos falando dos desvios daquele que est aprendendo a lngua e se arrisca em hipteses equivocadas, mas sim de formas de longa durao e consagradas pelo uso. No confronto das variaes, temos que o falar de uns errado segundo as normas de outros. E aqui est um ponto importante: uma dessas variantes a variante de prestgio, a variante usada pela imprensa, pela cincia, pelo Estado, por boa parte das artes; em suma, a variante das prticas culturais letradas, a variante culta. A variante culta, mesmo no correspondendo exatamente norma gramatical, torna-se medida do erro e do acerto das demais variantes. Ora, tomar o seu universo cultural como medida para avaliar a cultura do outro ... em linguagem simples, preconceito. Terceiro: o desenvolvimento das capacidades de pensamento e raciocnio no est ligado s variantes lingusticas. Bem verdade que a apropriao da lngua o que permite aos seres humanos o desenvolvimento das funes psicolgicas. Contudo, isso pode ser feito em qualquer variante lingustica. Em suma, possvel ser nscio e obtuso em linguagem culta e ser muito 16

inteligente em uma variante popular, com pouco prestgio, e vice-versa. Alis, filosofar em alemo, ingls, francs ou russo, por exemplo, s foi possvel porque em um dado momento as lnguas brbaras foram tomadas pelos filsofos como lnguas para a prtica da cultura letrada, desbancando o monoplio do velho latim. Quarto: importante que a escola reconhea a validade relativa das variantes lingusticas e, igualmente, a existncia de uma variante culta. Para muitas crianas originrias dos diversos segmentos das camadas populares de nosso Pas, a lngua da escola uma lngua estrangeira no sentido mais estrito do termo: lngua do outro. Ora, se essa variante, culta e prestigiosa, impe-se como referncia do falar certo, ela exerce, sim, sobre os falantes das outras variantes, uma forma de violncia simblica que nega a validade e a legitimidade do universo cultural dessas crianas e de suas famlias. O pacote s vendido inteiro: negar a validade das variantes lingusticas negar a diversidade cultural de nosso Pas e negar a cultura popular. Contudo, como afirmamos logo no incio, papel da escola ensinar e assegurar a aprendizagem da variante culta. Mas isso no precisa ser feito negando as demais. Pode ser feito, simplesmente, estimulando a existncia de cidados capazes de falar mltiplas variantes, cidados bilngues em sua prpria lngua. QUEM MARIA ALICE SETUBAL PRESIDENTE DO CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAO, CULTURA E AO COMUNITRIA (CENPEC) QUEM MAURICIO ERNICA PESQUISADOR DO CENPEC

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O senso comum confunde a lngua com a norma cultaTHAS NICOLETI DE CAMARGO Publicado em 18/05/2011 A polmica provocada pela publicao na imprensa de trechos do livro de Helosa Ramos nasce da defasagem entre a viso do ensino da lngua materna cultivada pelo senso comum e uma pedagogia desenvolvida com base na lingustica. Na condio de cincia, a lingustica tem por objetivo descrever a lngua, no prescrever formas de realizao. O trabalho do linguista passa ao largo dos frgeis conceitos de "certo" e "errado". fato, porm, que, para os leigos no assunto, o estudo da lngua parece se resumir exatamente a esses conceitos. A pedagogia que orienta a obra afronta, portanto, o senso comum, que se expressa no temor de que a escola v passar a ensinar o "errado". A ideia mostrar que mesmo realizaes sintticas como "os livro" ou "ns pega" tm uma gramtica, que, embora diversa da que sustenta a norma de prestgio social, constitui um sistema introjetado por um vasto grupo social -da ser possvel falar em variante lingustica. Embora goze de maior prestgio social, a norma culta apenas uma das variantes, no a prpria lngua. A viso distorcida do fenmeno lingustico municia o preconceito lingustico, manifesto na inferiorizao social daqueles que no dominam os recursos da variante culta. Cabe a uma pedagogia preocupada em promover a incluso tratar desse tipo de questo e fomentar entre os estudantes o respeito forma de expresso de cada um. Isso no significa, porm, deixar de ensinar a norma culta, que o cdigo de mediao necessrio numa sociedade complexa e um meio de acesso s referncias literrias e culturais que constituem a nossa tradio e reforam a nossa identidade.

QUEM THAS NICOLETI DE CAMARGO consultora de lngua portuguesa do Grupo Folha-UOL.

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O poder do erroCristvo Tezza, 24/05/2011

Eu no queria escrever sobre esse tema, por esgotamento. Mas tenho lido tanta bobagem, com o tom furibundo das ignorncias slidas, sobre o livro didtico que ensina errado, que no resisto a comentar. impressionante como observaes avulsas, sem contexto, eivadas de um desconhecimento feroz tanto do livro em si como de seu pressuposto lingustico, podem rolar pelo pas como uma bola de neve, encher linguia de jornais, revistas e noticirios e at mesmo estimular o confisco do material pela voz de polticos. Instituies de alto coturno, como a Academia Brasileira de Letras, manifestaram-se contra o horror de um livro didtico que ensina errado. At o presidente do Congresso, o imortal Jos Sarney, tirou sua casquinha patritica. A sensao que fica de que h uma legio de professores pelo Brasil afora obrigando alunos a copiar no caderno as formas do dialeto caipira, com o estmulo homicida do MEC (de qualquer governo seria o fim da picada politizar o tema). Sim a educao brasileira vai muito mal, mas esto errando obtusamente o foco. O que essa cegueira coletiva mostra, antes de tudo, o fato de que a lingustica a primeira cincia humana moderna, que se constituiu no final do sculo 18 com o objetivo de compreender a evoluo das lnguas no entrou no senso comum. As pessoas, letradas ou no, sabem mais sobre Astronomia do que sobre o funcionamento das lnguas, mas imaginam o contrrio. Eis uma cartilha bsica, nos limites da crnica: toda lngua, em qualquer parte do mundo e em qualquer ponto da histria, um conjunto de variedades; uma dessas variedades, em algum momento e em algumas sociedades, ganhou o estatuto da escrita, que se torna padro, defendida pelo Estado e o veculo de todas informaes culturais de prestgio; h diferenas substanciais entre as formas da oralidade e as formas da escrita (so gramticas diferentes, com diferentes graus de distino); a passagem da oralidade para a escrita um processo complexo que nos faz a todos bilngues na prpria lngua. Pedagogicamente, dar ao aluno a conscincia das diferenas lingusticas e de suas diferentes funes sociais um passo fundamental para o enriquecimento da sua formao lingustica. funo da escola promover o domnio da forma padro da escrita, estimular a leitura e o acesso ao mundo letrado, e tanto melhor ser essa competncia quanto mais o aluno desenvolver a percepo das diferenas gramaticais da oralidade e da vida real da lngua. Ora, todo livro didtico de portugus minimamente atualizado reserva um captulo ao tpico da variedade lingustica e ao papel da lngua padro dentro do universo das linguagens cotidianas. Num pas de profundos desnveis sociais como o Brasil, o reconhecimento da diferena lingustica o passo primeiro para o pleno acesso escrita e sua funo social. Ser isso to difcil de entender?QUEM Doutor em Literatura Brasileira, Cristvo Tezza professor de Lingustica na Universidade Federal do Paran. Ganhou o prmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance brasileiro de 2004, pelo seu livro O fotgrafo. Foi considerado pela Revista poca um dos 100 brasileiros mais influentes do ano de 2009.

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Fala mais variada que escritaEntrevista/Ana Maria Stahl ZillesO que pensa sobre a polmica? Que no tem fundamento. Ela est estabelecida nas informaes do primeiro captulo do livro, que sobre a diferena entre escrever e falar. Ele muito adequado porque diz que a escrita diferente da fala e que na fala existe muito mais variao do que na escrita. Faz a distino entre a variedade popular e a variedade culta, e mostra que elas tm sistemas de concordncias diferentes. Eles dizem que na variedade popular basta que o primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Quando os autores explicam que possvel falar os peixe, no esto querendo dizer que esse o certo, nem vo ensinar a pessoa a escrever errado. Isso como as pessoas j falam. A escola tem que ensinar a norma culta e o livro faz isso. O objetivo do captulo apenas deixar claro que uma coisa falar e outra escrever. Existe preconceito contra quem fala errado? Existem pesquisas feitas nos projetos de estudo de variao lingustica que entrevistaram as mesmas pessoas em intervalos de 15 e 20 anos. Observou-se que existe um movimento dos falantes se aproximando da norma culta. A populao brasileira est com acesso universal escola e tendo possibilidade de aprender a norma culta. O reconhecimento de que existe variao essencial para que ela no se sinta um ser excludo da escola. Se um professor diz para um aluno que o modo que ele, os pais e os amigos falam est errado, ele vai se sentir entre dois mundos. QUEM Ana Maria Stahl Zilles ps-doutora em lingustica pela New York University, professora da UNISINOS RS

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Polmica vaziaCarlos Alberto Faraco Publicado em 19/05/2011 O desvelamento da nossa cara lingustica tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o cho Corre pela imprensa e pela internet uma polmica sobre o livro didtico Por uma vida melhor, da coleo Viver, aprender, distribuda pelo Programa Nacional do Livro Didtico (do MEC) para escolas voltadas Educao de Jovens e Adultos (EJA). Segundo seus crticos, o livro, ao abordar a variao lingustica, estaria fazendo a apologia do erro de portugus e desvalorizando, assim, o domnio da chamada norma culta. O tom geral de escndalo. A polmica, no entanto, no tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a est sustentando pelo lado do escndalo, leu o que no est escrito, est atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorncia sobre a histria e a realidade social e lingustica do Brasil. Pior ainda: jornalistas respeitveis e at mesmo um conhecido gramtico manifestam indignao claramente apenas por ouvir dizer e no com base numa anlise criteriosa do material. No podemos seno lamentar essa irresponsvel atitude de pessoas que tm a obrigao, ao ocupar o espao pblico, de seguir comezinhos princpios ticos. Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas seguem o que recomenda o bom senso e a boa pedagogia da lngua. O assunto a concordncia verbal e nominal que, como sabemos se realiza, no portugus do Brasil, de modo diferente de variedade para variedade da lngua. H significativas diferenas entre as variedades ditas populares e as variedades ditas cultas. Essas diferenas decorrem do modo clivado como se constituiu a sociedade brasileira. Ou seja, a diviso lingustica reflete a diviso econmica e social em que se assentou nossa sociedade, diviso que no fomos ainda capazes de superar ou, ao menos, de diminuir substancialmente.

O tom geral de escndalo. A polmica, no entanto, no tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a est sustentando pelo lado do escndalo, leu o que no est escrito, est atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorncia sobre a histria e a realidade social e lingustica do Brasil

Muitos de ns acreditamos que a educao um dos meios de que dispomos para enfrentar essa nossa profunda clivagem econmica e social. Ns linguistas, por exemplo, defendemos que o ensino de portugus crie condies para que todos os alunos alcancem o domnio das variedades cultas, variedades com que se expressa o mundo da cultura letrada, do saber escolarizado.

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Para alcanar esse objetivo, indispensvel informar os alunos sobre o quadro da variao lingustica existente no nosso pas e, a partir da comparao das variedades, mostrar-lhes os pontos crticos que as diferenciam e chamar sua ateno para os efeitos sociais corrosivos de algumas dessas diferenas (o preconceito lingustico to arraigado ainda na nossa sociedade e que redunda em atitudes de intolerncia, humilhao, excluso e violncia simblica com base na variedade lingustica que se fala). Por fim, preciso destacar a importncia de conhecer essa realidade tanto para dominar as variedades cultas, quanto para participar da luta contra o preconceito lingustico. isso e apenas isso que fazem os autores do livro. E no somente os autores desse livro, mas dos livros de portugus que tm sido escritos j h algum tempo. Subjacentes a essa direo pedaggica esto os estudos descritivos da realidade histrica e social da lngua portuguesa do Brasil, estudos que tm desvelado, com cada vez mais detalhes, a nossa complexa cara lingustica. Desses estudos nasceu naturalmente a discusso sobre que caminhos precisamos tomar para adequar o ensino da lngua a essa realidade de modo a no reforar (como fazia a pedagogia tradicional) o nosso apartheid social e lingustico, mas sim favorecer a democratizao do domnio das variedades cultas e da cultura letrada, domnio que foi sistematicamente negado a expressivos segmentos de nossa sociedade ao longo da nossa histria. O desvelamento da nossa cara lingustica, porm, tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o cho. Preferem, ento, apegar-se dogmtica e raivosamente simplicidade dos juzos absolutos do certo e do errado. Mostram-se assim pouco preparados para o debate franco, aberto e desapaixonado que essas questes exigem.

QUEM Carlos Alberto Faraco um linguista brasileiro, professor de lngua portuguesa da Universidade Federal do Paran, da qual foi reitor durante os anos de 1990-1994.

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Ns pega o peixeLucia Furtado de Mendona Cyranka A sociedade brasileira tem participado, nos ltimos dias, de um debate incomum: Ser mesmo escandaloso tratar os fatos da lngua a partir de metodologia cientfica? Dizer que os livro e ns pega o peixe so estruturas existentes no portugus do Brasil proibido? E ainda: Deve ser tambm proibido que a escola reconhea essa variedade lingustica utilizada pelos alunos como legtima e os leve a aprender a correspondente da variedade culta, prestigiada? O mais estarrecedor de toda essa questo que, enquanto se condena o dialeto de milhes de brasileiros a ponto de se recomendar que ele continue excludo da reflexo na escola, o que est sendo dito que essa significativa poro da sociedade brasileira no tem linguagem, porque ela, simplesmente, no existe. Claro! Se nem pode ser reconhecida na escola! Mas o homem no se constitui pela linguagem? Se sua linguagem no reconhecida, a que fica ele reduzido? No ser isso uma violncia? Por que o preconceito lingustico, de efeito to avassalador da autoestima dos alunos de nossas escolas e mesmo dos que esto fora dela, no condenado pela Constituio Brasileira? Repetimos o que, felizmente, j tem sido dito amplamente, nesse debate: essa variedade lingustica no reconhecida tradicionalmente pela escola tem uma gramtica, com estruturas regulares. So variaes que acontecem em toda lngua. O nosso portugus culto, todos sabemos, veio do latim vulgar, assim como as demais lnguas romnicas. E esse portugus culto, todos tambm percebemos, continua mudando. No fundo, o que a atual polmica revela o incmodo causado pelo reconhecimento desta verdade: a variedade culta da lngua sempre esteve ligada dimenso de poder. Tentar aproxim-la da variedade popular, mesmo que para uma anlise comparativa, como propem as autoras do livro didtico em questo, constitui uma audcia imperdovel! Felizmente, temos constituda, no Brasil, uma competente comunidade cientfica para tratar das prementes questes relativas ao tratamento adequado da linguagem na escola. Esse debate em pauta mostra que estamos avanando em direo implementao de uma viso sociolingustica no trabalho escolar com a linguagem. Pensamos que essa proposta no tem mais volta... Como participante deste importante debate nacional, o Grupo de Pesquisa FALE, do NUPEL/Faculdade de Educao da UFJF, manifesta seu apoio a todas as instituies brasileiras - entre elas a ABRALIN e a ALAB - e colegas de trabalho que tm se manifestado a favor do ponto de vista adotado pelas autoras do livro didtico Por uma vida melhor.

QUEM Lucia Furtado de Mendona Cyranka coordenadora do Grupo de Pesquisa FALE Formao de professores, Alfabetizao, Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)/ www.ufjf.br/fale 23

Uma nao com variadas lnguasMiriam Lemle A rejeio exacerbada que causou a aprovao pelo MEC de um livro didtico no qual a diversidade na fala legitimada muito mais estranha do que essa tentativa de legitimao de falares populares. A observao de que as formas de falar variam tanto entre agrupamentos feitos em grandes dimenses quanto entre comunidades pequenas e vizinhas no nada de novo. Tal como ocorre em todas as naes no mundo letrado, tambm ns no Brasil divergimos na prosdia, na pronncia, no vocabulrio e em alguns aspectos da gramtica das lnguas que usamos na fala. Mediante critrios cientficos objetivos da cincia da linguagem no h como passar atestados de qualidade superior para uma forma de falar em detrimento da outra. Valoraes sociais sobre a variao existem, tal como existem valoraes sociais para cores de pele e olhos, lisura de cabelos, formato de narizes, preferncias culinrias, artsticas, de parceria sexual, laborial e tantas outras.

parte os preconceitos, seria biologicamente impossvel atingirmos a uniformidade lingustica, neste ou em qualquer outro pas, tendo em vista como acontece o processo de aquisio de linguagem: ele baseado na interao entre princpios universais da gramtica e parmetros de variao que permitem um leque de alternativas para a diversidade na linguagem.

Na sua parte de lngua portuguesa, o livro didtico 'Por uma vida melhor' tem sido lido com descuido e criticado injustificadamente, pois a autora explicita que os exemplos discutidos de frases de uma lngua que difere da nossa norma culta so provenientes do uso oral, a fala, e no da norma convencionada para lngua escritaOs princpios universais so princpios cognitivos inatos inerentes prpria natureza humana, nossa estrutura neurofisiolgica. So princpios arquitetnicos que formatam as gramticas de todas as lnguas, como juntar peas lexicais, atribuir classes gramaticais, formar grupos significativos, inserir marcas de concordncia entre verbo e sujeito, entre adjetivo e substantivo e outras mais exticas, deslocar sintagmas. Aos universais se soma um nmero finito de alternativas possveis para implementar o design da gramtica universal. Dentre os pontos em que podemos ter solues arquitetnicas alternativas esto as escolhas de tempos de verbo, conjugaes, declinaes, concordncias, ordem das palavras, deslocamentos, modos de representar comandos, negao, pergunta, exclamao e muita outra coisa que no cabe neste espao. Os pontos que ficam em aberto para a variedade na pronncia, na gramtica e no vocabulrio so muitos, mas cada criana depreende uma gramtica a partir de sua anlise das falas a que exposta. A ecloso da gramtica um dos milagres maravilhosos com que a natureza nos presenteia. Em menos de trs anos, todos os bebs fazem espoucar uma gramtica, uma proeza cognitiva que eles realizam inconscientemente, antes mesmo de serem capazes de jogar 24

domin, jogo da velha, cara ou coroa ou amarelinha. As gramticas atingidas pelas crianas de uma mesma comunidade convergem em grande parte, mas no so idnticas, sem que as divergncias prejudiquem a comunicao. Dentro deste quadro, que fica no mbito das cincias naturais, no mundo moderno construmos naes, comunidades que abrangem milhes de pessoas e de quilmetros quadrados, politicamente estruturadas, profundamente aliceradas no letramento. A partir disso, precisamos estabelecer normas para a lngua escrita, normas que obviamente precisam ter uso unnime. Por isso, todas as naes precisaram selecionar como norma uma das suas variedades de fala, etapa esta da normativizao que sempre resultou em certa dose de competio entre variedades. Em seguida, preciso construir um sistema escolar no qual essa variedade, convencionada como a norma culta, seja ensinada de maneira sistemtica, possibilitando aos alunos o bilinguismo: a lngua que falam precisar coexistir com a lngua que escrevero. No ensino escolar, convm que os pontos de contraste entre as gramticas coexistentes sejam apontados, descritos e discutidos. O contrato social que assegura uma norma culta gramaticalmente homognea precisa ser uma coero aceita pela comunidade nacional para seu prprio bom funcionamento, mas basta que essa coero seja entendida como dizendo respeito expresso atravs da escrita, sem invadir a expresso oral das pessoas. Na sua parte de lngua portuguesa, o livro didtico 'Por uma vida melhor' tem sido lido com descuido e criticado injustificadamente, pois a autora explicita que os exemplos discutidos de frases de uma lngua que difere da nossa norma culta so provenientes do uso oral, a fala, e no da norma convencionada para lngua escrita. E adverte que o uso de tais formas lingusticas na modalidade escrita inadequado. De onde derivam os numerosos e fortes protestos contra a aceitao da variao nos modos de falar? Qual a raiz do estrito apego dicotomia do certo ou errado em matria de lngua falada? Este um problema de outra ordem, que surpreende a uma parte diminuta da comunidade acadmica qual perteno. QUEM Miriam Lemle (Roma, 17 de dezembro de 1937) uma linguista brasileira. Em 2006 recebeu o ttulo Professora Emrita da UFRJ. Coordena desde 2003 o Laboratrio Clipsen (Computaes Lingusticas: Psicolingustica e Neurofisiologia), que congrega uma equipe interdisciplinar de professores e alunos dos programas de ps-graduao em Lingustica e em Engenharia Biomdica (LAPIS/COPPE) da UFRJ. Com esse projeto ganharia em 2004 e tambm em 2006 o prmio Cientista do Nosso Estado, da Fundao Carlos Chagas Filho de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), bem como o Edital Universal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) de 2003 e o de 2005. Coordena o Seminrio de Gramtica Gerativa e est tentando formalizar um novo grupo de pesquisa sobre a interface sintaxe-semntica em lnguas neolatinas na perspectiva da Morfologia Distribuda

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Dona NormaJos Miguel Wisnik Publicado em 21/05/2011 O imbrglio da vez a discusso sobre o manual de ensino da lngua portuguesa distribudo pelo MEC, chamado "Para uma vida melhor", da autoria de Heloisa Ramos. Li na imprensa, vi nos blogs e ouvi no rdio do carro vozes, desde sentenciosas a sardnicas e sarcsticas, dizendo que se tratava de uma descarada proposta de ensino do portugus pelo mtodo invertido, preconizando o erro de concordncia, o desvio sinttico e o assalto gramtica. Criticava-se a adoo do "luls" como idioma oficial da escola brasileira. Leio o captulo do livro em questo e vejo, no entanto, que a autora se dedica nele, a maior parte do tempo, a mostrar a importncia da pontuao, da concordncia e da boa ortografia na lngua escrita. Onde est o erro? Bater em teclas equivocadas quase uma praxe do debate cultural corrente, com ou sem rendimento poltico imediato. Na verdade, o livro assume, para efeitos pedaggicos, uma noo que se tornou trivial para estudantes de Letras desde pelo menos quando eu entrei no curso, em 1967. Os estudos lingusticos mostravam que a prtica das lnguas sujeita a muitas variantes regionais, sociais, e que a chamada "norma culta", preconizada pelos gramticos, uma entre outras variantes da lngua, no necessariamente a mais, ou a nica "correta". Desse ponto de vista, cientfico e no normativo, procura-se contemplar a multiplicidade das falas, reconhecidas na sua eficcia comunicativa, sem privilegiar um padro verbal ditado pelos segmentos letrados como nico a ser seguido. Discutirei adiante algumas consequncias Leio o captulo do livro pedaggicas disso. Mas a que me parece inquestionvel, e adotada com propriedade no livro em questo e vejo, no de Heloisa Ramos, a importncia de no se entanto, que a autora se estigmatizar os usos populares da lngua, dedica nele, a maior parte reconhecendo em vez disso a validade do seu funcionamento. nessa hora que ela dava como do tempo, a mostrar a exemplo a famigerada frase "Ns pega o peixe", ou, importncia da pontuao, ento, "Os menino pega o peixe". A autora no diz que da concordncia e da boa assim que se deve escrever. Mas tambm no deprecia a expresso: preconceitos parte, preciso ortografia na lngua reconhecer que no seu uso comum a frase funciona, escrita. Onde est o erro? porque a marca do plural no pronome ou no artigo suficiente para indicar que a ao exercida por um conjunto de meninos, e no por um s. Desse ponto de vista, eminentemente pragmtico, nenhum erro. A seguir, no mesmo esprito pragmtico, o livro afirma claramente a importncia de que a escola promova o domnio da norma culta, ligado lngua escrita, justificado pela sua necessidade em situaes especficas (aqui vir a minha discordncia). D exemplos de como corrigir um texto mal escrito, mostrando, dentro dos melhores critrios, como ele deve ganhar coeso interna, articulao sinttica, clareza nos seus recortes (pontuao) e seguir os critrios 26

ortogrficos. A grita contra o livro, por aqueles que, imagino, no o leram, uma estridente confirmao, em primeiro lugar, daquilo que o prprio livro diz e, em segundo lugar, daquilo que ele no diz, mas que deveria dizer. Afirmar cegamente, com alarme e com alarde, que o livro um atentado, tornado oficial, lngua portuguesa, pelo respeito localizado que ele d s variantes populares de fala que no usam extensivamente as flexes, isto , as normas letradas de concordncia, um sintoma ignorante e disseminado de que se concebe a lngua como um instrumento de prestgio, de privilgio e de poder. Mais que isso, a defesa exaltada e capciosa da suposta correo lingustica, desconsiderando todo o resto, uma desbragada demonstrao de ignorncia em nome da denncia da sua perpetuao. Culta, neste caso, de uma incultura cavalar. O tom desinformado e espalhafatoso da denncia encobre, mal, aquilo de que ele tenta fugir: o nosso analfabetismo crnico, difuso, contagiante. Hlio Schwartsman, em compensao, assim como Cristovo Tezza no programa de Monica Waldvogel, disseram coisas importantes e equilibradas. Hlio lembra que a passagem do latim s lnguas romnicas, o portugus includo, s se deu graas s provncias que passaram a falar um latim tecnicamente estropiado, sem as suas declinaes clssicas. Sem essa dinmica e o correspondente afrouxamento flexional, estaramos at hoje falando latim e usando as cinco declinaes. O ingls, por sua vez, muito menos flexional que o portugus. A frase "the boys get the fish", por exemplo, que funciona perfeitamente para marcar o plural, , do ponto de vista estrutural, uma espcie de "ns pega o peixe" institucionalizado. O horizonte do pragmatismo o que me parece estreito, no entanto, no livro do MEC. O domnio da norma culta justificado, nele, para que o falante tenha "mais uma variedade" lingustica sua disposio, para que no sofra preconceito, para que se desincumba em situaes formais que assim o exigem. muito pouco. A norma culta no nem um mero adereo de classe nem apenas uma variedade disposio do aluno para ele usar diante de autoridades ou para preencher requerimentos. A EDUCAO pela lngua no pode ser pensada apenas como um instrumento de adaptao s contingncias. A escrita um equipamento universal de apuro lgico, que est embutido na estrutura de uma lngua dada. Mergulhar nela e nas exigncias que lhe so inerentes um processo de autoconscincia e um salto mental de grandes consequncias. No se pode fazer por menos. Alm de "Para uma vida melhor", tem que ser tambm "Para uma vida maior". Bater em teclas equivocadas quase uma praxe do debate cultural corrente.

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Analfabetismo funcionalJos Miguel Wisnik, 28/05/11 No resisto a voltar discusso sobre o livro de Helosa Ramos, "Para uma vida melhor", oficializado pela chancela do MEC. Falei dele e da polmica que ele despertou, na semana passada, mas os efeitos sintomticos que o livro desencadeou ainda ficam ressoando demais. Talvez porque eu tenha sabido da notcia, revoltante em sua miudeza obscurantista, de que o deputado tila Nunes, do PSL do Rio, apresentou projeto de lei para que se proba a distribuio do livro nas escolas do estado. Suponho que esse tila no vai conseguir esterilizar os caminhos por onde passa, como o rei dos hunos que lhe d nome, mas a sua proposta cheia de sinais reveladores. O artigo de Jos Sarney na "Folha de S. Paulo", invocando Fernando Pessoa em nome da unidade lingustica da ptria, tambm no me fez bem. O que d s reaes o seu carter de sintoma de alguma outra coisa a desproporo entre o que se l em "Para uma vida melhor", dentro do seu contexto prprio, e as afirmaes de que ele convida perigosamente ao abandono da concordncia gramatical em nome de uma permissiva e perversa norma inculta a ser adotada generalizadamente. Como eu j disse aqui, o captulo expe com elegncia procedimentos para se escrever com limpidez, justificando-os pela necessidade de faz-lo em certos contextos. Extrai esses princpios de coeso, clareza e propriedade das necessidades do prprio texto que se escreve, balizados pela norma culta, sem tom-la como a verdade universal que ela no . Faz isso to bem que acaba demonstrando na prtica, em bom portugus, que a escrita segundo padres decantados pela tradio, em seu estado atual e vivo, no deveria ter vergonha de se apresentar aos estudantes e professores como um instrumento modelar a ser adotado como tal. Afinal, h de ser por algum motivo forte, maior do que aqueles que ele mesmo apresenta, que o livro pratica o padro lingustico que ele relativiza. Este o meu reparo filosfico e pedaggico, a meu ver de grandes consequncias, a ser considerado pela autora e pelo MEC: aceitar-se a multiplicidade das falas como um substrato cultural democrtico, sem preconceitos, sim, mas afirmar tambm a ampla validade, no meramente circunstancial, dos padres decantados pela lngua escrita como um repertrio a ser atingido, praticado e renovado, pelo seu longo alcance. Tudo isso que acabo de dizer faz parte de uma conversa esclarecida, sobre um trabalho pedaggico honesto, que teve o mrito, mesmo que no buscado, de tocar numa questo tabu. J a extenso das reaes escandalizadas adquire a dimenso do sintoma, a merecer uma psicanlise coletiva. Por que ser que to insuportvel que se admita com naturalidade as variantes lingusticas dos falares, e por que se teme com tanta nfase que a meno desse fato nas escolas v nos arrastar irremediavelmente para o pntano do caos lingustico? Porque esse pntano patina sob os prprios ps de quem fala. Nesse sentido, o projeto de lei do deputado do PSL um ndice hilariante. O projeto pretende proibir "qualquer livro, didtico, paradidtico ou literrio com contedo contrrio norma culta ou que viole de alguma forma o ensino correto da gramtica de nosso idioma nacional". Querer que a literatura obedea aos gramticos oficiais, sob pena de retirada do mercado, s pode ser o delrio de quem tropea na lngua portuguesa a cada frase. o que acontece no projeto de lei do deputado, que estende a sua justificativa a outros tipos de livro que "acabam fazendo apologia a questes criminais ou despertam precocemente o libido dos jovens, incentivando conceitos distorcidos da verdade social".28

"Apologia a questes criminais"? O deputado no forte em regncia nem no apuro semntico dos termos. "O libido dos jovens"? Ser que isso mesmo que estou lendo? Se for, ento esse tila um perigoso devastador da lngua portuguesa. O exemplo folclrico tem valor de sintoma, na sua caricatura. Jos Sarney, ao afirmar erradamente que se resolveu no Brasil "criminalizar quem fala corretamente", diz que "defender a lngua defender a ptria", acrescentando: "eis a origem da famosa frase de Fernando Pessoa: "A minha ptria a lngua portuguesa"". Mas Fernando Pessoa no est dizendo nessa frase do "Livro do desassossego", em tom sentencioso, que a lngua est a servio da defesa da ptria ("a lngua portuguesa a minha ptria"). Est invertendo esse raciocnio e dizendo que o seu compromisso de escritor com a lngua livre e criadora ("minha ptria a lngua portuguesa"). o que se v nos textos de Pessoa reunidos no livro "A lngua portuguesa", onde comea dizendo abertamente que a palavra falada democrtica e segue os usos. "Se a maioria pronuncia mal uma palavra, temos que a pronunciar mal. Se a maioria usa de uma construo errada, da mesma construo teremos que usar." O maior poeta do sculo no est preconizando o erro, est constatando que a lngua falada um fenmeno de massa que segue suas prprias leis, independente de qualquer norma, e arrasta os falantes para os seus usos coletivos. No muito diferente do livro distribudo pelo MEC. A palavra escrita, por outro lado, dizia Pessoa, impe suas necessidades e tem as suas regras como lastro. O escritor est livre delas, porque faz com a lngua o que quiser. O povo tambm est livre delas. O Estado, no entanto, atravs da escola, deve ensin-las como algo que nos serve de baliza e adianto. No como uma priso s regras. Para podermos estar mais livres delas.

QUEM Jos Miguel Soares Wisnik um msico, compositor e ensasta brasileiro. tambm professor de Literatura Brasileira na Universidade de So Paulo. Graduado em Letras (Portugus) pela USP (1970), mestre (1974) e doutor em Teoria Literria e Literatura Comparada (1980), pela mesma Universidade.

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O escndalo do livro que no existiaLus Nassif, 25/05/2011 Durante dias e dias o pas inteiro discutiu uma miragem, um no-fato, algo que no existia. E na discusso se leu de tudo, analistas com julgamentos definitivos sobre a questo, acadmicos soltando sentenas condenatrias, jornalistas atirando flechas na miragem. E tudo em cima de uma nuvem, uma sombra, um ectoplasma que nunca existiu. Poucas vezes na histria contempornea se viu manifestao to atrasada do que seja opinio pblica latino-americana. Parecia mais um daqueles contos do realismo fantstico de um Garcia Marques, uma parbola familiar de Julio Cortazar. Refiro-me a esse episdio sobre o suposto livro que ensinaria as crianas a ler a escrever errado. Esse livro, sobre o qual tantas mentes brilhantes despejaram esgoto puro, no existe. Inventaram um livro com o mesmo nome, com a mesma autora e imputaram a ele um contedo inexistente no livro original. O livro massacrado no defendia a norma "inculta". Apenas seguia recomendaes do Ministrio da Educao, em vigor desde 1997, de no desprezar a fala popular. Era uma recomendao para que os jovens alfabetizados, que aprendem a falar corretamente, no desprezem pessoas do seu prprio meio, que no O livro massacrado no tiveram acesso chamada norma culta. No entanto um pas que aspira a ser potncia, conduzido por um tipo de jornalismo tpico de pases atrasados, caiu de cabea na interpretao de que o livro ensinava a escrever errado. Criado o primeiro tumulto, personagens ilustres caram de cabea na verso vendida. O pas inteiro repetiu a fico criada, as melhores cabeas da mdia de massa embarcando em uma canoa furada, apenas repetindo o que ouviram falar.

Sem que um s tivesse ao menos lido o captulo, deram o que lhes era pedido: condenaes do livro e da autora, pela discutvel vantagem de sarem em jornais e programas de TV... dizendo bobagens. De repente, uma professora sria foi achincalhada, ofendida, tornando-se inimigo pblico, merecendo longos minutos no Jornal Nacional.

defendia a norma inculta. Apenas seguia recomendaes do Ministrio da Educao, em vigor desde 1997, de no desprezar a fala popular

Episdio semelhante ocorreu alguns anos atrs com uma professora de psicologia que fazia pesquisas sobre "reduo de danos" um tipo de poltica de sade visando ensinar os viciados a no se matarem. Foram apontadas ela e sua orientadora de 68 anos como traficantes em blogs de esgoto de portais de grande visibilidade. Depois, essa acusao leviana repercutida no Jornal Nacional.30

Em alguns setores, o pas vive momentos de trevas, de um atraso similar ao macartismo americano dos anos 50, como se toda a racionalidade, lgica, valores da civilizao tivessem sido varridos do mapa. E tudo debaixo do libi de uma luta poltica implacvel, que ideologiza tudo, transforma qualquer fato em campo de batalha, escandaliza qualquer coisa, fuzila qualquer pessoa em nome de uma guerra que j no tem rumo, objetivo. como um exrcito de cruzados voltando das batalhas perdidas e destruindo tudo o que veem sua frente apenas porque aprenderam a guerrear, a destruir e, sem guerras pela frente, praticassem o rito da execuo sumria por mero vcio.

QUEM Lus Nassif introdutor do jornalismo de servios e do jornalismo eletrnico no pas. Vencedor do Prmio de Melhor Jornalista de Economia da Imprensa Escrita do site Comunique-se em 2003, 2005 e 2008, em eleio direta da categoria. Prmio iBest de Melhor Blog de Poltica, em eleio popular e da Academia iBest.

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Escandalizado com o escndaloAffonso Romano Publicado em 21/05/2011 Estou escandalizado com o escndalo que armaram em torno do livro 'POR UMA VIDA MELHOR" de Heloisa Ramos da coleo "Viver, aprender". Finalmente tive acesso ao livro, que me foi dado por Cludio Mendona- Presidente da Fundao de Educao de Niteri. Antes havia lido entrevistas em que a autora tentava explicar seu livro, aos que no a queriam entender. Li tambm uma srie de improprios injustos e gracinhas fceis em torno da obra. Vi gente alarmada dizendo que o mundo tinha acabado por causa dessa obra maligna. Enfim, apocalipse now. Fico me indagando de onde que saiu essa onda de interpretaes equivocadas sobre o livro. Fico pensando nessa expresso esquisita que a imprensa tanto usa "repercutir a notcia". Parece at que a imprensa "oral" e no "escrita". Fica repercutindo boatos, o "ouvir dizer". Isto bate num problema crnico agravado pela modernidade: a cultura auricular (o ouvir dizer). E d-lhe boato, que vira calnia. Vocs se lembram daquela ria -"La Calunia"- da pera "Barbeiro de Sevilha" de Rossini? A calnia comea como uma brisa e acaba virando tempestade. Nesse caso, "tempestade em copo d'gua".

Fico me indagando de onde que saiu essa onda de interpretaes equivocadas sobre o livro. A calnia comea como uma brisa e acaba virando tempestade. Nesse caso, "tempestade em copo d'gua"

Em sntese: a autora no est fazendo nenhuma apologia do erro, est mostrando o que qualquer linguista sabe: a diferena entre a linguagem escrita e a falada. E fez (com uma equipe) um livro muito interessante para os alunos do EJA (Educao de Jovens e Adultos). ' bom que as pessoas se informem tambm sobre o que o EJA: cursos para o pessoal que entra tardia (e constrangidamente) em contato com a cultura formal. No livro tem textos de Italo Calvino e Ju Bananre, Rubem Braga e Melville, Daniel Defoe e Adoniran Barbosa. E abrindo o leque, referese tanto a Goya quanto a artistas contemporneos. Enfim, um painel da cultura, uma aula de semiologia. Ali, por exemplo, o ingls ensinado a partir do que est escrito nas camisetas e na publicidade. E ensina a esses 40 milhes que saram da faixa da pobreza a utilizarem o computador. Mas disto ningum falou...

Fico pensando em algo que digo num dos textos de LER O MUNDO (que chega s livrarias essa semana). As pessoas das comunidades carentes, s vezes, usam camisetas e nem sabem o que est escrito nelas. Pois bem, muita gente sofisticada se debrua sobre as letras dos jornais e no consegue desentranhar o significado dos fatos.

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O assunto mais amplo. H que analisar a esquizofrenia da cultura contempornea. Digo algo sobre isto no OBSERVATORIO DA IMPRENSA ( do combativo Alberto Dines) que ir ao ar na 3a.feira na TV Brasil (antiga TVE).

QUEM Affonso Romano um escritor brasileiro. Nas dcadas de 1950 e 1960 participou de movimentos de vanguarda potica. Em 1962 diplomou-se em letras e trs anos depois publica seu primeiro livro de poesia, "Canto e Palavra". Em 1965 lecionou na Califrnia (Universidade de Los Angeles - UCLA), e em 1968 participou do Programa Internacional de Escritores da Universidade de Iowa, que agrupou 40 escritores de todo o mundo. Em 1969 doutorou-se pela Universidade Federal de Minas Gerais e, um ano depois, montou um curso de ps-graduao em literatura brasileira na PUC do Rio de Janeiro. Foi Diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC-RJ, de 1973 a 1976. Ministrou cursos na Alemanha (Universidade de Kln), Estados Unidos (Universidade do Texas, UCLA), Dinamarca (Universidade de Aarhus), Portugal (Universidade Nova) e Frana (Universidade de Aix-en-Provence). Foi cronista no Jornal do Brasil (1984-1988) e do jornal O Globo at 2005. Atualmente escreve para os jornais Estado de Minas e Correio Brasiliense.

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Recebendo e prestando esclarecimentosDepoimento da procuradora Janice Ascari Disponvel em: http://janiceascari.blogspot.com/2011/05/recebendo-e-prestandoesclarecimentos.html Agradeo muito as indicaes de textos a respeito do tema (alguns eu j havia lido) e os esclarecimentos prestados nos comentrios ao post anterior, no Twitter e por e-mail. Descontados alguns argumentos de autoridade e solenemente ignoradas as ironias, grosserias e deselegncias de uns poucos, a troca de informaes deu-se em alto nvel e sempre saudvel. Devemos, sim, sempre conversar e conviver com a diversidade de ideias. Recebi ontem no celular um recado da Professora Vera Masago, coordenadora da ONG "Ao Educativa", responsvel pelo livro e uma de suas autoras, colocando-se disposio do Ministrio Pblico para prestar todos os esclarecimentos necessrios. S no retornei a ligao porque peguei o recado j tarde da noite, mas vou faz-lo. Agradeo a gentileza e elogio a Prof Vera pela atitude. A ONG "Ao Educativa" pode ser melhor conhecida aqui: http://www.acaoeducativa.org.br/portal/ Este blog pessoal, desconhecido e pouco acessado. Minha insignificante opinio s ganhou alguma dimenso por uma matria do jornal O Globo, ao qual deixei bem claro que estava falando como me e que no havia analisado juridicamente a questo:http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2011/05/16/procuradora-da-republicapreve-acoes-contra-uso-de-livro-com-erros-pelo-mecautora-se-defende-924478530.asp Pauto-me nica e Com as leituras e os esclarecimentos recebidos aqui e no conscincia e sei Twitter, entendi perfeitamente o ponto de vista dos especialistas em lingustica. Isoladamente considerado, reconhecer um erro, o que at que faz sentido. Entretanto, penso que h outros fao aqui, publicamente aspectos que devem ser considerados, dos pontos de (...) Expressei-me muito vista educacional, pedaggico e do ensino da Lngua Portuguesa de acordo com os programas oficiais dos mal. Crime, no sentido cursos regulares e das regras para o vestibular. O ensino tcnico-jurdico da palavra, na vida real um desafio para educadores e professores no h. de todas as matrias e seja qual for a classe social dos alunos. Minha me, hoje aposentada, foi professora da rede estadual a vida inteira. Tenho outras professoras na famlia. No h uma verdade absoluta e, se houver, ningum dono dela. Mantenho minha opinio discordante e no me convenci de que esse o melhor mtodo de ensino, por mais que possa estar correto do ponto de vista acadmico. Contudo, pauto-me nica e exclusivamente por minha conscincia e sei reconhecer um erro, o que fao aqui, publicamente. Assiste total razo ao Professor Doutor Clecio dos Santos Bunzen Jnior, Mestre e Doutor em Lingustica Aplicada pela Unicamp e Professor da Universidade Federal de So Paulo quando chama a minha ateno para o fato de eu ter dito que isso "era um crime".34

exclusivamente por minha

Expressei-me muito mal. Crime, no sentido tcnico-jurdico da palavra, no h. Peo desculpas ao Prof. Dr. Clecio, aos autores do livro e a quem mais possa ter se sentido ofendido. Utilizei o termo no sentido leigo, querendo significar um absurdo, algo inaceitvel. Por isso, fica aqui a minha retratao formal e meu esclarecimento, no sentido de que o termo "crime" foi por mim mal utilizado. No acusei o MEC nem os autores do livro de nenhuma conduta que, sob o aspecto estritamente jurdico, possa configurar crime. Como fosse um castigo, a linguagem vulgar me pregou uma pea. Por fim, o editorial "A pedadogia da ignorncia", do jornal O Estado de So Paulo, edio de hoje ( http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110518/not_imp720732,0.php ), traz uma informao inverdica. No lidero nenhum grupo de procuradores e no foi anunciado que o Ministrio Pblico Federal ir processar o MEC. Atuo em matria criminal em segunda instncia, perante o Tribunal Regional Federal, apenas. A atribuio para instaurar procedimentos sobre o tema dos membros do MP de primeira instncia que integram os ofcios de Tutela Coletiva, ou seja, os que trabalham com a defesa dos interesses sociais e individuais indisponveis, a quem compete promover o inqurito civil e a ao civil pblica, para a proteo do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (como a educao). Somente esses procuradores que podem analisar se o caso de se abrir, ou no, algum procedimento sobre o caso, seja por iniciativa prpria ou por representao. A mim, como me, foi gratificante ter me informado sobre as vrias facetas da questo, embora mantenha minha opinio discordante inicial. Meus respeitos e grata a todos pelo bom debate.

QUEM Janice Ascari Procuradora Regional da Repblica de So Paulo. Ao saber da notcia pelos jornais, declarou que o livro era um crime contra os jovens. Ao tomar conhecimento da questo, e aps ler o captulo, publicou esta retratao em seu blog. No entanto, algumas revistas e jornais continuaram a utilizar sua declarao inicial indevidamente.

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