Do Liminal Ao Liminoide

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    214 MEDIAES, LONDRINA, v. 17 n. 2, p. 214-257, Jul./Dez. 2012

    ARTIGOSDOI: 10 .5433/2176-6665.2012v17n2p214

    LIMINAL AO LIMINOIDE:EM BRINCADEIRA, FLUXO E RITUAL.

    UM ENSAIO DE SIMBOLOGIACOMPARATIVA

    1

    Victor Turner

    RESUMOA partir da discusso dasimbologia comparativa, que no deve ser confundida com aantropologia simblica, ficando dela distante, objetiva-se tomar o smbolo como evento, eno como coisa, pois ele tem mais a ver com uma dimenso semntica, que remete aosignificado na linguagem e no contexto. Desse ponto de vista, o smbolo ritual torna-se umfator de ao social, com um potencial criador ou inovador da ao humana. As aes de

    cultura expressiva possuem carter de sistemas semnticos dinmicos, ganhando e perdendosignificados, pois viajam atravs de um rito ou obra de arte. Entre fenmenos liminares eliminoides, ritos e brincadeiras, pensam-se os subsistemas da cultura expressiva para refletirsobre as experincias de communitas e deflow (fluxo), quando observamos o envolvimentototal da pessoa naquilo que ela faz.

    Palavras-chave: Simbologia comparativa. Ritos. Brincadeiras. Liminal e liminoide. Cultura

    LIMINAL TO LIMINOID, IN PLAY, FLOW, AND RITUAL.AN ESSAY IN COMPARATIVE SYMBOLOGY

    ABSTRACTStarting from the discussion ofcomparative symbology, which should not be confused withsymbolic anthropology, the objective is to take the symbol as an event, not as a thing, for it

    1 Este ensaio foi originalmente publicado emFrom Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play.New York, PAJ Publications, 1982. Verso em portugus autorizada porPAJ Publications. Traduo de

    Herbert Rodrigues com a colaborao de Evelise Paulis. Reviso tcnica de John Cowart Dawsey. Reviso eedio de Celso Vianna Bezerra de Menezes.

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    has more to do with a semantic dimension, which refers to meaning in language andcontext. From this point of view, the ritual symbol becomes a factor of social action, with aninnovative and creative potential of human action. Actions of expressive culture havecharacter of dynamic semantic systems, gaining and losing meaning, since they "travel

    through" a rite or artwork. Among liminal and liminoid phenomena, rites and games, thesubsystems of expressive culture are considered to reflect on the experiences ofcommunitasandflow, when we observe the total involvement of the person in what he/she does.

    Keywords: Comparative symbology. Rites. Plays. Liminal and liminoid. Culture.

    INTRODUO

    m primeiro lugar, vou descrever o que entendo por simbologia comparativa ecomo, em geral, esta se diferencia de diversas disciplinas como a semitica (ousemiologia) e a antropologia simblica, que esto envolvidas no estudo de

    noes de smbolos, signos, sinais, significaes, ndices, cones, significados,significantes, inscries, denotaes etc. Gostaria de discutir, sobretudo, alguns tipos deprocessos socioculturais em que novos smbolos, verbais e no-verbais, tendem a segeneralizar. Isso permitir uma comparao entre os fenmenos liminal eliminoide, noes que considerarei pormenorizadamente em seguida.

    Segundo o Websters New World Dictionary, simbologia o estudo ouinterpretao de smbolos, e tambm a representao ou expresso dos significadosdos smbolos. O termo comparativa significa apenas que este estudo envolve acomparao como mtodo, assim como, por exemplo, a lingustica comparativa.Simbologia comparativa est mais prxima semitica ou semiologia (nos termos deSaussure e Roland Barthes) do que antropologia simblica numa cadeia e mbitode dados e problemas. Semitica , como todos sabem, a teoria geral dos signos esmbolos, em especial a anlise da natureza e relaes dos signos na linguagem,incluindo, sobretudo, os trs ramos: sinttico, semntico e pragmtico.

    1)Sinttico: relacionamento formal dos signos e smbolos entre si,independentemente dos seus usurios ou das suas referncias externas;organizao e relao dos grupos, frases, oraes, sentenas e estrutura desentenas.

    2)Semntico: relacionamento dos signos e smbolos com as coisas s quais elesse referem, isto , seus significados referenciais.

    3)Pragmtico: relao dos signos e smbolos com seus usurios.

    E

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    Em minha anlise de smbolos rituais, a sintaxe forosamente similar ao quechamo de significado posicional; a semntica similar ao significado exegtico; e apragmtica ao significado operacional. Desde que foi definida como cincia dossignos em geral, a semiologia parece ter maiores ambies do que a semitica, por

    conta de ser esta restrita aos signos da linguagem, mesmo que Roland Barthes diga quelingstica no uma parte das cincias dos signos em geral... a semiologia que parte da lingustica (1967, p.11).

    A Simbologia Comparativa no envolve diretamente os aspectos tcnicos dalingustica, tem mais a ver com os vrios tipos de smbolos no-verbais em ritual e arte,embora admitidamente todas as linguagens culturais tenham importantes componenteslingusticos, transmisses ou significantes. Contudo, estenvolvida na relao entresmbolos, conceitos, sentimentos, valores, noes etc., associados entre si pelos usurios,

    intrpretes ou exegetas: em suma, tem uma dimenso semntica, pertence aosignificado na linguagem e no contexto. Seus dados so principalmente retirados dosgneros culturais ou subsistemas da cultura expressiva. Inclui tanto gneros oralquanto literrio, e deve-se levar em conta todas as suas atividades, combinando aessimblicas verbais e no-verbais, tais como ritual e drama, e tambm gneros

    narrativos, como mito, pica, fbula, romance e sistemas ideolgicos. Poderamostambm incluir formas no-verbais, como mmica, escultura, pintura, msica, bal,arquitetura, entre outras.

    Mas a Simbologia Comparativa faz mais do que meramente investigar gnerosculturais abstratos da atividade social humana. Seria semiologia se o fizesse, cujo corpode dados deve eliminar os elementos diacrnicos o mximo possvel e coincidir comum estado de sistemas, uma histria transversal (BARTHES, 1967, p.98). Em 1958,considerando os dados de rituais coletados durante meu trabalho de campo entre osNdembu do Noroeste do Zmbia, escrevi que no se poderia analisar [esses] smbolosrituais sem estud-los numa srie no tempo em relao a outros eventos [considerandoum smbolo como evento, e no como coisa], pois esses esto essencialmenteenvolvidos em processos sociais [e, eu acrescentaria, em processos psicolgicos]. Entendo

    a performance ritual como uma fase distinta do processo social na qual os grupos seajustam s alteraes internas (se trazidos pelas pessoas ou faces dissidentes e conflitosde normas ou pelas inovaes tcnicas ou organizacionais), e se adaptam ao meioexterno (social e cultural, assim como fsico e biolgico). Desse ponto de vista, o smboloritual torna-se um fator de ao social, uma fora positiva no campo da atividade. Ossmbolos so crucialmente envolvidos em situaes de mudana social, esto associadosaos interesses humanos, propsitos, fins e significados, aspiraes e ideias, individuais oucoletivos, mesmo os que sejam explicitamente formulados ou deduzidos docomportamento observado. Por essa razo, a estrutura ou as propriedades de um

    Espcies de

    Gneros

    culturais ou

    subsistemas

    da cultura

    expressiva

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    smbolo ritual tornam-se aquelas de uma entidade dinmica, pelo menos no seuapropriado contexto de ao. (TURNER, 1969, p.20).

    Olharemos mais atentamente para essas propriedades em seguida. Mas

    gostaria de afirmar, uma vez que desde o comeo considerei os smbolos como sistemasde dinmica social e cultural, liberando e reunindo significados ao longo do tempo ealterando-se em forma, que no posso consider-los meramente como termos numalgica atemporal ou em sistemas cognitivos protolgicos. Inegavelmente os gnerosespecializados de sociedades complexas, tais como o filosfico, o teolgico, sistemas delgicas formais, smbolos e signos derivados de suas decomposies, adquirem essaalgbrica ou qualidade lgica e podem ser efetivamente tratados nas relaes deoposies binrias como mediadores, e o resto, desnaturalizado pela primazia dasatividades dos especialistas cognitivos. Mas os smbolos selvagens (les symboles

    sauvages), no apenas como aparecem na tradio ou nas culturas tribais, mastambm em gneros de atualizaes culturais da poesia, do drama, da pintura desociedades ps-industriais, tm o carter de sistemas semnticos dinmicos, ganhando eperdendo significados e significado num contexto social sempre tem dimensesemocionais e de livre-arbtrio pois eles viajam atravs de um nico rito ou obra dearte, deixados pela performance ao longo de sculos, e so objetivados nos efeitosprodutivos dos estados psicolgicos e do comportamento daqueles a eles expostos eobrigados a us-los na comunicao com outros seres humanos. Sempre tentei ligar omeu trabalho anlise situacional, como, por exemplo, nos estudos sobre o processo de

    mudana da poltica tribal em Schism and Continuity (1957), com meu trabalho deanlise das performances rituais.

    Talvez isso tenha acontecido porque, com frequncia, tenho focado o estudo desmbolos individuais nos campos semnticos e no fato processual tal como eles semovem atravs do cenrio de uma performance ritual especfica e reaparecem em outrostipos de rituais, e at se transferem de um gnero para outro, por exemplo, do ritual paraum mito cclico, para um pico, para um conto de fadas, para uma citao mximanum caso legal. Tal foco deixa o futuro semntico em cada smbolo, como ele era, com

    um final em aberto, em que a anlise da totalidade dos smbolos, assumidaa prioricomo um sistema ou umagestalt, tratada como fechada, atemporal, e sincrnica, umcorpus, ou coleo finita de materiais, tende a enfatizar as propriedades e relaesformais de um smbolo dado e selecionar, da riqueza de seus significados, apenas aqueladesignao especfica que o torna um termo apropriado em algumas oposies binrias,as quais so um bloco de construo relacional de um sistema cognitivo limitado.Binrio e arbitrrio tendem a se juntar, pois ambos esto num mundo atemporal designificados. Tal tratamento, muitas vezes elegantemente sedutor, um frisson paranossas faculdades cognitivas, remove o conjunto total de smbolos do complexo,

    mudando continuamente a vida social, podendo ser opaco ou brilhante de desejo e

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    sentimento, que seu meio e contexto distintos, que se comunica com um rigor mortisdualstico.

    Os smbolos, tanto como veculo perceptvel sensorialmente (signifiants) quanto

    como um conjunto de significados (signifies), so essencialmente envolvidos em umavariedade mltipla, a variabilidade da vida, essencialmente, da conscincia, doemocional e das criaturas volteis que os empregam no apenas para dar ordem ao seuuniverso habitado, mas criativamente para fazer uso da desordem tambm, ambos pelasuperao ou reduo em casos particulares e pelos significativos questionamentos deantigos princpios axiomticos que se tornaram um freio sobre o entendimento e amanipulao das coisas contemporneas. Por exemplo, a extravagncia de Rabelaisliberou inmeras formas simblicas escatolgicas de posies para deveres e atributosdesordenados em Gargantua e Pantagruel, desafiando a ordem do sistema escolstico

    teolgico e do sistema filosfico o resultado, paradoxalmente, foi disparar oobscurantismo hermtico. Quando smbolos so enrijecidos na lgica operatria esubordinados s regras implcitas da sintaxe, por alguns de nossos investigadoresmodernos, aqueles que os levam muito a srio acabam se tornando cegos para opotencial criador ou inovador dos smbolos como fatores da ao humana. Os smbolospodem instigar tais aes e, em combinaes situacionais variadas, canalizar suasdirees pela saturao de metas e significados com afeto e desejo. A simbologiacomparativa tende a preservar a capacidade ldica, a capturar o smbolo emmovimento, e ento dialogar e atuar com suas possibilidades de formas e significados.

    Faz isso contextualizando os smbolos nos campos concretos e histricos e de seus usospelo homem vivo no modo como ele age, reage, transgride e interage socialmente.Mesmo quando o simblico o inverso da realidade pragmtica, ele se mantmintimamente ligado a ela, afeta e afetado, fornece uma figura positiva com os seusnegativos, assim como delimita e obtm para o cosmos um novo territrio.

    Mais prxima da questo do que asemitica, a simbologia comparativa vaialm daantropologia simblica, nas suas pretenses de levar em conta no apenasmateriais etnogrficos, mas tambm os gneros simblicos das chamadas civilizaes

    avanadas, as ditas sociedades complexas de larga escala industrial. Inegavelmente,esta ampla perspectiva fora a voltar a si mesma noes, mtodos, teorias e achados deespecialistas de diversas disciplinas, das quais muitos antroplogos sabem um pouco,como a histria, a literatura, a musicologia, a histria da arte, a teologia, a histria dasreligies, a filosofia etc. Todavia, ao fazerem essas tentativas para estudar ao simblicaem culturas complexas, os antroplogos, que estudam smbolo principalmente emtribos ou mito agrrio, ritual e arte, no fazem mais do que retornar a uma honrosatradio de seus predecessores, como Durkheim e a escola daAnne Sociologique, eKroeber, Redfield e seus sucessores, como o Professor Singer, que examinou subsistemas

    culturais em oikoumenes (literalmente mundos inabitados, usado por Kroeber para

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    indicar complexos civilizatrios como o Cristianismo, o Isl, o Hindusmo, a CivilizaoChinesa etc.) e as Grandes Tradies.

    No meu caso, passei a estudar os gneros simblicos em sociedades de larga

    escala influenciado pelas implicaes do trabalho de Arnold van Gennep (que tratouessencialmente de dados de sociedades de pequena escala) em Rites de Passage, cujaprimeira publicao em francs de 1908. Embora van Gennep parea ter a inteno deque o termo rito de passagem devesse ser usado para rituais de acompanhamentoindividual ou de mudana individual de status social e para aqueles casos associados smudanas sazonais de uma sociedade inteira, seu livro se concentra em tipos antigos; eo termo tem sido usado quase que exclusivamente em conexo com os rituais de risco(life-crisis). Tentei reverter o recente uso de van Gennep em considerao a quase

    todos os tipos de ritos como tendo uma forma processual de passagem. O que esse

    termo significa?Van Gennep, como se sabe, distinguiu trs fases em um rito de passagem:

    separao, transio, e reagregao. A fase deseparao claramente demarca espaoe tempo sagrados de espao e tempo profanos ou seculares (isto mais do que apenasuma questo de entrar num templo h de se acrescentar um rito que altera aqualidade do tempo tambm ou construa um domnio cultural que definido comofora do tempo, isto , para alm ou para fora do tempo que mensure os processosseculares e rotineiros). Isso inclui comportamento simblico especialmente smbolos

    de reverso ou inverso das coisas, relacionamentos e processos seculares querepresenta o desligamento dos sujeitos-rituais (novios, candidatos ou iniciantes) dosseus estatutos sociais anteriores. No caso dos membros de uma sociedade, implica semoverem coletivamente de tudo que social e culturalmente envolvido em um cicloagrrio, ou de um perodo de paz quando contra uma guerra, de uma praga ouepidemia na comunidade, do estado ou condio sociocultural anterior para um novoestado ou condio, uma nova mudana da estao do ano.

    Durante a fase intermediria de transio, chamada por van Gennep demargem ou lmen (que significa liminar em Latim), o sujeito-ritualpassa porum perodo e por uma rea de ambiguidade, um rpido limbo social que tem poucos(embora muitas vezes sejam cruciais) atributos tanto nos procedimentos profanos ou nasubsequncia de estatutos sociais como nos estados culturais. Trataremos melhor dessafase liminal em seguida.

    A terceira fase, chamada por van Gennep de reagregao ou incorporao,inclui fenmenos e aes simblicas que representam o retorno dos sujeitos s suasnovas, relativamente estveis, bem definidas posies na sociedade como um todo. Essassubmisses rituais do ciclo da vida geralmente representam um status realado, um

    estgio para alm do caminho da vida pr-fabricado culturalmente; para aquelas que

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    fazem parte de um ritual sazonal ou do calendrio, no envolvem nenhuma mudanano status, mas pode ser preparado ritualmente para aquelas sries de mudanas nanatureza das atividades ecolgicas e culturais a serem empreendidas e dosrelacionamentos que tero com outros todas essas boas participaes para um

    especfico quarto do ciclo produtivo anual.Muitos ritos de passagem so (para os sujeitos individuais) eventos irreversveis

    que acontecem apenas uma vez, enquanto que ritos do calendrio so preparados todosos anos por todas as pessoas, embora, claro, alguns possam frequentar ritos depassagem de um parente ou de amigos muitas vezes, at conhecer sua forma melhor doque os prprios iniciantes, como as senhoras que nunca perdem um casamentocomparadas com os noivos nervosos em seu primeiro casamento. J disse que os ritos depassagem iniciatrios tendem a colocar as pessoas para baixo enquanto que alguns

    ritos sazonais tendem a colocar as pessoas para cima, ou seja, os iniciatrioshumilham as pessoas antes de elev-las permanentemente, enquanto que alguns ritossazonais (cujos resduos so os carnavais e os festivais) elevam aqueles com menos

    status transitoriamente, antes de retorn-los s suas condies permanentementehumildes. Arnold van Gennep diz que o esquema dessas trs fases varia em tamanho egrau de elaborao em diferentes tipos de passagens: por exemplo, ritos de separaoso notrios em cerimnias funerrias; ritos de reagregao, em casamentos. Ritos detransio so importantes, em determinados momentos, na gravidez, no noivado e nainiciao. A situao mais complicada nas diferenas regionais e tnicas, as quais

    ultrapassam os modelos tipolgicos. Contudo, raro no encontrar traos desse esquemade trs fases nos rituais tribais ou agrrios.

    A passagem de umstatus social para outro frequentemente acompanhada poruma passagem paralela no espao, um movimento geogrfico de um lugar para outro.Isso pode tomar a forma de uma abertura de portas ou a travessia literal de umaliminaridade separada por duas reas distintas, uma associada ao sujeito pr-ritual oude status preliminar, a outra ao status ps-ritual ou ps-liminar. (Os dois passos frente do recruta quando recebe sua primeira ordem servem como uma instncia

    moderna de um movimento ritualizado de liminaridade.) Por outro lado, a passagemespacial envolve uma longa peregrinao e a travessia de fronteiras nacionais antes de osujeito atingir seu objetivo, o santurio sagrado onde aes paralitrgicas podemreplicar no microcosmo do esquema de trs fases no prprio santurio. s vezes essesimbolismo espacial pode ser o precursor de uma mudana real e permanente deresidncia ou da esfera geogrfica de ao, como quando, por exemplo, uma garotaNyakusa ou Ndembu na frica, aps seu rito de puberdade, deixa sua terra natal paraviver na terra do marido, ou em certas sociedades de caadores nas que os jovens vivemcom suas mes at o momento de seus ritos de iniciao para a fase adulta, depois disso

    passam a viver com outros caadores da tribo.

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    Esse tipo de pensamento persiste, talvez, na nossa prpria sociedade, quando, eminmeras organizaes burocrticas de escala nacional, como o governo federal, umacorporao industrial, o sistema universitrio etc., promoes de status e salrioenvolvem, geralmente, movimentos no espao de uma cidade para outra, um processo

    descrito por William Watson num artigo do livro Closed Systems to Open Minds(editado por MAX GLUCKMAN, 1965) como espiralismo [spiralism]. Seriainteressante estudar a fase liminoide entre deixar um posto para ocupar outro emtermos de simbologia comparativa, considerando tanto o sujeito (seus sonhos, fantasias,leituras e entretenimentos favoritos) quanto aquilo que ele est deixando e agrupando(seus prprios mitos, tratamento de si etc.). Falaremos mais sobre isso e da distinoentre liminal e liminoide em seguida.

    De acordo com van Gennep, uma fase liminal prolongada nos ritos de iniciao

    de sociedades tribais frequentemente marcada pela separao fsica dos sujeitos rituaisdo resto da sociedade. Desta maneira, em certas tribos da Austrlia, Melansia e frica,um garoto submetido iniciao deve permanecer um longo perodo de tempo vivendofora, separado da interao social normal da aldeia e da casa. Os smbolos rituais dessafase, embora alguns representem uma inverso da realidade, caracteristicamente sedividem em dois tipos: aqueles de remoo e aqueles de paradoxo ou ambiguidade.Portanto, em muitas sociedades, os iniciantes liminais so muitas vezes consideradosopacos, invisveis, como o sol ou a lua em eclipse ou entre as fases da lua, o lado escuroda lua; so despidos de nomes e roupas, lambuzados com a terra utilizada pelos

    animais. So associados a oposies bsicas como vida e morte, masculino e feminino,comida e excremento, simultaneamente, desde o momento em que mudam ou morrempara o seu antigostatus ou vida, e comeam a nascer e crescer numa nova condio.Bruscas inverses simblicas de atributos sociais podem caracterizar separaes;redues e fuses de distines caracterizam liminaridades.

    Desta maneira, os sujeitos rituais nesses ritos sofrem um processo de elevao,no qual signos de status preliminar so destrudos e signos de status no-liminaraplicados. Mencionei certos indicadores de liminaridade ausncia de vestimentas e

    nomes; outros signos incluem comer ou no comer alimentos especficos, desconsiderara aparncia pessoal, vestir uma roupa uniforme, s vezes independente do sexo. No meioda transio, os iniciantes so levados ao mximo possvel de uniformidade,invisibilidade e anonimato estrutural.

    Em contrapartida, os iniciantes adquirem um tipo especial de liberdade, umpoder sagrado de docilidade, fragilidade e humildade. Conforme disse van Gennep:

    Durante todo o noviciado, os laos ordinrios, econmicos e jurdicos somodificados, por vezes rompidos. Os novios ficam fora da sociedade, que

    deixa de ter poder sobre eles, especialmente porque so sagrados e santos

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    [em termos de crenas indgenas], por conseguinte intocveis e perigosos,como se fossem deuses. Deste modo, por um lado, os tabus, como ritosnegativos, levantam uma barreira entre os novios e a sociedade, por outrolado, esta fica indefesa contra os empreendimentos dos novios. Explica-se,

    assim, do modo mais simples do mundo, um fato observado em numerosaspopulaes e que permaneceu incompreensvel para os observadores.Durante o noviciado que os jovens podem roubar e saquear tudo comobem entender, ou alimentar-se e adornar-se s custas da comunidade (1960,p.114).

    Os novios esto, de fato, temporariamente indefinidos, para alm da estruturasocial normativa. Isso os enfraquece, pois no tm direitos sobre os outros. Mas tambmso liberados das obrigaes formais. Tomam lugar numa fechada conexo com poderesno-sociais ou associais da vida e da morte. Da a frequente comparao dos novios, deum lado, com fantasmas, deuses, ou ancestrais, e; por outro lado, com animais epssaros. Eles esto mortos para o mundo social, mas vivos para o mundo associal.Muitas sociedades produzem uma dicotomia, implcita e explcita, entre sagrado eprofano, cosmos e caos, ordem e desordem. Em liminaridade, relaes sociais profanasso descontnuas, antigos direitos e obrigaes so suspensos, a ordem social parece estarvirada de ponta-cabea, mas em compensao os sistemas cosmolgicos (como objetosde estudo srio) tornam-se de central importncia para os novios, que so confrontados

    pelos veteranos em ritos, mitos, msica, instruo de uma lngua secreta e vriosgneros simblicos no-verbais, como dana, pintura, cermica, escultura de madeira,mscara etc., com estrutura e padro simblico que equivalem aos ensinamentos sobre aestrutura do cosmos e sua cultura como parte e produto dela, pelo menos como sodefinidas e compreendidas, implcita ou explicitamente.

    A liminaridade envolve uma sequncia complexa de episdios no espao-temposagrado e pode, do mesmo modo, incluir eventos subversivos e ldicos (ou jocosos). Osfatores da cultura esto isolados, pelo menos possvel fazer isso com smbolos

    multivocais (isto , com a ajuda de smbolos-veculos formas sensorialmenteperceptveis) como rvores, imagens, pinturas, danas etc., que so suscetveis no deum nico significado, mas de muitos. Os fatores ou elementos da cultura sorecombinados em nmeros muitas vezes grotescos, porque so variados em termos depossibilidade ou fantasiados no lugar de combinaes experienciadas assim ummonstro disfarado pode combinar caractersticas humanas, animais e vegetais de modoinatural [unnnatural], enquanto que as mesmas caractersticas podem serdiferentemente, mas igualmente inaturalizadas, combinadas numa pintura oudescritas num conto. Em outras palavras, as pessoas liminares brincam com os

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    elementos familiares e os desfamiliarizam. Portanto, as novidades emergem dascombinaes sem precedentes dos elementos familiares.

    No encontro de 1972 da Associao Americana de Antropologia em Toronto,

    Brian Sutton-Smith tomou emprestado um termo que eu j havia aplicado paraliminaridade (e outros fenmenos sociais e eventos), a saber, anti-estrutura(compreendendo isso como a dissoluo normativa da estrutura social, com seus papis,

    status, direitos e deveres) e relacionou-a a uma srie de estudos experimentais feitos comjogos infantis de crianas de sociedades tribais e industriais. Muito do que disse o autor,mutatis mutandis, pode ser transferido de volta ao estudo de liminaridade em ritualtribal. Para ele, A estrutura normativa representa o equilbrio, a anti-estruturarepresenta o sistema latente das alternativas potenciais, as quais novamente iro surgirquando requeridas pelas contingncias do sistema normativo. Podemos cham-la de

    segundo sistema, de sistema proto-estrutural, [disse] porque a precursora deinovaes das formas normativas. Essa a fonte de uma nova cultura (1972, p. 18-19).

    Sutton-Smith, que recentemente examinou o continuumordem-desordem emjogos (como o jogo infantil ingls ring-a-ring-a-roses2

    Muitos j disseram, sobretudo os estruturalistas franceses, que a liminaridade,em especial os fenmenos liminais, como mito e ritual da sociedade tribal,caracteriza-se melhor pelo estabelecimento de regras implcitas da sintaxe ou pelasestruturas internas de relaes lgicas de oposio e mediao entre elementossimblicos discretos do mito ou do ritual, como provavelmente pensou Claude Lvi-Strauss. Para mim, essa a anlise da cultura em seus fatores e em suas livres ouldicas recombinaes em cada padro possvel, estranho, portanto, essncia daliminaridade, a liminaridadepar excellence. Isso pode ser percebido se os estudos dasfases liminais da maioria dos rituais forem atravessados temporal e culturalmente.Quando as regras implcitas surgem, limitando a possvel combinao de fatores de

    ), em seguida diz que podemosser desordenados em jogos [e, adicionaria, nos rituais de liminaridade, assim como emfenmenos liminoides como carnavais, festas, Halloween etc.] porque temos aomesmo tempo umaoverdosede ordem e queremos incendiar [podemos chamar isso deviso conservadora da desordem ritual, como rituais de inverso, a Saturnlia, entre

    outros], ou porque temos algo aaprender sendo desordenados (SUTTON-SMITH,1972, p. 17). O que mais me interessa na formulao de Sutton-Smith que ele vsituaes liminais e liminoides como cenrios em que novos modelos, smbolos eparadigmas surgem, como um solo frtil de criatividade cultural. Esses novos smbolos econstrues ento retornam aos domnios e arenas centrais da economia e da poltica,suprindo-os com metas, aspiraes, incentivos, modelos estruturais e raisons dtre.

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    Jogo em que as crianas seguram as mos umas das outras e danam em crculo cantando, como aciranda no Brasil (N. T.).

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    certos padres convencionais, desenhos ou configuraes, ento penso que estamosvendo a intromisso da estrutura social normativa naquilo que potencialmente e, emprincpio, uma livre e experimental regio da cultura, uma regio onde no apenasnovos elementos, mas tambm novas regras combinatrias podem ser introduzidas

    mais rapidamente do que no caso da lngua. Esta capacidade de variao e experimentotorna-se mais claramente dominante nas sociedades em que o lazer marcadamentedefinido a partir do trabalho, especialmente em todas as sociedades moldadas pelaRevoluo Industrial.

    Vrios modelos levi-straussianos, tais como a negociao com as relaes delgicas de oposies ou metafricas, a transformao da humanidade, da natureza paraa cultura, o modelo geomtrico com os dois esquemas de oposies utilizados para aconstruo do tringulo culinrio, cru/cozido:cozido/podre, parecem para mim

    aplicveis principalmente para sociedades tribais e agrrias nas que o trabalho e a vidatendem a ser governados pelo ritmo sazonal e ecolgico, cujas regras bsicas de padresculturais das geraes tendem a buscar o par binrio Yin-Yang, formas sugeridaspelas simples oposies naturais, quente/frio, mido/seco, domesticado/selvagem,macho/fmea, vero/inverno, farto/escasso, direito/esquerdo, cu/terra, acima/abaixo,entre outros. A sociedade principal e as estruturas culturais modelam-se nesses similaresprincpios cosmolgicos, que determinam inclusive a disposio das cidades e das vilas,o desenho das casas, a definio e a posio do espao de diferentes tipos de terracultivada. A anlise do simbolismo espacial em relao aos modelos cosmolgicos e

    mitolgicos se tornou uma trivialidade no estruturalismo francs recentemente.No de surpreender que a liminaridade no tenha escapado das garras desses

    fortes princpios estruturalistas. Em apenas certos tipos de jogos de criana ebrincadeiras so permitidos alguns graus de liberdade porque so definidos comoestruturalmente irrelevantes, no importantes. Quando as crianas so iniciadas naqualidade de adultos precocemente, portanto, as variabilidades e as responsabilidades decomportamentos sociais so drasticamente reduzidas e controladas. Os jogos deixam deser peditricos e tornam-se pedaggicos. Lei, moral, ritual, e at mesmo vida econmica,

    caem sobre as influncias estruturais dos princpios cosmolgicos. O cosmos torna-seuma onda complexa de correspondncias, baseadas em analogias, metforas emetonmias. Por exemplo, o Dogon do Oeste africano, de acordo com Marcel Griaule,Genevieve Calame Griaule, e Germaine Dieterlen, estabelece uma correspondncia entrediferentes categorias de minerais e os rgos do corpo. Os vrios solos so concebidoscomo os rgos do interior de um estmago, pedras so consideradas ossos de umesqueleto, e pedaos de argila vermelha so ligados ao sangue. Similarmente, naChina medieval, diferentes modos de pintar rvores ou nuvens so relacionados aprincpios cosmolgicos diferentes.

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    Desse modo, os smbolos encontrados nos rites de passage nessas sociedades,embora sujeitos a permutaes e transformaes nos seus relacionamentos, so apenasenvolvidos entre siem sistemas repetitivos, cclicos, relativamente estveis. a esses tiposde sistemas que a noo de liminaridade pertence. Quando usado em processos,

    fenmenos e pessoas das sociedades complexas de larga escala, seus usos devem sermetafricos. Ou seja, a palavra liminaridade, usadaprincipalmente na fase daestrutura processual de um rite de passage, aplicada para outros aspectos da cultura aqui em sociedades de escalas e complexidades ainda maiores. Para mim, isso umdivisor de guas em simbologia comparativa. O fracasso na distino entre sistemassimblicos e gneros pertencentes cultura que se desenvolveu antes e depois daRevoluo Industrial pode gerar muita confuso nos tratamentos tericos e nasmetodologias operacionais.

    Permita-me explicar. Apesar da imensa diversidade dentro de cada campo,sempre restar uma distino fundamental no nvel da cultura expressiva entre todas associedades de antes e todas as sociedades subsequentes Revoluo Industrial, incluindoas sociedades industrializadas do Terceiro Mundo que, embora predominantementeagrrias, representam, todavia, o paiol e o parque de diverses das sociedades industriaismetropolitanas.

    Os conceitos-chave aqui sotrabalho, brincadeira (ou jogo) elazer. Colocaruma nfase explicativa diferente em cada um ou em qualquer uma dessas combinaes

    pode influenciar o modo como pensamos sobre os conjuntos de manipulao simblica,os gneros simblicos, nos tipos de sociedades que iremos considerar. Cada um dessesconceitos multivocal ou multivalente, tem muitas designaes.

    Tomemos o trabalho. Segundo o Oxford English Dictionary, trabalhosignifica: (1) gasto de energia, esforo, aplicao de fora para determinado fim (quecorresponde muito bem verso preliminar do Webster: aplicao fsica ou mentalexercida para fazer alguma coisa; atividade com fins, faina, labuta); (2) tarefa a serrealizada, materiais a serem usados na tarefa; (3) fazer coisas, realizar, obra realizada,livros ou composies musicais [no se aplica trabalho aos gneros do domnio dolazer]; (4) meritorius actcomo oposto f ou graa; (5) emprego, especialmente aoportunidade de receber dinheiro pelo trabalho, ocupao laboriosa; (6) ordinrio,prtico (como em workaday) etc. [onde tiver ressonncia com o secular, profano,pragmtico etc.]. Agora, em sociedades tribais, no-letradas, simples, depequena escala, o ritual, suas extenses e o mito so considerados trabalho, precisamente nesse sentido que os Tikopia chamam de o trabalho dos deuses. Nasociedade hindu antiga tambm h o trabalho divino. No terceiro captulo de

    Bhagavad Gita (v. 14-15), encontramos uma conexo entre trabalho e sacrifcio: Da

    comida derivam todos os contingentes humanos, e a comida deriva da chuva; a chuvaderiva do sacrifcio e o sacrifcio, do trabalho. Do Brahman surge o trabalho.

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    Nikhilananda comenta que trabalho aqui se refere ao sacrifcio prescrito nos Vedas, oqual prescreve sacrifcio ou trabalho (ao) para as famlias. Os Ndembu chamamo que um especialista em ritual faz, dekuzata, trabalho, e o mesmo termo em geral aplicado ao que um caador, um cultivador, um chefe e hoje um trabalhador manual

    faz. At mesmo nas complexas sociedades agrrias associadas s cidades-estados oufeudos, de acordo com a documentao histrica, encontramos termos comoliturgiaque na Grcia pr-crist se estabeleceu como servio pblico aos deuses. Liturgiaderiva do gregoleos oulaos, as pessoas, e ergon, trabalho (cognato ao inglsantigo weorc, ao alemo werk, da base indo-europia, werg-, fazer, agir. O gregoorganon, ferramenta, instrumento, deriva da mesma base originalmente

    worganon). O trabalho dos homens , ento, o trabalho dos deuses, uma concluso quepoderia ter iluminado Durkheim, se bem que poderia ter sido construdo comoimplicado numa distino fundamental entre deuses e homens, desde que os homenscooperassem em rituais para entrar melhor nessa relao recproca de troca com osdeuses ou com Deus no foi toa que a voz da congregao foi a voz de Deus. Umadiferena foi construda entre criador e criatura.

    Qualquer que seja o caso emprico, o que vemos aqui um universo ou trabalho,um ergon- ou um universo organic, no qual a principal distino entre trabalhoprofano ou sagrado, no entre trabalho e lazer. Por exemplo, Samuel Beal comenta, emTravels of Fah-Hian Sung-Yun, Buddhist Pilgrim from China to India (600 a.C. e518 a.C.), [1964, p. 4], sobre o uso do termo shaman por Chi Fah-Hian: A palavra

    chinesashaman representa foneticamente o Snscritosramama, ou o Palisamana. Apalavra chinesa definida pelo significado diligente, laborioso. A raiz snscrita sram e quer dizerfatigado. (Ele se referiu ao povo de Shen-Shen, no deserto doMakhai, parte da regio do deserto de Gobi) , portanto, o universo do trabalho do qualtodas as comunidades participam, como obrigao, no como opo. A comunidadecomo um todo caminha atravs do ritual inteiro, isso em termos de participaorepresentativa ou total. Assim, alguns ritos, tais como aqueles de semeao, dosprimeiros frutos, ou colheita, podem envolver a todos, homens, mulheres e crianas;

    outros so focados em grupos especficos, categorias e associaes, como homens oumulheres, velhos ou jovens, um clou outro, uma associao ou sociedade secretaouuma outra. J o trajeto ritual inclui a participao total da comunidade. Mais cedo oumais tarde, ningum isento dos deveres rituais, do mesmo modo que ningum isentodos deveres econmicos, polticos e legais. A participao comunal, a obrigao, apassagem de toda a sociedade pela crise, coletiva e individual, diretamente ou porproximidade, so as marcas do trabalho dos deuses e do trabalho humano sagrado sem o qual o trabalho humano profano seria, para a comunidade, impossvel de seconceber, embora sem dvida, como a histria tem cruelmente mostrado para aqueles

    conquistados pelas sociedades industriais, possvel de viver ou, pelo menos, existir.

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    Mesmo que se diga que esse tipo de trabalho no trabalho, comoconhecemos nas sociedades industriais, ambas as dimenses tm sagrado e profano e oelemento da brincadeira. Na medida em que a comunidade e seus membrosconsideram-se com mestres ou donos do ritual e da liturgia, ou como representantes

    de ancestrais e deuses que ultimamente os possuem, eles tm autoridade de introduzir,sob certas condies culturalmente determinadas, elementos de novidade ao longo dotempo socialmente herdados do depsito dos costumes rituais. A liminaridade, o perodode recluso, uma fase que conduz peculiarmente s invenes ldicas. Talvez fossemelhor considerar a distino entre trabalho e brincadeira, ou melhor, entretrabalho e lazer (que inclui, mas excede o brincarsui generis) como artefatos daRevoluo Industrial, e entender tais gneros expressivo-simblicos do ritual e do mitocomo sendo trabalho e brincadeira ou pelo menos como atividades culturais nas quaistrabalho e brincadeira sejam intrinsecamente intercalados. Porm, com frequncia,acontece que oposterior historicamente pode jogar luz sobre oanterior, especialmentequando h uma conexo scio-gentica demonstrvel entre eles. Por isso h, semdvida, aspectos ldicos da cultura em sociedades tribais, especialmente emperodos liminais de iniciao prolongada ou em rituais baseados no calendrio. Domesmo modo, poderamos incluir relaes jocosas, jogos sagrados, tais como os jogos debola da sociedade Maia antiga e da moderna Cherokee, charadas, zombarias, gozaes epalhaadas, contos do vigrio ditos em tempos e lugares liminais, dentro ou fora docontexto ritual, e vrios outros tipos.

    A questo que esses aspectos ldicos e de brincadeira de mitos e rituais emsociedades tribais e agrrias so, conforme Durkheim, de la vie srieuse, isto , sointrinsecamente conectados ao trabalho da coletividade em aes simblicasperformticas e em objetos simblicos manipulados de modo a promover e aumentar afertilidade dos homens, das colheitas, dos animais domsticos e selvagens, a cura dedoenas, a prevenir pragas, a obter sucesso em ataques, a converter meninos em homense meninas em mulheres, a formar os chefes dos coletivos, a transformar pessoasordinrias em xams, o frio em quente, a assegurar a correta sucesso das estaes

    do ano, da caa e da agricultura para os seres humanos, e assim por diante.Consequentemente, a brincadeira levada a srio e tem que ser dentro dos limites. Porexemplo, no ritual dos gmeos dos Ndembu, Wubwangu, descrito no TheRitual

    Process, num episdio em que mulheres e homens se abusam verbalmente de modoaltamente sexual e jocoso. Muitas fices pessoais so inventivas, embora algumassejam tambm estilizadas. Contudo, esse comportamento ldico est no lugar doobjetivo final do ritual produzir descendncia saudvel, masno muita de uma vez.Abundncia bom, mas abundncia irresponsvel uma brincadeira boba. Portanto,brincadeiras entre homens e mulheres mantm razovel fertilidade e reprimem

    insensata fecundidade.

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    Brincadeira engraada, mas tambm uma sano social. A brincadeira podeat mesmo observar o significado de ouro [golden mean], que uma caractersticatica das sociedades cclicas e repetitivas, mas no quando j desequilibrada pelasideias inovadoras e por mudanas tcnicas. Inovaes tcnicas so produtos das ideias,

    produtos que chamarei de liminoides(o -ide vem do grego eidos, uma forma,um modelo, e significa semelhante; liminoide, semelhante sem ser idntico aoliminar), aquilo que Marx denomina asuperestrutura, e eu prefiro chamar de

    anti-, meta- ou protoestrutural. Superestrutural, para Marx, tem uma conotao deuma imagem invertida, ou at uma falsificao, uma mistificao do estrutural ouinfraestrutural que , nesses termos, a constelao de relaes de produo, tanto nacoeso como no conflito. Contrariamente, entendo liminoide como uma fonteindependente e crtica assim como os trabalhos liminoides de Marx, escritos noespao recluso da biblioteca do Museu Britnico e aqui observamos como em aesliminoides dos gneros industriais de lazer pode repousar o carter de trabalho, sebem que originalmente num tempo livre separado arbitrariamente pelo faa [fiat]do tempo do trabalhismo [labor] tal como o liminoide pode ser um domnioindependente de atividade criativa, no simplesmente uma imagem invertida, mscaraou capa de atividade estrutural dos centros do trabalho social produtivo. Cham-lasde uma imagem invertida, identificar as produes liminoides somente como apologiaaostatus quo poltico.

    De fato, a antiestrutura pode generalizar e armazenar uma pluralidade de

    modelos alternativos para a vida, de programas utpicos, que so capazes de influenciaro comportamento nos papis sociais e polticos principais (se autoritrio ou dependente,no controle ou rebelado) em direo a uma mudana radical, na medida em que servemcomo instrumento de controle poltico. Como cientistas, estamos interessados emdemarcar um domnio, sem ficar do lado de um ou outro grupo ou categoria queoperem. Cincia terica e cincia experimental so liminoides, tomam lugar emespaos neutros ou reas privilegiadas laboratrios e estudos deixados de ladopela produo central ou eventos polticos. Universidades, institutos, centros de pesquisa

    so cenrios liminoides para todos os tipos de livre-pensar, comportamento cognitivoexperimental, assim como formas de ao simblica, assemelhando-se a algunscenrios encontrados em sociedades tribais, comparveis s cerimnias de recrutamentoem agremiaes das universidades e das irmandades americanas, por exemplo. Isso, claro, no significa que os produtos liminoides no tenham significncia poltica: pensenaDeclarao dos Direitos dos Homens ou noManifesto Comunista, por exemplo.Ou naRepblica de Plato ou noLeviatde Hobbes.

    Mas olharemos essa noo de liminoide mais de perto e tentaremos distingui-la da noo de liminal. Para fazer isso corretamente, temos que examinar a noo de

    brincadeira. A etimologia no nos diz muito sobre seus significados. Aprendemos que

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    a palavra brincar [play] deriva do ingls arcaicoplegan, exercitar em si mesmo,se movimentar com vigor, e que opleyen do holands medieval, danar, um termocognato. Walter Skeat, no Concise Etymological Dictionary of the English Language(p.355), sugere que oplega anglo-saxo, um jogo, esporte, tambm (comumente)

    uma luta, uma batalha. Ele considera, tambm, que os termos anglo-saxes soemprestados do latim plaga, um golpe. Mesmo se a ideia de uma dana ou lutaritualizada toma conotao de brincadeira, esse conceito multivocal tem seu prpriodestino histrico.

    Para o Websters Dictionary, brincadeira : (1) ao, movimento, ou atividade,especialmente quando livre, rpido, ou alegre (p.ex. ojogo dos msculos) aqui, comoem outras ocasies, brincar concebido como alegre em oposio ao trabalhopesado, livre em oposio ao trabalho necessrio ou obrigatrio, o carter

    rpido em oposio ao cuidadoso, reflexo do estilo de rotina no trabalho; (2)liberdade ou oportunidade de movimento ou ao; (3) atividade engajada numadiverso ou recreao aqui, de novo, estamos beira da noo de atividade semnecessidade ou obrigaes; (4) alegria, piada (fazer uma coisa na brincadeira) enfatizando o carterno srio de certos tipos de brincadeira moderna; (5) (a) jogarum jogo, (b) meio ou tcnica de jogar um jogo aqui reintroduzindo a noo deque a brincadeira pode ser trabalho, ser sria com dimenses no srias, e aumentar oproblema das condies sob as quais alegria torna-se tcnica e regras governantes;(6) (a) uma manobra, movimento ou ato num jogo (por exemplo, a humilhante

    bola entre as pernas ou o chapu do futebol ou, ento, uma especfica jogadabrilhante do time ou individual), (b) uma mudana no jogo (por exemplo, h umjogador faltando no jogo); (7) o ato de arriscar (e aqui podemos pensar noarriscar de carter divinatrio em sociedades tribais ou feudais e, claro, a palavraarriscar deriva do ingls arcaico gamenian, jogar, parecido com um termo dodialeto alemo gammeln, divertir, fazer bem; (8) composio dramtica ouperformance, drama, o brincar das coisas claramente este termo preserva algodo primeiro sentido de luta, batalha, assim como aquelas de recreao, tcnica, e

    partes (isto , atos, cenas etc.) de uma pea teatral; (9) finalmente, brincar podesignificar atividade sexual, jogos sexuais.

    Aqui, de novo, podemos ver uma mudana de significado do sexo comotrabalho procriativo (um significado persistente e frequentemente fornecido pelasdoutrinas religiosas em sociedade tribais e feudais), a diviso da atividade sexual nabrincadeira ou na gozao, e na coisa sria da prognie paterna. As tcnicas decontrole de natalidade ps-industrial tornam essa diviso praticamente realizvel eexemplificam a diviso entre trabalho e brincadeira trazida pelos sistemas modernos deproduo, e pensada tanto objetivamente no domnio da cultura, quanto

    subjetivamente no indivduo consciente e na conscincia. A distino entre subjetivo

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    e objetivo pode ser, particularmente, um artifcio de separao de trabalho ebrincadeira. Ao trabalho permitido ser realmente a adaptao racional dossignificados para fins, objetividade, enquanto que brincadeira pensada comodivorciada de sua essencialidade realmente objetiva, e, no extremo disso, o inverso,

    subjetiva, livre dos constrangimentos externos, onde se brincam com toda equalquer combinao de variveis. Alis, Jean Piaget, que fez muitos estudos depsicologia da brincadeira, considera isso como um tipo de associao livre, semacomodao s condies espaciais ou significncia dos objetos (PIAGET, 1962,p.86).

    Em estados ou fases liminais das culturas agrrias ou tribais em rituais, mitose processos legais o trabalho e a brincadeira so fortemente distintos em muitos casos.De modo que, na ndia vdica, de acordo com Alain Danielou (1964, p. 144), os deuses

    [sura e deva, que so objetos de importante rituais de sacrifcio] brincam. Onascimento, a durao e a destruio do mundo o jogo deles. O ritual tanto srioquanto brincalho. Como Milton Singer apontou no seu livro sobre a ndiacontempornea, When a Great Tradition Modernizes (1972, p. 160), a danaKrishna num contexto urbano bhajana (um grupo que canta hino) chamadolila,no qual os participantes brincam de ser Gopis ou o pastor de vacas que se divertede vrias maneiras com o Krishna, Vishnu encarnada, revivendo o mito. Mas o erticobrincar-amor de Gopis com Krishna tem implicaes msticas, como o Cntico dosCnticos mais uma vez srio e brincalho, a diverso de Deus com a alma

    humana.Agora vamos considerar a clara diviso entretrabalho e lazer que a indstria

    moderna produziu, e como isso afetou todos os gneros simblicos, do ritual aos jogos e literatura. Joffre Dumazedier, do Centre dtudes Sociologiques (Paris), no a nicaautoridade a sustentar que lazer tem certos traos que so caractersticos apenas nacivilizao nascida da revoluo industrial (International Encyclopedia of Social

    Sciences, verbete Lazer, 1968, p. 248-253; tambmLe Loisir et La Ville, 1962). Mas elecoloca o caso bem essencialmente, e estou de acordo com seu argumento. Dumazedier

    descarta o ponto de vista de que lazer existe em todas as sociedades e tempos. Emsociedades arcaicas e tribais, ele diz, trabalho e brincadeira formam igualmente partedo ritual no qual os homens procuram comunho com os espritos ancestrais. Osfestivais religiosos envolvem trabalho e brincadeira (p. 248). No entanto, especialistasreligiosos, tais como xams e homens da medicina, no constituam uma classe delazer no sentido de Thorstein Veblen, desde que realizassem funes mgicas ereligiosas para toda a comunidade (e, como temos visto, xamanismo uma profissodiligente e laboriosa). Similarmente, em sociedades agrcolas de histria registrada,

    o ano de trabalho seguia um horrio escrito em muitas passagens do dia edas estaes: em tempo bom o trabalho pesado, em tempo ruim afrouxa-

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    se. O trabalho, nesse caso, tinha um ritmo natural, marcado pelo descanso,por msicas, jogos e cerimnias; foi sinnimo de rotina diria, e emalgumas regies comea quando o sol nasce, terminando quando o sol sepe... o ciclo do ano era tambm marcado por toda uma srie de dias

    sabticos e de festa. Os sabticos pertenciam religio; os dias de festa,portanto, eram frequentemente ocasies de grande investimento de energia(para no mencionar de comida) e constituiu a observao ou oposio davida cotidiana [muitas vezes caracterizado pela inverso simblica ereverso destatus]. Mas o aspecto cerimonial [ou ritual] dessas celebraesno poderia ser ignorado; eles retiraram da religio [definida como

    trabalho sagrado], no do lazer [como pensamos nos dias de hoje]... Essesforam impostos pelas necessidades religiosas... [e] a maioria das civilizaeseuropeias sabia mais do que 150 trabalhadores desempregados por dia numano (p. 249).

    Sebastian de Grazia disse (1962) que as origens do lazer podem ser traadascomo o modo de vida desfrutado por certas classes aristocrticas no curso da civilizaoocidental. Dumazedier discorda, dizendo que o estado do cio dos filsofos gregos e apequena nobreza do sculo XVI no podem ser definidos em relao ao trabalho, masat certo ponto repem trabalho totalmente. O trabalho era feito por escravos,camponeses e servos. O verdadeiro lazer s existia quando complementava ourecompensava o trabalho. Isso no quer dizer que muitos dos refinamentos da culturahumana no vieram dessa aristocracia ociosa. Dumazedier acha que isso significativoe que a palavra grega no ter nada para fazer (schole) tambm significa escola. Oscortesos da Europa, depois do fim da Idade Mdia, inventaram e exaltaram o ideal dohumanista e do cavalheiro (p. 249).

    Lazer, ento, pressupe, trabalho; um no-trabalho, at mesmo uma faseantitrabalho na vida da pessoa que tambm trabalha. Se fossemos nos satisfazer comuma terminologia nova, chamaramos isso de anergic em oposio a ergic. O lazersurge, disse Dumazedier, sob duas condies. Primeiro, a sociedade cessa suas atividades

    por causa das obrigaes rituais: algumas atividades, incluindo trabalho e lazer,tornam-se, pelo menos em teoria,sujeitas a escolhas individuais. Segundo, o trabalhocom o qual as pessoas ganham a vida colocado ao lado de outras atividades; seuslimites so no mais naturais arbitrariamente certamente, organizado de mododefinitivo, uma moda que pode facilmente ser separada, na teoria e na prtica, do seutempo livre. Apenas na vida social das civilizaes industriais e ps-industriaisencontramos essas condies necessrias. Outros tericos sociais, radicais econservadores, dizem que o lazer um produto industrializado, racionalizado,burocratizado, de sistemas socioeconmicos de larga escala, com delimitao maisarbitrria do que natural do tempo livre ou folga do trabalho. O trabalho agora

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    organizado pela indstria como sendo separado do tempo livre, o que inclui, alm dolazer, o atendimento s necessidades pessoais, como comer, dormir, o cuidado com asade e a beleza, assim como as obrigaes familiares, sociais, civis, polticas e religiosas(que poderiam estar no domnio do continuum trabalho-brincadeira em uma

    sociedade tribal). O lazer predominantemente um fenmeno urbano e quando esteconceito comea a penetrar nas sociedades rurais porque o trabalho agrcola tende a setornar industrial, um modo de organizao racionalizado, e tambm porque a vidarural est permeada pelos valores urbanos da industrializao isso serve bem para oTerceiro Mundo de hoje, assim como para o interior rural de sociedades industriaisestabilizadas.

    O tempo do lazer est associado a dois tipos de liberdade: liberdade de[freedom-from] e liberdade para [freedom-to], anunciando a famosa distino de

    Iasiah Berlin. (1)liberdade derepresenta todo o conjunto de obrigaes institucionaisprescritas pelas formas sociais bsicas, particularmente as organizaes tecnolgicas eburocrticas. (2) Para cada indivduo, liberdade para significa o forado, os ritmoscronologicamente regulados da fbrica e do escritrio, e uma chance de recuperao, doprazer natural, e do ritmo biolgico.

    Lazer tambm: (1) liberdade para entrar e at para gerar novos mundossimblicos de entretenimento, esporte, jogos e diverses de todos os tipos. Alm disso, (2)

    liberdade para transcender limitaes sociais estruturais, liberdade para brincar...

    com ideias, fantasias, palavras (de Rabelais a Joyce e Samuel Beckett), pinturas (doImpressionista para a Pintura de Ao e Art Nouveau), e com relaes sociais comamizades, treinamento sensitivo, psicodramas, e muitos outros. Assim, mais do que ritose cerimnias tribais e agrrias, o ldico e o experimental so alargados. Em sociedadescomplexas, orgnico-solidrias, h evidentemente muito mais opes: jogos dehabilidade, fora e risco, que podem servir de modelo para comportamentos futuros oumodelos de experincias de trabalhos anteriores agora vistos como vindos dasnecessidades do trabalho e de algo como escolhas para fazer. Esportes como futebol,jogos como xadrez, recreaes como alpinismo podem ser difceis, exaustivos,

    governados por regras e rotinas ainda mais rigorosas do que aquelas das situaes dotrabalho, mas, desde que opcionais, so parte de uma liberdade individual, de seucrescimento de autodomnio e at autotranscndencia. Portanto, so imbudosminuciosamente mais de prazer do que muitos daqueles tipos de trabalho industrial decujos frutos e resultados os homens esto alienados. Lazer potencialmente capaz delanar poderes criativos, individual ou comunal, para criticar ou contrapor os valoresdominantes da estrutura social.

    certo que ningum est disposto a uma verdadeira atividade de lazer por

    necessidade material ou pelas obrigaes morais e legais, como o caso das atividadeseducativas, meios de vida, ou cumprimento das cerimnias civis e religiosas. Mesmo

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    quando h um esforo, como num esporte competitivo, o esforo e a disciplina dotreinamento escolhido voluntariamente, na expectativa de um prazer que desinteressado, no motivado por ganho e sem propsito utilitrio ou ideolgico.

    Mas se isso idealmente o esprito do lazer, a realidade cultural do lazer obviamente influenciada pelo domnio do trabalho da qual foi dividida pela fatia daorganizao industrial. Trabalho e lazer interagem, cada participante individual emambas as esferas, e os modos de organizao de trabalho afetam os estilos do lazer e dopassatempo. Vamos considerar o caso daquelas sociedades da Europa e da Amrica doNorte cuja industrializao preliminar foi acompanhada e marcada pelo esprito queMax Weber chamou de tica Protestante. Esse meio tico, ou esquema de valores ecrenas, que Weber pensou ser uma condio favorvel para o crescimento docapitalismo moderno e racional, na minha viso, produziu efeitos no domnio dolazer

    completamente to provveis quanto os do trabalho.Como todos sabem, segundo Weber, Calvino e outros reformadores protestantes

    ensinaram que a salvao pura ddiva de Deus e no pode ser ganhada, sequermerecida, por um ser to corrompido em sua natureza desde que Ado e Eva foramexpulsos do Paraso. A predestinao, de modo extremo, significa que ningum poderiater certeza de ser salvo ou ser de fato condenado. Isso ameaou minar seriamente amoral individual e pr de lado uma clusula evoluda no nvel popular da cultura,embora no pudesse ser feito de modo teologicamente hermtico. Isso serviu para aquele

    que na graa de Deus e (invisvel) entre os eleitos pelo decreto de Deus manifestasserealmente em seu sistemtico comportamento o auto-controle e a obedincia svontades de Deus. Esses signos exteriores devem ser compreendidos pelos outros, e ohomem pode reafirmar que um dos eleitos e que no sofrer do martrio eterno comoum condenado. Mas o calvinista nunca estar seguro de que ser salvo e assim dedica-sea um incessante exame das condies de sua alma interna e da vida externa para indicarevidncias do trabalho da graa da salvao. De certo modo, o que, em histria cultural,era previamente o trabalho social dos deuses, o ciclo litrgico e do calendrio, oumelhor, suas penitncias e provaes, no suas festas, tornam-se internalizadas como

    o trabalho no-ldico, sistematizado, do indivduo consciente.Uma outra nfase calvinista foi a noo de vocao [calling] na vida. Ao

    contrrio da noo catlica de vocao como um chamado para a vida religiosa,emoldurado pelo tradicional voto de castidade, obedincia e pobreza, o calvinismosustenta que era precisamente a ocupao da pessoa comum que precisava serrelacionada com a esfera na qual ela serve a Deus atravs da dedicao e de seutrabalho. Trabalho e lazer foram feitos em esferas separadas, e trabalho torna-sesagrado, de facto, como uma arena na qual a salvao deve ser objetivamente

    demonstrada. Assim, um homem de posses deveria atuar como sendo um comissrio dascoisas mundanas, como Jos no Egito. Ele iria us-las no para a luxria, mas para

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    uma melhor condio moral dele mesmo, de sua famlia, e de seus empregados. Amelhoria implicou autodisciplina, autoexame, trabalho rduo, dedicao sobrigaes e vocao do escolhido, e a insistncia de que aqueles sob sua autoridadedeveriam fazer o mesmo.

    Onde quer que a aspirao calvinista de teocracia tenha se tornado influente,como em Genebra ou na dominncia transitria do puritanismo ingls, uma legislaofoi introduzida para forar os homens a melhorar seu estado espiritual atravs dalucratividade e do empreendimento. Por exemplo, o puritanismo ingls no afetouapenas a devoo religiosa com seus ataques ao ritualismo, mas tambm reduziu ocerimonial (ritual secular) ao mnimo em muitos outros campos de atividades,incluindo o drama, estigmatizados como palhaada. Seus atos tornaram ilegais asperformances teatrais vinte e tanto anos depois das peas do teatrlogo Ben Jonson.

    Significativamente, entre os alvos de tal legislao, ento, estavam alguns gneros delazer e entretenimento que foram desenvolvidos em ciclos aristocrticos e mercantilistasdo perodo protoindustrial, como produes teatrais, masques 3, alegorias, performancesmusicais e, claro, os gneros populares de carnaval, festival, cantigas de balada4

    Os calvinistas no quiseram mais saber de bolos e de cerveja

    , e peasde milagre. Estas representaram o lado ldico do continuum trabalho-lazer que foiformalmente capturado pela sociedade como um todo em um nico processo, movendo-se atravs do sagrado e profano, das fases de solenidade e festividade sazonais.

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    Alguma coisa nesse carter sistemtico e vocacional da tica protestante atingiuat mesmo os gneros do lazer industrial. Coincidindo com o termo, o lazer torna-semesmo ergic, a natureza do trabalho, mais do queludic, a natureza da brincadeira.Desta maneira, temos umasria diviso do trabalho no negcio do entretenimento,atuao, dana, canto, arte, literatura, composio etc., que se tornam vocaes

    ou outros

    festivais de comida que pertenciam brincadeira e ao trabalho dos deuses. O que elesbuscavam era uma dedicao asctica para os rendimentos do empreendimentoeconmico; a sacralizao do que era formalmente na maior parte profano, ou, pelomenos, subordinado a, auxiliava o paradigma cosmolgico sagrado. Para Weber,quando as motivaes religiosas do Calvinismo foram perdidas, aps algumas geraesde sucessos mundanos, o foco no autoexame, na autodisciplina e no trabalho rduo davocao do escolhido, mesmo quando secularizado, continuaram a promover adedicao asctica dos lucros sistematizados, do reinvestimento dos salrios e dalucratividade, que foram a aurora do capitalismo nascente.

    3 Peas escritas em verso, frequentemente com msica e dana, populares na Inglaterra nos sculos XVI eXVII. (N. T)4

    Uma msica ou um poema que conta uma histria, muito popular na Idade Mdia. (N. T)5 No more cakes and ale. (N. T)

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    profissionalizadas. Instituies educacionais preparam atores, danarinos, cantores,pintores e autores de carreira. Num alto nvel, nesses lugares cresceram, no final dosculo XVIII e em especial no sculo XIX, a prpria noo de arte e suas vriasmodalidades, como uma vocao quase religiosa, com seus prprios ascetismos e

    dedicao total, de William Blake, atravs de Kierkegaard, Baudelaire, Lermontov, eRimbaud, para Czanne, Proust, Rilke, Joyce, para no mencionar Beethoven, Mahler,Sibelius etc.

    Outro aspecto dessa influncia da tica protestante sobre o lazer na prpriabrincadeira. Como Edward Norbeck disse: os antepassados da Amrica acreditavamfirmemente num conjunto de valores conhecidos como tica protestante. A devoo aotrabalho era uma virtude crist; e a brincadeira, o inimigo do trabalho, erarelutantemente permitida apenas s crianas. Mesmo nos dias de hoje, esses valores

    esto longe de serem extintos de nossa nao, e a velha admoestao de que brincadeira obra do demnio permanece no pensamento secular. Se bem que a brincadeiratornou-se quase respeitvel, ainda alguma coisa que nos satisfaz (como as relaessexuais), uma forma de relaxamento moral (1971, p. 48-53). O esporte organizado(brincadeira pedaggica) ajusta-se melhor tradio puritana do que a brincadeiradesorganizada de criana (brincadeira peditrica) ou a mera gozao, que perda detempo.

    Contudo, as sociedades modernas industriais ou ps-industriais mudaram muito

    essas atitudes antilazer. O desenvolvimento tecnolgico, a organizao poltica eindustrial dos trabalhadores, lideradas por profissionais liberais, e as revolues emmuitas partes do mundo tiveram o efeito acumulativo de produzir mais lazer no tempolivre das culturas industriais. Nesse lazer, gneros simblicos, tanto de entretenimentoquanto de tipo instrutivo, se proliferaram. No meu livro, TheRitual Process, chamoalguns desses fenmenos de liminais. Nesse sentido, questiono: Liminaridade umrtulo adequado para esse conjunto de atividades e formas simblicas? Certamente, halgumas consideraes nas quais esses gneros anergic partilham caractersticas comrituaisludergic e mitos (se contrastarmos estilos rituais hindus e judaicos) de culturas

    arcaicas, tribais e mais recentemente agrrias.O lazer pode ser concebido como entre-um-e-outro, um nem-esse-nem-aquele

    domnio, entre dois perodos do trabalho, ou entre atividades cvica, familiar eocupacional. O lazer etimologicamente derivado do francs antigoleisir, que derivoudo latimlicere, est permitido, e que, bem interessante, tem uma base indo-europia*leik a venda, barganha, refere-se esfera liminal do mercado, com suasimplicaes de escolha, variao, contrato uma esfera que tem conexes em religiesarcaicas e tribais, com os deveres dos trapaceiros, tais como Eshu-Elegba e Hermes. A

    troca mais liminal do que a produo. Assim como quando os membros de umatribo fazem mscaras para se distinguirem dos monstros, juntam smbolos rituais

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    dspares, invertem ou parodiam de modo profano a realidade em mitos e contospopulares, ento pegam os gneros do lazer industrial, o teatro, a poesia, o romance, obal, o cinema, o esporte, a msica clssica, o rock, a arte pop etc., e brincam com osfatores da cultura, que se assemelham algumas vezes ao acaso, ao grotesco, improvvel,

    surpreendente, chocantes combinaes usualmente experimentais.Mas eles fazem isso de modo muito mais complicado do que iniciaes tribais de

    liminaridade, multiplicando gneros especializados de entretenimentos artsticos epopulares, cultura de massa, cultura pop, cultura popular, alta cultura, contracultura,culturaundergroundetc., como contra os gneros simblicos relativamente limitados sociedade tribal, e dentro de cada generosa permissividade da competncia dosautores, poetas, dramaturgos, pintores, escultores, compositores, msicos, atores,comediantes, cantadores, roqueiros, em geral fazedores, que fazem no apenas formas

    estranhas, mas tambm, e comumente, modelos, diretos e parablicos ou esopianas, queso altamente crticos do status quo como um todo ou em parte. Claro, dada adiversidade como um princpio, muitos artistas, em diversos gneros, tambmreforam, justificam ou buscam legitimar a dominao social, os mores culturais e asordens polticas. De modo que apontam em direes que tendem, mais intimamente doque as produes crticas, estar paralelas aos mitos tribais e rituais eles so maisliminais oupseudo ou mesmops liminais, do que liminoides.

    A stira um gnero conservador porque pseudoliminal. A stira, expe, ataca

    ou zomba daquilo que considera ser vcio, tolice, estupidez ou abuso, mas seu critrio dejulgamento normalmente uma moldura da estrutura normativa dos valorespromulgados oficialmente. Portanto, trabalhos satricos, como os de Swift, Castlereagh,ou Evelyn Waugh, frequentemente tm uma forma de reverso do ritual, indicandoque a desordem no um substituto permanente da ordem. O espelho se inverte, mastambm reflete o objeto. Isso no se desdobra de constituintes em ordem para seremoldar, muito menos aniquilar ou substituir aquele objeto. Porm, a arte e aliteratura com frequncia fazem precisamente essas coisas, pelo menos no reino daimaginao. As fases liminais das sociedades tribais invertem, mas nem sempre

    subvertem o status quo, a forma estrutural da sociedade; as reverses sublinham aosmembros de uma comunidade que o caos uma alternativa ao cosmos, assim elesestariam melhor ligados ao cosmos, isto , ordem tradicional da cultura, emborapossam por algum tempo, ser caticos em algumas folias saturnrias ou lupercrias,algumas manifestaes carnavalescas ou orgias institucionalizadas.

    Todavia, gneros pretensamente de entretenimento da sociedade industrial sofrequentemente subversivos, satricos, fazem chacotas, so burlescos ou sutilmentecolocam abaixo os valores centrais do essencial, a esfera do trabalho da sociedade, ou

    pelo menos de setores selecionados daquela sociedade. A propsito, a palavra entretervem do francs arcaico entretenir, deixar de lado, ou seja, criar um espao liminal ou

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    liminoide no qual performances podem ser realizadas. Alguns desses gneros deentretenimento, tais como o teatro clssico ou legtimo, so historicamentecontnuos com o ritual, como nos casos das tragdias gregas ou o teatro japonsNoh, epossuem alguma coisa da seriedade sagrada, at mesmo a estrutura dos rites de passage

    de seus antecedentes. Contudo, diferenas cruciais separam a estrutura, a funo, oestilo, o mbito e a simbologia doliminalem rituais tribais e agrrios e mitos que porvezes chamamos de gneros liminoides, ou de lazer, de formas e aes simblicas nassociedades complexas e industriais. Passo agora a discutir algumas dessas diferenas.

    O termolimen em si, limiar em latim, escolhido por van Gennep para aplicara transio entre, tem uma conotao negativa, uma vez que no mais a condiopassada positiva nem a condio futura positiva articulada. Parece, tambm, ser passivoj que dependente das condies positivas, articulados, as quais medeia. Ainda sobre

    investigao, o que se acha na liminaridade so as qualidades positivas e ativas,especialmente onde o limiar estendido e se torna um tnel, quando o liminal setorna cunicular; este o caso dos rituais de iniciao, com seus longos perodos derecluso e o treinamento de novios, rico em disposies de formas simblicas eensinamentos esotricos. O significado na cultura tende a ser generalizado nainterface entre estabilidades culturais e subsistemas, mesmo que os significados sejaminstitucionalizados e consolidados nos centros de tais sistemas.

    A liminaridade uma interface temporal cujas propriedades parcialmente

    invertem aquelas ordens j consolidadas que constituem qualquer cosmos cultural.Isso pode ser til heuristicamente, se considerado em relao liminaridade nomito/ritual de Durkheim na caracterizao total da solidariedade mecnica, que eleconsiderou como o tipo de coeso mais cooperativa, ao coletiva dirigida para asrealizaes dos objetivos do grupo, que melhor se aplica a sociedades pequenas, no-letradas, com uma diviso do trabalho simples e pouca tolerncia da individualidade.Durkheim baseou esse tipo de solidariedade nahomogeneidade dos valores e doscomportamentos, no forte constrangimento social e na lealdade s tradies e famlia.As regras para a unio so conhecidas e partilhadas. Agora o que frequentemente tipifica

    a liminaridade do ritual de iniciao em sociedades com solidariedade mecnica precisamente o oposto disso: provaes, mitos, mscaras, figuras, representaes doscones sagrados aos novios, lnguas secretas, tabus sexuais e alimentares, que criam umestranho domnio no campo da recluso no qual regularidades ordinrias de parentesco,na disposio das casas, leis tribais e costumes so reservados, onde o bizarro torna-senormal e onde, atravs do afrouxamento das conexes entre os elementos que estohabitualmente juntos em certas combinaes, se embaralham e se recombinam emformas monstruosas, fantsticas e sobrenaturais, os novios so induzidos a repensar ebem em experincias culturais sobre as quais eles no tinham dvidas. Ensinam aos

    novios que eles no sabiam o que achavam que sabiam. Sob a superfcie da estrutura

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    do costume havia uma estrutura profunda, cujas regras eles tiveram que aprender,atravs do paradoxo e do choque.

    De diversos modos, os constrangimentos sociais tornam-se fortes, at mesmo

    sobrenaturais e irracionalmente fortes, assim quando os novios so compelidos pelosseus superiores a submeterem o que na mente deles so tarefas desnecessrias pordeveres arbitrrios, sero punidos severamente se no obedecerem prontamente e, o que pior, mesmo que tenham xito. De outro modo, como no caso citado anteriormente no

    Rites de Passagede van Gennep, aos novios so tambm concedidas liberdades semprecedentes eles fazem pilhagens e invases nas vilas e jardins, mexem com asmulheres, provocam as pessoas mais velhas. Inmeras so as maneiras de colocar ascoisas de cabea para baixo, de parodiar os acordos do sistema normativo, de exagerar asregras em caricaturas ou satiriz-las. Os novios so imediatamente colocados fora e

    dentro de um crculo previamente conhecido. Mas uma coisa deve ser certa: todos essesatos e smbolos so obrigatrios. At mesmo aquebra das regras tem de ser feitadurante o perodo de iniciao. Esse um dos modos distintos em que o liminal separado do liminoide.

    No encontro de 1972 da Associao Americana de Antropologia em Toronto,muitos exemplos nas franjas das civilizaes industriais das sociedades modernas foramcitados (entre eles, o carnaval em St. Vincent nas West Indies, e a La Have Islands, NovaScotia, citado por R. Abrahams e R. Bauman, 1972) que contm algumas semelhanas

    s inverses liminais das sociedades tribais. Mas o que incomodava era como, mesmonessas regies do interior, aopcionalidadedominava todo o processo. Por exemplo,quando as figuras mascaradas da La Have, geralmente rapazes ou homens recm-casados, conhecidos como belsnicklers, saem na vspera de Natal para provocar, irritar eridicularizar os adultos, e tambm para assustar as crianas, eles batem nas portas ejanelas das casas pedindo permisso para entrar. Porm, alguns moradores nopermitem a entrada. Agora, no posso imaginar uma situao na qual os danarinosmascarados de Ndembu, Luvale, Chokwe ou Luchazi (povos que tenho estudado eobservado), que se revelam aps a performance de um ritual, marcando o encerramento

    da primeira parte do perodo de recluso e o incio da outra no ritual de circuncisochamado de Mukanda, se aproximando para danar nas aldeias e ameaandomulheres e crianas, tenham a entrada recusada. Eles nem sequer pedem autorizaopara entrar; eles tomam de assalto! Os belsnicklers pedem regalias aos moradores. OsMakishi(mascarados) entre os Ndembu exigem comida e presentes como um direito. Aopo est impregnada nos fenmenos liminoides, a obrigao impera nos liminais. Um todo brincadeira e escolha, uma espcie de entretenimento; o outro uma questoprofundamente sria, at temida, exigente, compulsria, embora, de fato, o medoprovoque risadas nervosas nas mulheres (que, se tocadas pelos makishi, acreditam

    contrair lepra, tornarem-se estreis ou ficarem loucas!).

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    De novo, em St. Vincent, apenas certos tipos de personalidades atraem-se pelocarnaval como folies, aqueles que R. Abrahams, o investigador, descreve como osgrosseiros e o seguimento esportivo da comunidade, quem for grosseiro e esportivoter a oportunidade de serquando quiser, o ano todo portanto, muitos podem

    pertinentemente personificar desordem versus ordem no carnaval. Aqui, de novo, oopcional evidentemente dominante as pessoas noprecisam agir invertidamente como em rituais tribais; alguns, mas no todos, escolhem agir invertidamente nocarnaval. O carnaval diferente de um ritual tribal em que isso pode ser realizado ouevitado, executado ou meramente assistido, vontade. um gnero de lazer prazeroso,no uma obrigao ritual, a brincadeira-separada-do-trabalho, e no brincadeira-e-trabalho juntos como um sistema binrio de tentativa comunal sria do homem.

    Abrahams, em seu trabalho escrito com Bauman, desenvolve um ponto

    interessante, que realmente localiza o carnaval so vicentino na categoria de gnero-de-lazer-moderno, enfatizando que a maioria esmagadora dos homens malvados eindisciplinados (macho-type) que resolvem fazer inverses carnavalescas indicativas dadesordem do universo e da sociedade, so pessoas desordenadas no temperamento e nasescolhas em muitas situaes extracarnavalescas. Por outro lado, em ritual tribal,mesmo na normalidade, pessoas dceis e dentro-da-lei so obrigadas a seremdesordeiras em rituais-chave, desconsiderando seus traos particulares e temperamentos.A esfera da opo nessas sociedades muito reduzida; at mesmo na liminaridade, ondeo comportamento bizarro to frequentemente apontado pelos antroplogos, asacra, as

    mscaras etc., emergem sob a guisa das representaes coletivas. Se em algummomento houve criadores e artistas individuais, eles foram subjugados pela nfaseliminal geral sobre o anonimato e acommunitas, exatamente como tem sido com osnovios e seus mestres.

    Mas, em gneros liminoides da literatura e da arte industrial, e at da cincia(mais realmente homlogo ao pensamento liminal tribal do que a arte moderna), ogrande pblico est debruado sobre o indivduo inovador, a nica pessoa que ousa eopta por criar. Nessa ausncia de nfase na individualidade, a liminaridade tribal vista

    no como a inverso da normatividade tribal, mas como sua projeo em situaesrituais. Portanto, isso tem que ser modificado quando se olha para os atuais rituais deiniciao em campo. Descobri que, entre os Ndembu, apesar de os novios seremdespidos de nomes, categoria profana, roupas, cada um surge como distino individuale h um elemento de competitividade individual caracterstico no fato de aos quatromelhores novios nos termos de durao de performance de recluso na caa,resistncia na provao, inteligncia em respostas de adivinhao, esprito cooperativoetc., serem dados ttulos nos ritos que marcam a reagregao sociedade profana. Issoindica, na minha opinio, que na liminaridade est a semente do liminoide, esperando

    apenas maiores chances no contexto sociocultural para surgir como um candelabro

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    ramificado de muitos gneros culturais liminoides. Se umtem que, como Tom Thumb,em poema infantil ingls, retirar uma preciosidade dialtica de cada tipo de formaosocial, gostaria de aconselhar aos investigadores que se propem a estudar o mundo quedesaparece das sociedades tribais que olhassem para as fases liminais dos seus rituais

    de modo mais preciso, para localizar a incipiente contradio entre anonimato comunale modos privados distintos dos principais entendimentos de crescimento sociocultural.

    Tenho usado a noo de antiestrutura principalmente com referncia ssociedades tribais e agrrias, para descrever a liminaridade e o que chamei decommunitas. Quero dizer com isso no a reverso estrutural, uma imagem de espelhoda estrutura socioeconmica profana do dia a dia, ou uma rejeio-fantasia dasnecessidades estruturais, mas a liberao das capacidades humanas de cognio,afeto, volio, criatividade etc., dos constrangimentos normativos incumbidos de ocupar

    uma sequncia nostatus social, desempenhando uma multiplicidade de papis sociais esendo conscientemente membro de alguns grupos, como famlia, linhagem, cl, naoetc., ou de afiliao com algumas categorias de persuaso social como classe, casta,diviso sexual ou idade.

    Os sistemas socioculturais caminham regularmente em direo consistncia deque os indivduos s saem desses ganchos normativos em raras situaes nas sociedadesde pequena escala e no muito frequentemente em sociedades de grande escala. Apesarde tudo, as prprias exigncias da estruturao, o processo de conteno de novos

    crescimentos em padres ordenados ou estruturados tem seu calcanhar de Aquiles. Isso o que acontece quando pessoas, grupos, conjunto de ideias se movem de um nvel ouestilo de organizao ou regulao de interdependncia de suas partes ou elementospara um outro nvel h uma regio interfacial ou, mudando a metfora, umintervalo, portanto breve, de margin oulimen, quando o passado momentaneamentenegado, suspenso, ou revogado, e o futuro ainda no comeou, um instante de purapotencialidade quando tudo, como era, estremece no balano (como a criatividade domeio-campista com todas as suas opes, mas com o futuro bem slido se movendoameaadoramente em direo a ele!).

    Em sociedades tribais, em que se espera pela conduo geral dos valores,comportamentos e regras da estrutura social, esse instante pode ser facilmente dominadoou contido pela estrutura social, mantido a salvo dos excessos inovadores, cercado,como os antroplogos adoram dizer, pelo tabu, avaliao e balano etc. Assim, oliminal tribal, portanto extico na aparncia, nunca deve ser muito mais do que umaoscilao subversiva. Pois isso logo colocado a servio da normatividade. No entanto,vejo isso como um tipo de cpsula ou bolsa institucional que contm o germe dosdesenvolvimentos sociais futuros, da mudana societria, de modo que tendncias

    centrais de um sistema social nunca devem totalmente ter xito em existncia, nasesferas nas que lei, costume e os modos de controle social prevalecem. As inovaes

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    podem acontecer em tais esferas, mas frequentemente ocorrem em interfaces eliminaridade, ento se tornamlegitimadas em setores centrais.

    Para mim, tais processos sociais relativamente tardios, historicamente falando,

    como revolues, insurreies, e at mesmo o romantismo na arte, caracterizadopela liberdade em forma e esprito, enfatizado em sentimento e originalidade,representam uma inverso da relao entre normativa e liminal em sociedades tribaise outras essencialmente conservadoras. Nesses movimentos e processos modernos, assementes de transformao cultural, a insatisfao com o modo como as coisas estoculturalmente e a crtica social, sempre implcita na liminal pr-industrial, tornaram-sesituacionalmente centrais, no apenas um problema de interface entre estruturasfixas, mas uma questo holisticamente relativa ao desenvolvimento. Assim, revolues,bem sucedidas ou no, tornam-se alimina, com todas as suas insinuaes iniciatrias,

    entre uma maior forma de distino estrutural ou ordenaes da sociedade. Ou seja,podemos usar liminal de modo metafrico, no no termo primrio ou literalconforme disse van Gennep, mas esse uso pode nos ajudar a pensar sobre a sociedadeglobal humana, para a qual todas as formaes histricas e sociais especficas podemmuito bem convergir. As revolues, violentas ou no, podem ser a totalizao das fasesliminais para as quais alimina dos rites de passagetribais foi meramente adivinhaoe premonio.

    Esse poder ser o ponto onde alimentamos, nas outras maiores variabilidades

    antiestruturais, as communitas. (discuto os mritos e os demritos falando sobreantiestrutura, metaestrutura, e proestrutura em seguida). Provavelmente, h emsociedades tribais um relacionamento mais prximo entre communitas e liminaridadedo que entre communitas e estrutura normativa, embora a modalidade de inter-relacionamento humano que communitas possa jogar atravs dos sistemasestruturais de um modo to difcil entre ns no presente para predizer seus gestos essa a base experiencial, acredito, da noo crist da graa alcanada [actual grace].Assim, nas oficinas, bairros, na sala de leitura, teatro, em todos os lugares as pessoaspodem ser subvertidas de suas obrigaes e direitos numa atmosfera de communitas.

    Ento o que communitas? Tem uma base real ou uma fantasia persistentedo ser humano, um tipo de retorno coletivo ao tero? Tenho descrito essa maneira pelaqual as pessoas veem, entendem, e atuam diante das outras (em TheRitual Process)como essencialmente uma relao no mediada entre indivduos concretos, histricos eidiossincrticos. Essano a mesma noo de communion que Georges Gurvitchdescreve como quando as mentes se abrem o mximo possvel e menos acessveisprofundezas do Eu so integradas nessa fuso (que pressupe estados de xtasecoletivo) (1941, p. 489). Para mim, communitas preserva distines individuais isso

    no regresso infncia, nem emocional, nem funde-se na fantasia.

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    Nas relaes estruturais de pessoas sociais, elas so generalizadas por vriosprocessos abstratos e segmentados em papis, condies, classes, sexos culturais,convencionais divises por idade, filiao tnica etc. Em diferentes tipos de situaessociais elas so condicionadas a desempenhar especficos papis sociais. No importa

    quo bem ou mal, desde que elas faam de conta que so obedientes ao conjunto denormas que controla diferentes comportamentos de modelos complexos conhecidoscomo estrutura social. Por enquanto, isso tem sido quase o assunto principal dascincias sociais pessoas desempenhando papis e mantendo ou alcanando status.Sem dvida, isso no cobre a grande negociao do tempo disponvel, tanto no trabalhocomo no lazer. E, como extenso disso, a autntica essncia humana que estenvolvida aqui; para cada definio de papel leva-se em conta algum atributo humanobsico ou capacidade e, indiscriminadamente, seres humanos jogam seus papis demodo humano.

    Mas, toda capacidade humana aprisionada nessas poucas limitaes, nessesquartos abafados. Mesmo quando dizemos que uma pessoa desempenha bem o seupapel, queremos dizer que ela atua com flexibilidade e imaginao. A noo de MatinBuber da relaoEu-e-Tu e do Ns essencialformado por pessoas que se movem emdireo a uma meta comum de liberdade de escolha so percepes intuitivas de umaordem no transacional ou de qualidade do relacionamento humano, de modo que aspessoas no necessariamente iniciam aes em direo aos outros na expectativa deuma reao que satisfaa seus interesses. Os antroplogos, indiscriminadamente, fogem

    muito dessas pendncias, eles lidam com homens vivos, em seu altrusmo eempenho egosta, nos microprocessos da vida. Alguns socilogos, por outro lado,encontram segurana em questionrios etnocntricos, que, pela natureza do caso,distanciam o observador do informante e tornam pouco autnticas suas interaessubsequentemente preservadas.

    Em sociedades tribais e outras formaes sociais pr-industriais, a liminaridadesustenta um contexto propcio para o desenvolvimento dessas diretas, imediatas e totaisconfrontaes de identidades humanas. Em sociedades industriais, isso acontece no

    lazer, e algumas vezes ajudado pelas projees da arte, em que esse modo deexperincia dos sujeitos pode ser pintado, compreendido e, s vezes, realizado. Aliminaridade certamente um estado ambguo de estrutura social, enquanto inibe todasatisfao social, prov uma medida de finitude e segurana; a liminaridade , muitasvezes, o auge da insegurana, o avano do caos no cosmos, da desordem na ordem, maisdo que o meio de criatividade inter-humana ou satisfaes e realizaes transumanas. Aliminaridade pode ser o reflexo da doena, do desespero, da morte, do suicdio, daquebra sem reposio compensatria da norma, e dos vnculos e laos sociais bemdefinidos. Isso pode seranomie, alienao, angst, a rvore fatal das irms alpha de

    muitos mitos modernos. Em sociedade tribal esse o domnio intersticial da bruxaria

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    domstica, da morte hostil e dos espritos vingativos dos estranhos; nos gneros de lazerdas sociedades complexas, pode ser representado pelas situaes extremas adoradaspelos escritores existencialistas: tortura, estupro, guerra, suicdio, tragdias, execuesetc.

    A liminaridade , ao mesmo tempo, mais criativa e mais destrutiva do que anorma estrutural. Em ambos os casos, criam-se problemas bsicos para o homemsocial-estrutural, um convite especulao e crtica. Mas onde socialmente positivorepresenta, direta ou implicitamente, um modelo homogneo de sociedade humana,umacommunitas desestruturada, cujas fronteiras so idealmente partilhadas entre osseres humanos. At mesmo quando duas pessoas acreditam na unidade de experincia,todas as pessoas so vividas por esses dois, mesmo se apenas por um instante, ao seremum. Sentimentos se generalizam mais facilmente do que pensamentos, o que poderia

    parecer! A grande dificuldade manter essa intuio viva o entorpecimento regularno o far, as repetidas unies sexuais no o faro, a imerso constante na grandeliteratura no o far, a recluso iniciatria mais cedo ou mais tarde acabar. Chegamosao paradoxo em que a experincia da communitas torna-se a memria dacommunitas, com o resultado de