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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Ciência Política O Ideal de Tolerância Liberal sob uma Ótica Internacional San Romanelli Assumpção São Paulo 2008

Dissertacao San

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Dissertação defendida no dcp-usp sobre feminismo global

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  • Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Cincia Poltica

    O Ideal de Tolerncia Liberal sob uma tica Internacional

    San Romanelli Assumpo So Paulo

    2008

  • SAN ROMANELLI ASSUMPO

    O Ideal de Tolerncia Liberal sob uma tica Internacional

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Cincia Poltica pelo Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica da Universidade de So Paulo. Orientador: Prof. Dr. lvaro de Vita

    So Paulo 2008

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Ficha de catalogao

  • FOLHA DE APROVAO

    San Romanelli Assumpo O ideal de tolerncia liberal sob uma tica internacional

    Dissertao apresentada ao Departamento de Cincia Poltica da Universidade de So Paulo

    para obteno de ttulo de mestre. rea de concentrao: Teoria Poltica

    Aprovado em

    Banca examinadora

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio ______________________ Assinatura ______________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio ______________________ Assinatura ______________________________

  • Aos meus pais, Fabio e Rosely

    E aos meus irmos, Flora, Tauana, Rafael e Clara

  • Agradecimentos

    A lvaro de Vita, que, desde 2003, orienta minhas pesquisas de modo atento e

    generoso, debatendo comigo cada argumento, conversando sobre cada dvida,

    instigando novas questes, permitindo que eu tome caminhos arriscados e abrindo

    novas perspectivas sobre a reflexo poltica terico-normativo sempre que eu me perco.

    Tenho certeza de que esta dissertao deve muito a ele.

    A Andrei Koerner, que me iniciou nos afazeres cotidianos da reflexo sobre a

    justia, ensinou-me a leitura, a escrita e o debate sistemticos e estimulou meu gosto

    pela teoria poltica normativa.

    A Christian Barry e Ricardo Terra pela leitura atenta de minha qualificao e

    pelas valiosas sugestes e comentrios, que muito me ajudaram a concluir esta

    dissertao.

    minha me, Rosely, minha irm Flora e querida amiga Glenda por terem

    me ajudado a tornar este texto menos confuso e por terem debatido comigo sempre.

    Aos amigos Adele, Andr, Camila, Cludia, Cristiane, Fernando, Juliana,

    Leandro, Lucas, Marcelo, Rafael, Rodrigo, Silvana e Uvanderson, por terem discutido

    esta pesquisa em todos os momentos em que precisei.

    Aos meus pais e irmos, avs e tios, pelas conversas, apoio e cuidado sempre.

    Minha atividade de pesquisa seria impossvel sem a convivncia com eles.

    equipe da secretaria do departamento, em especial Rai e Vvian, por sua

    ajuda indispensvel com prazos e procedimentos.

    Ao CNPq e FAPESP, cujo financiamento, em momentos distintos, tornou

    possvel minha dedicao integral ao mestrado.

  • ASSUMPO, S. R. O ideal de tolerncia liberal sob uma perspectiva internacional.

    2008. Dissertao (mestrado). Departamento de Cincia Poltica da Universidade de So

    Paulo, So Paulo, 2008.

    Resumo

    Esta dissertao apresenta uma reflexo de teoria poltica normativa a respeito

    da tolerncia no plano mundial adotando uma perspectiva tributria do individualismo

    tico e dos contratualismos rawlsiano e kantiano.

    Sua argumentao defende uma interpretao individualista e universalista da

    tolerncia enquanto virtude poltica institucional. Justificar-se- a idia de que a

    tolerncia requer uma lista ampla de direitos humanos e que um critrio normativo de

    legitimidade poltica frente s comunidades internas e global.

  • ASSUMPO, S. R. The liberal ideal on toleration in world plan. 2008. Dissertation

    (Master Degree). Departamento de Cincia Poltica da Universidade de So Paulo, So

    Paulo, 2008.

    Abstract

    This dissertation presents a reflection of Political Theory about toleration in

    world plan adopting a perspective of ethical individualism and Rawlsian and Kantian

    contractualism.

    Its argumentation defends an individualist and universalist interpretation of

    toleration while institutional and political virtue. The idea will be justified as toleration

    requires an extensive list of human rights and that it is a moral criterion of politics

    legitimacy in front of internal and global communities.

  • SUMRIO

    Captulo 1. Introduo questo da tolerncia sob a perspectiva do

    individualismo tico .................................................................................................... 14

    1.1. Pressupostos e pontos de partida........................................................................... 14

    1.1.1. A igualdade moral ............................................................................................. 15

    1.1.2. O princpio de legitimidade liberal e o contratualismo .................................... 16

    1.1.3. O argumento da arbitrariedade moral ................................................................. 17

    1.1.4. A idia de neutralidade liberal ........................................................................... 18

    1.1.5. O horizonte de justificao ................................................................................ 19

    1.1.6. O Direito dos Povos rawlsiano .......................................................................... 20

    1.2. Introduo ao problema da tolerncia ................................................................... 21

    1.2.1. Advertncia ....................................................................................................... 21

    1.2.2. Caractersticas gerais da tolerncia .................................................................... 22

    1.2.3. Linhas gerais do debate ..................................................................................... 24

    1.2.4. A controvrsia entre liberais e comunitaristas a respeito da tolerncia

    e do problema do pertencimento a comunidades .......................................................... 25

    1.2.5. Tolerncia: virtude poltica e virtude social ................................................ 33

  • 1.2.6. A relao entre autonomia individual e tolerncia e a possibilidade de

    uma concepo de tolerncia global ............................................................................ 40

    1.3. A questo da tolerncia global reformulada .......................................................... 47

    Captulo 2. A tolerncia e o modelo rawlsiano de justia como eqidade e

    de Direito dos Povos ................................................................................................... 52

    2.1. Sobre a justia interna em Rawls .......................................................................... 53

    2.1.1. Sobre as circunstncias e o objeto da justia como eqidade .......................... 53

    2.1.2. Sobre os dois princpios da justia como eqidade ......................................... 58

    2.1.3. Sobre os mecanismos de justificao dos princpios de justia

    rawlsianos ................................................................................................................... 61

    2.1.3.1. Sobre o argumento da posio original ........................................................... 61

    2.1.3.2. Sobre o argumento do equilbrio reflexivo ...................................................... 67

    2.1.3.3. Sobre algumas categorias rawlsianas diretamente ligadas ao

    pluralismo moral ......................................................................................................... 69

    2.1.3.4. Pensando tolerncia a partir da justia interna rawlsiana ................................. 73

    2.2. O Direito dos Povos rawlsiano ............................................................................. 74

  • Captulo 3. Interdependncia mundial: uma justificao da tolerncia global............... 79

    3.1. Para uma crtica do modelo rawlsiano de representao da realidade

    global .......................................................................................................................... 79

    3.2. Exemplos empricos de interdependncia global e de interdependncia

    entre diferentes esferas ................................................................................................ 87

    3.2.1. Ponto 1: inter-relao entre economia e poltica em mbito global ..................... 87

    3.2.2. Ponto 2: inter-relao entre meio-ambiente, pobreza e conflito entre

    comunidades em mbito global ................................................................................... 92

    3.2.3. Ponto 3: inter-relao entre conflitos societais e a poltica, a economia

    e a intolerncia em mbito global ................................................................................ 93

    3.2.3. Sobre os trs pontos acima ................................................................................ 98

    3.3. A interdependncia global, as trocas de influncia e a estrutura bsica ................. 99

    Captulo 4. O pluralismo moral global e suas implicaes normativas ....................... 103

    4.1. A tolerncia e os povos como sujeitos de direito ................................................. 104

    4.2. A crtica neo-hegeliana neutralidade liberal e categoria do

    poltico .................................................................................................................... 109

    4.2.1. Crtica concepo neo-hegeliana de cultura e identidade ........................... 112

  • 4.2.2. A inveno e si e do outro e a compatibilidade com os direitos

    humanos ................................................................................................................... 118

    4.3. A tolerncia e os indivduos como sujeitos de direito no plano global ................. 120

    Captulo 5. Para uma crtica kantiana da tolerncia no Direito dos Povos

    rawlsiano .................................................................................................................. 126

    5.1. Sobre a relao entre os conceitos de Moral e Direito ......................................... 126

    5.2. Sobre as relaes entre as Idias de estado de natureza, contrato

    originrio e Direito .................................................................................................... 129

    5.3. Sobre a moralidade do Direito em seus trs nveis .............................................. 132

    5.3.1. Sobre os artigos preliminares para a paz perptua entre os Estados .................. 132

    5.3.2. Sobre os trs nveis kantianos do Direito ......................................................... 136

    5.3.2.1. Sobre a necessidade moral das constituies serem republicanas .................. 136

    5.3.2.2. Sobre o ideal de federao mundial de repblicas ......................................... 138

    5.3.2.3. Sobre o significado do cosmopolitismo ........................................................ 140

    5.4. Sobre a razo pblica como fundamentao moral em Kant ............................... 141

    5.5. As vantagens normativas dos trs nveis kantianos do Direito............................. 143

  • Captulo 6. Consideraes finais: direitos humanos e tolerncia global em

    uma perspectiva kantiana da legitimidade dos arranjos polticos................................ 145

    6.1. Direitos humanos e crenas compartilhadas ........................................................ 146

    6.2. Direitos humanos, tolerncia e legitimidade poltica ........................................... 154

    Referncias bibliogrficas ......................................................................................... 160

  • 14

    CAPTULO 1

    INTRODUO QUESTO DA TOLERNCIA SOB A PERSPECTIVA

    DO INDIVIDUALISMO TICO

    1. 1. Pressupostos e pontos de partida

    O presente trabalho discutir a maneira como deve ser interpretado o princpio

    de tolerncia liberal no plano internacional e considera que esta questo passa pela

    maneira como a igualdade moral entre todos os indivduos deve ser expressa atravs dos

    princpios de justia global no que se refere (1) ao tipo de sujeito de direito que

    devemos ter por valor, (2) o que depende de como concebemos a vinculao dos

    sujeitos a suas comunidades culturais, econmicas, polticas e ao plano global e (3) de

    qual o objeto dos princpios da justia global e de qual deve ser a lista de direitos

    humanos.

    O fato de que vivemos num mundo cada vez mais globalizado e interdependente,

    com profundas desigualdades de poder e afluncia entre os pases, em que se

    institucionalizam crescentemente instncias inter-estatais e transnacionais e no qual h

    muitos padres de produo de desigualdade, torna-se muito necessrio pensar os

    princpios de justia que devem regular as aes, abrangncias e escopos das polticas e

  • 15

    jurisdiscizaes internacionais, assim como os limites para o pluralismo que

    admissvel no plano global.

    Esta dissertao tentar realizar esta tarefa tomando seis pontos de partida como

    vlidos.

    1.1.1. A igualdade moral

    O primeiro e mais fundamental o axioma da igualdade moral entre todos os

    indivduos, segundo o qual todos os seres humanos possuem igual direito de escolher

    que concepo de boa vida seguir.

    Este ideal coloca a discusso na perspectiva do individualismo tico e de uma

    compreenso neo-kantiana da igualdade e da liberdade1.

    O individualismo tico tem como valor e unidade ltima de preocupao moral

    os indivduos e no qualquer tipo de coletividade cultural, nacional, tnica, poltica

    etc.

    E o que estou chamando aqui de uma compreenso neo-kantiana da igualdade e

    da liberdade uma postura frente ao pluralismo moral que, dada a impossibilidade de

    se definir racionalmente uma concepo de bem correta, leva prescrio de um

    sistema de justia global (mundial) que prega a prioridade da liberdade como limitao

    1 Digo uma compreenso porque a maneira como a igualdade e a liberdade individuais so aqui

    interpretadas e defendidas so apenas uma entre vrias concepes possveis e tributrias de Kant.

  • 16

    recproca2 ou a prioridade da justia3 sobre as concepes de bem como a soluo

    possibilitadora do convvio livre e pacfico do diverso4.

    A prioridade da justia e da liberdade como limitao recproca essencial

    ao cumprimento da exigncia normativa rawlsiana de que a justia crie uma esfera de

    inviolabilidade individual5 e da exigncia moral kantiana de que os seres humanos so

    fins em si mesmos6. Estas idias reguladoras so indissociveis do axioma da igualdade

    moral.

    Tudo isso possui conseqncias profundas sobre as reflexes a respeito da

    tolerncia e da justia no plano global.

    1.1.2. O princpio de legitimidade liberal e o contratualismo

    O segundo ponto de partida a suposio da validade normativa do princpio

    de legitimidade liberal, formulado por Rawls para o mbito domstico em Uma Teoria

    da Justia. De acordo com este princpio, o exerccio do poder poltico s plenamente

    justificado quando exercido em consonncia com princpios de justia que se pode

    2 Termo de Kant.

    3 Termo de Rawls.

    4 Dito de outro modo, trata-se de conceitos que se constroem em conjunto. Somada a igualdade entre os

    seres humanos impossibilidade de se descobrir racionalmente qual a melhor concepo de boa vida, deve-se reconhecer sua igualdade moral que o igual direito de escolher que concepo de boa vida praticar e perseguir, desde que respeitado o igual direito do outro seja este diverso de si e/ou concorrente pelos mesmos recursos escassos. A expresso convvio livre e pacfico do diverso foi inspirada no termo convvio do diverso, de Abdul-Nour (1999). Creio que acrescentar as palavras pacfico e livre no altera o sentido da argumentao normativa da autora, pois o convvio do diverso existe e sempre existiu, o que os neo-kantianos querem que ele se d segundo a Idia (conceito racional) kantiana de paz, que conforme a Idia kantiana de liberdade. Todos estes conceitos sero trabalhados ao longo desta dissertao. 5 Isso ser melhor trabalhado no captulo 2.

    6 Isso ser melhor trabalhado no captulo 5.

  • 17

    esperar razoavelmente que fossem aceitos por todos os que vivem sob eles, inclusive os

    que se situam nas piores posies da estrutura bsica da sociedade7.

    Em relao ao problema da tolerncia, isso implica que os princpios devem

    poder ser justificados (1) queles que se encontram em uma minoria cujas convices

    religiosas, polticas, morais ou de outro tipo divergem daquelas da maioria e (2) queles

    que possuem convices excntricas dentro do grupo minoritrio ou majoritrio em que

    nasceram. importante lembrar que minorias religiosas, culturais, tnicas, nacionais e

    polticas no so, necessariamente, grupos scio-economicamente desfavorecidos8.

    Neste trabalho, supe-se que o princpio de legitimidade liberal tambm

    aplicvel justia global, o que significa que devemos pensar na aceitabilidade das

    diversas interpretaes do princpio de tolerncia liberal para os indivduos pior

    posicionados na estrutura bsica global, sendo que o que torna estas posies menos

    favorecidas em relao a outras podem ser motivos religiosos, culturais, nacionais,

    polticos, tnicos, scio-econmicos, de gnero e sexualidade etc. e podem ocorrer em

    conjunto ou separadamente.

    1.1.3. O argumento da arbitrariedade moral

    Segundo Rawls, socialmente, produz-se bens que no seriam alcanados por

    indivduos isolados e, portanto, a distribuio dos benefcios e encargos da cooperao

    social deve ser conforme princpios de justia que todos incluindo os que esto em

    7 Este conceito ser trabalhado adiante.

    8 Por exemplo, na Indonsia, a minoria chinesa discriminada e, freqentemente, vtima de perseguies

    e, no entanto, economicamente muito bem sucedida.

  • 18

    pior situao poderiam aceitar voluntariamente, o que acontece se os termos propostos

    forem razoveis. Isto depende de que os princpios de justia propostos no sejam

    influenciados por aspectos da realidade social que sejam arbitrrios do ponto de vista

    moral. Algo arbitrrio do ponto de vista moral quando fruto dos acasos da

    distribuio natural de qualidades e de contingncias sociais. Isto , as arbitrariedades

    morais geram vantagens que no foram merecidas, porque so fruto dessa distribuio

    natural de qualidades e das contingncias sociais. Assim, moralmente arbitrrio que

    algum consiga um maior acesso a vantagens sociais porque nasceu em uma

    determinada classe, etnia, gnero ou com determinadas caractersticas fsicas ou

    talentos9.

    Seguindo Rawls, considerarei que no justo que as perspectivas de xito dos

    indivduos sejam limitadas por arbitrariedades morais. E, de acordo com autores que

    pretendem fazer uma crtica rawlsiana10 ao Direito dos Povos de Rawls, defenderei que

    o nascimento em um determinado pas ou regio do mundo tambm uma

    arbitrariedade moral.

    1.1.4. A idia de neutralidade liberal

    O quinto ponto de partida mais uma explicao do uso de uma expresso do

    que um ponto de partida. A idia liberal de que os princpios de justia e os direitos

    humanos devem ser neutros diante das diversas concepes de bem recorrente em

    9 Rawls, 1993, pp. 35-36.

    10 Isto , uma crtica ao Direito dos Povos de Rawls inspirada no liberalismo igualitrio de Rawls.

  • 19

    vrios autores aqui utilizados e freqentemente criticada por multiculturalistas e

    comunitaristas.

    Nesta dissertao assim como em vrios autores a neutralidade liberal

    entendida apenas como o no uso do aparato coercitivo estatal para implementao de

    doutrinas abrangentes11 especficas, prprio de uma perspectiva normativa da justia

    conforme a liberdade como limitao recproca, a prioridade da justia e o

    individualismo tico.

    1.1.5. O horizonte de justificao

    O quinto ponto que, seguindo Onora ONeill, usarei o modo e os referenciais

    de fundamentao liberais neo-kantianos sejam eles aplicados aos mbitos nacionais

    ou no para pensar a justia global em sua especificidade12. Sendo que o que estou

    considerando como especificamente liberal e neo-kantiano a conjuno dos valores da

    igualdade moral, do universalismo moral, do individualismo tico, da prioridade da

    justia e da liberdade como limitao recproca.

    Como a autora acima, acredito que seja legtimo dar esse salto, porque o

    horizonte de legitimao liberal no se pretende ancorado a nenhum universo cultural e

    11 Este termo ser explicado adiante.

    12Ela o faz tanto em ONeill (1988), quanto em ONeill (2003). Ela pode faz-lo sem interpretar de maneira infiel os autores a que se refere porque trabalha mais os mtodos e pressupostos de fundamentao do que os princpios de justia universais e alm fronteiras nacionais em si mesmos. Estes so atingidos e formulados via discusso dos mtodos e pressupostos de sua justificao moral.

  • 20

    nem cercado por fronteiras nacionais ou ideolgicas13, visando princpios que devem ser

    neutros frente s culturas e comunidades e a qualquer arbitrariedade moral.

    Alm disso, os documentos de direitos humanos dos organismos multilaterais

    como a Organizao das Naes Unidas afirmam internacionalmente direitos que se

    pretendem aplicveis a todas as realidades nacionais existentes e que devem ser

    respeitados por todos os Estados do mundo.

    1.1.6. O Direito dos Povos rawlsiano

    O texto usa freqentemente a teoria rawlsiana da justia como eqidade e do

    Direito dos Povos como referencial em torno do qual a exposio do debate

    organizada. Isso se deve em grande parte enorme importncia da perspectiva

    rawlsiana para as teorias normativas produzidas contemporaneamente. A maioria dos

    autores, em um momento ou outro, discute o modelo rawlsiano, seja para endoss-lo,

    seja para critic-lo. Aqui, o Direito dos Povos ser uma referncia norteadora porque

    apresenta duas objees formulao de um ideal de justia global universalista e

    individualista que so muitssimo presentes e importantes nos debates de filosofia da

    justia. Estas objees so (1) a de que no existe uma sociedade global e uma estrutura

    bsica da sociedade global anlogas s existentes no plano domstico e, (2) iria contra o

    esprito de tolerncia liberal obrigar povos no-liberais decentes a adotarem

    concepes liberais de justia e direitos humanos, pois os indivduos pertencentes a

    13ONeill, 1988, p. 714.

  • 21

    estas sociedades tm o direito de terem a sua filiao cultural respeitada14. Considero

    que a reflexo sobre estas duas objees fundamental para a construo de uma

    interpretao do ideal de tolerncia liberal normativamente adequada ao plano global e,

    portanto, vou utiliz-las como motivo principal do modo de pensar e expor presente

    neste trabalho15.

    1.2. Introduo ao problema da tolerncia

    Como este trabalho pretende ser uma investigao terica a respeito da

    interpretao do ideal de tolerncia liberal a partir da perspectiva da justia global, faz-

    se necessrio iniciar explicitando o que ser aqui entendido como questo de

    tolerncia e qual ser a abordagem aqui utilizada.

    1.2.1. Advertncia

    Existem muitas definies distintas de tolerncia, sendo que vrias delas se

    opem entre si. Alm disso, a histria do conceito de tolerncia bastante vasta.

    Comumente, narra-se esta histria a partir dos conflitos religiosos da poca da Reforma

    e da Contra-Reforma e dos escritos de Locke e Voltaire, passando por John Stuart Mill

    e sua preocupao com a tirania social exercida pelas maiorias e chegando at autores

    14 Ambas as objees sero explicadas e discutidas adiante.

    15 Isso ficar mais claro ao longo do texto.

  • 22

    contemporneos. No entanto, pensadores cristos, judeus e muulmanos comearam a

    discutir o problema da coexistncia entre as diferentes crenas religiosas bem antes do

    surgimento do protestantismo, como pode ser visto nos escritos de Averroes,

    Maimnides e Agostinho. Esta dissertao no pretende construir um panorama de toda

    esta discusso ou ter uma abordagem histrica dos diversos autores que trataram do

    problema da tolerncia, pois esta tarefa estaria acima das minhas foras. Esforar-me-ei

    para ser fiel aos conceitos e argumentos dos autores que utilizar, no entanto, este

    trabalho restringe-se ao problema da interpretao do ideal de tolerncia numa

    perspectiva contratualista de justia global e direitos humanos e no trata o problema da

    interpretao correta e da coerncia interna destes autores. Abstraindo de uma histria

    do debate sobre a tolerncia, o conceito de tolerncia que ser construdo e defendido

    neste trabalho uma interpretao que pretende ser ancorada no individualismo tico,

    coerente com o axioma da igualdade moral e fundada no pensamento contratualista

    contemporneo.

    Feita esta advertncia, tentemos cercar o problema da tolerncia a partir de

    alguns elementos sempre presentes no debate.

    1.2.2. Caractersticas gerais da tolerncia

    Uma caracterstica central das questes de tolerncia que existem nos conflitos

    entre diferentes concepes do bem, da boa-vida e do dever ser, sendo que vrios

    autores consideram que estas divergncias so uma caracterstica permanente da vida

    social, podendo ou no eclodir em atos de intolerncia. Catriona McKinnon chama esta

  • 23

    situao permanente de circunstncias da tolerncia16, numa aluso clara s

    circunstncias da justia de Rawls, que incluem o fato do pluralismo moral como

    circunstncia subjetiva da justia.

    Dentro destas circunstncias de pluralismo, as crenas, prticas, condutas e

    atributos tolerados so considerados moralmente objetveis por aqueles que os toleram.

    Nas palavras de Bernard Williams,

    We need to tolerate other people and their ways of life only in situations that make it very difficult to do so. Toleration, we may say, is required only for the intolerable. That is it basic problem17.

    A partir da relao entre pluralismo moral e caractersticas e atributos

    considerados moralmente objetveis, constroem-se vrias descries do problema da

    tolerncia. No entanto, apesar das diferenas de abordagem, Catriona McKinnon afirma

    que a tolerncia sempre possui seis caractersticas essenciais que a estruturam:

    1. Diferena: o que tolerado difere da concepo de dever ser daquele que

    tolera,

    2. Importncia: as questes que so objeto de tolerncia no so triviais,

    3. Oposio: aquele que tolera desaprova e desgosta fortemente do que

    tolerado, a ponto de se dispor a alterar ou suprimir o que tolerado,

    4. Poder: aquele que tolera acredita possuir poder o suficiente para alterar ou

    suprimir ainda que paulatinamente aquilo tolera,

    5. No-rejeio [non-rejection]: aquele que tolera no exerce o poder que

    acredita possuir para alterar ou suprimir aquilo que desaprova ou desgosta

    fortemente,

    16 McKinnon, 2005, p. 6.

    17 Williams, 2000, p. 65.

  • 24

    6. Exigncia [requirement]: a tolerncia um direito e aquele que tolera

    virtuoso, e/ou justo, e/ou prudente18.

    As caractersticas 1 a 4 fazem parte do que McKinnon considera serem as

    circunstncias da tolerncia e as caractersticas 5 e 6 referem-se atitude tomada por

    aquele que tolera (absteno de interferncia) e sua justificao (pela moralidade ou

    pela prudncia)19.

    1.2.3. Linhas gerais do debate

    A partir destas seis caractersticas estruturais, h vrias formulaes diferentes

    do conceito e do problema da tolerncia. Sendo que podemos considerar, em um

    primeiro momento, que as duas vertentes mais importantes de reflexo sobre a

    tolerncia so a liberal e a multicultural ou comunitarista. Ao longo desta dissertao,

    apresentarei este debate a partir dos seguintes pontos de divergncia terica:

    Quais diferenas devem ser includas nas teorias sobre a tolerncia:

    gnero, sexualidade, raa, etnia, nacionalidade, religio, cultura,

    ideologia cultural. E como o liberalismo e o comunitarismo pensam essas

    diferenas e pertencimentos.

    Se a tolerncia requer sujeitos de direitos individuais ou coletivos.

    Dentro disso, questiona-se se o modelo liberal de neutralidade tolerante

    18 McKinnon, 2005, p. 14.

    19 McKinnon, 2005, pp. 14-16.

  • 25

    ou se a tolerncia exige polticas de reconhecimento e valorizao da

    diversidade.

    Se, na formulao de princpios de justia e direitos humanos, a

    tolerncia deve ser pensada enquanto virtude institucional ou social.

    Se a idia e o valor da autonomia individual so indispensveis

    justificao da tolerncia.

    Se a justificao moral da tolerncia requer a existncia de uma

    moralidade compartilhada.

    1.2.4. A controvrsia entre liberais e comunitaristas a respeito da tolerncia e do

    problema do pertencimento a coletividades

    Comecemos pela apresentao do cerne do debate entre liberais e comunitaristas

    a respeito da tolerncia.

    De acordo com Anna Elisabetta Galeotti, a concepo de tolerncia mais

    largamente difundida a que a v como o princpio liberal que prescreve que cada

    pessoa deve ser livre para seguir seus ideais e estilo de vida na medida em que no

    prejudica o outro, sendo o princpio do dano de Mill [harm principle] o que d o limite

    da tolerncia20.

    Segundo a autora, essa concepo tem como pano de fundo a idia de que as

    circunstncias que geram problemas de tolerncia so aquelas em que grupos ou

    20 Galeotti, 1993, p. 587.

  • 26

    indivduos com diferenas importantes so desaprovados por grupos que possuem o

    poder de interferir sobre essas diferenas21 e a maneira do liberalismo lidar com isso

    costuma ser a construo de algum tipo neutralidade estatal frente certas prticas e

    esferas sociais, como a religio, concepes de bem e preferncias culturais22. Assim,

    segundo Galeotti, a tolerncia poltica liberal23 a virtude das ordens polticas que

    constroem a coexistncia pacfica entre as diferenas que no se harmonizam

    espontaneamente24, por meio de uma neutralidade estatal frente a diferenas que se

    situam na esfera privada, sendo reservado a todos um tratamento igual na esfera

    pblica25. Nas palavras de Bernard Williams, no modelo liberal, as pessoas pertencem

    a comunidades unidas por convices compartilhadas sobretudo religiosas e a

    tolerncia construda a partir da distino entre essas comunidades e o Estado. O

    Estado no se identifica com nenhum corpo especfico de crenas e no os pratica ou

    fortalece; ao mesmo tempo, o Estado no permite que nenhum grupo imponha suas

    crenas sobre outros26:

    This is the model of liberal pluralism. It can be seen as enacting toleration. It expresses tolerations peculiar combination of conviction and acceptance, by finding a home for peoples various convictions in groups or communities less than the state, while the acceptance of diversity is located in the structure of the state27.

    Ainda segundo Williams, trata-se de um modelo em que a sociedade se mantm

    unida por uma estrutura de direitos e pela aspirao por igual respeito, mais do que por

    21 Galeotti, 1993, p. 587.

    22 Galeotti, 1993, p. 588.

    23 Advirto que no tenho o pretenso de criar um conceito ou uma categoria do que o liberalismo e do

    que a concepo liberal do pluralismo e da tolerncia. E, em particular, neste primeiro captulo, os trechos em que eu utilizar os termos liberal, liberalismo e tolerncia liberal sero pargrafos que remetem a crticas a posturas normativas liberais e no podemos nos esquecer que o liberalismo no uma corrente ideolgica coesa e homognea, como muitos de seus crticos supem. O liberalismo que defendo nesta dissertao possui um teor liberal igualitrio baseado em John Rawls e filiado a verses kantianas do contratualismo liberal. 24

    Galeotti, 1993, p. 588. 25

    Galeotti, 1993, p. 589. 26

    Williams, 2000, p. 69. 27

    Williams, 2000. p. 70.

  • 27

    um corpo amplo e especfico de convices substantivas compartilhadas. E isso requer

    um ideal de cidadania informado pela idia de autonomia individual28. Isso se conecta

    com o problema apontado por Galeotti de que o pluralismo concebido como um

    pluralismo de concepes de bem que poderiam ser reduzidas a preferncias e escolhas

    individuais situadas na esfera privada:

    Pluralism is basically conceived of as pluralism of the conceptions of the good. In this way, all relevant differences, that is, all differences that create problems of toleration, can be conceptualized and reduced to individual claims and demands. Two consequences follow: first, relevant differences are basically treated as if they were matters of choice, which implies that ascriptive differences as such are not recognized as germane to the problem. Second, public actions and omissions prescribed by the neutrality principle concern rights and liberties of individuals. The problems arising from social differences, including ethnic, linguistic, and sexual, are thus ignored29.

    Ainda segundo Galeotti, esse modelo no d conta do fato de que os problemas

    de tolerncia genunos no surgem quando h indivduos excntricos e sim quando h

    grupos diferentes percebidos como ameaa e esses grupos incluem diferenas religiosas,

    culturais, de concepo de bem, tnicas, lingsticas e de gnero que nem sempre pode

    ser reduzidas a reivindicaes e direitos individuais30.

    Para esta autora, devemos construir uma concepo de tolerncia em que o

    respeito igual por diferentes grupos humanos seja reconhecido como indispensvel ao

    respeito pelos indivduos. Essa concepo amplamente difundida entre aqueles que se

    auto-denominam liberais multiculturais, multiculturalistas e comunitaristas e tambm

    entre antroplogos, como mostram Karen Engle, Ellen Messer e Ann-Belinda Preis31.

    Essa concepo de tolerncia vinculada idia de que h um direito humano cultura

    28 Williams, 2000, p. 71.

    29 Galeotti, 1993, p. 590.

    30 Galeotti, 1993, p. 590.

    31 Messer, 1993. Engle, 2001. Preiss, 1996.

  • 28

    que se expressa em direitos culturais. Isso est no Statement on Human Rights

    elaborado pela American Anthopological Association em 1947 e aparece com a mesma

    fora na Declaration on Anthropolgy and Human Rights produzida pela AAA em 1999.

    Segundo Engle, o cerne desses dois documentos a advertncia contra declaraes de

    direitos humanos e concepes de tolerncia que no do o devido valor s

    particularidades culturais e isso domina amplamente o modo como o antroplogos

    pensavam e pensam a tolerncia e os direitos humanos:

    Todays pro-rights anthropologists continue to struggle with the same issues that the 1947 AAA Board confronted regarding the limits of tolerance. In particular, the question of how one might be a cultural relativist and still make overt political judgments guides todays Human Rights Committee in much the same way it guided the 1947 Board. () Neither the AAAs substantive political commitments nor its understandings of culture have changed significantly since the 1947 Statement32.

    Como Galeotti, os antroplogos defendem que a tolerncia deve ser concebida

    como o respeito a diferenas que pertencem ao grupo e que no so escolhas

    individuais. Mas, diferentemente de Galeotti, o vocabulrio antropolgico a respeito da

    tolerncia se estrutura em torno das diferenas culturais. Sobre isso necessrio

    salientar dois pontos.

    O primeiro que os conceitos de cultura construdos pela Antropologia incluem

    um nmero muito maior de instituies, prticas e idias do que o conceito coloquial e

    senso comum da cultura. Como mostra Amelie Rorty, muitos antroplogos culturalistas

    tratam a cultura como um modo de vida abrangente, que inclui raa, etnia, gnero,

    classe, idade, lngua e os campos comumente separados da natureza, da polis e da

    cultura [categorial distinctions between nature, polis, and culture]. Assim,

    quando um antroplogo advoga direitos culturais e uma tolerncia s culturas diferentes,

    32Engle, 2001, p. 537.

  • 29

    pode estar falando de um mundo mais amplo do que o das concepes de bem e boa

    vida. A crtica de Galeotti tolerncia liberal diz que o problema que esta concepo

    atrela demais as diferenas a questes culturais entendidas como escolha de concepo

    de bem e boa vida.

    O segundo ponto que gostaria de realar que a crtica que fala que a concepo

    liberal de tolerncia v a cultura como uma questo de escolha individual aposta demais

    na ingenuidade liberal frente ao conceito e funcionamento da cultura. Os liberais sabem

    que a cultura e a sociedade do o horizonte semntico e a viso de mundo dos

    indivduos e que as escolhas individuais so formadas social e culturalmente. Os liberais

    percebem que a cultura forma a viso de mundo e que, nas experincias subjetivas, isso

    pode ser tanto confortvel como para a maioria quanto desconfortvel no caso

    das minorias internas aos grupos (os excntricos de que falam Galeotti e Kautz33) e dos

    grupos minoritrios que carregam estigmas. E a maneira como isso se constri

    cotidianamente profundamente coercitiva, pois tolhe as alternativas semnticas

    possveis e tolhe as escolhas possveis de serem endossadas dentro do leque de

    alternativas semnticas. Ou seja, a cultura tanto constri significados e alternativas

    quanto impede significados e alternativas de serem formados e escolhidos. este um

    dos motivos pelos quais os liberais procuram elaborar regimes institucionais de

    tolerncia nos quais os indivduos no sejam obrigados a seguir as escolhas abraadas

    pela maioria. E porque a igualdade moral deve englobar a todos igualmente, que dar

    direitos aos excntricos pode ser to importante quanto dar direitos s pessoas

    pertencentes s minorias.

    33 Galeotti, 1993. Kautz, 1993.

  • 30

    por isso que Galeotti subestima o problema dos indivduos excntricos ao

    afirmar que eles nunca criaram problemas genunos de tolerncia e, ao mesmo tempo,

    apresenta um insight interessante ao dizer que no se trata apenas de prover tolerncia

    aos indivduos que formulam escolhas que no so ortodoxas:

    What is demanded is not simply to leave people free to believe and express unorthodox views and to behave eccentrically. Indeed, the eccentric, the snob, and even the libertine have never created genuine problems of political toleration. What is at stake is the contrasted recognition of collective rights for the different groups34.

    O problema da concepo de tolerncia de Galeotti considerar que o fato de

    que a tolerncia no pode se reduzir a questes de escolhas individuais implica que sua

    soluo se d via direitos coletivos que possibilitem reconhecimento35.

    Assim como Anna Elisabetta Galeotti, Thomas Scanlon tambm reala o fato de

    que o problema da tolerncia no pode ser reduzido intelectualmente a questes de

    escolhas e preferncias individuais, citando em particular o fato de que as pessoas no

    podem escolher sua raa e seu gnero36. E Walzer, em On Toleration, tambm inclui a

    diferena tnica e racial, a diferena de gnero, a diferena de classe scio-econmica e

    a diferena de grupo nacional como questes de tolerncia tanto quanto a diversidade

    religiosa, poltica e de concepo de bem37.

    Seguindo estes trs autores, parece-me importante considerar que a abordagem

    da tolerncia que a reduz intelectualmente a escolhas individuais realmente no d conta

    da intolerncia surgida do pertencimento a grupos. E a contribuio terica prestada por

    autores que mostram que classe, gnero e etnia tambm podem ser formulados

    34 Galeotti, 1993, p. 590.

    35 Isso ser discutido mais detidamente posteriormente.

    36 Scanlon, 2003, p. 188 e p. 191.

    37 Walzer, 1997.

  • 31

    socialmente e intelectualmente como geradores de intolerncia no deve ser

    negligenciada. Pois, por exemplo, o fato de uma pessoa no ter acesso a um direito por

    ser negra uma prtica intolerante to grave para quem a sofre quanto no ter acesso a

    um direito por no ser catlica, ainda que uma pessoa possa se tornar catlica, mas

    nunca deixar de ser negra. E, indo alm, ser obrigada a deixar sua religio e se converter

    ao catolicismo para conseguir acesso a um direito tambm uma violao de direito.

    Por tudo isso, a formulao de Scanlon, segundo a qual

    the advocacy of tolerance denies no one their rightful place in society. It grants to each person and group as much standing as they can claim while granting the same to others38,

    parece-me uma exigncia normativa que d conta da interpretao do ideal de

    tolerncia de um modo superior, pois leva a uma concepo de tolerncia que, em sua

    noo de rightful place in society engloba a exigncia de que as pessoas devem ser

    amplamente toleradas mesmo carregando diferenas dos mais diversos tipos (religiosa,

    de concepo de bem, cultural, social, econmica, tnica e de gnero). Vejamos o que

    isso significa.

    Para este autor, a tolerncia requer que aceitemos como iguais as pessoas cujas

    prticas desaprovamos fortemente. Assim, do ponto de vista das instituies polticas, a

    tolerncia exige que as pessoas cujas diferenas reprovamos possam exercer seus

    direitos morais liberdade de expresso, ao voto, a candidatar-se a cargos pblicos,

    proteo do sistema legal, ao acesso aos bens pblicos e educao e sade. E, por trs

    de tudo isso, exige que o Estado, ao distribuir direitos e obrigaes, no d tratamento

    preferencial a um ou alguns grupos e indivduos em detrimento de outros39.

    38Scanlon, 2003, p. 197. 39

    Scanlon, 2003, pp. 187-189.

  • 32

    E Scanlon acrescenta que, para que uma sociedade seja verdadeiramente

    tolerante, o direito s liberdades acima mencionadas no deve ser apenas formal, sendo

    necessrio que os indivduos e grupos tenham meios efetivos para trazer suas opinies a

    pblico e para influenciar os rumos da sociedade poltica de que fazem parte40.

    Trata-se de uma concepo de tolerncia bastante exigente, como se pode

    verificar nas prpria palavras do autor:

    I have said that toleration involves accepting as equals those who differ from us. In what I have said so far, this equality has meant equal possession of fundamental legal and political rights, but the ideal of equality that toleration involves goes beyond these particular rights. It might be stated as follow: all members of society are equally entitled to be taken into account in defining what our society is and equally entitled to participate in determinating what it will become in the future. This idea is unavoidably vague and difficult to accept. It is difficult to accept insofar as it applies to those who differ from us or disagree with us, and who would make our society something other than what we want it to be41.

    Segundo Scanlon, justamente o desejo de que aqueles de quem discordamos

    no influenciem os rumos da sociedade em que nascemos que produz restries legais e

    polticas para que certas formas de comportamento e atitude no sejam disseminadas e

    at mesmo para que sejam criminalizadas42. Assim, voltamos idia defendida por

    Galeotti de que os problemas de tolerncia surgem quando uma parcela da sociedade se

    sente ameaada pelas diferenas que percebe em outros grupos. Isso nos leva a uma

    outra questo, a de que a tolerncia uma virtude que pertence a pelo menos duas

    dimenses da vida em sociedade: a das interaes entre as pessoas e grupos e a das

    instituies e arranjos polticos.

    40 Scanlon, 2003, pp. 189-191.

    41 Scanlon, 2003, p. 190.

    42 Scanlon, 2003, p. 191.

  • 33

    1.2.5. Tolerncia: virtude poltica e virtude social

    Estas duas dimenses aparecem tanto nos trabalhos de Galeotti quanto nos de

    Scanlon.

    Nos termos da primeira, a tolerncia uma virtude social, no sentido de que

    socialmente praticada nas interaes entre os atores, e uma virtude poltica quando

    est impressa nas instituies e arranjos polticos43. Nas palavras de Scanlon, a

    tolerncia faz parte da poltica formal [formal politics], ou seja, dos arranjos

    institucionais que vem os cidados como iguais, e da poltica informal [informal

    politics], isto , do plano atitudinal [a matter of attitude]44.

    Parece-me indubitvel que ambas as dimenses existem e que ambas so

    importantes para a convivncia pacfica e livre em uma realidade de pluralismo moral.

    O modelo que Bernard Williams chama de liberal, em que a aceitao da

    diversidade se situa na estrutura do Estado e em que a diversidade pertence aos grupos e

    comunidades, um modelo que pensa a tolerncia enquanto virtude poltica. A defesa

    dessa abordagem no nega que seja necessria a existncia da tolerncia no plano das

    virtudes sociais, como mostra o fato de que, Kant e Rawls autores fundamentais

    para a corrente normativa liberal e que defenderam amplamente que o Estado deve ser

    tolerante compreendem que a tolerncia tambm importante na poltica informal.

    Tanto que Kant se deteve profundamente sobre questes de tica individual, como pode

    ser verificado em A Doutrina da Virtude45 e Rawls criou conceitos para lidar com

    43 Galeotti, 1993, p. 588.

    44 Scanlon, 2003, p. 190.

    45 Kant, 2004b.

  • 34

    caractersticas sociais do pluralismo moral, como os de razoabilidade e doutrinas

    abrangentes razoveis46.

    No entanto, apesar de ambas as dimenses da tolerncia serem importantes, este

    texto se insere no campo da filosofia da justia dos arranjos institucionais e procura

    lidar com o problema de como a tolerncia melhor realizada nos arranjos polticos e

    melhor incorporada pelos princpios de justia e de direitos humanos. Essa reduo de

    escopo se justifica, principalmente, pelo fato de que este o plano sobre o qual incide a

    ao estatal. A tolerncia enquanto problema de virtude social e de poltica

    informal um problema muito mais espinhoso e difcil de resolver e que depende

    muito mais das crenas cultivadas pelos diversos grupos que vivem sob um mesmo

    Estado.

    Nesta dissertao, como ficar claro ao longo do texto e como ser justificado

    em diversos momentos, considerar-se- que a tolerncia deve ser entendida como uma

    caracterstica dos arranjos institucionais que possibilite que cada um ocupe seu lugar de

    direito na sociedade [their rightful place in society] de acordo com uma norma de

    liberdade como limitao recproca e de prioridade da justia. E este lugar de

    direito inclui o direito efetivo de que cada um persiga os seus ideais de boa-vida

    independentemente de suas caractersticas e diferenas culturais, sociais, religiosas,

    polticas, econmicas, tnicas, de gnero etc., tendo como nico limite o igual direito do

    outro. Se considerarmos esta interpretao do ideal de tolerncia vlida para o plano

    global, a concepo de justia global da derivada estar ancorada no individualismo

    tico e no axioma da igualdade moral universal.

    46 Estes conceitos sero discutidos adiante.

  • 35

    No entanto, preciso salientar que nem todos os pensadores que olharam a

    tolerncia do ponto de vista institucional defendem este vis individualista, universalista

    e liberal.

    Vale lembrar que Walzer tambm analisa a tolerncia dos regimes polticos, mas

    de um modo bastante distinto do exposto no pargrafo acima. Em On Toleration47,

    Walzer afirma que a tolerncia no um entitlement mnimo e que ela pode tomar

    muitas formas distintas e ser praticada atravs de arranjos muito diferentes, existindo

    regimes de tolerncia muito diversos48. Para ele, a tolerncia e a coexistncia pacfica

    podem tomar formas polticas diferentes, com implicaes diferentes para as interaes

    entre pessoas e os grupos. E nenhuma dessas formas universalmente vlida: no h

    princpios que governem todos os regimes de tolerncia ou se apliquem a todas as

    pocas e lugares. Walzer afirma que argumentos proceduralistas e contratualistas como

    o de Rawls no nos ajudam a pensar o problema da tolerncia porque no so

    circunstanciais, isto , no se diferenciam conforme o tempo e o local. E defende a

    construo de uma abordagem histrica e contextual da tolerncia e da coexistncia49.

    Nesta linha, este autor descreve e discute cinco tipos de regimes de tolerncia: os

    imprios multinacionais, a sociedade internacional, as consociaes, os Estados

    nacionais e as sociedades de imigrantes. Esses cinco tipos endeream sua tolerncia

    diferentemente. Os imprios multinacionais toleram comunidades com diferentes modos

    de vida, podem implementar a tolerncia entre comunidades de modo mais ou menos

    repressivo e deixam a cargo das comunidades a maneira como elas tratam seus

    membros50. A sociedade internacional composta por Estados soberanos que no

    47Walzer, 1997. 48

    Walzer, 1997, p. xii. 49

    Walzer, 1997, pp. 2-3. 50

    Walzer, 1997, pp. 14-19.

  • 36

    intervm nas polticas internas um do outro51. Nas consociaes, grupos diferentes

    convivem e so tolerantes entre si, deixando a cargo de cada grupo a deciso de como

    seus membros so tratados e podendo ou no haver igualdade poltica entre os grupos52.

    Nos Estados nacionais, um grupo dominante organiza a vida comum de uma maneira

    que reflete a sua prpria histria e cultura e que pretende reproduzir esta cultura para as

    prximas geraes; os Estados nacionais no so neutros entre histrias e culturas, pois

    seu aparato estatal um engenho de reproduo nacional; pode haver tolerncia para

    com as minorias, mas estas no recebem a autonomia que tm nos imprios

    multinacionais e nas consociaes; os Estados nacionais dirigem sua tolerncia para os

    cidados e, ao mesmo tempo em que os Estados-nao so menos tolerantes com os

    grupos, obrigam os grupos a serem mais tolerantes com os indivduos53. O ltimo

    regime de tolerncia descrito por Walzer so as sociedades de imigrantes, nas quais os

    grupos tnicos e religiosos sustentam-se a si prprios na forma de associaes

    voluntrias [as purely voluntary associations], o Estado pretende-se neutro e tolerante

    frente a todos estes grupos, e pretende-se portador de uma identidade poltica, mas no

    de uma identidade nacional54. Apesar das formas bastante diferentes de tolerncia e

    tratamento da diferena nesses cinco regimes, Walzer considera que o melhor arranjo

    poltico para um povo depende da histria e da cultura deste povo. Isso no aplica a

    defesa de um relativismo completo, pois uma determinada caracterstica de um arranjo

    s se torna uma opo moral se possibilitar coexistncia pacfica e respeito a direitos

    humanos bsicos55. A moralidade internacional possvel, segundo Walzer, apenas uma

    51 Walzer, 1997, pp. 19-21.

    52 Walzer, 1997, pp. 22-24.

    53 Walzer, 1997, pp. 25-30.

    54 Walzer, 997, pp. 30-33.

    55 Walzer, 1997, p. 5.

  • 37

    moralidade fina [thin], pois noes cheias [thick] da justia dependem de entendimentos

    e interpretaes compartilhadas que existem em sociedade, mas no entre sociedades56.

    Esta no ser a interpretao do ideal de tolerncia utilizada neste trabalho por

    vrios motivos j explicados. O que h em comum entre a perspectiva walzeriana e a

    que adotarei neste trabalho apenas o foco na tolerncia prpria dos arranjos polticos,

    isto , na tolerncia enquanto virtude poltica, pois Walzer combina a tolerncia como

    virtude poltica com a defesa dos direitos coletivos e culturais e com a exigncia de que

    a moralidade dos arranjos de justia se assentem sobre entendimentos compartilhados.

    Ao se afastar do individualismo tico entendido como adoo dos indivduos como

    unidade ltima de valor moral e defender regimes de tolerncia que toleram

    comunidades e grupos, Walzer deixa as pessoas merc de arbitrariedades morais em

    nome da tolerncia s diferenas culturais. E ao considerar que uma abordagem

    histrica e contextual da tolerncia a mais adequada para se pensar normativamente a

    tolerncia e que a interpretao mais adequada do ideal de tolerncia precisa se ancorar

    em valores mundialmente compartilhados, Walzer constri um modo de pensar a

    tolerncia que no permite a afirmao de uma lista de direitos humanos

    suficientemente protetora contra as arbitrariedades morais. Se considerarmos necessrio

    uma moralidade universalmente compartilhada para que princpios de tolerncia sejam

    normativamente vlidos, nem mesmo uma moralidade mnima como a que condena

    genocdios, limpeza tnica, colonizao de um pas por outro e tortura seria justificvel,

    pois, no mnimo aqueles que praticam estes atos no compartilham os valores morais

    que reivindicam a extino destas prticas. Vejamos alguns exemplos particulares

    bastante graves:

    56 Walzer, 1994.

  • 38

    O direito de ir e vir no pode ser justificado por entendimentos

    mundialmente compartilhados, dado que h culturas em que no se concebe

    que as mulheres possam ir e vir sem o consentimento do pai, marido ou

    irmo. Citando apenas um caso, em 2007, na Cisjordnia, B. A. matou sua

    irm casada de 29 anos a tiros, sob alegao de que esta saa de casa sem o

    consentimento do marido e falava com outros homens por celular, o que

    constitua conduta imoral. O ru no foi condenado aos 15 anos de priso

    que o seu pas reserva ao crime de assassinato com base em artigo do Cdigo

    Penal que estabelece que, em crimes cometidos em lampejo de fria devido

    a um ato ilegtimo ou perigoso da vtima, o ru tem pena reduzida. Este

    artigo se aplica de forma discriminatria em casos de violncia contra

    mulheres, majoritariamente, para desculpar homicdios de mulheres

    cometidos por homens57.

    O direito de livre exerccio da sexualidade tambm no passaria pelo texto

    da moralidade compartilhada, pois h pases em que a homossexualidade

    entendida como crime a ser reprimido. Lembremos do caso dos dois jovens

    iranianos que, em julho de 2005, receberam 228 chibatadas e foram

    enforcados em julho de 2005 por prtica de sexo homossexual58.

    O direito liberdade de expresso tambm no faz parte de uma moralidade

    compartilhada. Em um caso ocorrido em 2008, Sayed Perwiz Kambakhsh foi

    encarcerado e condenado morte em Mazar-e-Charif, por, supostamente, ter

    publicado um texto sobre os direitos das mulheres no Coro. Seus familiares

    e conhecidos alegam que o jovem nunca escreveu ou publicou este texto e

    57 http://www.br.amnesty.org/index_noticias.shtml?sh_itm=05077fc7a286403c926836ad9108d72d

    (01/05/2008). 58www.forumnow.com.br/vip/mensagens.asp?forum=103228&grupo=196186&topico=2749886&pag=1 (01/05/2008).

  • 39

    que a condenao uma represlia ao seu irmo, o reprter Sabed Yagub

    Ibrahimi, refugiado em Paris. O julgamento ocorreu secretamente e sem

    respeito ao devido processo legal59.

    Estes so apenas trs exemplos, mas, basta lermos atentamente os jornais para

    colecionarmos casos de graves violaes de direitos humanos ligadas a questes de

    tolerncia. Os trs casos citados acima envolvem intolerncia tanto no plano das

    formal politics, pois as condenaes foram cometidas pelos Estados, e tambm no

    mbito das informal politics. As sociedades destes pases, mesmo que de maneira

    heterognea, possuem e atualizam relaes e significados sociais e culturais que

    permitem a efetivao destes casos de intolerncia grave.

    essa relao estreita entre as dimenses formal e informal das polticas de

    tolerncia que levam vrios autores a defender que a tolerncia enquanto virtude poltica

    exige polticas de reconhecimento. Autores como Galeotti, Sandel, Rorty e Taylor

    consideram que no h tolerncia sem reconhecimento e que o reconhecimento um

    direito coletivo. E isso transparece na concepo de direitos humanos formulada por

    Charles Taylor em A World Consensus on Human Rights? 60, que traz o problema dos

    direitos culturais para as discusses de justia e tolerncia internacionais.

    59 http://www.rsf.org/article.php3?id_article=26178 (01/05/2008).

    60 Taylor, 2001.

  • 40

    1.2.6. A relao entre autonomia individual e tolerncia e a possibilidade de uma

    concepo de tolerncia global

    Uma outra questo importante a respeito da possibilidade de uma tolerncia

    global conforme o individualismo tico a relao entre o ideal de tolerncia e o ideal

    de autonomia individual. Vrios autores consideram que o ideal de tolerncia requer a

    validade de alguma interpretao do ideal de autonomia individual para sua justificao

    normativa e para sua efetivao no mundo real. Se isso for realmente indispensvel, a

    defesa de uma perspectiva universalista e individualista da tolerncia carrega um ideal

    de boa vida excessivamente cheio61 e incompatvel com uma realidade mundial plena de

    pluralismo moral.

    Vejamos brevemente dois autores que tratam do problema da relao entre a

    autonomia individual e a tolerncia e que a utilizam para pensar a possibilidade e a

    impossibilidade da tolerncia: Bernard Williams62 e Michael Ignatieff63.

    Tratemos primeiramente de Bernard Williams, que coloca explicitamente a

    questo da indispensabilidade do ideal de autonomia individual para a justificao

    liberal da tolerncia. Olhando para a realidade, o autor afirma que, em muitas reas de

    conflito, a intolerncia cessou porque aumentou a indiferena em relao aos

    comportamentos anteriormente considerados ofensivos. Esse foi o caso da maior

    tolerncia em relao ao comportamento sexual e da menor tenso religiosa entre os

    61 Uma doutrina abrangente, nas palavras de Rawls. Este conceito ser explicado e trabalhado

    detidamente adiante. 62

    Williams, 2000. 63

    Ignatieff, 2000.

  • 41

    grupos religiosos cristos. Assim, de um modo geral, as fontes da tolerncia so o

    ceticismo, a indiferena, vises religiosas mais tolerantes para com o que as Igrejas

    consideram moralmente errado e equilbrios hobbesianos entre os grupos que

    convivem64.

    No modelo liberal, representa-se a situao de tolerncia situando-se as

    diferenas nos grupos e comunidades e idealizando-se um Estado neutro que aceita a

    diversidade. Para Williams, isso requer um modelo de sociedade que se mantm unida

    por uma estrutura de direitos e aspiraes por respeito igual, mais do que por um corpo

    de convices substantivas compartilhadas. Ou seja, este modelo de sociedade demanda

    um ideal de cidadania especfico, sem o qual o modelo do pluralismo liberal no se

    sustenta. E este ideal de cidadania se baseia no ideal de autonomia individual65. O

    problema, segundo Williams, que defender o modelo liberal de tolerncia atravs de

    argumentos de princpio requer um valor que no amplamente compartilhado. O autor

    questiona a possibilidade de se encontrar um argumento de princpio que satisfaa as

    exigncias normativas da tolerncia liberal, j que esta no se assenta nem sobre o

    ceticismo moral e nem sobre contingncias de poder e ainda precisa por princpio

    explicar para pessoas racionais com convices profundas contra a autonomia

    individual, porque devem apoiar um Estado que pode levar seus valores ao declnio

    social. Para que a prtica da tolerncia seja devidamente defendida como valor, faz-se

    necessrio apelar para opinies substantivas sobre o bem e, se as nicas concepes de

    bem capazes de dar lastro para a tolerncia so aquelas baseadas na autonomia

    individual, o ideal de tolerncia pode ser visto como inaceitvel:

    The practice of toleration cannot be based on a value such as that of individual autonomy, and also hope to escape from

    64Williams, 2000, pp. 67-69. 65

    Williams, 2000, pp. 70-71.

  • 42

    substantive disagreements about the good. This really is a contradiction because it is only a substantive view of goods such autonomy that could yield the value that is expressed by the practices of toleration66.

    Isso leva Bernard Williams na impossibilidade ou extrema dificuldade da

    tolerncia:

    We can now better understand the impossibility or extreme difficulty that was seemingly presented by the personal virtue or attitude of toleration. It appeared impossible because it seemingly required someone to think that a certain belief or practice was thoroughly wrong or bad, and at the same time that there was some intrinsic good to be found in its being allowed to flourish. This does not involve a contradiction, if the other good is found not in that beliefs continuing, but in the other believers autonomy67.

    Resumindo ainda mais, o argumento de Williams afirma que aquilo que chama

    de modelo liberal da tolerncia no se sustenta normativamente sem o ideal de

    autonomia individual, j que apenas a valorizao da autonomia pode justificar

    moralmente a aceitao de que outras pessoas cultivem crenas, prticas e atributos que

    consideramos condenveis. Antes de passarmos crtica desta linha argumentativa,

    vejamos brevemente a forma como Michael Ignatieff formula a relao entre autonomia

    e tolerncia e a questo da impossibilidade ou extrema dificuldade da tolerncia.

    Michael Ignatieff tenta compreender a psicologia da intolerncia entre grupos

    nacionais, tnicos e raciais, vinculando a intolerncia ao narcisismo. Seguindo Freud,

    Ignatieff considera que a identidade construda por meio de processos de diferenciao

    que possuem um carter intrinsecamente antittico e agressivo68. Nestes processos,

    atributos como religio, etnia e territrio so transformados em atributos gloriosos e em

    66 Williams, 2000, p. 73.

    6767Williams, 2000, pp. 72-73. 68

    Ignatieff, 2000, pp. 77-78.

  • 43

    motivo de orgulho. Um grupo narcisista aquele que mantm a sua coeso canalizando

    sua agresso e hostilidade para outros e a intolerncia um circuito auto-referencial no

    qual os narcisistas usam o mundo externo apenas para confirmar suas prprias crenas.

    Ainda segundo Ignatieff, Freud no explica exatamente porque, mas, quanto maior e

    mais sistemtica a super-valorizao de si, maior a desvalorizao dos estrangeiros e

    outsiders69.

    Ao olhar para os outros grupos, os povos intolerantes olham apenas para

    caractersticas que confirmam seus preconceitos e negam a individualidade dos

    membros do grupo discriminado, reforando a dicotomia ns/eles. A intolerncia

    depende (1) da forma como as pessoas percebem a si prprias, (2) de sua relao com a

    identidade coletiva a que pertencem e (3) de suas atitudes em relao ao outro70. Se as

    pessoas se auto-valorizam predominantemente atravs de seu pertencimento coletivo, se

    os grupos vem seu valor atravs da desvalorizao de outras coletividades e se

    consideram os membros dos demais grupos de maneira muito despersonalizada e

    excessivamente derivada da identidade coletiva, provavelmente haver conflitos de

    tolerncia graves. Assim, uma cultura que considera que a identidade individual

    depende menos do pertencimento e nascimento em grupos do que das construes

    individuais de si teria menos possibilidade de criar conflitos de tolerncia do que

    culturas que consideram que as fontes do valor individual esto nas coletividades:

    The habits of mind necessary to toleration may have just as much to do with how persons view themselves and their relation to their own collective identity as they do with their attitudes towards others. The essential tasking in teaching toleration is to help people see themselves as individuals, and then to see others as such. ()

    69 Ignatieff, 2000, p. 79-80.

    70 Ignatieff, 2000, p. 103.

  • 44

    For racism and intolerance are, at a conceptual level, procedures of abstraction in which actual, real individuals in all their specificity are despersonalised and turned into ciphers or carriers of hated group characteristics. Often indeed such processes of abstraction have to struggle against the obdurate likeableness of the individual71.

    Para Ignatieff, a utopia das sociedades modernas liberais formula um mundo

    ideal em que as diferenas coletivas so ignoradas, em que pertencimento tnico, racial,

    religioso, de gnero e de orientao sexual no so discriminadas, um mundo de

    tolerncia completa. No entanto, dado carter essencialmente antittico das construes

    identitrias e a necessidade dos grupos para a formao da identidade individual, surge a

    dvida a respeito da plausibilidade psicolgica de uma sociedade e de um mundo

    tolerantes. Seria necessrio haver algum grau de intolerncia coletiva para que se

    mantivessem fronteiras coletivas indispensveis formao da identidade humana?

    Ignatieff diz que Freud no fornece uma resposta a esta pergunta e que resta a esperana

    de que a negociao das diferenas na construo das identidades se torne menos

    assassina e que os indivduos pensem a si e aos outros de modo menos ds-

    individualizado72.

    Sintetizando, Michael Ignatieff considera que a tolerncia depende da

    possibilidade das pessoas verem a si prprias e aos outros de modo menos vinculado a

    grupos de pertencimento e mais autnomo, ao mesmo tempo em que pergunta se isso

    psicologicamente possvel, dado o fato de que identidades coletivas so importantes

    para a construo dos indivduos.

    71 Ignatieff, 2000, pp. 102-103.

    72 Ignatieff, 2000, pp. 105-106.

  • 45

    Muitas idias unem e separam o argumento de Williams e Ignatieff, o ponto que

    mais interessa para os objetivos desta dissertao que, em ambos os autores, a

    tolerncia exige a valorizao da autonomia porque est no registro das virtudes

    sociais.

    Conforme visto acima, segundo Bernard Williams, a intolerncia s diminui ou

    cessa quando a crena, prtica ou atributo moralmente reprovado perde importncia na

    viso de mundo daquele que tolera. Alm disso, o modelo liberal de tolerncia

    exigiria, para sua justificao normativa, um modelo de pluralismo em que as

    diferenas se restringissem ao plano privado e o ideal de cidadania fosse informado pelo

    valor da autonomia individual, no entanto, isto no seria possvel dado o fato de que a

    autonomia no uma crena moral amplamente compartilhada. Os exemplos que o

    autor cita para demonstrar sua tese so (1) o fato de que os conflitos religiosos entre

    diferentes grupos de cristos arrefeceram quando estas diferenciaes sociais perderam

    importncia e (2) o fato de que os homossexuais passaram a ser mais tolerados no

    ocidente quando o valor da heterossexualidade tornou-se menos essencial aos sistemas

    de crenas europeus e norte-americanos. Em ambos os casos, a maior tolerncia nasceu

    de transformaes sociais que tornaram certas crenas, prticas e atributos menos

    reprovados social e culturalmente, ou seja, quando Williams fala da efetivao da

    tolerncia, est olhando para a tolerncia prpria das polticas informais. E, em ambos

    os casos, faz parte da prtica da tolerncia o fato de que passou a haver uma maior

    aceitao das decises individuais a respeito de que religio seguir e do exerccio da

    sexualidade. Novamente, isso fica no plano das crenas e prticas sociais e culturais.

    Mas, como tambm discutimos acima, este mbito, no qual se realizam moralidades

    compartilhadas, no o plano mais adequado para se pensar normativamente os

    princpios de justia e tolerncia, pois isso solaparia a possibilidade de justificao de

  • 46

    vrios direitos que temos fortes razes para prezar e que so advindos do axioma da

    igualdade moral humana, como, por exemplo, a liberdade religiosa, a liberdade de

    conscincia e, por que no?, a prpria liberdade de exerccio da sexualidade, apesar da

    maior parte das doutrinas religiosas condenarem a homossexualidade. Considerar que a

    justificao de princpios de justia e tolerncia exige uma moralidade compartilhada

    seja ela a valorizao da autonomia ou qualquer outra contraria diretamente a idia de

    que a justia deve criar uma esfera de inviolabilidade individual igualitria.

    Em Ignatieff, o problema um pouco diferente, pois o autor no discute73 o

    problema da justificao da tolerncia, mas apenas o de sua efetivao. Para ele como

    para a maior parte dos autores das mais diversas filiaes ideolgicas a identidade

    depende do pertencimento a grupos e da construo de diferenciaes entre

    coletividades. O autor aventa para a possibilidade de que, talvez, a tolerncia no seja

    possvel porque a formao identitria exige, psicologicamente, tenses e conflitos em

    torno de diferenas. Isso tornaria necessrio que as sociedades e indivduos

    transferissem o foco das tenses de diferenas sociais e culturais para diferenas

    individuais entendidas conforme o ideal de autonomia individual. No entanto, olhando

    para o mundo, vemos que, em muitos pases e regies, as pessoas vivem de modo

    pacfico e compatvel com os direitos humanos mesmo sem endossar ideais ticos

    individualistas pr autonomia individual. Alm disso, se atrelssemos nossa defesa dos

    princpios de tolerncia a formas autnomas de pensar a si prprio e aos outros,

    teramos que planejar uma transformao do plano social e cultural que, muito

    provavelmente, impossvel. Afinal, no plano das crenas e prticas individuais e

    coletivas, tolerar aquilo que consideramos moralmente condenvel exige sim uma

    crena maior na importncia normativa da autonomia e essa crena nem sempre existe.

    73 Pelo menos no nos textos aqui citados.

  • 47

    No entanto, se pensarmos a reflexo terico-normativa no plano das instituies

    e das polticas formais e de fundamentaes morais que no se reduzem justificao

    via moralidades compartilhadas, podemos formular princpios de tolerncia conforme o

    harm principle de John Stuart Mill sem que haja uma crena compartilhada na

    autonomia individual. E isso no implausvel do ponto de vista das possibilidades de

    estabilidade normativa das teorias e de efetivao dos princpios de justia e tolerncia

    no mundo real. Afinal, h exemplos de implementao de liberdades individuais em

    realidades sociais e culturais hostis. Por exemplo, o fim da segregao racial no sul dos

    Estados Unidos no foi iniciado de modo pacfico e a partir de uma crena majoritria

    na igualdade racial. Do mesmo modo, o desmantelamento paulatino da sociedade de

    castas indiana no foi iniciado a partir de um consenso a respeito da igualdade humana

    e, mesmo assim, os crimes de dio entre castas esto declinando, ainda que

    vagarosamente. Sendo assim, no devemos esperar por uma crena forte e majoritria

    na igualdade humana para justificarmos os direitos humanos, afinal, talvez esta crena

    nunca surja em mbitos nacionais e, menos ainda, globalmente.

    1.3. A questo da tolerncia global reformulada

    Conforme exposto no incio desta introduo, esta dissertao investigar a

    maneira como o princpio de tolerncia liberal deve ser interpretado ao ser aplicado ao

    plano global. Toda a reflexo partir do axioma da igualdade moral humana, da

    considerao dos seres humanos como fins em si mesmos e das pessoas como unidade

    ltima de preocupao moral. Tendo isto em mente discutiremos a maneira como

  • 48

    filosofia da justia deve conceber e representar normativamente a vinculao dos

    sujeitos a suas comunidades culturais, sociais, econmicas, polticas e ao plano global; e

    essas concepes e representaes ajudam a determinar o tipo de sujeitos de direito que

    devemos ter por valor, o modo como a igualdade moral deve ser expressa nos princpios

    globais de justia e tolerncia, o objeto dos princpios de justia e tolerncia global e a

    lista de direitos humanos a ser defendida.

    Acresce-se a esta delimitao da questo o fato de que o axioma da igualdade

    moral exige que a influncia das arbitrariedades morais sobre as perspectivas de vida

    das pessoas seja controlada e que se construa princpios de justia e tolerncia que no

    firam o princpio de legitimidade liberal. Como este princpio de legitimidade

    contratualista exige a aceitabilidade dos princpios de justia, de tolerncia e de direitos

    humanos pelas posies menos privilegiadas das sociedades e do mundo,

    perfeitamente concilivel com a reivindicao normativa de que estes princpios no se

    restrinjam a moralidades compartilhadas que contrariem direitos e liberdades

    individuais bsicos74.

    Como o escopo desta dissertao se restringe a pensar a tolerncia enquanto

    virtude poltica e poltica formal respeitadora do axioma da igualdade moral e do

    princpio de legitimidade liberal, ser adotada uma perspectiva contratualista neo-

    kantiana fortemente influenciada pelo liberalismo igualitrio de John Rawls75. Assim,

    o prximo captulo tratar do modo como a tolerncia aparece na justia como

    eqidade e no Direito dos Povos rawlsianos. Isso incluir explicaes breves a respeito

    74 As relaes entre justia, tolerncia e direitos humanos sero tratadas no decorrer desta dissertao e

    melhor esclarecidas nas consideraes finais. 75

    Segundo descrio de lvaro de Vita, o liberalismo igualitrio a posio normativa que defende que uma sociedade justa deve garantir direitos bsicos iguais e uma parcela eqitativa dos recursos sociais escassos a todos os seus cidados, a partir de uma estrutura institucional capaz de propiciar direitos e oportunidades eqitativamente para todos os membros da sociedade e cabe a cada um decidir que uso fazer destes recursos institucionalmente garantidos (Vita, 2006, p. 126).

  • 49

    do que so estes dois planos de moralidade poltica, das formas de justificao

    normativa empregadas por Rawls e de como a tolerncia se relaciona com tudo isso

    (Captulo 2).

    Esta introduo filosofia da justia de Rawls necessria porque este autor

    fornece um excelente arcabouo terico para se pensar a justia e a tolerncia enquanto

    virtudes polticas e a principal referncia terica desta dissertao. Conforme dito no

    sexto ponto de partida, o trabalho se estruturar em torno das duas objees rawlsianas

    formulao de uma concepo de justia global cujos sujeitos sejam indivduos.

    Estas duas objees justificam teoricamente o fato de que os aspectos

    normativos da tolerncia e da justia que sero aqui discutidos dependem do modo

    como pensamos a vinculao dos sujeitos (1) a suas comunidades culturais, tnicas,

    religiosas etc., (2) ordem poltica, (3) ordem econmica e (4) ao plano global. Os

    captulos 3 e 4 tratam destes aspectos.

    O terceiro captulo debater a interdependncia global, o modo como os

    indivduos so ligados ordem econmica e poltica mundiais e as implicaes

    normativas dessa vinculao. A idia que ser trabalhada a de que existe

    interdependncia mundial o suficiente para justificar a necessidade de uma interpretao

    individualista e universalista da tolerncia no plano global e tambm para justificar que

    os pases centrais no podem se isentar de responsabilidade por problemas de tolerncia

    fora de suas fronteiras. Ser defendido que necessrio uma interpretao mais

    kantiana e, possivelmente, mais rawlsiana da realidade e da justia inter-estatal e

    global.

  • 50

    O quarto captulo discutir as implicaes do pluralismo moral para a

    interpretao do ideal de tolerncia em mbito internacional e o problema da

    neutralidade tica e poltica, passando pelas crticas que podem ser apresentadas como

    resposta s objees comunitaristas s concepes universalistas de tolerncia, justia e

    direitos humanos. Isso tudo se refere, principalmente, vinculao dos sujeitos de

    direito individuais a comunidades culturais, religiosas, tnicas, de gnero e polticas. A

    funo argumentativa deste captulo mostrar que o pluralismo moral em escala

    mundial no s no impede a formulao de uma concepo global de justia e

    tolerncia como a exige, pois a neutralidade perante o emprego opressivo da coero

    estatal moralmente injustificvel.

    Como parte essencial da crtica ao Direito dos Povos rawlsiano que ser aqui

    desenvolvida se refere ao fato de que Rawls no foi suficientemente kantiano ao pensar

    a moralidade do direito no mbito mundial; passar-se-, ento, ao cotejamento do

    modelo rawlsiano com o direito racional de Kant em seus trs nveis poltico, das

    gentes e cosmopolita a fim de pensar criticamente o modo como o Direito dos Povos

    de Rawls se distancia do individualismo tico e, conseqentemente, da valorizao das

    pessoas como fins em si mesmas, da defesa de uma esfera de inviolabilidade individual

    e da prioridade do justo (Captulo 5).

    O sexto e ltimo captulo far consideraes finais a respeito do objeto da justia

    global e tentar formular a partir das idias apresentadas nos captulos anteriores o

    dever ser da tolerncia global, entendido como o que se pode exigir legitimamente do

    Estado de qualquer pas. Defender-se- que o que se pode legitimamente exigir do

    Estado de qualquer pas, do ponto de vista de uma concepo liberal de tolerncia, o

    que est contido numa interpretao adequada do ideal de direitos humanos; isso

  • 51

    converge com a afirmao de Scanlon segundo a qual os direitos humanos estabelecem

    exigncias normativas a respeito de como as instituies polticas legtimas devem ser76.

    E se completa na idia da estrutura bsica77 e das trocas de influncias recprocas78

    como objeto da tolerncia global.

    76 Scanlon. 2006, p. 117.

    77 Rawls.

    78 Kant.

  • 52

    CAPTULO 2

    A TOLERNCIA E O MODELO RAWLSIANO DE JUSTIA COMO

    EQIDADE E DE DIREITO DOS POVOS

    A teoria da justia como eqidade e o Direito dos Povos de Rawls so

    importantes para esta investigao normativa a respeito da tolerncia por dois motivos

    principais:

    1. Porque Rawls formula uma teoria com enorme potencial de

    universalizao dos direitos individuais, ainda que tenha abdicado do

    individualismo tico e da prioridade da justia ao pensar a moralidade

    poltica internacional.

    2. E porque pensa a justia dos arranjos institucionais e, conforme

    explicado no captulo inicial, esta dissertao aborda a tolerncia

    enquanto virtude poltica e poltica formal.

    Sendo assim, este captulo far uma breve introduo filosofia da justia de

    Rawls, focando nas questes que sero teis abordagem da tolerncia aqui proposta.

    importante que o leitor, ao se defrontar com o sistema rawlsiano de justia e Direito dos

    Povos tenha sempre em mente que a tolerncia requer que as instituies aceitem como

    iguais pessoas com profundas discordncias morais e que, como afirma Thomas

    Scanlon,

  • 53

    the advocacy of tolerance denies no one their rightful place in society. It grants to each person and group as much standing as they can claim while granting the same to others79.

    Esta idia funciona como uma espcie de mantra deste trabalho.

    2.1. Sobre a justia interna em Rawls

    2.1.1. Sobre as circunstncias e o objeto da justia como eqidade

    Em Uma Teoria da Justia, Rawls afirma que, em termos ideais, a justia deve

    conferir aos indivduos de uma sociedade fechada um espao de inviolabilidade que

    estabelece que a igualdade de liberdades e direitos entre os cidados no seja

    dependente da negociao poltica ou do clculo dos interesses sociais80. Em termos

    kantianos, isso significa que a justia deve assegurar que todos os seres humanos sejam

    sempre tratados como fins em si mesmos.

    A necessidade moral de se estabelecer idealmente um espao de inviolabilidade

    individual que assegure igualdade de liberdades e direitos deriva da idia de igualdade

    moral entre os indivduos cidados. Esta igualdade moral faz com que no exista

    hierarquia entre concepes individuais razoveis81 de felicidade e boa vida, o que lhes

    d a liberdade de praticarem aquela que for de sua preferncia, independentemente do

    que motiva esta preferncia (que depende de inseres em grupos culturais).

    79Scanlon, 2003, p. 197. 80

    Rawls, 1993, p. 27. 81

    A idia de razoabilidade ser explicada adiante.

  • 54

    E para elaborar seu sistema terico sobre a justia, Rawls constri uma definio

    de sociedade que no social ou antropolgica. Nela, a sociedade caracterizada como

    uma associao mais ou menos auto-suficiente de pessoas que agem e se relacionam de

    acordo com certas regras que reconhecem como vinculativas e que especificam um

    sistema de cooperao que visa vantagens mtuas82.

    Nas sociedades assim definidas, h identidade de interesses porque a cooperao

    social possibilita benefcios que no se alcanam individualmente. H tambm conflito

    de interesses uma vez que a realidade de escassez moderada e todos (ou a maioria)

    preferem receber o maior quinho possvel dos benefcios que so acrescidos pela

    cooperao social. Rawls denomina esta situao de circunstncias da justia83.

    Dentro delas, o papel dos princpios da justia fornecer um critrio para a atribuio

    de direitos e deveres nas instituies bsicas da sociedade e definir a distribuio

    adequada dos encargos e benefcios da cooperao social84.

    Alm disso, nas sociedades complexas, as pessoas esto divididas numa

    multiplicidade de particularismos quanto s crenas sobre o que seja o bem ou a

    felicidade e, devido sua j mencionada igualdade moral, devem poder exerc-las

    livremente. Rawls chama essa diversidade de pluralismo moral e considera que o seu

    limite deve estar na razoabilidade das concepes abrangentes de bem que os grupos

    particulares cultivam85.

    82 Rawls, 1993, p. 28.

    83 Rawls, 1993, p. 115.

    84 Rawls, 1993, p. 28.

    85 Rawls (seguindo uma sugesto de J. Cohen) s introduziu essa idia de doutrinas abrangentes

    "razoveis" e de "pluralismo moral razovel" em O Liberalismo Poltico. Em Uma Teoria da Justia, no h meno essa idia; neste livro os princpios de justia impem limites s concepes do bem que podem ser praticadas e forma de pratic-las, mas nada se diz sobre as doutrinas, elas prprias, serem ou no "razoveis". Pode-se dizer que a idia de razoabilidade j estivesse presente na justificao contratualista de princpios de justia e que estivesse embutida nas duas faculdades morais bsicas atribudas aos cidados de uma sociedade democrtica. Mas, neste ltimo caso, so os cidados eles

  • 55

    Doutrinas abrangentes so aquelas que ditam os valores das vrias dimenses

    da vida (poltica, religiosa, familiar etc), ligando-as entre si. Uma doutrina

    parcialmente abrangente quando no engloba todas as dimenses normativas

    existentes e permite uma certa margem de tolerncia diferena86.

    A razoabilidade aquilo que caracteriza a motivao moral de uma

    perspectiva contratualista de modo independente das circunstncias culturais. Enquanto

    qualidade das doutrinas abrangentes, a razoabilidade uma caracterstica cultural das

    sociedades democrticas liberais, em que os cidados so vistos como livres e iguais, a

    sociedade entendida como um sistema imparcial [quanto aos indivduos e s

    concepes de bem] de cooperao ao longo do tempo, as doutrinas so apenas

    parcialmente abrangentes e a categoria do poltico pode ser pensada separadamente

    das doutrinas abrangentes particulares. Este ltimo aspecto significa que h valores

    morais exclusivamente polticos, independentes das doutrinas parcialmente abrangentes

    em que se inserem87. Uma doutrina abrangente razovel quando no requer que o

    poder coercitivo estatal seja exercido a seu favor e conforme seus valores no-polticos

    (isto , pertencentes a outras esferas da vida, como a religiosa, por exemplo). Assim, a

    razoabilidade implica tolerncia o suficiente para que seja possvel o convvio

    respeitoso com diferenas com as quais no se concorda; tolerncia esta que comum

    s vrias doutrinas abrangentes que convivem numa sociedade democrtica liberal88.

    Como, numa sociedade liberal, h as circunstncias da justia e a pluralidade de

    concepes de bem razoveis que no podem ser hierarquizadas pela razo, Rawls

    prprios que deveriam revisar seu comprometimento com uma doutrina abrangente ou com determinados valores ou prticas culturais que entrassem em choque com as exigncias da justia. em O Liberalismo Poltico, com o argumento do consenso de sobreposio, que entra em cena a idia de que as doutrinas abrangentes elas prprias (e no seus adeptos) podem ser razoveis. 86

    Rawls, 2000, pp. 82-101. 87

    Rawls, 2000, p. 20 e Rawls, 1997, pp. 143-147. 88

    Rawls, 2000, pp. 82-101.

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    defende a prioridade da justia, isto , de uma esfera de igual liberdade e direito

    individuais que no podem ser negociados eleitoralmente.

    Pois bem, vejamos a que objeto a justia deve ser aplicada para que seja neutra

    em relao s concepes de bem e qual deve ser o seu contedo.

    Para o autor de que estamos tratando agora o objeto primrio da justia a

    estrutura bsica da sociedade, que a forma como as principais instituies polticas,

    econmicas e sociais distribuem os benefcios advindos da cooperao social. As

    liberdades jurdicas, a concorrncia de mercado, a propriedade privada e a famlia

    monogmica so exemplos dessas instituies. Elas definem os direitos, deveres e

    expectativas de vida de cada um. A estrutura bsica da sociedade o objeto primrio

    da justia porque as suas conseqncias so profundas e esto presentes desde o incio

    nas vrias situaes sociais, favorecendo algumas posies em detrimento de outras,

    de maneira a produzir desigualdades profundas. a essas desigualdades que os

    princpios da justia devem se aplicar em primeiro lugar, presidindo a escolha das

    instituies polticas, econmicas e sociais. A justia de um mod