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DIOGO PIRES E A LEMBRANÇA DE ERASMO* Entre tantas figuras de homens de letras do nosso Portugal de Quinhentos que a história conta entre os erasmistas (alguns, é certo, apenas por suspeição, nem sempre fundada) e dos quais Damião de Góis é tão-somente o expoente máximo, pouco peso terá o nome do judeu português e poeta novilatino Diogo Pires. Nascido em 1517, não foi significativa a contemporaneidade entre ele e Erasmo: quando este morreu em Basileia, em Junho de 1536, contava o nosso poeta somente 19 anos, feitos em Abril. Encon- trava-se, então, nos Países-Baixos, por onde passou, algo fugazmente, no seu peregrinar de cristão-novo em fuga de Portugal. Frequentara, até esse momento, Salamanca, cuja lembrança lhe aflora amiúde nos versos. Estivera, depois, em Inglaterra, primeira etapa para muitos dos judeus portugueses fugidos à Inquisição. Quanto aos Países-Baixos, há provas da estadia em Lovaina e Liège. Datarão desta altura os primeiros versos, entre eles os que a notícia da morte de Erasmo originou e que mais adiante serão analisados, saídos a lume em 1537, em Lovaina; não completara ainda os 20 anos, nota que, só por si, documenta a rápida integração no ambiente uni- versitário da grande capital da cultura. Além destes, o seu mais antigo poema impresso figura na edição de 1539 da Cosmographia, de Pedro Appiano, impressa em Antuérpia (1), o que constitui nova prova do seu contacto com os meios culturais da época naquela região (2). (*) Texto reelaborado a partir de uma comunicação apresentada ao II Sim- pósio Nacional sobre o Humanismo Português (Academia das Ciências de Lisboa, 25 a 28 de Maio de 1987), cujas actas nunca foram publicadas. (1) Petri Aplani Cosmographia, per Gemmam Phrysium, apud Louanienses Medicum ac Mathematicum insignem restituía. O poema não igura nas edições anteriores à de 1539. (2) Deve notar-se que o poema foi composto, decerto, antes de 1539, pois nesta data já o nosso poeta se encontrava em Itália. 6

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DIOGO PIRES E A LEMBRANÇA DE ERASMO*

Entre tantas figuras de homens de letras do nosso Portugal de Quinhentos que a história conta entre os erasmistas (alguns, é certo, apenas por suspeição, nem sempre fundada) e dos quais Damião de Góis é tão-somente o expoente máximo, pouco peso terá o nome do judeu português e poeta novilatino Diogo Pires.

Nascido em 1517, não foi significativa a contemporaneidade entre ele e Erasmo: quando este morreu em Basileia, em Junho de 1536, contava o nosso poeta somente 19 anos, feitos em Abril. Encon-trava-se, então, nos Países-Baixos, por onde passou, algo fugazmente, no seu peregrinar de cristão-novo em fuga de Portugal.

Frequentara, até esse momento, Salamanca, cuja lembrança lhe aflora amiúde nos versos. Estivera, depois, em Inglaterra, primeira etapa para muitos dos judeus portugueses fugidos à Inquisição.

Quanto aos Países-Baixos, há provas da estadia em Lovaina e Liège. Datarão desta altura os primeiros versos, entre eles os que a notícia da morte de Erasmo originou e que mais adiante serão analisados, saídos a lume em 1537, em Lovaina; não completara ainda os 20 anos, nota que, só por si, documenta a rápida integração no ambiente uni­versitário da grande capital da cultura. Além destes, o seu mais antigo poema impresso figura na edição de 1539 da Cosmographia, de Pedro Appiano, impressa em Antuérpia (1), o que constitui nova prova do seu contacto com os meios culturais da época naquela região (2).

(*) Texto reelaborado a partir de uma comunicação apresentada ao II Sim­pósio Nacional sobre o Humanismo Português (Academia das Ciências de Lisboa, 25 a 28 de Maio de 1987), cujas actas nunca foram publicadas.

(1) Petri Aplani Cosmographia, per Gemmam Phrysium, apud Louanienses Medicum ac Mathematicum insignem restituía. O poema não igura nas edições anteriores à de 1539.

(2) Deve notar-se que o poema foi composto, decerto, antes de 1539, pois nesta data já o nosso poeta se encontrava em Itália.

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Após passagem efémera por Paris, dirige-se a Itália. Participa, tanto quanto se deduz dos seus versos, na armada que André Dória capitaneou contra os irmãos Barba-Roxa. Detém-se em Veneza e em Roma, mas principalmente em Ferrara, na corte tolerante de Ercole II de Este e Renata de França.

Receoso, ainda, da Inquisição, acolhe-se a Ragusa, porto de abrigo dos judeus perseguidos — e não só. Aí vive um doloroso exílio, apesar da estima que lhe votava a nobreza do pequeno estado do Adriá­tico. Já então judeu confesso, ou melhor, reconvertido, sob o nome de Isaiah Cohen, beneficiava de um tratamento nobre, que os patrícios de Ragusa, não obstante a sua liberalidade, não concediam por norma aos de raça hebraica. Completados 82 anos de idade, ali morre, com a dor de não mais ter voltado a ver a pátria (3).

Por escassos anos, como se vê, foi contemporâneo de Erasmo; não era, entretanto, um desconhecido nos meios erasmistâs.

Isso mesmo documenta a presença entre os testimonia que abrem o seu Cato Minor siue Dysticha Moralia, de 1592 (4), de quatro dísticos

(3) Esta síntese biográfica é construída fundamentalmente a partir da obra poética e algumas cartas, uma parte das quais impressa e outra manuscrita. Alguma documentação existente no Arquivo Histórico de Dubrovnik, a que tive acesso, prestou valioso auxílio.

A bibliografia essencial foi por mim citada já na dissertação de mestrado Um poeta no exílio: Portugal na obra de Diogo Pires (Coimbra, 1984, policopiada, a editar em breve, ampliada e com múltiplas alterações). Destaquem-se, entre­tanto, os seguintes trabalhos, nem todos ali referidos: A. COSTA RAMALHO, «Dida-cus Pyrrhus Lusitanus, poeta e humanista»: separata de Humanitas 35-36 (1983--1984) 1-17; Tommaso CHERSA, Delia vitae degli scritti di Didaco Pyrrho, altramenti detto lacopo Flávio Eborense, Firenze, 1826; Petar KOLENDIC, «Nekoliko pesama humanista Didaka Pira»: Zbornik Istorija Knjizevnosti Srpske Akademije Nauka i Umjetnosti, Beograd, 1961, pp. 1-47; Djuro KõRBLER, «zivot i rad humanista Didaka Portugalca, napose u D.ubrovniku» : Rad Jugoslavenska Akademija Znanost i Vmjet-nost, Zagreb, 1917, pp. 1-169; Jorjo TADIC, «Didak Pir»: Zbornik Jevrejski Istorijski Musej 1 (Beograd, 1971) 239-252; J. P. S. CARVALHO, «De Évora a Ragusa: a peregrinação sem regresso de Didacus Pyrrhus Lusitanus»: separata de O Insti­tuto 140-141 (1980-1981) 79-100. Outros títulos, não tão relevantes, podem ver-se na referida dissertação. A minha tese de doutoramento, cuja edição se prevê também para breve, consagra a este poeta todo o capítulo III da «terceira parte» (Coimbra, 1990).

(4) Flavii Iacobi Eborensis Cato Minor, siue Dysticha Moralia, ad Ludima-gistros Olyssipponenses. Accessere noua epigrammata, & alia nonnulla eodem auctore. Opus pium, & erudiendis pueris adprime necessarium. Venetiis, sub signum Leonis, MDXCII (nova edição em 1596, com algumas diferenças em relação à primeira).

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elegíacos de Budé. Neles, o humanista francês e correspondente de Erasmo louva o projecto de Flávio de levar a cabo este livro, de feição pedagógica e moralizadora, destinado, como diz, «a encanecer pelos séculos sem fim». Note-se, entretanto, que o breve poema tem o condão de apontar o Cato Minor como uma espécie de «projecto de uma vida», de concepção muito anterior à publicação, já que Budé, ali qualificado de adulescens, morreu em 1540, isto é, cinquenta e dois anos antes da primeira impressão da obra.

No mesmo ano, aliás, morreu Juan Luis Vives, o humanista espanhol de ascendência judaica, também ele um seguidor da doutrina eras-miana. Uma vez que viveu os últimos anos da sua vida nos Países--Baixos, desde 1529, é provável que aí se tenha encontrado com o nosso poeta, já então não alheio à ambiência cultural do país, como vimos. Ora, a uma edição dos Colloquia de Vives (5) é dedicado um poema em 24 dísticos elegíacos, saído no Didaci Pyrrhi Lusitani Carminum liber unus (Ferrara, 1545). Nele chora com profunda emoção a morte do humanista espanhol, que habita agora as sombras elísias «na companhia de Erasmo».

Um outro amigo do Roterdamês que não deve ter chegado a conhecer foi Thomas More, morto em 1535, ano em que Diogo Pires saiu de Portugal e, provavelmente, em que passou por Inglaterra; por isso, se acaso se não encontrava neste país à data da execução do autor da Utopia, ali aportou a tempo ainda de sentir vivos os ecos da sua morte. Não o cita directamente. No entanto, de uma obra que deixou inédita — Didaci Pyrrhi Lusitani Elegiamm libri três ad Dominicum Slatariccium Patauinae Scholae rectorem et equitem splen-didissimum. Accessit lyricorum libellus eodem auctorem (6) — faz parte uma ode, a ode III da lírica, a Susana, neta de More, de quem diz ter sido vitimada por um naufrágio quando fugia para a Bélgica, perse­guida pelos esbirros de Henrique VIII.

(5) Familiarium Colloquiorum Formulae, siue Linguae Latinae exercitatio. loan. Lodo. Vivis. Valentim Libellus valde doctus elegans nuncquam primum in lucem editas. Antuerpiae, 1538. Outra edição em Basileia, 1539. Dado que Vives morreu em 1540 e a sua morte é referida no texto, é provável que o poema se refira a uma destas edições. Em todo o caso, a grande quantidade de reimpressões da obra ao longo do século xvi dificulta a identificação exacta da que serviu de pretexto à elegia.

(6) Manuscrito existente em Zagreb (Academia Jugoslava, Rukopis I. d. 141), Dubrovnik (Instituto Histórico, sem cota) e Roma (Bib. Vaticana, ms. 11.333).

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Uma outra manifestação de simpatia por um erasmista é o desejo que expressa a Marin Bon, patrício de Ragusa, na carta que abre o livro III do Cato Minor, de possuir a obra de Johannes Secundus, ou seja, Jean Everaerts, também um correspondente do sábio de Roterdão.

De resto, o seu relacionamento com os nomes sonantes do huma­nismo do seu tempo, de quadrantes ideológicos diversos, está sobeja­mente documentado: correspondente de Paolo Manuzio, Paolo Giovio e Torquato de Tasso, apreciado por Giovanni Battista Pigna, íntimo de Lilio Gregório Giraldi, que o faz interlocutor do diálogo De poetis nostrorum temporum (Florença, 1551), honrou com versos seus obras de Gaspar Sardi (Epistolarum liber, Florença, 1549) e Girolamo Faletti (De bello Sicambrico libri IV et eiusdem alia poemata, Veneza, 1557).

Voltemos, porém, aos que Erasmo e suas ideias elegeram por modelo. Também entre os portugueses, alguns dos que maior atenção lhe mereceram pertencem a esse grupo.

Refira-se, desde já, o nome de Damião de Góis. Dificilmente os caminhos de ambos se terão alguma vez cruzado. Mas é o próprio Diogo Pires quem afirma ser na leitura dos Commentarii rerum ges-tarum in India citra Gangem a Lusitanis anno 1538 (Lovaina, 1539) que se inspira a elegia Vellet amoribus renuntiare, dedicada ao primeiro cerco de Diu, também ela da obra lírica que deixou inédita (7).

O mesmo diplomata e humanista ocupa lugar de relevo na carta que endereçou a Paolo Giovio, em 1547, a censurá-lo por não ter incluído portugueses nos seus elogia (8). Como diz Américo da Costa Ramalho, «há um não sei quê de melancólico na maneira como o judeu errante Didacus Pyrrhus Lusitanus fala dos projectos de viagem do humanista à índia, considerada refúgio de perseguidos. Quase se fica com a impressão de que Diogo Pires não augurava bem do regresso de Góis à pátria» (9).

(7) Esta elegia, juntamente com outras, foi publicada por Urbano Appendini entre os Selecta illustrium Ragusinorum poemata, Dubrovnik, 1811. Texto e tra­dução portuguesa podem ver-se em Diogo Pires, Antologia Poética (com introdução, versão do latim e notas de Carlos Ascenso André), Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos/INIC, 1983, pp. 76-79, e na dissertação de mestrado atrás referida.

(8) Carta publicada em 1961 por Petar KOLENDIC (art. cit. n. 3) ; daí a trans­crevi para a dissertação Um poeta no exílio, onde a traduzi na totalidade.

(9) Estudos sobre o século XVI, Paris, Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 352.

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Verdade seja que nenhum documento permite confirmar tais intenções por parte de Damião de Góis, porventura fantasia do nosso poeta; mas a afeição pelo autor da Crónica de D. Manuel é de registar.

Também português e poeta novilatino, com simpatia declarada pela obra do sábio de Roterdão, era André de Resende. Com Diogo Pires tinha, além disso, em comum a naturalidade: Évora. A ele é dedicada a ode Aã Lucium Lusitanum poetam, inserta na segunda edição do Cato Minor, e que o estudioso jugoslavo Djuro Kõrbler (10) supunha referir-se a Luís de Camões, mas erradamente, conforme demonstrou Américo da Costa Ramalho (11).

Não se pense, entretanto, que pretendo dizer com estas palavras ser Diogo um seguidor indefectível de Erasmo e cultor, de modo exclu­sivista, dos que a sua doutrina seguiam ou por ele revelavam particular apreço. Tenciono, isso sim, estabelecer a existência de alguns pontos de contacto, por ténues que sejam.

Aliás, justo é ressalvar-se que vários outros portugueses foram alvo da sua predilecção; e estes acima de qualquer suspeita de «contágio» erasmiano: Henrique Caiado, Luis Teixeira, António Pinheiro, Jorge Coelho figuram na já citada carta a Paolo Giovio como exemplo dos esquecimentos lamentáveis do bispo italiano. Aquiles Estaco dedica--lhe um breve epigrama, publicado no Cato Minor entre os testimonia iniciais. Por outro lado, a este humanista são dirigidas duas cartas, ainda inéditas, que se conservam na biblioteca Vallicelliana, em Roma (ms. B 106), no espólio do próprio Estaco. São epístolas anónimas que logrei identificar, graças aos poemas que as acompanham: a pri­meira, assinada N.N., remete uma elegia, seguramente apócrifa e atri­buída a Cornélio Galo (12); a segunda, com a assinatura N.N.N., envia a elegia In obitum Ioannae Etruriae reginae; ambos os poemas figuram

(10) Op. cit. n. 3. (11) «Lúcio, poeta-fantasma, e Luís de Camões»: Biblos 57 (1981) 365-378,

trabalho reimpresso em Para a história do humanismo em Portugal, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos/INIC, 1988, pp. 139-153. A ode III faz parte da Lyrica apensa à 2.a edição do Cato Minor (1596), p. 194, mas não fora publicada na primeira, de 1592.

(12) KõRBLER, op. cit., pp. 148-155, afirma ser Diogo Pires o autor da elegia, onde teria introduzido passos obscuros e versos incompletos, para tornar mais verosímil a atribuição a Cornélio Galo.

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no já mencionado manuscrito dos Elegiarwn libri très, de Diogo Pires, facto que me possibilitou a identificação dos textos (13).

Da leitura de alguns passos da sua obra fica, enfim, a impressão de que D. Miguel da Silva o acolheu em Roma. Em tais afinidades nem sempre é legítimo ou, pelo menos, fácil descortinar vestígios de erasmismo.

Vem a propósito lembrar que não se ficam por aqui as notas dis­cordantes em relação a Erasmo. Diga-se desde já que, ao contrário deste, cidadão da Europa e cosmopolita por excelência, Diogo Pires é o exemplo perfeito do desenraizado, do deslocado. As raízes lon­gínquas na pátria distante percebem-se, a cada passo, nos seus versos. Com intensidade e amargura semelhante às de Ovídio, o exílio é um dos núcleos temáticos fundamentais da sua obra poética.

Note-se também que, chegado a Ragusa, do cristão-novo Diogo Pires nasceu o judeu convicto Isaiah Cohen, transformação que o não aproxima, antes pelo contrário, do grande humanista, avesso a rupturas.

Mas não pode deixar, ao mesmo tempo, de citar-se o culto de temas bem queridos ao Roterdamês, como seja a paz. Ideia subja­cente a muitas composições do Flávio Eborense, o pacifismo respira-se nos seus versos um pouco por toda a parte, em especial (mas não só) nas várias elegias que dedica a um dos governantes da Ragusa de então, Benesso, isto é, Simun Benecic (14). É sabido que a apologia da paz não é um exclusivo da obra erasmiana, mas antes uma constante do humanismo que a antecede, e que esta apenas lhe confere um lugar de especial relevo e privilegiado tratamento; mas o paralelo temático é, de qualquer forma, nota a salientar.

Como é também forçoso relacionar com o pensamento e a obra de Erasmo a publicação, por parte de Diogo Pires, de uma obra de objectivos moralizantes e pedagógicos, voltada para as classes mais jovens, o já citado Cato Minor. Como se diz na carta inicial, ende­reçada aos mestres de Lisboa, a obra é-lhes dedicada para ensino dos seus discípulos, abandonado que foi o projecto primitivo de a dedicar ao filho de Francisco I, da Toscana, que, entretanto, morrera. Acontece

(13) A segunda das elegias foi publicada por U. APPENDINI (op. cit.); dessa edição a transcrevi para Antologia poética, acrescentando a tradução portuguesa (pp. 54-57).

(14) Vd., por exemplo, Antologia Poética (cit. n. 7), pp. 32-35.

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que Erasmo publicara também um Cato pro pueris (15). E os Distiçha Catonis, colectânea de preceitos morais em dísticos elegíacos que foi objecto de larga utilização, como instrumento didáctico, durante toda a Idade Média e Renascimento (16), e que esteve na base desta ideia de Diogo Pires, tinham sido editados pelo humanista holandês em 1514 (17), após o que vieram a conhecer quase uma centena de edições durante o século xvi.

Na já citada carta a Paolo Giovio, há, enfim, uma última refe­rência a Erasmo, desta feita um tanto confusa e de molde a suscitar algumas interrogações. A alusão vem a propósito do papa Adriano VI, que Diogo Pires considera homem nullis maioribus natus, o que, de certa forma, é verdade, dada a origem, algo modesta, de Adriano de Utrecht, mas entregue aã omne superstitionis genus. E acrescenta:

Audiui ego de uiris fide dignissimis Erasmum Rotherodamum frequenter inter suos compotores dicere solitum plura se de Hadriano pontífice et uerissime quidem posse scribere quam olim de pseudo­mante Alexandro Lucianus in litteras mandauerit.

(Tradução) :

«Eu mesmo ouvi da boca de homens merecedores de todo o crédito que Erasmo de Roterdão costumava dizer com frequência entre os seus convivas que poderia escrever bem mais — e até com toda a verdade — a respeito do pontífice Adriano do que Luciano outrora confiara aos seus escritos acerca do pseudo--profeta Alexandre.»

Acontece, porém, que do que se conhece das relações entre Erasmo e Adriano VI nada comprova tal afirmação. De facto, na epistolografia erasmiana podem ler-se elogios vários a Adriano de Utrecht, quer enquanto cardeal, quer depois de eleito papa com o nome de Adriano VI. E, na correspondência que com ele mantém durante o curto período do

(15) Londres, 1513, com reedições em 1514, 1516, 1527, 1548 e 1551. (16) Veja-se, a este respeito, M. MARTINS, «OS Dísticos de Catão na base

da formação universitária»; Revista Portuguesa de Filosofia 24.1 (Jan.-Mar. 1968) 103-113.

(17) Catonis distiçha moralia, cum scholiis Erasmi. Coloniae, in aed. Mart. Werdenensis, 12 Cal. dec. 1514.

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seu pontificado (9 de Janeiro de 1522 a 14 de Setembro de 1523), Erasmo não lhe poupa os louvores. A ele dedica a edição de Arnó-bio; confia-se à sua protecção; é por ele convidado a ir para Roma, a fim de aconselhar o Pontífice na acção contra os luteranos, convite a que habilmente se esquiva. Mesmo depois da morte do Papa con­tinua a manifestar gratidão para com ele, por ter imposto silêncio aos seus detractores.

Uma ou outra opinião menos favorável não chega para ensom­brar o que acabo de dizer. Apesar disso, refira-se a carta de 20 de Maio de 1519 a Antoine de Berghes, onde Erasmo afirma ser Adriano pouco favorável às letras, e a de 20 de Dezembro de 1520, a destina­tário não identificado, em que considera o então cardeal um tanto avesso ao humanismo. Por alguma suspeita que estas informações levantem quanto à consideração que o grande humanista teria pelo papa de Utrecht, não são suficientes para legitimar a afirmação de Diogo Pires, tanto mais que Adriano, preceptor de Carlos V, possuía sólida cultura, como prova o facto de ter sido nomeadamente professor em Lcvaina (18).

Deste modo, a comparação com a monstruosa figura da persona­gem de Luciano dificilmente se aceita ter saído da boca de Erasmo. Registe-se, a este propósito, que 'AÀeÇávÔQoç fj ipevôo/xávriç, história de um charlatão que se fez passar por sacerdote de Asclépio para assim obter largos proventos à custa da ignorância popular, foi traduzido por Erasmo para latim em 1506, como ele diz na carta dedicatória a René d'Illiers, ad deprehendendas coarguendasque quorundam istorum imposturas, qui hisce quoque temporibus uel magicis miraculis, uel ficta religione, uel adsimulatis condonationibus, aliisque id genus praestigiis, uulgo fucum facere soient («para que se descubram e demonstrem as vigarices desses sujeitos que ainda nos tempos que correm, ou por meio de prodígios de magia ou de falsa piedade ou de presentes fingidos, costumam lançar poeira para os olhos do povo»).

(18) Além das cartas referidas, podem ver-se, a respeito das relações entre o humanista e o Pontífice, as seguintes: a Pierre Barbier (1517), a Adriano VI (Agosto de 1522, Setembro de 1522, Dezembro de 1522, Março de 1523), a Maximiliano Transsilvanus (Fevereiro de 1525), a Jean Lallemand (mesma data), a Noel Beda (Abril e Junho de 1525), a Thomas Wolsey (Abril de 1526), a Jean Maldonatus (Março de 1527) e ainda de Adriano VI a Erasmo (Dezembro de 1522 e Janeiro de 1523).

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Assim, porque «não há fumo sem fogo», conceda-se, quando

muito, ao nosso censor de Giovio o benefício da dúvida... embora a

custo, tantos são os indícios em contrário.

Os últimos anos da vida do Flávio Eborense são passados já em

Ragusa, a pequena república do Adriático ciosa da sua independência

que, não obstante as contrariedades, conseguiu manter. As influências

culturais que ali mais se faziam sentir provinham essencialmente de

Itália (19). E, apesar de algum atraso, por exemplo no campo tipo­

gráfico, pois a primeira oficina de impressor apenas ali foi instalada

nos finais do século xvin (20), o humanismo, enquanto corrente de

pensamento e prática literária, não era desconhecido nessas para­

gens (21). Além disso, a prosperidade era notória: em virtude de um

pacto de paz com os Turcos, mantido a troco de vultuoso tributo, a

pequena cidade disputava com as suas congéneres italianas o mono­

pólio do comércio nos mares da região. Com o poder nas mãos de

(19) A este respeito consultem-se, por exemplo, as obras de Arturo CRONIA, nomeadamente: «Aspetti caratteristici deirUmanesimo in Dalmazia»: Atti deli' Istituto Veneto di Scienze, Lettere ed Arti 113 (1955) 43-70; «Relazioni culturali tra Ragusa e 1'Italia negli anni 1358-1526»: Atti e memorie delia Società Dálmata di Storia Pátria — I — Zara, 1926, pp. 1-39; Storia delia letteratura serbo-cwata, Milano, 1956, pp. 31-65. Veja-se, ainda, Ilija N. GOLENISCEV KUTUZOV, II Renasci­mento italiano e le letterature slave dei secoli XV e XVI, Milano, 1973, em especial o vol. I, pp. 31-151, sob o título «L'Umanesimo e il Rinascimento in Dalmazia».

(20) J. P. S. CARVALHO, art. cit. n. 3.

(21) Além das obras citadas na n. 9, veja-se, a este propósito : Veljko GORTAN, «Les derniers latinistes croates de Dubrovnik (Raguse)»: Acta Conuentus Louaniensis: Proceedings of the first International Congress of Neo-Latin Studies — Louvain, 23--28 August 1971. Edited by J. I. Jsewijn an E. Kessler. Leuven, Leuven University Press, and Miinchen, Wilhelm Fink Verlag, 1973, pp. 261-274. Uma boa recolha de textos e autores que escrevsram em latim neste território pode ver-se em Sime JURIC, lugoslauiae scriptores Latini recentioris aetatis, Novi-Sad, Matika Srpska, 1972-1979, em especial Pars prima: opera scriptorum Latinorum natione Croatarum usque ad annum MDCCCXLVII typis edita. (Reedição: Zagrabiae, Bibliotheca nationalis et universitária Zagrabiensis et Academia scientiarum et artium Slavorum Meridionalium, MCMLXXXII).

Uma bibliografia razoável é: Croatiae scriptores Latini recentioris aetatis: opera scriptorum Latinorum natione Croatarum usque ad annum MDCCCXLVHI typis edita. Bibliographiae fundamenta. Collegit et digessit Prof. Sime Juric, adju­vante Dr. Dana Cuõkovic, editionem curauit Dr. Zlatko Kerkov. Zagrabiae, MCMLXXI. Institutum Historicum Academiae Scientiarum et Artium Slavorum Meridionalium.

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uma aristocracia tradicional, a comunidade social era algo permissiva, ao contrário de tantas outras da Europa. Ali se acolhiam, pois, fugi­tivos de todos os países. A par do nosso poeta, também Amato Lusi­tano por lá se deteve.

Erasmo estava já um pouco longe no tempo, quando Diogo Pires ali aportou, presumivelmente em 1558. Na obra saída a lume com o seu nome após essa data, nenhuma referência existe ao humanista holandês. Também às longínquas e serenas paragens de Ragusa terá chegado o braço da Contra-Reforma.

Não pode íicar-se por aqui, entretanto, o estudo da presença eras-miana na obra do poeta português. Um último grupo de versos, a que atrás se fez já referência, importa agora citar e analisar, quanto mais não fora por ocuparem posição de vulto nos Opera omnia ... de Erasmo.

Reíiro-me aos epitáfios, género que o nosso poeta exilado cultivou com largueza. Muitos foram publicados no Carminum liber unus, de 1545, vários outros no Cato Minor, em 1592 e 1596. Dedicados a personalidades diversas, nacionais ou estrangeiras, revelam especial aptidão para este tipo de poemas.

Não são desconhecidos os que dedicou a Erasmo. Saíram a lume, com vários outros, de diversos autores, algum tempo após a morte do humanista de Roterdão (22), e foram mais tarde incorporados nos opera omnia deste autor (23). Entrenós, publicou-os já Artur Moreira de Sá, em 1977, com tradução de Miguel Pinto de Meneses (epitáfios em latim) e Walter Sousa Medeiros (epitáfios em grego) (24).

O primeiro da colectânea — e único a ser publicado isoladamente em relação aos outros — veio de novo a lume em 1545, no Carminum liber unus.

(22) D. Erasmi Rot. Epitaphia, per eruditiss. aliquot uiros acad. Louanien. edita. Louanii, R. Rescius, 1537. Duas outras edições no mesmo ano, uma em Lovaina, outra em Paris.

(23) Desiderii Erasmi Roterodami Opera Omnia. Lugduni Batauorum, cura & impensis Petri Vander AA, MDCCIII. Utilizei a edição fac-similada, de Hildescheim, 1961.

(24) De Re Erasmiana: aspectos do erasmismo fia cultura portuguesa do século XVI. Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1977, pp. 337-343. Utilizo, com a devida vénia, o texto fixado por Walter Sousa Medeiros, bem como a sua tradução, no caso dos epitáfios gregos. Nos restantes, a tradução é de minha responsabilidade. Foram actualizadas a grafia e a pontuação.

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Sente-se, nestes versos, a tristeza do luto recente, percebem-se ainda no ar os ecos das lamentações que então se fizeram ouvir nos círculos humanistas. No repetir até à exaustão do verbo perire (6 ocorrências em 8 versos) adensa-se a omnipresença da morte, refor­çada pela acumulação de espondeus logo no primeiro verso, em per­feita consonância com a gravidade do momento: postquam importuno fato consumptus Erasmus... Atente-se, enfim, na perda sofrida pelas letras, que viram sucumbir os Romani sales, os lepores, as delitiae et Veneres, as nouem Musae, a gratia:

Postquam importuno fato consumptus Erasmus desiit humana conditione frui,

Romani periere sales, periere lepores, et periere omnes delitiae et Veneres;

et periere nouem decima cum Pallade Musae, et periit blandis gratia mixta iocis.

Et sic unius perierunt omnia morte. O grauis, o doctis mors lacrimanda uiris!

«Depois que, devoiado pelo Fado cruel, Erasmo deixou de gozar da humana condição,

o gosto romano sucumbiu, sucumbiu a elegância e sucumbiram todas as delícias de Vénus;

e sucumbiram as nove musas, com Palas, a décima, e sucumbiu a graça, em doces folguedos envolvida.

E assim tudo sucumbiu com a morte de um só. Oh, morte penosa! Oh, morte merecedora das lágrimas de

[sábios varões!»

Mais longo é o segundo do grupo, mais retórico, talvez, próximo dos cânones tradicionais para este tipo de composições, o que, de alguma forma, lhe retira parte da carga emocional do anterior. Erasmo é apelidado de Hollandi gloria prima soli e Latiae linguae única Siren.

O topos renascentista da caducidade das coisas terrenas está bem patente nos versos 15 e 16, onde se diz que a boca «que os licores da fonte Castália sorvera, a vermes pestilentos é dada em alimento».

Tal como no epitáfio anterior com perire, a anáfora de en iacet, prolongada, como se fora um eco, na anáfora, apenas, de en, e retomada, em rima toante e algo difusa, versos fora, por nova anáfora, de en facet,

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depois associadas em versos contíguos — en tacet ...en iacet (vv. 19-20)— fa/ pairar sobre todo o poema a sombra da morte e da tristeza.

O conformismo, porém, começa a desenhar-se nos versos finais: caro ao Pai, a Cristo, ao Espírito Santo, Erasmo não deve ser chorado. A via da glorificação, que se consumará nos restantes epitáfios, abre-se aqui:

Si qua fuit lácrimis mors digna perennibus unquam, si qua fuit doctis mors inimica uiris,

edite singultus, et pectore rumpite questus, et multo indignas imbre rigate genasl

En iacet ille satis nunquam laudatus Erasmus! En iacet Hollandi gloria prima soli!

En iacet Eoo populo notissimus unus! En iacet occiduis no tus et hesperiis!

En ille obmutescit olor, qui saepe canoro, saepe sacro dulces fudit ab ore sonos!

En ilia et Latiae linguae tacet unica Siren! En et Cecropiae gloria prima tacet!

En tacet os Musis et Phoebo digna locutum plurima, longaeuo non peritura die!

Et quod Castalio largos e fonte liquores hauserat, en olidis uermibus esca datur!

Ingenium cuius uix unus ceperit orbis, cuius in aeternum fama superstes erit.

En dolor! En tacet! En parua requiescit in urna, en iacet Heluetiae putre cadauer humo!

Si qua tamen multis lacrimis indignaque fletu mors fuit, et doctis non inimica uiris,

haec est ilia quidem, nam quis dubitarit? Erasmi haec eadem siccis mors adeunda genis.

Ille Patri carus, Christo carissimus, ille diuino afflatus numine Roterodamus.

Dum uidet Europam belli feruere tumultu, dum nullum paci iam superesse locum,

dum uocat audaces G alios in proelia Caesar, corpus humi linquens, ocius astra petit.

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«Se morte houve alguma vez merecedora de lágrimas sem fim, se morte houve hostil a sábios varões,

soltai soluços, e do fundo do peito arrancai gemidos, e de lágrimas abundantes banhai as faces que as não mereceram.

Eis que jaz o nunca por demais louvado Erasmo ! Eis que jaz a mais alta glória de terras de Holanda !

Eis que jaz aquele cuja fama imensa chegou aos povos do Oriente ! Eis que ele jaz, famoso também entre as gentes da Hespéria !

Eis que emudece o ilustre cisne, que de sua boca, ora sagrada, ora melodiosa, tantas vezes doces cantos der­

ramou ! Eis em silêncio essa Sereia sem par da língua do Lácio !

Eis a mais alta glória de Cécrops em silêncio ! Eis em silêncio a boca que tantas sentenças proferiu,

dignas das Musas e de Febo, e que nos dias vindouros jamais [hão-de perecer!

E ela, que os abundantes licores da fonte Castália sorvera, eis que a vermes pestilentos é dada em alimento!

Engenho como o seu, dificilmente o mundo o terá possuído ; para sempre a sua fama há-de perdurar.

Oh, dor! Ei-lo em silêncio ! Eis que na pequenez da urna repousa, eis que jaz o coipo sem vida a apodrecer em terras da Helvécia !

Se morte houve, porém, não merecedora de lágrimas sem fim e de [pranto,

e não hostil a sábios varões, esta é, decerto! Quem ousará pô-lo em dúvida? A morte de

[Erasmo, esta mesma, que deve ser acolhida de faces enxuta».

Caro é ele ao Pai, muito caro a Cristo, inspirado pelo Divino Espírito o grande Roterdamês.

Enquanto vê a Europa em ebulição no tumulto da guerra, e que para a paz nenhum lugar resta já,

enquanto César chama para a batalha os corajosos Galos, ele, abandonando o corpo na terra, busca, veloz, as estrelas.»

De um equilíbrio perfeito é o epitáfio seguinte, em grego, com dois dísticos elegíacos, breve, mas simetricamente organizado na sua concisão, a lembrar as composições do pan-helénico Simónides. A antí­tese ÇAdávaôoç ... dvrjTÓç; oljuáÇei ... avyyaíqei) e o paralelismo rítmico

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do último verso (avxrj oxi oxégexac, avxòç õxt juexéxei) revelam, na sobriedade que os caracteriza, apreciável domínio das técnicas de composição em língua grega. Quanto a Erasmo, a dor dos primeiros momentos começa a ceder lugar à glorificação:

'ABávadoç aocpíav, tfxy)]v ôè dvrjxàç "Eqaa/jtoc ã>ô" êv xolç XóàTIOIç xgvnxsxai 'EXfiexíaç.

Tala fj,èv oíftáÇei. fiaxQÒç ovy%aÍQEi, "OXvfinoç avrrj õXí axsQsxai, avxòç Sri ftexé%ei.

«Imortal no saber, na vida mortal — Erasmo assim no coração da Helvécia jaz oculto.

Se a terra o pranteia, regozija-se o páramo do Olimpo : aquela de o perder, este de o partilhar.»

O mesmo sentimento se repete no dístico isolado que constitui o epitáfio seguinte, também em grego:

'EvdáÔs xeíxai ãvfjQ deloç XQIOEQOXSXòç *'Eçiaopoç-fúya ôè xãv /Mxxágcov oixov "OXVJJ,TIOV S%&I,.

«Aqui jaz um homem divino — Erasmo, exemplo de amor : mas a sua alma, essa no Olimpo tem morada, entre os bem-

[-aventurados.»

A glorificação está praticamente consumada. Resta entronizar o grande exemplo de humanista no templo da glória. Dar-lhe um lugar entre os imortais.

É a apoteose: o túmulo de Erasmo volve-se em santuário. Em abraço alegórico envolvem-no a língua latina, de rosto lacerado pelas lágrimas, é certo, mas também os deuses que são o garante do triunfo final: Apolo, Vénus, o Desejo (curioso jogo de palavras com o nome do próprio humanista — Desidério!), a Fama. As últimas lágrimas, há que deixá-las de lado. A entrada nos Campos Elísios avi-zinha-se.

Os versos, entrecortados por interrogações, em cesuras habilmente colocadas, distinguem-se dos epitáfios anteriores. Dir-se-ia serem os soluços prestes a findar. Frases curtas, a cada pergunta sua res-

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posta — mas breve. O quadro é magistralmente desenhado — o túmulo de glória emerge diante dos nossos olhos em visão triunfal:

— Ecquis in hoc recubat tumulo ? — Diuinus Erasmus. — Ecqua super tumulo (fare age) Diua sedet?

— Lingua Latina, graues quaenam imo e pectore quaestus rumpit, scissa comas, et laniata genas.

— Turba diserta uirum, cedo, haec quaenam altera turba est? — Ex Helicone nouem cernis adesse Deas.

— Phoebus ubi? — Lacrimis illic conturbai ocellos. — Próxima quae Musis assidet? — Alma Venus.

— Ilia ne Lemniacis quondam deprensa catenis, dum iacet amplexu Martis anhela Venus?

Ilia ne lasciuos semper quae curat amores? Ilia Cytheriaco de sale nata Venus?

An magis aethereo Venus haec est or ta Tonanti? cui placet fut fama est) non nisi castus amor ?

Et quae sola potest blandos donare lepores, innocuosque iocos, et sine felle sales?

Quam simplex comitatur Amor, quam Gratia nuda? — Haec eadem est prorsus. — Quis puer ille, refer ?

— Hie ? Desiderium, quemnam desiderat ilium cui Desiderius nobile nomen erat.

Mitte pias lacrimas, quis enim, quis fructus in illis? Excute singultus pectore, quaeso, graues!

Stat sua cuique dies, gemitus nil profuit ulli, qui semel in campos uenerit Elysios.

—-Imo, age, quae tantas ciet haec sine fine querelas? Cur alata sedet, nee tamen inde uolat?

— Gárrula Fama comes uiuo iunctissima Erasmo. — Cur non defunctum deserit ilia uirum ?

An quia mirifice uiuum dilexit Erasmum, nunc quoque post obitum perstat in officio?

— Into quia paucos, aut nullos cernit Erasmos, nunc quoque post obitum haec monumenta colit.

Sic est: Fama tuum tumulum, doctrina libellos seruat, ut aethereus te quoque, Erasme, locus.

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«— Quem repousa neste túmulo? — O divino Erasmo. — Que deusa — vamos, diz! — sobre o túmulo toma assento?

— A língua latina, que do fundo do peito arranca pesados queixumes, de cabelos desgrenhados, de rosto lacerado.

— E o grupo de homens eloquentes — diz-me — que grupo é [estoutro?

— Vês presentes as nove Musas do Hélicon. — Febo, onde está ele? — Ali, toldando os olhos com lágrimas.

— Quem é que toma lugar junto das Musas? — A mãe Vénus. — Aquela mesma Vénus outrora aprisionada pelas cadeias de

[Lemnos, enquanto jazia, ofegante, sob o abraço de Marte?

Aquela que sempre se ocupa de amores lascivos? Aquela Vénus que das ondas citereias nasceu?

Ou é antes esta Vénus, nascida do alto Tonante, à qual nada apraz (segundo se diz), a não ser um casto amor,

e a única que pode entregar-se a doces graças, e a inocentes folguedos, e a delícias sem amargor?

Aquela a quem o Amor inocente acompanha, a quem acompanha [a Graça, na sua pureza?

— É esta mesmo, sem dúvida ! — E quem é — diz-me — aquele [jovem?

— Este? É o Desejo, a quem desejou aquele que tem o nobre nome de Desidério.

Deixa as lágrimas piedosas! Pois... que fruto, sim, que fruto [há nelas?

Expulsa do peito, eu te peço, os penosos soluços ! A cada um seu dia o aguarda; de nada aproveitam gemidos a

[ninguém, uma vez que entre nos Campos Elísios.

— Vamos, diz-me, quem é esta, que tamanhos lamentos solta [sem cessar?

Porque é que, tendo asas, permanece no seu lugar e, entretanto, [não voa dali?

— É a Fama pregoeira, companheira inseparável de Erasmo, [enquanto vivo.

— Porque não deixa ela esse homem, agora que ele morreu?

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Acaso porque amou, de forma admirável Erasmo, enquanto vivo, agora, mesmo depois da sua morte, persiste ainda na sua

[função? — Decerto porque poucos ou nenhuns Erasmos vê,

agora, mesmo depois da sua morte, habita este túmulo. Assim é : a Fama te guarda o túmulo, o saber te guarda os livros,

tal como a ti, ó Erasmo, te guarda o céu.»

O derradeiro epitáfio combina as duas línguas clássicas. Em cada dístico, o primeiro verso é latino, o segundo grego.

Agora, que tudo parece estar dito, que pouco parece restar por dizer, a conclusão é óbvia, resultara já dos poemas anteriores. Os elo­gios finais quase se resumem à síntese de todos os outros antes for­mulados. Em poucas palavras, a verdade, panegírica, apoteótica: impossível encontrar alguém à altura de Erasmo.

A anáfora exaustiva de quod já nada tem a ver com o pranto dos poemas que ficam para trás; marca o ritmo forte do louvor, martela-o aos ouvidos:

Quod bonus atque pius fueris, quod doctus, Erasme, xovxó ys xolç âyadolç Ttãai òià oxófiaxoç

Quod non ipse tuos mores culpauerit unquam ZaïXoç; ovx avxòç Mmfioc, "Eoaafie, neget;

Quod diuorum auges numerum nouus Íncola coeli òeíiivvvxai r) áQexrj xovxo, xeóç xs fJíoç

Quod proferre parem ualeant tíbi saecula nostra, /nrj vs/nsaiç QTJXOIç' XOVXO fièv âôvvaxov.

«Que tenhas sido bom e piedoso, que tenhas sido douto, Erasmo, é verdade que anda na boca de toda a gente de bem.

Que nem Zoilo em pessoa tenha alguma vez reprovado a tua moral, o próprio Momo, Erasmo, não ousaria contestá-lo;

que tu aumentas o número dos deuses, qual novo habitante do céu, a tua honestidade o mostra e a inteireza da tua vida.

Mas que o nosso tempo seja capaz de apresentar alguém à tua [altura,

não há que temer a força das palavras: isso é impossível.»

Possível é que os epitáfios não tenham sido compostos por esta ordem. É possível que quem assim os organizou não tenha sido o

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próprio autor. Nesse caso, as minhas palavras, não perdendo a razão que lhes assiste, teriam de ser vistas a outra luz. À distância a que nos encontramos, porém, seja-me perdoada a aventura, nascida de algum fascínio por esta obra poética.

E seja-me perdoado, também, o atrevimento, talvez o arrojo de pretender desvendar os ténues fios que ligam estas dois homens. São notas de pouca importância, decerto. Ecos, porventura longínquos e difusos, da presença de Erasmo na voz de alguém a quem a distância e o exílio não facilitavam o contacto com o mundo ocidental.

Ecos... o que resta de uma voz que de longe se fez ouvir. O mínimo que a pátria deve a quem jamais a esqueceu.

CARLOS ASCENSO ANDRé