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Suzana Rodrigues Pavo
Espelhos Estilhaados em Jornada de frica, Romance de Manuel Alegre
Dissertao de Mestrado em Literaturas de Lngua Portuguesa
Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais Belo Horizonte
1997
Suzana Rodrigues Pavo
Espelhos Estilhaados em Jornada de frica, Romance de Manuel Alegre
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Letras da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Literaturas de Lngua Portuguesa, elaborada sob orientao do Prof. Dr. Benjamin Abdala Jnior.
Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais Belo Horizonte
1997
Dissertao defendida e aprovada em 07 de Abril de 1997, pela banca examinadora constituda pelos professores:
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
Para meus filhos, grandes amigos: Christina Mara Helosa Helena Alberto Augusto Marcelo Augusto Marcus Vinicius Ary
E, muito especialmente, para Ary e Hilda
Meus pais a quem tudo devo.
Agradecimentos
Ao Benjamin, orientador e amigo a quem aprendi a admirar,
aos professores e colegas do Curso de Ps-Graduao em Literaturas de Lngua Portuguesa, cuja convivncia considero um privilgio, ao Leonel I. Almeida Melo, da Universidade de So Paulo, grande amigo, companheiro de muitos anos, com quem sempre muito aprendi, ao Carlos Henriques Serrano, da Universidade de So Paulo, pelo apoio, incentivo e contribuio, a Angela Vaz Leo, Maria Nazar Soares Fonseca, Maria do Carmo Lanna Figueiredo, Wilton Cardoso de Sousa, mestres inesquecveis, a Maria Lcia Lepecki, mestra e amiga que me trouxe de volta o amor s letras portuguesas, a Loureno do Rosrio, mestre que me apresentou novos rumos, a Edy Faria e Mrcio Antnio Marques de Almeida, pela amizade incondicional em todos os momentos e por me ensinarem a ver a vida com desprendimento e sinceridade, a meus alunos das Faculdades Integradas Newton Paiva, meus colegas e direo da Instituio, pelo apoio durante a elaborao de meu trabalho, meus agradecimentos. Este trabalho foi realizado com o auxlio de bolsa de estudos da CAPES e com uma imprescindvel ajuda da Direo das Faculdades Integradas Newton Paiva Ferreira, para o custeio de minhas viagens constantes Universidade de So Paulo.
...Caminhmos tanto para chegar a esta desolada paisagem interior
Cartas de fuzilados: eles cantavam a Marselhesa A minha gerao nasceu da guerra e viu crescer o cogumelo de Hiroshima Vibramos tanto com o Bogart em Casablanca Depois aprendemos a cantar Kalinka Era o tempo das certezas redondas como as abboras cada ano mais felizes no Kolkhoze Ainda entramos a cavalo com o CHE em Havana Era o tempo da festa e da guerrilha a revoluo ia ser uma aventura acreditamos at na abolio da morte Era o tempo em que a histria parecia um comboio rolando inevitavelmente para a terra prometida(...)
ALEGRE, Manuel. Atlntico. Lisboa: Dom Quixote,1989, p.143.
Sumrio
Um percurso no espao literrio de Manuel Alegre
10
1. Fico e realidade 1.1 A nova dinastia, a nova poltica
18 18
1.2. D. Sebastio - O Desejado: Morte de uma nao, incio de um sonho
32
1.3. Portugal e seu Mundo Individualizado
38
1.3.1. A expanso ultramarina: um ato de sobrevivncia, uma operao ideolgica
40
1.3.2. A marca do conflito eterno: colonizador e colonizado 43
1.3.3. A conquista colonial 47
1.3.4. A realidade espiritual e material do colonizado 50
1.4. Descolonizao: um ato de luta consciente 51
1.4.1. Angola, nacionalismo e revoluo 54
1.4.2. A crise da ditadura: uma situao revolucionria 59
2. Interrogar o tempo, decifrar os sinais
65
2.1. Retorno, remorso: o luto impossvel
73
2.2. Mitos, rituais e desmitificao 74
2.3. Sebastio ou Sebastio - Alccer ou Angola 84
2.4. Jornada de frica e a ideologia portuguesa 89
2.4.1. Angola Alccer Quibir - Sebastio, o rei ou o alferes, os homnimos de Alccer
96
2.5. A repetio de nomes e personagens: coincidncia ou uma armadilha do destino
102
3. Os caminhos da narrao 110
3.1. A narrao, seus aspectos e definies 112
3.2. As fronteiras entre o real e o fictcio 117
3.3. D. Sebastio, o rei 122
3.4. Sebastio, o alferes e todos os nomes de Alccer 127
4. Jornada de frica: o mundo intertextual 132
4.1. A linguagem intertextual: Alccer e Angola, Sebastio e Sebastio
134
4.2. A viagem atravs dos textos e da histria 139
4.3. Uma crnica do avesso: o avesso do avesso 143
4.3.1. Miguel de Noronha, Vasco da Silveira, Joo Furtado, Duarte de Menezes, Alvito, Jorge de Albuquerque Coelho e Jernimo de Mendona, o escritor
145
4.3.2. Outros nomes, outras vidas, outro Alcter 148
4.4. Da batalha, seus sucessos e conseqncias 152
Concluso: Jornada de frica: um longo percurso, uma grande descoberta
156
Referncias Bibliogrficas 162
Textos de Manuel Alegre 162
Textos Tericos e Crticos 162
Bibliografia Geral 164
Resumo
A presente dissertao tem como objetivo fazer uma releitura do
sebastianismo tendo como base a idia de retorno, de reconquista da
ptria que foi fazer sua glria fora de seu territrio e que agora deve ser
um Os Lusadas ao avesso. a volta ao lar, terra, ptria, s razes.
Observamos ser um texto que ao fazer aluses histria em nada se
prende a idias de saudosismo ou passadismo, antes, pelo contrrio,
procura recolher os pedaos do espelho estilhaado pelo tempo para
dessa forma conseguir cantar a idia do presente, com os olhos no futuro,
que fulgura no horizonte de Manuel Alegre.
E como o prprio autor definiu em um de seus poemas:
H um tempo parado no tempo que voa. Porque um fantasma rei de Portugal. (ALEGRE, 1989, p.160)
10
Introduo: um percurso no espao literrio de Manuel Alegre
A literatura portuguesa sempre foi um campo de pesquisa
que nos despertou uma especial curiosidade e ateno. Conhecer o
imaginrio portugus, tal como ele aparece nas obras de seus autores
principais, ocupou-nos durante todo o nosso percurso como estudante de
Letras. Um interesse que foi se desenvolvendo quanto mais contato fomos
tendo com novos autores e principalmente com os autores portugueses
contemporneos.
Levamos em conta uma convico que temos de que todo
leitor , quando l, o leitor de si mesmo. No nos desligamos, assim, de
nossas lembranas, vivncias e convices e buscamos, em nossas
pesquisas, encontrar respostas s indagaes que se tornaram uma
constante em nossa trajetria de estudante, de profissional da rea de
educao e de interessada pesquisadora das obras literrias.
Ao tomar contato com a produo literria de Manuel
Alegre, autor pouco divulgado no Brasil, nos surpreendemos com um
universo literrio, rico e original em si e na forma de retratar sua
11
mensagem literria, to ligada realidade histrica, social e poltica
de seu pas.
A obra de Manuel Alegre possui um engajamento poltico
que reflete a sua prpria atuao na histria de Portugal. Dessa forma,
levou-nos, como leitores interessados, a pesquisar as relaes entre
literatura e histria e a documentar-nos em bibliografia interdisciplinar,
que nos proporcione subsdios para nossos conhecimentos em textos da
literatura portuguesa e que nos elucidassem os aspectos do caminhar
dessa nao, no decorrer dos sculos, at chegar atualidade.
Sempre partindo das obras do autor escolhido para nosso
estudo, fomos sendo levados em suas pginas a buscar os versos de
Cames, Pessoa e outros textos mais, que fazem parte do caminho
literrio de Manuel Alegre, e dessa forma, passaram a traar
correlativamente os caminhos de nossa pesquisa. As indagaes
provocadas pela obra desse autor nos instigaram a este estudo, que
prosseguir, aprofundando reflexes, numa etapa subseqente desta
investigao cientfica. nossa preocupao canalizar os dados mais
relevantes desta discusso para uma reflexo mais ampla sobre as formas
literrias que sinalizam para anseios dos povos subjugados.
Jornada de frica o nico romance editado de Manuel
Alegre, e representou, para ns, um texto de sntese, capaz de dar unidade
12
reflexo iniciada com a leitura de seus contos e poemas. O romance,
em seu tema central e no desenrolar das aes, desenvolve-se atravs de
estratgias discursivas que configuram o caminho das personagens
similares s verificveis nos contos e poemas do autor: uma trajetria que
imbrica literatura e histria, seja em relao ao povo portugus, seja em
relao ao angolano, num constante entrecruzar.
A formao do imprio lusitano mostra-nos, com base no
que se poderia denominar de mito do inacabado, circunstncia que
dialoga, em Manuel Alegre, com a situao poltica do presente da nao
portuguesa, pas que vive uma ditadura marcada por violncias,
perseguies e torturas. Ditadura que, ao oprimir cada vez mais o
portugus da metrpole, o iguala ao colonizado de frica, medida que
ambos vivenciam, cada vez mais, um clima de terror e insegurana.
Fazemos essa relao de semelhana ao encararmos as duas opresses,
advindas de um mesmo opressor. No espao do texto de Manuel Alegre,
o cidado portugus vtima de uma opresso violenta que o coloca num
estado de terror e o identifica de certa maneira violncia vivida pelos
colonizados, que no tinham propriamente o estatuto de cidado. As
fronteiras que separam Portugal e Angola se alargam dentro do contexto
da guerra fria e os conflitos de outros espaos criam, assim, um
sistema de significao poltico-cultural mais amplo. Essa matizao
13
ideolgica impregna as aes e as reaes dos povos que se
identificam supranacionalmente com princpios e valores similares.
O Salazarismo mostrado na obra com suas marcas de
violncia, torturas e perseguies. A populao, dominada pelo medo, s
pode escolher entre fugir, aderir ou rebelar-se contra o sistema.
Dominador e dominado identificam-se atravs da violncia sofrida. o
branco que massacra o negro, ou o dono do poder, branco ou negro, que
massacra a todos, para manter-se como dominador. H uma forte
analogia, embora paradoxal, entre a vtima e o opressor.
Seguindo essa linha de pensamento, fomos adentrando por
uma produo literria de significao ideolgica explcita. A posio do
Autor, nessas condies, rompe com qualquer pretenso de neutralidade:
mais do que isso, engaja-se, atravs da obra que produz, assumindo uma
posio de interveno na realidade que analisa. uma forma de atuao
que associa o literrio ao poltico, procurando levantar a opinio de seus
leitores para a problemtica que denuncia. sua inteno, parece-nos,
transformar o texto em uma arma contra todas as formas de opresso.
A memria, lembra-nos Michel de Certeau (VALENSI,
1994, p. 2), feita de estilhaos particulares. Como os estilhaos tm a
propriedade de espalharem-se, vamos encontr-los onde no esperamos.
Inserido nesse movimento, Jornada de frica dialoga com a histria do
14
pas colonizador e a do mundo colonizado, Angola. Passado e
presente se unem, se entrecruzam, como dissemos. Personagens se
repetem. Limites expem-se em conflitos.
Os estilhaos espalhados pelo mundo e pela histria tambm
nos levaram, repetimos, a releitura do mito fundamental da portugalidade:
o sebastianismo. Se a crena no rei desaparecido teria o sentido de
salvao do Portugal decadente e poderia alienar toda uma nao numa
espera fatalista, nesse romance a perspectiva outra, contraideolgica,
pois o mito reformado para que seja definitivamente morto. Aps o
sepultamento dos mortos, vislumbra-se um novo renascimento de
Portugal, agora livre de fantasmas e de profecias alienantes. Portugal
poderia, assim, viver o seu presente e imaginar uma nova histria para seu
povo, em termos de devir e reimagin-la por referncia ao passado.
Para essa releitura, algumas indagaes surgem inicialmente,
quando confrontamos a histria de Portugal com os textos de Manuel
Alegre. So elas:
Alccer Quibir foi ontem ou hoje? Localiza-se no velho
Marrocos ou em Angola? Sebastio, o rei, Sebastio, o alferes? Portugal
teve sua vitria ou foi derrotado em Alccer Quibir ou Angola? Como
encarar a derrota do passado, diferentemente da derrota do presente? O
presente o passado ou o avesso deste passado? Para o momento,
15
limitamo-nos a apontar a imagem mtica do velho do Restelo, criada
por Cames em sua obra mxima, Os Lusadas, em que se percebe a
morte, e a dvida contida na hora da imaginada grandeza. E tambm a
imagem do presente como a hora do absurdo, das guerras inteis, dos
terrores vos, das perseguies sem trguas.
Esse foi o caminho tomado por ns para a leitura da obra de
Manuel Alegre. No preciso salientar mais ter sido um caminho em que
se evidencia o comprometimento ideolgico, que tem balizado a trajetria
pessoal do crtico.
Para analisar as estratgias narrativas de Jornada de frica,
partimos da verificao de que no plano da narrativa h um apelo
constante intertextualidade. A histria de Portugal e os textos literrios
vo sendo reconstrudos, assim, atravs dos fragmentos cujo significado -
seja atravs da estilizao ou da pardia - procuramos desvendar. Dessa
forma pretendemos problematizar as relaes entre o colonizador e o
colonizado, a busca de identidade do colonizador dentro de seu universo
territorial e tambm de seu deslocamento para terras estrangeiras. Por
outro lado, buscamos apreender a realidade do colonizado, expoliado de
sua cultura, inferiorizado no prprio espao de seus antepassados, com os
quais tenta se identificar sem conseguir, porque um outro tempo se
instala. Ao mesmo tempo, pelas recorrncias constantes Histria de
16
Portugal e da colonizao, fomos motivados a estudar a histria
portuguesa e suas recorrncias literrias.
Outro ponto importante, igualmente associado histria, a
anlise do mito do sebastianismo, fato que nos levou interpretao e
releitura desse mito.
Tambm gostaramos, nesta introduo, de destacar a
dificuldade que tivemos para conseguir material bibliogrfico de pesquisa,
a comear pelas obras do prprio autor, que nos foram remetidas pela
Publicaes D. Quixote, a pedido do prprio Manuel Alegre, a quem
tenho a agradecer mais essa gentileza.
Outra grande dificuldade foi conseguir o texto original do
cronista Hiernimo de Mendoa, de 1607, primeiro relato da batalha de
Alccer Quibir, feito em lngua portuguesa e por algum que foi
testemunha viva do dramtico episdio vivido por D. Sebastio e seus
seguidores. Esse texto raro - que se encontra espera de verbas para
restaurao - foi microfilmado na Biblioteca Municipal Mrio de
Andrade, em So Paulo, que possui o nico exemplar disponvel em
nosso pas.
A edio de 1924 de O Desejado, obra organizada por
Antnio Srgio, e que citada constantemente na narrativa de Jornada de
frica, de Manuel Alegre, nos foi conseguida em um setor de livros
17
usados, em Lisboa, por intermdio de um grande amigo, colaborador
e interlocutor que sempre tem sido o Professor Dr. Leonel Itaussu
Almeida Melo, docente de Cincias Polticas da Universidade de So
Paulo.
As informaes histricas e polticas sobre Angola nos foram
transmitidas por outro indispensvel mestre, o Professor Dr. Carlos
Moreira Henriques Serrano, do Departamento de Antropologia da
Universidade de So Paulo.
A ambos, nossos especiais agradecimentos por terem
acreditado em nossa proposta.
Dessa forma, esperamos ter conseguido realizar um trabalho
satisfatrio. No dizemos concluir um trabalho, pois as pesquisas nos
abriram campo e necessidade de seguir nossos estudos dentro dessa
temtica to importante e ao mesmo tempo envolvente.
18
1. Fico e Realidade
Para desenvolver a temtica escolhida dentro da obra
Jornada de frica, de Manuel Alegre, consideramos a importncia de um
estudo prvio que nos introduzisse nos discursos sobre a realidade
histrica do povo portugus.
Portugal um pas de caractersticas muito prprias, e esses
aspectos so importantes para a compreenso de suas reaes culturais
especficas.
Para entender essa cultura, deparamo-nos com as condies
que propiciaram percursos que antecipam historicamente o que veio a
ocorrer depois com outros pases europeus e tambm dos fatores
psicossociolgicos que motivaram o seu povo.
Entre todos os pases da Europa, foi Portugal o primeiro a
realizar sua unidade nacional e a fixar seus limites territoriais, que so
praticamente os mesmos desde meados do sculo XIII. O processo de
independncia do condado Portucalense dos reinos de Arago e Galcia
se deveu fundamentalmente diferena de atividades econmicas da
regio e grande rivalidade existente entre os grupos feudais. Na verdade,
as camadas populares tiveram grande participao no processo de
19
independncia atravs de organizaes municipais e dos concelhos
populares. Havia entre o povo maior liberdade e relaes sociais mais
avanadas, o que levou a populao a lutar para afastar do pas as
relaes de servido de outras regies crists. Tais noes de autonomia
so condies bsicas para o tipo de atividade produtiva exercida pelo
povo portugus.
A lngua portuguesa tornou-se oficial no reinado de D. Dinis,
tambm conhecido como o Rei Trovador (1279-1325), mas as escolas s
vieram a ensin-la no final da Idade Mdia.
Desde o reinado de D. Afonso Henriques, Portugal j
comeou a exercer atividades martimas. Conseguiu aperfeio-las e
desenvolveu uma navegao costeira e comercial. A dinamizao dos
portos propiciou uma maior atividade mercantil, o que j era tradicional
na vida econmica portuguesa com os demais reinos europeus. Portugal
comercializava sua produo agrcola em troca de cereais e matria txtil.
Como constatamos, Portugal j estava se organizando e exercendo uma
atividade econmica no muito condizente com as tradicionais funes da
nobreza. A realeza baseava-se numa estrutura social imvel e muito
desinteressante para atividades com intuitos lucrativos, como j vinha
existindo dentro de Portugal.
20
No final do sculo XIV, Portugal tambm veio a
conhecer, antecipadamente, uma revoluo com caractersticas burguesas,
que causou mudanas significativas na sua estrutura social. A revoluo
colocou no poder D. Joo, mestre de Aviz, filho de D. Pedro I e de D.
Igns de Castro. O monarca chefiou a causa popular a favor da
independncia, venceu os castelhanos em Aljubarrota e foi aclamado rei
nas cortes de Coimbra de 1385. Esse episdio marca a vitria da
burguesia e abre um novo caminho que ser trilhado pelos descobridores.
Estamos diante da queda da antiga aristocracia, representada
pela dinastia de Borgonha, e substituda por uma nova classe, com uma
mentalidade que veio se formando e se preparando j em tempos
anteriores e que eclode com toda a sua pujana neste momento histrico.
So os burgueses mercadores que imporo suas formas de conduta e
atividades a partir desta revoluo.
Fatos como a tomada de Ceuta, em 1415, a chegada de
Vasco da Gama s ndias em 1498 e a descoberta do Brasil em 1500
caracterizam a formao do grande imprio portugus.
A respeito das conquistas e da coragem do povo que se
aventura em busca de novo mundo e nova vida nos fala Cames, j no
Canto I do poema pico Os Lusadas (CAMES, 1968, p. 9):
21
Pois se a troco de Carlos, rei de Frana, Ou de Csar, quereis igual memria, Vede o primeiro Afonso, cuja lana Escura faz qualquer estranha glria; E aquele que a seu Reino a segurana Deixou, com a grande e prspera vitria; Outro Joane, invicto cavaleiro; quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.
O poeta insere Portugal e sua histria no contexto dos reinos
europeus ao colocar seus reis em igualdade com outros de grande fama.
No quinto verso refere-se a D. Joo I e vitria na batalha de Aljubarrota.
Este marco histrico representa a vitria da burguesia e o incio do novo
caminho para o qual se direcionar o povo portugus. Ainda em busca de
representao literria para os feitos histricos que marcaro a
individualidade de Portugal, encontraremos os versos de CAMES
(1968, p. 24):
To brandamente os ventos os levavam Como quem o Cu tinha por amigo; Sem nuvens, sem receio de perigo. promotrio Prasso j passavam, Na costa de Etipia, nome antigo, Quando o mar, descobrindo, lhe mostrava Novas ilhas que em torno cerca e lava. Vasco da Gama, o forte capito, Que a tamanhas empresas oferece, De soberbo e de altivo corao A quem fortuna sempre favorece, Pera se aqui deter no v razo, Que inabitada a terra lhe parece; Por diante passar determinava, Mas no lhe sucedeu como cuidava.
22
Atravs de recursos mitolgicos, Cames conta-nos a
viagem de Vasco da Gama e a descoberta de novas e distantes terras,
feitos de grandeza que ele s compara aos de divindades mitolgicas. E,
atravs dele, a grande bravura e coragem de um povo que vai ter, assim,
seu lugar na histria.
Se sairmos de Cames, podemos retomar o sentido de seus
versos numa outra releitura desses navegantes e seus feitos. Sobre essa
etapa, entre outros, assim nos fala Fernando PESSOA (1954, p. 12):
Mar Salgado, quanto do teu sal So lgrimas de Portugal ! Por te cruzarmos, quantas mes choram, Quantos filhos em vo rezaram ! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, mar.
Como j pudemos constatar, a Idade Mdia portuguesa
apresentava uma especificidade, pois as relaes sociais estratificadas e
imveis que caracterizavam o sistema feudal entravam em choque com a
realidade da economia que predominava no reino. O Humanismo
portugus, em conseqncia, tambm tem uma imagem individual.
Segundo Andr LALANDE (1968, p. 420-21), em sua obra Vocabulrio
Tcnico e Crtico da Filosofia, humanismo um movimento de esprito,
representado pelos humanistas da Renascena e que caracteriza-se por
23
uma forte tendncia para exaltar a dignidade do esprito humano. A
sociedade humanista se contrape organizao medieval de esprito
teocntrico, pois a viso de mundo dirigida por Deus, Ser absoluto, capaz
de ditar as normas sociais, o comportamento individual, de estabelecer o
limite entre o bem e o mal, acaba por determinar tambm uma concepo
servil em que o homem nasce para obedecer, para seguir um caminho que
j foi predeterminado pelo Senhor absoluto. As reaes humanas eram
marcadas, de um lado, por uma grande ignorncia cientfica e de outro,
por uma profunda religiosidade.
O feudalismo e o teocentrismo podem ser associados em
suas decorrncias sociais. Podemos dizer que um implica o outro. Nesse
sentido, a concepo teocntrica justifica as condies sociais feudais e
procura impedir mudanas que acarretariam invariavelmente uma
transformao radical da sociedade.
A Igreja era uma rica senhora feudal. No tinha nenhum
interesse em mudanas sociais. Dessa forma ensina os mistrios da f e
possui um importante papel na educao, o que justifica, em parte, o
desconhecimento cientfico do homem medieval.
J o conceito de Renascimento muito mais amplo do que o
conceito de Humanismo. Para seguirmos nesse raciocnio nada melhor do
que dialogar com Joaquim Barradas de CARVALHO (1980, p. 34).
24
Segundo o autor, haver renascimentos mais ou menos humanistas.
Haver renascimentos nos quais o conceito de humanismo no cobre
seno uma pequena parte, algumas vezes mesmo muito pequena, do
conceito de renascimento. Segundo Barradas, este ltimo conceito,
indiscutivelmente, o caso de Portugal. O mais correto estudar sempre o
pas lusitano como um caso isolado e analisar o que tenha sido o
Humanismo portugus e o Renascimento em Portugal.
Portugal produz a essa poca uma abundante literatura
referente ao Ultramar, conseqncia do desenvolvimento da tcnica
nutica e da experincia vivida pelo povo portugus, com tudo que ela
representa e contribui para o seu Renascimento. Atravs dessa literatura,
podemos constatar que o reino de Portugal est se transformando de
forma radical. A obscuridade cientfica cede lugar tecnologia a servio
das atividades econmicas. H um efeito imediato gerado pelo
desenvolvimento do comrcio: o crescimento das cidades, as quais
ganharo novas funes. O esprito do homem medieval fechado no
feudo, na obedincia ao senhor e aos princpios divinos, ganha uma nova
feio. As transformaes sociais descobrem um homem dotado de
conscincia criadora e transformadora, capaz de dominar o universo e
transform-lo. Agora h a certeza de que necessrio o saber. atravs
do conhecimento que o homem transforma a vida e o mundo. A este
25
momento histrico de transio a que denominamos humanismo,
sucede a decadncia do teocentrismo, mas esse ainda convive com a
busca do saber cientfico, assim como o feudalismo ainda convive com o
desenvolvimento comercial e com o advento de uma classe ascendente,
que a burguesia. Como toda transio, essa situao histrica tambm
vai registrar a decadncia de uma estrutura social e o surgimento de outra
forma de vida.
Ferno Lopes ser a presena intelectual grandiosa desse
momento.
A viso histrica do cronista-mor, colocado no cargo pelo rei
D. Duarte, segundo monarca da dinastia de Aviz, bastante inusitada
para o seu tempo. A primeira qualidade a preocupao com a pesquisa,
com a investigao da verdade. No aceita as verses contraditrias dos
fatos histricos e submete suas fontes a uma anlise rigorosa. No meio de
suas narrativas faz comentrios que so declaraes de sua viso
histrica:
...porque a histria h- de ser a luz da verdade e testemunha dos antigos tempos, e ns, posto que as no vssemos, de muito revolver livros com grande trabalho e diligncias, juntamos s mais chegadas a razo em que os mais dos autores pela maior parte consentem;... (CARVALHO, 1980, P. 35).
26
Possui uma viso de conjunto, procura apresentar um
panorama da sociedade portuguesa em seu todo. A aparecem os nobres
palacianos, o movimento dos trabalhadores nas aldeias, a vida nas
cidades. A essa viso de conjunto une-se a de que o povo agente das
mudanas histricas. No h a idia da histria feita por heris
individualizados.
Os Descobrimentos so fatos essenciais para Portugal. O
pas no pode ser compreendido em sua individualidade sem os
Descobrimentos e seu Renascimento, marco primordial da histria do
pas. O Portugal de antes, da Idade Mdia, era uma preparao para o seu
Renascimento e o de depois, da poca moderna e contempornea, uma
conseqncia dos descobrimentos martimos, do seu Renascimento.
Srgio Buarque de Holanda, (citado por CARVALHO, 1980,
p. 17) em sua obra Razes do Brasil, coloca em destaque mais uma
especificidade da histria portuguesa. Trata-se do aspecto mercantil dos
descobrimentos portugueses. Os navegantes lusitanos descobrem novos
territrios com um esprito de desenvolvimento comercial repetindo
exemplos de colonizao j ocorridos na Antigidade, como a fencia e a
grega. O historiador atribui uma fisionomia mercantil, quase semita a
esse carter portugus. A expanso portuguesa a expanso do
comerciante e no a do conquistador que quer fazer da terra descoberta
27
uma continuidade orgnica da metrpole. A dinastia de Aviz, que a
revoluo colocou no trono, representada pelos monarcas D. Joo I
(1385-1433), D. Duarte (1433- 1438), D. Afonso V (1438-1481), D. Joo
II (1481-1495), D. Manuel I (1495-1521), D. Joo III (1521-1557), D.
Sebastio (1557- 1578) e D. Henrique (1578-1580), governou Portugal
durante dois sculos quase completos.
Muito poucas vezes um ciclo dinstico coincide
completamente com um perodo de caractersticas to prprias e bem
definidas. a introduo de uma nova era da histria de Portugal, esta
que se inicia com a eleio do rei popular e o seu triunfo na batalha de
Aljubarrota e termina com a morte, tornada mtica, de seu ltimo
descendente, D. Sebastio, na batalha de Alccer Quibir.
Os descobrimentos to fundamentais para Portugal so
tambm uma antecipao histrica em relao aos demais reinos
europeus. A descoberta do caminho martimo para as ndias, em 1498,
leva-o ao desenvolvimento econmico que lhe dar o monoplio oriental,
iniciado com a chegada a Lisboa dos primeiros navios carregados de
pimenta. A partir do momento em que conquista grande poderio
comercial, parte para a fundao de um imprio colonial.
A formao desse imprio fez com que tambm se formasse
um povo de psicologia muito prpria, que vive o apogeu e no encara a
28
decadncia. Vive uma eterna glria, forjada em sua memria coletiva,
e no encara a memria histrica verdadeira. A negao sistemtica, sob
a forma de fugas infindas, uma mentira persistente e uma obstinada
capacidade de negar a evidncia faz com que esse povo to peculiar crie
uma verdade cmoda, que lhe permite viver sua histria e conviver com o
seu destino.
1.1. A nova dinastia, a nova poltica
O triunfo da revoluo popular de 1385, que colocou no
trono a dinastia de Aviz, representou, pelo menos nos seus primeiros
anos, o predomnio das foras burguesas.
Os sculos j vividos da vida nacional mostravam como
todos os conflitos tinham origem na precariedade dos recursos internos
para o progresso conjunto de todas as classes. possvel e at muito
provvel que essa insuficincia no estivesse clara e consciente para os
conselheiros de D. Joo I, mas a verdade que a administrao foi
orientada no sentido de procurar fora do pas os meios de sobrevivncia.
Os aspectos especficos da nova poca so o apoio ao comrcio martimo,
29
a interveno do Estado nas viagens para a descoberta de novas
terras e novas fontes de riqueza. H uma progressiva centralizao do
poder real de acordo com as doutrinas do direito justiniano, aprendido
pelos juristas que desempenhavam altos cargos na administrao. Embora
no pretendamos nos aprofundar em consideraes jurdicas,
consideramos importante citar que o direito justiniano a base do direito
moderno e fundamentou todas as questes naturais e civis como o poder
do Estado sobre os cidados, as noes de direitos e deveres dos
cidados em relao ao Estado constitudo, e as relaes de sucesso de
posses e bens. Tal legalizao torna-se importantssima em um poder
absoluto real com novos interesses de investimentos e nova classe social
atuando ativamente nesses investimentos, como o caso da burguesia
portuguesa.
No que trata da justia e do direito, as instituies justinianas
estabelecem que a jurisprudncia o conhecimento das coisas divinas e
humanas, a cincia do justo e do injusto (Iurisprudentia est divinarum
atque humanarum rerum noticia, justi atque injusti scientia) (MAFRA,
1985, p. 27-32).
Os preceitos do direito se resumem em viver honestamente,
no prejudicar o outro, dar a cada um o que seu. Dessa forma divide-se
esse estudo em duas partes: direito pblico e direito privado. O primeiro
30
diz respeito Repblica Romana e o segundo, considera o interesse
de cada um. Deve-se dizer que o direito privado tripartido, pois
constitudo dos preceitos naturais, das gentes e civis.
O direito natural o que a natureza ensinou a todos os
animais. O direito das gentes estabelece que todos os povos se regem por
leis e costumes, e usam de um direito em parte seu prprio (direito civil) e
em parte comum a todos os homens (direito das gentes propriamente
dito).
A base do direito moderno ocidental est nos preceitos de
Justiniano, e sua aplicao representou um grande progresso para os
povos que se aventuraram em atividades mercantis e que se
desvencilharam da vontade pessoal de um soberano ou de apenas uma
classe social.
assim que, durante o reinado de D. Joo I, o Estado
assume a direo das atividades martimas para o descobrimento de
regies desconhecidas.
O descobrimento dessas novas terras que suprir Portugal
dos elementos bsicos para sua existncia como nao at 1975, em pleno
sculo XX.
Importa reafirmar que as atividades martimas eram muito
antigas, bem anteriores independncia portuguesa. Parte significativa da
31
populao vivia da pesca, e entre as espcies mais procuradas estava
a baleia. Os pescadores, obrigados por mudanas nas condies
climticas, so levados a buscar tal espcie em mares mais distantes. Essa
necessidade fez com que as frotas baleeiras fossem compostas por navios
de maior porte.
A pirataria, a necessidade de sobrevivncia e a preocupao
de ampliar os horizontes de domnio e de atividades colocou os
portugueses em contato com o mar. H notcias de batalhas realizadas em
tempos remotos entre portugueses e mouros.
Por volta de 1340 houve expedies oficiais s ilhas
Canrias, e tambm sabe-se que no sculo XIV roteiros martimos e
cartas de navegao eram feitas em Portugal. Tudo isso nos demonstra
uma experincia martima muito antiga, a que no era alheia a tcnica dos
rabes e o dinamismo empresarial dos judeus.
Mas s depois do advento da dinastia de Aviz que o Estado
assumiu a direo do que chamamos uma poltica dos descobrimentos.
A dinastia de Aviz termina como a dinastia antecessora,
fundada por D. Afonso Henriques, por uma crise de sucesso muito mais
grave e mais profunda do que aquela que, em 1385, havia posto pela
primeira vez em crise a independncia nacional. Morto D. Joo III, s D.
Sebastio, seu neto de trs anos de idade, podia assegurar o futuro da
32
dinastia. A regncia foi ento confiada rainha, depois ao irmo do
falecido rei, o cardeal-infante D. Henrique (1562- 1568).
1.2. D. Sebastio - O Desejado: morte de uma nao,
incio de um sonho
D. Sebastio ser o protagonista de uma histria que marcar
a psicologia de todo um povo. Nos fatos que rodeiam sua vida e sua
morte iremos encontrar um desvio de memria, uma quase purificao
dos fatos que toda uma nao considera repugnantes. Elementos
estranhos sero incorporados verdade e a modificaro. A formao de
uma conscincia histrica mais apropriada e aceitvel passar a fazer
parte da memria coletiva, pois a nao no consegue encarar-se em sua
verdade e precisa refugiar-se em crenas que lhe permitam sobreviver
dignamente, diante de uma tragdia to marcante.
Muitos elementos interferem na produo das lembranas,
como o silncio consciente dos sabedores da verdade, a censura, o
recalque, o intencional esquecimento. A negao e as mentiras que
surgem como conseqncia de todos esses fatores formaro dessa
33
memria coletiva. A mesma histria ser contada de formas
diferentes e sero encontrados vestgios de vozes vencedoras e vencidas.
Cames dedica sua obra mxima Os Lusadas ao rei D.
Sebastio, o jovem monarca:
Inclinai por um pouco a majestade, Que neste tenro gesto vos contemplo, Que j se mostra qual na inteira idade, Quando subindo ireis ao eterno Templo; Os olhos da real benignidade Ponde no cho: vereis um novo exemplo Do amor dos ptrios feitos valerosos, Em versos divulgados numerosos. ( CAMES, 1968, p. 7)
Cames nos narra e anuncia que no templo eterno da Fama
que o rei h de entrar, quando na plenitude da sua fora, na idade inteira.
Refere-se pouca idade do rei e s caractersticas que tero certamente
seu futuro reinado.
O jovem rei Sebastio assume o poder ao completar catorze
anos. neto e sucessor de D. Joo III, cujos filhos homens morreram
todos em tenra idade, com exceo de um, Joo, que casou-se com
dezesseis anos. Morreu no ano seguinte, deixando grvida sua esposa.
Trs semanas aps sua morte, nasce o prncipe que receber o nome de
Sebastio. Logo aps o parto, a me retorna Espanha, pois irm de
Filipe II. Com a morte de D. Joo III, em 1557, o nico herdeiro,
34
Sebastio, est com trs anos de idade. A regncia dada rainha
Catarina, viva do falecido rei e depois, at 1568, exercida pelo cardeal
Henrique, tio-av de Sebastio.
O jovem monarca apresenta um carter instvel e
inconstante, que poderia ser conseqncia de uma infncia rf de pai e
me, em companhia de religiosos, que tero uma influncia marcante no
seu comportamento. Sebastio possua crenas religiosas fanticas e
revelava verdadeiro horror s mulheres. Recusava o casamento. Tentou-se
vrias vezes, sem sucesso, interess-lo por pretendentes, para assim
garantir-se a continuidade da dinastia. Duvidava-se na Europa de sua
capacidade fsica. Feitas as devidas averiguaes, concluiu-se que nada o
impedia de ser esposo e pai, a realidade que no gostava de mulheres.
Gostava de Deus e das armas. Como podemos constatar possua um
esprito pouco realista, fato j inconcebvel e bastante grave em um chefe
de estado. Sua mente e crenas estavam em outro sculo. Sua obsesso
pelos mitos de cavalaria e das cruzadas levou-o a fazer voto de
castidade e de dedicao a Deus, de quem se achava um emissrio.
Sem dvida, o abandono das terras do Marrocos vai avivar
as crenas do monarca. V nos fatos um chamado divino e passa a pr em
prtica uma poltica visionria. Acredita que o momento de reatar a
poltica de seu quimrico antepassado, D. Afonso V. A ocasio de intervir
35
no Marrocos foi-lhe dada pela luta de sucesso, que dividia o reino
de Fez. O desencadear dos fatos histricos faz com que D. Sebastio
creia cada vez mais ser um predestinado, um representante divino.
Encorajado por Filipe II e pelo Papa, D. Sebastio
atravessou o estreito de Gibraltar com um exrcito de 18.000 homens que
sofreu a 4 de agosto de 1578, um fulminante desastre em Alccer Quibir.
O prprio rei desapareceu no decorrer da batalha e com ele, desaparecia,
ou se arruinava, a nobreza de Portugal.
A literatura atravs de seus versos dialoga com a histria e
nos conta seus fatos:
A que novos desastres determinas De levar estes Reinos e esta gente ? Que perigos, que mortes lhe destinas Debaixo dalgum nome preminente ?(CAMES, 1968, p.239)
E Manuel Alegre, distante no tempo mas to prximo nas
idias do poeta Cames, nos transmite seus versos em que a mesma
angstia se encontra presente:
Quantos desastres dentro de um desastre. Alccer Quibir foi sempre passado por dentro do presente meu pas que nunca te encontraste.( ALEGRE, 1989, p. 159)
36
O enfrentamento ocorreu na segunda feira, 4 de agosto de
1578, por volta das onze horas da manh, nas vizinhanas do rio Wad al-
Makhazin. No final do dia, a morte levara trs soberanos, fato por si s
inusitado. A expedio foi um desastre para Portugal, perdeu seu rei, sua
nobreza e seu exrcito. Mais do que tudo, perdeu sua posio mundial,
pois o pas teve de renunciar a suas aspiraes de domnio do alm-mar,
posio que fazia sua grandeza. Logo em seguida perde sua autonomia.
Aps o reinado do cardeal D. Henrique, tio de Sebastio, Antnio, prior
de Crato e primo de Sebastio, no consegue tomar o poder. Filipe II une
a coroa de Portugal de Espanha em 1580, e o controle espanhol dura
sessenta anos.
Alccer Quibir ir morrer alm do mar por coisa nenhuma.( ALEGRE, 1989, p.160)
Essa batalha mpar, com mortes memorveis, viver agora na
lembrana de vencedores e vencidos. Tais fatos do origem ao mito do
sebastianismo, uma convico de que o Desejado ou o Encoberto,
desaparecido misteriosamente, no morreu e deve voltar para salvar
Portugal e dar-lhe a dominao do mundo, que repercute at nossos dias,
como tema literrio de ressonncias profundas ( Quinto Imprio ).
37
Este tema messinico, que se exprime j antes de 1541
nas Trovas de Gonalo Eanes Bandarra, um modesto sapateiro de
Trancoso perseguido pela Inquisio, foi retomado depois de 1603 pelo
Padre Antnio Vieira, e ressurgir nos sculos XIX e XX, como iremos
estudar em Jornada de frica, de Manuel Alegre, um tema constante no
conjunto da obra literria desse autor. Constata-se, nesse sentido, a
existncia de um antimito na recorrncia a esse mito: um Portugal que se
faz na modernidade, atravs de aluses a reis mitolgicos e a batalhas
visionrias. E versos de Manuel Alegre nos contam:
preciso enterrar el-rei Sebastio preciso dizer a toda gente que o desejado j no pode vir. preciso quebrar na idia e na cano a guitarra fantica e doente que algum trouxe de Alccer Quibir. (ALEGRE,1989, p. 164)
A perspectiva de construo de um novo Portugal.
Construir um pas a partir da certeza do que realmente se quer e se luta.
Assim:
Quem vai tocar a rebate Os sinos de Portugal? Poeta: tempo de um punhal por dentro da cano. Que preciso bater em quem nos bate preciso enterrar el-rei Sebastio.( ALEGRE, 1989, p. 165)
38
E mais nos diz o poeta:
Meu cigano do mar. (E o mar enganos.) Alccer Quibir so as armas vencidas so os ombros vergados e as horas perdidas quinhentos anos dentro destes anos.( ALEGRE, 1989,p. 159)
1.3. Portugal e seu mundo individualizado
Tambm colocamos em destaque os pontos de vista de
vrios historiadores que so unnimes em afirmar que a precocidade, em
histria, implica com freqncia a fixidez e conservao do passado,
como se as estruturas construdas de forma tempor no possam evoluir e
modificar-se seno lentamente. Portugal, com efeito, o ltimo pas da
Europa a conservar quase intactas as possesses de alm-mar. tambm
um dos ltimos em que se constituiu uma burguesia moderna, que tira sua
fora da indstria e no do comrcio ou da agricultura. um estado que
se fecha s influncias supranacionais.
Portugal possui outro trao peculiar. A idia de uma
individualidade geogrfica do pas no apresenta fundamentos em nenhum
ponto. Nenhuma cadeia de montanhas lhe marca fronteiras naturais, e os
39
grandes rios da vertente atlntica da Espanha desguam nas suas
costas. A explicao para a individualidade no , pois, de ordem fsica,
mas social. Desde a origem de sua histria h uma tendncia para o
isolamento. Portugal um dos raros estados europeus cujas fronteiras
coincidem com os limites lingsticos. A lngua, conseqncia dessa
unidade poltica que desde os primeiros tempos da histria se estabelece,
termina por reforar a unidade deste pas e, mediante as idias e os
sentimentos que divulga, assegura a personalidade do povo portugus:
Agora sabe-se que para chegar ndia era preciso inventar a lngua. (ALEGRE, 1992, p. 27)
a lngua sempre presente na autonomia e na afirmao do
pas e de sua gente:
H uma ilha a florir em cada letra teu canto e tu so nossa rima e nosso ritmo decasslabos volta do planeta homofonia dissonncia aliterao tetrmetro teorema logaritmo conjugao de slaba e fonema Lusadas - diziam. E era a nao. Esta nao nasceu como poema( ALEGRE, 1989, p.10)
1.3.1. A Expanso Ultramarina: um ato de sobrevivncia, uma operao ideolgica
40
Portugal um territrio pequeno e sem recursos. Desde o
incio de sua autonomia havia uma necessidade premente de buscar
riquezas em terras distantes e fora da pennsula Ibrica. As atividades
martimas vieram trazer esperanas para os problemas internos, e este
povo isolado da poltica europia e peninsular buscou uma forma de
dominar os mares e as riquezas que da poderiam surgir.
Ideologicamente, esse pas procurou explicar suas aes que
envolviam poltica de povoamento, desenvolvimento de fora militar e
preceitos econmicos mercantilistas restaurando uma viso passadista de
carter providencial.
Veste-se de uma roupagem bem antiga e propaga ao mundo
sua misso de expandir a f e o imprio. A dilatao da f catlica,
conceito existente na Europa medieval, um modelo adotado pelos
portugueses. Esse modelo justificativo da construo do imprio pobre,
mas acabou por ser utilizado durante toda a sua histria, tanto pelos
primeiros navegantes das caravelas como pelo estado totalitrio de
Salazar, em pleno sculo XX. E Portugal navega, atira-se aos mares e
busca conquistas como nos demonstra o poema de Manuel Alegre, mas
nem por isso consegue a autonomia com que sonha. Assim:
41
Senhor no mar e em terra dependente conquistado de cada vez que conquistaste Alccer Quibir foi sempre ires perder-te em cada ndia que ganhaste.( ALEGRE, 1989, p. 159)
Salazar recusa-se a usar o termo colnias, mas Provncias
Ultramarinas e seu sucessor, Marcelo Caetano, refere-se aos Estados
Portugueses. Muda o nome mas no a dinmica da realidade.
Durante a sua histria, revestem-se de uma operao
ideolgica para justificar a realizao de trfico de escravos, pilhagens de
povos conquistados. Instituem o culto da atitude imperialista e revelam-se
um povo expansionista e belicista que vo faz-los confrontar-se com os
ideais que iro se expandir por toda a Europa e que de alguma forma
atingem certa conscincia portuguesa. Assim nos canta CAMES: (
1968, p. 310):
Vi quanta vaidade em ns se encerra, E nos prprios quo pouca; contra quem Foi logo necessrio termos guerra. ( CAMES,1968, p. 310)
a conscincia de oposio j desperta no poeta
renascentista e que se mantm acesa atravs dos sculos, como se pode
perceber nos versos de Manuel Alegre ( 1989: p.151-2):
As colunas partiam de madrugada
42
para o norte partiam para a morte partiam de Luanda flor pisada levavam morte de Luanda para o norte. ... Partiam as colunas de Luanda levavam para a morte a madrugada: flor pisada ao norte.( ALEGRE, 1989, p. 151-2)
Na verdade, a vocao martima do pas perifrico, que
pretendia tardiamente reencarnar o papel dos comerciantes venezianos e
genoveses, leva, como conseqncia a uma forma de pensar, a navegar
mais profundamente, na verdade, nas guas da pirataria e das feitorias
costeiras. Para isso, apoiou-se na fragilidade dos povos que conquistou
para estabelecer uma fora dominadora que o mantivesse no poder.
A expanso territorial portuguesa faz - se por necessidade
de sobrevivncia e reveste-se de razes ideolgicas que justificam a
dominao e os combates promovidos. A colonizao propagada como
misso colonizadora a grande mentira dos colonialistas. O
estabelecimento de uma histria implica pontos antagnicos e desiguais.
De um lado a sociedade colonial mantida em condies que impedem
toda e qualquer evoluo social, de outro a sociedade colonizadora,
repressiva e dominadora que pela fora desrespeita os valores culturais do
povo nativo, impe suas crenas, sua lngua e seus hbitos. Um nico
deus e uma nica lngua a base da dominao. Qualquer dualidade um
enfraquecimento dos valores coloniais e uma forma de dar voz ao
43
colonizado. Colonizado no pode ter crena, voz ou opinio. Deve
ser um apndice silencioso e obediente. De uma obedincia servil.
1.3.2. A marca do conflito eterno: colonizador e
colonizado
O que caracteriza a relao entre colonizador e colonizado
o desequilbrio propiciado pela defasagem econmica que governa as
relaes econmicas entre as duas naes. No momento em que se
abandona o domnio restrito do colonialismo econmico, compreendemos
que muitas vezes necessrio inverter os valores dos grupos de oposio,
e talvez questionar o prprio conceito de superioridade. No h
supremacia cultural, h um domnio social e econmico, imposto pela
fora, com violncia e desrespeito em relao ao povo conquistado. Se os
primeiros encontros so marcados pela ignorncia mtua entre duas
civilizaes completamente estranhas, num segundo momento o poder da
fora surge e se implanta. Desde o sculo passado, os etnlogos
concordam em assinalar que a vitria do branco se deveu menos a razes
de carter cultural, do que ao uso arbitrrio da violncia, do que
imposio brutal de uma ideologia. H a prepoderncia de um ponto de
vista dominador e nunca um desejo de conhecer.
44
O homem colonizado precisa superar sua crena de que
inferior e partir para a possibilidade da negao. E como nos afirma
Frantz FANON: ( 1961: p. 10)
Se verdade que a conscincia atividade transcendental, devemos saber, tambm que esta transcendncia obcecada pelo problema do amor e da compreenso. O homem um SIM que vibra face as harmonias csmicas. Arrancado, disperso, confundido, condenado a ver diluir, uma aps as outras, suas verdades, obrigado a deixar de projetar no mundo uma antinomnia que lhe coexistente.
A partir dessa tomada de conscincia que o homem,
liberado de suas amarras, dar sentido a sua vida e a construir segundo
suas prprias crenas. A conscincia individual antecede conscincia
coletiva e gradativamente criar a necessidade de libertao e de
valorizao de todo um povo.
Nenhum movimento de libertao nacional pode esperar a
vitria se no contar antes de tudo com o apoio total da populao. Este
apoio vir de forma lenta e sutil. Cada ato cometido pelo colonizador em
desrespeito ao colonizado ser um pequeno fragmento de obedincia que
se extingue.
O desprezo pela cultura e tradies do povo ser um ponto
fundamental que ir minando a situao de pseudopassividade do
colonizado.
45
No se trata de encarar o Outro pela diferena de cor,
mas por suas atitudes, e uma idia que nos conferida por FANON (
1961, p. 11):
...O Branco escravo da sua brancura e o negro de sua negrura.(...) uma realidade: os brancos se consideram superiores aos Negros. (...) Lutamos para a destruio total desse universo mrbido. O indivduo deve assumir o universo inerente condio humana. Mas, para atingir esse universalismo, urge desembaraar-se de uma srie de seqelas.
A respeito de tais afirmaes poderemos encontrar
comprovaes em textos tericos do MPLA (Movimento Popular de
Libertao de Angola) e tambm na fala da personagem Domingos da
Luta, em Jornada de frica, de Manuel ALEGRE ( 1989, p. 189), que
ao ensinar um militante negro explica:
... Domingos sem pacincia para responder, est perto de lhe explicar que o inimigo no o branco, a cor da pele no interessa, o inimigo o colonialismo...
Colonialismo no tem cor, mas atitudes. No tem um nome,
mas muitos. Tornar-se independente, para cada uma das colnias
simboliza um momento de separao entre um passado de humilhao, de
desumanizao e um futuro diferente a ser construdo. O pensamento dos
46
colonizados pode ser resumido nas palavras de Ahmed Sku Tur,
primeiro presidente da Guin francesa:
... Preferimos a pobreza na liberdade riqueza na escravido...Temos uma primeira e indiscutvel necessidade: a de nossa dignidade. Ora, no h dignidade sem liberdade. (SERRANO e MUNANGA,1995, p.12).
A independncia deve ser a firme conscincia para pr fim s
barreiras sociais e raciais. E promover a desmitificao da inferioridade
natural dos africanos e o desmantelamento do espectro da superioridade
natural dos brancos.
1.3.3. A conquista colonial
A preocupao da nao portuguesa em se estabelecer fora
de suas fronteiras territoriais foi sempre uma constante na histria de
Portugal. Havia uma crena de que ao se fortalecer fora do continente
atravs da ampliao de domnios o pas estaria poderoso entre os reinos
do continente. J encontramos textos literrios que nos evidenciam essa
tendncia, desde os primeiros momentos da expanso martima. Assim,
nos versos camonianos que j nos mostravam a clareza de idias do autor
em questo. Tais idias podem ser vistas nos versos que a seguir citamos:
Quer do tempo tenhais vencido as leis
47
Que tudo, enfim, venais co tempo armado, Mais vencer na Ptria, desarmado, Os monstros e as quimeras que venceis (CAMES, 1968, P. 247)
A verdadeira colonizao da frica e, especialmente de
Angola, objeto de nosso estudo, desenvolveu-se a partir segunda metade
do sculo XIX at meados do sculo XX. Foi uma ao consciente por
parte dos pases europeus colonizadores que visavam apropriao das
terras, dos recursos humanos e naturais dos povos colonizados com a
finalidade de utiliz-los para o desenvolvimento das metrpoles. Tratou-
se de um sistema de explorao econmica e de dominao poltica e
cultural.
A conquista dos povos se deu atravs das diferenas
existentes entre os colonizadores e colonizados. No vemos como afirmar
superioridade de povos to distintos em todos os aspectos. No resta a
menor dvida de que os europeus, de acordo com sua tradio
expansionista, haviam desenvolvido uma tecnologia adequada a seus
ideais. Essa tecnologia levou-os grande aventura de descobrir outros
povos e, evidente, de subjug-los. Como prprio do ser humano o
hbito de comparar, classificar e hierarquizar, as diferenas tecnolgicas
existentes entre invasores e invadidos passaram a significar superioridade
48
de um e inferioridade do outro. A supremacia se faz pelas armas, pela
fora, e a literatura nos comprova:
Acenderam-se as armas pela noite a dentro. Quem rebenta? Quem morre ? Quem vive? Quem berra? H um vento de lamento nos lamentos do vento. Metralhadoras cantam a cano da guerra. No sei se riam se choravam se gritavam eu no sei que palavras se diziam. Esto ali esto ali. E disparavam. E de sbito um berro. E de sbito um estrondo. E no sei que diziam: se choravam se riam. Esto ali esto ali. E disparavam. s onze da manh entre Quipedro e Nambuangongo (
ALEGRE, 1989, P. 152/154)
Em conseqncia disso, verificamos que o desequilbrio
existente entre colonizadores e colonizados era gritante, mas mesmo
assim um engano se afirmar que a colonizao se fez em um clima de
facilidade para os conquistadores e de uma reao de impotncia por
parte dos colonizados. A resistncia, embora caracterizada pelo
desequilbrio, foi geral em toda a frica. Foram registradas, no continente
africano, guerras de resistncia organizada que teriam durado de trs a
trinta anos. Esses movimentos de resistncia foram esmagados pelo
aparato blico do invasor ocidental. Na frica Central e Meridional os
colonizadores encontraram um povo com bases culturais e sociais ainda
49
flutuantes, e que se encontravam em guerra de dominao uns contra
os outros, para afirmar e defender as fronteiras dos respectivos territrios.
O conquistador utilizou-se de uma velha estratgia de guerra
baseada no dividir para dominar. Assinou tratados de amizade e de
protetorados com alguns chefes, reis ou imperadores tradicionais,
fornecendo-lhes armas e munies em prejuzo de outros. Essa poltica de
diviso praticada pelos europeus enfraqueceu os africanos e facilitou a
ocupao colonial. Na realidade no houve lutas populares nem alianas
de todos os Estados africanos contra a invaso. Houve apenas resistncia
individual de alguns Estados sob comando de dirigentes fortes que
tentaram defender seus territrios e poderes, mas importante salientar
que no passaram de reaes isoladas que foram facilmente debeladas
pelos europeus.
1.3.4. A realidade espiritual e material do colonizado
Pode-se avaliar o sistema colonial por dois ngulos: o
negativo, em que se encara o colonialismo apenas como sistema para
servir aos interesses das metrpoles, e um outro positivo, em que se
constata que os governos coloniais trouxeram muitos benefcios aos
50
colonizados. A averiguao do ponto de vista positivo nos leva a
verificar que realmente foram construdas ferrovias, hospitais, estradas e
escolas, mas a soma de tais benefcios extremamente insignificante
diante da explorao, humilhao e a desumanizao por que passaram os
povos que hipoteticamente recebiam tais benefcios.
O cotidiano da colnia era formado de mundos separados em
todos os sentidos. Pode-se at afirmar que os progressos obtidos pela
tecnologia do colonizador, na verdade, s foram realizados por
necessidade dos prprios colonizadores habituados a uma realidade
diferente junto aos povos conquistados. Os nativos pouco ou nada
desfrutavam das benesses. Os conquistadores viviam em bairros
selecionados, possuam atendimento educacional e de sade, inexistentes
para os povos conquistados. Suas moradias eram protegidas dos bairros
segregados dos colonizados, pelas caractersticas topogrficas do solo
urbano. Os primeiros tinham conforto incomparvelmente superior aos
bairros indgenas ou das favelas da periferia das cidades. E dessa forma
viviam uma vida que nada se assemelhava dos colonizados. E os
nativos, onde viviam? Responde-nos Manuel ALEGRE (1989, p. 38) em
Jornada de frica:
... E os pretos?
51
-esto nos musseques. A esta hora no se atrevem. E onde so os musseques? volta - o Condutor faz um gesto largo com a mo esquerda. (ALEGRE, 1989, p.38)
Aps quinhentos anos de colonizao, os portugueses
deixaram em suas colnias um percentual superior a 70% da populao
analfabeta. Onde ficaram ento as escolas construdas para benefcio da
populao local? Isto sem contar a destruio de toda a infraestrutura,
promovida pelos colonizadores antes de abandonarem definitivamente as
colnias. Sem nos estendermos, evidente, ao grande ndice de
mortalidade infantil, subnutrio e misria em que sempre viveu a
populao dominada.
1.4. Descolonizao: um ato de luta consciente
necessrio estabelecer que o primeiro contato existente
entre colonizador e colonizado se d atravs de uma relao de ignorncia
da cultura do Outro e, antes de tudo, trava-se uma relao marcada pelo
medo. O desejo de dominar e no de conhecer distancia os povos. Todas
as armas sero usadas para efetivar a dominao. Armas que matam,
52
mutilam e ferem fisicamente, mas tambm armas que atingem de
forma mais violenta ao minarem as razes, as foras e crenas culturais.
A tomada de conscincia dos povos colonizados em relao
aos processos de expropriao, de humilhao e desumanizao que lhes
foram impostos atravs da fora, desencadeou os movimentos de revolta e
finalmente de rompimento com o sistema colonial.
Na viso de algumas pessoas que no se preocupam em fazer
uma anlise cuidadosa da realidade histrica colonial, houve uma vontade
deliberada das potncias coloniais de abrir mo de seus direitos
adquiridos, ou seja, afastarem-se de suas colnias entregando-as aos
nativos por livre iniciativa. Se assim fosse, as independncias no teriam
sido conquistadas, mas concedidas. Trata-se de um engano bastante
grande, j que a histria nos mostra a existncia de lutas violentas e
trgicas na trajetria da descolonizao. Deve-se o quanto antes, pelo
bem da verdade, substituir a irreal viso eurocntrica da descolonizao
por uma viso africana, mais brutal, mas fiel aos acontecimentos
histricos. Das mais diversas formas, muitos autores registram fatos que
marcaram essa violenta guerra, Assim:
a cadeia de So Paulo, diz o Condutor. Foi aqui o ataque de 4 de fevereiro. Se tinham ido aos quartis estvamos feitos. S havia guarnio normal, podiam ter tomado conta de Luanda.
53
Vieram s centenas, meu alferes, nem queira saber, diz-se que estavam drogados. Traziam amuletos para que as balas dos brancos no lhes fizessem mal, atacavam com canhangulos e catanas, trepavam pelos muros e caam ao p do porto. Foi preciso varr-los metralhadora, o fim da macacada. Alguns levavam cinco ou seis tiros e ainda vinham golpear as portas catanada, uma coisa do carago, parecia bruxedo, os filhos da puta estavam convencidos que no morriam e no morriam mesmo, era preciso acabar com eles rajada, mas s vezes nem assim, torciam-se no cho, deitavam espuma pela boca, aquilo era raiva, cuspiam os bofes mas tinham mais de sete flegos. Um deles parecia morto, vai um guarda e aproxima-se, nisto o gajo atira-se a ele dentada e arranca-lhe metade de uma orelha. Alapou-se ao homem com tanta gana que foi preciso cortar-lhe as mos. (ALEGRE, 1989,p.45)
H a violncia de quem luta por uma crena, por uma
verdade que est dentro de cada um. A verdade que constri uma nao.
A descolonizao produto de movimentos nacionais que
cercaram o colonialismo, obrigando-o a abrir mo daquilo que tinha
tomado pela fora. Essas lutas receberam apoio e solidariedade de outros
povos, movimentos e idias.
1.4.1. Angola, nacionalismo e revoluo
Angola, como toda a frica, teve sufocados seus valores
culturais seculares. O tribalismo, distinto de regio para regio, cria
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pases heterogneos e de quase impossvel aliana. Dessa forma as
lutas de independncia tornam-se mais acirradas, com uma forte presena
de auto-afirmao. Os pressupostos nacionalistas dos povos africanos e
diretamente nas literaturas africanas sujeitas a situaes coloniais de
grande opresso, baseiam-se em valores mais fortes do que os
reivindicados, em muitos pases, por intelectuais e ativistas arrebatados de
patriotismo. Essas lutas patriticas clamam contra ditaduras, buscam
implantar sistemas de governo baseados em ideologias polticas definidas.
Todas as formas de reao so vlidas: desde a luta armada at atitudes
que caracterizem uma forma de luta, ao transformar a maneira de pensar,
de agir e de ser dos povos do pas. Em Jornada de frica, Manuel
ALEGRE (1989, p. 12-13) nos apresenta uma reao consciente feita
atravs da educao:
... O Dr. Ribeiro, republicano histrico, acreditava na
instruo. Todos os anos tomava a seu cargo dois ou
trs rapazes sem posses, aprovados com distino no
exame da 4a. srie. Era, dizia, uma forma concreta de
combater Salazar.
... Explicam que, de uma maneira geral, os
movimentos nacionalistas nasceram no quadro do
regime fascista instalado em Portugal h mais de
trinta anos...
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A oposio tem uma ideologia definida e um inimigo
declarado, que deve ser exterminado. Segundo lvaro CUNHAL (1976,
p. 20):
durante dezenas de anos geraes e geraes de portugueses e portuguesas deram tudo de si prprios - muitos deram a vida - na luta contra a ditadura fascista e pela liberdade. Foi uma luta herica dos trabalhadores, do povo, dos comunistas e outros democratas. No contra fantasmas, mas contra o fascismo na sua expresso portuguesa. Antifascistas se chamaram e antifascistas foram.
Esses rebeldes diferem dos lutadores africanos, pois no
necessitam afirmar-se como povo de valores culturais distintos do poder
dominador. O nacionalismo nos pases africanos transcende a dimenso
cultural, possui reivindicaes mais abrangentes, como uma forma de
autonomia, de originalidade e de oposio s influncias estrangeiras.
Torna-se verdadeira doutrina poltica que atribui Nao um valor
absoluto, valorizando tudo que lhe prprio.
Desde o sculo passado, com o advento da etnologia como
cincia, afirma-se que o domnio dos colonizadores sobre os povos
colonizados se deu antes de tudo pela fora, pelo uso arbitrrio da
violncia, pela imposio de uma ideologia e nunca pela supremacia
cultural do povo dominador. O colonizador desejava a dominao e no
56
possua nenhum desejo de conhecer e compreender o povo
desconhecido que tinha diante de si. O povo conquistado deveria ser
cpia do conquistador. Deveria ser evitado o pluralismo de toda espcie,
principalmente o religioso e o lingstico. Esses dois valores marcam a
autonomia e independncia de um povo. A unidade a nica medida que
conta. E, nos diz Jacques DERRIDA (1972, p. 234), que O signo e o
nome da divindade tm o mesmo tempo e o mesmo lugar de nascimento.
Isso nos leva a entender que os sistemas semiticos so a
fonte bsica para a transmisso da autonomia de um povo, e a divindade
a sustentao ideolgica dos valores culturais. Impor tal unidade e foi a
nica maneira de se realizar o poder colonizador.
Falar, escrever, tem uma significao clara, como nos afirma
Silviano Santiago (1978, p. 25). Ser falar contra, escrever contra,
buscando cada qual sua linguagem e estilo, mas sempre a salientar a
oposio fundamental.
As colnias portuguesas em frica tiveram suas lutas de
libertao muito antes do ardor da guerra armada, que se deu no perodo
de 1961 a 1975. Muitas formas de resistncia foram empregadas pelos
povos conquistados desde o sculo XVI. Um importante instrumento de
luta contra o colonialismo portugus foi a literatura politicamente
engajada em movimentos de oposio. Trata-se da produo de
57
importante literatura de protesto e denncia realizada desde o incio
do sculo XX por autores autctones, principalmente jornais nativistas,
tanto em Angola como em Moambique. Essas obras eram divulgadas
com muita dificuldade dentro das colnias, evidentemente para uma parte
da populao j alfabetizada, e era tambm transmitida oralmente nas
comunidades. A publicao e divulgao era feita em pases estrangeiros,
como Brasil e Frana. E embora fossem escritos dentro de Portugal, j
encontravam uma violenta censura, por parte do regime portugus que,
contrrio descolonizao, tentava impedir que idias libertrias viessem
minar a prpria realidade do sistema ditatorial vigente na metrpole. A
ditadura salazarista mantinha um regime policial violento e se sustentava
ideologicamente numa imagem de grandiosidade mentirosa, que mantinha
a maior parte da populao inebriada pela imagem de um Portugal
prspero e poderoso. O governo portugus via nas colnias o sustentculo
de seus ideais fascistas que vinham gradativamente sendo minados por
dentro, por suas prprias atitudes de violncia. Geraes inteiras passam
a viver em um mundo clandestino, em um mundo de sombras, para
poderem lutar por seus lderes, quase sempre presos ou foragidos. Muitos
se refugiam em pases estrangeiros. Paris torna-se a capital da revoluo e
dos revolucionrios, no importa de que bandeira ou de que continente.
Na Frana poderiam reunir-se, organizar-se e at conhecerem-se em suas
58
identidades e diferenas. Poderiam, em solo estrangeiro, criar seu
conceito de nao e ptria, e assim o fizeram:
... Ningum sabia ao certo quem era quem, quase todos usavam pseudnimos, alguns at sem necessidade... naquele tempo em que tudo se misturava, a revoluo, o amor, o mistrio, a aventura, por vezes a morte..... ... Desta forma reagiam os Espanhis, de outra os Portugueses ou Latinos, Bascos ou Palestinos... ... incapazes, como eu, de se despojarem da individualidade prpria e do impulso libertrio... (ALEGRE, 1989, p.35)
A Frana, embora colonialista, recebia diretrizes polticas de
um governo legtimo, e dessa forma acolhia com liberdade os
combatentes de todas as naes:
... o Exrcito francs recebia diretrizes polticas de um governo legtimo, actuando, portanto, em funo de uma escolha da nao francesa democraticamente expressa. Em segundo lugar, na prpria Arglia, apesar da guerra e das limitaes dela decorrentes, a liberdade poltica nunca foi totalmente suprimida. Aqui, como na Metrpole, a situao no propriamente essa, como toda a gente sabe ( ALEGRE,1989, p. 65)
1.4.2. A crise da ditadura: uma situao revolucionria
59
A situao interna de Portugal era extremamente
repressiva e, embora estejamos preocupados em enfocar a situao
vigente no regime salazarista, podemos, atravs de nossas pesquisas,
encontrar exemplos de represso em vrios momentos da histria de
Portugal. Almeida Garret, entre outros autores, por exemplo, j registra
tal tendncia dominadora que levou muitos patriotas a procurar abrigo
solitrio entre povos estrangeiros:
... Solitrio No meio das cidades, das campinas Vai aps de esperana mal segura que deixou amigos, pas e ptria Para fugir ao aoite da injustia. (ALEGRE,1989, p.183)
Os anos se passavam e a ditadura fascista vivia em seu
interior inmeras contradies, que corroam as bases de apoio social,
poltico e militar. Na dcada de 60, a ditadura entrou numa crise geral que
se foi agravando at situao revolucionria que proporcionou a
insurreio. Com o agravamento da situao interna, a maior explorao
das classes trabalhadoras e o rpido empobrecimento da classe mdia, foi
reduzindo-se o campo de apoio da ditadura. Alargou-se dessa forma a
base de apoio das classes revolucionrias, o que ocorre principalmente
entre a juventude.
A guerra colonial, injusta como todas, sacrificou a vida de
milhares de jovens, enlutando famlias e acumulando encargos
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insuportveis para um pas pequeno e pobre como Portugal. Ao lado
disso vamos encontrar as milcias portuguesas sofrendo constantes
revezes nos campos de batalha.
A ditadura portuguesa, moldada com todas as caractersticas
do fascismo italiano, tem em Mussolini o lder de Salazar. Para sua
sustentao perseguiu, fez prender, torturar, com freqncia at morte,
condenou por vinte ou mais anos de priso e mesmo assassinou muitos
dos que se opunham ditadura. Criou uma polcia poltica toda poderosa,
a PIDE; uma milcia fascista, a Legio Portuguesa; uma organizao
paramilitar da juventude, a Mocidade Portuguesa. E, nos rituais
polticos, copiou as marcas do fascismo. lvaro CUNHAL (1994, p. 28 ),
em sua obra A Revoluo Portuguesa, o passado e o futuro, nos relata a
existncia de uma foto tpica de Marcelo Caetano, quando comissrio
Nacional da Juventude Portuguesa, com uma farda e bon de tipo militar
e brao estendido boa maneira fascista: Mais que um retrato de um
homem o retrato de uma poca ( CUNHAL, 1994, p. 28).
Durante dezenas de anos, muitos portugueses deram sua vida
contra a ditadura e em favor da liberdade. A priso tirou dias promissores
de muitos, a clandestinidade acolheu outros e o exlio abrigou um grande
nmero. uma vida de sacrifcios, assim definida por Manuel ALEGRE:
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Solitrio por entre a gente eu vi meu pas. Era um perfil de sal e abril. Era um puro pas azul e proletrio. Annimo passava. E era Portugal que passava por entre a gente e solitrio nas ruas de Paris ......... Minha ptria sem nada sem nada despejada nas ruas de Paris (ALEGRE,1989, p.185.)
Registra-se assim a solido do exilado que v em torno de si
as razes perdidas e que sonha com a volta ao que de seu direito . Sente-
se alheio ao real, pois o real est longe, na ptria que lhe foi tirada:
ramos vinte ou trinta nas margens do Sena. E os olhos iam com as guas. Procuravam o Tejo nas guas do Sena procuravam salgueiros nas margens do vento e esse pas das lgrimas e aldeias pousadas nas colinas do crepsculo. Procuravam o mar. ramos vinte ou trinta nas margens do Sena sentados ausentes. ramos vinte ou trinta nas margens do Sena onde o vento cantava uma cano estrangeira. E os olhos iam com as guas. (ALEGRE,1989, p. 186-87)
fundamental a compreenso do clima de opresso vivido
pelo povo dentro de seu prprio territrio. As pessoas procuram tomar
posies em relao problemtica interna, mas no podem fechar os
62
olhos para os lderes banidos e presos que se encontram fora do pas.
No podem ficar indiferentes diante das centenas de jovens que so
obrigados a viver na clandestinidade, expurgados da realidade de seu
povo e de sua gerao.
Para tentar conseguir apoio da populao, o governo apela
para antigas crenas do povo portugus. Apela para o mito de bravura e
coragem que transformou o pequeno pas insular em imprio colonialista.
Apela para a memria coletiva, feita de imagens irreais mas convincentes
para a grande maioria da populao que deseja acreditar nos mitos da
portugalidade, to prsperos de imagens utpicas e quimricas. D.
Sebastio, que voltar para inaugurar o quinto imprio, ter em Salazar
seu substituto, e no regime fascista do ditador, a retomada de antigas
promessas. E assim se v diante do sentimento da realidade que s traz
angstia e que o faz sentir a frustrao do engano:
Porque tiveste o mar nada tiveste. A tua glria foi teu mal. No te percas buscando o que perdeste: procura Portugal em Portugal (ALEGRE,1989, p. 189)
Muitas foram as razes ideolgicas que vieram justificar a
dominao e os combates. A misso civilizadora que encobria as atitudes
colonialistas no funciona com a eficcia esperada e rapidamente comea
63
a no convencer a populao portuguesa, que v a grande mentira
com a qual tem convivido durante todo o tempo e constata que a
sociedade colonial feita de valores antagnicos fundamentais. De um
lado o povo peninsular, que vive seus problemas internos e tem de
encarar a opresso e os problemas da decorrentes, como autores que
so censurados, escolas cerceadas em seu desenvolvimento cientfico,
professores proibidos de lecionar e alunos impedidos de desenvolver-se
no mesmo nvel que seus contemporneos europeus. De outro, uma guerra
que aniquila a dignidade de uma juventude obrigada a cumprir uma
misso na qual no acredita, mesmo diante de todo o trabalho publicitrio
exercido pelo regime. Nesse clima de represso que a populao tem de
encarar a dor de ver seus filhos partindo para uma guerra com o risco de
no voltarem, ou se o fizerem, muitas vezes mutilados fsica e
mentalmente:
.... O Condutor apanha-o a meio da Avenida da Restaurao, diz-lhe que passou a tarde de ontem a procur-lo h um recado para ele, que raio ser, o condutor no sabe, quem sabe o oficial de dia. Jorge Albuquerque chegou do Norte ferido, pediu para te avisarem. grave ? Amputaram-lhe a perna esquerda. ........ Entra Sebastio no hospital e v: sentado a um canto um soldado maneta segura um caderno com o coto e tenta escrever com a mo esquerda. ................
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Faltam braos, mos, pernas, ps. O mal estar cresce por dentro de Sebastio, tem a sensao de que o acusam por inteiro. Passa um numa cadeira de rodas empurrada por um enfermeiro. No lhe falta nada mas no mexe, nunca mais mexer. Coxos, manetas, paraplgicos. O resto ficou nas picadas. Angola nossa, venham ver, h bocados de carne por a, so pedaos de Portugal florindo algures no mato, sangue e merda.... Para Angola e em fora, braos, pernas, mos. (ALEGRE,1989, 167-69)
Ao lado desta realidade ainda temos um pas que no v o
progresso anunciado e no consegue viver com tranqilidade econmica,
j que o pouco que tirado das colnias investido em campanhas
blicas extremamente dispendiosas. E assim pode-se ouvir o clamor de
todo um povo nos versos de Manuel ALEGRE ( 1989, p. 188):
Em cho estrangeiro a dor por ministrio. Ptria exportada: Imprio novo ou cemitrio? Imprio da misria o quinto imprio. E o estrangeiro meu povo.
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2. Interrogar o tempo, decifrar os sinais Ao estudar a produo literria de Manuel Alegre,
encontramos um poema que consideramos fundamental na anlise do
imaginrio do povo portugus e da necessidade de se superar essas
crenas para se criar uma nova nao. O que consideramos uma releitura
do mito em Jornada de frica, tambm reafirmado em outros textos. O
poema citado a seguir no deixa dvida quanto a sua viso e inteno de
mensagem a ser transmitida. Dessa forma o citamos como mais uma
documentao para confirmar a leitura que fazemos do texto, Jornada de
frica de Manuel ALEGRE. Assim:
Explicao de Alccer Quibir Quantos desastres dentro de um desastre. Alccer Quibir foi sempre passado por dentro do presente meu pas que nunca te encontraste. Senhor no mar e em terra dependente conquistado de cada vez que conquistaste Alccer Quibir foi sempre ires perder-te em cada ndia que ganhaste. Meu cigano do mar. ( E o mar foram enganos.) Alccer Quibir so as armas vencidas so os ombros vergados e as horas perdidas quinhentos anos dentro destes anos. Alccer estar aqui a ver morrer o Sol em cada tarde. E este riso que chora. E esta sombra que ri. Este fantasma sobre a nossa idade.
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E esta paz como guerra. Este plantar o po que os outros comem. Este Alentejo de desiluso em cada homem. Estes barcos que partem com homens e armas no j para colher alm do mar a terra mas para levar alm do mar a guerra. E naufragar de novo. E de novo perder alm do mar o que se deixa em terra. (Porque o mais espuma.) Alccer Quibir ir morrer alm do mar por coisa nenhuma. Alccer Quibir s tu - Lisboa ajoelhada nas armas que em teus barcos vo partir. Lisboa - Alccer Quibir por tuas prprias armas desarmada. Lisboa ajoelhada nestas armas que em longes terras vo perder-te. E vo nos barcos que te levam as naus fantasmas com que se foi el-rei Sebastio. Alccer Quibir s tu Lisboa. E h uma rosa de sangue no branco areal. H um tempo parado no tempo que voa.
Porque um fantasma rei de Portugal.( ALEGRE, 1989, p. 159/160)
E, evidenciamos que Portugal precisa se reerguer acima de
suas tradies e crenas para poder existir na justia. S a partir dessa
certeza que poder se respeitar enquanto nao. Novas jornadas se
faro necessrias e se completaro, nada poder ficar em suspenso.
Essa nova jornada, a Jornada de frica, nos levar por um
caminho em busca do destino de dois povos que se unem e se tornam
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individuais e coletivos, autnomos e dependentes. A epopia do
nascimento de uma nao que se libertar de outra, que descobrir, sem
dvida, seu caminho providencial.
O jogo das antteses tornar - se - uma constante em todos os
momentos dessa narrativa de Manuel Alegre. Uma narrativa herica e anti
herica com base na histria de um povo que ser subvertido em suas
bases. Todos os valores progridem da unidade para a diversidade e de
uma tentativa de se recuperar os mitos presentes em sua histria.
Recuperar esses mitos ser descobrir o quanto so prisioneiros dessas
crenas e que talvez matar o mito seja a forma de reconstruo. Para
Manuel Alegre (1989, p. 231):
... Talvez o Quinto Imprio seja afinal o fim de todos os imprios. O Grande Imprio do Avesso, o Anti-Imprio. (...) Talvez tenhamos de no ser para podermos voltar a ser. E em outro momento nos diz: ... Tropas do Quinto Imprio, embarcam na Mensagem e no nOs Lusadas, a cada tempo o seu cantor e o seu profeta, j foi a hora da grandeza, esta a hora absurda (ALEGRE,1989, p.231)
A memria de um mundo distante, e ao mesmo tempo to
palpvel na vida da nao, afasta todo o pas do presente que deve ser
transformado para que exista em sua fora de vida e para que esse povo
exista novamente como uma nao de verdade. A estagnao deve ser
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substituda pela ao consciente que nascer do conhecimento da
realidade.
Os mitos recuperados criaro um mundo de simultaneidades
pois os antimitos que estaro vivos e sero a histria do presente.
Alccer Quibir ser revivida nos tipos humanos que vo se
apresentando no decorrer dos captulos, e o perfil de um povo vai sendo
delineado. Alccer transforma-se em Angola e os guerreiros de farda
amarela, com a mais amarela de todas as fardas, desembarcam, no de
uma nau, mas de um avio.
.....partem com homens e armas no j para colher alm do mar a terra mas para levar alm do mar a guerra. (ALEGRE,1989, p. 160)
Partem, para ... o bafo quente e hmido da noite. O ar de
frica, no ms de junho, ms de partidas. Junho o ms do embarque,
pode ser o da glria ou o do desastre. (1989, p. 159)
... E naufragar de novo. E de novo perder Alm do mar o que se deixa em terra. ( Porque o mais espuma.) Alccer Quibir ir morrer alm do mar por coisa nenhuma.
E sentir-se parte da Histria Trgico - Martima.
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A face do povo portugus ser mostrada pois ele deseja
conhecer-se, deseja se ver depois de sculos, livre da imagem estilhaada
em um espelho distorcido pela memria e pelo tempo. Este povo no sabe
que caminho seguir para encontrar seu eu. Talvez esse eu esteja no outro,
nas dores e sofrimentos do outro, em uma cultura alheia. Olha de frente
esse outro e percebe que existe uma grande identidade nessa
desigualdade. A liberdade de um representar a libertao do outro.
Assim, a morte de um ser a ressurreio do outro ou de ambos. Os
destinos esto ligados e o rompimento representar um renascimento
dentro da autenticidade que dever surgir pela primeira vez.
A teoria que conceitua o heri relaciona-se diretamente com
uma concepo humana da narrativa. de se lembrar que o texto
narrativo existe e se desenvolve em funo de uma figura central, um
protagonista que se destaca das restantes figuras que povoam o enredo.
Todas as categorias se organizam em funo do heri, cuja posio na
ao, no tempo e no espao revelam ser ele o centro de toda a narrativa.
Se tomarmos como base as mais diversas correntes de estudos sobre a
narrativa, estaremos sempre diante da importncia do heri . Ao
consultarmos o Dicionrio de Narratologia, verificamos o estudo em que
o Renascimento e o Romantismo constituem perodos privilegiados para a
caracterizao do heri narrativo.
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No Renascimento, marcado pela fora cultural da
Antigidade Clssica, o heri corporiza a capacidade de afirmao do
Homem, na luta contra a adversidade dos deuses e dos elementos. J no
Romantismo, estamos diante do heri num cenrio de ideais e aspectos
sociais e histricos diferentes. o indivduo isolado e em conflito com a
sociedade, seja no nvel individual ou coletivo. As normas da vida social
inviabilizam a realizao dos ideais incorporados pelo heri. nesse
momento que a crise toma corpo e cresce gerando a angstia e
instabilidade que marcaro o heri romanesco. Consideramos importante
irmos ao estudo de G. LUKCS (1975, p. 42), e verificarmos que para o
autor, na epopia est em destaque o destino da comunidade;
estabelecido um sistema de valores fechados ao se criar um todo
demasiadamente orgnico e impedir que um s elemento se isole para
descobrir sua personalidade. Para Luckcs, a psicologia do heri
demonaca e o contedo do romance a histria dessa alma que vai
seguindo pelo mundo para conhecer-se. S atravs dos reveses que
descobrir sua essncia fundamental. aqui que faremos um
relacionamento direto entre a obra pica clssica e o romance e seus
valores. Se, como foi dito, na epopia a preocupao maior o destino
coletivo, no romance tambm a preocupao no ser a anlise do
caminhar individual de um ser, mas esse ser como reflexo de uma
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comunidade e a necessidade de lutar para se chegar transformao
necessria.
Se o heri pico no jamais um indivduo, o objeto de sua
obra no ser o destino pessoal, mas o de uma comunidade. A narrativa
Jornada de frica, de Manuel ALEGRE, possui uma caracterstica pica
pois a problemtica de Sebastio no s a do indivduo. No so
apenas as angstias e dvidas do alferes que vai deixar seu pas, famlia e
amores para se jogar em uma guerra que no entende ou melhor, entende
e repudia. Em suas angstias vo incorporadas as do prprio povo
portugus, oprimido pela ditadura e pela penria econmica e ideolgica
em que vive. Sabe-se que:
...os movimentos nacionalistas nasceram no quadro do regime fascista instalado em Portugal h mais de trinta anos. Nunca puderam agir luz do dia,(...) tendo sido obrigados clandestinidade desde o princpio, sujeitos a uma dupla opresso: a que resulta do sistema colonial e a que lhes imposta pela natureza do regime portugus. ( grifo nosso) (ALEGRE,1989, p. 13)
Sebastio, o alferes, a juventude portuguesa numa grita de
liberdade e de mudanas que se fazem urgentes na vida da nao. O ser a
funcionar como um smbolo que nos coloca diante de dois homnimos e
dois tempos. Sebastio, o contemporneo alferes, que partilha a
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saudade e a inquietao do que no h(ALEGRE,1989, p. 20) e D.
Sebastio, o mtico rei desaparecido na batalha de Alccer Quibir e que
levou consigo as ambies de poder de toda uma nao. E assim:
(...) Na rosa de sangue das armas vencidas que caem no branco do branco areal sob as armas que ferem mais do que um rei quem assim cai. mais do que um cavalo branco: quem assim cai vencido Portugal. (ALEGRE,1989,p. 147)
Os destinos comearo a se misturar em um bailado
simblico e repleto de coincidncias. Por outro lado o acontecimento
apenas se reveste de importncia significativa por estar relacionado com a
felicidade ou infelicidade de um grande complexo humano. O
acontecimento so duas guerras: Uma interna, a ditadura salazarista, e
outra externa, a guerra cruel que Salazar sustenta em Angola. O regime
destri para no se deixar destruir, mata para acreditar que no morrer. E
em busca do poder eterno esconde-se da verdade:
... Deixe andar, um sacrifcio necessrio, s assim poderemos contar com o apoio do pas e do ocidente. ... O Chefe quer assim, talvez tenha razo, por c ningum se preocupa com o destino da Provncia, talvez o sangue acorde o pas, talvez depois seja mais mandar