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PPGCOMESPM//SÃOPAULO//COMUNICON2016(13a15deoutubrode2016)
Do consumo de marcação à marcação do consumo: apontamentos teóricos e implicações contemporâneas no contexto da midiatização1
Lívia Silva de Souza2
Universidade de São Paulo
Resumo Os estudos sobre consumo apontam para caminhos cada vez mais transdisciplinares (CANCLINI, 1991), que deem conta das relações estabelecidas entre os consumidores e os bens, relações estas que são produtoras de sentido e de valor. De um paradigma do consumo como elemento de marcação de diferenças sociais e culturais (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013), caminhamos para a compreensão daquele consumo que se constitui nos usos e nas táticas do consumidor (DE CERTEAU, 2014), que modaliza novos sentidos em suas relações e rituais com os bens. É nesse sentido que o presente trabalho visa à compreensão das formas contemporâneas de consumir que, no contexto da midiatização da cultura e da sociedade (HJARVARD, 2014), e em particular no ambiente das mídias digitais, constituem novos rituais do consumo midiatizado, dentre os quais aqui nomeamos as táticas de marcações do consumo.
Palavras-chave: consumo; rituais; táticas; marcação; midiatização.
Consumo de marcação, usos, práticas, táticas: contribuições transdisciplinares
Visões sobre o consumo provém de diferentes disciplinas, desde a
administração até a sociologia e antropologia. Muito do que se produz tem enfoques
instrumentalistas, ligados ao marketing e a visões limitadas do consumo como ato de
compra. Uma abordagem transdisciplinar é, portanto, necessária para a compreensão
do consumo e seu lugar na sociedade e na cultura. Ao observar o panorama dos
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 2 – Comunicação, Consumo e Identidade, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo. Docente no Centro Universitário FIAM-FAAM. E-mail: [email protected].
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estudos sobre consumo, Canclini (1991) destaca que tais estudos quase sempre
apresentam visões parciais oriundas das disciplinas em seu relativo isolamento.
Cuando recorremos las investigaciones sobre consumo, audiencias y recepción en América Latina, encontramos que las metas producidas tienen un débil consenso, limitado casi siempre a la disciplina en que se generan. Por eso mismo, una tarea necesaria es poner en relación estos enfoques parciales: lo que la economía sostiene acerca de la racionalidad de los intercambios económicos con lo que antropólogos y sociólogos dicen sobre las reglas de convivencia y los conflictos, y con lo que las ciencias de la comunicación estudian respecto al uso de los bienes como transmisiones de información y significado (CANCLINI, 1991: 1).
De forma complementar, Daniel Miller (2007) considera as visões pejorativas
ao consumo não somente como limitadas, mas também falhas ao partir da
pressuposição do consumo enquanto destruidor da própria cultura material, em
oposição à produção, vista como a verdadeira atividade criadora. Tais visões do
consumo alinham julgamentos morais a respeito do materialismo contemporâneo:
“Enquanto a produção, por sua vez associada com a criatividade (...), é considerada
como a manufatura do valor, por exemplo, no trabalho de Marx, o consumo envolve o
gasto de recursos e sua eliminação do mundo” (MILLER, 2007, p. 35), ignorando o
que de intrínseco existe entre um e outro, e também o potencial da produção criativa
que existe no consumo quando visto como a relação do indivíduo com os objetos ou
bens. Nesse sentido, o autor ressalta a importância de contribuições oriundas de
estudos antropológicos para o entendimento do consumo a partir de uma abordagem
dos bens enquanto sistema simbólico (MILLER, 2007, p. 44).
Exemplo disso é o trabalho de Grant McCracken (2010), antropólogo
dedicado ao consumo que desenvolveu a noção dos movimentos de significados
culturais operados pela publicidade, moda e rituais de consumo como base da lógica
do consumo.
Segundo o autor, há três lugares distintos para os significados culturais na
sociedade de consumo: o mundo culturalmente constituído, o bem de consumo e o
consumidor individual. Existem, ainda, dois momentos de transferência destes
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significados culturais: a transferência do mundo para os bens de consumo, e dos bens
para os indivíduos (MCCRACKEN, 2010, p. 100).
Do mundo culturalmente constituído para os bens, os significados culturais
são transferidos pela publicidade e pelo sistema de moda.
A partir dos bens de consumo, os significados ali presentes são transferidos
para os consumidores por meio de rituais próprios das sociedades de consumo, a
saber, os rituais de troca, de posse, de arrumação e de despojamento (MCCRACKEN,
2010, p. 114). Os rituais passam a ser centrais na compreensão do consumo do ponto
de vista da relação dos indivíduos com os bens, ampliando a ideia da criação de
sentidos nessa relação.
A este respeito, destaca-se o trabalho de Douglas e Isherwood (2013). Os
autores, ela antropóloga e ele economista, mostram que a visão utilitarista, muito
difundida na teoria econômica, de que o consumo se baseia em uma racionalidade
voltada à satisfação de necessidades e desejos por parte dos consumidores, não se
sustenta (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p. 56-57).
Nesse sentido, para prosseguir com uma definição antropológica do consumo,
os autores substituem a visão utilitarista por uma que se interesse pela relação do
homem com os bens enquanto forma de exercer e dar visibilidade às culturas
(DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p. 103), bem como de construir significados.
Os autores levantam a importância dos rituais como forma de fixar e
estabilizar significados em uma dada cultura, sobretudo em uma sociedade em que os
sentidos e as narrativas encontram-se em constante trânsito. O consumo é
compreendido dentro de uma perspectiva antropológica como ritual que envolve bens
de consumo e que fixa significados compondo uma narrativa que faça sentido no
mundo contemporâneo. Viver sem rituais é viver sem significados claros e, possivelmente, sem memórias. Alguns são rituais puramente verbais, vocalizados, não registrados; desaparecem no ar e dificilmente ajudam a restringir o âmbito da interpretação. Rituais mais eficazes usam coisas materiais, e podemos supor que, quanto mais custosa a pompa ritual, tanto mais forte a intenção de fixar os significados. Os bens, nessa perspectiva, são acessórios rituais; o consumo
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é um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p. 110)
Na sociedade de consumo, os rituais, como em qualquer outra sociedade, tem
como objetivo a estabilização de valores culturais. Porém, os rituais ligados ao
consumo utilizam bens de consumo, e se inserem em um contexto de incompletude
das narrativas unificadoras e direcionadoras do corpo social. O consumo como ritual
da sociedade contemporânea nos ajuda a fixar sentidos e criar uma compreensão mais
clara dos significados desta sociedade.
Nesse contexto, os bens de consumo desempenham o papel de uma ponte para
a criação das diferenças de padrões de consumo, que dão materialidade às diferenças
de classe. São formas de se discriminar valores e gostos de fundo social e cultural.
Introduz-se, assim, a ideia de consumo de marcação, a partir da compreensão
do consumo como uma forma de discriminar valores, de marcar diferenciação social,
de demonstrar afinidade com determinado grupo a que se pertence ou a que se aspire
pertencer. A comida é um meio de discriminar valores, e quanto mais numerosas as ordens discriminadas, mais variedades de comida serão necessárias. O mesmo quanto ao espaço. Atrelado ao processo cultural, suas divisões são atreladas de significado: casa, tamanho, o lado da rua, a distância de outros centros, limites especiais (...). O mesmo quanto à roupa, transporte e saneamento; permitem conjuntos de marcações dentro de um referencial de espaço e de tempo. A escolha dos bens cria continuamente certos padrões de discriminação, superando ou reforçando outros. Os bens são, portanto, a parte visível da cultura. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p. 111)
Dentro de determinado contexto social e cultural, as escolhas não somente
daquilo que se consome, mas também de como arranjar e organizar esse consumo (em
diálogo com a noção dos rituais em McCracken, 2010), constituem “categorias
conceituais” capazes de discriminar comportamentos adequados ou não a um ou outro
grupo social.
Enquanto “parte visível da cultura”, os bens carregam sentidos do mundo
culturalmente constituído para os consumidores individuais, por meio dos rituais de
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consumo, prestando-se à função de marcadores distinções sociais, culturais, de gosto.
Tal entendimento do consumo de marcação dá conta da estabilização de valores
sociais, bem como do papel dos rituais de consumo enquanto portadores dos valores
desejados aos consumidores.
Mais atento, entretanto, às possibilidades de relações entre os bens e os
consumidores, nos usos e práticas cotidianas, De Certeau (2014) traz às discussões
sobre o consumo as transformações e produções de significados no âmbito das táticas
de consumo.
Para o autor, o consumo, por si só, é lugar de produção de sentidos do ponto
de vista dos usos e das práticas estabelecidas pelo consumidor. De maneira bastante
coerente inclusive com a visão de Martin-Barbero (2009) quanto ao protagonismo do
consumidor nas suas relações com os bens, o autor explica que
(...) diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como características suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, (...), uma quase invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (...), mas por uma arte de utilizar aqueles que lhes são impostos. (DE CERTEAU, 2014, p. 89)
Com o olhar voltado às relações dos indivíduos com os objetos, De Certeau
(2014) reconhece que os sentidos são continuamente construídos nessas relações, de
forma mais dinâmica do que a noção de "transporte" de valores e significados
culturais proposta por McCracken (2010).
Aprofundando esta ideia, o autor trabalha os conceitos de estratégias e táticas
do consumo que, de modo mais amplo, identifica com a atividade de uso, assim como
"o ato de falar é um uso da língua e uma operação sobre ela" (DE CERTEAU, 2014,
p. 91).
Quanto às estratégias, estas dizem respeito ao "(...) cálculo (ou a manipulação)
das forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e
poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser
isolado." (DE CERTEAU, 2014, p. 93)
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As estratégias, assim, partem de um pretenso domínio das apropriações dos
usos e dos sentidos produzidos no consumo. Dito de outra forma, a estratégia trata-se
de uma tentativa de prevalência do lugar sobre o tempo. Os sentidos fixados,
estabelecidos nos bens pela estratégia, pretendem-se imutáveis no tempo dos seus
usos ou consumos.
A tática, por sua vez, é definida como "(...) a ação calculada que é
determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe
fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro." (DE
CERTEAU, 2014, p. 94)
Ainda que jogando com regras impostas pelas estratégias, as táticas adaptam
os usos ao momento presente, transgredindo a ordem ao sabor da ocasião. Ao
contrário da estratégia, a tática é o domínio do tempo sobre o lugar. Ou ainda, nas
palavras do autor, "(...) a tática é a arte do fraco." (DE CERTEAU, 2014, p. 95)
A partir do enfoque às possibilidades de relações dos indivíduos com os bens
de consumo, notam-se desdobramentos muito mais complexos aos sentidos que
emanam nas ocasiões de uso.
Permanecem centrais nessas relações os rituais de consumo, porém a
estabilização de sentidos desloca-se mais na direção das táticas, passando a se
constituir nos usos pelos consumidores.
Nesse sentido, a ideia de consumo de marcação, indicando valores e distinções
de ordem social, deve ganhar em complexidade, considerando não o simples
transporte de valores do mundo social dos bens aos consumidores, mas os valores que
se constituem nas táticas a partir dos usos e consumos.
Outro aspecto a se ressaltar ao situarmos o consumo no contexto
contemporâneo diz respeito à midiatização da cultura, da sociedade e em particular do
próprio consumo, conforme desenvolvemos a seguir.
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A midiatização do consumo como fenômeno contemporâneo
A partir do ponto de vista do sistema do consumo enquanto transmissão de
significados culturais, entre um mundo social, bens e consumidores, sobretudo
quando consideramos o papel dos usos e das táticas reposicionando o papel do
consumo enquanto atividade criativa, torna-se crucial discutir o papel da mídia nesse
processo no mundo contemporâneo.
Reconhecemos a mídia hoje não mais somente como canal, ou ainda como
influenciadora do mundo culturalmente constituído. Dentro da ideia de midiatização,
a mídia torna-se uma instituição social (na perspectiva da midiatização institucional)
cada vez mais onipresente e influente nas demais instituições e praticas culturais.
Para o pesquisador dinamarquês Stig Hjarvard (2014), na perspectiva da
midiatização como fenômeno urbano, industrial e da alta modernidade, a mídia ocupa
hoje o lugar de instituição social, caracterizando essa abordagem como a abordagem
institucional da midiatização. Além desse aspecto, para o autor, o que define a
midiatização é a onipresença da mídia e seu papel como ambiente de formação do
nosso olhar, da nossa compreensão, da nossa cultura, da nossa construção da
realidade.
Nas palavras de Hjarvard, “Ao mesmo tempo em que os meios de
comunicação adquiriram impulso como uma instituição em si mesma, a mídia se
tornou onipresente em quase todas as esferas da sociedade”. (HJARVARD, 2014, p.
30)
Hjarvard (2014, p. 39) define a midiatização comparando-a também com o já
existente conceito e campo de estudos da mediação. Se os estudos da mediação dizem
respeito à comunicação mediada por um dispositivo técnico ou mídia, a midiatização
por sua vez se refere a um processo de longo prazo, em que os meios de comunicação
exercem uma crescente influência nas outras instituições sociais.
Assumimos, portanto, conforme Hjarvard, que na sociedade midiatizada as
mídias tornam-se uma mediação cultural principal, com efeitos de longo prazo ao
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pautar os valores e o funcionamento de outras instituições sociais segundo suas
lógicas próprias.
Tais discussões também podem ser apontadas no contexto acadêmico
brasileiro, a exemplo de José Luís Braga (2012). A respeito da midiatização da
sociedade, o autor estabelece que o papel da mídia está na interação e organização da
sociedade, de maneira muito mais profunda que o uso dos meios. Com a midiatização crescente dos processos sociais em geral, o que ocorre agora é a constatação de uma aceleração e diversificação de modos pelos quais a sociedade interage com a sociedade. Ainda que os processos interacionais mais longamente estabelecidos (...) continuem a definir padrões de comunicação, e lógicas inferenciais, que organizam a sociedade e suas tentativas, tais processos, em sua generalidade, se deslocam para modos mais complexos, envolvendo a diversidade crescente da midiatização – o que é bem mais amplo e diferenciado do que referir simplesmente o uso dos meios. (BRAGA, In: MATOS; JANOTTI JR; JACKS, org: 2012, p. 42)
Fausto Neto (2010 e 2013) acrescenta à discussão o conceito de circulação
midiática. Segundo o autor, este novo cenário proporciona novas formas de interação
entre as instâncias de produção e recepção, diferentes da ideia unidirecional que se
atribuía à comunicação na “sociedade dos meios”. (...) não se trata da supressão dos lugares de produção e da recepção de discursos, mas de sua subordinação à configuração de novos regimes de discursividades nos quais o discurso está preso. Trata-se da ordem interdiscursiva onde a circulação – como terceiro – se oferece como um novo lugar de produção, funcionamento e regulação de sentidos. (FAUSTO NETO, 2010, p. 60)
Os papeis de produção e recepção dos discursos não desaparecem
completamente, mas reconfiguram-se em uma lógica diferente daquela de uma
comunicação unilateral. Esta nova lógica prevê de fato uma complexidade que é
inerente à sociedade midiatizada, em que aqueles papeis assumem um caráter
dinâmico frente à contínua interface a circulação midiática. Configura-se, assim, um
lugar de realização de “jogos complexos”, de apropriação e contínua dos sentidos das
mensagens nas mídias.
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Enquanto aspecto indissociável das sociedades ocidentais contemporâneas
desde sua constituição, o consumo se vê cada vez mais influenciado pelas lógicas da
mídia, seja do ponto de vista do mundo culturalmente constituído, dos bens, dos
consumidores ou, em especial, das relações destes com os bens nos seus usos e táticas
do cotidiano.
O que vemos afinal na sociedade midiatizada são novas formas para este papel
do consumidor, que individualiza seu consumo nos seus usos e práticas, porém agora
em um contexto cada vez mais influenciado pela mídia e suas lógicas, bem como
pelos novos papeis dados às esferas da produção e recepção conforme Fausto Neto
(2010). Das estratégias pretendidas pelos produtores institucionais às táticas (no
sentido expresso por De Certeau, 2014), surgidas nos contextos dos usos e consumos,
outros produtores entram em cena e circulam novos sentidos.
Ao voltar nosso olhar para o consumo, portanto, assumimos a midiatização
como uma mediação cultural principal na sociedade, que imprime uma lógica do
consumo midiatizado por meio de marcas e bens de consumo, em que os dispositivos
comunicacionais operam uma espécie de pauta aos padrões culturais desta sociedade
midiatizada, no nível constitutivo das relações sociais. A midiatização percebe nessas apropriações do sujeito, uma estrutura que depende de contextos, temporalidades e uma lógica institucional/ideológica que via interações, por meio de dispositivos comunicacionais, modelizam padrões culturais, práticas de sociabilidade, institucionalizam lógicas políticas, crenças e percepções. (TRINDADE, 2014: 8)
É nesse sentido que Trindade e Perez (2014) acrescentam à discussão o papel
cada vez mais central da mídia e suas lógicas na configuração de hábitos e práticas de
consumo. Para os autores, o ritual de consumo do ponto de vista da midiatização
funciona “[...] como dispositivo articulador dos sentidos dos produtos/marcas na vida
das pessoas, portanto, a presença do sistema publicitário é constitutiva nesta relação
de consumo.” (TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 05). Para além da simples função de
representação de rituais de consumo, por exemplo, são as próprias lógicas da mídia
que estão presentes com cada vez mais relevância na constituição de novas formas de
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usos e práticas de consumo, bem como nos vínculos de sentido entre os bens e os
consumidores. É nestes termos que falamos em um consumo midiatizado, ao
reconhecer a lógica da mídia na própria constituição das estratégias e das táticas do
consumo.
É, enfim, nas possibilidades ampliadas pelas redes digitais que o consumo
midiatizado manifesta novas práticas e rituais a partir de um deslocamento da figura
do consumidor na circulação midiática. A reconfiguração dos papeis observada por
Fausto Neto (2010 e 2013) na circulação revela não mais um consumidor que busca
adequar-se tão somente a bens de consumo que comuniquem uma mensagem de
pertencimento a determinada classe ou gosto, na modalidade do consumo de
marcação.
Ao explorar o tema da midiatização com foco nas novas mídias, dentre as
quais a internet, Hjarvard (2015) retoma e amplia a compreensão de um conceito que
já havia trabalhado (HJARVARD, 2014), mas que se mostra especialmente
interessante nesta nova fase. Trata-se da ideia de affordance, termo trazido, segundo o
autor, dos trabalhos do psicólogo norteamericano James Gibson.
Por affordances de uma mídia, compreendemos as possibilidades de comunicação e interação que esta mídia proporciona a um usuário potencial. O usuário pode fazer ou não uso dessas affordances, e pode terminar tirando vantagem de algumas affordances que não foram antecipadas pelos desenvolvedores da mídia. Uma mídia, contudo, pode também compelir certas formas de interação e tornar formas de interação particulares mais fáceis em comparação com formas existentes de interação mediada ou não mediada. (HJARVARD, 2015, p. 58)
As possibilidades ou potencialidades de uma mídia não se referem a um
determinismo tecnológico, mas sim, são construídas na propria relação entre o sujeito
e a mídia.
Ao pensarmos na midiatização do consumo a partir desta perspectiva,
passamos a considerar o potencial que surge na relação entre o usuário e as mídias
digitais no que diz respeito aos seus usos e táticas no consumo midiatizado. Formas
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de uso das novas mídias, em especial, contribuem para o surgimento daquilo que
passamos a chamar de marcações do consumo, conforme desenvolvemos a seguir.
A marcação do consumo nas táticas do consumo midiatizado
As affordances das mídias em geral e das novas mídias em particular
constituem não somente possibilidades técnicas dos dispositivos comunicacionais
para os usuários, mas também, e em especial, lógicas que, na perspectiva da
midiatização, passam a exercer grande influência nas instituições sociais e nas
práticas culturais relacionadas às mídias.
Com nosso olhar voltado particularmente à midiatização do consumo, vemos
surgir novas táticas nos usos e consumos midiatizados características do ambiente
digital.
Vimos que os rituais de consumo originalmente situados por McCracken
(2010), responsáveis pela transferência de significados culturais dos bens aos
consumidores individuais, passam a ser reconsiderados do ponto de vista das táticas
nos usos e consumos do cotidiano (De Certeau, 2014).
Além disso, e agora do ponto de vista do consumo midiatizado, as relações
entre os indivíduos e os bens de consumo passam também pelas lógicas das
potencialidades das novas mídias (Hjarvard, 2015) que encontram na circulação
midiática (Fausto Neto, 2010) novas formas de se constituir enquanto rituais de
consumo próprios desse contexto.
Isso quer dizer que o consumidor passa a ressignificar seus usos e consumos
na forma de novas práticas que aqui chamamos de marcação do consumo, segundo a
qual a criação de valores e sentidos se dá também táticas postas em circulação pelo
consumidor, nos processos de seleção e marcação dos bens no seu consumo
midiatizado.
As marcações do consumo surgem como rituais próprios do consumo
midiatizado em especial nas lógicas das mídias digitais. Práticas ou o uso de
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ferramentas tais como o “curtir”, o compartilhamento, ou ainda as “hashtags”3,
oferecidas por redes sociais digitais como o Facebook, Twitter ou Instagram, passam
a configurar diferentes formas de criar significados no consumo midiatizado nas
redes.
A marcação do consumo na circulação midiática atualiza as formas do
consumo de marcação, a partir do momento em que assume como protagonista
indiscutível o consumidor-marcador de seu consumo midiatizado nas redes.
Podemos pensar particularmente no exemplo das hashtags como ato explícito
de marcação do consumo nas redes.
Enquanto utilizadas no contexto das estratégias do consumo midiatizado, a
partir da enunciação publicitária das marcas nas redes, as hashtags funcionam mais
como pretensões a se explicitar o consumo de marcação e criar valor e sentido ao
consumo midiatizado.
No contexto das táticas dos usos e consumos nas redes sociais, vemos surgir
com o uso das hashtags pelo consumidor novos rituais emergentes na circulação
midiática nas redes, que se mostram como táticas próprias do consumo midiatizado.
Estas táticas configuram atos criativos nos usos e consumos, com possibilidades de
transgressão das estratégias pretendidas pelas marcas.
É, por fim, nas marcações do consumo midiatizado, que o usuário consumidor
categoriza, ressignifica e, assim, cria valor nos seus usos e consumos tanto para aquilo
que ele próprio circula nas redes, como forma de representação ou de aspiração de seu
consumo, quanto para aquilo que as próprias marcas fazem circular abrindo espaço
para a atuação de seus consumidores na circulação midiática.
3 Hashtag é o conjunto de sinal gráfico “#” com uma palavra-chave, ou tag, em inglês. Na rede, a hashtag cria um hiperlink e realiza uma indexação automática, possibilitando ao usuário agrupar suas postagens, ou buscar conteúdos indexados sob determinada etiqueta ou tag. Disponíveis pela primeira vez na rede social Twitter, posteriormente as hashtags foram incorporadas ao Instagram, Facebook e Google+.
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Considerações finais
O percurso realizado desde a compreensão do sistema de consumo como
transferência de significados culturais entre o mundo, os bens e os consumidores
(MCCRACKEN, 2010), passando pela noção de consumo de marcação enquanto
forma de se designar valores e posições sociais e culturais (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2013), até chegarmos na compreensão mais complexa do consumo
com foco na relação dinâmica entre os consumidores e os bens e nos usos e táticas
desse consumo (DE CERTEAU, 2014) mostra a crescente importância das
contribuições dos estudos antropológicos à construção de uma teoria do consumo.
Mais especificamente, tais estudos levantam a centralidade da relação do
consumidor com os bens de consumo na perspectiva do consumo enquanto atividade
criadora e produtora de sentido.
Considerar o consumo na sociedade contemporânea passa pela perspectiva da
midiatização da sociedade e da cultura, destacando-se nesse contexto a ideia do
consumo midiatizado (TRINDADE, 2014) que, para além da simples representação
dos usos e consumos nas mídias, designa novas lógicas nos consumos midiatizados a
partir da influência da mídia enquanto mediação cultural principal na sociedade. O
consumo midiatizado vê na própria constituição de novos hábitos e práticas de
consumo a presença da mídia e suas lógicas de funcionamento.
Na confluência entre os usos e consumos enquanto táticas do consumidor com
as novas possibilidades sobretudo das mídias digitais, a midiatização do consumo é
pontuada por novos rituais próprios do novo contexto.
Configuram-se práticas de marcação do consumo midiatizado que, a partir dos
usos das possibilidades dos dispositivos comunicacionais, criam novas relações entre
os consumidores e os bens, geradoras de novos sentidos na circulação nas redes.
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Referências
BRAGA, José Luís. Circuitos versus campos sociais. In: MATOS; JANOTTI JR; JACKS (org). Mediação e Midiatização. Salvador: EDUFBA / Compós, 2012. CANCLINI, Néstor Garcia. Los estudios sobre comunicación y consumo: el trabajo interdisciplinario en tiempos neoconservadores. In: Revista Dialogos de la Comunicación, n. 32, marzo 1992. DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. 22a edição. DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens. Para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2013. 2a Ed. FAUSTO NETO, Antônio. As bordas da circulação. In Revista ALCEU. Rio de Janeiro PPGCOM/PUC Rio. v. 10, n.20, jan./jun. 2010 p. 55 a 69. ______________________. Zona em construção: acesso e mobilidade da recepção na ambiência jornalística. In Anais 22º II Encontro da Compós. Salvador: Compós. 2013. P.1-11. GT- Recepção: interpretações, usos e consumo midáticos. HJARVARD, Stig. A midiatização da cultura e da sociedade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2014. _______________. Da mediação à midiatização: a institucionalização das novas mídias. In: Revista Parágrafo. São Paulo, Fiam-Faam, v.2, n.3, jul/dez 2015 p. 51 a 62. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009. MCCRACKEN, Grant. Cultura e Consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo. 2ed. São Paulo: Mauad, 2010. TRINDADE, Eneus. Mediações e Midiatizações do Consumo. In: Anais do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Intercom. Foz do Iguaçu, PR, 2014. TRINDADE, Eneus; PEREZ, Clotilde. Dimensões do consumo midiatizado, in Anais II Confibercom. Braga: Universidade do Minho, 2014.