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dissertacao Alcione

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  • UFSM

    Dissertao de Mestrado

    HISTRIA E MITO

    EM CADA HOMEM UMA RAA,

    DE MIA COUTO

    Alcione Manzoni Bidinoto

    PPGL

    Santa Mar ia, RS, Brasil

    2004

  • HISTRIA E MITO

    EM CADA HOMEM UMA RAA,

    DE MIA COUTO

    por

    Alcione Manzoni Bidinoto

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Letras, rea de

    Concentrao em Estudos Literrios, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito

    parcial para a obteno do grau de Mestre em Letras.

    PPGL

    Santa Mar ia, RS, Brasil

    2004

  • i

    Universidade Federal de Santa Mar ia Centro de Ar tes e Letras

    Programa de Ps-Graduao em Letras

    A Comisso Examinadora, abaixo assinada,

    aprova a Dissertao de Mestrado

    HISTRIA E MITO EM CADA HOMEM UMA RAA,

    DE MIA COUTO

    elaborada por Alcione Manzoni Bidinoto

    como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Letras

    COMISSO EXAMINADORA:

    Slvia Carneiro Lobato Paraense (Presidente/Orientadora)

    Ivete Lara Camargos Walty

    Tania Celestino de Macdo

    Santa Maria, 03 de setembro de 2004

  • ii

    Maheli ,

    aos meus pais,

    Nona.

  • ii i

    Agradeo

    professora Slvia Paraense,

    pela dedicao e pelo estmulo na orientao deste trabalho;

    ao Programa de Ps-Graduao em Letras da UFSM,

    pelas oportunidades concedidas;

    CAPES,

    pela bolsa que possibilit ou a realizao deste mestrado.

  • iv

    SUMRIO

    RESUMO.....................................................................................................vi

    ABSTRACT................................................................................................vii

    RSUM...................................................................................................viii

    INTRODUO.............................................................................................1

    1 LEITURAS DA OBRA DE MIA COUTO .......................................5 1.1 Novidades da linguagem ....................................................................7 1.2 Anlises comparatistas .....................................................................12 1.3 Utopia, sonho, mito e histria ..........................................................16 1.4 Algumas contribuies da crtica......................................................20

    2 HISTRIA E MITO..........................................................................22 2.1 Relaes entre histria e mito...........................................................22 2.2 Situao colonial e descolonizao...................................................24 2.2.1 Motivao realista.............................................................................30 2.3 Transfigurao do real e transformao pela palavra .......................33 2.3.1 Inslito e categorias literrias ...........................................................36 2.4 Identidade cultural.............................................................................49

    3 AMBIVALNCIA DA FICO......................................................52 3.1 A Rosa Caramela...........................................................................52 3.1.1 Desenredando a trama ......................................................................52 3.1.2 A condio mineral...........................................................................56

  • v

    3.1.3 Rituais de vida e morte .....................................................................58 3.2 O Apocalipse privado do tio Gegu .............................................59 3.2.1 O histrico e o mtico........................................................................59 3.2.2 Motivao realista e humor ..............................................................64 3.2.3 Escatologia e cosmogonia ................................................................66 3.3 O embondeiro que sonhava pssaros ............................................69 3.3.1 Dois planos da leitura da trama.........................................................69 3.3.2 Linguagem criadora ..........................................................................75 3.3.3 Dialtica colonizador x colonizado ..................................................79 3.4 Os mastros do Paralm ..................................................................82 3.4.1 Metamorfoses da palavra..................................................................82 3.4.2 Ambigidades do espao..................................................................84 3.4.3 Ambigidades das personagens........................................................87 3.4.4 Mito e histria...................................................................................89 3.5 Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu.............................94 3.5.1 O iterativo natural.............................................................................94 3.5.2 O singular inslito.............................................................................98 3.6 Recorrncias e singularidades.........................................................102 4 TTICAS DE RESISTNCIA .....................................................106 4.1 Possibili dades.................................................................................108 4.2 Sobrevivncia.................................................................................111 4.3 Astcias e tticas............................................................................113 4.4 Vitrias momentneas....................................................................117 4.5 Narrao ttica................................................................................120 4.6 Astcias da linguagem....................................................................124 CONCLUSO..........................................................................................132 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................138

  • vi

    RESUMO

    Dissertao de Mestrado

    Programa de Ps-Graduao em Letras

    Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil

    HISTRIA E MITO EM CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO

    AUTOR: ALCIONE MANZONI BIDINOTO

    ORIENTADOR(A): SLVIA CARNEIRO LOBATO PARAENSE

    Data e Local da Defesa: Santa Maria, 03 de setembro de 2004

    O objeto deste trabalho so os contos de Cada homem uma raa, do escritor

    moambicano Mia Couto, cuja obra marcada pela confluncia de elementos dspares.

    Suas narrativas apresentam, de uma parte, um fundo histrico, em que figuram

    episdios relacionados independncia e guerra civil moambicana; de outra parte,

    ocorre a presena acentuada de elementos inslitos, relativos ao mito e ao imaginrio.

    Alm disso, existem dois mundos diferentes: o do europeu colonizador e o do africano

    colonizado. Procurou-se descobrir qual o lugar e a funo das dualidades presentes de

    maneira muito marcada nos textos. Para isso, partiu-se de uma considerao dos contos

    a partir do estranhamento provocado pelo seu carter ambivalente . Realizou-se uma

    anlise detalhada das narrativas, e apontou-se uma possibili dade de interpretao, com

    base em teorias que tratam do comportamento das comunidades diante de situaes de

    dominao e opresso. Foi possvel perceber que as formulaes ambivalentes se

    encontram nos trs nveis principais (da narrao, das personagens, da linguagem),

    configurando recursos (semelhantes aos do realismo maravilhoso latino-americano) que

    funcionam como tticas de resistncia cultural. Isso pode ser observado, com relao s

    personagens, nos modos de pensar e agir astuciosos; quanto narrao, na maneira

    como, em uma estrutura narrativa consagrada no Ocidente, so introduzidos elementos

    de outra ordem cultural; no que se refere linguagem, no uso de um instrumento

    outro (a Lngua Portuguesa), ou antes, de um espao alheio, para expressar uma

    condio prpria. Desse modo, a fico de Cada homem uma raa funcionaria como

    um modo de resistncia a um pensamento hegemnico e opressor.

  • vii

    ABSTRACT

    Dissertao de Mestrado

    Programa de Ps-Graduao em Letras

    Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil

    HISTRIA E MITO EM CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO

    (HISTORY AND MYTH IN CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO)

    AUTOR: ALCIONE MANZONI BIDINOTO

    ORIENTADOR(A): SLVIA CARNEIRO LOBATO PARAENSE

    Data e Local da Defesa: Santa Maria, 03 de setembro de 2004

    The object of this work are the tales of Cada homem uma raa,, of

    Mozambican writer Mia Couto, whose prose is marked for the confluence of dissimilar

    components. His narratives show a historical support figuring episodes about the

    independence and the Mozambican civil war; but there is also the strong presence of

    unusual elements concerning the myth and the imaginary. Moreover, there are two

    different worlds: the European colonizers world and the African colonizeds world.

    The objective of this research was to discover the place and the function of the dualiti es

    presents in the texts. We departed of a tales appreciation, considering their double

    aspect . Then, the narratives were analyzed, and a possibilit y of interpretation was

    indicated, with base in theories that discuss the behavior of communities in situations of

    domination and oppression. It was possible to perceive that the double constructions

    are find at the three main levels (narration, characters, language), configuring

    expedients - similar to the magic (or marvelous) realism - that work like tactics of

    cultural resistance. This can be observed in the characters astute way of thinking and

    acting; in the mode like, in a form narrative occidental, elements of another order

    cultural are introduced; in the language, in the use of an instrument other (the

    Portuguese Language) to express a self condition. Then, the fiction of Cada homem

    uma raa should work like a way of resistance to a hegemonic and oppressor thought.

  • viii

    RSUM

    Dissertao de Mestrado

    Programa de Ps-Graduao em Letras

    Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil

    HISTRIA E MITO EM CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO

    (HISTOIRE ET MYTHE EN CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO)

    AUTOR: ALCIONE MANZONI BIDINOTO

    ORIENTADOR(A): SLVIA CARNEIRO LOBATO PARAENSE

    Data e Local da Defesa: Santa Maria, 03 desetembro de 2004

    Lobjet de ce travail sont les contes de Cada homem uma raa, du

    mozambicain Mia Couto, dont loeuvre est marque par la confluence delements

    diffrents. Ses rcits prsentent un fond historique, o ce sont figurs pisodes relatifs

    l indpendance et la guerre civile mozambicaine; mais il existe, aussi, la prsence

    dlments insoli tes, relatifs au mythe et au imaginaire. Par ail leurs, il y a un monde de

    leuropen colonisateur et un autre de lafrican colonis qui se mlangent. On a essay

    de trouver la place et la fonction des ambivalences dans les textes. On a commenc par

    une considration des contes, a partir de ce quon appele leur caractre ambivalent .

    On a analis les narratives, et on a indiqu une possibilit d interprtation base en

    theories qui traitent du comportement des communauts dans des situations de

    domination et oppression. Il a t possible de percevoir que les formulations

    ambivalentes se trouvent dans trois niveaux principaux (narration, personnages,

    langage) configurant ressources (semblables aux du realisme merveil leux americain)

    qui fonctionnent comme tatiques de rsistance culturelle. Cela peut tre observ, par

    rapport aux personnages, dans les modes astucieux de penser et dagir; au niveau de la

    narrration, dans l introduction, dans une forme narrative occidentale, dlments dune

    autre ordre culturelle; en ce qui concerne le langage, dans lusage dun instrument

    autre (la Langue Portugaise), pour expresser une condition particulire. De cette

    faon, la fiction de Cada homem uma raa fonctionnerait come un moyen de

    rsistance une pense hgmonique et opresseuse.

  • INTRODUO

    O presente texto constri-se como uma tentativa de abordagem dos

    contos de Cada homem uma raa1, de Mia Couto, escritor nascido na

    cidade da Beira, Moambique, em 1955. Antnio Emlio Leite Couto

    filho de portugueses emigrados para a frica no comeo da dcada de 50.

    Sua infncia foi vivida entre o bairro de cimento, dos colonos brancos, e o

    de madeira e zinco, dos negros moambicanos. Acrescente-se a essa dupla

    vivncia - entre duas culturas diferentes - os estudos de medicina em

    Loureno Marques, as atividades jornalsticas, a participao na guerra de

    independncia, e a atual condio de bilogo e professor universitrio, e

    tem-se uma perspectiva bastante ampla e diversificada do pas e de sua

    gente.

    No domnio da escrita, encontra-se um aspecto da prosa de Mia

    Couto que a torna interessante, principalmente entre os leitores de

    Literatura Brasileira: o intenso processo de inveno lexical nela operado.

    A norma padro da lngua transgredida, criam-se novas palavras, altera-se

    a sintaxe para exprimir novos sentidos; a Lngua Portuguesa trabalhada

    para se adequar a uma realidade cultural especfica. Devido a esse trabalho

    com a linguagem, tm sido apontadas, pelos crticos, vrias semelhanas

    1 COUTO, Mia. Cada homem uma raa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. (Edio uti li zada neste trabalho)

  • 2

    entre a obra do escritor moambicano e a do brasileiro Joo Guimares

    Rosa.

    Apesar da existncia de um nmero considervel de artigos, ensaios,

    dissertaes e teses voltadas produo literria de Mia Couto, acredita-se

    ser possvel fornecer alguma contribuio crtica dessa produo. Por se

    tratar de uma obra que ainda est sendo construda, as anlises tendem a ser

    mais instveis, ou menos definitivas, que no caso de obras acabadas. Desse

    modo, pertinente que se procure estabelecer mais uma perspectiva de

    leitura da fico de autor to significativo para a literatura de Lngua

    Portuguesa.

    Cada homem uma raa, segundo livro de narrativas curtas de Mia

    Couto, constitudo por onze contos, cuja ao desenvolve-se em

    diferentes momentos histricos, desde os tempos coloniais at os anos

    posteriores independncia do pas. Desperta a ateno, logo em uma

    primeira leitura, o fato de essas narrativas apresentarem, simultaneamente,

    uma feio realista perceptvel na narrao de eventos histricos

    relacionados com a guerra de libertao e com a guerra posterior

    independncia, bem como a situao decorrente dessas lutas e uma outra

    feio em que aparecem acontecimentos inslitos, alm das crenas e mitos

    pertencentes ao imaginrio africano .

    O objetivo deste trabalho compreender a modalidade ficcional e a

    funo desempenhada por essa fico, produzida no entrecruzamento de

    motivos realistas e motivos mticos ou simblicos. Colocam-se, ento, duas

    questes fundamentais para se chegar a essa compreenso: 1) ser possvel

    constatar, tambm nos nveis das personagens e da lngua utili zada, a

    ambivalncia que se observa no nvel da narrao? 2) tero essas

  • 3

    dualidades um papel fundamental na constituio dos sentidos das

    narrativas?

    Esta dissertao divide-se em quatro captulos. O primeiro deles

    centra-se no exame de trabalhos sobre romances e contos de Mia Couto.

    Pretende-se, com isso, proporcionar uma viso geral da crtica que vem

    sendo produzida a respeito das obras desse autor, assim como elencar os

    aspectos mais relevantes dessas anlises, os quais devero ser considerados

    quanto definio dos caminhos a serem seguidos e das posies a serem

    assumidas neste trabalho. Parte-se da reviso de textos que tm como foco

    as inovaes lingsticas e o efeito de oralidade produzido; passa-se por

    aqueles que realizam anlises comparativas (sobretudo entre o escritor

    moambicano e Guimares Rosa, devido ao parentesco da escrita dos

    dois); e chega-se leitura dos textos que trabalham, principalmente, a

    interpretao das narrativas a partir de temas como sonho, utopia, mito e

    histria.

    O segundo captulo dedicado explorao das relaes entre

    elementos histricos e elementos mticos, na composio dos contos, o que

    se poderia denominar seu carter ambivalente. Principia-se por uma

    teorizao a respeito da coexistncia de historicismo e mitologismo nas

    literaturas de alguns pases, no sculo XX. Em seguida, apresentam-se

    questes fundamentais para o entendimento do sistema colonial e dos

    processos de descolonizao em frica, procurando, ainda, mostrar de que

    modo essas situaes histricas se mostram no universo diegtico. Em um

    terceiro momento, trata-se do problema das manifestaes inslitas,

    decorrentes de uma viso do mundo mtica, nos textos: so mostradas as

    maneiras de aparecimento do inslito (transfigurao do real e

  • 4

    transformao pela palavra) e, ento, so discutidas as categorias literrias

    mais apropriadas para se entender esse tipo de fico. Por fim, esboado o

    problema da figurao da identidade cultural - formada a partir do

    entrelaamento das conjunes histricas coloniais e ps-coloniais e de um

    tipo de pensamento que se diferencia da racionalidade europia e ocidental

    - nos contos de Cada homem uma raa.

    No captulo terceiro, realiza-se a anlise de alguns contos, com o

    objetivo de proceder a um levantamento das maneiras de organizao das

    narrativas nos nveis da narrao, das personagens e da linguagem. s

    vezes, trabalha-se, de preferncia, um desses aspectos em detrimento dos

    outros, conforme as peculiaridades do texto estudado. Procura-se, alm

    disso, com essa anlise, verificar se existe correspondncia, nos trs nveis,

    quanto s ambigidades notadas na trama das narrativas, em decorrncia

    das motivaes realista e mtica. A escolha dos cinco contos deve-se sua

    representatividade dentro da obra e sua afinidade com o tema abordado

    nesse trabalho: as relaes entre histria e mito.

    O captulo final uma tentativa de atribuio de sentido s narrativas

    estudadas. A primeira parte dedicada a uma breve exposio de teorias

    que tratam de comportamentos alternativos de sujeitos e comunidades

    diante de situaes de opresso e dominao. A partir da, procura-se

    mostrar como esse tipo de comportamento se apresenta nos contos de Cada

    homem uma raa, a partir das ambivalncias encontradas nos nveis da

    narrao, das personagens e da lngua(gem), constituindo formas de

    resistncia cultural.

  • 5

    1. LEITURAS DA OBRA DE MIA COUTO

    Representante de uma literatura que comea a se firmar no panorama

    das literaturas de Lngua Portuguesa, Mia Couto tem publicada uma obra

    considervel. Tendo iniciado com um volume de poemas, Raiz de Orvalho

    (1983), dedicou-se narrativa, a partir dos contos de Vozes Anoitecidas

    (1986). Ento, vieram os livros tambm de narrativas curtas Cada homem

    uma raa (1990), Cronicando (1991), Estr ias Abensonhadas (1994),

    Contos do nascer da terr a (1997), Mar me quer (1998), Na berma de

    nenhuma estrada e outros contos (2001) e O fio das missangas (2004), e

    os romances Ter ra sonmbula (1993), A varanda do frangipani (1996),

    Vinte e Zinco (1999), O ltimo vo do flamingo (2000), e Um r io

    chamado tempo, uma casa chamada terr a (2002).

    Sua obra est inserida em uma fase na qual os escritores africanos

    assumem a nacionalidade literria por inteiro, o que Pires Laranjeira

    denomina euforia descomplexante.2 Nesse momento, h uma tentativa de

    se abandonar os resqucios mais resistentes das marcas do colonialismo e

    passar incorporao da temtica nacional. certo que a literatura

    2 LARANJEIRA, Pires. De letra em r iste- identidade, autonomia e outras questes nas l iteraturas de Angola, Cabo Verde, Moambique e S. Tom e Prncipe. Porto: Afrontamento, 1992. p.48.

  • 6

    moambicana - como diferente da literatura colonial3 produzida em

    Moambique j vinha desde, pelo menos, os anos 50 dando mostras de

    autonomia e de um sentimento de nao. Dessa poca, a primeira

    publicao que se pode considerar, de acordo com Manuel Ferreira,

    legitimamente moambicana, Godido e outros contos (1952), de Joo

    Dias.4 No se pode esquecer, alm disso, da poesia de Jos Craveirinha, na

    qual aparece a afirmao dos valores locais em detrimento dos traos

    europeus . De acordo com Jos Miguel de Souza Lopes, a literatura de

    feio nacionalista produzida por Craveirinha e outros autores de sua

    gerao uma literatura comprometida com Moambique e com o povo

    de um pas por inventar. Ela antecipa a nao e o Estado moambicano...5.

    O autor de Cada homem uma raa escreve em um tempo no qual o

    pas no mais se submete ao domnio colonial e conta com um sistema

    literrio formado, com autores de bastante relevncia, como Ungulani ba ka

    Khosa, Paulina Chiziane, Suleiman Cassamo e Jorge Viegas. Ainda assim,

    preocupa-se com os problemas locais e parece querer inventar uma nao, a

    seu modo. Talvez por isso tenha alcanado um lugar de destaque em um

    perodo relativamente curto.

    Se a produo literria de Mia Couto importante, tanto em termos

    qualitativos como quantitativos, o mesmo se pode afirmar com relao aos

    textos crticos a ela dedicados. Pretende-se, neste captulo, fazer um

    levantamento das anlises realizadas sobre a narrativa do escritor

    moambicano, com o propsito de destacar os tipos principais de estudo e

    3 Salvato Trigo afirma que a literatura nacional surge como uma reao l iteratura colonial, esta sendo caracterizada pelo exotismo esttico ou ideolgico. TRIGO, Salvato. Ensaios de li teratura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Vega, 198[-]. Literatura colonial l iteraturas africanas. p. 129-146. 4 FERREIRA, Manuel. Literaturas afr icanas de expresso portuguesa. So Paulo: tica, 1987. p. 195. 5 LOPES, Jos de Souza Miguel. Literatura moambicana em Lngua Portuguesa: na praia do oriente a areia nufraga do ocidente. In: Scr ipta, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, 1. sem. 1998, p. 269-285.

  • 7

    as concluses mais importantes, as quais podero ser aproveitadas neste

    trabalho.

    1.1. Novidades da linguagem

    Um dos motivos por que se destaca a narrativa de Mia Couto no

    cenrio atual da literatura escrita em Lngua Portuguesa o uso inovador

    que o escritor moambicano faz dessa lngua. Esse um dos aspectos mais

    estudados em sua obra. Fernanda Cavacas uma das pesquisadoras

    interessadas nos elementos morfossintticos da linguagem do autor de

    Cada homem uma raa, tendo publicado mais de um livro sobre o

    assunto.6 Tomando emprestado o termo ao prprio escritor, ela denomina

    brincriao o processo de criao verbal e inveno lexical de Mia

    Couto. Segundo a autora, as fontes das novidades do discurso so a sua

    forma oralizante, a organizao sinttica, os recursos estilsticos variados e

    o lxico criado; e as razes que justificam esse uso inovador da lngua so a

    influncia de outras lnguas, o grande domnio da Lngua Portuguesa, a

    vivncia de aspectos ontolgicos e sociolgicos das comunidades

    moambicanas e o carter ldico da obra7. Antnio Barreto Hildebrando,

    em um texto que funciona como uma introduo um tanto quanto ldica

    (como que imitando o estilo) leitura das crnicas de Mia Couto, louva as

    6 CAVA CAS, Fernanda. Mia Couto: acreditesmos. Lisboa: Mar Alm, 2001. CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: passatempos e improvrbios. Lisboa: Mar Alm; Instituto Cames, 2000. 7 Essas consideraes so feitas no texto Mia Couto: brincriao vocabular . In.: DUARTE, Llia Parreira et al. Veredas de Rosa. Belo Horizonte: PUC-Minas; CESPUC, 2000. p. 235-241.

  • 8

    invenes realizadas pelo autor e seu papel no revigoramento da lngua,8

    sem, entretanto, aprofundar-se na busca de um sentido para essas

    inovaes.

    No que se refere linguagem propriamente dita, algumas outras

    abordagens, um pouco diferenciadas, existem. Perptua Gonalves, em um

    artigo denominado Linguagem literria e linguagem corrente no portugus

    de Moambique ,9 aps fazer um levantamento das principais

    caractersticas da variedade moambicana do portugus, procura comparar

    essa variedade com a linguagem da obra de Mia Couto, na qual

    sobressaem, segundo a autora, as invenes lexicais, no tanto as mudanas

    gramaticais. Ela conclui que as inovaes nos dois domnios, o da

    linguagem corrente e o da linguagem literria, originam-se de causas e

    motivaes diferentes, pois a obra de Mia Couto, expresso de uma

    individualidade, no reflete as transformaes ocorridas na linguagem

    corrente da comunidade de Moambique.

    Inocncia Mata, em A alquimia da lngua portuguesa nos portos da

    expanso de Moambique, com Mia Couto ,10 extrapola os limites de uma

    anlise centrada exclusivamente nas novidades linguageiras para inscrever

    a discusso no domnio da ideologia, trabalhando aspectos relacionados ao

    conflito colonizador/colonizado. Mata comea seu texto resgatando a

    metfora de Caliban e Prspero: ela afirma que se a lngua um veculo

    privilegiado de dominao, tambm um veculo de libertao, referindo-

    se ao caso dos pases africanos de Lngua Portuguesa. Segundo a autora,

    8 HILDEBRANDO, Antnio Barreto. Crnica de um elefante poeta. In: DUARTE, Llia Parreira et al, 2000. p. 70-73. 9 GONALVES, Perptua. Linguagem li terria e linguagem corrente no portugus de Moambique. In: Estudos Portugueses e Africanos, Campinas, n. 33/34, jan/dez 1999. p. 115-121. 10 MATA, Inocncia. A alquimia da lngua portuguesa nos portos da expanso de Moambique, com Mia Couto. In: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, 1. sem. 1998. p. 262-268.

  • 9

    em Mia Couto a artesania do verbo aliada de uma reflexo histrica,

    poltico-social e ideolgica. Essa artesania exemplo da criatividade e

    inventividade lingsticas caractersticas de literaturas que querem afirmar

    sua diferena com relao do colonizador. O interesse de seu artigo est

    centrado no fato de que a atualizao do processo de criatividade

    lingstica no apenas da lngua, mas sobretudo da nova ideologia de

    expresso .11 Outro aspecto interessante a ser considerado nesse texto a

    afirmao de que na fico de Mia Couto produz-se um efeito de oralidade

    capaz de captar as diferentes formas de estar e ser do homem moambicano

    hoje.

    A questo da oralidade, estreitamente relacionada com os recursos de

    linguagem, tambm um assunto muito pesquisado na obra do autor de

    Cada homem uma raa. De acordo com Jos de Souza Miguel Lopes,

    Mia Couto recria esse efeito utili zando-se de uma lngua literria fundada

    numa criatividade lexical exuberante e numa sintaxe que funciona como

    elemento de transio entre a oralidade e a pura inveno, em que o

    contexto comunicativo, esttico, possibilit a a partilha da mensagem de

    ruptura .12 As frases proverbiais, de sentido obscuro na maioria das vezes

    em que ocorrem, tambm seriam responsveis por essas marcas de

    oralidade.

    Rita Chaves, num texto de apresentao da narrativa curta de Mia

    Couto aos leitores brasileiros, indica como um de seus aspectos importantes

    a utili zao das matrizes da oralidade na tentativa de revitalizao da

    11 Id., ib., p. 264. 12 LOPES, Jos de Souza Miguel. Cultura acstica e cultura letrada: o sinuoso percurso da li teratura em Moambique. In: Metamorfoses, Rio de Janeiro, n. 2., 1999. p. 52.

  • 10

    soberania da tradio oral.13 Magda Mrcia Borges, na dissertao de

    mestrado Ter ra Sonmbula: identidade e memr ia nos (des)caminhos

    do sonho, considera a tenso entre oralidade e escrita um instrumento de

    acesso a outras tenses desveladas pelo romance , assim como um

    processo de resistncia cultural .14

    Um outro trabalho importante, nessa linha, a dissertao de

    mestrado de Maura Eustquia de Oliveira, O lugar da oralidade nas

    nar rativas de Mia Couto, na qual a autora procura refletir sobre os modos

    como, na fico de Mia Couto, podem ser reconhecidos sinais da

    PALAVRA que resiste aos processos de descaracterizao impostos pelos

    diferentes processos de descolonizao .15 Procura mostrar ainda como as

    narrativas do escritor moambicano resguardam a memria das vrias

    etnias do mosaico de culturas de Moambique, ao preservarem a palavra da

    tradio ancestral. So meios utilizados para alcanar o efeito de oralidade

    quatro elementos que se destacam na sua escrita: dois no nvel do

    enunciado (as lendas e os provrbios) e dois no nvel da enunciao (a

    fratura da sintaxe e a inveno de palavras)".16 Embora trabalhe esses

    quatro elementos, Oliveira d um destaque maior aos dois do nvel do

    enunciado. A autora chama a ateno, ainda, para aquilo que denomina

    aspecto fantstico das narrativas estudadas e afirma ser este um dos

    elementos responsveis pela transgresso da lgica narrativa do Ocidente

    operada pelo texto. 13 CHAVES, Rita de Cssia Natal. Mia Couto: voz nascida da terra. In: Novos Estudos CEBRAP, So Paulo, n. 49, 1997. p. 243-247. 14 BORGES, Magda Mrcia. Terra Sonmbula: identidade e memria nos (des)caminhos do sonho. Belo Horizonte: Puc-Minas, 1996. (Dissertao de Mestrado do Curso de Ps-Graduao em Literaturas de Lngua Portuguesa do Departamento de Letras da Puc-Minas). p. 17. 15 OLIVEIRA, Maura Eustquia de. O lugar da oralidade nas narrativas de Mia Couto. Belo Horizonte: Puc-Minas, 2000. (Dissertao de Mestrado do Curso de Ps-Graduao em Literaturas de Lngua Portuguesa do Departamento de Letras da Puc-Minas). p. 17. 16 Id., ib., p. 89.

  • 11

    inegvel a importncia, na obra de Mia Couto, desse elemento aqui

    chamado fantstico, marca de uma diferena com relao a um grande

    nmero de textos da literatura contempornea. Entretanto, esta ltima

    afirmao da autora problemtica (ao menos duvidosa) e pode ser

    questionada. A transgresso da lgica narrativa do Ocidente no

    justificada com clareza ao longo do trabalho. Esse um ponto que deve ser

    explorado, nesta dissertao, atravs da anlise dos recursos formais das

    narrativas.

    Laura Cavalcante Padilha, fazendo uma leitura comparada de Ter ra

    Sonmbula e Partes de fr ica, no artigo Por terras de frica com Helder

    Macedo e Mia Couto17, procura mostrar, em uma parte do texto chamada

    Era, porque sempre ser, uma vez , como os dois romances transitam

    entre a voz e a letra , e que mecanismos fazem com que o escrito seja

    enlaado pelo oral, e vice-versa. Padilha conclui aps passar pela

    considerao da tcnica gritica, das repeties, do jogo de adivinhas

    utili zados como recursos que remetem s ancestrais estrias contadas

    beira da fogueira18 - que em Partes de fr ica parte-se da letra em direo

    voz. No caso da narrativa de Mia Couto, o percurso se d de modo

    inverso: existe a recomposio da cena organizadora da cultura ancestral,

    com a noite, a fogueira, o velho e a criana; no entanto, a palavra nasce da

    letra, dos cadernos, e o pequeno quem faz o papel de gri. H, nesse

    caso, um entrelaamento da voz e da letra.

    17 PADILHA, Laura Cavalcante. Por terras de frica com Helder Macedo e Mia Couto. In: Veredas, Porto, Fundao Engenheiro Antnio Almeida, v. 1, 1998. p. 243-259. Tambm no livro de PADILHA, L. C. Novos pactos, outras fices: ensaios sobre li teraturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 18 Id., ib., p. 249.

  • 12

    1.2. Anlises comparatistas

    J que foi mencionado esse trabalho de anlise comparada,

    interessante notar a tendncia de estudos comparatistas em relao obra

    de Mia Couto. Em congresso realizado na PUC - Belo Horizonte sobre

    Guimares Rosa em 1998, foram vrios os trabalhos a apresentar uma

    anlise que relacionava aspectos da fico dos dois escritores.19 O prprio

    Mia Couto esteve presente ao evento, e falou sobre a importncia da obra

    do escritor brasileiro em sua produo literria.20 No texto Entre margens

    Guimares Rosa e Mia Couto, o encontro possvel ,21 Cludia Mrcia

    Vasconcelos da Rocha busca estabelecer um dilogo entre o brasileiro e o

    moambicano atravs da anlise dos contos A terceira margem do rio (G.

    Rosa) e Nas guas do tempo (Mia Couto). Ela explora a questo da

    linguagem nova (tema j abordado) e dos sentidos da margem nos dois

    textos. Rocha afirma caber ao conto de Mia Couto a atribuio, a mgica

    funo de conferir atravs das geraes (av, neto) a unidade que

    contingncias histricas procuraram desacreditar .22

    J Ana Cludia da Silva, em sua dissertao de mestrado intitulada A

    infncia da palavra: um estudo comparado das personagens infantis em

    Mia Couto e Guimares Rosa,23 analisa o tema da infncia como

    estruturador em algumas narrativas dos dois escritores. Nas guas do

    19 Trabalhos publicados em: DUARTE, Llia Parreira et al: 2000. 20 COUTO, Mia. Nas pegadas de Rosa. In: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 11-13, 2. sem. 1998. 21 ROCHA, Cludia Mrcia Vasconcelos da. Entre margens Guimares Rosa e Mia Couto, o encontro possvel In: DUARTE, Llia Parreira et al, 2000. p. 144-148. 22 Id., ib. p. 148. 23 SILVA, Ana Cludia da. A infncia da palavra: um estudo comparado das personagens infantis em Mia Couto e Guimares Rosa. Ribeiro Preto, 2000. (Dissertao de Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa FFLCH-USP).

  • 13

    tempo um dos textos de Mia Couto cuja personagem infantil estudada;

    os outros so o conto O poente da bandeira e o romance Ter ra

    Sonmbula. As narrativas de Guimares Rosa so As margens da

    alegria , A menina de l e Campo Geral . Silva afirma ser a

    personagem infantil portadora de uma lgica especial, um modo especial de

    conhecer o mundo, de relacionar-se com os seres. Segundo a autora, em

    Guimares Rosa, essa relao se d na forma de um contato direto com a

    realidade, sem mediao, conforme a maneira ocidental de conceber a

    infncia. Essa afirmao, entretanto, bastante discutvel, pois simpli fica

    demasiadamente a funo das personagens infantis na narrativa rosiana. J

    em Mia Couto, a relao mediada por um adulto, o qual detm a

    autoridade e responsvel pela transmisso de um saber e de uma tradio.

    Apesar das diferenas, as crianas desses dois mundos teriam em comum

    trs tipos de conhecimento: o intuitivo, a percepo sensorial e o potico.

    Segundo Silva, a poesia o instrumento com o qual Rosa e Couto

    procuram expressar o indizvel, a essncia do real que se encontra na

    origem dos seres .24

    Samba de amores dispersos: pequenas melodias compostas por Joo

    Guimares Rosa e Mia Couto ,25 de Jussara Santos, a anlise da temtica

    amorosa nos contos O grande samba disperso, de Rosa, e O perfume ,

    de Couto. Os dois contos so entendidos como peas musicais (sambas), e

    as aes das personagens, como movimentos. Em Escritores africanos nas

    veredas rosianas,26 Maria Nazareth Soares Fonseca trata das transgresses

    operadas pela obra de Mia Couto e do angolano Luandino Vieira e do 24 Id., ib., p. 97. 25 SANTOS, Jussara. Samba de amores dispersos: pequenas melodias compostas por Joo Guimares Rosa e Mia Couto In: DUARTE, Llia Parreira et al, 2000. p. 332-336. 26 FONSECA, Maria Nazareth Fonseca. Escritores africanos nas veredas rosianas In: DUARTE, Llia Parreira, et al, 2000. p. 482-488.

  • 14

    dilogo que estabelecem com a escrita de Guimares Rosa. Para Fonseca,

    em Mia Couto so importantes os processos criativos em que a lngua

    portuguesa expe suas possibili dades de inveno. atravs dessa lngua

    que o escritor apreende o cotidiano de sua cultura, mediada por uma

    escrita que transgride em dilogo explcito com o pulsar vibrante da

    oralidade.27 A preocupao da autora est voltada para a transgresso da

    linguagem, tema bastante explorado.

    Carmen Lucia Tind Ribeiro Secco, no texto As margens do

    inefvel: a significao potica dos velhos e aleijados em Guimares,

    Luandino e Mia Couto ,28 tambm busca estabelecer pontos de contato

    entre as narrativas dos trs escritores. Secco observa o papel positivo

    conferido aos velhos na obra dos trs: a velhice um tempo privilegiado

    (Rosa); os velhos so os detentores da sabedoria, os guardies da memria

    (Couto e Vieira). Os personagens loucos e/ou aleijados tm a funo

    potica de promover a denncia dos valores convencionais vigentes nas

    sociedades e das oposies binrias que contrapem o normal ao anormal,

    afastando aqueles que no correspondem aos modelos estabelecidos da

    normalidade. De acordo com a crtica, na obra desses escritores, so

    afirmadas as diferenas de suas respectivas culturas, mas os trs atingem o

    universal, recuperando as figuras dos excludos, atribuindo-lhes sentidos

    poticos profundos que os dimensionam para alm dos limites da razo

    convencional.

    Realizar uma leitura comparada da presena dos rios nos romances

    Grande Serto: Veredas, Terra Sonmbula e A Verdadeira Vida de

    27 Id., ib., p. 486. 28 SECCO, Carmen Lucia Tind Ribeiro. As margens do inefvel: a significao potica dos velhos e aleijados em Guimares, Luandino e Mia Couto In.: DUARTE, Llia Parreira, et al, 2000. p. 117-121.

  • 15

    Domingos Xavier o que se prope Tania Celestino de Macdo, no texto

    Os rios e seus (dis)cursos em Guimares Rosa, Mia Couto e Luandino

    Vieira .29 Nas narrativas estudadas, os rios tm caractersticas marcadas

    pela antropoformizao, confundem-se com as personagens dos textos.

    Segundo Macdo, em Guimares Rosa, o rio, como projeo de vontades

    humanas, constri no apenas uma nova geografia do imaginrio , como

    tambm uma reflexo sobre as veredas da lngua portuguesa. Em Mia

    Couto e Luandino Vieira, os rios, indo alm dos projetos humanos,

    mostrariam que preciso edificar narrativas nas quais os (dis)cursos em

    lngua portuguesa fossem engrossados pelos afluentes das lnguas

    nacionais , enquanto fossem construdas tambm, de maneira utpica, a

    paz e as margens da nao no exerccio cotidiano do escrever, de contar

    estrias exemplares .30 Note-se, mais uma vez, como a preocupao com a

    lngua e sua renovao aparece constantemente nas anlises.

    Interessa, tambm, nesse estudo, a considerao da importncia da

    utopia no romance de Mia Couto. Macdo afirma que, em Ter ra

    Sonmbula, os rios nascem das vontades humanas; o curso do rio feito

    pelo homem, que nele projeta suas esperanas. A narrativa busca resgatar,

    pela fantasia, o amor terra em um mundo desencantado e desenraizado,

    onde os rios criados apontam para a necessidade de reconstruir o elo entre o

    homem e a terra. Nesse contexto, o rio metfora da utopia, do sonho

    acordado.31 A afirmao da permanncia de um vis utpico na fico do

    escritor moambicano tambm uma constante nos textos crticos

    analisados.

    29 MACDO, Tania Celestino de. Os rios e seus (dis)cursos em Guimares Rosa, Mia Couto e Luandino Vieira In.: DUARTE, Llia Parreira et al, 2000. p. 671-675. 30 Id., ib., p. 674. 31 Id., ib., p. 673.

  • 16

    1.3. Utopia, sonho, mito e histr ia

    A nica voz discordante com relao existncia de um sentimento

    utpico nas narrativas de Mia Couto a de Paloma Vidal. No artigo A

    mise en abyme de Ter ra Sonmbula ,32 ela afirma que o romance uma

    crtica guerra civil , na qual a fico e a histria se entrelaam, e a utopia

    fica afastada.

    A posio de Tania Macdo corroborada por outros crticos que se

    dedicaram ao estudo desse romance. Rejane Vecchia da Rocha e Silva, em

    um artigo chamado Ter ra Sonmbula: a sobrevivncia da utopia 33 (uma

    parte de sua tese de doutorado Romance e Utopia: Quarup, Ter ra

    Sonmbula e Todos os nomes) aborda a questo da manuteno da

    esperana em um tempo futuro, mesmo diante de um contexto

    extremamente desfavorvel: a guerra civil moambicana. Segundo ela,

    atravs de uma linguagem que confunde prosa e poesia, Mia Couto recria a

    realidade de Moambique, apresentando-o no apenas como espao de

    perdas, de abandono e da ausncia do humano, mas tambm como lugar

    de sonhos e utopias .34 Nessa anlise, embora d uma importncia grande

    ao sonho e tradio oral como elementos que ajudam a sustentar a

    memria do passado e, desse modo, a possibili dade de um futuro, Rejane

    32 VIDAL, Paloma. A mise en abyme de Terra Sonmbula. Disponvel em . Acessado em 10/11/2002. 33 SILVA, Rejane Vecchia da Rocha e. Terra sonmbula: a sobrevivncia da utopia. In: CANIATO, Benilde Justo; MIN, Elza (coord.) Abrindo Caminhos homenagem a Maria Aparecida Santil l i. Coleo Via Atlntica n. 2. So Paulo, 2002. p. 491-497. 34 Id., ib., p. 496.

  • 17

    Silva enfoca preferencialmente episdios de cunho realista, os quais dizem

    respeito ao universo emprico da situao histrica da guerra. A parte

    concernente imaginao, compreendendo os mitos, crenas e eventos

    inslitos, fica um pouco esquecida, sendo caracterizada como absurdo.

    A posio de Leonor Simas-Almeida com relao questo da

    utopia semelhante. Embora no util ize esse termo, ela vai defender em

    seu ensaio a tese de que, num presente em desintegrao, insere-se a

    esperana no futuro, subtilmente entretecida em todos os fios da

    narrao...35 Tomando como tema norteador, o sonho, e a capacidade de

    transformao do mundo atravs da fantasia e da criao potica, Simas-

    Almeida procura estudar algumas estratgias narrativas e retricas

    (particularmente a alegoria) do romance de Mia Couto em cuja polissemia

    parece possvel identificar o pessimismo esperanoso de seu autor .36

    Ela considera o modo alegrico dominante no romance do escritor

    moambicano, e trabalha com um conceito de alegoria redefinido por

    nomes como Quilli gam e Van Dyke. Para esses tericos, o texto alegrico

    polissmico, existindo a possibili dade de que ele contenha dois sentidos ou

    mais. O sentido literal no obliterado em benefcio de um segundo, e no

    existe uma hierarquizao vertical de significaes. De acordo com Simas-

    Almeida, Ter ra Sonmbula constitui um paradigma perfeito de

    cruzamento e simultaneidade de sentidos no verticalmente

    hierarquizados .37 Isso pode ser notado na estrutura bsica do romance pela

    constatao da plurivocidade materializada na multiplicao de narradores

    e contos, o que sugere acumulao e no hierarquizao de sentidos, pois

    35 SIMAS-ALMEIDA, Leonor. A redeno pela palavra em Terra Sonmbula de Mia Couto. In: Revista da Faculdade de Letras. Lisboa, n. 19/20, 1995-1996. p. 159-169. 36 Id., ib., p. 163. 37 Id., ib., p. 164.

  • 18

    se representa uma realidade mltipla e complexa. Tambm se pode

    observar a predominncia do modo alegrico , segundo a autora, no nvel

    da linguagem em que se combinam sentidos prprios e figurados em

    linha horizontal e no plano da diegese na associao e reciprocidade

    constantes da dimenso mimtica e da dimenso potica da narrativa, de

    acordo com leis de probabili dade e necessidade estabelecidas pelo(s)

    narrador(es) . Desse modo, equiparam-se ao longo da narrativa tempo

    histrico constantes aluses histricas guerra, corrupo, fome,

    doena... e tempo mtico contos fantsticos, aparies e prodgios...

    - , refletindo um ao outro.

    Simas-Almeida, diferentemente de Rejane Silva, afirma a

    equivalncia dos planos realista (representao do real emprico) e mtico

    (representao do simblico, do imaginrio). Esse parece ser um caminho

    mais adequado para a compreenso e interpretao da fico de Mia Couto,

    conquanto ocorram alguns problemas de denominao (contos

    fantsticos ) e uma certa indefinio quanto aos elementos narrativos desse

    plano mtico. A autora afirma, por exemplo, haver uma interpenetrao do

    real e do mgico ou fantstico .

    O estudo de Laura Cavalcante Padilha citado anteriormente por

    ocasio do tema da oralidade tambm uma reflexo sobre a

    manifestao da utopia no texto literrio. Segundo Padilha, Helder Macedo

    e Mia Couto constroem seus romances a partir da certeza da runa dos

    utpicos sonhos que marcaram o passado . Desse modo, pensam ambos a

    devastao, mais que a dilatao.38 (Servem de epgrafe ao ensaio os

    versos de Os lusadas: E tambm as memrias gloriosas / Daqueles reis

    38 PADILHA, Laura Cavalcante: 1998, p. 246.

  • 19

    que foram dilatando / A F, o Imprio, e as terras viciosas / De frica e

    sia andaram devastando, os quais so analisados a partir do quadrado

    semitico de Greimas). Padilha faz a anlise das trs epgrafes do romance

    de Mia Couto, mostrando como elas so partes desdobradas do percurso do

    romance: parte-se do mtico, ou das origens ancestrais autctones

    (Crena dos habitantes de Matimati e Fala de Tuahir ), ampliando-se

    na direo do canonicamente ocidental (Plato), fala tambm ancestral e

    mtica. Nota-se, desse modo, a valorizao do papel do simblico no

    romance.

    A autora procura entender o funcionamento das estrias

    encaixantes no sentido das narrativas e conclui que os dois romances (nos

    quais a experincia e a memria so os elementos responsveis pelo

    mover-se das engrenagens do relato) apresentam em comum o gosto pelo

    suplemento, no sentido derridiano do termo .39 Cada uma dessas vrias

    narrativas traz algo a mais, num desdobramento ili mitado; elas so

    responsveis pelo excesso imprescindvel para a prtica da decifrao .

    Ento, afirma Padilha, se num primeiro momento Mia Couto e Helder

    Macedo parecem estar de acordo com a idia do fracasso dos ideais

    libertrios, a partir da considerao desses suplementos, possvel notar

    que os dois romancistas no deixam de sonhar, esforando-se para manter

    vivo um ltimo reduto de utopia, existindo neles um pacto de esperana.

    Essa viso de Padilha se assemelha de Simas-Almeida, quando esta faz

    referncia ao pessimismo esperanoso.

    39 Id., ib., p. 252.

  • 20

    1.4. Algumas contr ibuies da cr tica

    Os textos escolhidos, embora nem sempre tratem diretamente de

    Cada homem uma raa, so representativos no inventrio da crtica da

    obra de Mia Couto, sobretudo daquela produzida na mesma poca deste

    livro - Cronicando (1991), Ter ra sonmbula (1993), Estr ias

    abensonhadas (1994). Por isso, so importantes para o estabelecimento de

    novos caminhos de anlise e de interpretao dos contos estudados.

    Procura-se, com essa reviso, menos descobrir os significados especficos

    atribudos a cada narrativa, do que investigar os sentidos e as formas da

    fico de Mia Couto de uma maneira ampla. Esse procedimento permite

    depreender alguns pontos bsicos a respeito da crtica da produo literria

    desse autor:

    1) So em grande nmero as anlises que tratam de problemas

    especficos da linguagem literria das obras tanto quanto aquelas cujo tema

    oralidade. Entretanto, afirmar que esse um terreno sobejamente

    explorado no significa dizer que esses aspectos devem ser excludos das

    anlises;

    2) Considera-se que as inovaes e transgresses da linguagem de

    Mia Couto, assim como o efeito de oralidade produzido em suas narrativas,

    representam uma forma de resistncia cultural, na medida em que tratam de

    aspectos ontolgicos e sociolgicos das comunidades moambicanas. Essa

    relao no se d, no entanto, de maneira direta, e sim mediada pelos

    elementos prprios da esttica literria;

  • 21

    3) Os estudos comparativos so bastante numerosos e relacionam

    preferencialmente a fico de Mia Couto do brasileiro Guimares Rosa,

    devido ao parentesco da escrita dos dois;

    4) Parece existir uma indefinio conceitual no que diz respeito aos

    elementos inslitos presentes nos textos;

    4) A utopia e o sonho so tomados como elementos fundamentais

    das narrativas estudadas;

    5) A maioria das leituras considera ponto essencial para a

    compreenso da fico do escritor moambicano a representao dos mitos,

    lendas e crenas do povo africano. Esses elementos relacionados ao

    imaginrio africano ganham, todavia, tratamento diferenciado. H, por

    um lado, a tendncia quase generalizada de entender essa fico como uma

    manifestao legtima do mundo africano , tradicional, em contraponto a

    uma narrativa ocidental. Existem, por outro lado, algumas vozes apontando

    para o carter hbrido dessa manifestao literria.

    fundamental, para levar adiante uma anlise de Cada homem

    uma raa, a considerao especial de alguns dos aspectos revelados pela

    crtica da obra de Mia Couto. Assim, a abordagem dos recursos do nvel da

    linguagem e do efeito oralizante da escrita imprescindvel para a

    compreenso dos contos. Merece ateno, tambm, a relao estabelecida

    entre elementos histricos e elementos de carter mtico, bem como a

    relevncia e a funo desses elementos nos textos.

  • 22

    2. HISTRIA E MITO

    2.1. Relaes entre histr ia e mito

    O terico russo E. M. Mielietinski, em um texto sobre o mitologismo

    no sculo XX, afirma que a utili zao do mito, seja como procedimento

    artstico ou como viso do mundo que fundamenta esse procedimento,

    um fenmeno significativo da literatura desse sculo.40 A partir dos anos

    50-60, a potica da mitologizao comea a ser observada nas literaturas

    latino-americanas e afro-asiticas. No caso dessas literaturas, podem

    coexistir as tradies folclricas arcaicas e a conscincia folclrico

    mitolgica [...] com o intelectualismo modernista de tipo puramente

    europeu.41 Essa situao histrica e cultural possibilita que elementos de

    historicismo e mitologismo estejam presentes ao mesmo tempo nos

    romances. Mielietinski observa ainda que, embora o mito e a histria

    apresentem-se sempre como opostos, por outro lado, no podem ser

    separados na literatura mitologizante do sculo XX.

    Em todas as obras das literaturas latino-americanas e afro-asiticas

    (por ele analisadas), por mais intensas que sejam a crtica social e a stira

    no plano realista, o mitologismo vai estar ligado, de maneira direta e em

    40 MIELIETINSKI, E. M. A potica do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1987. p. 350. 41 Id., ib., p. 433.

  • 23

    menor ou maior grau, s tradies locais e nacionais. A problemtica

    poltica revolucionria tambm aparece com freqncia, na combinao

    entre elementos da potica modernista da mitologizao com a valorizao

    neo-romntica do folclore e da histria nacionais.

    A utili zao da linguagem do mito, por parte de escritores africanos,

    fundamenta-se no fato de que a sobrevivncia do pensamento folclrico-

    mitolgico uma realidade histrica no meio cultural desses escritores.

    Entretanto, como salienta o terico, no se deve esperar uma coincidncia

    entre a linguagem do mitologismo do sculo XX e a dos mitos antigos,

    pois no se pode colocar sinal de igualdade entre a inseparabil idade do

    indivduo face sua comunidade e a sua degradao na sociedade

    industrial .42

    Sero levados em conta esses pressupostos bsicos, os quais

    afirmam a importncia do mito para a literatura do sculo XX e a

    coexistncia dos aspectos mitolgicos e histricos nas narrativas das

    literaturas da Amrica Latina, frica e sia, para se buscar a abordagem

    dos contos de Mia Couto. Entende-se mito, neste trabalho, de acordo com a

    concepo do historiador das religies Mircea Eliade, como histria

    verdadeira , narrativa extremamente preciosa por seu carter sagrado,

    exemplar e significativo".43 Refletindo sobre essas observaes, deve-se

    lembrar que os textos de Mia Couto so escritos a partir de um lugar

    cultural onde o mito muitas vezes sobrevive no interior das comunidades,

    ou na sua forma primitiva, ou travestido em uma nova manifestao.

    Entretanto, como afirma Mielietinski, impossvel a correspondncia entre

    a mitologia arcaica e a simbologia presente nas narrativas modernas. Um

    42 Id., ib., p. 440. 43 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 6.ed. So Paulo: Perspectiva, 2002. p. 7.

  • 24

    dos fatores a serem considerados como decisivos para tratar dessas

    questes o colonialismo na frica, a ocupao e dominao dos

    territrios do continente desde o sculo XVI, processo cuja intensificao

    se deu realmente na segunda metade do sculo XIX.

    2.2. Situao colonial e descolonizao

    Nos contos de Cada homem uma raa, nota-se a recorrncia de

    situaes confliti vas, resultantes da imposio de uma cultura europia

    opressora sobre uma cultura africana dominada e sufocada, na sociedade

    colonial estabelecida. A situao colonial tratada de maneira bastante

    detalhada por Albert Memmi, na obra Retrato do colonizado precedido

    pelo retrato do colonizador.44 Embora o autor considere o problema

    principalmente a partir do referencial das colnias francesas, as reflexes a

    respeito dos dois sujeitos envolvidos no processo podem servir para pensar

    a situao da colonizao portuguesa em frica. O texto, como indica seu

    ttulo, divide-se em duas partes: na primeira, pintado o retrato do

    colonizador; na segunda, o do colonizado.

    No captulo dedicado ao colonizador, Memmi expe os sentidos da

    viagem colonial , cujas motivaes so, sobretudo, econmicas. Segundo

    o autor, inevitvel que o europeu emigrado para a colnia se torne um

    colonizador. Ele tem ento duas opes: ou recusar a sua condio de

    privilegiado, esse o colonizador de boa vontade ; ou aceitar-se como

    44 MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

  • 25

    senhor de direito das vantagens oferecidas a ele, esse o colonialista . A

    primeira alternativa, no entanto, no uma possibili dade vlida, uma vez

    que no se d a identificao (por uma srie de fatores) entre o europeu que

    recusa a situao colonial e o africano vivendo sob o jugo do dominador.

    Desse modo, o mecanismo quase fatal: a situao colonial fabrica

    colonialistas, como fabrica colonizados .45

    A relao do colonizador com a metrpole e os metropolitanos

    ambgua: se, por um lado, ele tem o seu pas de origem como um lugar de

    perfeio, e idealiza-o no seu discurso; por outro, sabe que l no existe

    mais lugar para ele. Com a volta, o colonizador perderia o estatuto de

    superior, seria um igual entre os homens de sua nao ou, at mesmo, seria

    rebaixado para uma posio inferior, pois as acusaes dos estrangeiros

    contra o colonialismo, e as de seus compatriotas por vezes diretas, por

    vezes insinuadas , lanam sobre ele uma culpa pela situao do

    colonizado, fazendo dele um aproveitador de facili dades. Do mesmo modo

    que louva a glria da nao, nutre contra a metrpole e os metropolitanos

    um profundo ressentimento .46

    O colonizador procura a desvalorizao sistemtica do colonizado.

    No tenta se aproximar do outro, rompendo o exlio, mas, de modo inverso,

    procura acentuar as diferenas, buscando razes para a recusa da

    aproximao. Assim, o racismo surge como um elemento fundamental,

    pois serve para tornar legtima uma situao que, vista friamente,

    insustentvel.

    O colonizador se auto-absolve das culpas que lhe so imputadas

    pelos outros e por ele mesmo, afirmando a legitimidade da colonizao. As

    45 Id., ib., p. 59. 46 Id., ib., p. 65.

  • 26

    vantagens e o respeito recebidos so justos, na sua viso, j que ele,

    portador dos valores da civili zao e da histria, cumpre uma misso47:

    tem o grande mrito de iluminar as trevas infamantes do colonizado .48

    Agindo desse modo, outorgando-se o ttulo de protetor e provedor, explica

    a servido do colonizado, cujo carter escandaloso poderia ser admitido at

    mesmo por ele.

    O escritor de origem tunisiana comea a segunda parte de seu livro

    tratando do retrato mtico do colonizado produzido pelo colonizador o

    qual desempenha importante papel na dialtica entre enobrecimento do

    segundo/aviltamento do primeiro. Essa imagem se fundamenta numa srie

    de traos atribudos pelo europeu ao africano: preguia, debili dade,

    perversidade, sadismo, inaptido, maus instintos, astcia, atraso. Esses

    traos, marcados pelo sinal negativo, so fundamentais para as exigncias

    afetivas e econmicas do estrangeiro. Alguns dos atributos se excluem uns

    aos outros. No entanto, eles justificam todas as atitudes do colonizador,

    desde o protetorado at a violncia policial. Para o dominador, no importa

    ver o colonizado como ele , mas transform-lo em outra coisa. Ento,

    comea por negar todas as qualidades que podem fazer do autctone um

    homem: desumaniza-o. interessante notar o eco suscitado por essa

    construo no africano: ele acaba, de certo modo, aceitando essa imagem

    proposta pelo outro, a qual ganha assim certa realidade e contribui para o

    retrato real do colonizado .49

    47 Barthes, no seu li vro Mitologias, em que trata dos discursos que se tornaram mticos na modernidade, apresenta um verbete denominado Gramtica africana. Nesse tpico, entre outros vocbulos, destaca misso, termo que funciona, segundo ele, no discurso do colonialismo, tal como coisa ou troo na linguagem ordinria. uma palavra util izada para as situaes mais variadas, sempre justificando a colonizao. BARTHES, Roland. Mitologias. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 1989. 48 MEMMI, Albert: 1977, p. 72. 49 Id., ib., p. 83.

  • 27

    Pode-se, aqui, lembrar Homi Bhabha, no texto em que trata das

    formas e funes do discurso colonial. O crtico indo-britnico mostra

    como o esteretipo do outro , construdo pelo sujeito colonial, uma

    necessidade de autoconservao, de defesa e reflete seu medo em relao

    ao diferente. O esteretipo tambm evidencia as estruturas rgidas do

    sujeito do discurso colonial, alm de fixar a imagem do outro . Essa

    imagem no necessariamente falsa, mas , de qualquer modo, uma

    imagem difundida e transmitida, vindo a cumprir uma funo. Lembre-se,

    ainda, que a identidade ou, antes, uma imagem de identidade constri-se

    em (e atravs de) um discurso.50

    Diante dessa construo de linguagem que o mostra a si mesmo

    como inferior, o colonizado obrigado, para viver, a aceitar-se como tal.

    Como conseqncia, sofre de uma carncia total, j que a colonizao o

    reduz privao, e todas as deficincias se combinam e fazem crescer

    umas s outras: negao de uma posio no mundo da histria;

    impossibili dade de retorno aos valores tradicionais; amnsia cultural,

    provocada pela reproduo da situao colonial no seio da famlia. Para

    essa carncia, duas respostas so possveis. A primeira a tentativa de

    assumir a posio do colonizador. No entanto,

    O candidato assimilao, quase sempre, acaba se cansando do preo exorbitante que por ela preciso pagar, e do qual jamais chega a desobrigar-se. Descobre tambm com assombro todo o sentimento de sua tentativa. dramtico o momento em que descobre que retomou por sua conta as acusaes e as condenaes do

    50 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. A outra questo o esteretipo, a discriminao e o discurso do colonialismo. p. 103-128.

  • 28

    colonizador; que se habitua a olhar os seus com os olhos do seu procurador.51

    A outra resposta possvel a revolta. Porque sua condio absoluta,

    existe a necessidade de uma reao em termos absolutos, uma ruptura

    significativa. Para isso necessrio que o colonizado se aceite e se afirme,

    o que um processo ambguo, pois a afirmao de si passa pela aceitao

    da diferena, a qual definida pelo colonizador. Mesmo assim, a revolta

    inevitvel, pois chega sempre o dia, em que o colonizado levanta a cabea

    e faz oscilar o equilbrio sempre instvel da colonizao .52

    Uma anlise semelhante da situao colonial feita por Frantz

    Fanon.53 O escritor nascido na Martinica destaca, porm, no seu texto, as

    tenses produzidas na iminncia e no desenrolar do processo de

    descolonizao. Ele preconiza, igualmente, a necessidade do fim da

    situao estabelecida nos territrios africanos, e apresenta a tese de que o

    colonialismo uma violncia em estado bruto que s pode inclinar-se

    diante de uma violncia maior .54

    Num texto permeado pela nfase nas causas e conseqncias da

    violncia nas guerras de libertao dos pases africanos (mais

    especificamente no caso da Arglia, cujo conflito ele acompanhou, como

    mdico psiquiatra), Fanon aponta para as diferenas existentes entre as

    posies ocupadas pelos diferentes agentes no processo: o povo, o

    intelectual, os polticos. Para a massa do povo colonizado, existe a

    necessidade de transformao total, a substituio de uma espcie de

    homens por outra, sem transio. Isso apenas pode se dar de modo violento. 51 MEMMI, Albert. 1977, p. 108. 52 Id., ib., p. 125. 53 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civil izao Brasileira, 1979. 54 Id., ib., p. 46.

  • 29

    A descolonizao representa, ento, a destruio de uma de suas partes.

    No possvel a convivncia. Ocorre um maniquesmo ao inverso nessa

    fase: o colonizador representa tudo o que h de ruim. Antes, o africano,

    desumanizado e animalizado, era o mal absoluto; os seus mitos, a marca de

    sua indigncia.

    A posio do intelectual vai ser diferente, pelo menos no comeo.

    Ele questiona a validade da independncia e procura a paz entre as duas

    partes: uma impossibil idade. Segundo Fanon, ele tende a comportar-se

    como um oportunista vulgar durante o conflito; atenta para o culto do

    detalhe, perde de vista a unidade do movimento, em vez de agir como o

    povo, para quem o modelo operativo mais eficaz [] a posse da terra e do

    po.55 Nas regies onde os intelectuais no se desfazem do pensamento

    colonialista, aps a libertao, ocorre a pilhagem total dos recursos da

    nao.

    interessante notar, ainda, a atitude dos polticos frente luta de

    independncia. De modo semelhante s eli tes intelectuais, os partidos

    polticos so violentos nas palavras, reformistas nas atitudes [...] querem

    mais poder, no a destruio radical da ordem .56 Esses partidos no

    rompem o contato com o colonialismo, e pretendem manter o sistema

    colonial, atravs de negociaes.

    Pode-se afirmar que, de uma maneira geral, os dois processos

    colonizao e descolonizao ocorreram, em Moambique, de modo

    semelhante ao descrito por Memmi e Fanon. Uma conjuntura histrica

    instvel e confli tuosa como essa acaba por se manifestar tambm na

    literatura produzida nesse pas. Assim, muitas obras literrias so

    55 Id., ib., p. 37. 56 Id., ib., p. 45.

  • 30

    produzidas tendo como tema problemas relativos ao colonialismo e suas

    conseqncias. So poemas, contos e romances que figuram desde a

    segregao e discriminao do perodo anterior libertao, at a situao

    de desigualdade e opresso do ps-independncia.

    2.2.1. Motivao realista

    Moambique esteve sob domnio e influncia de Portugal desde o

    final do sculo XV. A sua Libertao, assim como a das demais colnias

    portuguesas na frica - Angola, So Tom e Prncipe, Guin-Bissau e

    Cabo Verde - ocorreu somente na metade da dcada de 1970. A Revoluo

    dos Cravos, com a queda de Salazar e a instaurao do regime socialista em

    Portugal, em abril de 1974, acelerou o processo que vinha se

    desenvolvendo desde, pelo menos, o comeo da dcada anterior nos

    territrios africanos. Moambique foi reconhecido como nao

    independente em 25 de junho de 1975. Antes, porm, transcorreram quase

    quinze anos de luta anticolonial, levada a cabo por guerrilheiros do

    movimento revolucionrio de fundo marxista da FRELIMO (Frente de

    Libertao de Moambique). Posteriormente, em 1977, o pas mergulhou

    numa devastadora guerra civil ,57 que se estendeu por vrios anos, at 1992.

    A exposio dos dois sujeitos principais do colonialismo e das

    motivaes e conseqncias da libertao das colnias oferece subsdios

    importantes para a compreenso da fico de Mia Couto. Os motivos

    realistas de suas narrativas esto ligados aos momentos crticos da histria

    57 O termo guerra civi l no aceito por algumas correntes crticas .

  • 31

    recente do pas; as situaes da diegese esto, muitas vezes, relacionadas

    realidade emprica de Moambique. Portanto, ignorar os elementos

    histricos presentes nos textos estudados recusar a possibili dade de uma

    interpretao mais adequada para Cada homem uma raa.

    Observa-se que muito forte o substrato histrico dos textos. So

    freqentes as referncias a situaes crticas do passado colonial, bem

    como a momentos cruciais da luta e das contingncias ps-coloniais.

    Tratando desse temas, Mia Couto realiza uma leitura crtica da histria, na

    qual aparece sempre uma denncia, explcita ou velada. Entretanto,

    conforme nota Rita Chaves, a cena no comporta bandidos e mocinhos;

    no se trata de radicalizar pontos de vista opostos e estanques.58 No

    existe um maniquesmo na figurao dos acontecimentos. Tanto o

    portugus inescrupuloso quanto o moambicano aproveitador podem ser

    alvo de crticas.

    A partir dessa perspectiva pode-se considerar, por exemplo, o conto

    "O Apocalipse privado do tio Gegu". Em um determinado momento diz-se

    a propsito de uma bota encontrada pela personagem Gegu: "A botifarra

    estava garantida pela histria: tinha percorrido os gloriosos tempos da luta

    pela independncia".59 Existe a localizao da narrativa em um tempo

    posterior ao 25 de junho de 1975. No entanto, se os tempos da luta foram

    "gloriosos", os do presente no o so. Por obra de Gegu e seu sobrinho -

    cuja posse da "braadeira vermelha" de vigilante assegurava a autoridade e

    os desmandos - "nascera" uma guerra no povoado:

    58 CHAVES, Rita: 1997, p. 245. 59 COUTO, Mia: 1998, p. 30. (A partir daqui as referncias aos nmeros de pgina dessa obra sero feitas no corpo do texto, entre parnteses, para evitar excesso de notas).

  • 32

    Casa, carro, propriedades: tudo se tinha tornado demasiado mortal. To cedo havia, to cedo ardia. Entre os mais velhos j se espalhava a saudade do antigamente. - Mais valia a pena... [...] Alguns se amargavam, fazendo conta aos sacrifcios: - Foi para isso que lutmos? (p. 45)

    A situao do povoado nesse conto representa o estado do pas nos

    anos subseqentes libertao do domnio portugus, em que se instalou

    uma grande desordem devido guerra. Essa guerra, figurada na narrativa,

    pode ser entendida como o conflito iniciado algum tempo depois da

    descolonizao, e que envolveu principalmente a FRELIMO e a RENAMO

    (Resistncia Nacional de Moambique) grupo formado por dissidentes do

    regime, apoiado por portugueses que haviam sido destitudos do poder,

    rodesianos e sul-africanos. De acordo com Fanon, quando a independncia

    ocorre, ela traz a dignidade, mas no h tempo suficiente para elaborar uma

    sociedade a partir dos destroos da anterior.60 Alm disso, a violncia no

    se extingue logo aps a libertao. O conflito continua, motivado pela

    competio entre socialismo e capitalismo (leve-se em conta o fato de que

    Fanon escreve em plena Guerra Fria). Assim, para a grande maioria da

    populao, a independncia no traz mudana imediata.

    Conforme o terico indiano Aijaz Ahmad, em alguns pases como os

    do sul da frica, que venceram suas guerras de libertao na metade da

    dcada de 1970, foi possvel ver com clareza a dinmica de uma luta

    anticolonial transformando-se numa luta socialista.61 Entretanto, afirma

    Ahmad, os movimentos revolucionrios de independncia dos pases

    africanos e asiticos do sculo XX que tentaram substituir as sociedades

    60 FANON, Frantz: 1979, p. 63. 61 AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente. So Paulo: Boitempo, 2002. p. 26.

  • 33

    coloniais por sociedades socialistas no tiveram xito. Ocorreu, ao

    contrrio, o fortalecimento da burguesia nacional, com conseqncias

    funestas para esses pases.62

    No fragmento do conto citado na pgina anterior, notvel o

    sentimento de desiluso diante de uma realidade que no corresponde

    quela sonhada e buscada em anos de lutas motivadas pelos ideais

    socialistas. Uma realidade perante a qual o "antigamente" dos tempos

    coloniais se afigura como algo menos desditoso e, at mesmo, mais

    desejvel.

    2.3. Transfigurao do real e transformao pela palavra

    ...a arte o equivalente moderno do rito e da festa: o poeta e o romancista constroem objetos simblicos, organismos que emitem imagens. Fazem o que faz o selvagem: convertem a linguagem em corpo. As palavras j no so coisas e, sem deixar de ser signos se animam, ganham corpo.

    Octavio Paz. Conjunes e disjunes.

    As narrativas de Mia Couto figuram, de uma parte, de maneira

    realista, fatos e momentos histricos importantes do pas; de outra parte,

    apresentam um forte contedo mtico, cuja expresso pode ser a narrao

    do acontecimento inslito (a transfigurao do real) ou a criao de

    62 Id., ib., p. 42-43.

  • 34

    imagens metamorfoseadoras, atravs da linguagem. Os elementos

    relacionados com o mito ou com uma viso mtica do mundo so muito

    freqentes em Cada homem uma raa.

    um procedimento recorrente a narrao de eventos nos quais

    ocorre a subverso das leis naturais do modo como elas so concebidas

    pelo pensamento racional. No conto "O pescador cego", por exemplo,

    Maneca Mazembe arranca seus prprios olhos para utili z-los como isca,

    numa ocasio em que fora acometido de terrvel fome, estando perdido em

    pleno mar. Graas aos peixes fisgados, ele se mantm vivo at chegar de

    volta praia de sua aldeia. Esses j so acontecimentos cujo tom de

    estranhamento e desconformidade com as leis da realidade se fazem notar.

    Quando Salima, sua mulher, manifesta a vontade de sair com o barco

    para pescar, Maneca probe-a, arrasta o barco para longe da gua e passa a

    viver dentro dele. Um dia, malgrado as advertncias de Salima quanto

    desgraa que isto provocaria, o pescador ateia fogo embarcao. A

    mulher e os filhos o abandonam, deixando-o na praia. Um tempo depois,

    ocorre algo inusitado:

    Certa noite [...], se confirmou o pressgio de Salima: aquele fogo voara demasiado alto, incomodando os espritos. Porque, do topo dos coqueiros, o vento se deu de uivar. Mazembe se afligiu, o cho mesmo se arrepiou. Sbito, o cu se rasgou e grossas pedras de gelo tombaram em toda a praia. O pescador corria no vazio, procura de abrigo. O granizo, implacvel, lhe castigava. Maneca desconhecia explicao. Nunca ele se cruzara com tais fenmenos. A terra subiu para o cu, pensou. Virado do avesso, o mundo deixava tombar seus materiais. (p. 103)

  • 35

    inconcebvel para uma racionalidade dita cientfica aceitar que tais

    eventos possam realmente ter lugar: como pode uma tempestade to grande

    e avassaladora ser desencadeada pela fumaa do incndio de um barco?

    impossvel, porm, deixar de notar a relao de causa e efeito estabelecida

    entre a queima da embarcao e os fenmenos meteorolgicos. No h

    dvida de que se trata de uma punio por um ato reprovado pelos

    espritos. No seria esse fato um exemplo de revelao da causalidade

    onipresente do realismo maravilhoso conforme teorizado por Chiampi

    que provoca um efeito de encantamento do leitor pela percepo da

    contigidade entre as esferas do real e do irreal?63

    Pode-se considerar, ainda, um segundo modo pelo qual o inusitado

    entra na narrativa; dessa vez, no atravs da transfigurao do real, mas

    pela maneira de nomear as coisas. leitura do fragmento anterior,

    prestando ateno s aes atribudas aos elementos naturais presentes,

    nota-se que, na prpria descrio da situao, na caracterizao da

    paisagem, produz-se um efeito de estranhamento, seno de encantamento.

    Esse efeito provavelmente se deve utili zao de um processo de

    personificao. Mas a seleo lexical operada no visa construo de uma

    simples figura, e sim criao de um novo modo de apreenso da realidade

    e de seus sentidos. Tampouco parece correto falar em personificao, nesse

    contexto, embora alguns dos elementos do espao descrito sejam investidos

    de caractersticas e atitudes humanas.

    Mais adequado seria afirmar que esses elementos vento, cho,

    granizo, terra - ganham vida e passam categoria de seres animados. Esse

    tipo de representao do espao entra em conflito e , at mesmo,

    63 CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. So Paulo: Perspectiva, 1980. p. 61.

  • 36

    incompatvel com uma lgica racionalista e uma concepo objetivista do

    mundo: expressaria e, ao mesmo tempo, seria resultado de uma viso

    mtica do mundo.

    2.3.1. Insli to e categor ias li terr ias

    O objetivo desta parte do trabalho discutir qual modalidade de

    sobrenatural existe nas narrativas e descobrir de que tipo de categoria

    ficcional essas narrativas esto mais prximas. Conforme j foi notado

    anteriormente, existe uma indefinio quanto nomeao do tipo de

    manifestaes presentes na fico do escritor moambicano. Essa

    indefinio, na verdade, no se torna fator determinante nas anlises dos

    textos. De maneira geral, os crticos tm chegado a importantes resultados

    na compreenso e interpretao dos sentidos da obra de Mia Couto.

    Entretanto, procura-se, neste trabalho, seguir as recomendaes de Roman

    Jakobson a respeito da necessidade de um certo rigor na nomeao dos

    fenmenos artsticos, considerando o carter cientfico atribudo aos

    estudos da linguagem e da literatura.64

    A discusso a respeito desse tema foi iniciada no sub-captulo

    Utopia, sonho, mito e histria , em que foram consideradas algumas

    anlises da obra de Mia Couto. A fim de retomar essa questo, cita-se

    novamente Rejane Vechia da Rocha e Silva, para quem a utopia surge

    dentro de uma narrativa que, s vezes, recorre ao fantstico para mostrar a

    64 JAKOBSON, Roman. Do realismo artstico. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teor ia da l iteratura formalistas russos. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1978. p. 119-127.

  • 37

    brutalidade da realidade frente aos maiores absurdos criados pela fico 65

    (grifos nossos). Aceitando esse ponto de vista, admite-se que a funo

    desempenhada por esse elemento chamado de fantstico seria

    simplesmente a de expor as mazelas da realidade do pas. Silva fornece um

    exemplo desse mecanismo: Seria absurdo os mortos voltarem para

    reclamarem e discutir com os vivos a sua prpria existncia? Mais

    fantstica foi a submisso a que o povo moambicano foi submetido... 66

    Alm da simpli ficao da funo desse outro plano, existe o problema de

    sua denominao, pois absurdo e fantstico so usados como

    expresses equivalentes. Ademais, a afirmao de que a narrativa, s

    vezes , utili za-se do fantstico , tambm suscita problemas. Primeiro

    deve-se perguntar: o que seria esse fantstico? Pelos exemplos fornecidos

    pelo texto, pode-se afirmar que so os acontecimentos inslitos, os quais se

    opem s leis do mundo natural. Admitida essa hiptese, deve-se concordar

    que o carter espordico atribudo a essas manifestaes, pelo uso do

    adjunto adverbial s vezes , um tanto quanto inadequado, tendo em vista

    a freqncia do aparecimento e o lugar ocupado dentro da narrativa por

    esses acontecimentos.

    Outros crticos que se dedicaram ao estudo da obra de Mia Couto

    tambm tm preferido analis-la sob a tica do fantstico, de acordo com a

    concepo de Torodov. Maria Aparecida Santilli , ao analisar contos do

    livro Vozes Anoitecidas, afirma que o timbre do inslito [...] advm do

    maravilhoso, ou do sobrenatural .67 Ela trata, ainda, como fantsticas, as

    narrativas estudadas. Esse tipo de abordagem, no entanto, pode ser revista.

    65 SILVA, Rejane Vechia da Rocha e: 2002, p. 494. 66 Id., ib., p. 495 67 SANTILLI, Maria Aparecida. O fazer-crer, nas histrias de Mia Couto. In: Via Atlntica, So Paulo, n. 3, 1999. p. 98-109.

  • 38

    Numa considerao preliminar, para relativizar esse ponto de vista bastaria

    afirmar que nos textos de Mia Couto no ocorre a hesitao entre dois tipos

    de explicao para um acontecimento o que seria, de acordo com

    Todorov, condio principal para a existncia do fantstico.

    Aqui se faz necessrio um parntese para a discusso dessa

    categoria. De acordo com Todorov, o fantstico a hesitao

    experimentada por um ser que s conhece as leis naturais, face a um

    acontecimento aparentemente sobrenatural.68 O terico torna essa

    definio mais precisa ao afirmar que, para ser considerado fantstico, um

    texto deve atender a trs condies. A primeira delas fazer com que o

    leitor considere o mundo das personagens como regido por leis naturais e

    hesite entre uma explicao natural e uma explicao sobrenatural para

    acontecimentos que, num primeiro momento, no podem ser entendidos a

    partir das leis desse mundo. A segunda condio a de que a hesitao do

    leitor tambm seja sentida por uma personagem. A terceira a recusa, por

    parte do leitor, da interpretao alegrica, bem como da interpretao

    potica do texto. O fantstico constitudo realmente pela primeira e

    terceira condies; no existe a obrigatoriedade de que a segunda seja

    satisfeita.

    Nas narrativas de Mia Couto, assim como no ocorre a hesitao,

    no existe tampouco um questionamento sobre a realidade dos fenmenos

    por parte das personagens, embora possa haver uma indagao dos motivos

    de tais ocorrncias. No conto "O Apocalipse privado do tio Gegu", aps

    retomar a bota que seu sobrinho no quisera calar, Gegu resolve livrar-se

    dela: Pegou na bota e atirou para longe. O estranho ento sucedeu: lanada

    68 TODOROV, Tzvetan. Introduo li teratura fantstica. So Paulo: Perspectiva, 1975. p. 31.

  • 39

    no ar a bota ganhou competncia voltil. A coisa voejava em velozes

    rodopios. O tio Gegu desafiara os espritos da guerra? (p. 31)

    Na pergunta do narrador, l-se a afirmao da possibili dade da

    existncia de tais eventos: num mundo em que se acredita na interveno

    dos espritos dos antepassados, possvel que coisas "estranhas"

    aconteam. Conforme Santilli , as personagens dos contos de Mia Couto

    remetem a um locus cultural onde determinados hbitos e posturas do

    pertinncia ao tipo de eventos e crenas em que tais eventos se

    abeberam .69 De maneira semelhante caracterizao do continente

    americano, por Alejo Carpentier, como o territrio do "real maravilhoso

    americano",70 poder-se-ia caracterizar a frica71 como um espao cultural

    em que determinados eventos, "maravilhosos" para a concepo do

    europeu, so "reais" para o africano. Carpentier - em um texto

    originalmente escrito como prlogo a El reino de este mondo no qual

    ataca o superficialismo e convencionalismo da utili zao do maravilhoso

    pelos escritores surrealistas - forja a expresso real maravilhoso para

    designar a realidade vivenciada no continente americano, em que a histria

    se mescla s lendas e crenas dos povos autctones. Estas ltimas tomadas

    como verdadeiras, pois a f vem a ser um dos elementos fundamentais para

    a existncia do maravilhoso.72

    69 SANTILLI, Maria Aparecida: 1999, p. 107. 70 CARPENTIER, Alejo. Tientos y diferencias. Buenos Aires: Calicanto, 1976. De lo real maravilhoso americano. p. 83-99. 71 preciso, entretanto, levar em conta o perigo de uma generalizao, conforme alerta Appiah. APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai a frica na filosofia da cultura. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 122. 72 CARPENTIER, Alejo: 1976, p. 96.

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    No despropositado apontar semelhanas entre a fico produzida

    nos dois continentes73 - semelhanas j atestadas por Mielietinski em suas

    consideraes sobre o entrecruzamento de mitologismo e historicismo nas

    literaturas do terceiro mundo .74 O crtico moambicano Nataniel

    Ngomane, em um texto sobre o romance Ualalapi, de Ungulani ba ka

    Khosa, refere este ficcionista, juntamente com Mia Couto, como

    paradigmtico da apropriao dos modelos da narrativa hispano-

    americana.75 Ngomane afirma ser a narrativa de Ualalapi caracterizada

    pela mistura de verdades factuais, passveis de comprovao documental,

    com verdades mticas, sobrenaturais .76 Embora no denomine esse tipo de

    fico a qual se assemelha de Mia Couto de realismo maravilhoso, o

    crtico utili za-se de noes de Chiampi, como a de contigidade entre as

    esferas do real e do irreal, para explicar o procedimento de Ungulani.

    Em artigo sobre o mesmo autor, o tambm moambicano Gilberto

    Matusse aponta igualmente a contribuio do modelo de fico hispano-

    americana na simulao ou construo de uma nova lgica, baseada, quer

    na viso mitolgica da tradio africana, quer no encontro, no cruzamento

    desta com os modelos do pensamento europeu .77 Segundo Matusse,

    73 vlido mencionar o artigo de Zil Bernd sobre a relao entre histria e mito em romances brasileiros e caribenhos. Ela analisa a presena do maravilhoso americano em narrativas desses dois espaos geogrficos. BERND, Zil. O maravilhoso como ponto de convergncia entre a literatura brasileira e as li teraturas do Caribe. Disponvel em Acessado em 20/01/2004. 74 Termo util izado sem pretenses tericas, servindo apenas para designar os chamados pases em desenvolvimento. Ahmad, no captulo Teoria dos trs mundos: o fim de um debate, mostra as dificuldades tericas na formulao e uti li zao desse termo, cujo significado inicial era o de mundo do no-alinhamento mili tar (EUA e URSS), chegando at a verso maosta da expresso: o Terceiro Mundo era composto dos pases predominantemente agrcolas e pobres, a qual acabou vigorando por mais tempo. AHMAD, Aijaz: 2002, p. 167-195. 75 NGOMANE, Nataniel. Palavras si lenciadas, vozes emergentes: o resgate da Histria em Ualalapi de Ungulani ba ka Khosa. Maderazinco Revista Literria Moambicana. Disponvel em: . Acessado em 15/01/2004. 76 Id., ib. 77 MATUSSE, Gilberto. O modelo da narrativa fantstica hispano-americana e a construo da imagem da moambicanidade em Ungulani ba ka Khosa. In: CRISTVO, Fernando; FERRAZ, Maria de

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    recorrendo a esses modelos, o autor moambicano aproveita um esquema

    e uma tcnica literria consagrados, que lhe propiciam a incorporao da

    viso mitolgica e do simbolismo do imaginrio das sociedades

    tradicionais africanas .78

    Carmen Lcia Tind Ribeiro Secco faz uma leitura comparada de

    um conto de Mia Couto e de um romance de Mario Vargas Llosa. Para a

    autora, esses escritores entendem a literatura como um espao atravs do

    qual o reservatrio das culturas locais, sufocado pela colonizao europia,

    pode ser recuperado. Afirma, ainda, que as narrativas fantsticas latino-

    americanas e africanas fazem interagir o natural e o sobrenatural, o real e o

    supra-real como expresses singulares das prprias culturas locais .79

    Os dois ltimos crticos, assim como Maria Aparecida Santilli ,

    utili zam a categoria do fantstico. Matusse, porm, chega a questionar a

    validade do uso desse termo para os contextos hispano-americano e

    africano. Ele afirma que tal utili zao deve ser tomada com reservas, pois o

    conceito de fantstico formulado a partir de uma viso do mundo

    fundamentada no modelo racionalista ocidental, enquanto as obras literrias

    estudadas so produzidas dentro de um contexto onde vigoram outros

    modelos de pensamento.80 Por semelhante razo, Carmen Lucia Tind

    Secco declara que as narrativas de Mia Couto e Vargas Llosa se afastam

    dos modelos europeus: elas deixam ler, nos interstcios do discurso

    Lourdes; CARVALHO, Alberto (coord). Nacionalismo e regionalismo nas li teraturas lusfonas. Lisboa: Cosmos, 1997. p. 313. 78 Id., ib., p. 313. 79 SECCO, Carmen Lcia Tind Ribeiro. Fantstico latino-americano: nas malhas da li teratura e da histria (uma abordagem comparatista com o fantstico africano).In: VII Congreso Internacional de la Fiealc, Instituto de Postgrado de Estudios Latinoamericanos, Universidad de Tamkang, 1995. (Texto fornecido pela autora, por meio eletrnico). 80 MATUSSE, Gilberto: 1997, p.