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Debate Sobre Marxismo e Anarco-Marxismo

Debate Sobre Marxismo e Anarco-Amarxismo

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A publicação é uma contribuição a um debate que ainda é atual,referente ao marxismo, ao socialismo, ao problema dademocracia burguesa e do anarquismo.

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  • Debate Sobre Marxismo e Anarco-Marxismo

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    Carlos Moreira Nildo Viana

    Debate Sobre Marxismo e Anarco-Marxismo

  • copyleft 2005 by Nildo Viana [email protected] Arte-Capa: Nildo Viana Goinia - 2005 Edies Saber

  • NDICE

    Apresentao..............................................................................05 Quem tem Medo da Utopia?......................................................07 Nildo Viana A Democracia Burguesa Como Valor Universal.......................18 Nildo Viana Crtica ao Anarco-Marxismo: Contra Nildo Viana e a Deformao do Marxismo...................32 Carlos Moreira Marxismo e Anarquismo: A Anticrtica....................................44 Nildo Viana

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    APRESENTAO

    A presente coletnea de textos so a retomada de alguns

    artigos do incio da dcada de 90 e um debate posterior, ocorrido em 2003. O primeiro texto, Quem Tem Medo da Utopia, foi publicado na Revista Brasil Revolucionrio, Ano II, no 07, Dez/1990- Fev./1991. Trata- se de um texto polmico sobre a situao do marxismo e do socialismo naquele contexto, pouco tempo aps a queda do muro de Berlim (1989). O texto polemiza com algumas concepes de marxismo e socialismo clssicas e algumas contemporneas. O texto aqui publicado foi revisado, apresentando apenas mudanas formais. O segundo texto, A Democracia Burguesa Como Valor Universal, foi publicado originalmente na Revista Brasil Revolucion rio, Ano II, no 08, Abril/Jun. de 1991. Trata- se de outro texto polmico, agora referente a ideologia da democracia burguesa como valor universal, focalizando principalmente a tese do cientista poltico Carlos Nlson Coutinho. O texto foi revisado apenas do ponto de vista formal, embora hoje algumas teses apresentadas,principalmente a referente participao na democracia representativa, tenha sido abandonada em meus escritos posteriores, no foi reformulada devido a crtica que lhe foi endereada e que est no texto posterior, intitulado Crtica ao Anarco-Marxismo, de Carlos Moreira. Este texto foi divulgado em 2003 num site da Internet e segundo o autor foi escrito em 1992. O ltimo texto justamente minha resposta a este artigo, Marxismo e Anarquismo A Anticrtica, escrito em 2003, e encerra a presente coletnea.

    Qual a razo da publicao destes textos nos dias de hoje? Em primeiro lugar, a contribuio a um debate que ainda atual, referente ao marxismo, ao socialismo, ao problema da democracia burguesa e do anarquismo. Em segundo lugar, a disponibilizao de textos que hoje so de difcil acesso no caso, os dois primeiros, embora os outros textos, disponibilizados na Internet, tambm no so to facilmente acessveis e precisam, para um julgamento mais adequado, da

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    acessibilidade dos dois anteriores. Em terceiro lugar, esta uma coletnea em construo, no qual, caso haja desdobramentos do debate, novos ensaios podero ser acrescentados, criando uma idia de inacabamento do debate, sempre prosseguindo e colocando em questo novos pontos de vistas, novos aspectos, novas questes.

    Nildo Viana

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    QUEM TEM MEDO DA UTOPIA?

    Nildo Viana

    O socialismo j foi muitas vezes taxado de utopia e tal palavra entendida como sinnimo de sonho irrealizvel. Agora, com a crise dos pases ditos socialistas, tornou-se moda intelectual dizer que o socialismo e o marxismo morreram e com isso fica comprovado seu carter utpico. Essa a ideologia dominante mas nunca devemos esquecer que as idias dominantes so as idias da classe dominante e que preciso refut-las.

    Comecemos ento pelo significado dado palavra utopia. Se a entendermos como sonho irrealizvel, ela se torna uma arma para se desacreditar os opositores do atual sistema social. Na Revoluo Francesa de 1789, os monarquistas acusaram os republicanos de utopistas, pois tal sonho seria irrealizvel. Mas, entretanto, a repblica foi instaurada, este sonho realizou-se. Aqueles que defendem a manuteno do sistema social acusam as idias subversivas e revolucionrias de serem utpicas. Augusto Comte critica a utopia contrapondo a ela a realidade. Considerava-a um sonho metafsico e irracional, ao contrrio do conhecimento cientfico. Tal conhecimento, no entanto, o positivismo, que toma a realidade como se ela no tivesse contradies e no se transformasse, ou seja, estamos presos na jaula do eterno presente, a-histrico. O pensamento conservador que ataca a utopia no consegue enxergar um palmo frente do nariz, que , para este pensamento, uma realidade palpvel; um pensamento preso no presente e que no consegue ultrapassar os limites do aqui e agora; um pensamento sem perspectiva e por isso sem ao e da a atitude pr-humana que apenas reproduz o existente sem procurar ultrapass- lo.

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    Mas atravs de uma anlise crtica podemos dizer que o essencial das utopias pode ser encontrado na estrutura da obra A Utopia, de Thomas Morus1. Na primeira parte deste livro, ele critica a sociedade de sua poca e, na segunda, descreve a ilha de Utopia, que tem uma organizao social perfeita. V-se, na primeira parte, por exemplo, uma crtica aos cercamentos (enclosures) na Inglaterra e na segunda parte descreve uma sociedade sem propriedade privada e sem diviso social do trabalho. Mesmo se no houvesse a primeira parte da obra, como em muitas outras utopias, estaria implcito a crtica a tal sociedade que convivia com a propriedade privada, a diviso social do trabalho, etc. No caso de Morus, a crtica est explcita, tal como se nota na comparao que ele fez entre o trabalho na Utopia e o da sociedade inglesa, pois na Utopia no se trabalha como um burro de carga desde a madrugada at a noite, o que seria pior que a tortura e a escravido, embora esta seja em outra parte a triste sorte do operrio2. Utopia significa, ento, uma crtica sociedade existente e uma proposta de uma nova sociedade. Toda crtica ao existente traz em si, implicitamente, uma proposta de uma nova sociedade e toda proposta de uma nova sociedade traz em sai uma crtica sociedade existente.

    O marxista ocidental Ernst Bloch classifica as utopias em dois tipos fundamentais: as abstratas e as concretas3. A partir disso podemos dizer que Morus, Campanella, entre outros, produziram utopias abstratas, pois, apesar de apresentarem uma crtica e uma alternativa sociedade existente, elas apresentavam crticas muito limitadas e projetos que muitas vezes atendiam a caprichos de alguns indivduos ou pequenos grupos sociais e no os interesses da coletividade. As suas propostas de sociedade alternativa chocava-se com a sua possibilidade real de implantao na poca em que foram escritas. Mas o grande defeito das utopias abstratas e que lhes caracterizam, segundo Bloch, que elas no apresentam como se passa da sociedade presente para a sociedade futura.

    1 MORUS, Thomas. A Utopia. Rio de Janeiro, Tecnoprint, s/d. 2 MORUS, T. ob. cit. 3 Cf. BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. So Paulo, Edies Loyola, 1987.

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    Outro tipo de utopia abstrata a produzida pelos socialistas utpicos. Estes faziam uma crtica mais completa do capitalismo e, apesar das deficincias, esse era o seu aspecto mais revolucionrio. Eles tambm propuseram construir novas sociedades mas o avano em relao s utopias anteriores que a crtica ao capitalismo se tornou melhor fundamentada e tambm passou a tratar da passagem de uma sociedade outra. Entretanto, os socialistas utpicos compreendiam que a passagem ao socialismo se daria com o apoio do Estado ou das classes cultas ou, ainda, atravs da educao, da conscientizao, e da razo. Aqui se revela a principal limitao do socialismo utpico.

    O outro tipo de utopia, a concreta, se baseia, como dizia Bloch, na percepo do realmente possvel, ao contrrio das utopias abstratas. Neste sentido, o marxismo uma utopia concreta. Ao operar a crtica da sociedade burguesa, Marx e Engels analisaram as possibilidades histricas de instaurao do socialismo e como isso se daria. A utopia concreta a teoria revolucionria que no s possvel e necessria sua concretizao como o provvel resultado do processo histrico.

    A crise do capitalismo estatal da URSS e Leste Europeu faz com que a frao radicalizada e intelectualizada de nossas classes auxiliares da burguesia retome idias pr-marxistas e passa a considerar o marxismo como algo ultrapassado. Sem a muleta que era a URSS e o Leste Europeu, as classes auxiliares da burguesia no tm em que s e apoiar para continuar sua luta herica pelo socialismo. nesse momento que marxistas e ex-marxistas comeam a qualificar Marx como idealista. Como disse Claude Lefort, entre outros, a idia de uma sociedade sem classes no passa de um ideal criado por Marx4. A palavra ideal, para muitos, sinnimo de utopia. Ambos os conceitos, nesse caso, so entendidos como uma proposta que no leva em conta as possibilidades de sua realizao. Em uma anlise dialtica podemos dizer que a realidade das sociedades atuais dominada pela explorao, opresso e alienao. Esta realidade contradiz as aspiraes humanas tornando-se

    4 Entrevista concedida Revista Veja.

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    indesejvel e ela vista desta forma produz a vontade de criao de uma sociedade humanizada. O ideal no surge arbitrariamente e sim da necessidade real. Contudo, como o real est em movimento e o ideal que surge a partir dele est tambm em movimento, que busca sua superao e a do real, podemos dizer que o real com os caminhos possveis que pode percorrer que cria o ideal e este ou se coloca a favor e refora um desses caminhos ou se coloca contra esses caminhos e se torna pura abstrao. Portanto, esse ideal no uma simples criao arbitrria e ilusria, mas sim a negao do real.

    A partir disto podemos dizer que Marx no era idealista no sentido filosfico da palavra mas era idealista a partir da noo comum que atribui a esta palavra a posio de uma pessoa que tem um ideal. Entretanto, Marx no era um idealista como Morus ou Campanella. Neste caso surge mesma diferenciao entre utopia abstrata e utopia concreta que apresentamos anteriormente. Marx no tinha um ideal abstrato e sim um ideal concreto e no fazer tal distino o mesmo que colaborar com a propaganda conservadora, o que muitos marxistas andam fazendo depois da crise do capitalismo de estado (socialismo real).

    Vejamos se a utopia marxista concreta ou no. H no marxismo duas posies sobre a instaurao do socialismo: a economicista e a idealista (no sentido filosfico da palavra). A posio economicista gera duas outras posies: a reformista e a catastrofista. A posio reformista concebe que o desenvolvimento econmico do capitalismo leva sua prpria superao e por isso possvel passar ao socialismo gradualmente, conquistando espao no parlamento e no Estado e a partir disto ir construindo o socialismo. Esta a proposta do socialismo evolucionista de Kautsky e seus seguidores. A posio catastrofista concebe que haver uma crise final do capitalismo e por isso se deve preparar um partido de classe que tomar o poder com o surgimento da famosa crise final. Esta a proposta de Amadeo Bordiga.

    A posio idealista tambm gera duas outras posies: o revolucionarismo vanguardista e o reformismo vanguardista. Os adeptos do revolucionarismo vanguardista concebem que as condies objetivas da revoluo socialista j esto maduras,

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    sendo que o que falta so as condies subjetivas que sero criadas pelo Partido de Vanguarda, devido incapacidade da classe operria adquirir espontaneamente sua conscincia de classe. o partido, atravs de seus intelectuais, que elaboram a conscincia socialista e a introduzem no proletariado e que por isso tem o direito histrico de dirigi- la rumo conquista do poder estatal. Nesse caso no a classe e sim o partido que o sujeito revolucionrio. Esta a proposta de Lnin e dos bolchevistas. Outros, os reformistas vanguardistas, dizem que se a ideologia burguesa domina toda a sociedade, inclusive as classes subalternas, ento cabe aos intelectuais do partido elaborarem uma nova viso de mundo, novos valores, etc., e atravs disso unificar tais classes e promover uma mudana cultural e assim conquistar a hegemonia, necessria implantao do socialismo. Esta e a proposta de alguns intrpretes de Gramsci.

    Mas estas posies so compatveis com a de Marx? Segundo Marx, o comunismo no um ideal (abstrato) mas sim um movimento real que abole o estado de coisas atual. Os pressupostos reais so o desenvolvimento universal das foras produtivas e o surgimento de uma massa da humanidade destituda de propriedade em contradio com um mundo de riquezas e cultura existentes produzidos pelo prprio desenvolvimento das foras produtivas. Em outras palavras, os pressupostos so: a formao do capitalismo e do prole tariado e, atravs do desenvolvimento capitalista, a criao de um mercado mundial. O capitalismo ao se desenvolver cria e fortalece sua prpria negao: o proletariado. A partir da o socialismo torna-se uma tendncia histrica.

    A partir disto, podemos dizer que o capitalismo abolido pelo prprio desenvolvimento capitalista e assim cria o comunismo. Entretanto, a criao do comunismo obra da classe operria. A primeira afirmao sem a segunda leva em conta apenas um metafsico desenvolvimento das foras produtivas em detrimento da luta de classes e das classes sociais que seriam, nesta anlise, passivas. O comunismo no surge economicamente dentro do capitalismo, ou seja, o capitalismo, obviamente, no cria a propriedade coletiva no seu interior. O capitalismo no cria o comunismo diretamente mas

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    cria o proletariado que o agente da constituio do comunismo. O capitalismo se autodestri mas isso no quer dizer que o resultado de sua destruio seja o socialismo. Bukhrin j havia notado que poderia surgir uma sociedade ps-capitalista e no-socialista e esta seria fruto do desenvolvimento das foras produtivas e Marx afirmou que poderia haver uma abolio positiva da propriedade privada (burguesa), o que significa que poderia haver, tambm, uma abolio negativa 5. O mtodo de Marx , como observou Bloch, uma cincia da tendncia e no um determinismo econmico puro e simples. O socialismo uma necessidade da humanidade e uma tendncia histrica. Portanto, ele no inevitvel, ou seja, no a nica possibilidade histrica, embora seja a mais provvel.

    A tese bordiguista afirma que o partido que realiza a revoluo no verdadeira. Como j dizia Otto Rhle, a revoluo no tarefa de partido6. A revoluo proletria s pode ser feita pela classe e os partidos podem at fazer revolues ou contra-revolues, mas no podem fazer a revoluo comunista. Alm disso, no se justifica a tese mecanicista de ficar esperando a crise final do capitalismo, pois, como j havia observado Marx, as revolues podem ser antecipadas.

    Engels, ao criticar os socialistas utpicos, dizia que o seu principal defeito estava em no se basear no movimento operrio. Estes, segundo Marx e Engels, surgiram em uma poca em que o proletariado estava em formao e por isso atividade histrica substituem sua prpria imaginao, s condies histricas de emancipao, condies fantsticas, e organizao espontnea e gradativa do proletariado em classe em organizao social pr-fabricada por eles. Em sua opinio, a

    5 Cf. BUKHRIN, N. Tratado de Materialismo Histrico. Rio de Janeiro,

    Laemmert, 1970; MARX, Karl. Manuscritos Econmicos e Filosficos. In: FROMM, Erich. Conceito Marxista do Homem. 3 edio, Rio de Janeiro, Zahar, 1964.

    6 Apud. AUTHIER, Denis. A Esquerda Alem Doena Infantil ou Revoluo? Porto, Afrontamento, 1978.

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    histria do futuro resume-se na propaganda e na realizao prtica de seus planos de organizao social7.

    Esta posio seria retomada por Lnin na Rssia czarista com seu proletariado em formao. O bolchevismo uma expresso ideolgica do atraso da Rssia czarista. A organizao social pr-fabricada por Lnin, o partido de vanguarda, tem sua justificativa na ideologia da vanguarda, segundo a qual a conscincia de classe no surge espontaneamente no proletariado mas somente atravs dos intelectuais burgueses reunidos no partido8. Essa tese foi fundamentada filosoficamente por Georg Lukcs que afirmou que a passagem do proletariado de classe em-si a classe para-si mediada pelo partido, que onde esto os intelectuais9. Estes, ao descobrirem os interesses de classe do proletariado, lhe atribui a conscincia que deveria ter dos seus interesses, ou seja, a conscincia de classe do proletariado uma conscincia atribuda a ele pelos intelectuais. Mas, deixando de lado as fraseologias metafsicas de Lukcs e Lnin, vejamos o que diz Marx: as condies econmicas, inicialmente, transformaram a massa do pas em trabalhadores. A dominao do capital criou para esta massa uma situao comum, interesses comuns. Esta massa, pois, j, face ao capital, uma classe, mas ainda no o para si mesma. Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa se rene, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defendem se tornam interesses de classe10. Portanto, o proletariado adquire conscincia de classe (ou passa de classe em-si a classe para-si) atravs da luta de classes, ou seja, sem mediao de partido ou intelectuais. Resta-nos escolher: Marx ou Lnin?

    Hoje se tornou comum a diversos marxistas e ex-marxistas privilegiar a conscientizao e a mudana de

    7 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. In:

    LASKI, H. J. (org.). O Manifesto Comunista de Marx e Engels. 2 edio, Rio de Janeiro, Zahar,1978, p. 121.

    8 LNIN, W. Que Fazer? So Paulo, Hucitec, 1978. 9 LUKCS, G. Histria e Conscincia de Classe. 2 edio, Rio de Janeiro,

    Zahar, 1989. 10 MARX, Karl. A Misria da Filosofia. 2 edio, So Paulo, Global, 1985, p.

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    valores. Alguns mais direita, que dizem representar uma nova esquerda11, lanam seus apelos culturais para a conquista da hegemonia junto a todas as classes sociais, pois eles superaram o mito do proletariado. Esta uma bela volta ao socialismo pr-marxista com base em um humanismo abstrato que nem o chamado jovem Marx concordava. Mas se tais teses eram normais na poca dos socialistas utpicos, devido ao grau de desenvolvimento do proletariado, hoje so mais que ultrapassadas e so expresso da crise de conscincia das classes auxiliares da burguesia e que no servem luta pelo socialismo. De qualquer maneira, privilegiar a conscientizao e a mudana de valores, em uma posio direita ou esquerda, uma postura epistemologicamente idealista que gera uma prtica poltica elitista, j que so os intelectuais da nova esquerda que iro conscientizar o mundo ignorante e faz- lo, como dizia Marx, abrir a boca e engolir o pato assado do conhecimento absoluto.

    Todas essas posies tm em comum, alm do positivismo, a negao do papel revolucionrio do proletariado. Este passivo e s entra em ao quando chamado pelos kautskistas para votarem neles, quando a vanguarda bolchevista lhe dirige e fornece a conscincia socialista ou quando so conscientizados pelos pretensos reformadores do mundo (Marx). Se Marx estivesse vivo e seus seguidores fossem apenas estes, certamente retomaria a metfora de Heine: meu mal foi ter semeado drages e colhido apenas pulgas!.

    Se a criao do comunismo obra da classe proletria, ento na experincia histrica do movimento operrio que poderemos descobrir como isso se dar. A teoria socialista s justifica seu prprio nome se basear-se no movimento real dos trabalhadores. Marx e Engels, no Manifesto Comunista, propunham a estatizao dos meios de produo sobre controle do proletariado organizado como classe dominante, mas depois da experincia operria na Comuna de Paris, eles voltaram atrs e declararam que no basta conquistar o poder estatal e utiliz- lo 11 Nova Esquerda era o nome de uma tendncia organizada do PT Partido

    dos Trabalhadores, que editava a Revista Teoria & Poltica e tinha como representantes Adelmo Genro Filho, Tarso Genro, Ozeas Duarte, Jos Genuno, entre outros.

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    de acordo com os seus interesses, pois necessrio destru- lo e substitu- lo pela autogesto dos produtores. Aps Marx, foi Rosa Luxemburgo quem se baseou no movimento real dos trabalhadores para elaborar sua teoria revolucionria. Rosa Luxemburgo, ao observar a exploso de greves de massas em vrios pases e principalmente na Rssia czarista, definiu-as como a arma poltica mais poderosa do proletariado. A considerada tese anarquista, foi retomada por Rosa Luxemburgo como fora universal da luta operria. As greves passaram a ser defendidas por Bernstein, mas apenas para servir luta parlamentar da social-democracia alem e por Kautsky e Trotsky que logo abandonaram tal posio, o primeiro por assumir seu reformismo e o segundo por aderir ao bolchevismo. Depois de Rosa Luxemburgo, coube aos comunistas conselhistas fundamentar a teoria revolucionria no movimento operrio. A Revoluo Russa, a Revoluo Alem, entre outras tentativas de revoluo proletria no incio do sculo 20, foram palco de greves de massas que geraram os conselhos operrios e foram tericos como Karl Korsch, Anton Pannekoek, Hermann Gorter, Helmutt Wagner, Paul Mattick, Otto Rhle, entre outros, que tomaram esta experincia dos trabalhadores os conselhos operrios como a forma de organizao revolucionria do proletariado. Pannekoek disse que na poca de Marx e Engels no havia a possibilidade de prever com clareza como o proletariado tomaria o poder e que o antigo poder estatal, no processo revolucionrio, seria destrudo e substitudo pelos conselhos operrios12. Sem esquecer as contribuies mais recentes e as novas questes surgidas com o desenvolvimento histrico, podemos dizer que estes so os principais tericos da revoluo proletria e tambm que eles se opem tanto social-democracia quanto ao bolchevismo, que, como j dizia o historiador marxista Arthur Rosenberg, nada tm a ver com o movimento operrio 13.

    Mas hoje nos informam que tudo isto utopia. Quem diz isso so aqueles que tm compromisso com a sociedade

    12 PANNEKOEK, Anton. Os Conselhos Operrios. In: PANNEKOEK, A. e

    outros. Conselhos Operrios. Coimbra, Centelha, 1975. 13 ROSENBERG, Arthur. Democracia e Socialismo . So Paulo, Global, 1989.

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    existente. So estes que tm medo da utopia e ns sabemos muito bem que ningum teme sonhos irrealizveis. Nada mais ridculo que dizer que as mudanas histricas no Leste Europeu demonstram que no haver mais mudanas histricas. Os idelogos da classe dominante so to competentes em inverter a realidade que utilizam o prprio movimento histrico para dizer que ele no existe. Entretanto, o mais curioso disso tudo que aqueles que at bem pouco tempo se diziam defensores dos trabalhadores agora assumem um discurso conservador em nome do realismo poltico. O comunismo passou, para estes, de negao do capitalismo para apenas um remendo deste.

    A frmula socialismo democrtico um belo exemplo disso. O socialismo, por natureza, democrtico e a democracia autntica s pode existir no socialismo, ou seja, tal expresso um contra-senso. Nos dizem que o socialismo democrtico ter planejamento estatal convivendo com as leis do mercado e, ainda, com a pequena e mdia propriedade. O que que tem isso de socialismo? Vejamos primeiro a que setores da sociedade tal projeto de sociedade beneficia: o planejamento estatal serve aos interesses da burocracia e a pequena e mdia propriedade serve aos interesses da pequena e mdia burguesia. Agora vejamos o que acontece com o seu prolongamento histrico: qualquer economista sabe que a pequena e mdia propriedade convivendo com as leis do mercado logo se tornam grandes propriedades, ou seja, h uma volta situao anterior. Para os trabalhadores tal proposta acena apenas com a redistribuio de renda, ou seja, a diminuio da taxa de explorao e no sua abolio. Esta proposta visa construir, na verdade, um capitalismo reformado e no o modo de produo comunista.

    O comunismo no a redistribuio de renda e sim um modo de produo no qual os trabalhadores dirigem coletivamente os meios de produo implantando relaes de produo comunistas, pois a redistribuio de renda pode ser refeita novamente e contra os trabalhadores, se estes no deterem a propriedade e direo dos meios de produo. o modo de produo que determina a distribuio e por isso, entre outras razes, que o comunismo se fundamenta na produo. A concepo do socialismo democrtico ataca

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    apenas as questes superficiais do capitalismo e no as essenciais. Mantm-se a produo de mercadorias, a lei do valor, a propriedade privada, as classes sociais, o trabalho assalariado, o mais-valor, o Estado, etc., e, conseqentemente, a explorao, a opresso e alienao. O socialismo democrtico de socialismo s tem o nome. Sob o pretexto de realismo poltico, adere-se ao positivismo e ao reformismo. Mas em contraposio surge a utopia com seu carter crtico-revolucionrio negando o realismo poltico e o seu conservadorismo inerente.

    O comunismo a socializao dos meios de produo com base na autogesto social. Paul Mattick tinha razo quando disse que nada prova de maneira mais peremptria o carter revolucionrio das teorias de Marx do que a dificuldade de assegurar a sua manuteno em perodos no-revolucionrios14. O comunismo de movimento de superao do capitalismo torna-se apenas um nome que justifica, inclusive, a permanncia da sociedade burguesa, agora reformada. Apesar de dizerem que o marxismo morreu, a tendncia de ascenso do movimento revolucionrio e, conseqentemente, do marxismo. A classe operria vai seguir o seu caminho e deixa que os outros tagarelem.

    14 MATTICK, Paul. Kautsky: de Marx a Hitler. In: MATTICK, P. e outros. Karl

    Kautsky e o Marxismo . Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1988, p. 23.

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    A DEMOCRACIA BURGUESA COMO VALOR UNIVERSAL

    Nildo Viana

    A questo democrtica um tema que vem sendo muito

    discutido no Brasil. A crise do Leste Europeu coloca em discusso a relao entre socialismo e democracia. Neste debate surge a tese que diz que a democracia um valor universal. O Brasil importou esta tese da Europa Ocidental, onde desde Kautsky aos euro-comunistas defendida, e colocou-a em evidencia no debate sobre a democracia. Mas no se deve estranhar que o universal no seja nativo e sim estrangeiro. Nesse caso ns apenas assimilamos algo estranho a ns como se fosse nosso. Isto normal a povos subjugados pelo imperialismo. Mas onde existe submisso existe rebelio. Ento, hora de comear a nos rebelar.

    A democracia representativa vem sendo apresentada principalmente como: a) uma conquista da classe trabalhadora; b) condio para implantao do socialismo; e c) um valor estratgico permanente que ser conservado no comunismo. Para os que defendem tal tese, a democracia representativa surgiu das lutas dos trabalhadores e por isso uma conquista da classe operria. Esta concepo considera que a classe operria molda as instituies e a sociedade de acordo com sua vontade arbitrria. As demais classes sociais no participam da histria. Mas abandonando esta concepo positivista e substituindo-a por uma concepo dialtica, afirmamos que a democracia representativa um resultado da luta de classes.

    A classe operria ao lutar com a burguesia queria ir alm da democracia representativa e a burguesia no queria chegar at ela. Este resultado da luta de classes significou a vitria da burguesia, pois se ela recuou foi para manter sua dominao e o avano do proletariado levou-a apenas a mudar a forma de dominao burguesa. Nessa luta o proletariado no atingiu o seu

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    objetivo (o comunismo) e a burguesia atingiu o seu (a conservao do capitalismo). Pode-se dizer que essa derrota do proletariado trouxe- lhe algumas vantagens para a sua luta posterior contra a burguesia, mas no se deve esquecer que elas foram muito limitadas e que trouxeram simultaneamente vrias desvantagens e que parte das vantagens conquistadas se perderam com o desenvolvimento histrico devido ao fato da burguesia integrar esse sistema (democracia representativa) com cada vez mais eficincia na sua lgica de dominao.

    Os idelogos da democracia como valor universal nos dizem que ela condio necessria para a implantao do socialismo. Esta tese se sustenta com a argumentao de que as liberdades polticas beneficiam a luta dos trabalhadores e se complementa na sociedade comunista que conservar certos institutos democrticos, necessrios para a existncia de uma vida democrtica.

    V-se claramente o carter evolucionista de tal concepo. Segundo um autor brasileiro: do mesmo modo como as foras produtivas materiais necessrias criao da nova formao econmico-social j comeam a se desenvolver no seio da velha sociedade capitalista, assim tambm esses elementos da nova democracia (da democracia de massa) j se esboam em oposio aos interesses burgueses e aos pressupostos tericos do liberalismo clssico no seio dos regimes polticos democrticos ainda dominados pela burguesia. No primeiro caso, trata-se de suprimir as relaes de produo capitalistas para que as foras produtivas materiais possam se desenvolver plenamente, de modo adequado emancipao humana; no segundo caso, trata-se de eliminar o domnio burgus sobre o Estado a fim de permitir que esses institutos polticos democrticos possam alcanar pleno florescimento e, desse modo, servir integralmente libertao da humanidade trabalhadora1.

    Assim afirma-se que a democracia burguesa uma condio para a democracia socialista e que a evoluo das foras produtivas e a evoluo da democracia poltica levam

    1 COUTINHO, Carlos Nelson. A Democracia Burguesa Como Valor Universal .

    So Paulo, Cincias Humanas, 1980, p. 25.

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    ao socialismo. Este evolucionismo unilinear que considera as foras produtivas e o estado como instrumentos que se aperfeioam na histria , como notou Rosa Luxemburgo, o caminho do reformismo: a teoria da realizao progressiva do socialismo por intermdio de reformas sociais implica e a que se encontra o seu fundamento um certo desenvolvimento objetivo tanto na propriedade privada como do estado2. Acrescente-se a isso a viso instrumentalista das foras produtivas e do estado que mudariam automaticamente, eliminando-se as relaes de produo e o domnio burgus3. Esquece-se o que o estado e, pior ainda, adota-se uma viso simplista e mecnica a respeito das foras produtivas.

    Pelo visto este autor d um grande valor questo do mtodo. Apesar disto no s fez as afirmaes acima citadas como tambm esta: a relao da democracia socialista com a democracia liberal uma relao de superao (aufhebung): a primeira elimina, conserva e eleva a nvel superior as conquistas da segunda4. Como se v, a nfase colocada na conservao e na elevao ao invs de ser na eliminao (que superao mais conservadora!). Marx, comentando Hegel, disse que para este a negao da negao no a confirmao do verdadeiro ser pela negao do ser ilusrio mas a confirmao do ser ilusrio5. O mesmo se aplica tese acima exposta: a negao da negao no a confirmao da verdadeira democracia pela

    2 LUXEMBURGO, Rosa. Reforma Social ou Revoluo? So Paulo, Global,

    1986, p. 50. 3 bvio que os escritos de Marx do margem a esse tipo de interpretao no

    que se refere s foras produtivas mas no em relao ao estado. Sobre as foras produtivas Marx observou que a dialtica dos conceitos foras produtivas e relaes de produo apresenta limites que esto por determinar e que no suprime a diferena real (MARX, Karl. Contribuio Crtica da Economia Poltica. 2 edio, So Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 227). De qualquer forma, vrios pensadores marxistas (como A. Gorz) e no-marxistas (como Ivan Illich) questionam a neutralidade das foras produtivas e a tcnica defendida pelas esquerdas tradicionais.

    4 COUTINHO, C. N. ob. cit. p. 31. 5 MARX, Karl. Manuscritos Econmicos e Filosficos. In: FROMM, Erich.

    Conceito Marxista do Homem. 3 edio, Rio de Janeiro, Zahar, 1964, p. 171.

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    negao da democracia ilusria mas a confirmao da democracia ilusria.

    Outro equvoco desta abordagem est em no tomar as sociedades contemporneas como uma totalidade concreta e onde o modo de produo a determinao fundamental. A nfase na democracia poltica e na teoria ampliada do estado significa desconhecer a essncia e se iludir com a aparncia. O modo de produo apagado e substitudo pela formao social criando-se uma totalidade abstrata. o que o filsofo Karel Kosik chama de o mundo da pseudoconcreticidade6.

    Partindo desses pressupostos chega-se a concluso evidente de que se deve formar uma aliana de classes, incluindo at setores da burguesia, e aprofundar a democracia de massas. V-se que tal posio defende a reforma legal para aprofundar a democracia e chegar ao socialismo. Mas desde Rosa Luxemburgo sabemos que a reforma legal e a revoluo no so mtodos diferentes do progresso histrico que se possam escolher a vontade como se se escolhessem salsichas ou carnes frias para almoar, mas fatores diferentes da evoluo da sociedade classista, que se condicionam e se completam reciprocamente, excluindo-se, como, por exemplo, o plo norte e o plo sul, a burguesia e o proletariado7. Adere-se a poltica da burguesia e apesar das citaes de Marx, Engels, Lnin e Gramsci, os defensores destas teses, so, na realidade, herdeiros de Kautsky e Bernstein.

    Mas ser que eles no tm razo? As liberdades polticas no beneficiam a luta dos trabalhadores? A resposta a seguinte: em uma democracia representativa h liberdade de organizao, de reunio, de manifestao e principalmente h espao para uma guerra de posio que possibilita a classe operria dominar certos institutos democrticos e utiliz- los para implantar a sua hegemonia. Mas vejamos tudo isto mais de perto. Comecemos pela liberdade de organizao: para se organizar em partido poltico necessrio atender a certas

    6 Cf. KOSIK, Karel. Dialtica do Concreto . 4 edio, Rio de Janeiro, Paz e

    Terra, 1986. 7 LUXEMBURGO, Rosa. Ob. cit., p. 100.

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    exigncias do sistema poltico nacional, que s possvel tendo uma slida estrutura financeira e burocrtica, pois preciso contratar funcionrios, ter local para os diretrios, de uma grfica (ou recursos para as despesas de publicao), etc. Isto cria uma dificuldade enorme para a classe trabalhadora devido ao seu baixo nvel de renda. Isto tambm se reflete na possibilidade de existncia e eficincia de todas as outras organizaes operrias, exceto os sindicatos, devido contribuio sindical obrigatria, mas ela se torna isolada das massas j que o seu campo de ao a categoria profissional, onde geralmente uma minoria sindicalizada, e tambm um lugar propcio burocratizao e subordinao a outras organizaes mais amplas (partidos, estado).

    A liberdade de reunio, por sua vez, s possvel havendo locais para realiz-las e as classes exploradas no possuem estes locais e nem os recursos para consegui- los. Finalmente, a liberdade de manifestao uma fico. Alm das dificuldades de organizao e reunio que influenciam as possibilidades de livre manifestao, ela limitada pelas leis e pelo fato dos trabalhadores no terem tempo, acesso a informaes e condies financeiras para sistematizar suas idias e manifest-las.

    claro que tudo isso s aplicvel classe trabalhadora. Para a burguesia o contrrio que vale, como demonstra, para ficar em apenas um exemplo, o seu monoplio sobre os meios de comunicao de massas. As chamadas liberdades polticas na sociedade burguesa consistem no direito liberdade que na verdade contradiz a liberdade real, pois tal direito uma impossibilidade prtica (exceto para a burguesia). A desigualdade financeira faz da liberdade burguesa uma fico.

    Resta-nos analisar o campo que a democracia nos reserva para a guerra de posio. Todos sabem que para conquistar a famosa hegemonia necessrio forjar os meios materiais que a tornem possvel. Esses meios materiais, segundo alguns tericos, so conquistados pelas foras populares na disputa com as foras reacionrias e so os que se pode chamar institutos democrticos. Estes se encontram na sociedade civil e na sociedade poltica. Mas quem deve conquist-los? As massas populares e os partidos democrticos. Podemos dizer que

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    as massas populares acabam submetendo os institutos democrticos que conquistaram a organizaes burocrticas (partidos, estados, etc.). As causas disto so as seguintes: a) as classes exploradas, no capitalismo, devido suas condies de vida (condies financeiras, falta de tempo, cansao, etc.) e a corrupo generalizada da sociedade burguesa no participam nestes institutos democrticos, sendo coisa de minorias; b) entre essas minorias participantes, surgidas das massas, grande parte persegue seus interesses pessoais (por exemplo, utilizar um cargo na associao de bairro como trampolim para se candidatar a vereador); c) outra parte dessas minorias participantes, que poderamos denominar de esquerda utilizam estes institutos como correias de transmisso dos seus partidos; e d) essas minorias, a carreirista e a de esquerda, acabam seguindo a dinmica do estado capitalista e da conjuntura poltica. Mas no se deve esquecer que existem excees entre estas minorias. De tudo que foi visto, o que se nota que a poltica continua sendo definida de cima para baixo e no como quer os idelogos da democracia como valor universal, de baixo para cima. A idia contrria s possvel quando no se compreende a relao entre estado/sociedade e de ambos com os partidos polticos.

    Segundo a ideologia da democracia como valor universal, as foras populares precisam manter uma unidade na sua luta que realizada no(s) partido(s) democrtico(s) de massa, principalmente os da classe operria. O partido a sntese das foras populares e busca pressionar/conquistar a sociedade poltica. Esta tese revela mais uma vez a viso instrumentalista: o partido um instrumento das foras populares. Na verdade, os partidos polticos no so instrumentos e no representam as classes exploradas (massas, foras populares).

    Contudo, no h espao aqui para colocar a questo do partido de forma aprofundada e por isto faremos apenas alguns apontamentos8. O partido poltico para disputar o espao da sociedade poltica tem que atender as exigncias do sistema poltico que inclui sua adaptao ao sistema partidrio e

    8 Cf. VIANA, Nildo. O Que So Partidos Polticos. Goinia, Edies

    Germinal, 2003.

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    eleitoral. Para se adaptar ao sistema partidrio preciso cumprir as exigncias legais como possuir diretrios em diversas cidades para ser registrado e no fazer propaganda poltica contrria ao regime democrtico. Isto coloca, conseqentemente, dois tipos de exigncia: de um lado estrutura financeira e burocrtica; de outro lado, limites divulgao de sua concepo poltica.

    Mas alm disso, o sistema partidrio cumpre um papel ideolgico junto s classes exploradas: o sistema partidrio que permite indivduos com pontos de vista ideolgicos opostos a manter lealdade ao Estado: livre pensamento implica em pontos de vista divergentes assim como preferncias, e indivduos com preferncias partidrias diferentes podem sempre aspirar a que seu partido possa subir ao poder atravs de eleies livres, e se isto termina por no se concretizar, pelo menos isto sucedeu no jogo eleitoral justo (oferecido pelo estado atravs do sistema eleitoral)9.

    A adaptao ao sistema eleitoral coloca como exigncias: a existncia de diretrios ou executivas provisrias, o registro de candidaturas, etc. Mas isto seu aspecto puramente formal. O sistema eleitoral muito mais complexo do que deixa transparecer as exigncias legais de participao. Ele revela seu lado oculto quando notamos que o objetivo dos partidos e candidatos ganhar as eleies. Alis, os prprios sistemas partidrio e eleitoral foram os partidos a isto sob pena de marginalizao (por exemplo, nos meios de comunicao). Para conquistar a vitria eleitoral necessrio deter enormes somas de recursos financeiros. isto que possibilita a propaganda de massas (panfletos, outdoors, comits, automveis, aparelham de som, distribuio de brindes, etc.) e sem ela muito difcil um bom desempenho nas eleies.

    A propaganda de massas outro elemento necessrio nos grandes centros urbanos com sua populao densa. Ela consiste, essencialmente, em divulgar para a maior camada possvel da populao o nome dos candidatos. Ns sabemos que outdoors, adesivos, etc., no apresentam nenhuma mensagem poltica e que os panfletos, geralmente com o nome, o nmero e a foto e a

    9 COSTA NETO, L. Hegemonia e Poltica de Estado . Paz e Terra, Vozes, 1988,

    p. 77.

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    biografia do candidato (alguns melhor elaborados contm mensagens polticas genricas ou demaggicas), tambm no trazem nenhum contedo poltico criterioso e por isso no difcil perceber o carter despolitizante da propaganda de massas, mesmo quando feita pelas esquerdas.

    Outro fator importante que serve para amortecer a reproduo da luta de classes na disputa eleitoral o condicionamento do discurso pelo sistema eleitoral, principalmente quando o objetivo a vitria eleitoral. Os partidos de esquerda tendem a considerar a classe trabalhadora despolitizada e como realmente o voto desta vai para diversos partidos (de direita e de esquerda), ele se torna fragmentrio e a conquista dos votos das classes auxiliares da burguesia passa a ser necessrio. Entretanto, a classe trabalhadora e as classes auxiliares da burguesia possuem interesses diferentes e por isso o discurso poltico se torna moderado e voltado para atender os mais variados interesses. Os partidos burgueses tambm tentam conquistar os votos de todas as classes sociais. O discurso eleitoral , por sua natureza, um discurso policlassista e, portanto, despolitizante.

    De nada adianta os partidos de esquerda lamentarem que os trabalhadores votem nos conservadores, pois so eles que reproduzem a poltica da burguesia. Da o voto nulo, que em muitos casos representa a negao do sistema eleitoral, ser mais politizado do que pode parecer primeira vista. Mas o rompimento com a poltica da burguesia significa, ao mesmo tempo, um rompimento com a social-democracia que raivosa se volta contra os trabalhadores, por serem despolitizados. Do ponto de vista da social-democracia, os trabalhadores so despolitizados e do ponto de vista do proletariado a social-democracia despolitizada e despolitizante. Isto possvel porque se entende coisas diferentes por poltica e a poltica da burguesia diferente da poltica dos trabalhadores.

    A concepo burguesa da poltica, reproduzida pela social-democracia, afirma que a luta poltica deve convergir para o estado, que a sntese da sociedade civil. O estado burgus assume a aparncia universal e esse processo de universalizao cria o interesse nacional e a cidadania. Esta uma das formas de se apagar as lutas de classes na sociedade, pois todos

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    so cidados que defendem o interesse nacional. A cidadania retira as diferenas de classe e o interesse nacional as diferenas dos interesses de classe10.

    Marx dizia que o direito a aplicao de uma regra nica a seres humanos que so diferentes e, sendo assim, pode-se dizer que o direito ao voto ou o direito a candidatar-se no passa de uma farsa, pois os eleitores e aqueles que querem ser candidatos so pessoas com inmeras diferenas (financeiras, polticas, culturais, etc.), ou seja, o direito igual aplicado a pessoas de diferentes classes sociais e por isso significa a desigualdade e a injustia. Trata-se de uma armadilha ideolgica, pois ao invs do operrio, burocrata, campons, burgus, etc., aparece o cidado. Os cidados possuem os mesmos direitos e portanto so, nessa inverso da realidade, iguais. Por isso, a emancipao poltica a reduo do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivduo egosta independente e, de outro, a cidado do estado, a pessoa moral. Porm, somente quando o homem individual real recupera em si o cidado abstrato e se converte, como homem individual, em ser genrico, em seu trabalho individual e em suas relaes individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas forces propes [prprias foras] como foras sociais e quando, portanto, j no separa de si a fora social sob a forma de fora poltica, somente ento se processa a emancipao humana11.

    A partir disto se coloca a opo: os partidos de esquerda fazem uma poltica de classe e se arriscam a perder as eleies mas contribuem na organizao e mobilizao dos trabalhadores ou fazem a poltica da burguesia e podem at ganhar as eleies mas neste caso j estaro desfigurados e isto seria contrrio aos interesses da classe trabalhadora.

    A luta das esquerdas deve ser contra o capitalismo e sua democracia. Isto no quer dizer que se deve abandonar definitivamente qualquer tipo de participao em tal democracia. Mas esta participao deve estar subordinada aos 10 Para uma crtica mais aprofundada da ideologia da cidadania, cf. VIANA,

    Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinmica da Poltica Institucional no Capitalismo . Rio de Janeiro, Achiam, 2003.

    11 MARX, Karl. A Questo Judaica. So Paulo, Moraes, 1978, p. 51-52.

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    interesses de classe do proletariado e que por isso tem como objetivo principal acirrar as contradies do capitalismo e colocar em evidncia o programa comunista. Contudo, deve-se deixar claro que a participao ou no-participao, assim como suas formas, dependem fundamentalmente do momento histrico e da especificidade e situao concreta de cada pas. A incompreenso da situao particular de cada pas leva geralmente ao no-entendimento de certos fenmenos e por isso se desenvolve uma prtica poltica equivocada. Um exemplo disso foi a incompreenso de Trotsky sobre o papel do anarquismo e do POUM (Partido Operrio de Unificao Marxista) na guerra civil espanhola, o que lhe valeu a ruptura com Victor Serge e outros militantes.

    As esquerdas em vez de se iludirem com a democracia burguesa e com as reformas legais procurando, sobre hegemonia das classes auxiliares da burguesia, forma um bloco histrico reformista, deveriam assumir uma poltica de classe procurando, sob hegemonia do proletariado, formar um bloco revolucionrio. Este contaria com o proletariado e com classes e fraes de classes que podem historicamente cumprir um papel revolucionrio, como, por exemplo, o campesinato e o lumpemproletariado. As organizaes revolucionrias e os movimentos sociais, como o ecolgico, o negro, o das mulheres, entre outros, tambm devem compor este bloco juntamente com os indivduos revolucionrios provenientes de outras classes sociais.

    Alm da composio social diferenciada, o bloco revolucionrio difere do bloco reformista pelo projeto poltico. O programa de reformas caracterizado por ser antimonopolista, antilatifundirio e antiimperialista do bloco reformista no toca questes essenciais e caracterizadores do programa comunista, como a abolio do mais-valor, do estado e a autogesto social. O bloco reformista prope reformar o capitalismo ao invs de super- lo. O bloco revolucionrio, pos sua vez, prope a destruio do capitalismo e a instaurao do comunismo, o que significa colocar a nfase na transformao das relaes de produo e no em questes superficiais.

    Mas se a opo dos partidos de esquerda for ganhar as eleies, a situao se altera. Uma vez ganhando as eleies, os

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    representantes dos trabalhadores no podem fazer muita coisa no parlamento por vrios motivos: desde os limites constitucionais e regimentais at a composio majoritariamente conservadora que caracteriza o parlamento, sem falar na presso do poder executivo e dos lobbies extraparlamentares.

    Caso conquiste o poder executivo, o que ocorrer que os representantes dos trabalhadores vo administrar o capitalismo para a burguesia. Existe uma contradio entre a classe operria e o poder poltico burgus e cabe a quem entra na luta poltica escolher o lado que vai ficar. A estrutura burocrtica e hierrquica do poder burgus e o seu funcionamento condicionado pelo modo de produo capitalista fazem com que, independentemente de quem est no poder, o movimento operrio acabe sendo reprimido por ele. No preciso apresentar os exemplos disso no mundo, inclusive no Brasil. As regras da democracia burguesa so contra-revolucionrias e por isso no h sentido em dizer que ela condio para instaurao do socialismo. A instaurao do socialismo s possvel com a sua destruio.

    Os idelogos da democracia burguesa tambm dizem que a democracia um valor estratgico permanente que deve ser preservado no socialismo (comunismo) convivendo com a democracia direta. Ento vejamos se h compatibilidade entre democracia representativa e socialismo. O socialismo como projeto poltico ainda no foi realizado historicamente, embora tenha se concretizado em breves momentos e posteriormente tenha sido derrotado pela contra-revoluo, significa fundamentalmente a socializao dos meios de produo. Isto quer dizer que os meios de produo se tornam propriedade coletiva. Mas a propriedade s ve rdadeiramente coletiva se a coletividade possuir a sua direo. Portanto, o socialismo pressupe a autogesto. O socialismo significa o fim da diviso social do trabalho. Ora, a democracia representativa se baseia na diviso entre representantes e representados, o que leva fatalmente a diviso entre dirigentes e dirigidos e entre no-produtores e produtores: o representante no vai dispor de tempo para executar suas funes se for tambm um produtor. Assim, o produtor perde o poder de deciso em favor do no-produtor. Mantm-se a diviso social do trabalho e realiza-se a

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    perverso da representao que se transforma em nova forma de dominao e explorao.

    O que pode parecer perverso da representao , na verdade, sua prpria natureza. Na sociedade capitalista as diversas classes sociais deveriam elaborar um projeto poltico que expressasse suas necessidades, interesses, aspiraes e escolher algum para apresent-lo. Entretanto, so as cpulas que j detm o poder poltico e financeiro que preparam diversos programas polticos e os apresentam a populao. Esta obrigada a escolher um destes ou no escolher nenhum, abstendo-se. Deve-se acrescentar que nem todos os candidatos so eleitos e com isso apenas parte da populao representada, que a parte dos eleitores que votaram nos candidatos vencedores. A representao significa a transferncia de poder do representado para o representante.

    Aqueles que compreendem que no socialismo deve haver uma unio entre democracia representativa e direta pensam que numa sociedade socialista ser diferente. Isto no verdade, pois, numa sociedade socialista, um poder poltico organizado sob formas de democracia representativa (eleio a cada tantos anos e sobre a base de programa genricos, o indivduo isolado como sujeito poltico, concentrao formal do poder num corpo representativo) est condenado a ser mais mistificado e mistificante do que numa sociedade capitalista. Todas as decises reais, e antes de mais nada a determinao do plano econmico, escaparo ao controle do eleitor e do parlamento: um e outro sero impotentes e no estaro preparados para exercer este controle. O poder real ser ento assumido por uma estrutura centralizada, por uma minoria iluminada: o partido (ou os partidos) dominante e a tecnocracia. E por trs do vu da soberania popular, das eleies, do parlamento, todos os coletivos sociais ficaro reduzidos categoria de instrumentos consultivos ou de correias de transmisso da vontade de uma minoria12. Resta lembrar que isto, entretanto, no ser socialismo.

    12 MAGRI, Lcio. Parlamento ou Conselhos Operrios. In: PANNEKOEK,

    Anton e outros. Conselhos Operrios. Coimbra, Centelha, 1975, p. 109.

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    A democracia representativa no um valor universal e sim um valor burgus (especfico de uma classe). tambm uma forma de dominao burguesa que pode se transformar em uma forma de dominao burocrtica. Marx j dizia que uma classe que pretende se tornar uma nova classe dominante apresenta seus interesses particulares como os interesses gerais da sociedade13. Uma vez no poder esta classe se apresenta como portadora e representante de toda a sociedade. A nova dominao de classe e a nova sociedade classista passam a ser consideradas naturais e universais, invertendo a realidade na esfera da conscincia. assim que a democracia burguesa se torna um valor universal.

    A soluo deste dilema s pode surgir quando aparecer uma classe que no pode se libertar sem, ao mesmo tempo, abolir todas as classes e, conseqentemente, a dominao de classe em geral. Esta classe o proletariado, pois ele ao se libertar concretiza a libertao de toda a sociedade. Assim, o interesse particular do proletariado , ao mesmo tempo, o interesse geral da sociedade. A unidade do interesse particular de classe e o interesse geral da sociedade se materializa no proletariado.

    Mas pode surgir, no capitalismo, uma outra classe social querendo se tornar uma nova classe dominante e que, por isso, deve apresentar seus interesses particulares como universais. Como na classe operria que se d a fuso do particular com o geral, esta classe precisa se auto-intitular representante ou vanguarda do proletariado. Kautsky afirmou que o movimento operrio incapaz de emancipar o proletariado estando desprovido de teoria, que acessvel aos meios burgueses14.

    Segundo Massimo Salvadori, Kautsky pretendia desenvolver o marxismo com a inteno de retirar os aspectos utopistas do pensamento de Marx e engels. Mas acabou fazendo uma reviso do prprio marxismo. Qual o carter desse revisionismo? Salvadori diz que esse revisionismo refere-se aos seguintes pontos fundamentais: a teoria da crise final do

    13 MARX, Karl. Introduo Crtica da Filosofia do Direito de Hegel. In:

    MARX, Karl. A Questo Judaica. Ob. Cit. 14 KAUTSKY, Karl. As Trs Fontes do Marxismo . So Paulo, Global, s/d.

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    capitalismo, a ruptura da mquina estatal, o autogoverno, o fim da diviso do trabalho e a extino do Estado15. Acrescente-se a isso a sua tese de que so necessrios os mtodos cientficos para se alcanar a conscincia socialista e vemos claramente o seu carter burocrtico.

    A burguesia e a burocracia so as classes que tm o interesse em afirmar que a democracia um valor universal e Kautsky foi o primeiro grande idelogo da burocracia. Certamente o foi de forma no consciente. Trocando a ordem da frase de Marx, pode-se dizer que assim como no se julga uma poca de transformao pela conscincia que ela tem de si mesma, no se pode julgar um indivduo pela conscincia que tem de si. Afinal, no a conscincia que determina a vida, mas a vida que determina a conscincia16.

    Nem todos os que se dizem socialistas realmente o so. Como bem disse Franois Perroux, muitos acreditam estar morrendo pela classe, morrem pelos rapazes do Partido. Acreditam estar morrendo pela Ptria, morrem pelos industriais. Acreditam estar morrendo pela liberdade da Pessoa, morrem pela Liberdade dos dividendos. Acreditam estar morrendo pelo Proletariado, morrem por sua burocracia. Acreditam estar morrendo pr ordens de um estado, morrem pelo dinheiro que mantm o estado. acreditam estar morrendo por uma Nao, morrem pelos bandidos que a amordaam17.

    Ns, esquerda, ao contrrio da burocracia, devemos formar um bloco revolucionrio e incentivar a auto-organizao das massas atravs de conselhos de fbrica, comits de bairro, etc. e, com isso, destruir o estado burgus e sua democracia, construindo a autogesto social, a nica forma possvel que manifesta a etimologia da palavra democracia: governo do povo.

    15 SALVATORI, M. Premissas e Temas da Luta de Karl Kautsky contra o

    Bolchevismo . In: MATTICK, P. e outros. Karl Kautsky e o Marxismo . Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1988, p. 164.

    16 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alem (Feuerbach). 3 edio, So Paulo, Cincias Humanas, 1982, p. 37.

    17 Apud. MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial . 6 edio, Rio de Janeiro, Zahar, 1982, p. 194.

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    CRTICA AO ANARCO-MARXISMO Contra Nildo Viana e a Deformao do Marxismo*

    Carlos Moreira

    O pensamento de Marx e Engels e de seus seguidores

    obtiveram inmeras interpretaes e deformaes no decorrer de sua histria. Hoje, com a crise do socialismo real e a ofensiva ideolgica da burguesia, o marxismo recusado por uns e deformado por outros. A tendncia atual mais forte a deformao anarquista do marxismo. Esta, obviamente, no nasceu hoje e possui uma longa tradio mas agora que ela tende a fortalecer-se. Pretendo realizar, neste texto, uma crtica a esta forma especfica de deformao do marxismo: o anarco-marxismo. Farei isto a partir da anlise de dois artigos de um jovem anarco-marxista brasileiro1.

    Na verdade, nenhum dos anarco-marxistas se denomina como tal. Geralmente se intitulam marxistas libertrios, anarquistas, socialistas libertrios, comunistas libertrios, comunistas conselhistas, marxistas autogestionrios ou simplesmente marxistas. O anarco-marxismo tem duas fontes principais: uma surge no seio do anarquismo e busca enriquecer-se com a teoria econmica marxista e outra surge do seio do

    * Este texto foi produzido e enviado para a Revista Brasil Revolucionrio, no

    ano de 1992, sendo que no foi publicado e nem sequer os responsveis pela Revista responderam dizendo que o texto no era de seu interesse. Certamente era para proteger um de seus colaboradores. Apesar do texto estar meio antigo julgo que ainda tem valor e pode contribuir com o processo necessrio de crtica do anarco-marxismo.

    1 Na verdade, existe um conjunto de anarco-marxistas no Brasil que possuem elementos comuns convivendo com alguns elementos divergentes, tais como: Maurcio Tragtenberg, Fernando Prestes Motta, Lcia Bruno, Fernando Coutinho Garcia, Nildo Viana, etc. A minha crtica, devido a extensa produo deste conjunto, centrar apenas no ltimo, um jovem representante do anarco-marxismo brasileiro.

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    marxismo, buscando no arsenal anarquista os fundamentos para uma crtica da poltica.

    A primeira fonte do anarco-marxismo nos trouxe representantes renomados. J se disse, por exemplo, que o prprio Bakunin era marxista pois aceitava a doutrina do materialismo histrico. Entretanto, a nfase colocada na destruio do poder e na ideologia que o coloca como o ncleo autnomo da dominao e explorao, deixa Bakunin longe demais do marxismo para ser considerado anarco-marxista. Os dois representantes clssicos do anarco-marxismo, que saram do campo do anarquismo, so, sem dvida, Pierre Ansart e Daniel Gurin. Pierre Ansart, o autor de Marx et Anarchisme, busca aproximar Marx de Proudhon atravs de seus pontos comuns. Daniel Gurin realiza uma crtica do jacobinismo leninista-stalinista e busca criar uma sntese das teorias de Marx, Rosa Luxemburgo e de Trtski, em seu perodo antibolchevista, com os clssicos do anarquismo: Bakunin, Proudhon, Malatesta, Kropotkin, Max Stirner, entre outros. Eric Vilain, outro anarco-marxista, busca integrar o marxismo no marxismo, uma parte, a considerada mais inofensiva aos princpios anarquistas, do edifcio terico marxista: a crtica da economia poltica. Segundo Vilain: ora, O Capital no chega a nenhuma concluso em matria de estratgia poltica, modo de organizao, programa; atesta simplesmente o fracasso de todas as tentativas da burguesia de restaurar o sistema e vedar as brechas2.

    A segunda fonte do anarco-marxismo sai do campo do marxismo e se fundamenta na obra de Rosa Luxemburgo, acusada por muitos marxistas de ser uma anarquista. A crtica feroz de Rosa Luxemburgo ao bolchevismo e o seu espontanesmo a colocam como a primeira e mais moderada dos anarco-marxistas. Os chamados comunistas conselhistas radicalizaram o anti-bolchevismo e o espontanesmo do luxemburguismo e acrescentaram a negao completa dos partidos e sindicatos juntamente com um anti-sovietismo que

    2 VILAIN, Eric. A Questo Econmica . in: VRIOS. Os Anarquistas Julgam

    Marx. Braslia, Novos Tempos, 1986.

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    chegou ao extremo de caracterizar a sociedade sovitica como capitalista.

    O anarco-marxismo de origem anarquista busca incluir em sua doutrina a teoria econmica de Marx e o de origem marxista busca integrar em sua doutrina a negao da poltica presente nos clssicos do socialismo anarquista. Essas tentativas foram alvos de crticas tanto de anarquistas quanto de marxistas que recusaram o ecletismo deformador de ambas as doutrinas. Lnin no perdoou os comunistas de conselhos e lhes fez uma crtica desapiedada, em O Esquerdismo, Doena Infantil do Comunismo, assim como respondeu s crticas de Rosa Luxemburgo. Do lado do anarquismo, embora sem o brilhantismo de Lnin, Maurice Joieux condenou a tentativa ecltica de Daniel Gurin e refutou, do ponto de vista anarco-sindicalista, as teses de Rosa Luxemburgo e do comunista conselhista Anton Pannekoek3.

    Os fundamentos polticos do anarco-marxismo so: a) unio de concepes anarquistas e marxistas; b) espontanesmo fundado no economicismo; c) negao do papel da vanguarda, seja expressa no partido ou no sindicato; d) negao das experincias socialistas e da experincia da revoluo bolchevique; e) identificao do comunismo com a autogesto; f) negao da necessidade de um perodo de transio entre capitalismo e comunismo; g) negao de um estado de transio e defesa da destruio do estado de forma imediata; h) negao de qualquer forma de participao na democracia burguesa; i) seleo de obras de Marx e Engels e de tericos marxistas aceitveis pela doutrina.

    Pretendo demonstrar que estas teses esto presentes em um anarco-marxista brasileiro e posteriormente irei refut- las. Trata-se do anarco-marxista Nildo Viana, que no esconde os tericos em que se baseia: Marx, Engels, Rosa Luxemburgo, Daniel Gurin, Karl Korsch, Anton Pannekoek, Paul Mattick, Otto Rhle, Helmutt Wagner, entre outros. Ele se filia explicitamente tradio anarco-marxista. A sua simpatia pelo anarquismo revela-se claramente nos seus textos: Aps Marx,

    3 JOYEUX, Maurice. Autogesto, Gesto Direta, Gesto Operria. Braslia,

    Novos Tempos, 1988.

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    foi Rosa Luxemburgo quem se baseou no movimento real dos trabalhadores para elaborar sua teoria revolucionria. Rosa, ao observar a exploso de greves de massas em vrios pases e principalmente na Rssia Czarista, definiu-as como a arma poltica mais poderosa do proletariado. O que era tese anarquista foi retomado por Rosa Luxemburgo como fora universal da luta operria4. A incompreenso de Trtski do papel do anarquismo na Guerra Civil Espanhola levou-o a uma prtica poltica equivocada e isto provocou o seu rompimento com Victor Serge e outros militantes5. Estas afirmaes deixam claro a positividade que o autor v no anarquismo. Na verdade, o que ele busca fazer recuperar a crtica da poltica realizada pelo anarquismo e integr- la na teoria geral de Marx e Engels, juntamente com a dos out ros anarco-marxistas.

    A classe operria, segundo tal autor, o sujeito histrico que cria o comunismo. Portanto, no movimento real dos trabalhadores que se pode observar como isso ocorrer. Mas onde est a fundamentao de tal afirmao, ou seja, quem disse que o comunismo criao dos trabalhadores? Segundo Nildo Viana, seguindo Marx em A Misria da Filosofia, a classe operria devido sua condio econmica de classe cria interesses comuns e tambm a conscincia destes interesses. A classe trabalhadora faz a revoluo espontaneamente devido sua condio determinada pelo modo de produo. O espontanesmo est fundamentado numa concepo economicista. Segundo ele, o comunismo se fundamenta na produo6.

    Se a classe operria faz sua revoluo espontaneamente, ento torna-se desnecessrio o papel da vanguarda, do partido poltico, do sindicato. A revoluo no tarefa de partido poltico e os sindicatos so propcios burocratizao. A classe se liberta por si mesma e os partidos e sindicatos exercem geralmente uma ao conservadora sobre as massas7.

    4 VIANA, Nildo. Quem Tem Medo da Utopia? in: Brasil Revolucionrio. ano

    II, n. 7, Dezembro de 1990. 5 Veja: VIANA, Nildo. A Democracia Burguesa Como Valor Universal. in:

    Brasil Revolucionrio. Ano II, n. 8, Abril de 1991. 6 VIANA, Nildo. op. cit. pag. 39. 7 Veja: VIANA, Nildo. A Democracia Burguesa Como Valor Universal. op.

    cit.

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    Neste sentido, a revoluo russa realizada pelo partido bolchevique no pode ser considerada uma revoluo socialista. Segundo Nildo Viana, o bolchevismo uma expresso ideolgica do atraso da Rssia Czarista8. O que a revoluo bolchevique fez foi implantar um capitalismo de estado. Portanto, no existem sociedades socialistas no mundo.

    Se no existe socialismo no mundo, resta ento a pergunta: o que o socialismo? Segundo Nildo Viana, o socialismo autogesto, tal como demonstra as experincias histricas do movimento operrio (Comuna de Paris, Revoluo Russa, Revoluo Alem) que esboaram, mas nunca cristalizaram, a nova sociedade. Baseando-se em Pannekoek, o nosso autor diz que o poder estatal ser destrudo e substitudo pelos conselhos operrios e, por isto, no haver perodo de transio e nem estado de transio. A passagem do capitalismo ao comunismo se d diretamente.

    Diante deste conjunto de idias percebe-se muito pouco qual o papel dos revolucionrios e tericos de esquerda e quais so as formas de ao poltica que eles podem desempenhar. Sobre esse ponto Nildo Viana extremamente vago e limita-se a dizer que cabe esquerda formar um bloco histrico revolucionrio e incentivar a auto-organizao das massas atravs de conselhos de fbrica, comits de bairros, etc. e, com isso, destruir o estado burgus e sua democracia construindo a autogesto social, a nica forma possvel e verdadeira de democracia9.

    V-se, aqui, a negao da participao na democracia burguesa e a proposta de sua destruio como condio para a implantao da autogesto. Essas teses se baseiam nos escritos de Marx que so preferidos pelos marxistas idealistas: os escritos de juventude. Coloca-se a nfase em textos como os Manuscritos Econmico-Filosficos, Introduo Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, entre outros. Os textos do Jovem Marx so complementados pelos escritos da maturidade mas levando-se em conta apenas os seus aspectos econmicos (aqui

    8 VIANA, Nildo. Quem Tem Medo da Utopia. op. cit., p. 39. 9 VIANA, Nildo. A Democracia Burguesa como Valor Universal. op. cit. pag.

    18.

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    Nildo Viana faz tal como os anarquistas do tipo Bakunin e Vilain). Da a necessidade de afirmar que entre o jovem Marx e o Marx da maturidade no houve nenhuma ruptura, pois para justificar o primeiro que se usa as teses do segundo. Como coloca Nildo Viana, nos escritos do Marx da maturidade apresenta-se uma teoria do capitalismo e da revoluo proletria e nos escritos de juventude apresenta-se uma teoria da alienao, ou seja, num caso temos o elemento passivo da revoluo (o modo de produo capitalista e suas contradies) e noutro temos o seu elemento ativo (a alienao humana e a necessidade de sua superao). Em uma palavra: seleciona-se os textos econmicos de Marx, para lhe dar um carter economicista, complementado-os com os escritos de juventude, para assim poder justificar o espontanesmo10. Estes textos selecionados so complementados por escritos de anarco-marxistas como Rosa Luxemburgo, Anton Pannekoek, Paul Mattick, Karl Korsch, Daniel Gurin, entre outros.

    Se at agora me limitei a comprovar o carter anarco-marxista das teorias de Nildo Viana, agora passarei a fazer a sua crtica. A sua tese de que o pensamento de Marx atravessou trs fases que significam um aprofundamento dele, tem como base (nada mais nada menos) as idias dos voluntaristas Erich Fromm e Daniel Gurin. Para esses autores, no houve nenhuma ruptura entre o jovem Marx e o Marx da maturidade. Ernest Mandel tambm rejeitou esta teoria stalinista, mas sem cair nos desvios voluntaristas. Tal concepo da existncia de dois Marxs foi retomada recentemente pelo estruturalista marxista Louis Althusser e criticada de forma excepcional por Nildo Viana. Mas, o que uma caracterstica do anarco-marxismo, a crtica poderosa no acompanhada por uma proposta alternativa satisfatria.

    Daniel Gurin utiliza inmeras citaes de Trtski e Rosa Luxemburgo para combater Lnin e o bolchevismo e assim colocar em evidncia que a revoluo socialista produto espontneo do proletariado11. Mas Nildo Viana se baseia 10 Veja: VIANA, Nildo. Do Jovem Marx ao Marx da Maturidade. in: Teoria e

    Prxis. n. 3, Novembro de 1991. 11 Veja: GURIN, Daniel. O Futuro Pertence ao Socialismo Libertrio. Porto

    Alegre, Pra, sem data.

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    principalmente na teoria da natureza humana alienada de Erich Fromm. Este freudo-marxista possui algumas semelhanas com o anarco-marxismo em seu pensamento: a) com base na idia de natureza humana adere ao voluntarismo; b) um crtico de Lnin e o denomina, juntamente com Bukhrin, de positivista mecanicista; c) nega o papel do partido poltico; d) classifica a Sociedade Sovitica como um capitalismo de estado conservador; e) a classe trabalhadora, por ser a mais alienada de todas, que levar emancipao humana 12.

    Ernest Mandel fez uma crtica bastante perspicaz da tese de Erich Fromm sobre a natureza humana alienada. Segundo Mandel, Erich Fromm confunde a concepo antropolgica da alienao contida nos Manuscritos Econmico-Filosficos com a concepo histrica presente nO Capital: Fromm, por exemplo, escreve: de uma extrema importncia, para a compreenso de Marx, constatar quanto o conceito de alienao foi e permaneceu o ponto central do pensamento do jovem Marx, que escreveu os Manuscritos Econmicos e Filosficos e do velho Marx que escreveu O Capital. Fromm cita, a esse propsito, explicitamente, a idia de que a alienao, para Marx, implica uma alienao do homem da natureza. Mas evidente que est completamente ausente do Capital. Igualmente, a tentativa de identificar o conceito de alienao do trabalho dos Manuscritos de 1844 com o conceito de alienao e mutilao do operrio, tal como se encontra nas obras ulteriores de Marx, passa, sob silncio, o verdadeiro problema: a saber, a justaposio de uma concepo antropolgica e de uma concepo histrica da alienao nos Manuscritos de 1844 que so lgica e praticamente irreconciliveis. Se a alienao, verdadeiramente, fundada na natureza do trabalho e se este indispensvel sobrevivncia do homem - como Marx precisar mais tarde numa carta a Kugelmann - ento a alienao jamais ser sobrepujada 13(13).

    12 Veja: FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. Rio de Janeiro,

    Zahar, 1983. 13 MANDEL, Ernest. A Formao do Pensamento Econmico de Karl Marx.

    Rio de Janeiro, Zahar, 1968, p. 169.

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    Um autor como Nildo Viana, conhecedor de quase todos os escritos de Marx, se equivoca na interpretao de Marx e seleciona apenas os textos que fundamentam o seu anarco-marxismo. Mas ele tambm seleciona os autores marxistas que utiliza. Nega, explicitamente, as contribuies de Kautski, Bordiga, Lnin, Gramsci, entre outros. Seleciona os autores anarco-marxistas e os coloca como os autnticos continuadores do marxismo. Para concluir sua seleo e negao dos pensadores acima citados, retoma a metfora de Heine, utilizada pelo anarquista Alexandre Skirda para ironizar o marxismo: Marx podia muito bem retomar por sua conta a metfora de Heine: minha infelicidade foi ter semeado drages e colhido apenas pulgas14. sintomtico que utilize a ironia retirada de uma coletnea de artigos rancorosos e caluniadores de Marx. O anarco-marxismo nunca se torna totalmente marxista.

    com base nesta seleo que Nildo Viana consegue unir marxismo e anarquismo. Trata-se de utilizar a crtica da economia poltica de Marx (abandonando sua concepo poltica) e complement-la com a crtica da poltica dos anarco-marxistas e dos anarquis tas em geral. Acontece que marxismo e anarquismo so inconciliveis. O anarco-marxismo, esse produto hbrido, to ineficaz politicamente que se torna mera ideologia, distante da prtica. A teoria econmica do marxismo fundamenta uma teoria poltica e ambas so inseparveis, assim como a negao anarquista da poltica supe um conjunto de idias econmicas que lhe complementar. Ambos formam um todo coerente e o anarco-marxismo se torna um discurso contraditrio, lacunar, incoerente e ecltico. Ele acaba no sendo nem marxismo nem anarquismo. O espontanesmo com base no economicismo marca uma ruptura com o marxismo. Desde Marx, passando por Lnin, Trtski, Lukcs, entre outros, sabemos que a classe operria no adquire, graas s suas condies econmicas de classe, sua conscincia de classe espontaneamente15. A conscincia de

    14 SKIRDA, Alexandre. Gnese e Significao do Marxismo . in: VRIOS. Os

    anarquistas Julgam Marx. op. cit., pag. 31. 15 Veja: LNIN, Que Fazer? So Paulo, Hucitec, sem data; LUKCS, Georg.

    Histria e Conscincia de Classe. Porto, Publicaes Escorpio, sem data.

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    classe fundamental para a emancipao operria e sem uma organizao revolucionria, o partido poltico, ela no surgir.

    Mas de onde vem a negao do partido de vanguarda? Vem da confuso terica que confunde stalinismo e bolchevismo, Revoluo Russa e burocratizao da URSS. com base numa anlise equivocada da Revoluo Russa (uma contra-revoluo burocrtica ou revoluo burguesa, segundo os comunistas conselhistas) que se nega toda uma experincia e tradio revolucionrias. Quais so as causas da deformao do socialismo na Unio Sovitica? a resposta a esta pergunta que poder refutar a ideologia antibolchevista dos anarco-marxistas (que, alis, sempre se colocam como simpticos aos anarquistas na Revoluo Russa).

    Ernest Mandel j respondeu a esta pergunta: a resposta histrica a essa questo que o processo da revoluo socialista mundial deve ser separado conceitualmente do da construo acabada de uma sociedade socialista sem classes. De fato, a Rssia no estava madura para o estabelecimento de uma tal sociedade. At 1924, esse foi o ponto de vista comum de todos os marxistas revolucionrios: no apenas de Lnin, Trtski, Rosa Luxemburgo, Bukhrin, Zinoviev, Lukcs, Gramsci, Talheimer, Korsch, Radek, etc., mas tambm de Stlin. Mas o mundo estava maduro para o socialismo. De fato, j no Anti-Dhring, Engels o tomava como um fato garantido16.

    Portanto, dizer que o bolchevismo o responsvel pela deformao do socialismo sovitico abandonar o mtodo do materialismo histrico, pois isto s possvel separando-se as condies subjetivas das condies objetivas e assim colocar a culpa na primeira. Quanto tese do carter capitalista da URSS, ela totalmente equivocada, pois para ela ser verdadeira, seria necessrio haver o predomnio da lei do valor na URSS, o que no existe17.

    O anarco-marxismo nega explicitamente a necessidade de um perodo de transio e de um estado de transio entre o capitalismo e o comunismo. Segundo os anarco-marxistas, e

    16 MANDEL, Ernest. Alm da Perestroika. Rio de Janeiro, Busca Vida, 3

    edio, 1989, pg. 384. 17 Para uma caracterizao da URSS, veja: MANDEL, Ernest. op. cit.

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    entre estes Nildo Viana, a autogesto cair do cu por iniciativa do proletariado e de uma hora para outra chegaremos uma sociedade sem classes, sem estado, sem produo mercantil. Segundo um crtico do anarquismo: dispensamos as gloriosas experincias de auto-gesto realizadas no ms de maio [o autor se refere revolta estudantil de maio de 68 em Paris - CM] em tal laboratrio, tal instituto universitrio, abstrao feita de realidades vulgares tais como as relaes desse laboratrio, desse instituto, com o resto do mundo, com as instituies de crdito, as bolsas, os salrios fixados pelo Estado Capitalista... as experincias de auto-gesto de tal pequena empresa, abstrao feita de suas relaes com o mercado capitalista, os bancos, etc.18. A autogesto, ou seja, o comunismo, no pode ser implantado de um dia para a noite, necessrio um perodo de transio e de um Estado de transio que gerencie esta transformao.

    O anarco-marxismo tambm realiza uma crtica feroz democracia burguesa. Nildo Viana lhe desfere um duro golpe, que tem como principal mrito recusar a ideologia que retira o carter de classe da democracia burguesa transformando-a em valor universal19. Se Lnin, em O Estado e a Revoluo, afirmou que o anarco-marxista Pannekoek estava mais prximo do marxismo que o reformista Kautski, hoje se pode dizer que o anarco-marxista Nildo Viana est mais prximo do marxismo que o reformista Carlos Nelson Coutinho. Mas tanto reformistas quanto anarco-marxistas exageram suas posies em relao democracia burguesa. Os reformistas a supervalorizam e retiram seu carter de classe, elegendo-a como nico local da luta poltica e os anarco-marxistas no conseguem enxergar sua importncia para a luta do proletariado20. Sem dvida, o anarco- 18 BLOCH, Grard. Marxismo e Anarquismo . in: BLOCH, G. e TRTSKI, Leon.

    Marxismo e Anarquismo . So Paulo, Kairs, 1981, p. 17. 19 Veja: COUTINHO, Carlos Nelson. A Democracia Como Valor Universal.

    Rio de Janeiro, Salamandra. 20 Mandel esclareceu a positividade da democracia burguesa: no foi por

    acaso que o movimento operrio esteve na vanguarda da luta pelas liberdades democrticas nos sculos XIX e XX. Defendendo estas liberdades, o movimento operrio defendia ao mesmo tempo as condies mais favorveis para sua prpria ascenso. A classe operria a classe mais numerosa da sociedade contempornea. A conquistas das liberdades

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    marxismo de Nildo Viana supera tanto o reformismo quanto o anarquismo em sua posio diante da democracia burguesa, pois o reformismo a transforma num fetiche e o anarquismo a critica de forma bastante limitada21.

    Realizarei, a partir daqui, uma crtica geral do anarco-marxismo. Esta corrente, com seus mritos e equvocos, j foi bastante criticada por autores marxistas22. Antes de tratar de suas limitaes, devo me referir s suas grandezas: o anarco-marxismo extremamente superior ao stalinismo, ao reformismo e ao anarquismo. A sua anlise com base na crtica da economia poltica proporciona elementos importantes na compreenso da sociedade capitalista. Partindo desta anlise, consegue, ao contrrio do revisionismo reformista, observar o carter revolucionrio do movimento operrio. De uma forma secundria, contribui com o desenvolvimento do marxismo no campo da poltica, da filosofia, da economia, da sociologia, etc. Essas so as grandezas do anarco-marxismo.

    A principal crtica que se pode fazer ao anarco-marxismo (indo alm de questes especficas, tal como a abordagem da Revoluo Russa e URSS), incluindo o de Nildo Viana, a sua incapacidade de teorizar e gerar uma ao poltica. As concepes polticas do anarco-marxismo (negao dos partidos, sindicatos, democracia burguesa, luta pelo poder estatal) levam-no, fatalmente, um imobilismo poltico. A idia de autogesto imediata produzida pela ao espontnea da classe operria , para utilizar a linguagem blochiana de Nildo Viana, uma utopia abstrata e no uma utopia concreta. Dessa concepo autogestionria, uma concesso ao anarquismo, surge o imobilismo poltico. Nildo Viana, assim como todos os anarco-

    democrticas permite-lhe organizar-se, adquirir a garantia do grande nmero, exercer um peso cada vez maior na balana das relaes de fora (MANDEL, Ernest. Introduo ao Marxismo . 4 edio, Porto Alegre, Movimento, 1982, pag. 72).

    21 Para ver a superioridade da crtica anarco-marxista sobre a crtica anarquista, compare-se o artigo citado de Nildo Viana (A Democracia Burguesa Como Valor Universal) e a coletnea: O Anarquismo e a Democracia Burguesa . 3 edio, So Paulo, Global, 1986.

    22 Veja: HOBSBAWN, Erich. Karl Korsch. in: Revolucionrios. 2 edio, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985; LNIN, Esquerdismo: A Doena Infantil do Comunismo . 6 edio, So Paulo, Global, 1986.

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    marxistas, faz uma crtica poderosa da sociedade capitalista e de seus idelogos, mas o problema que sua concepo poltica alternativa impede o desenvolvimento de uma prtica poltica revolucionria. Por isto concordo com M. Hjek quando se refere ao comunismo de esquerda (um dos nomes assumidos pelo anarco-marxismo, sendo que no caso se trata do comunismo conselhista) como uma tendncia sectria-utpica que tinha sua fora na crtica, mas era incapaz de oferecer uma correta alternativa poltica23.

    23 HJEK, Milos. O Comunismo de Esquerda. in: HOBSBAWN, Erich (org.).

    Histria do Marxismo . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, pag. 97.

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    MARXISMO E ANARQUISMO A Anticrtica

    Nildo Viana

    O presente texto uma resposta a um artigo

    disponibilizado na Internet, intitulado Crtica ao Anarco-Marxismo Contra Nildo Viana e a Deformao do Marxismo1, cujo contedo uma crtica a textos que publiquei no incio da dcada de 90 do sculo 20. Algumas das teses apresentadas neles j considero superadas, pois foram escritas h dez anos e minhas idias foram aprofundadas neste perodo. No entanto, o essencial das teses apresentadas ainda carrego comigo e por isso devo responder ao texto que realiza uma crtica a elas. Lendo tal artigo, logo lembrei-me da polmica criada em torno dos livros Marxismo e Filosofia, de Karl Korsch, e Histria e Conscincia de Classe, de Georg Lukcs. Os dois foram acusados de idealismo e hegelianismo pelos soviticos no incio da dcada de 20 do sculo passado. Lukcs, como era sua tendncia, acabou voltando atrs e escreveu sua autocrtica. Karl Korsch, um revolucionrio autntico, no se intimidou e escreveu sua anticrtica. Eu, filiado tradio do marxismo revolucionrio de Korsch, realizarei aqui tambm a minha anticrtica.

    A primeira crtica de Carlos Moreira ao meu suposto anarco-marxismo de que realizei uma deformao anarquista do marxismo. No entanto, para se saber o que pode ser considerada uma deformao do marxismo necessrio, inicialmente, dizer o que se entende por este ltimo. Alguns relativistas defendem a tese de que existem vrios marxismos

    1 MOREIRA, Carlos. Crtica ao Anarco-Marxismo. In:

    http://www.polemos.hpg.com.br/ moreira01.html acessado em abril de 2003. Reproduzido tambm no site do CMI Centro de Mdia Independente.

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    e que, portanto, no existem deformaes deste2. Outros, por sua vez, definem o marxismo como o conjunto de idias fixas reveladas nos escritos de Marx e que por isso no podem ser modificadas, pois isto seria uma deformao. Mas, como o capitalismo se transforma constantemente e Marx no possua nenhuma bola de cristal, se tornou necessrio complementar a verdade revelada pelos escritos de Marx com os escritos de seus seguidores considerados clssicos, ou seja, por Lnin e Trotsky, principalmente. Isto , para tais idelogos, o marxismo.

    A concepo relativista coloca como critrio para definir o que marxismo a autodenominao. Quem se diz marxista marxista. A concepo bolchevista coloca como critrio a fidelidade aos escritos sagrados de Marx, Engels, Lnin e Stlin (para os stalinistas) ou Trotsky (para os trotskistas), ou seja, aos quatro clssicos do marxismo. Os relativistas podero refutar os bolchevistas da seguinte forma: para um trotskista, leitor fiel de Marx, Engels e Lnin, o stalinismo uma deformao do marxismo e para um stalinista, leitor fiel de Marx, Engels e Lnin, o trotskismo uma deformao do marxismo. Em uma palavra, dez pessoas podem ler Marx e elaborarem dez interpretaes diferentes e portanto no no escrito que se encontra a definio do marxismo e sim na pessoa que o l. Logo, todos os que se dizem marxistas o so, posto que no existe um critrio objetivo para defini- lo (um marxmetro).

    Mas os bolchevistas podem retrucar aos relativistas: quer dizer ento que se Mussolini se dissesse marxista ele o seria? Segundo os bolchevistas, isto no s falso como tambm reacionrio. Existe um critrio para definir o que o marxismo e quem pode se considerar marxista. Este critrio so os escritos de Marx atualizados por Lnin e Trotsky (ou Stlin). Vejamos o que diz Lnin: quem conhece somente a luta de classes ainda no marxista, ainda pode se manter no marco do pensamento burgus e da poltica burguesa. Circunscrever o marxismo teoria da luta de classes limitar o marxismo, adulter- lo, reduzi- lo a algo que a burguesia pode aceitar. Marxista s aquele que estende o reconhecimento da luta de classes ao

    2 NETTO, Jos Paulo. O Que Marxismo . So Paulo, Brasiliense, 1981.

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    reconhecimento da ditadura do proletariado3. Depois, Lnin chegou a afirmar que s marxista quem sente uma profunda admirao pelos revolucionrios burgueses do passado (...).

    As idias de Marx e Engels se circunscreviam a um determinado perodo histrico e isto tornou necessria sua atualizao. Entretanto, vrios marxistas buscaram atualizar sua teoria (tanto nos vrios campos acadmicos, tais como economia, filosofia, geografia, sociologia, etc., quanto no que se refere concepo poltica propriamente dita) e no somente Lnin. No basta dizer que necessrio reconhecer a necessidade da ditadura do proletariado, pois preciso definir o que isto. A ditadura do proletariado a autogesto ocorrida na Comuna de Paris e defendida por Marx em A Guerra Civil na Frana ou a ditadura do partido sobre o proletariado ocorrida na Rssia e defendida por Lnin? 4. A questo do partido, da ditadura do proletariado, entre outras, receberam vrias atualizaes e aprofundamentos por inmeros marxistas da poca de Lnin: Bernstein, Kautsky, Rosa Luxemburgo, Korsch, Pannekoek, Lukcs, o jovem Gramsci, o jovem Trotsky, Bukhrin, etc. No h nenhum motivo para que a pessoa de Lnin ser privilegiada como continuadora do marxismo, pois este critrio um critrio, mas continua sendo no-marxista.

    No graas a genialidade de Marx que se deve reivindicar do marxismo e o mesmo ocorre em relao aos seus epgonos e continuadores. O prprio Marx afirmou: eu no sou marxista, pois viu que suas teses j estavam sendo deformadas5. Karl Korsch forneceu a definio mais coerente do marxismo: ele a expresso terica do movimento operrio6. Portanto, o marxismo ultrapassou a pessoa de Karl Marx, embora ele seja o primeiro e mais importante referencial. Suas teorias devem ser aprofundadas, atualizadas e algumas

    3 LNIN, W. O Estado e a Revoluo . So Paulo, Global, 1987, p. 79. 4 Cf. MARX, Karl. A Guerra Civil na Frana. So Paulo, Global, 1986;

    LNIN, W. Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Sovitico. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1988; BRINTON, Maurice. Os Bolcheviques e o Controle Operrio. Porto, Afrontamento, 1977.

    5 Um dos primeiros deformadores foi Kautsky, inspirador de Lnin... 6 KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.

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    revisadas desde que continuem expressando a perspectiva do proletariado. possvel contestar o carter revolucionrio do proletariado e, por conseguinte, as idias que expressam seus interesses histricos. Mas neste caso no h mais nenhum motivo para se autodenominar marxista.

    Resta saber qual o critrio para definir quem consegue realizar uma expresso terica do movimento operrio. O critrio a prtica. Qual foi a prtica do bolchevismo? A aplicao prtica da ideologia bolchevique resultou em qu? Por mais incrvel que parea, a bancarrota do capitalismo de estado da URSS no foi suficiente para nossos leninistas-trotskistas-mandelistas, entre outros, se convencerem de que o bolchevismo nada tem a ver com o marxismo.

    Qual a relao entre marxismo e anarquismo? Existe um anarco-marxismo? Como colocamos anteriormente, o marxismo no pode ser considerado como algo fora da histria e separado das lutas de classes, pois defendemos a tese de que necessrio aplicar o materialismo histrico a ele mesmo (tal como exposto por Lukcs e Korsch). As idias de Marx e seus seguidores so um produto histrico de uma sociedade que se fundamenta em um modo de produo e uma classe social que sua superao e constituio de um novo modo de produo. O marxismo uma expresso terica do movimento operrio rumo constituio da autogesto social. Portanto, to