discurso orlandi

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    1/14

    I - O Discurso

    p.15

    A linguagem em Questo

    H muitas maneiras de se estudar a linguagem: concentrandonossa ateno sobre a lngua enquanto sistema de signos oucomo sistema de regras formais, e temos ento a Lingstica;ou como normas de bem dizer, por exemplo, e temos a Gramticanormativa. Alm disso, a prpria palavra gramtica como apalavra lngua podem significar coisas muito diferentes, porisso as gramticas e a maneira de se estudar a lngua sodiferentes em diferentes pocas, em distintas tendncias e emautores diversos. Pois justamente pensando que h muitasmaneiras de se significar que os estudiosos comearam a se

    interessar pela linguagem de uma maneira particular que aque deu origem Anlise de Discurso.

    A Anlise de Discurso, como seu prprio nome indica, notrata da lngua, no trata da gramtica, embora todas essas coisaslhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso,etimologicamente, tem em si a idia de curso, de percurso, decorrer por, de movimento. O discurso assim palavra emmovimento, prtica de linguagem: com o estudo do discursoobserva-se o homem falando.

    Na anlise de discurso, procura-se compreender a lngua

    fazendo sentido, enquanto trabalho simblico, parte do trabalhosocial geral, constitutivo do homem e da sua histria.

    Por esse tipo de estudo se pode conhecer melhor aquilo quefaz do homem um ser especial com sua capacidade de significar esignificar-se. A Anlise de Discurso concebe a linguagem

    http://www.docudesk.com/
  • 8/4/2019 discurso orlandi

    2/14

    como mediao necessria entre o homem e a realidade natural esocial. Essa mediao, que o discurso, torna possvel tanto apermanncia e a continuidade quanto o deslocamento e atransformao do homem e da realidade em que ele vive. Otrabalho simblico do discurso est na base da produo da

    existncia humana.Assim, a primeira coisa a se observar que a Anlise de

    Discurso no trabalha com a lngua enquanto um sistema

    16

    abstrato, mas com a lngua no mundo, com maneiras designificar, com homens falando, considerando a produo de

    sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitosseja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade.

    Levando em conta o homem na sua histria, considera osprocessos e as condies de produo da linguagem, pela anliseda relao estabelecida pela lngua com os sujeitos que a falam eas situaes em que se produz o dizer. Desse modo, paraencontrar as regularidades da linguagem em sua produo, oanalista de discurso relaciona a linguagem sua exterioridade.

    Tendo em vista esta finalidade, ele articula de modo particularconhecimentos do campo das Cincias Sociais e do domnio daLingstica. Fundando-se em uma reflexo sobre a histria da

    epistemologia e da filosofia do conhecimento emprico, essaarticulao objetiva a transformao da prtica das cinciassociais e tambm a dos estudos da linguagem.

    Em uma proposta em que o poltico e o simblico seconfrontam, essa nova forma de conhecimento coloca questespara a Lingstica, interpelando-a pela historicidade que elaapaga, do mesmo modo que coloca questes para as CinciasSociais, interrogando a transparncia da linguagem sobre a qualelas se assentam. Dessa maneira, os estudos discursivos visampensar o sentido dimensionado no tempo e no espao das prticas

    do homem, descentrando a noo de sujeito e relativizando aautonomia do objeto da Lingustica.

    Em conseqncia, no se trabalha, como na Lingstica, com alngua fechada nela mesma mas com o discurso, que um objetoscio-histrico em que o lingstico intervm como pressuposto.Nem se trabalha, por outro lado, com a histria e a sociedade como seelas fossem independentes do fato de que elas significam.

    Nessa confluncia, a Anlise de Discurso critica a prticadas Cincias Sociais e a da Lingstica, refletindo sobre amaneira como a linguagem est materializada na ideologia ecomo a ideologia se manifesta na lngua.

    17

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    3/14

    Part indo da idia de que a mater ia l idade especf ica daideologia o discurso e a materialidade especfica do discurso a lngua, trabalha a relao lngua-discurso-ideologia. Essar e l a o s e c o m p l e m e n t a c o m o f a t o d e q u e , c o m o d i z M .Pcheux (1975), no h discurso sem sujeito e no h sujeito

    sem ideologia : o indivduo in terpelado em suje i to pelaideologia e assim que a lngua faz sentido.

    Conseqen temen te , o d i scu rso o luga r em que se podeo b s e r v a r e s s a r e l a o e n t r e l n g u a e i d e o l o g i a ,compreendendo-se como a l ngua p roduz sen t idos po r / p a r a os su je ito s .

    Um Novo Terreno e Estudos Preliminares

    Embora a Anl ise de Discurso , que toma o d iscurso comoseu objeto prprio, tenha seu incio nos anos 60 do sculo XX, oestudo do que interessa ela - o da lngua funcionando para aproduo de sentidos e que permite analisar unidades alm dafrase, ou seja, o texto -j se apresentara de forma no sistemticaem diferentes po cas e segund o d iferentes perspectivas.

    Sem pensa rmos na An t igu idade e nos e s tudos re t r i cos ,temos estudos do texto, em sua materialidade lingstica, emM.Bral , por exemplo, no sculo XIX, com sua semnt icahistrica. Situando-nos no sculo XX, temos os estudos dosformalistas russos (anos 20/30), que j pressentiam no textouma es t ru tu ra . Embora o in te res se dos fo rma l i s t a s fossesobretudo li terrio, os seus trabalhos, buscando uma lgica

    in te rna do t ex to , p renunc iavam uma an l i se que no e ra aanlise de co ntedo , maneira tradicional de abo rdagem .

    A a n l i s e d e c o n t e d o , c o mo s a b e mo s , p r o c u r a e x t r a i rsen t idos dos t ex tos , r e spondendo ques to : o que e s tet e x t o q u e r d i z e r ? D i f e r e n t e me n t e d a a n l i s e d e c o n t e d o ,a A n l i s e d e D i s c u r s o c o n s i d e r a q u e a l i n g u a g e m n o transparente. Desse modo ela no procura atravessar o textopara encontrar um sent ido do outro lado. A questo que e laco loca : co mo es te t ex to s ign i fica?

    18

    H a um des locamen to , j p renunc iado pe los fo rma l i s t a srussos , onde a questo a ser respondida no o "o qu" m as o"como". Para responder, ela no trabalha com os textos apenascomo ilustrao ou como documento de algo que j est sabidoem ou t ro luga r e que o t ex to exempl i f i ca . Ela p roduz umconhecimento a partir do prprio texto, porque o v como tendouma materialidade simblica prpria e significativa, como tendoum a espessura semntica: ela o co ncebe em sua discursividade.

    Ainda em termos de precursores, outra forma de anlise bemsuced ida , que j pesqu i sava o t ex to , a do e s t ru tu ra l i s t aamericano Z.Harris (anos 50). Com seu mtodo distribucional,ele consegue livrar a anlise do texto do vis conteudista mas,

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    4/14

    para faz-lo, reduz o texto a uma frase longa. Isto , caracterizasua prtica terica no interior do que chamamos isomorfismo:es tende o mesmo mtodo de an l i se de un idades menores(morfemas, frases) para unidades maiores (texto) e procede auma anlise lingustica do texto como o faz na instncia da frase,

    perdendo dele aquilo que ele tem de especfico. Como sabemos, otexto no apenas uma frase longa ou uma soma de frases. Ele uma to ta l idade com sua qua l idade pa r t i cu la r , com suanatureza especfica.

    Cons ide rando o t ex to como un idade fundamen ta l naan l i se da l inguagem, t emos no e s t ru tu ra l i smo eu ropeu oing ls M.A.K.Ha l l iday . Ele cons ide ra o t ex to como umap a s s a g e m d e q u a l q u e r c o mp r i me n t o q u e f o r ma u m t o d oun i f i cado , pensando a l inguagem em uso . Segundo suaproposta, que trata o texto como unidade semntica, o textono constitudo de sentenas, ele realizado por sentenas, o

    que, de certo modo, inverte a perspectiva l ingustica. Suascontr ibuies so val iosas mas, d i ferena da Anl ise deDiscu rso , e l e no t r aba lha com a fo rma ma te r i a l , ou com aideo log ia com o cons t itu t iva e e s t ac iona na desc r i o .

    19

    Filiaes Tericas

    Nos anos 60, a Anlise de Discurso se constitui no espao dequestes criadas pela relao entre trs domnios disciplinaresque so ao mesmo tempo uma ruptura com o sculo XIX: aLingstica, o Marxismo e a Psicanlise.

    A Lingustica constitui-se pela afirmao da no-transparnciada linguagem: ela tem seu objeto prprio, a lngua, e esta temsua ordem prpria. Esta afirmao fundamental para a Anlisede Discurso, que procura mostrar que a relao linguagem/pensamento/mundo no unvoca, no uma relao diretaque se faz termo-a-termo, isto , no se passa diretamente deum a outro. Cada um tem sua especificidade. Por outro lado, a

    Anlise de Discurso pressupe o legado do materialismohistrico, isto , o de que h um real da histria de tal formaque o homem faz histria mas esta tambm no lhe transparente. Da, conjugando a lngua com a histria naproduo de sentidos, esses estudos do discurso trabalham oque vai-se chamar a forma material (no abstrata como a daLingustica) que a forma encarnada na histria para produzirsentidos: esta forma portanto lingstico-histrica.

    Nos estudos discursivos, no se separam forma e contedo eprocura-se compreender a lngua no s como uma estruturamas sobretudo como acontecimento. Reunindo estrutura e

    acontecimento a forma material vista como o acontecimentodo significante (lngua) em um sujeito afetado pela histria. Aentra ento a contribuio da Psicanlise, com o deslocamento danoo de homem para a de sujeito. Este, por sua vez, seconstitui na relao com o simblico, na histria.

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    5/14

    Assim, para a Anlise de Discurso:

    a. a lngua tem sua ordem prpria mas s relativamenteautnoma (distinguindo-se da Lingstica, ela reintroduz a noode sujeito e de situao na anlise da linguagem);

    b. a histria tem seu real afetado pelo simblico (os fatosreclamam sentidos);

    20

    c. o sujeito de l inguagem descentrado pois afetado peloreal da l ngua e tambm pelo rea l da h is tr ia , no tendo ocontrole sobre o modo como elas o afe tam. Isso redunda emdizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente epela ideologia.

    As palavras simples do nosso cotidiano j chegam at nscarregadas de sentidos que no sabemos como se constituram eque no e ntanto significam em ns e para n s.

    Desse modo, se a Anlise do Discurso herdeira das trsr e g i e s d e c o n h e c i m e n t o - P s i c a n l i s e , L i n g s t i c a ,Marxismo - no o de modo servil e trabalha uma noo - ade discurso - que no se reduz ao objeto da Lingstica, nems e d e i x a a b s o r v e r p e l a T e o r i a M a r x i s t a e t a m p o u c oc o r r e s p o n d e a o q u e t e o r i z a a P s i c a n l i s e . I n t e r r o g a a

    Lingustica pela historicidade que ela deixa de lado, questiona oMaterialismo perguntando pelo simblico e se demarca daPsicanlise pelo modo como, considerando a historicidade,t r aba lha a ideo log ia como mate r i a lmen te r e lac ionada aoinconsciente sem ser absorvida por ele.

    As noes de sujeito e de l inguagem que esto na base dasCincias Humanas e Sociais no sculo XIX j no tm atualidadeaps a contribuio da Lingstica e da Psicanlise. Por outrolado, tampouco a noo de lngua (como sistema abstrato) podeser a mesm a com a contribuio do M aterialismo.

    A anlise de discurso, trabalhando na confluncia dessescampos de conhecimento, irrompe em suas fronteiras e produzum novo recorte de disciplinas, constituindo um novo objetoque vai afetar essa formas de conhecimento em seu conjunto:este novo objeto o discurso.

    Discurso

    A noo de discurso, em sua definio, distancia-se do modocomo o esquema elementar da comunicao dispe seus elementos,definindo o que mensagem. Como sabemos, esse esquema

    21

    elementar se constitui de: emissor, receptor, cdigo, referente emensagem. Temos ento que: o emissor transmite uma mensagem

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    6/14

    (informao) ao receptor, mensagem essa formulada em um cdigoreferindo a algum elemento da realidade - o referente. Cujoesquema :

    Para a Anlise de Discurso, no se trata apenas de transmisso deinformao, nem h essa linearidade na disposio dos elementos dacomunicao, como se a mensagem resultasse de um processoassim serializado: algum fala, refere alguma coisa, baseando-seem um cdigo, e o receptor capta a mensagem, decodificando-a.

    Na realidade, a lngua no s um cdigo entre outros, no h essaseparao entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numaseqncia em que primeiro um fala e depois o outro decodificaetc. Eles esto realizando ao mesmo tempo o processo designificao e no esto separados de forma estanque. Alm disso,ao invs de mensagem, o que propomos justamente pensar a odiscurso. Desse modo, diremos que no se trata de transmisso deinformao apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que peem relao sujeitos e sentidos afetados pela lngua e pela histria,temos um complexo processo de constituio desses sujeitos eproduo de sentidos e no meramente transmisso de informao.

    So processos de identificao do sujeito, de argumentao, desubjetivao, de construo da realidade etc. Por outro lado,tampouco assentamos esse esquema na idia de comunicao. Alinguagem serve para comunicar e para no comunicar. As relaes delinguagem so relaes de sujeitos e de sentidos e seus efeitos somltiplos e variados. Da a definio de discurso: o discurso efeitode sentidos entre locutores.

    Tambm no se deve confundir discurso com "fala" nacontinuidade da dicotomia (lngua/fala) proposta por F. de

    22

    Saussure. O discurso no corresponde noo de fala pois nose trata de op-lo l ngua como sendo esta um sistema, ondetudo se mantm, com sua natureza social e suas constantes,sendo o discurso, como a fala, apenas uma sua ocorrncia casual,individual, realizao do sistema, fato histrico, a-sistemtico,com suas variveis etc. O discurso tem sua regularidade, temseu funcionamento que possvel apreender se no opomos osocia l e o h is tr ico , o s is tema e a rea l izao, o subje t ivo aoobjetivo, o p rocesso ao pro duto.

    A An l i s e d e D i s c u r s o f a z u m o u t r o r e c o r t e t e r i c orelacionando lngua e discurso. Em seu quadro terico, nem odiscurso visto como uma liberdade em ato, totalmente semcondicionantes lingsticos ou determinaes histricas, nem a

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    7/14

    l ngua como totalmente fechada em si mesma, sem falhas ouequvocos . As s is temat ic idades l ings t icas - que nessaperspectiva no afastam o semntico como se fosse externo -so a s cond ies ma te r i a i s de base sobre a s qua i s sedesenvolvem os processos d iscurs ivos . A l ngua ass im

    condio de possibilidade do discurso. No entanto a fronteiraentre l ngua e discurso posta em causa sistematicamente emcada prtica discursiva, pois as sistematicidades acima referidas,no exis tem, como diz M. Pcheux (1975) , sob a forma de umbloco homogneo de reg ras o rgan izado mane i ra de umamqu ina lg ica . A re lao de r ecobr imen to , no havendoportanto um a separao estvel entre eles.

    III - D ispositivo d e An lise

    O lugar da Interpretao

    D i a n t e d a s c a ra c t e rs t ic a s q u e e v o c a mo s a c ima e d o sconceitos que apresentamos, cabe comear a refletir sobre odispositivo da anlise. Se a l inguagem funciona desse modo,c o m o d e v e p r o c e d e r o a n a l i s t a ? Q u e e s c u t a e l e d e v eestabelecer para ouvir para l das evidncias e compreender,

    aco lhendo , a opac idade da l inguagem, a de te rminao dossentidos pela histria, a constituio do sujeito pela ideologia epe lo inconsc ien te , f azendo espao pa ra o poss ve l , asingularidade, a ruptura, a resistncia?

    Como dissemos mais acima, a proposta a da construo deum dispositivo da interpretao. Esse dispositivo tem comocaracterstica colocar o dito em relao ao no dito, o que osujeito diz em um lugar com o que dito em outro lugar, o que dito de um modo com o que dito de outro, procurando ouvir,naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele no diz mas que constituiigualmente o s sentido s de suas p alavras.

    A Anlise de Discurso no procura o sentido "verdadeiro", mas oreal do sentido em sua materialidade lingstica e histrica. Aideologia no se aprende, o inconsciente no se controla com osaber. A prpria lngua funciona ideologicamente, tendo em suamaterialidade esse jogo. Todo enunciado, dir M. Pcheux (idem), lingsticamente descritvel como uma srie de pontos de derivapossvel oferecendo lugar interpretao. Ele sempre suscetvel deser/tornar-se outro. Esse lugar do outro enunciado o lugar dainterpretao, manifestao do inconsciente e da ideologia naproduo dos sentidos e na constituio dos sujeitos. tambmem relao interpretao que podemos considerar o interdiscurso (oexterior) como a alteridade discursiva: " porque h o outro nassociedades e na histria, diz M. Pcheux (1990), correspondente aeste outro l inguajeiro discursivo, que a pode haver l igao,identificao ou transferncia, isto , existncia de uma relao

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    8/14

    abrindo a possibilidade de interpretar. E porque h essa ligaoque as filiaes histricas podem-se organizar em memrias, e asrelaes sociais em redes de significantes".

    60

    Temos afirmado que no h sentidos "literais" guardados emalgum lugar - seja o crebro ou a lngua - e que "aprendemos" ausar. Os sentidos e os sujeitos se constituem em processos em que htransferncias, jogos simblicos dos quais no temos o controle enos quais o equvoco - o trabalho da ideologia e do inconsciente -

    esto largamente presentes.As transferncias presentes nos processos de identificao dos

    sujeitos constituem uma pluralidade contraditria de filiaeshistricas. Uma mesma palavra, na mesma lngua, significadiferentemente, dependendo da posio do sujeito e dainscrio do que diz em uma ou outra formao discursiva. Oanalista deve poder explicitar os processos de identificao pelasua anlise: falamos a mesma lngua mas falamos diferente. Seassim , o dispositivo que ele constri deve ser capaz demostrar isso, de lidar com isso. Esse dispositivo devepoder levar em conta ideologia e inconsciente assim

    considerados.O dispositivo, a escuta discursiva, deve explicitar os gestos de

    interpretao que se ligam aos processos de identificao dossujeitos, suas filiaes de sentidos: descrever a relao do sujeitocom sua memria. Nessa empreitada, descrio einterpretao se interrelacionam. E tambm tarefa do analistadistingui-las em seu propsito de compreenso.

    Podemos mesmo dizer que a interpretao aparece em doismomentos da anlise:

    a. em um primeiro momento, preciso considerar que a

    interpretao faz parte do objeto da anlise, isto , o sujeitoque fala interpreta e o analista deve procurar descrever essegesto de interpretao do sujeito que constitui o sentidosubmetido anlise;

    b. em um segundo momento, preciso compreender queno h descrio sem interpretao, ento o prprio analistaest envolvido na interpretao. Por isso necessriointroduzir-se um dispositivo terico que possa intervir na

    61

    relao do analista com os objetos simblicos que analisa,produzindo um deslocamento em sua relao de sujeito com a

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    9/14

    in terpre tao: esse des locamento vai permit i r que e letrabalhe no entrem eio da d escrio co m a interpretao.

    O que se e spe ra do d i spos i t ivo do ana l i s t a que e la lhepe rmi ta t r aba lha r no numa pos io neu t ra mas que se jare la t iv izada em face da in terpre tao: preciso que e lea t ravesse o efe i to de t ransparncia da l inguagem, dal i tera l idade do sent ido e da onipotncia do suje i to . Essedisposi t ivo vai ass im invest i r na opacidade da l inguagem,no descen t ramen to do su je i to e no e fe i to me ta f r i co , i s to ,no equ voco , na f a lha e na ma te r i a l idade . No t r aba lho daideologia .

    A construo desse dispositivo resulta na alterao daposio do leitor para o lugar construdo pelo analista. Lugarem que se mostra a alteridade do cientista, a leitura outra queele pode produzir. Nesse lugar, ele no reflete mas situa,

    compreende, o movimento da interpretao inscrito no objetosimblico que seu alvo. Ele pode ento contemplar(teorizar) e expor (descrever) os efeitos da interpretao. Porisso que dizemos que o analista de discurso, diferena dohermeneuta, no interpreta, ele trabalha (n)os limites dainterpretao. Ele no se coloca fora da histria, dosimblico ou da ideologia. Ele se coloca em uma posiodeslocada que lhe permite contemplar o processo deproduo de sentidos em suas condies.

    Sem procurar eliminar os efeitos de evidncia produzidos

    pela linguagem em seu funcionamento e sem pretender colocar-se fora da interpretao - fora da histria, fora da lngua - oanalista produz seu dispositivo terico de forma a no ser vtimadesses efeitos, dessas iluses, mas a tirar proveito delas. E o fazpela mediao terica. Para que, no funcionamento do discurso,na produo dos efeitos, ele no reflita apenas no sentido doreflexo, da imagem, da ideologia, mas reflita no sentido dopensar. Isto significa colocar em suspenso a interpretao.Contemplar. Que, na sua origem grega, tem a ver com deus,com o momento em que o heri contempla antes da luta: eleencara sua tarefa. Ele a pensa.

    62

    Em nosso caso, trata-se da teoria, no sentido de que no h anlise dediscurso sem a mediao terica permanente, em todos os passos daanlise, trabalhando a intermitncia entre descrio einterpretao que constituem, ambas, o processo de compreenso doanalista. assim que o analista de discurso "encara" a linguagem.

    Tendo isso em conta, ele constri finalmente seu dispositivo

    analtico, que ele particulariza, a partir da questo que ele colocaface aos materiais de anlise que constituem seu corpus e que elevisa compreender, em funo do domnio cientfico a que elevincula seu trabalho. Com esse dispositivo, ele est em medida depraticar sua anlise, e a partir desse dispositivo que ele

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    10/14

    interpretar os resultados a que ele chegar pela anlise do discursoque ele empreendeu.

    Para isso preciso que ele compreenda como o discurso setextualiza.

    As Bases da Anlise

    Um dos primeiros pontos a considerar, se pensamos a anlise, aconstituio do corpus (E. Orlandi, 1998).

    A delimitao do corpus no segue critrios empricos(positivistas) mas tericos. Em geral distinguimos o corpusexperimental e o de arquivo. Quanto natureza da linguagem,devemos dizer que a anlise de discurso interessa-se por prticasdiscursivas de diferentes naturezas: imagem, som, letra, etc.

    No se objetiva, nessa forma de anlise, a exaustividade

    que chamamos horizontal, ou seja, em extenso, nem acompletude, ou exaustividade em relao ao objeto emprico. Ele inesgotvel. Isto porque, por definio, todo discurso seestabelece na relao com um discurso anterior e aponta paraoutro. No h discurso fechado em si mesmo mas um processodiscursivo do qual se podem recortar e analisar estadosdiferentes.

    63

    A exaustividade almejada - que chamamos vertical - deve serconsiderada em relao aos objetivos da anlise e suatemtica. Essa exaustividade vertical, em profundidade, leva aconseqncias tericas relevantes e no trata os "dados" comomeras ilustraes. Trata de "fatos" da linguagem com suamemria, sua espessura semntica, sua materialidadelingstico-discursiva.

    Assim, a construo do corpus e a anlise esto intimamenteligadas: decidir o que faz parte do corpus j decidir acerca depropriedades discursivas. Atualmente, considera-se que a melhor

    maneira de atender questo da constituio do corpus construir montagens discursivas que obedeam critrios quedecorrem de princpios tericos da anlise de discurso, face aosobjetivos da anlise, e que permitam chegar sua compreenso.Esses objetivos, em consonncia com o mtodo e osprocedimentos, no visa a demonstrao mas a mostrar como umdiscurso funciona produzindo (efeitos de) sentidos.

    E a no podemos evitar uma distino produtiva que existe entrediscurso e texto. Esta, por sua vez, traz necessariamente consigo aque existe entre sujeito e autor.

    O texto a unidade que o analista tem diante de si e da qualele parte. O que faz ele diante de um texto? Ele o remeteimediatamente a um discurso que, por sua vez, se explicita emsuas regularidades pela sua referncia a uma ou outraformao discursiva que, por sua vez, ganha sentido porque

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    11/14

    deriva de um jogo definido pela formao ideolgicadominante naquela conjuntura.

    A dificuldade est em que no h um contato inaugural como discurso (ou discursos), com o material que nosso objeto deanlise. Isto porque ele no se d como algo j discernido eposto. Em grande medida o corpus resulta de uma construodo prprio analista.

    64

    A anlise um processo que comea pelo prprioestabelecimento do corpus e que se organiza face natureza domaterial e pergunta (ponto de vista) que o organiza. Da anecessidade de que a teoria intervenha a todo momento para

    "reger" a relao do analista com o seu objeto, com os sentidos, comele mesmo, com a interpretao.

    Conseqentemente, tambm no dizemos da anlise que ela objetiva mas que ela deve ser o menos subjetiva possvel,explicitando o modo de produo de sentidos do objeto emobservao.

    Por isso mesmo, concluda a anlise, o que podemos avaliar acapacidade analtica do pesquisador, pela habilidade com que elepratica a teoria, face a sua responsabilidade terica, portanto, esua capacidade de escrita - explicitao da anlise - para

    interpretar os re su lt ados de seu pr oc es so de compreensodo discurso que analisou.

    Uma vez analisado, o objeto permanece para novas e novasabordagens. Ele no se esgota em uma descrio. E isto no tema ver com a objetividade da anlise mas com o fato de quetodo discurso parte de um processo discursivo mais amploque recortamos e a forma do recorte determina o modo da anlisee o dispositivo terico da interpretao que construmos. Porisso o dispositivo analtico pode ser diferente nas diferentestomadas que fazemos do corpus, relativamente questo postapelo analista em seus objetivos. Isto conduz a resultados

    diferentes.Por exemplo, se analisamos um texto do sculo XVII,

    pensando o discurso jesutico na colonizao do Brasil, vamospropor um dispositivo que mobiliza noes que no sero asmesmas se considerarmos o mesmo texto em funo de umaanlise que visa compreender como neles se encontram traos dodiscurso machista, por exemplo. Os textos, para ns, no sodocumentos que ilustram idias pre-concebidas, masmonumentos nos quais se inscrevem as mltiplas possibilidades deleituras. Nem tampouco nos atemos aos seus aspectos formais

    65

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    12/14

    cuja repetio garantida pelas regras da lngua - pois nosinteressa sua materialidade, que lingstico-histrica, logo no seremete a regras mas as suas condies de produo em relao memria, onde intervm a ideologia, o inconsciente, oesquecimento, a falha, o equvoco. O que nos interessa no so as

    marcas em si mas o seu funcionamento no discurso. estefuncionamento que procuramos descrever e compreender.

    Uma Questo de Mtodo

    H uma passagem inicial fundamental que a que se faz entre asuperfcie lingstica (o material de linguagem bruto coletado, talcomo existe) e o objeto discursivo, este sendo definido pelo fato deque o corpus j recebeu um primeiro tratamento de anlisesuperficial, feito em uma primeira instncia, pelo analista, e j

    se encontra de-superficializado.Em que concerne esse processo de de-superficializao?

    Justamente na anlise do que chamamos materialidadelingstica: o como se diz, o quem diz, em que circunstncias etc.Isto , naquilo que se mostra em sua sintaxe e enquanto processode enunciao (em que o sujeito se marca no que diz), fornecendo-nos pistas para compreendermos o modo como o discurso quepesquisamos se textualiza. Observamos isso em funo deformaes imaginrias (a imagem que se tem de um eleitoruniversitrio, de um docente, de um candidato a reitor, demovimento social etc), em suas relaes de sentido e de foras (de quelugar fala "x", "y", etc), atravs dos vestgios que deixam no fio dodiscurso.

    Com isto procuramos dar conta do chamado esquecimentonmero 2 (do domnio da enunciao) e que d a impresso de queaquilo que dito s poderia ser dito daquela maneira. Com esseprimeiro movimento de anlise, trabalhamos no sentido dedesfazer os efeitos dessa iluso: construmos, a partir domaterial bruto, um objeto discursivo em que analisamos o que dito nesse discurso e o que dito em outros, em outrascondies, afetados por diferentes memrias discursivas.

    66

    Comea a aparecer a o modo de funcionamento do discurso,observada a relao que existe entre diferentes superfcieslingsticas face ao mesmo processo discursivo. Com istodetectamos a relao do discurso com as formaes discursivas.

    O objeto discursivo no dado, ele supe um trabalho doanalista e para se chegar a ele preciso, numa primeira etapa de

    anlise, converter a superfcie lingstica (o corpus bruto), odado emprico, de um discurso concreto, em um objeto terico,isto , um objeto lingisticamente de-superficializado, produzidopor uma primeira abordagem analtica que trata criticamente a

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    13/14

    impresso de "realidade" do pensamento, iluso que sobrepepalavras, idias e coisas.

    A partir desse momento, estamos em medida de analisarpropriamente a discursividade que nosso objetivo porque jcomeamos a entrar no processo discursivo e samos de seuproduto acabado, no qual estvamos presos, e cujos efeitos nosafetam lingstica e ideologicamente. A anlise, alis, visa

    justamente deslocar o sujeito face a esses efeitos. Esse j ummovimento de compreenso que se sustenta em uma primeiraetapa de anlise praticada pelo dispositivo analtico.

    No exemplo que apresentamos, construmos o objetodiscursivo, colocando o texto exposto no campus Vote Sem Medo emrelao com o texto por ns formulado como contraponto VoteCom Coragem. Essa j uma construo da anlise e desfaz oproduto enquanto tal para fazer aparecer o processo. Com isso,

    j estamos nos colocando teoricamente em guarda, do ponto de vistados efeitos do discurso, e produzindo um recorte que vaiorganizando o corpus.

    Nosso ponto de partida o de que a anlise de discurso visacompreender como um objeto simblico produz sentidos. Atransformao da superfcie lingustica em um objeto discursivo oprimeiro passo para essa compreenso. Inicia-se o trabalho deanlise pela configurao do corpus, delineando-se seuslimites, fazendo recortes, na medida mesma em que se va i

    67

    incidindo um primeiro trabalho de anlise, retomando-seconceitos e noes, pois a anlise de discurso tem umprocedimento que demanda um ir-e-vir constante entre teoria,consulta ao corpus e anlise. Esse procedimento d-se ao longo detodo o trabalho.

    Comeamos por observar o modo de construo, aestruturao, o modo de circulao e os diferentes gestos deleitura que constituem os sentidos do texto submetido

    anlise. A partir desse momento estamos em condio dedesenvolver a anlise, a partir dos vestgios que a vamosencontrando, podendo ir mais longe, na procura do quechamamos processo discursivo.

    No exemplo que tomamos, s podemos compreender o que essemodo peculiar de significar do discurso polticouniversitrio, se aprofundarmos a anlise e atingirmos, em umasegunda fase, o processo discursivo. Nessa nova passagem, agorado objeto para o processo discursivo, passamos ao mesmo tempo dodelineamento das formaes discursivas para sua relao com a

    ideologia, o que nos permite compreender como se constituem ossentidos desse dizer. No caso de Vote Sem Medo, nesse passoque vemos, na rede de filiao de sentidos e suas relaes desenhadaspela ideologia, o compromisso desse dizer com a memria dofascismo, como um efeito que os prprios locutores podem at

  • 8/4/2019 discurso orlandi

    14/14

    mesmo des-conhecer mas que est l com sua eficcia. Entre asinmeras possibilidades de formulao, os sujeitos dizem x eno y, significando, produzindo-se em processos deidentificao que aparecem como se estivessem referidos a sentidosque ali esto, enquanto produtos da relao evidente de palavras e

    coisas. Mas, como dissemos, as palavras refletem sentidos dediscursos j realizados, imaginados ou possveis. desse modo que ahistria se faz presente na lngua.

    Processos como parfrase, metfora, sinonmia so presena dahistoricidade na lngua. Dito de outro modo, esses processos atestam,na lngua, sua capacidade de historicizar-se.

    68

    Fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre oreal da lngua e o da histria, entre o acaso e a necessidade, o jogo ea regra, produzindo gestos de interpretao. De seu lado, oanalista encontra, no texto, as pistas dos gestos deinterpretao, que se tecem na historicidade. Pelo seu trabalho deanlise, pelo dispositivo que constri, considerando osprocessos discursivos, ele pode explicitar o modo de constituio dossujeitos e de produo dos sentidos. Passa da superfcielingstica (corpus bruto, textos) para o objeto discursivo e deste parao processo discursivo. Isto resulta, para o analista com seudispositivo, em mostrar o trabalho da ideologia. Em outras

    palavras, trabalhando essas etapas da anlise que ele observa osefeitos da lngua na ideologia e a materializao desta na lngua.Ou, o que, do ponto de vista do analista, o mesmo: assim queele apreende a historicidade do texto.

    Destaca-se a a textualizao do poltico, entendidodiscursivamente: a simbolizao das relaes de poderpresentes no texto.