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Espinosa - uma filosofia da liberdade Baruch de Espinosa, expulso pelos iu- deus e desprezado pelos cristoos, e 0 exemplo vivo da liberdade de pensa- mento e de expressoo, por ele de- fendida com 0 risco de sua pr6pria existencia. Libertaros seres humanos do peso de suas superstic;:oese precon- ceitos, faze-Ios compreender e aceitar as causas das suas paixoes, convid6-los ao exercicio de sua pr6pria capaci- dade para pensar e agir, eis as prin- cipais metas de Espinosa. . A vida livre s6 pode existir quando os humanos instituem a sociedade poli- tica fundada em direitos por ela es- tabelecidos e conservados - por isso Espinosa demonstra que a democracia e 0 mais natural dos regimes politicos. A liberdade s6 pode ser experimen- tada por n6s se for sentida como feli- cidade e contentamento, vindos do conhecimento verdadeiro e de afetoS' que aumentam nossa capacidade de agir - por isso Espinosa escreve uma etica na qual 0 obietivo essencial e liberar-nos da tristeza e do 6dio para assim aumentar as forc;:as de' nosso corpo e de nossa alma. ISBN MARILENA CHADI Espinosa llma filosofia da liberdade , CIS ''0 CIS lC ___.f') •• ._ 199)2 C49t Ex.1 85-16-013 I 9 788516 013882 5111 L -" .,. '" .. J.L1' 5111

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Espinosa - uma filosofiada liberdade

Baruch de Espinosa, expulso pelos iu-deus e desprezado pelos cristoos, e 0

exemplo vivo da liberdade de pensa-mento e de expressoo, por ele de-fendida com 0 risco de sua pr6priaexistencia. Libertaros seres humanos dopeso de suas superstic;:oese precon-ceitos, faze-Ios compreender e aceitaras causas das suas paixoes, convid6-losao exercicio de sua pr6pria capaci-dade para pensar e agir, eis as prin-cipais metas de Espinosa.

. A vida livre s6 pode existir quando oshumanos instituem a sociedade poli-tica fundada em direitos por ela es-tabelecidos e conservados - por issoEspinosa demonstra que a democraciae 0 mais natural dos regimes politicos.A liberdade s6 pode ser experimen-tada por n6s se for sentida como feli-cidade e contentamento, vindos doconhecimento verdadeiro e de afetoS'que aumentam nossa capacidade deagir - por isso Espinosa escreve umaetica na qual 0 obietivo essencial eliberar-nos da tristeza e do 6dio paraassim aumentar as forc;:as de' nossocorpo e de nossa alma. ISBN

MARILENA CHADI

Espinosallma filosofiada liberdade

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CISlC___.f') •• . _

199)2C49tEx.1

85-16-013

I9 788516 013882

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Sumario

•• Introduc;ao,6A sinagoga e 0 templo, 6; Um divisor de aguas, 8COORDENAeAo EDITORIAL

Maria Lucia de Arruda Aranha

PREPARAeAo DO TEXTOValter A. Rodriguos

REVISAoCUlillMullill

Marcia Della Rosa

EDleAo DE ARTERicardo Postacchini oCAPA

lIustrac;ao bas88da em auto·retratode Espinosa. no qual ele S8 representa

como Masaniello. urn pescador que /ideroua (8volufao popular de Napoles

PEsaUISA ICONOGRAFICAMati/ena Chau;

TRATAMENTO DE IMAGENSAdemir F. BaptistaMarcos A. Affiant

DlAGRAMAeAoClaudiner Correa Filho

SAfDA DE FILMESEdmundo C. Canado

Helio P. de Souza Filho

COORDENAeAo DO PCPFernando Dalto Degan

IMI'IlESSAOE ACAIIAMENTOnarUra Grtijlca e I:'tlitora Utili.

Ch:lUl. Marilcna lie SUUlUl:~rilllt!\;1 ; Willi filnsul';. till Iilll'nlatic , Marikll'.

('hllui. Sl\lll'lllllu: Ml"kllm.ll"'~. IC·uh'\'lll.IIII'.1l\1

1. Filosolia holandcsa 2. PoJillcu ). Rucionalismo

4. Ral,aU 5. Spino/.a, Bcncdklusdc,I6J2-1617-

Crftica c inll'rprctm;:lu I. Tltulu. II. S~rjc.

Espinosa e seu tempo, 14A comunidade judaica de Amsterda, 14; 0 Seculo de O!Jroholandes, 23; 0 cfrculo de Espinosa, 29; Cronologia, 32

Contra a superstic;ao e a servidao, 34Racionalismo absoluto, 34; Da imagem a ideia de Deus, 43;Liberdade e felicidade, 52

A polltica, 73Direito natural e estado de Natureza, 73; Direito civil e Es-tado civil, 75; Os regimes polfticos, 76; A dominagao dosespfritos e a liberdade polltica, 77

Conclusao: Espinosa, nosso contemporaneo, 80

"

tndlc:olparac:at8logollslemAtlc:o: Parte II ANTOLOGIAI.l'il",,,liah,,landm 1')').4')2 •

EDITORA MODERNA LTDA.J{ua Padrl' Addino, 7'iH - Bl'k'nzinho

S,io Paulo - Sp - IIrasil - CEP OjjO:\_I)O-\V""das,, At""dim,,mo: Td. <0__ 11) (]Ol)I)-1 '00

Fax <0__ 1]) 6090-1 '01www.l1lcKlerll;t.nml.1ll"

LIIOI

11Il1,rtts.WI 110 IJrtlsi!

o metodo, 851. 0 caminho reflexivo: autoconhecimento do intelectoe de suas forgas, 85; 2. 0 metodo reflexivo: a ideia ver-dadeira, fndice de si mesma, como ponto de partida dometodo,86

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•• Deus, 883. A imaginayao finalista e a imagem de Deus comomonarca do universo, 88; 4. A potencia de Deus nao esenao a livre necessidade de Sua essencia, 90

•• As paixoes, 905. A origem e a natureza das paix6es: os afetos sacnaturais aos seres humanos, 90

•• A polltica, 989. Por que empreender a interpretayao historico-criticadas Sagradas Escrituras, 98; 10. Por que leis sobre aopiniao sao inuteis e perigosas para a vida politica, 100;11. A Iiberdade de pensamento e de expressao e es-sencial para a seguranya e a paz politicas, 101; 12. 0moralismo torna os filosofos ineptos em polltica, 103

Gosto de ver-te, grave e solitario,Sob 0 fundo de esqualida candeia,Nas maos a ferramenta de operario,Na cabeya a coruscante ideia.E enquanlo 0 pensamenlo delineiaUma filosofia, 0 pao diarioA tua mao a labutar granjeia .E achas na independ€mCia 0 leu salario.Soem ca fora agitayoes e lutas,Sibila 0 bafo asperrimo do inverno,Tu trabalhas, tu pensas, tu executasS6brio, tranquilo, desvelado e terno,A lei comum, e morres e transmutaso suado labor em premio eterno.

•• A etica, 926. Perfeiyao, imperfeiyao, bom e mau: modos de ima-ginar e de pensar, 92; 7. Razao e Iiberdade: a almainterpreta seus afetos e os encadeia interiormente, 94;8. A felicidade nao e 0 premio da virtude, mas a pro-pria virtude, 97

Las traslucidas manos del judioLabran en la penumbra los cristalesY la tarde que muere es miedo y frio(Las tardes alas tardes son iguales).Las man os y el espacio de jacintoQue palidece en el contin del ghettoEn sf no existen para el hombre quietoQue esta sofiando un claro laberinto.Ni 10 turba la gloria, ese reflejo·De espejo en el suefio de otro espejo,Ni el tenebroso am or de las doncellas.Libre de la metMora y del mito,Labra un arduo cristal: el infinitoMapa de Aquel que es todas sus estrellas.

•• Questoes para reflexao, 104

•• Glossario, 105

•• Bibliografia, 109

•• Sobre a autora, 112

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•• Introduc;ao

No dia 27 de julho de 1656,a Assembleia de anciaos da co-munidade judaica de Amsterdapromulga a excomunhao (herem,em hebraico) do jovem Baruchde Espinosa, com as seguintespalavras*:

"as SSres. do Mahamadfazem saber a V[ossas] M[erce]scomo ha diaz q[ue] tendo noticiasdas mas opinioins e obras de Ba-ruch de Espinoza procurarao p[or]dlfferentes caminhos e promesasretlral-o de seus maos caminhos13 nao podendo remedial-a, anttespalo contrario, tendo cad a diamayores noticias das horrendashoregias que practicava e ensina-va €I ynormes obras q[ue] obrava,tondo disto muintas testemunhasfldedlgnas que depugerao e tes-

temunharao tudo em prezensa dodito Espinoza, do q[ue] ficou con-vensido; a qual tudo examinaraoem prezensa dos SSrs. Hahamin,deliberarao com seu pare~er queditto Espinoza seja enhermado €I

apartado da na~am de Ysraelcomo actualmente 0 poin em he-rem, com 0 herem seguinte: Consentensa dos Anjos, com dittodos Santos, nos emhermamos,apartamos e maldisoamos e pra-guejamos a Baruch de Espinoza,com 0 consentimento del DioBenditto e consentimento de todoeste K[ahal] K[ados], diante dosSantos Sepharin, estes can asseis centos e treze preceitos queestan escrittos nelles, can a he-rem que emheremou Jehosuah aYericho, can a maldissao quemaldisse Elisah aos Mossos ecan todas as maldisoins que es-

ta6 escrittas na Ley. Malditto sejade dia e malditto seja de noute,malditto seja seu levantar e mal-ditto seja seu deytar, malditto elleem seu sayr e malditto elle en seuentrar. N§.o querera A[donai] per-doar a elle que entonces fumearaa furor de A[donai] e seu zellonesse h6men e yazeranelle to-das as maldisoins as escrittas nolibra de esta Ley e arremetaraAdonai a seu nome debaxo dosceos e apartaloa Adonai para malde todas as tribos de Ysrael contodas as maldissoins do firma-menta as escrittas no libro da Leyesta. E vas as apegados comA[donai] voso D[eus], vivos todosvas oje. Advitindo que ningem Ihepode fallar bocalmente, nem p[or]

• 0 texto do herem esta redigido numa mesda arcaica de portugues e espa-nhol que Irla tomar-se 0 idioma falado pelos judeus sefaradis da PeninsulaIbarlca, 0 ladino (hoje falado pelas comunidades sefaradis da Grecia, Turquia,Norte da Africa e Israel). No seculo XVII, epoca de redaQao do herem de Espi-nosa, 0 ladino ainda nao esta padronizado, motivo pelo qual variam a grafia eGcontuayao de uma mesma palavra. E assim que, por exemplo, a palavra "mal-dlQOos" aparece grafada "maldisoins/maldissoins", a palavra "naQao" vem es-crlts "naQan/naQam" etc. 0 pr6prio nome de Espinosa e grafado de maneirasdlvorsas nos varios documentos oficiais da comunidade, durante 0 seculo XVII,aparecendo ora como "de Espinoza", ora como "de Espinosa", "Spinosa", "Es-pinosa". Em suas obras, escritas em latim, 0 fil6sofo assinava "Benedictus deSplnoza" e e dessa maneira que seu nome aparece nos sonetos de Machadodo Assls e Borges. A convenQao atual, para a lingua portuguesa, e "Espinosa",o sora adotada por n6s neste livro.

As quesloes religiosas e leol6gicasperpassam as discussoes filos6ficas epolfticas do seculo XVII.

escritto, nen darlhe nenhun favor,nen debaixo de tecto com elle,nen junto de cuatro covados, nenleer papel feito au escritto parelle". Notta do Herem que Se Pu-blicou da Theba en 6 de Ab con-tra Baruch de Espinoza, LlBRODOS ACCORDOS DA NAyAN,anno 5398-5440."

Baruch de Espinosa tinha,na apoca dessa promulgagao,24 anos.

Em 1670, aos 37 anos, Es-pinosa publica 0 Tratado teo/6gi-co-polftico, impressa sem anome do autor, e em cuja aber-tura lemos:

"Se, em todas as circuns-tancias, os homens pudessemdecidir com seguranc;a, au se asorte Ihes fosse sempre favora-vel, jamais seriam vitimas da su-perstic;ao. Mas como se encon-tram freqQentemente perante taisdificuldades que nao sabem, quedecisao hao-de tomar, e como asincertos beneffcios da sorte quedesenfreadamente cobi~am asfazem oscilar, a maioria das ve-zes, entre a esperanc;a e a medo,estao sempre prontos a acreditarseja no que for (... ) A que ponto amedo ensandece as homens! amedo e a causa que origina, con-serva e alimenta a superstic;ao(...) Nao ha nada mais eficaz doque a 'supersti9ao para governar

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as multidoes. Por isso e que es-tas sac levadas, sob a capa dereligiao, ora a adorar os gover-nantes como se fossem deuses,ora a execra-Ios e a detesta-Ioscomo se fossem uma peste paratodo 0 genero humano. Foi, deresto, para prevenir este perigo

. que houve sempre 0 cuidado derodear a religiao, fosse ela verda-deira ou falsa, de culto e aparato,de modo a que se revestisse damaior gravidade e fosse escrupu-losamente obedecida por todos".

Se, em 1656, os rabinosexpulsaram Espinosa da Sinago-ga, em 1674 os pastores protes-tantes exigiram que ele fossecondenado pelos cristaos. E as-sim que, a 19 de julho de 1674,trazendo 0 brasao e as armas deGuilherme de Orange III, os Es-tad os Gerais da Holanda, soborientayao e exigelnciado Sinodocalvinista, promulgam urn Mitoproibindo a impressao e divulga-yao do Tratado teo/6gico-po/ftico,ja condenado na Alemanha:

"Para prevenir contraoste veneno pernicioso e impedir,na medida do posslvel, que al-guem possa ser por ele induzidono orro, julgamos nosso deverdoc\arar esse Iivro de acordo com()quo foi descrito e reputa-Io blas-lomnt6rio e pernicioso para aulrnu, cheio de teses infundadas

e perigosas e de abominayoesem detrimento da verdadeira reli-giao. Como consequencia, poreste ordenamento, interditamos atodos e a cada urn imprimir, divul-gar ou vender tal livro e outrosque Ihe sejam semelhantes, sobpena de castigos previstos peloseditos do pais".

bes -, cujas obras tambem foramcondenadas como perigosaspara a ordem estabelecida, Es-pinosa nao foi execrado apenaspor autoridades polfticas e ecle-siasticas, e sim tambem pelospr6prios fil6sofos e cientistas deseu tempo?

Poucos pensadores foramtao odiados quanta ele. No entan-to, poucos tambem tern sido taoadmirados e amados quanta ele.Que ha em seu pensamento paraque ninguem se sinta indiferenteao le-Io? Por que, ao ser Iida aobra, 0 homem Espinosa se faztao presente e suscita sentimen-tos e ideias tao contrarios?

Durante os seculos XVII,XVIII e XIX, Espinosa foi aquelede quem nao se devia falar ouaquele que devia ser atacado,mesmo e sobretudo sem que suaobra fosse Iida. "Espinosismo" e"espinosista" tornaram-se pala-vras acusat6rias. No entanto, aomesmo tempo, sua obra naOces-sou de exercer uma atrayao insu-peravel, como se por ela passas-se a decisao fundamental da filo-sofia moderna. Atrayao de talmodo forte que, a urn jovem dis-clpulo que comeyaraa ler a Eticae fora tornado de duvidas, seumestre, 0 te610go Padre Male-branche (1638-1715), recomen-dava que nao a lesse porque "emaquina infernal" e aquele quenela penetra e sequestrado por

Em 1678, urn ana ap6s amorte de Espinosa, urn novo edi-to do governo da Holanda prolbea divulgayao de sua obra p6stu-ma, publicada por seus amigosJarig Jelles e Luiz Meijer.

Afinal, 0 que dissera 0 jo-vem Espinosa - em 1656 -, 0que escrevera 0 fil6sofo - em1670 - e 0 que deixara escrito -em 1678 - para qu·efosse expul-so da comunidade judaica e con-denado pelas autoridades cris-tas? Que se passa no seculoXVII para que seu pensamentoseja considerado como veneno,blasfemia e abominayao? Porque alguns leitores, seus con-temporaneos, afirmam estardiante de "nova enCarnayaO deSata" e que seu nome, Benedic-tus, em latim, deveria ser muda-do para Maledictus? Sobretudo,porque, diferentemente de ou-tros contemporaneos seus -como Galileu, Descartes e Hob-

A concepc;:ao da imanencia entre Deus ea Natureza leva a uma nova ideia dafelicidade e da liberdade, inedita nopensamento moderno.

suas engrenagens, nao podendonunca mais Iibertar-se dela. Atra-yaOtao poderosa que, no seculoXIX, 0 fil6sofo Hegel dira que a .modernidade filos6fica comeyacom Espinosa e que sem ele ne-nhuma filosofia e posslve!.

A inovayao espinosanaaparece num conjunto de tesesque serao minuciosamente de-monstradas pelo filosofo. Quedemonstra ele?

1. Que Deus e a Naturezasac uma s6 e mesma coisa -Deus sive Natura ("Deus, ou seja,a Natureza").

2. E, portanto, que Deusnao e ·um super-homem dotado

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do onlandlmonlo on/se/onto nemdo vontado onlpolonle, nao agelando om vista tins mlsteriosos enao 6, como crO a Imaginaeao su-parlllclosa, uma Pessoa Trans-oondente, Monarca do Universo eJulz do homem.

3. Que 0 horn em e livrenlo porque seria dotado de livre-arbltrlo para escolher entre alter-natlvas 19ualmente possiveis,mas por ser uma parte da Natu-raza dlvlna, dotado de forea in-lama para pensar e agir por simasmo.

4. Que a religiao e um im-pulso natural para dar sentido aomundo e a vida humana, servin-do de consolaeao para a almados devotos e reduzindo-se adais preceitos universais muitosimples: crer na eXi~.tEmciade urnDeus born e justo; amar a Deus eao pr6ximo. Par esse motivo, averdadeira religiao e uma relaeaoesplritual entre a consciencia in-dividual e a divindade, dispensan-do 0 aparato de igrejas, cerima-n/as e teologlas.

5. Que 0 poder politico naonasce de urn contrato social dasvontades individuais, mas da for-c;:acoletiva da massa reunida nums6 ate de decisao pelo qual insti-tui a si mesma como sujeito polfti-co detentor do poder; que essepoder e civil, nao devendo jamaissubordinar-se ao poderio religio-so-teol6gico, sob pena de trans-

formar-se em tirania sobre os cor-pos e as espiritos.

6. Que, portanto, a teologiadifere da politica e difere tambemda filosofia. Esta ultima e um sa-ber Iivremente buscado pela razaohumana, enquanto aquela forjamisterios revel ados por Deus quenao poderiam ser conhecidos pornosso entendimento. Em outraspalavras, a teologia e uma ausen-cia de saber verdadeiro que pre-tende conseguir a obediencia esubmissao das consciE'mcias adogmas indemonstraveis, sendopor isso mesmo urn poder tiranicoe·nao urn conhecimento.

No seculo XVII, Iida comoa mais perniciosa forma de ateis-mo par afirmar a identidade entreDeus e Natureza, foi consideradafatalista porque demonstra que arealidade e regida par leis univer-sais, necessarias, imutaveis eeternas, as quais os seres huma-nos tambem se encontram sub-metidos, pais a noc;:aode Iivre-ar-bitrio 13 ilusoria, sinal de nossa ig-norancia quanta as causas ne-cessarias que determinam nos-sas aeaes, ideias e desejos. Hor-rorizados, as leitores cristaos de-clararam que a obra espinosanaretira a liberdade de Deus (poisEste se confundiria com as leisnecessarias da Natureza) e a res-ponsabilidade do homem (poiseste simplesmente seguiria 0 cur-so necessario das leis naturais).No primeiro caso, teriam desapa-reeido as ideias de Providenciadivina e de milagre; no segundo,as de recompensa e castigonuma vida futura.

No seculo XVIII, porem, aafirmac;:ao de Espinosa "Deus ouNatureza" leva a interpretar e avalorizar sua obra como primeiradoutrina sistematica do deismo,ou religiao natural, defendida peloracionalismo da lIustracao. Paraos deistas, Deus 13 a forca racio-nal e necessaria que rege a reali-dade segundo leis inteligiveis, co-nhecidas pela filosofia e pelaeiE'meia,dispensando os misterios

Com essas teses, a filoso-fia de Espinosa se apresentacomo um divisor de aguas entre aIiberdade (de pensamento, de ex-pressao e deaCao) e a servidao(etica, politica e teologica). Nissoreside seu enorme perigo para asideias vigentes e os poderes es-tabe/ecidos.

Por abalar poderes e pen-samentos instituidos, a obra espi-nosana foi Iida, no correr dos tresultimos seculos, de uma maneiraque a fez parecer contraditoriaem si mesma, quando, na realida-de, contradiz 0 estabelecido. Paressa razao, tem sido interpretadade formas tao variadas que pare-ce impossivel capta-Ia como filo-sofia coerente au dotada de algu-ma identidade.

teol6gicos e religiosos. Sob esseponto de vista, Espinosa surgiacomo precursor da verdadeira ra-cionalidade moderna.

A partir do Romantismo, noentanto, 0 secuJo XIX considerouEspinosa, nas palavras do poetaNovalis, "0 homem embriagadode Deus" e sua obra, a formamais profunda do misticismo pan-teista, porque, identificando Deuse Natureza, prometeria a felicida-de do sabio como fusao de nossaalma no seio do absoluto divino.Espinosa nao seria um naturalis-ta, como pretendera a Ifustrac;:ao,mas um espiritualista, e 0 maiorde todos. Simultaneamente, po-rem, a filosofia do Idealismo ale-mao conservou a interpretac;:aoda obra tal como fora feita no se-culo XVII: 0 espinosismo seria urnateismo fatalista que torna impos-sivel tanto a Iiberdade e onipoten-cia misericordiosa de Deus quan-to 0 Iivre-arbitrio do homem. Es-pinosa seria urn naturalista e suaobra, um "frio materialismo".

Eis por que, em nosso se-culo, a obra espinosana, interpre-tada de inumeras maneiras, foi, namaioria das vezes, consideradaincoerente e contraditoria, carre-gando em seu interior restos de fi-losofias opostas, isto e, restos deespiritualismo mistico e de natura-Iismo materialista. Fundamental-mente, tem sido considerada in-consistente porque pretenderia

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A. M. C.BIBLIOTECA

DATA N.D

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S~ aG,C1 51- if, 2-

conciliar duas perspectivas incon-clllaveis: a de uma filosofia da Na-tureza, na qual esta e entendidacomo sistema da necessidade ab-sol uta, e como filosofia etica base-ada na plena Iiberdade humana,reunindo, assim, duas ideias quese excluiriam reciprocamente, ade necessidade (das leis da Natu-reza) e a de Iiberdade (como es-colha entre varias alternativas pos-siveis). Por que inconciliaveis?Porque, dizem os intarpretes, setudo segue leis necessarias, nadaha no mundo que possa ser tidocomo meramente possivel, e sema idaia de possibilidade nao podehaver a Iiberdade.

Todavia, se nos acercar-mos da filosofia espinosana semidaias pra-concebidas, descobri-remos por que, afinal, Espinosafoi excluido da comunidade judai-

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ca, da sociedade crista e da reopublica dos sabios "coerentes".

Sua obra faz desabar ospHares que sustentam a supersti-9ao religiosa, a tirania politica e aservidao etica. Ao faze-Io, poe emquestao as imagens tradicionaisde Deus, da Natureza, do homemeda politica que serviam de fun-damento a religiao, a teologia, ametafisica e aos valores atico-po-Iiticos da cultura judaico-crista,isto a, da cultura ocidentaJ.

E 0 radicalismo da razao li-vre e da alegria de pensar semsubmissao a qualquer poderconstituido - seja este religioso,politico, moral ou te6rico - e adecisao de afastar tudo quantanos cause medo e tristeza quetorna Espinosa perigoso e odia-do, para uns, mas tambem taoamado, para outros.

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oEspinosa e seu tempo

A COMUNIDADE JUDAICADEAMSTERDA

Em 1492, ap6s a tomada deGranada pelos reis cat6licos Fer-nando e Isabel, os judeus, que has6culos viviam na Espanha, sacobrigados a escolher entre a con-versao forc;ada ao cristianismo e aexpulsao, com a maior parte deseus bens confiscados para au-mentar os recursos da Coroa espa-nhola na corrida pelos mares edescobertas maritimas. A familiade Espinosa, como muitas outras,loge para Portugal. AIi, porem, seisnnos depois, pelas mesmas razoesque anteriormente as de Espanha,os judeus sac obrigados a escolherontre a expulsao e a conversao for-ynda ao cristianismo.

Todavia, um fate ocorre emPortugal, diverse do que se passa-ro na Espanha: D. Manuel 0 Ventu-roso faz com que todos os judeusBo]am batizados antes mesmo quehouvossem escolhido entre a ex-pulsno ou a conversao. Numa s6nolto, nas praias portuguesas,ondo aguardavam barcos que oslovnrlum para longe, milhares de ju-

deus foram "convertidos". Torna-ram-se cristaos-novos, na linguaportuguesa, e marranos, na linguacastelhana. Forc;ados a nova fe,muitos, porem, guardaram em se-gredo a antiga, sendo por isso per-seguidos ininterruptamente emtoda a Peninsula Iberica.

.A familia de Espinosa, con-vertida, permanece em portugal,mas, no final do seculo XVI, ao seiniciarem novas perseguic;oes,quando a Coroa portuguesa preci-sa de recursos para manter 0 im-perio colonial e usa a prisao e amorte dos judeus para confiscarsuas fortunas, 0 pai de Espinosa,Miguel, nascido nas cercanias deBeja, decide emigrar. Dirige-se pri-meiro para a cidade francesa deNantes e, finalmente, para Ams-terda, numa das inumeras levasque procuravam a Holanda, tantoporque ali reinava maior toleranciareligiosa quanta porque nela seiniciava um novo poderio economi-co que iria suplantar 0 de Portugale Espanha, atraves da Companhiadas fndias Orientais e da Compa-nhia das fndias Ocidentais.

No dia 24 de novembro de1632, em Amsterda, nasce Baruchde Espinosa (Bento, em portugues;

Retrato de um jovem judeu. deRembrandt. No seculo XVII holandes osjudeus linham inlensa parlicipac;:ao navida cientifica e filos6fica da comunidade.

Benedictus, em latim), filho de Mi-guel e de sua segunda esposa,Debora. Tem dois irmaos, do pri-meiro casamento do pai.

Pouco sabemos da infanciade Espinosa. Sua familia pertenciaao grupo abastado da comunidadejudaica e seu pai 0 teria iniciadotanto no comercio quanta no apren-dizado de uma arte manual (polirlentes), de acordo com 0 costumejudaico. Pelo menos ate os 14 anosfreqOentou uma das escolas da co-munidade, a Academia ANore daVida, e, a seguir, os seminarios !i-vres da Academia da Coroa da Lei,onde eram estudados os textos

sagrados. Possivelmente, durantetais seminarios entrou em contatocom as obras dos mais importantespensadores hebraicos: AbrahaoIbn Ezra, com quem passou aduvidar de que 0 Pentateuco* pu-desse ter sido escrito pelo pr6prioMoises; Maimonides, no qual des-cobriu a primeira grande sistemati-zac;ao racionalista e escolastica dareligiao e teologia hebraicas, sob ainfluencia do Arist6teles arabizado;Leao Hebreu, 0 grande neoplat6ni-co da Renascenc;a, que propunhauma concepc;ao do mundo funda-da no amor como for9a c6smica;Chasdai Crescas, Delmedigo, Ger-sonides, com as quais aprendeu asquestoes relativas a onipotencia,onisciencia e justic;a de Deus e arelac;ao entre a homem e a divinda-de. Tambem data dessa epoca seucontato com os dois grandes rabi-nos da comunidade de Amsterda,Saul Levi Morteira e Menasseh ben

. Israel, este ultimo, provavelmente,responsavel pela leitura dos cflba-Iistas feita por Espinosa.

Esses poucos dad os nospermitem saber que Espinosa fala-va portugues, aprendera 0 hebrai-co e estava destinado a ser um co-merciante culto e cultivado, e naoum rabino, como durante muitotempo se pensou.

*. Pent.ateuco: Iiteralmente, "cinco volumes". Designa a coleQao dos primeiroscinco hvros do Antigo Testamento, atribufdos a Moises. Essa parte da Bfbliapassou a ser conhecida pelos judeus como Torah (ver Glossario).

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A comunidade judaica deAmsterda estava internamente di-vldldn, sob muitos aspectos. Eco-nOmlcae politicamente, estavaconstitulda por dois grupos anta-gonlstas: os favoraveis as rela-QOescomerciais da Holanda comPortugal (onde muitos possuiamfamilia e neg6cios) e os favora-vols as rela90es com a Espanha.

Era uma comunidade diri-gldn palos sefaradis·, aristocratasquo a organizaram sob a formade uma oligarquia baseada nosnngue, no parentesco e na ri-queza. Por isso, dividia-se entrerlcos e pobres. Enquanto os ricosdlrlglam toda a vida da comunida-do, ocupando os postos adminis-

trativos e se encarregando dasdecisoes economicas, politicas ereligiosas, os pobres eram U:io-somente seus empregados.

Dividia-se, por fim, religiosae teologicamente, entre funda-mentalistas tradicionalistas e deis-tas racionalistas, e entre talmudis-tas e cabalistas misticos. A divisaoreligiosa recobria e dominava asdivergencias sociais e politicas,dadas as peculiaridades de umacomunidade que nao possuia au-tonomia polftica, nao constituiapropriamente um Estado e cujoscostumes eram regulados pela re-ligiao e por uma tradi9ao teocrati-ca. Assim, os conflitos sociais,econ6micos e politicos da comu-nidade sempre surgiram sobrede-terminados, isto e, sempre apare-

ceram sob a forma de conflitos re-Iigiosos e teol6gicos.

Desses conflitos, dois fo-ram dominantes durante a vida deEspinosa e explicam muito doque Ihe iria acontecer. 0 primeirodeles ocorreu entre marranos enao-marranos; 0 segundo, entretalmudistas e cabalistas.

Marrano, palavra derivadado arabe mahram ("0 que e proibi-do", "0 que a ilfcito"), era 0 termopejorativo, usado na Peninsula Ibe-rica, para referir-se a judeus e ara-bes conversos suspeitos de man-ter a fe original. Embora aparente-mente cristaos, eles continuariamseguindo os preceitos e proibi90esestabelecidos por suas antigas re-Iigioes. Como uma das proibi90esvalidas para judeus e arabes con-cernia ao interdito de comer carnede porco, "marrano" indicava aque-Ie que nao a comia e, gradualmen-te, passou a significar "porco".

Um marrano, pelas condi-90es em que fora obrigado a vi-ver na Peninsula Iberica, possuiadois tra90s principais: de um lado,fundira cristianismo e judaismo e,mesmo quando pensava estarsendo fie I ao segundo, introduzianele cren9as cristas como as do.para iso, do inferno e do servi90de Deus atraves do martirio; deoutro lado, e contraditoriamente,por nao ter contato pleno com osensinamentos judaicos, acabavadefendendo-se do cristianismo

A oOrlllJnldodo judaica de Amslerda eslava inlernamenle dividida par divergenciasrlliluionos, pollticas e sociais.

• Hr'tvt'trlas outras grafias para essa palavra: "sefardins", "sefaradins", "se-ItHdltos". (N.E.)

elaborando uma visao racionalis-ta do judaismo, de sorte que esteIhe aparecia como desprovido detodas as crendices e supersti90esque reconhecia na religiao crista.Um marrano era, assim, ou um ju-deu cristianizado ou um deista ra-cionalista contra 0 cristianismo.

Um nao-marrano, isto e, umjudeu que nao fora convertido aocristianismo, nao via 0 marranocom bons olhos, tomando-o por al-guem que, para salvar a vida, trai-ra sua fa e sua na9ao, introduzirano judaismo elementos do cristia-nismo e se tornara incapaz de pra-ticar leal e inteiramente os precei-tos da Lei, a Torah. Em suma, osque jamais se haviam convertidotendiam a considerar os conversoscomo impuros e indignos de con-fian9a, enquanto muitos ex-marra-nos, para provar sua fidelidade,tendiam a mostrar-se severos eduros com os conversos, tornando-se mais ortodoxos do que os outrose muito mais intolerantes.

Um dos temas mais can-dentes para a comunidade, du-rante os seculos XVI e XVII, refe-ria-se ao direito dos marranos aressurrei9ao, prometida por Jeo-va aos que permanecessem fieisa sua Lei. Teriam os marranosesse direito? Se tivessem, comojustificar os que haviam sido tor-

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Illtttdotl 0 marioN pam defender11 hW Su 11110 IIvol:Isom, como ex-pllcmr f1 proloela do Isafas sobreIt IUllvnCl\o do "resto de Israel",quu Ileum submelido aos pode-rOll nl1o-Judalcos? Nao have riaurnufJ nas Inllas, podendo algu-mils Bor perdoadas, como, poroxamplo, a dos que foram fon;a-daB II conversao, nao podendoBar punldos por algo que nao fi-zeram voluntariamente? Essadlscussao pouco a pouco trouxea bail a uma outra que se encon-trava implfcita: a da imortalidadeda alma, suas recompensas ecastigos numa outra vida.

Ora, muitos conversos ha-viam-se mantido Mis ao judais-mo, sob a aparencia de professaro cristianismo, justamente pornao aceitarem, entre outras coi-

A Lei Mosaica funda 0 Estado hebraicosob a forma de teocracia.

sas, a ideia crista da imortalidadeda alma e as nOyoes de ceu e in-ferno eternos. Em sua opiniao, aLei Escrita ou a Lei de Moises ja-mais afirmara a imortalidade daalma e os suplfcios eternos.

Essa opiniao nao era nova.Na AntigQidade, no final do Reinode Juda, antes que os judeus fos-sem dispersados pelos poderesde Roma, uma divisao se estabe-lecera na sociedade judaica entrea classe dominante - os sadu-ceus - e os intelectuais populares- os fariseus.

as primeiros, racionalistase materialistas, recusavam 0 es-piritualismo farisaico, declarandoque a unica Lei sagrada para 0

povo era a Lei Escrita, redigidapor Moises no Sinai, nao caben-do sacralidade alguma a Lei Oral,ensinada pelos fariseus.

as fariseus, porem, afirma-yam que a Lei Oral fora dada porMoises aos seus descendentes aovoltar do Sinai, sendo ta~ sagradaquanta a Escrita. A Lei Oral tor-nou-se justamente aquela que,durante seculos, os rabinos de-senvolveriam atraves do Talmud,criando 0 judafsmo propriamentedito e dando-I he conteudos espiri-tualistas, entre os quais a cren9ana imortalidade da alma e numavida futura com recompensa paraos bons e castigos para os maus.Para os talmudistas, a Lei Oral erao complemento sagrado da Lei

Escrita, formando toda a jurispru-dencia que, em conformidade comas circunstancias vividas pelopovo judaico, regulava a religiao,os costumes, as rela90es sociaise as formula90es teoricas.

as ex-marranos talmudis-tas, assim como os nao-marranostambem talmudistas de Amsterda,criticando 0 racionalismo dos no-vos "saduceus" (isto e, dos marra-nos deistas que recusavam a vali-dade da Lei Oral), ensinavam aimortalidade da alma, penas e re-compensas futuras e a ressurrei-9ao dos mortos no Tempo do Fim.

Espalha-se, entao, pela co-munidade judaica uma discussaoteologica sobre a imortalidade daalma que, na verdade, e tambemuma discussao polftica. De fato,questionar 0 valor dos ensinamen-tos da Lei Oral significa par emquestao 0 poder dos rabinos so-bre os membros da nagao. Essadiscussao, que come9ara tratandoda imortalidade da alma e da vidafutura, desloca-se, pouco a pou-co, desses temas para 0 da vali-dade da propria Lei Oral e, comisso, para a validade do Talmud,da Mishnah, de tudo, enfim, quan-to fora ensinado, escrito e dito du-rante seculos, desde 0 inicio da Di-aspora. A disputa poe em questaoa autoridade dos rabinos. Ortodo-xos (talmudistas) e heterodoxos(deistas racionalistas) enfrentam-se na comunidade.

Essa oposiyao entre racio-nalistas heterodoxos e fundamen-talistas ortodoxos leva a aconteci-mentos que iriam marcar profun-damente a vida da comunidade deAmsterda: 0 caso de Uriel da Cos-ta, que se desenrola entre 1623 e1647, eos casos de Juan de Pra-do, Daniel Ribera e Espinosa, en-tre 1654 e 1656.

Uriel da Costa, um marranoque estudara direito e filosofia emCoimbra e fugira de Portugal,abandonou 0 cristianismo para re-tornar ao judaismo. No entanto, foisubmetido ao herem por afirmarque somente a Lei Escrita possuiavalor sagrado e que, nesta, naoeram ensinados a imortalidade daalma nem os suplfcios eternos;que Deus nao era um super-ho-mem colerico e voluntarioso, masa for9a racional e amorosa quecria, governa e harmoniza a Natu-reza; e que os preceitos divinosnao eram senao as leis da Nature-za, distorcidos pelos fariseus e ra-binos com a Lei Oral. .

a herem, em casos gravescomo 0 de Uriel, significava a so-Iidao, po is 0 enhermado era ex-pulso do convivio com a comuni-dade,. e essa expulsao atingiasuas atividades econamicas. Issosignificava, para 0 excomungado,perder os meios de sobreviven-cia, pois nao poderia manter seusla90s comerciais, que dependiamde ul\la forte e intrincada rede de

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relayoes familiares, comerciais ebancarias montada pelas diferen-tes comunidades judaicas portoda a Europa e 0 Oriente. Parasob reviver, Uriel precisava, por-tanto, suspender 0 herem. Parasuspende-Io, num caso que dura-ria anos, Uriel foi obrigado a re-tratar-se perante a comunidadereunida na Sinagoga, submeter-se a flagelayao (quarenta vergas-tadas) e a humilhayao publica(seminu, 0 corpo coberto de cin-zas, deitado a porta da Sinagogapara ser pisoteado por todos,conforme exigia 0 ritual). Deses-perado com 0 acontecido, Uriel sesuicida algum tempo depois, dei-xando uma obra autobiografica, 0

Exemplo de uma vida humana, naqual expoe e defende suas ideias.Espinosa, desde os 8 anos,acompanha esse tango e tragicoepisodio.Tem 15 anos quandoUriel comete suicfdio.

o episodio aumenta 0 zelodos rabinos. 0 estudo da filosofia -16gica,fisica e metafisica - 13 consi-derado idolatria e blasfemia, instru-mento que obscurece a verdadeiraLei e a autoridade sagrada dos queensinam a Lei Oral. A filosofia, ele-vando a razao contra a revelayao ea Natureza contra Deus, 13 contra-ria a fe e aos seus fundamentos.

. Em 1654, 0 medico Juande Prado e 0 poeta Daniel Ribe-ra, ambos ex-marranos espa-nh6is, iniciam seminarios filosofi-

cos em Amsterda. Espinosa fre-quenta 0 grupo de estudiosos. 0portugues Orobio de Castro, ex-marrano e medico, os acusa deheresia, declarando que ensinamuma religiao natural ou racionalis-ta, sem milagres nem revelayaoou profecias, negam que 0 povojudaico seja 0 eleito de Deus eafirmam que Este nao 130 Jeovadescrito pel a Torah. Juan de Pra-do e Daniel Ribera sao submeti-dos ao herem e foryados a retra-ta<;ao publica, mas sem que sejacumprido todo 0 ritual, pois teme-se um episodio semelhante ao deUriei. Ambos se retratam, massao feitas novas denuncias deque prosseguem, as escondidas,os seminarios filosoficos. Em1656, sao submetidos a novo he-rem e, dessa vez, nao se retra-tam. E nesse mesmo ana que 0jovem Espinosa 13 enhermado.Ele nao se retrata e abandon a acomunidade judaica.

verno do Povo Eleito. Os cabalis-tas, ao contrario, interpretam asEscrituras Santas como urn con-junto de segredos e misterios es-peculativos sobre Deus, 0 univer-so e 0 homem, que, quando deci-frados, faraD com que 0 mundo seacabe e tudo regresse ao seio dadivindade absoluta.

A Cabala espiritual ou mfs-tica distingue a letra e 0 espfritodos textos sagrados, que escon-dem segredos e misterios profun-dos sobre a Cria<;ao do mundo e 0Reino Espiritual de Deus, Afirmaque 0 Reino de Deus sera restau-rado no fim dos tempos pelo Mes-sias, cuja vinda, como mestre e re-generador espiritual, suspenderaa Lei de Moises e a Lei Oral, da-das aos homens apenas duranteo perfodo de espera messianica.Em outras palavras, a Cabala re-cusa aquilo que os talmudistasensinam: a validade eterna dasleis hebraicas. Por conseguinte,um cabalista tende a minimizar 0poder e a autoridade dos rabinos,presos a letra dos textos sagradose incapazes de alcan<;ar seu espf-rito profundo e secreto. A essa Ca-bala mfstica corresponde uma ou-tra, a Cabalapratica, que, manten-do as ideias da primeira, acredita,porem, num Messias que instituirao Reino de Deus na Terra, Israel.

Dois Ifderes da comunidadede Amsterda enfrentam-se nessadisputa: Menasseh ben Israel, um

A segunda querela, comodissemos, estabelece-se entretalmudistas e cabalistas, isto 13,entre duas maneiras diferentesde interpretar a Torah, ou Palavrade Deus. Os talmudistas interpre-tam as Sagradas Escrituras numaperspectiva jurfdica, legal e ritua-Ifstica, ou seja, como ordenamen-tos e decretos divinos para 0 go-

dos mestres de Espinosa, perten-ce ao grupo cabalista messianico,e Saul Levi Morteira, dirigente daAcademia Arvore da Vida, perten-ce ao grupo talmudista. Morteiraescreve um Tratado sobre a ver-dade da Lei de Moises, defenden-do a posiyao jurfdica, legalista e ri-tualfstica dos rabinos. Menasseh,por seu turno, escreve uma obramessianica e profetica, Esta e aesperam;a de Israel, numa inter-preta<;ao salvffica das profecias deDaniel e Isafas.

Era, na verdade, um tempode profetas, profecias, esperasmessianicas e esperan<;as mile-naristas. 0 judafsmo 13 essencial-mente profetico e messianico. Porsua vez, 0 protestantismo, emsua formula<;ao popular, tamMmsempre teve um cunho profetico:ao desfazer a necessidade damedia<;ao dos padres para a r,ela-gao do fiel com Deus, os protes-tantes afirmaram que cad a um re-cebia 0 Espfrito Santo em seuproprio cora<;ao, e os plebeus ra-dicais, em busca de uma socieda-de igualitaria e justa, sentiam-seespiritualmente iluminados peloespfrito profetico. Qual 0 temaprofetico por excelencia? A vindado Messias, para os judeus, e aSegunda Vinda de Cristo, para oscristaos. Em ambos os casos, as

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proteclas se reteriam ao fim daservldao e da injustir;:a e ao come-'to da fellcidade.

Durante 0 seculo XVII, naInglaterra, a Revolur;ao Inglesa,em seu lado popular radical, eramovida pelo milenarismo profeticodos Niveladores e dos Quakers,Inspirado nos profetas Daniel eIsafas, com a promessa do Reinode Deus na Terra, que duraria milanos de felicidade e de abundan-cia, precedendo a Segunda Vinda

.de Cristo para a luta final contra 0Anti-Cristo e 0 Juizo Final.

No Brasil, inspirando-setambem nos profetas Daniel eIsaias, 0 Padre Vieira (1608-1697), que almejava Portugal li-vre do jugo espanhol, escrevia aHist6ria do futuro ou do QuintoImperio de Portugal, esperando avolta de EI-Rei D. Sebastiaocomo 0 Imperador dos lIltimosDias que restauraria a gl6ria dePortugal, e fundaria 0 Reino deMil Anos, preparando a SegundaVinda triunfal de Cristo.

Em 1656, vindo das Ameri-cas, chegava a Amsterda 0 viajan-te jUdeu Montezinos, afirmandohaver encontrado, entre a Peru ea Venezuela, as dez tribos perdi-das de Israel. Esse encontro eratido, segundo a interpretar;:ao ju-daica das profecias de Isaias,como a primeiro sinal da pr6ximavinda do Messias e do retorno dosjudeus a Israel.

Enquanto isso, no Oriente,na cidade de Smirna, surgem aprofeta Nathan e a messias Sabba-tai Sevi, chamando para 0 retornodo povo judaico a Terra Prometida.

Os Quakers ingleses bus-cam cantata com Menasseh benIsrael em Amsterda, pois, do ladocristao, as profecias do Reino deDeus s6 podem realizar-se ap6s aconversao dos judeus ao cris-tianismo. Pelo mesmo motivo,Vieira dirige-se a Amsterda paraencontrar-se com Menasseh (en-contro que vale ao primeiro umprocesso pela Inquisir;:ao e, ao se-gundo, a desconfianr;:a de toda acomunidade judaica). Par seu tur-no, Menasseh dirige-se a Inglater-ra para suplicar ao rei a reintegra-r;:aodos judeus e, na Holanda, in-siste para que os membros da co-munidade financiem viagens aoBrasil (as possessaes holandesas,em Pernambuco), duas atitudesque garantirao 0 cumprimento dasprofecias de Isaias, pais 0 retornoa Israel s6 se fara depois que asjUdeus estiverem "espalhados nadirer;:ao dos quatro ventos".

Enquanto isso, milhares dejudeus de tad a a Europa e, entreeles, centenas de Amsterda, ven-dem todos os bens e se dirigem aSmirna para reunir-se ao messias,recebendo, no meio da jornada, anoticia de que Sabbatai Sevi rene-gara a judaismo e se converteraao islamismo.

Em 1656, ao ser expulsode sua comunidade, Espinosaentra em cantata com os cristaos.o primeiro grupo cristao com aqual teria mantido relar;:aes e ados Quakers ingleses, amigos deMenasseh ben Israel. 0 segundogrupo, que viria a ser seu circulode amigos, e formado pelos "cris-taos sem igreja": alguns deles saoprotestantes racionalistas, queconhecera nos seminarios deJuan de Prado, e outros sao mis-ticos milenaristas, que conheceraatraves de Menasseh ben Israel.Milenaristas misticos, com lar;:osque os Iigavam aos milenaristasingleses, e racionalistas seguido-res da nova filosofia de Descartes,com lar;:osque as ligavam aos ra-cionalistas ingleses da Royal So-ciety (de Ci€mcias), esses cristaosholandeses heterodoxos torna-ram-se conhecidos como as Cole-giantes, porque formavam gruposde estudo (os colegios) para a dis-cussao das Sagradas Escrituras edas novas ideias filos6fico-cientifi-cas. Embora diferentes em suasconvicr;:aes, milenaristas misticose racionalistas conviviam pacifica-mente porque possuiam um trar;:oem comum: a defesa da liberdadede pensamento e da tolerancia re-Iigiosa e polftica. Afirmavam a va-lor da consci€mcia individual au luzinterior, da Iiberdade de crenr;:a ede opiniao, da igualdade entre ho-mens e mulheres, da justir;:a entre

as seres humanos, combatendo atirania polftica, a desigualdadeeconomica e 0 fanatismo religioso.

Expulso da comunidadejudaica como herege, a jovemEspinosa penetra no mundo cris-tao pela porta da heterodoxiacrista e, a sua volta, formar-se-aum novo grupo colegiante, 0 Cir-culo de Espinosa.

a SECULa DE aURaHaLANDES

a apogeu das Sete Provinciasdo Norte

Em 1579, com a Uniao deUtrecht, nascem as Sete Provin-cias do Norte, que depois delonga guerra contra a catolicismoespanhol libertaram-se do jugada Espanha. Oligarquia republi-can a dirigida pelos Regentes (anova burguesia comercial e fi-nanceira que domina a econo-mia, as magistraturas e as corpo-rar;:aes) e par uma frar;:ao da' an-tiga nobreza feudal (a Casa deOrange-Nassau, cujo chefe mili-tar, Guilherme a Taciturno, foiresponsavel pelas vit6rias milita-res contra as espanh6is), asSete Provincias do Norte consti-tuem uma federar;:ao de cidadese regiaes, organizadas em parla-mentos provinciais - as Estados- dirigidos par um membro eleitoentre as pares, 0 Pensionario; as

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Estados encontram-se ajustadosa um parlamento central- os Es-tados Gerais -, onde tem assen-to os representantes de todas asprovincias, cujos trabalhos sacpresididos por um membro elei-to, 0 Grande Pensionario.

Partindo da identifica9aoentre catolicismo espanholetira-nia monarquica, as Sete Provin-cias protestantes recusam aCasa de Orange-Nassau 0 direi-to a monarquia, oferecendo-Ihe,como compenSa9aO, a chefiados exercitos e 0 titulo de co-mandante gera!.

Durante 0 seculo XVII, asSete Provincias conhecem 0 apo-geu, ou 0 seu Seculo de Ouro. Aburguesia mercantil se desenvol-ve de maneira extraordinaria, fun-dando, em 1602, a Com pan hiadas indias Orientais e, em 1621,a das indias Ocidentais, iniciandoum imperio ultramarino: os holan-deses instalam-se na America doNorte (onde fundam Nova Ams-terda,que iria tomar-se NovaYork), nas Antilhas, na Americado Sui (tomam parte de Pernam-buco, 0 Suriname e a Guiana Ho-landesa), na Africa (Guine eCabo) e na Asia (criando postoscomerciais no Japao e no Ceilao,atual Sri-Lanka).

o maior banco europeuencontra-se em Amsterda, ondetambem esta 0 maior centromundial de lapida9aO de diaman-

SETEPRoviNCIASDO NORTE

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tes; Leiden, Haarlem e Utrechttornam-se potencias da fabrica-913.0textil; Delft domina a manu-fatura da porcelana. Leiden eUtrecht possuem importantesuniversidades, renomadas emtoda a Europa. Haia, alem do po-derio bancario e comercial, euma potencia militar temida portoda a Europa.

E 0 seculo da grande pin-tura holandesa, com Rembrandte Vermeer, entre outros; da pre-sen9a marcante das universida-des de Leiden e Utrecht; dasdescobertas cientrficas dos ir-maos Huygens na mecanica e naoptica; da inven9aO do microsco-pio por Leuweenlioek; das obrasjuridicas de Hugo Grotius e Pie-ter van Hove; do desenvolvimen-to e inova9aO das tecnicas de na-ve9a9ao e de guerra. E tambema epoca conhecida como a da to-lerancia religiosa e da liberdadede consciencia, levando inume-ros sabios, como Descartes eoutros perseguidos em seus pai-ses, a buscar refUgio na Holan-da, de cujas editoras partempara a Europa inteira livros e re-vistas com discuss6es das novasideias filosoficas e cientfficas.

. Nao nos iludamos, porem.Sob a opulencia, a efervescenciacultural e a imagem da tolerancia,a republica holandesa esta per-passada por divis6es internas,conflitos e lutas de toda ordem.

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Embora afastado do podermonarquico, 0 principe de Orange-Nassau conserva 0 posto de co-mandante geral, titulo militar que 0

mantam a testa das foryas arma-das. A presenya de um membro daantiga nobreza num posto tao ele-vado torna a Casa de Orange-Nas-sau pretendente continua ao poderpolitico e instigadora de revoltasem favor da monarquia. Formam-se dois partidos em conflito perma-nente: 0 Partido Orangista (monar-quico) e 0 Partido dos Regentes(republicano oligarquico).

Os interesses economicosdivergentes das varias provincias eo grande desenvolvimento de umadelas, a Holanda, instauram rivali-dades e disputas no interior do Par-tido dos Regentes, tanto no conti-nente quanta no alam-mar. A divi-sao interna nao atinge apenas 0

Partido dos Regentes: interessesmilitares e dinasticos ensejam lutasno interior do Partido Orangista.

Em virtude da tolerancia re-ligiosa, pululam seitas e tend em-cias protestantes de todo tipo: ana-batistas e quakers Iibertarios mile-naristas, cristaos libertinos (isto a,racionalistas), socianianos (contra-

rios aos dogmas da SantfssimaTrindade, da divindade de Jesus eda sacralidade da Biblia), arminia-nos (calvinistas tolerantes que afir-mam a liberdade de consch3ncia re-Iigiosa e a separayao entre 0 podercivil e a autoridade religiosa), go-maristas (calvinistas intransigentese intolerantes, seguidores do dog-ma da predestinayao e defensoresde um regime politico de tipo teo-cratico em que 0 poder civil ficasubmetido a autoridade teoI6gica).

Essa multiplicidade de sei-tas tende a tomar partido em poli-tica: anabatistas, quakers e Iiberti-nos recusam a validade de umaigreja protestante, pois, em suaopiniao, toda igreja pretende con-trolar a relayao dos fiais comDeus, mas 0 cristianismo e a reli-giao fundada na relayao direta en-tre 0 corayao e a consciencia doscrentes com Deus; arminianos egomaristas formam 0 c1ero calvi-nista propriamente dito, os primei-ros colocando-se a favor dos Re-gentes burgueses, os segundos,da Casa de Orange-Nassau esuas pretens5es monarquicas.

Para os arminianos, a uni-dade politica a nacional, fundadano comarcio, nas finanyas e, so-bretudo, na origem comum dosholandeses, que sac os antigosbatavos descritos por Julio Cesare Tacito. Em contrapartida, 0 cle-ro gomarista ap6ia-se no VelhoTestamento para condenar a mo-

A" 1111111 "rovlnGins do Norto s1'\ouma pott'incia econOmica que domina mares e1I1t"ltt,ltlu 110 lu'tclJlo XVII.

narquia hereditaria, mas nao a ele-tiva, que permitia que os reis he-braicos fossem escolhidos porprofetas e juizes. Sob essa inspi-rayao, defende a unidade base a-da no poderio militar e apresenta-se como versao moderna dos an-tigos profetas e juizes de Israel,pretendendo eleger reis para asSete Provincias, a partir de umaconceP9ao teocratica do poder(todo poder pertence a Deus, que,por meio de juizes e profetas, de-signa os homens dig nos de ocu-pa-Io como Seus representantes).

A medida que os Regentesconstituem a nova classe dominan-te economica e politicamente, a di-visao social das classes os colocadiante dos camponeses pobres -que enfrentam a decadencia daspropriedades rurais da nobreza -,da massa de artesaos e operariospobres das cidades, dos contingen-tes de marinheiros e soldados co-mandados pelo chefe militar oran-gista e da velha nobreza, COIJl aqual conseguiram alianyas parciaispor meio de casamentos e contra-tos comerciais nas duas Compa-nhias das fndias.

Esses grupos heteroge-. neos, com os quais a nova burgue-sia estava obrigada a relacionar-se,unificavam-se contra ela, sob 0 co-mando do c1erocalvinista gomaris-ta que, de um lado, usava a religiaopara identificar a burguesia com 0

demonio, responsavel pela pobre-

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zn nos campos e cidades, e, deoutro, usava a Interpretayao do Ve-Iho Testamento para afirmar queDeus era favoravel a monarquia e,portanto, ao Partido Orangista.

Duas guerras civis marcamo Seculo de Ouro holandes, am-bas ayuladas pelo clero gomaris-ta, A prlmeira delas comec;a em1617, no Sfnodo de Dort, a partirdo uma disputa teologica sobre 0

dogma da predestinac;ao. 0 gru-po gomarista, sustentando Mau-rfclo de Orange, consegue desti-tulr do governo os Regentes, de-rondldos pelo c1ero arminiano:condena a prisao perpetua HugoGrotlus e 0 poeta Dirk Camphuy-sen, e a morte 0 Grande Pensio-narlo, Johan Oldenbarnevaldet,decapltado, em 1619, sob a acu-e8yAo de alta traic;ao.

Sobe ao poder a Casa deO~ange. 0 clero gomarista conde-na 0 cartesianismo, censuraobras (como as de Hobbes), quei-me IIvros e revistas, prende artis-tas e Intelectuais, persegue assoltas libertarias e Iibertinas, si-lonela os arminianos.

Em 1648, deveria ser assi-nado 0 Tratado de Westfalia, quepunha fim ao conflito europeu co-nheeldo como Guerra dos TrintaAnoe. A burguesia precisava dapllZ para desenvolver seus nego-cl08 e exlgia a assinatura do trata-do; os orangistas, porem, que con-logulam poder e prestigio justa-

mente por meio de guerras, recusa-vam-se a assina-Io, sendo a isso for-yados pelo Partido dos Regentes.

Todavia, em 1650, Guilher-me de Orange II morre, deixandoum herdeiro infante. Os Regentesdestituem a Casa de Orange, afas-tam 0 c1ero gomarista da direc;aodo Sinodo, transferem 0 posta decomandante-chefe das forc;as ar-madas para 0 Grande Pensionarioe elegem os irmaos Cornelius eJan de Witt para Grandes Pensio-narios, sob a hegemonia da provin-cia da Holanda. 0 c1erogomarista,porem, valendo-se de reivindica-c;oes para que as gratificac;oes esalarios politicos nao saissem doscofres da igreja calvinista, recupe-ra 0 poder no Sinodo de Dort e pas-sa a exercer pressao contra osDe Witt. Nos pulpitos, acusa-os deateismo e de pacta com 0 demonioe exige a condenayao de obras ci-entificas, filosoficas e Iiterarias quenao estejam de acordo com a orto-doxia calvinista intolerante.

Nessa epoca, Espinosavera, pela segunda vez, alguemser morto por defender ideias con-trarias aos poderes religiosos es-tabelecidos. Se a comunidade ju-daica levou Uriel da Costa ao sui-oidio, 0 clero calvinista, em 1668,excomunga e condena a torturase prisao perpetua um dos mais in-timos amigos de Espinosa, Adria-an Koerbagh, que, depois de terseus livros queimados e de haver

passado por torturas, morre na pri-sao, vitima das doenyas ocasiona-das pelos maus-tratos Hsicos e so-frimentos psiquicos.

Aproveitando-se de derrotasholandesas na guerra contra aInglaterra, da alianc;a da Holandacom a Franc;a catolica (ou papista)e da recusa de Jan de Witt ematender a inumeros pedidos deexcomunhao e de censura, assimcomo a inumeras exigenciaseconomicas e politicas dos go-maristas, os pregadores calvinistasac;ulam 0 povo contra os De Witt,enquanto 0 Partido Orangista daum golpe de Estado contra 0

Partido dos Regentes.No dia 20 de agosto de

1672, os irmaos De Witt sac mas-sacrados pelo povo nas ruas deAmsterda. Espinosa escreve numcartaz: Ultimi barbarorum ("Ulti-mos dos barbaros"), mas e impe-dido por um amigo de cola-Io nosmuros da cidade. Termina a repu-blica e tem inicio a monarquiaconstitucional holandesa.

Compreendemos, assim,por que, no ultimo capitulo doTratado teo/6gico-po/ftico, Espi-nosa coloca como subtitulo "On-de se demonstra que num Estadolivre e Iicito a cada um pensar 0que quiser e dizer aquHo que pen-sa", abrindo-o com as seguintespalavras:

"Se fosse tao facH mandarnos animos como e mandar nas

Iinguas, nao haveria nenhum go-verno que nao estivesse em segu-ranya ou que recorresse a viol€m-cia, uma vez que todos viveriamde acordo com 0 designio dos go-vernantes e so em funyao de suasprescric;oes e que ajuizariam so-bre 0 que e bom ou mau, verda-deiro ou falso, justa ou iniquo. Masisso nao e possive!. A vontade dealguem nao pode estar completa-mente sujeita a jurisdiyao alheia,porquanto ninguem pode transfe-rir para outrem, nem a isso ser co-agido, 0 seu direito natural ou asua faculdade de raciocinar livre-mente e ajuizar sobre qualquercoisa. Por conseguinte, todo poderexercido sobre 0 foro intimo deveser tido como violento, da mesmaforma que se considera ultrajar eusurpar 0 direito de seus suditosum governante que pretenda pres-crever a cada um 0 que deve ad-mitir como verdadeiro ou rejeitarcomo falso, e ate as opini6es emque deve apoiar-se na sua de,vo-yaO para com Deus: porque tudoisso pertence ao direito individuale ninguem, mesmo que quisesse,poderia a ele renunciar ".

E nessa Holanda complexae contraditoria que 0 jovem Ba-ruch, polidor de lentes para teles-co pios e microscopios, devera vi-ver a partir de 1656. Muda-se de

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Espinosa vive modestamente, emboracolobrado polidor de lentes paratolascopios e microscopios procuradaspar lodos os clentistas da epoca.

Amsterda para um vilarejo vizinhoa Leiden, Rijnsburg, de onde setransferira para outro, nas proxi-mldades de Haia, Voorsburg, e, fi-nalmente, para a capital, Haia,onde, aos 44 anos, vitima de tu-borculose causada. pela poeiradas lentes que polia, morre numamanha de domingo, em 21 de fe-vorolro de 1677.

Sera entre os holandeses0, mais precisamente, no circulodo sou amigos COlegiantes, queontmra em contato com 0 eX-je-sullo Franciscus van dem Endem,com quem aprendera 0 latim, lera08 classicos - Cicero, Seneca,Virgilio, Ovidio, Catulo, Tacito - e,sobrotudo, descobrira as obrasdo Descartes, Hobbes e Galileu,

que irao determinar todo 0 cursode suas reflexoes e sua obra.

Nao e verdadeira a imagemde Espinosa como'eremita ou so-litario. Embora escolhesse cuida-dosamente seu pequeno circulode amigos intimos, conviveu comos irmaos Huygens, no plano filo-s6fico-cientifico, e com os irmaosDe Witt, no plano politico. Mante-ve corresporidencia com os princi-pais nomes da vida cultural de suaepoca, como Oldenburg, secreta-rio-geral da Royal Society (a maioracademia cientifica do seculoXVII), 0 quimico ingles RobertBoyle, 0 fil6sofo Leibniz.

Interessou-se pelas ques-toes politicas, defendendo a Iiber-dade de pensamento e de expres-sao contra a tirania teoI6gico-reli-giosa e a ideia de que a "democra-cia e 0 mais natural dos regimespoliticos" porque realiza nosso di-reito natural pelo qual todos os ho-mens "desejam governar e naoserem governados".

Ocupou-se com questoescientificas, escrevendo um Trata-do sobre 0 calculo algebrico doarco-iris e um Calculo de proba-bilidades. Um comentario sobrea obra de Descartes, Principiosda ti/osotia cartesiana, unica obrapublicada com seu pr6prio nome,valeu-Ihe um convite para ensinarfilosofia na Universidade de Hei-delberg. Espinosa, entretanto, re-cusou, por julgar que Ihe seria

exigido renunciar a liberdade depensamento, po is 0 convite esti-pulava que todos os cuidados de-veriam ser tomados para "naoofender os principios da religiaoestabelecida" .

Seus amigos mais intimoseram os medicos Luiz Meijer eJohannes Hudde, os jovens es-tudantes Simon de Vries e Jo-hannes Bowmeester, os comer-ciantes Jarig Jelles e PieterBalling, 0 jurista, medico e poetaAdriaan Koerbagh e 0 editor JanRieuwertz.

Para esse pequeno circu-10, expos, durante os anos de1660 e 1661, a primeira versao dafutura Etica. 0 Breve Tratado so-bre Deus, 0 homem e sua telicida-de, cujo manuscrito, em duas ver-soes (uma em holandes e outraem latim), s6 foi encontrado no se-culo XIX. Foi tambem para essepequeno circulo de amigos queiniciou, a pedido deles, um tratadosobre 0 metodo que iria permane-cer inacabado: 0 Tratado da cor-re98.0 do intelecto. Foi em defesade Koerbagh que escreveu 0 Tra-tado teoI6gico-politico, cuja com-posiyao 0 levou a escrever um

~,~.Huygens(vizinha de Espinosa emRijnsburg, e um dos expoentes daciencia modema, sobretudo no campoda 6ptica e dioptrica.

Compendio de gramatica hebraicaque servisse de guia aos que de-sejavam ler e interpretar 0 AntigoTestamento, escrito em hebraico.Ao morrer, preparava uma obrapolitica que permaneceria inaca-bada, 0 Tratado politico.

Sua obra mestra e a Etica,demonstrada a maneira dos geo-metras, concluida em 1675, maspublicada apenas em 1677, junta-mente com outras que formaramo volume das Obras p6stumas.

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A."'O YIDA ~IORillL.\ OBR.\ EVEl'.'TOS

1632 · Nascimento. Amsteroa · Rembrandt. Uriio de Anatomia.

· Galileu, Didlogo sobre as dais maiares sistemas.1637 Descarte~, Discursa do metoda.

1639-55 · Anos de eSlUdos (Academia 1641 Descartes, Meditaroes metafisicas.Arvore da Vida; Academia Co- 1642 Hobbes, De Cive;morre Galileu, depois de passar dez anosroa da Lei). sob a vigilancia do Santo Oficio; interdi~ao ao ensino do

· Aprendizado de polimemo de cartesianismo na Universidade de Utrecht.lentes. 1645 Cria~ao da Royal Society de Londres; morre Grotius.

· Trabalho com 0 pai (comercio). 1646 Nasce Leibniz.

· Seminarios filos6ficos de Juan 1647 Grotius, De Imperio S. Patestate; a obra de Descartes ede Prado. criticada na Universidade de Leiden; suicfdio de Uriel da

Costa.1648 Tratado de Westfilia.1648 Lutas entre 0 Partido dos Regentes e 0 Orangista: Paz de

Munster.1650 Descartes, Tratada das paixoes da alma; Descartes morre

na Suecia.1651 Hobbes. Leviara; morte de Guilherrne de Orange; convo-

ca~ao dos Estados Gerais.1653 Vit6ria do Partido dos Regentes; os irrnaos De Will como

Grandes Pensionarios do Seculo de Ouro.1653·55 Juan de Prado cria 0 seminario filos6fico em Amsterda.1654-68 Revolu~ao Inglesa.1655 Morte de Gassendi.

1656 · Herem. · Sabbatai Levi: 0 Messias surge em Smirna.

· Herem de Juan de Prado e Daniel Ribera.

· Primeiros trabalhos de Christien Huygens.

1656-58 · Contatos com quakers. 1658 Inicio da reda.;,;o do· Estudos c1issicos com Van dem Tratado da corre·Endem. rao do intelec:{).· Circulo de amigos Colegiantes.

ANO VIDA MOMDlA OBRA EVENTOS

1660-63 . Polidor de lentes. Rijnsburg 1660-61 Reda~ao do Breve 1660 Restaura~ao da Monarquia Inglesa.1661 Inicio da correspondencia trarada. 1661 Robert Boyle, 0 quEmicacitica.

com Oldenburst. 1662 Reformula.;,;o da 1661·63 Vieira visita Amsterda.1663 Infcio do c~ntato com parte geome:.-ica do 1662 Pieter Balling, Luz do candelabro: Pieter van Hove, A

Huygens; aulas particulares BT. balan,a pa/{tica; morre Pascal; Robert Boyle. Algumaspara Caesarius: exposi,ao 1663 Publica~ao ce Prin- cansideraroes sabre a lItilidade dos experimentos na Fi-do Breve trarado para os cfpios da Ji.'osofia losajia Natural.amigos. cartesiana e Pel1sa·

mentos metG.-:sicos.

1664-70 . Possiveis contatos com De Witt. Voorburg 1664 Publica,ao ,:a 'o'er- 1666 Luiz ~leijer, Ajilosojia inrerprete da Sagrada Escritura;sao holandesa dos Leibniz. Da arte combinator/a: Locke. Sobre a toleran-PFC. cia: :"ewton come~a os experimenlos de decomposi~ao

1665 Inicio do Trarado da luz.reologico-pelitico; 1668 Koerbagh. Um jardim flor/do: morte de Koerbagh;inicio de urn.:.:.;,rimei· Huygens. Da nafure:a da Ill:'.ra versao da tlica. 1669 Morte de Rembrandt.

1670 Publica~ao 02 ITP. 1670 Pascal. Pensamentos.

1670·77 1672 Quer colar nos muros 0 car- Haia 1674 Proibi~ao C0 TTP 1671 Leibniz. Teoria do mol'imemo concreto e abslraro.taz Ultinii barbaroruJ1l. pelos Esta,:os da 1672 Guerra Civil: assassinate dos De Witt: subida da Casa decomo protesto pelo assassi- Holanda Orange ao poder: Puffendorf. Do direito natllral e dasnato dos De Witt. 1675 Conclui a £r:,'o. gell1es.

1673 Convite da Universidade de . 1676 Inicio do Trotado 1673 Jarig Jelles. Conjissiio daji cristii.Heidelberg. polirico. 1674 Malebranche. Investiga,ao da verdade.

1675 ,?esiste da publica,ao da 1617 ~Ieijer e Jerks pu.,/ n675 Boyle. Algumas considera,iies sobre a compatibilidadeEtica. blicam a Opua pos- elltrefi e ra:lio: morre Vermeer.

1676 Recebe a visita de Leibniz. rhuma. 1676 Leibniz inventa 0 calculo diferencial.1677 20.02, pela manha, visita

medica de Meijer: 21.02,manha, morre.

1690 Operapos/huma co-locada no In,jex Ca-t61ico e con,jenadapelo Santo Oficio.

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~ Contra a'superstigao e a servidao

A filosofia espinosana e umracionalismo absoluto.

De fato, Espinosa afirma edemonstra que a totalidade do reale inteligivel e pode ser inteiramen-te conhecida por nosso intelecto,neo havendo no mundo lugar paramlsterios, milagres e coisas ocul-tas. Por esse motivo, seu pensa-mento e uma crftica radical a to-das as formas de irracionalismo esuperstiyao, seja na religiao, napolltica, seja na filosofia.

De onde nasce a supersti-9ao que leva ao irracionalismo?Do medo de males futuros ou deque bens nao aconteyam, mastambem da esperanya de bensfuturos ou de que males naoacontec;am. Tanto 0 medo quantaa esperanc;a exprimem a maneiraconfusa e inadequada com que

nossa imaginayao* - conheci-mento por meio de imagens querepresentam confusamente ascoisas -, incapaz de compreen-der as leis necessarias que re-gem 0 universo e as ayoes huma-nas, e levada a forjar a imagemde uma Natureza caprichosa econtingente, em cujo interior so-mos meros joguetes.

Nao podendo compreen-der 0 que realmente se passa naNatureza, a imaginayao nosleva a forjar a imagem de um sersupremo, onipotente e oniscien-te, que tudo governaria segun-do os caprichos de sua vontadee segundo fins incompreensf-veis para os humanos: Deus.Para conseguir beneficios, afas-tar maleficios, obter a boa von-tade e aplacar a calera desseser supremo, a imaginayao damais um passo, inventando a re-ligiao como conjunto de cultos adivindade.

Instaurada a religiao, sobessa forma, imediatamente insti-tui-se uma casta de homens en-carregados de realizar os cultos,receber revelayoes ou profeciasdo ser supremo e interpretar asvontades secretas Dele. No en-tanto, diz Espinosa, e da nature-za humana a inconstancia dosmedos e esperanc;:as, levando-nos a mudar de deuses confor-me mudem as circunstancias, ascoisas que tememos e as queesperamos. Essa inconstanciaenfraquece 0 poder da religiaosobre nos.

Eis por que a casta religio-sa, visando a manter 0 domfniosobre a alma supersticiosa, preci-sa estabilizar nossos medos e es-peranyas e impedir que mudemou f1utuem. Ela 0 faz codificandoas revelayoes divinas, estabele-cendo leis, regras e mandamen-tos fixos que teriam sido ordena-dos eternamente por Deus, pu-nindo COrll a morte e a tortura ostransgressores e estabelecendo,para a sustentayao de seu pode-rio, um aparato militar e politicoque opera por meio do terror,amedrontando os transgressorescom ameac;:as de castigos e adu-lando 0 servilismo dos obedientescom promessas de recompensas.

Assim, a tirania religiosa ea politica fundam-se no medo ena esperanc;:a irracionais, alimen-tando-os com nossa ignorancia

• No saculo XVII, "imaginayao" nao significa fantasia criadora, mas sensayao,percepc;l1oe mem6ria. Em outras palavras, imaginay~o e 0 conhecimen~osen-lorlal que produz imagens das coisas em.nossos sentJdose em nosso cer;bro.Com essas Imagensrepresentamosas cOlsasexternas e supomos conhece-Ias,mUB,na realldade, estamos conhecendo apenas 0 efeito ,inte,rno(as im.a~ens)due colsas exteriores. A imagem e 0 que'se passa em nos, e algo subJetivoenl10nos da a naturezaverdadeira da pr6pria coisa externa.

sobre a verdade de Deus, da Na-tureza e de nos mesmos.

Racionalismo absoluto sig-nifica, portanto, Iibertar-se dascausas da ignorancia para comisso Iibertar-se das causas domedo e da esperanya e, ao faze-10, Iibertar-se de seus efeitos reli-giosos e politicos. Racionalismoabsoluto e a confianc;:a na capaci-dade Iiberadora da razao.

Para alcanc;a-Io, Espinosaoferece duas vias complementa-res: a interpretac;:ao hist6rico-criti-ca da Biblia (para afastar 0 pode-rio supersticioso da religiao e dateologia) e a correyao de nossointelecto (para que sua forya su-plante a da imaginayao). (

A interpretac;ao das SagradasEscrituras

Entre as varias religi5esconhecidas, tres delas, 0 judais-mo, 0 cristianismo e 0 islamismo,tem a mesma origem: 0 Livr? daGenese. Oaf possuirem um trayocomum: a afirmac;:ao de que asverdades eternas sac reveladaspor Deus a homens especiais edepositadas, por escrito, num Ii-vro sagrado, a Torah (para os ju-deus), a Bfblia (para os cristaos).o Alcorao (para os muyulmanos).

Sobre ° texto sacralizadoinstala-se 0 poderio da teologia po-litica, que subordina 0 poder politi-co ao ·religioso, pois seu modele

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inspirador e 0 Estado teocraticohebraico instituido por Moises. Eispor que 0 racionalismo espinosanovolta-se para a analise critica dasSagradas Escrituras, inaugurando,no Ocidente, 0 modemo metoda deinterpretayao dos textos sagrados.Esse metoda baseia-se no conhe-cimento da lingua em que os tex-tos foram escritos (filologia, grama-tica e retorica hebraicas), dos acon-tecimentos que cercaram a produ-yao e circulayao dos textos (hist6-ria e paleografia), da personalida-de dos autores e personagens (psi-cologia dos escritores), bem comodas condiyoes em que viviamaqueles aos quais os escritos eramdestinados.

Duas sac as principais tesesque norteiam 0 Tratado teo/6gico-po/ftico. A primeira afirma que naohci segredos e misterios na Siblia,

Escrevendo 0 Tratado teo/6gico-po/ftico,Espinosa cria 0 metodo modemo deinterpretayao das Sagradas Escrituras,

pois 0 que nos parece misterioso eincompreensivel decorre de umproblema historico, 0 de nao con-seguirmos compreender 0 signifi-cado de palavras de uma linguaarcaica, destruida juntamente coma destruiyao do Estado hebraico. Asegunda diz que as Sagradas Es-crituras foram dirigidas a imagina-yao de um povo que saira do cati-veiro do Egito e temia ser nova-mente esmagado por outros povosmais poderosos ou ser destruidopor lutas internas e que, par isso,precisou crer num Deus que fossemais poderoso que os deuses deseus inimigos, protegendo-o, e quepunisse severamente os jUdeusque nao cumprissem as leis dadaspor Moises. Essas duas teses, umavez demonstradas, permitem con-cluir; em primeiro lugar, que a Si-blia nao foi escrita para doutos fil6-sofos e te610gos, mas para a almapopular devota, e', em segundo lu-gar, que ela nao contem verdadese leis universais e eternas, validaspara toda a humanidade, mas e umtexto sagrado apenas para os ju-deus e os cristaos.

A interpretayao hist6rico-cri-tica das Sagradas Escrituras, em-preendida pelo Tratado teol6gico-polftico, permite a Espinosa de-monstrar que 0 Antigo Testamentoe um documento hist6rico de umpovo determinado: 0 povo hebrai-co. Moises, 0 fundador politico, aoIhe dar as leis, julgou que elas se-

riam mais bem cumpridas e respei-tadas se 0 povo acreditasse quehaviam sido dadas diretamentepelo proprio Deus e que Ele vigia-ria a obediencia atraves de homensde imaginayao muito viva e granderetidao moral, os profetas.

Documento historico-politi-co de um povo determinado, a Si-blia nao pretende ser, como dese-jariam sacerdotes, pregadores,pontifices e teologos, um tratadode teologia acerca da verdadeiraessencia de Deus e do homem,nem um c6digo de leis universaispara todos os regimes politicos etodos os governos. Nas SagradasEscrituras nao ha, propriamente,verdades etemas, mas preceitosmorais muito simples, dirigidos aalma do crente, e ordenamentospoliticos destinados apenas aoantigo Estado hebraico.

Em outras palavras, a Siblianao tem como finalidade ofereceruma teoria politica sobre 0 bomgovemo nem uma teoria filos6ficasobre a essencia verdadeira deDeus e do homem, mas apenasoferecer a imaginayao dos devo-tos um conjunto muito simples decrenyas religiosas e preceitos mo-rais, necessarios aos que nao as-piram ao conhecimento racional efilosofico da verdade. Dessa ma-neira, usar a Biblia como tratadofilos6fico ou como tratado politicode origem divina e usa-Ia de ma-neira fraudulenta, alimentando a

superstiyao a serviyo da ambiyaoe tirania dos reis e teologos.

A correyao do intelecto, de-senvolvida por Espinosa no Trata-do da corre980 do intelecto, con-siste, antes de mais nada, em fa-zer com que nosso intelecto se co-nheya a si mesmo, diferenciando-se da imaginayao. Trata-se de umcaminho reflexivo, pois nele 0 in-telecto realiza uma reflexao, vol-tando-se sobre si mesmo para co-nhecer-se como capacidade inatade conhecimento verdadeiro.

Imaginar e conhecer as ima-gens das coisas e, por meio delas,conhecer uma imagem de n6smesmos. A imagem e um efeito daayao de causas externas sobren6s: coisas luminosas produzemem nos imagens visuais; coisassonoras, imagens auditivas; a tex-tura das co isas nos oferece ima-gens tacteis; sabor e cheiro sacimagens de coisas em nosso pala-dar e nosso olfato. Assim, a ima-gem nao nos oferece a propria coi-sa tal como e em si mesma e sim 0que julgamos que ela seja peloefeito que produz em n6s. A ima-gem e um acontecimento sUbjetivocausado pelo objeto externo queafeta nossos orgaos dos sentidose nosso cerebro. Por isso indica 0

que se passa em nos e nao a natu-reza verdadeira da coisa extema.

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A ideia, ao contrario, 13 um ate denosso intelecto que apreende a na-tureza intima ou essencia de umser porque conhece sua causa e osnexos que a Iigam necessariamen-te a outras ideias. A imagem de-pende da ac;:aoexterna das coisassobre nosso corpo. A ideia depen-de exclusivamente da ac;:aointernade nosso proprio intelecto.

No Tratado da corre9ao dointelecto, Espinosa parte da expe-riencia individual e intersubjetivacomo experiencia tragica: 0 senti-mento de perder um bem desejadocada vez que se imagina te-Io al-canc;:ado. Essa fuga interminavelde bens que se consomem e nosconsomem divide os homens e osaliena porque imaginam a felicida-de depositada em coisas que pre-cisam ser possuidas com exclusi-vidade. Essa perda incessante tor-na impossivel nao s6 a realizac;:aodo desejo de felicidade, mas tam-bam a Iiberdade, lanc;:ando os ho-mens numa guerra sem freios pelaposse dos objetos nos quais inves-tlram sua esperanc;:a. Eis por queEspinosa dira que a felicidade e aInfelicidade dependem da qualida-de do ser ao qual nos unimos poramor, porque ha entre 0 desejar eo desejado um vinculo intrinseco.Amando coisas perecfveis e cujaposse exclui os demais, a felicida-do sera perecfvel e ameac;:adapelodesejo de outrem. A felicidade edesejar um Bem imperecivel que,

sendo capaz de "comunicar-seigualmente a todos" e de ser portodos compartilhado, permite 0exercfcio da Iiberdade. Espinosanao duvida da existencia desseBem como nao duvida de que pos-samos alcanc;:a-Io.0 Tratado visaa oferecer a inteligencia os recur-sos para chegar ao bem verdadei-rooCom isso, Espinosa articula in-ternamente 0 desejo da felicidade,da liberdade e da verdade.

Espinosa distingue tres ge-neros de conhecimento: a imagina-c;:ao,a razao e a intuic;:aointelectual.

A imaginac;:ao opera com asidfHas inadequadas, isto e, ima-gens confusas e obscuras prove-nientes de nossa experiencia sen-sorial e de nossa memoria. A ideiainadequada ou imaginativa e umaopiniao em que depositamos nos-sa confianc;:a enquanto nenhumaoutra imagem a puser em duvida.

A razao conhece adequa-damente as n090es comuns, istoe, as leis necessarias ou as rela-c;:oesnecessarias entre um todo esuas partes, bem como as rela-c;:oesnecessarias entre as partesde um mesmo todo (na Iinguagemcontemporanea, a noc;:ao comumcorresponde ao que chamamosde estrutura).

A intuic;:aointelectual alcan-c;:aas ideias adequadas, isto 13, asideias das coisas enquanto essen-cias singulares, conhecendo suanatureza intima por conhecer suas

causas e efeitos necessarios, as-sim como suas relac;:oes internasnecessarias com outras e com aNatureza inteira. Ao contrario daopiniao, a ideia adequada e umacerteza intelectual que nos faz sa-ber que sabemos.

Nas ideias inadequadas ouimaginativas, somos passivos: asimagens se formam em n6s emdecorrencia da ac;:ao das coisasexteriores sobre nos. Nossa ativi-dade se reduz a associar imagensque nos parecem semelhantes ea separar as que nos parecem di-ferentes, para com elas formar-mos ideias imaginativas gerais ouuniversais sobre a realidade e so-bre n6s pr6prios. As ideias imagi-nativas ou inadequadas nao sacfalsas em si mesmas, po is corres-pondem ao modo como real menteas coisas exteriores nos afetam:sac parciais e confusas porque seformam em n6s sem que con he-c;:amosas causas verdadeiras queas produziram.

Assim, 0 erro e simplesmen-te ignorancia. E 0 falso, ausenciado verdadeiro. E falso que 0 Solseja menor do que a Terra, mas everdade que e dessa maneira queo percebemos, isto 13, que 0 temosem imagem. Quando 0 astronomoensinar-me a verdadeira dimensaodo Sol e da Terra, nao deixarei decontinuar percebendo imagens quedizem 0 contrario, mas, agora, sa-berei que sac simplesmente ima-

gens, nada me dizendo sobre a na-tureza verdadeira do Sol e da Ter-ra. A imagem exprime a maneiracomo nosso corpo e afetado pelascoisas externas e a maneira comoas afeta. Como tal, a imagem esempre verdadeira. S6 sera falsaquando a tomarmos por uma ideiade nosso intelecto, pois este naoconhece segundo as afecc;:6escor-porais, mas segundo sua forc;:ain-terna para pensar. Em outras pala-vras, a imagem e verdadeira en-quantoimagem e e falsa enquantoideia. Donde a expressao espino-sana, ideia inadequada.

Nas ideias adequadas ouintelectuais, somos plenamenteativos: nosso intelecto, por umaforc;:aque Ihe e pr6pria, conhecepor si mesmo as causas e efeitosdas ideias, a genese necessariadelas, os nexos que formam comoutras em conexoes e ordens in-ternas e necessarias. Na razao, asideias adequadas nos oferecemsistemas de relac;:oes (aquilo ,queos cientistas cham am de leis darealidade); na intuic;:ao intelectual,oferecem-nos 0 conhecimento deessencias singulares, isto e, a na-tureza e a realidade intimas e ver-dadeiras de alguma coisa.

Para distinguir intelecto eimaginac;:ao, Espinosa comec;:aafastando duas modalidades deconhecimento imaginativo que for-mam nossas opinioes e crenQas .costumeiras: 0 conhecimento por

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ouvir dizer e par experiencia vaga.Par auvir dizer, sei, par exempla, adia de meu nascimenta e quem sacme us pais; por experiEmcia vaga,sei que 0 fogo aquece, 0 vento es-fria, a agua umedece, a luz i1umi-na, mas desconhec;o a causa docalor, do frio, da umidade ou da lu-minosidade. Ora, conhecer e co-nhecer pela causa, diz Espinosa.

No entanto, ha um conhe-cimento pela causa que e inade-quado. Trata-se daquele produzi-do pela imaginac;ao, atraves daexperiencia vaga. De fato, essaexperiencia baseia-se na repeti-yaO dos mesmos fatos (0 fogosempre aquece, a luz sempre ilu-mina), levando-nos ao habita deassociar em relac;:oes de causa eefeito coisas que se repetem.Tambem temos 0 habito de esta-belecer relac;oes causais entrecoisas semelhantes, sucessivasno tempo, contiguas no espago.E dessa maneira, por exemplo,que uma crianga, vendo todas asmanhas e tardes Pedro passaram frente de sua casa e, logo de-pols, Joao, passa a supor que apassagem de Pedro e a causa dapassagem de Joao. E dessa ma-naira que ope ram astrologos, ma-gos a adivinhos. Em outras pala-vms, nossa imaginaC;ao tende aoatabolocer relac;oes causais en-tro as Imagens, supondo tratar-sedo roloyoos causais entre as pro-prins colsns.

Que e conhecer pela cau-sa? E conhecer a origem neces-saria de alguma coisa conhecen-do a maneira como e produzidapor outra. E conhecer a genesede uma coisa determinada. Esseconhecimento nos e dado poruma operac;:ao de nosso intelectoque produz a definir;iia real ou aideia verdadeira do objeto conhe-cido, dando-nos a razao ou cau-sa necessaria de sua essencia ede sua existencia. Dizer, porexemplo, que 0 cfrculo e a figurageometrica na qual todos os pon-tos sac equidistantes do centro eapresentar uma propriedade docirculo, nao e defini-Io real mente.A definiC;ao real ou ideia verdadei-ra e aquela que nos mostra que 0cfrculo e a figura geometrica cau-sadalproduzida pela rotac;ao deum segmento de reta em torno deum centro fixe ou de um ponto ex-tremo central. Temos, agora, arazao ou a causa que faz 0 cfrcu-10 ser 0 que e, existir como existee ter as propriedades que tem.

A teoria espinosana da defi-niC;ao real ou da ideia verdadeiracomo conhecimento da genese deseu objeto afasta uma tradiC;aofilo-sofica que viera desde Aristoteles,que consistia em definir algumacoisa descrevendo suas proprieda-des e, por meio destas, a inserianuma especie e num genero. Defi-nia-se 0 homem, por exemplo, di~zendo-se que pertence a especie

racional, que pertence a especieanimal, que pertence ao generomortal. Ora, diz Espinosa, "racio-nal", "animal" e "mortal" sac termosuniversais abstratos que nao per-mitem definir a essencia de um serdeterminado: nao so nao sabemoso que seja a essencia humana,mas tambem nao sabemos, comesses termos, qual a essencia deSocrates, Pedro ou Maria.

Ao contrario dessa tradic;:ao,existe uma outra que, justamente,se caracteriza par oferecer defini-c;:oes reais e geneticas de seusobjetos: a da matematica. Eis porque Espinosa a cansidera umexemplo a ser seguido pela filoso-fia, pois a matematica opera coma construc;ao intelectual de seusobjetos, apresentando a maneiracomo sac produzidos e deles de-duzindo, por meio de demonstra-goes rigorosas, as propriedades eas conexoes necessarias com ou-tros. Assim, quando na Etica 0 fi-losofo afirma que tratara Deus, 0

homem, suas paixoes e agoescomo se estivesse tratando de tri-angulos e circulos, pretende dizer-nos que deles oferece definic;oesreais, dando-nos a conhecer, ape-nas pelo intelecto, suas causas eefeitos necessarios, sua origem ea maneira como suas essencias eexistencias sac produzidas.

Como passar das definic;:oesimaginativas inadequadas a defini-c;:aointelectual, real e verdadeira?

Desembarac;:ando nosso intelectoda teia da imaginac;ao. Como faze-lo? Por meio do metodo.

Ora, para formular um me-todo, diz 0 filosofo, precisamos co-nhecer sua causa. A busca dessacausalidade revela, entao, que aorigem do metoda e a propria inte-ligencia reflexiva. Em outras pala-vras, e no conhecimento do poderou da capacidade intelectual depensar que se encontra a causado metodo. A reflexao faz com queo intelecto se perceba como inteli-gencia, isto e, como ato de pensa-mento que possui internamente apotencia para 0 verdadeiro, poten-cia nao devendo ser entendida emtermos aristotelicos, ou seja, comovirtualidade, mas em termos es-pinosanos, ou seja, como forc;aatua!. Assim, curiosamente, 0 co-nhecimento pel a genese faz comque, em lugar do trabalho intelec-tual depender do metodo, este eque dependera das operac;:oes dainteligEmcia.

Para que 0 metodo sejadescoberto e utilizado nao ha pre-cedencia das "regras" sobre osatos de pensar que as aplicariam,pois 0 metodo nao e, como supu-sera Descartes, um conjunto de"regras certas e faceis" para pen-sar. 0 metodo nada mais e doque 0 proprio trabalho intelectual,a atividade ordenada da propriainteligencia. Dai a metafora usa-da por Espinosa para esclarecer

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a origem do metodo: para forjar 0ferro, diz ele, precisamos de ummartelo de ferro forjado e este su-poe, portanto, a existencia do fer-ro forjado, de modo que regredi-remos ao infinito nessa serie con-cluindo, contra os fatos, que naoha ferro forjado nem martelo deferro forjado. Mas os ha. Para for-jar pela primeira vez 0 ferro, oshomens usaram os recursos na-turais de que dispunham, de sor-te que dessa rela9aO imediatacom os instrumentos naturais iraonascer os instrumentos humanosde trabalho. Assim tambem como metodo, cujo ponto de partida eum instrumento natural: a for9anativa do intelecto para pensar,ou a inteligencia. Para tanto, epreciso que 0 primeiro ato de pen-samento, de onde possa nascero metodo, seja a reflexao ou 0 co-nhecimento que a inteligencia ad-quire de si mesma como sua pr6-pria causa.

A inteligencia, demonstraraa Etica, e a potencia interna daalma para pensar. Ora, como ve-remos adiante, Espinosa identifi-ca essencia (ser) e potencia (agirou causalidade interna). Isto sig-nifica que a essencia da alma e apotelncia interna para pensar. Eassim e porque a alma e ummodo finito, singular e ativo doatributo infinito Pensamento queconstitui 0 ser da Substancia infi-nitamente infinita. a conhecimen-

to genetico da alma nos conduzao de sua causa - 0 Pensamentoinfinito, do qual nossa inteligenciae uma manifestaQao singular fini-ta - e essa causa, juntamentecom outras, tao infinitas quantoela, constitui a causa absoluta doreal. Essa causa absoluta e aSubstancia infinitamente infinitae 0 Bem verdadeiro. Por essa ra-zao, conhece-Io, deseja-Io e com-partilha-Io com outros sera a feli-cidade, a Iiberdade e a verdade.

Por que 0 intelecto, ou a ra-zao, e capaz desse conhecimento?Porque e uma for9a interna espon-tanea de conhecimento das causase essencias de todas as coisas.Por si mesmo, quando liberado dasimagens, e capaz de conhecimen-to verdadeiro porque nao e senao,por sua pr6pria essencia, uma for-9a inata de pensamento ou poten-cia pensante. E nada demonstramelhor essa potEmcia pensante doque a existencia da matematica,que conhece plenamente seus ob-jetos porque os constr6i intelectu-almente de acordo com as causasinternas necessarias que os defi-nem tais como sao.

Ao demonstrar que 0 inte-lecto ou razao e uma potenciainata para pensar, conhecendo asessencias das coisas gra9as aoconhecimento de suas causasnecessarias, Espinosa pede intro-duzir uma nova e inovadora con-cep9ao da verdade.

Na tradi9ao filos6fica, a ver-dade sempre fora tomada como acorrespondencia entre umaideia eseu objeto, ou entre 0 conteudo ea coisa. Visto, porem, que umaideia e um ato mental, enquantouma coisa e uma realidade exter-na a nossa mente, a tradi9ao filo-s6fica sempre foi obrigada a fome-cer um conjunto de criterios pelosquais poderiamos aferir se umaideia corresponderia ou nao aqui-10de que e ideia. Dessa maneira,o conhecimento ve~dadeiro en-contrava-se subordinado a duasexterioridades: aquela entre aideia e 0 ideado por ela; e aquelaentre a idaia e 0 criterio de garan-tia de sua verdade.

Ora, ao demonstrar queuma idaia verdadeira a aquelaque apresenta a genese necessa-ria de seu objeto, oferecendo ascausas necessarias de sua es-sencia, Espinosa ja nao precisade criterios exteriores que garan-tam a veracidade de uma ideia.Por isso pode definir a verdadecomo index sui ou indice de simesma: a ideia verdadeira eaquela que mostra as operaQoesrealizadas pelo intelecto paraconcebe-Ia, construindo 0 objeto(0 ideado, ou conteudo da ideia)atraves de suas causas necessa-rias. Em lugar de dizer, como atradi9ao, que uma ideia e verda-deira porque corresponde ao seuideado, Espinosa afirma que uma

ideia corresponde ao seu objetoporque a verdadeira. A verdade aintrinseca a idaia verdadeira quenao precisa de outro criterio deverdade senao apresentar-se a simesma como conhecimento dagenese necessaria de seu objeto.

Gra9as a separa9ao entrefilosofia, religiao e teologia - feitapelo Tratado teo/6gico-po/ftico -e a distin9ao entre imagina9ao eintelecto - efetuada pelo Tratadoda corre98o do inte/ecto -, Espi-nosa pode oferecer-nos seu pen-samento na Etica. .

Receando males e espe-rando bens, a ima9ina9ao buscauma entidade suprema que aten-da aos nossos desejos, favore9a-nos sempre, prejudique aquelesque odiamos ou tememos, e cur-ve a Natureza as nossas paixoes.Sobre essa base imaginativa e su-persticiosa, a imagina9ao constr6io edificio teol6gico e metafisico.

A tradiQao teoI6gico-metafi-sica, fundada numa imagem deDeus, forjou teorias imaginativasnas quais a Divindade, separadado mundo e dos homens e antro-pom6rfica, possui as caracteristi-cas de uma Pessoa, com as se-guintes propriedades:

• transcendente, isto a, aci-ma e separada do mundo;

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• onipotente por sua vontadelivre e onisciente por seu intelecto;

• eterna porque sem come-go e sem fim no tempo;

• infinita porque sem come-go e sem fim no espago;

• onipresente porque, estan-do em toda parte e em todo tempo,tudo ve e tudo sabe, como se foraum vigia universal;

• criadora de todas as coi-sas a partir do nada, como sefora um artesao;

• legis ladora e monarca douniverso, governando como umprincipe que segue apenas os ca-prichos de sua pr6pria vontade eque pode, a maneira de um reique promulga e suspende leis emseu rei no, suspender as leis daNatureza com atos extraordina-rios, isto 13, os milagres;

• juiz que. pune ou recom-pensa 0 homem, criado por Ele aSua semelhanga, dotado de livre-arbitrio e destinatario preferencialde toda a obra divina da criayao.

Deus surge, assim, na ima-gem de um super-homem quecria e governa todos os seres deacordo com os designios ocultosde Sua vontade, a qual opera se-gundo fins incompreensiveis paranosso intelecto finito. Antropo-morfizado, Deus 13 adorado comosumamente bom, justo, misericor-dioso, amoroso, colerico e vinga-tivo. Em suma, com paixoes hu-

manas. Porque 0 imaginamoscomo incompreensivel, tambem 0supomos ininteligivel e cremosadivinha-Io por meio das coisasda Natureza, imaginada comobelo e harmonioso artefato divino,destinado a suprir todas as ne-cessidades e carencia humanas.

ldentificando Iiberdade eescolha voluntaria e imaginandoos objetos da escolha como con-tingentes (isto 13, como podendoser ou nao ser, ser estes ou ou-tros, ser como sac ou ser de outramaneira), a tradiyao teoI6gico-me-tafisica afirma que 0 mundo existesimplesmente porque aliberdadede Deus assim 0 quis ou porqueSua vontade assim decidiu e es-colheu, e poderia nao existir ou serdiferente do que e, se Deus assimhouvesse escolhido.

Se 0 mundo 13 contingente,porque fruto de uma escolha con-tingente de Deus, entao as leis daNatureza e as verdades (como asda matematica) sao, em si mes-mas, contingentes, s6 se tornan-do necessarias por um decreto deDeus que as conserva imutaveis.Assim, a necessidade (isto 13, 0que s6 pode ser exatamente talcomo 13, sendo impossivel queseja diferente do que e) identifica-se com 0 ate divino de decretarleis, ou seja, a necessidade nadamais 13 senao a autoridade deDeus que decide arbitrariamenteque, enquanto assim 0 desejar, 2

e 2 serao 4, a soma dos angulosde um triangulo sera igual a doisangulos retos, os corpos pesadoscairao, os astros girarao eliptica-mente nos ceus etc. Por Sua Pro-videncia, Deus pode fazer comque tais coisas sejam sempre damesma maneira - necessariaspara n6s, mas contingentes em simesmas -, como tambem podemanifestar a onipotencia de Sua Ii-berdade fazendo-as sofrer altera-yoes, como no caso dos milagres.

Compreende-se, entao,por que tradicionalmente Iiberda-de e necessidade foram conside-radas opostas e contrarias, pois aprimeira e imaginada como esco-Iha contingente de alternativastambem contingentes e a segun-da como decreto de uma autori-dade absoluta. Donde 0 mito dopecado original, quando 0 primei-ro homem teria usado a liberdade(0 poder de escolha) para deso-bedecer aos mandamentos ouleis de Deus. Com esse mito, er-gue-se a imagem da liberdadehumana como um poder para es-colher 0 mal, porta aberta paranossa perdigao. A um Deus auto-ritario corresponde um homemdecaido e desobediente, por cul-pa da Iiberdade. Como, indagaEspinosa, foi possivel tanta igno-rancia e superstigao para trans-formar 0 que temos de mais pre-cioso - a Iiberdade - em cUlpa,perversidade e perigo?

Nao por acaso te610gos emetafisicos viram-se enredadosem dificuldades insoluveis: seDeus e onisciente, entao sabeeternamente que 0 homem peca-rei e nao e possivel compreenderqueo puna por aquilo que, de an-temao, sabe que ele fara. Se Deus13 onipotente e infinitamente bom,como explicar a existencia do mal,isto e, como uma causa infinita-mente boa pode dar origem a suanegayao? Se Deus possui infinitaIiberdade para escolher 0 melhor,por que, entre todos os mundospossiveis, escolheu este? SeDeus nao cess a de intervir sobreo mundo (como atestam os mila-gres), por que deixa que os bonssofram e os maus sejam felizes?Se Deus e plenitude infinita, quenecessidade teria de criar ummundo finito e imperfeito? SeDeus 13 puro espirito e se uma cau-sa s6 pode produzir um efeito demesma natureza que ela, comoexplicar a origem da materi?? Atradiyao acostumou-se a conside-rar que, quanta mais contradit6riae mais incompreens[vel a imagemde Deus, mais provas have ria damajestadedivina; acostumou-setambem a dar uma (mica respostaa todas as perguntas: "Tale a von-tade de Deus". Resposta que, es-creve Espinosa, faz de Deus 0 as i-10 de toda nossa ignorancia, de-pois de have-Io transformado numabismo de irracionalidade.

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••...el infinito,Mapa de Aquel que es todas sus

estrellas."Borges

Essa imagem de Deus, de-monstra Espinosa, nao e senao aproje9ao antropom6rfica de umaImagem do homem, confundindopropriedades humanas imagina-rlas com a essencia divina. Porqueos homens se imaginam dotadosde vontade livre ou livre-arbitrio(Imaginando que ser livre e esco-Iher entre coisas ou situa90esopostas e agir segundo fins esco-Ihldos pela vontade); porque ima-ginam que 0 poder e supremoquando se separa dos que a eleestao submetidos, dominando-osdo alto e de fora; porque imaginama Natureza agindo segundo fins epara servi-Ios; por todas essas ra-zoes os homens imaginam Deuscomo arquiteto que constr6i 0mundo e como principe que 0 go-verna do alto e de longe.

Se, portanto, quisermos al-can9ar 0 conhecimento verdadei-ro da essencia e da potencia divi-nas, precisamos ultrapassar esselmaginario e chegar a ideia ade-quada de Deus. Sera precise de-monstrar que Deus nao e um in-telecto nem uma vontade, quenao age por finalidade e que NeteIiberdade e necessidade sac umas6 e mesma coisa.

pinosa, e 0 ser no qual a essencia,a existencia e a potencia sac iden-ticos. A eternidade, portanto, nao

~}Jm-t~!TlP~.··senrc()fue9:c>e~§I)l'fim, m~s ausencia detElmpo.

Ora, se umisubs·t~·ncia eo que existe por si e em si pelafor9a de sua pr6pria potencia quee identica a sua essencia, e seesta e a complexidade infinita deinfinitas qualidades infinitas, tor-na-se evidente que s6 pode ha-ver uma unica substancia no uni-verso, caso contrario teriamos deadmitir um ser infinito limitado poroutra ser infinito, 0 que e absur-do. Ha, portanto, uma unica emesma substancia constituindo 0

universe intelro, e ~'§~ClSU.~~~~_1!:-cia e eterna porque, nela, existir,

""-""'~"'~'--"""~~'-'_',,,- ..-,,,,,, ..,., .... ,--,,-., - "''''''. ",." .•.•.. "

ser e agir sac uma s6 e mesma.··ceisel.Essa sUbst~ncia e Q@!d$., ..

····"Aocausar-se a si mesmo,fazendo existir sua pr6pria essen-cia, Deus faz existir todas as coi-sas singulares que 0 exprimemporque sac efeitos de Sua poten-cia infinita. Se, pois, no mesmo atepelo qual Deus e causa de sl ecausa de todas coisas, conclui-seque nao houve nem poderia havercria9ao do mundo a partir do nada.o mundo e eterno porque exprimea causalidade eterna de Deus,mesmo que nete as coisas exis-tam temporalmente, surgindo edesaparecendo sem cessar, oumelhor, passando incessantemen-te de uma forma a outra.

Espinosa parte de um con-ceito muito preciso, 0 de substan-cia, isto e, de um ser que existe emsi e por sl mesmo, que pode serconcebido em si e por si mesmo esem 0 qual nada existe nem podeser concebido. Toda substfmcia esubstancia por ser causa de simesma (causa de sua essencia, desua existencia e da inteligibilidadede ambas) e, ao causar-se a si mes-ma, causa a existencia e a essen-cia de todos os seres do universo.A substancia e, pois, 0 absoluto.

Causa de si inteligivel em sie por si me sma, a essencia deuma substancia absoluta e consti-tuida por infinitos atributos infinitosem seu genera, isto e, por infinitasqualidades infinitas, sendo porisso uma essencia infinitamentecomplexa e internamente diferen-ciada em infinitas qualidades infi-nitas. Existente em si e por si, es-sencia absolutamente complexa,a substancia absoluta e potenciaabsoluta de autoprodu9ao e deprodu9ao de todas as coisas. Aexistencia e a essencia da subs-tancia sao identicas a sua poten-cia ou for9a infinita para existir emsi e por si, para ser internamentecomplexa e para fazer existir todasas coisas. A identidade da existen-cia, da essencia e da potenciasubstanciais e 0 que chamamosde etemidade: etemo, escreve Es-

Ha, assim, duas maneirasde ser e de existir: a da substanciae seus atributos (existencia em sie por si) e ados efeltos da subs-tancia (existEmcia em outro e poroutra). A essa segunda maneirade existir, Espinosa da 0 nome demodos da substancia. Os modosou modifica90es sao efeitos ne-cessarios produzidos pela poten-cia dos atributos divinos. A subs-tancia e seus atributos, enquantoatividade infinita que produz a to-talidade do real, Espinosa da 0

nome de Natureza Naturante. Atotalidade dos modos produzidospelos atributos, da com 0 nome deNatureza Naturada.

Deus, demonstra Espinosa,nao e causa eficiente transitiva detodas as coisas ou de todos osseus modos, isto e, nao e umacausa que se separa dos efeitosap6s have~los produzido, mas ecausa eficiente imanente de seusmodos, nao se separa deles, e simse exprime neles e eles 0 expri-memo A causa imanente faz comque a totalidade constituida pelaNatureza Naturante e pela Nature-za Naturada seja a unidade eter-na e infinita cujo nome e Deus.Donde a celebre expressao espi-nosana: Deus sive Natura, Deusou Natureza. Ou, nos versos deBorges: "0 infinito, mapa Daqueleque e todas as suas estrelas."

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A Etica demole 0 ediffcio te-016gico-metaffsico que se alicerc;:a-va na transcendElncia de Deus aomundo, isto e, na imagem de umser supremo separado do mundo,criando-o a partir do nada segundofins incompreensfveis para os hu-manos. Deus, agora, e a forc;:aima-nente ao mundo e este a exprime.

Dos infinitos atributos infini-tos de Deus, conhecemos verda-deira e adequadamente dois: 0Pensamento e a Extensao. A ativi-dade da potencia do atributo Pen-samento produz um modo infinito,o Intelecto de Deus, e este produztodas as modificac;:6esou modos fi-nitos do Pensamento, isto e, asideias ou mentes ou almas. A ativi-dade da potencia do atributo Exten-sac produz um modo infinito, 0 Uni-verso Material, isto e, proporc;:6esde movimento e de repouso quedao origem a todos os modos fini-tos da Extensao, os corpos.

Ideias e corpos, ou almas ecorpos, sac modos finitos imanen-tes a substancia infinitamente infi-nita, exprimindo-a de maneira de-terminada segundo a ordem ne-cessaria que rege todos os seresdo unive~so. Suas essencias e po-t~nclas sac efeitos dos atributos di-vlnos, atraves dos modos infinitos,(3 suas existencias sac efeitos daconexao de causas necessariasque constituem a ordem universalde Natureza Naturada. Tudo 0 queexists, portanto, possui causa de-

terminada e necessaria para existire ser tal como e: e da essencia dosatributos causar necessariamenteas essencias e potencias de todosos modos; e da essencia dos mo-dos infinitos encadear as seriescausais de ideias e de corpos quedao existencia aos modos finitos.Nao ha contingencia no universo.Tudo 0 que existe, existe pela es-sencia e potencia necessarias dosatributos e modos de Deus.

as seres humanos, constitu-fdos pela uniao de um corpo e umaalma, nao sac substancias criadas,mas modos finitos de Deus. au,como demonstra Espinosa, sacpartes danatureza infinita de Deus./\ ' ';\j ]~~')(~,_:", I'

• inteligelncias incorp6reas ouespirituais (anjos)

• almas humanas incorp6reasimortais

• mundo material ou Naturezafisica material onde vivem osseres humanos, compostos decorpo e alma

Graushiercirquicos

deperfei~ao

ederealidade

a mundodas

criaturas

• Deus e transcendente: infinito, existe separado, fora e acima de tudo quefoi por Ele criado.

• Deus e criador: por um ate soberano de sua vontade tira 0 mundo do nada.• Mundo: criado por Deus a partir do nada; finito porque possui come~o e

fim no espa~o e no tempo.• Homem: composto de corpo mortal e alma imortal.• Nada: vazio, treva distante infinitamente de Deus, que e luz pura.

No Livro I da Etica, Espino-sa constr6i geometricamente agenese da ideia adequada deDeus, Iiberando-a da superstic;:aoteol6gica e da imaginac;:ao meta-ffsica ao demonstrar que:

1. Tudo 0 que existe, exis-te em si e por si (13 substancia) ouexiste em outro e por outro (13modo).

2. Tudo 0 que existe em sie por si pode ser concebido por simesmo (13 inteligivel) e 0 que exis-te em outro e por outro deve serconcebido por outro (a inteligibili-dade do mundo e dos seres huma-nos depende da inteligibilidade de

• Deus e causa imanente a realidade; e a Natureza Naturante imanente aNatureza Naturada.

• Deus nao e criador.• a mundo e infinite e eterno porque exprime a essencia e a potencia de Deus.• a Homem e a uniiio de dois modos finitos de Deus, 0 corpo e a ¥a.• Niio hci hierarquia de perfei~iio dos seres. '\A;\c~/dt• a Nada nao existe; Deus e tudo e 0 todo.

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Deus), de sorte que tudo 0 queexiste pode ser conhecido ade-quadamente por nos porque Deuspode ser conhecido perfeitamentepor nos e Deus e 0 fundamento daracionalidade do universo inteiro.

3. E da natureza da subs-tancia ser causa de si e de todasas coisas, ser constituida por infi-nitos atributos infinitos, ser (micae eterna.

4. Deus e a substancia uni-ca, eterna, absolutamente com-plexa ou absolutamente infinita.

5. Deus e causa livre, ne-cessaria e imanente de todas ascoisas(Livre: porque age apenassegundo a necessidade interna desua essEmcia)Necessaria: porquesua potencia e identica a sua es-selncia. Imanente: porque nao sesepara de seus efeitos, mas nelesse exprime e eles 0 exprimem.

6. Deus nao age por vonta-de e entendimento, nem orientadopor fins, pois vontade e entendi-mento nao sac atributos de suaessencia, mas mod os infinitos deurn de seus atributos (0 Pensa-mento), e a finalidade e uma pro-jeyao imaginaria da ayao humanaem Deus, projeyao que, alias, naocorresponde sequer a propria cau-sa das ayoes humanas, pois oshomens tambem nao agem movi-dos por fins. Deus e uma causaeficiente que age segundo a ne-cessidade interna e espontaneade sua essencia, jamais uma cau-

sa final e jamais movido por cau-sas finais, pois isso levaria a su-por a existencia de algo fora Deleque 0 incitaria a agir, mas nadaexiste fora de Deus (pois ha uma(mica substancia infinita) e nadapode incita-Io ou coagi-lo a agir,uma vez que Sua ayao nao e se-nao a manifestayao necessaria deSua essencia.

7. Sendo 0 Pensamentourn atributo de Deus, tudo quantoexiste - Deus, seus atributos eseus modos -, isto El,a NaturezaNaturante e a Natureza Naturada,sac plenamente inteligfveis, naohavendo no universe misterios,milagres, foryas ocultas, nem finsincompreensfveis.

8. Sendo a Extensao urnI

atributo de Deus, todos os cor-pos, todas as proporyoes de mo-vimento e de repouso que dao ori-gem aos corpos e as suas ayoes,determinando-Ihes a forma e asrelayoes recfprocas que mantemuns com os outros, fazem parteda natureza divina.

9. Tudo 0 que existe e du-plamente determinado quanto aexistencia e a essencia, isto El,osmodos finitos sao determinados aexistir e a ser pela atividade ne-cessaria dos atributos divinos epela ordem e conexao necessa-rias de causas e efeitos na Natu-reza Naturada, de sorte que tudoo que existe e necessario e naoh8. contingencia no universo.

A palencia de Deus e imanenteao mundo

• Deus causa a si mesmo, causan-do seus atributos.

• Os atributos causam os modos in-finitos imediatos.

• Os modos infinitos imediatos cau-sam os modos infinitos mediatos.

• Os modos infinitos mediatos cau-sam os modos finitos.

• Os modos finitos causam-se unsaos outros.

A essencia do mundo e imanentea Deus

• Os modos finitos corporais (corpos)sac indivfduos constitufdos por re-lavoes de movimento e repouso.Os modosinfinitos da Extensaosac as leis fisicas de movimento erepouso do universo. 0 modo infi-nito mediato do atributo Extensaoe 0 universe fisico. A Extensao e aessencia do mundo fisico.

• Os modos finitos anfmicos ou psfqui-cos (as almas) sac indivfduos consti-tufdos por encadeamentos e nexosde ideias. 0 modo infinito mediato doPensamento e 0 conjunto de todasas ideiasexistentes. 0 modo infinitoimediato do Pensamento e 0 Intelec-to divino. 0 Pensamento e a essen-cia da inteligibilidade.

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..,

10. Necessidade e liberdade rancia e da superstiyao, e as tira- ce muito arduo, pode, todavia, ser riando as leis da Natureza e a

nao sac ideias opostas, mas con- nias que sobre elas repousavam. encontrado. E com certeza ha de vontade de Deus.

cordantes e complementares, pois ser arduo aquilo que muito rara-

a Iiberdade nao e senao a man i- L1BERDADE E FELICIDADE mente se encontra. Como seria Uma inovadora conceP9ao

festayao espontanea e necessaria possivel, com efeito, se a salva- de corpo

da forya ou potelncia interna da es- "[ ... J que toda a nossa infelicidade e yao estivesse a mao e pudesse

s~ncia da substancia (no caso detoda a nossa felicidade encontrar-se sem muito trabalho, A etica espinosana busca 0

dependem da qualidade do ser aoDeus) e da potencia interna da es- qual nos unimos por amor."

que fosse negligenciada por qua- livre exercicio do corpo, da alma e

s~ncia dos modos finitos (no caso Espinosa se todos? Mas tudo que e precio- da razao.Sua viga mestra e a \

dos humanos). Dizemos que um so e tao dificil quanta raro". ideia de que 0 homem e parte ima-

ser e livre quando, pela necessi- A etica da alegria e da Iiberdade Essa etica e a verdadeira nente da Natureza, nao sendo um

dade interna de sua essencia e de entrada da filosofia na moderni- imperio num imperio - um poder

sua potencia, nele se identificam A filosofia de Espinosa e dade, pois se oferece Iiberada do rival ao da Natureza - nem, por

sua maneira de existir, de ser e de uma etica da alegria, da felicida- peso de duas tradiyoes: a da suas paixoes e ayoes, um agente

agir. A Iiberdade nao e, pois, es- de, do contentamento intelectual e transcendencia teoI6gico-religio- perturbador da ordem natural, mas

colha voluntaria nem ausencia de da Iiberdade individual e politica. sa amea9adora, fundada na ideia uma parte dela que possui a pe-

causa (ou uma ayao sem causa), Na abertura do Tratado da corre- de culpa originaria, e a da norma- culiaridade de nao ser apenas par-

e a necessidade nao e manda- 980 do intelecto, escreve: "Tendo tividade repressiva da moral, fun- te e. sim capaz de tomar parte na

mento, lei ou decreto externos que eu visto que todas as coisas de dada na heteronomia do agente atividade do todo do universo.

foryariam um ser a existir e agir de que me arreceava ou temia nao submetido a fins e valores exter- o que e a Natureza? E a

I. maneira contraria a sua essencia. continham em si nada de bom nos nao definidos por ele. expressao imanente de uma ativi-

~nem de mau senao enquanto 0 A primeira coloca a etica dade infinitamente infinita cujo

"Nao temos, portanto, que animo se deixava abalar por elas, sob a tutela da teologia do peca- nome e Substancia. A Substancia,

I nos surpreender com a violencia resolvi, enfim, indagar se existia do, imaginando a Iiberdade como una e (mica, e uma unidade infini-\I da reayao dos poderes teol6gicos algo que fosse um bem verdadei- livre-arbitrio e transgressaoaos tamente complexa constituida por

.\ e politicos a obra espinosana. ro e capaz de comunicar-se a to- mandamentos divinos. A segunda infinitos atributos infinitos, isto e,

Despersonalizando Deus, desfi- dos e pelo qual unicamente, afas- submete a etica as ideias imagi- por infinitas qualidades infinitas. di-

nalizando a atividade divina, recu- tado tudo 0 mais, 0 animo fosse nativas de bom e mau, isto 13, a ferenciadas, unificadas pela po-

sando a transcendencia divina, afetado; mais ainda, se existia modelos extern os da conduta vir- tencia infinita de autoproduyao e

demolindo a imagem da criayao algo que, uma vez encontrado, me tuosa (conforme ao bem) e vicio- de produyao de todas as coisas.

do mundo pela vontade divina, desse para sempre a frui9ao de sa (conforme ao mal), identifican- Unidade internamente diferencia-

identificando liberdade e necessi- uma alegria continua e suprema". do a liberdade com 0 poder para da e unificada pela maneira como

dade da essencia-potencia de A filosofia espinosana ger- escolher entre valores postos opera, a Substancia e 0 Ser e a

Deus, e demonstrando que nos- mina nessa busca e a ela se de- como regras e normas para 0 Causa: 0 Ser, porque plenitude da

so intelecto 13 capaz de conheci- dica ate seu f1orescimento no Li- agente moral. identidade da essencia a da axis-

mento adequado ou verdadeiro vro V da Etica, em cuja conclusao Ambas consideram 0 corpo tencia; a Causa, porque e causa

da natureza divina, Espinosa faz lemos: "Se 0 caminho que mos- a causa das paixoes da alma e de si mesma e causa livre imanen-

desabar as construyoes imagina- trei conduzir a este estado [de julgam as paix6es vicios em que te de todas as coisas, existe nelas

rias, nascidas do medo, da igno- plenitude e contentamento] pare- caimos por nossa culpa, contra- e exprime-se nelas.

52 53

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Na medida em que a Subs-t8ncia e a unidade imanente e ati-va de seus infinitos atributos infi-nitos, isto e, de uma complexida-de causal ou produtora, sua altaose realiza diferenciadamente,cada uma de suas qualidadesproduzindo efeitos proprios ouexprimindo de maneira propria aaltaO comum do todo, pois os atri-butos sac potencias infinitas deprodultao do real.

Como vimos, a atividade doatributo Extensao da origem aoscorpos; a do atributo Pensamen-to, as almas. Assim, a altao dosatributos praduz regioes diferenci-adas de realidade, campos dife-renciados de entes, mas essas re-gioes ou campos exprimem sem-pre 0 mesmo Ser. Em outras pala-vras, a unidade e a relaltao entreos entes produzidos pelos atribu-tos sac internas ao proprio Ser oua Substancia. 0 que um atributorealiza numa esfera de realidadee realizado de maneira diferentenoutra por um outro atributo, e asatividades de ambos se exprimemreciprocamente porque sao alt6esda mesma Substancia complexa.

o homem, portanto, con-trariamente ao que imaginaratoda a tradiltao, nao e uma subs-tancia composta de duas outras,mas e um modo singular finito daSubstancia, isto e, efeito imanen-te da atividade dos atributossubstanciais. E uma maneira de

ser singular constituida pela mes-ma unidade complexa que a desua causa imanente, possuindo amesma natureza que ela: peloatributo Pensamento, e urila ideiaou mente ou alma; pelo atributoExtensao, e um corpo.

o que e 0 corpo humano?Um modo finito do atributo Exten-sao, isto e, um individuo extrema-mente complexo constituido poruma diversidade e pluralidade decorpusculos duros, moles e fluidosrelacionados entre si pela harmo-nia e equillbrio de suas proporlt6esde movimento e repouso. E umaunidade estruturada: nao e umagregado de partes, mas unidadede conjunto e equillbrio de alt6esinternas interligadas de orgaos,portanto e um individuo. Sobretu-do, e um individuo dinamico, pois 0

equilibrio interno e obtido por mu-danltas internas conUnuas e por re-lalt6es externas conUnuas, forman-do um sistema de alt6es e realt6escentrfpeto e centrifugo, de sorteque, por essencia, 0 corpo e rela-cional: e constituido por relalt6esinternas entre seus orgaos, par re-lalt6es externas com outros corpose por afecr;oes, isto e, pela capaci-dade de afetar outros corpos e serpor eles afetado sem se destruir,regenerando-se com eles e os re-generando. 0 corpo, sistema com-plexo de movimentos internos e ex-ternos, pressupoe e p6e a intercor-poreidade como originaria.

Se Espinosa revoluciona atradiltao negando que 0 homemseja uma substancia e um com-posta substancial, e afirmandoque 0 corpo e uma individualidadedinamica e intercorporea, maiorainda e a revolultao operada quan-to a alma.

A concepyao tradicionalda alma

A tradiltao recebeu dois le-gados: 0 platonico, que define aalma como 0 piloto no navio, isto e,como uma entidade alojada numa

"

outra para comanda-Ia, mantendo-se a distancia dessa outra, quesimplesmente Ihe serve de moradatemporaria; e 0 aristotelico, que de-fine 0 corpo como organon, isto e,instrumento da alma, que dele sevale para agir no mundo e relacio-nar-se com as coisas. No caso deAristoteles, diferentemente do dePlatao, nao ha exterioridade com-pleta entre corpo e alma, porem, seo corpo e a via de acesso ao mun-do para a alma, ele 0 e na qualida-de de instrumento·. A alma e vistacomo principio da vida e do movi-mento do corpo.

Esses dois legados, emboradiferentes, trazem um outro queIhes e comum: a ideia de que aalma e uma substancia dotada defaculdades, isto e, funlt6es especi-ficas e autonomas, existentes emestado potencial, e que ela atualiza

se dispuser das condilt6es corpo-rais adequadas para isso. Donde aideia platonico-aristotelica, herdadada medicina grega, de localizayaoanatomico-fisiologica das faculda-des da alma: a vegetativa ou nutri-tiva, no Hgado; a motriz, nos mem-bras locomotores e preenseis; aautodefensiva ou cole rica, no cora-ltaO; a racional, no cerebro. Dondetambem a apropriavao da teoriamedica (de Hipocrates e Galeno)dos temperamentos e dos caracte-res, segundo a combinavao doselementos (quente, frio, seco, umi-do) e dos humores (sangue, fleu-ma, bins amarela, bins negra) nosorgaos do corpo, determinando 0ethos (carater, fndole) individual apartir de uma tipologia geral: me-lancolicos(predomfnio do frio e dabins negra), colericos (predomfniodo seco e da bflis amarela), sanguf-neos (predomfnio do quente e dosangue), fleumaticos (predomfniodo umIdo e do fleuma) e suas va-riantes ou combinayoes. E, enfim,a ideia de que as paixoes e os vf-cios decorrem de conflitos entre asfaculdades da alma, enquanto avirtude provem da harmonia entreelas, sob 0 coman do da faculdaderacional.

Esses legados chegam aoseculo XVII, quando serao apro-priados e transform ados pela filo-sofia cartesiana. Descartes intro-duz uma SeparaltaO radical entrecorpo e alma, definindo-os como

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substancias de essencias diferen-tes, cad a qual seguindo suas leispr6prias, sem comunicac;:ao.Substancia extensa, 0 corpo ani-mal e humane 13, do ponto de vistaanatomico e fisiol6gico, uma ma-quina, descrita segundo 0 modeloda mecanica classica, portanto doprincipio de inercia e das leis domovimento, pensadas por Descar-tes como ac;:aopor choque ou porcontato direto. A alma ou substan-cia pensante 13 definida por umconjunto de faculdades pr6prias eautonomas que sac modos depensar - imaginac;:ao, mem6ria,sentimento, vontade e razao.

o homem e, agora, defini-do como composto substancial euniao da alma e do corpo. Des-cartes traz duas inovac;:oes. A pri-meira delas consiste em mostrarque a alma nao 13 princfpio da vidae do movimento do corpo, esteexplicando-se inteiramente pelasleis da mecanica; e que 0 corponao e causa dos pensamentos esentimentos na alma, estes de-venda ser explicados inteiramen-te pela essencia da substanciapensante. A segunda inovac;:aoconsiste em negar 0 que a tradi-Qao afirmara, isto 13, que as pai-xoes nascem de conflitos no inte-rior da alma, entre suas faculda-des. Descartes mostrara que aspalxoes nascem de um conflitoexterno: aquele que se estabele-ce entre a alma e 0 corpo, ou me-

Ihor, entre os pensamentos daalma e os movimentos do, corpo.

Todavia, 0 dualismo subs-tancial criara todos os problemasque Descartes nao podera resol-ver. De fato, 0 conceito cartesianode substancia exige que cad a entesubstancial seja conhecido exclu-sivamente pelas propriedades ca-racterfsticas de sua essencia, in-confundiveis com as de outros.Ora, 0 homem e um enigma, poisnao 13 uma substancia simples(como deve ser toda substanciacartesiana), mas um compostosubstancial heterogeneo. Nao s6isso. Toda a filosofia cartesian aap6ia-se numa pilastra, qual sejaa de que 0 conhecimento verda-deiro se faz por ideias claras e dis-tintas; no entanto, 0 homem, porser um composto e uma uniao deduas naturezas heterogeneas,nao e uma ideia clara e distinta,mas confusa e obscura de duassubstancias incomunicaveis.

Assim, ap6s demonstrarque a alma, sendo substancia pen-sante, nao causa movimentos nocorpo, pois estes decorrem da na-tureza mecanica da materia, Des-cartes afirma que a alma, por meioda vontade, pode alterar a direc;:aoe a velocidade desses movimen-tos, alterando suas pr6prias pai-xoes; e depois de demonstrar queo corpo, sendo uma substancia ex-tensa, nao causa pensamentos naalma, afirma que 0 corpo pode im-

primir impress6es da alma, deter-minando seus sentimentos.

Descartes 13 obrigado a es-sas duas afirmac;:6es em conse-qOencia de sua teoria fisica e me-tafisica, que nao admite ac;:aoe re-ac;:aoa distancia, mas exige conta-to entre 0 agente e 0 paciente, desorte que, de alguma maneira, aalma precisa de contato direto como corpo e este com ela para quepossa haver paixao e ac;:ao. Emoutras palavras, as ac;:6esdo corpo(seus movimentos) devem agir so-bre a alma, causando-Ihe paix6es,enquanto os pensamentos e von-tades da alma devem agir sobre 0

corpo para que a alma possa serativa e virtuosa, dominando seucorpo. Donde a teoria cartesianada glandula pineal (uma pequenis-sima glandula instalada na base denosso cerebro, servindo de sedecorporal para nossa alma), encar-regada da tarefa imposslvel de es-tabelecer a comunicac;:ao entre aalma e 0 corpo.

o dualismo cartesiano, dis-se Merleau- Ponty (1908-1961 ), de-termina que ha duas e apenasduas formas de existencia: ou seexiste como coisa (0 corpo meca-nicamente explicado por relac;:6esde causa e efeito) ou se existecomo consciencia (a alma comoentendimento e vontade livre). Pos-ta a disjunc;:ao,0 homem se tornaobscuro e incompreensivel, e maisobscura ainda a causa das paix6es

e ac;:6esdo corpo e da alma, poisnao sabemos como 0 corpo pode-ria agir sobre a alma - causando-Ihe paix6es - nem a alma sobre 0

corpo - dominando-o pela vontade.Justamente porque esse terreno eo das ideias confusas, Descartesnunca chegara a escrever uma ati-ca, forc;:ando-se a permanecer nocampo do que, otimistamente, de-signara como moral provis6ria, naesperanc;:ade que poderia elaborara definitiva.

Relac;:ao corpo-alma: ainovac;:ao espinosana

Em face da tradic;:ao e dodualismo cartesiano, a inovac;:aoespinosana 13 sem precedentes.

Como ja observamos, Es-pinosa nega que a alma, 0 corpoe 0 homem sejam substancias(portanto, seres em si e por si),demonstrando que sac modifica-c;:oesou expressoes singulares daatividade imanente de uma sUQs-tan cia unica e infinita. Assim, acomunicac;:ao corpo e alma, deum lado, e,de outro, a singulari-dade do homem como unidadede um corpo e de uma alma sao'imediatas. Em outras palavras, auniao corpo e alma e a comunica-c;:aoentre eles decorrem direta eimediatamente do fate de seremexpress6es finitas determinadasde uma mesma e unica substan-cia, cujos atributos se exprimem

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dlferenciadamente numa ativida-de comum a ambos.

Espinosa pode, assim, critl-car a ideia de uniao substancialcartesiana, como tambem a ideiaplatonica da alma piloto do corpoe a aristotelica do corpo 6rgao daalma, isto e, a alma como dirigen-te do corpo e 0 corpo como instru-mento da alma. Porque sac efei-tos simultaneos da atividade dedois atributos substanciais de igualfonia ou potencia e de igual reali-dade, corpo e alma nao estaonuma relar;ao hierarquica de co-man do, 0 corpo comandando aalma na paixao e no vlcio, a almaassumindo 0 comando sobre 0corpo na ar;ao e na virtude. Corpoe alma sac isonomicos, isto e, es-tao sob as mesmas leis e sob osmesmos princfpios, expressos di-ferenciadamente. Rompe-se, por-tanto, a longa tradir;ao hierarquicaque definira a alma como superiorao corpo e devendo ter comandosobre ele.

A essa ruptura vem acres-centar-se outra, de igual enverga-dura: a recusa espinosana daIdeia de faculdades da alma.

A alma - mens, na Iingua-gem de Espinosa - e uma forr;apensante. Pensar e ~onhecer algu-ma colsa afirmando ou negandosua Ideia. Afirmar ou negar sacatos singulares de afirmar;ao ounega9ao, de sorte que uma ideiaou um pensamento e um ato de

pensar. Nao temos uma faculdaderacional ou intelectual, somos umintelecto porque somos pensantes.

A alma pode afirmar ou ne-gar ideias de maneira inadequada,isto e, pode afirmar ou negar ima-gens julgando que SaDideias, poiso pensamento nao e apenas afir-mar;ao ou negar;ao de ideias ade-quadas, mas tambem de ideiasimaginativas. Nao temos uma fa-culdade de imaginar, somos imagi-nantes porque somos pensantes.

o que e 0 querer, ou a von-tade? E a afirmar;ao ou negar;aode uma ideia ou de uma imagem,segundo as determinar;oes do de-sejo. Nao temos uma faculdadede querer ou uma vontade, massomos atos singulares de quererou nao querer, somos atos singu-lares de volir;ao que nada maissac do que atos de afirmar ou ne-gar alguma ideia ou alguma ima-gem. Em suma, querer e pensarsac a mesma coisa.

A alma e, pois, atividadepensante que se realiza comoimaginat;ao, querere reflexao. Osatos do entendimento e os atos davontade sac indissociaveis porquesua unidade Ihes e dada pela almacomo atividade pensante.

ter consciencia de alguma coisae ser consciencia de alguma coi-sa. Isso significa que a alma,como potencia pensante, esta na-tural e essencialmente voltadapara os objetos que constituemos conteudos ou as significar;oesde suas ideias ou imagens. E danatureza da alma estar interna-mente ligada a seu objeto porqueela nao e senao atividade de pen-sa-Io, potencia para abrir-se aoobjeto e para acolhe-Io. Se assime, podemos avaliar a revolur;aoespinosana ao definir e demons-trar que a alma e ideia do corpo.

Recordemos, brevemente,o enunciado de algumas proposi-r;oes da demonstrar;ao geometri-ca do Livro II da Etica:

"A ordem e conexao dasideias e a mesma que a ordem econexao das coisas" (proposir;ao 7).

"A primeira coisa que cons-titui 0 ser atual da alma humananao e senao a ideia de uma coisasingular existente em ato" (propo-sir;ao 9).

"Tudo 0 que acontece noobjeto da ideia que constitui aalma humana deve ser percebidopela alma humana; em outras pa-lavras, a ideia dessa coisa existi-ra necessariamente na alma. Seo objeto da ideia que constitui aalma humana e um corpo, nadapodera acontecer com esse cor-po que nao seja percebido pelaalma" (proposir;ao 12).

Ora, 0 que e pensar, emsuas varias formas? Pensar eafirmar ou negar alguma coisa. E

"0 objeto da ideia queconstitui a alma humana e 0 cor-po, ou seja, um modo determina-do da extensao, existente em ato,e nao outra coisa" (proposir;ao 13).

"A alma humana e apta aperceber um grande numero decoisas e e tanto mais apta quantamais seu corpo estiver dispostode um grande numero de manei-ras" (proposir;ao 14).

"A alma humana nao conhe-ce 0 pr6prio corpo humane nemsabe que este existe senao pelasideias das afecr;oes de que 0 corpoe afetado" (proposir;ao 19).

"A alma humana percebenao s6 as afecr;oes do corpo, mastambem as ideias dessas afec-r;oes" (proposir;ao 22).

"A alma nao se conhece asi mesma a nao ser enquanto per-cebe as ideias das afecr;oes docorpo" (proposi9ao 23).

Esse conjunto de proposi-90es, com suas demonstra90es,corolarios e esc6lios, marca a re-volur;ao espinosana na metafisi-ca, na psicologia, na antropologiae na etica.

Antes, de mais nada, a pro-posi9ao 7 demonstra que a ordeme a conexao das ideias na alma e amesma que a ordem e a conexaodas causas no corpo, pois, sendoam bas modos ou efeitos imanen-tes dos atributos infinitos que cons-tituem a'unidade da Substancia, as

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o rnblno Menasseh ben Israel, grandeconhecedor do mislicismo e doracionalismo judaicos, foi professor deEspinosa.

ideias e as causas possuem amesma origem e seguem as mes-mas leis, mas de maneira qualitati-vamente diferenciada porque refe-ridas a esferas diferenciadas de re-alidade. Ha, pois, correspondenciaentre os acontecimentos corporaise os psiquicos, manifestando acausalidade unica da Substancia.Somos a unidade de um complexocorporal (os milhares de corposque constituem nosso corpo) e deum complexo psiquico (as inume-rave is ideias que constituem nossamente ou nossa alma).

A alma e, entao, definidacomo consciencia das afecc;oesde seu corpo e das ideias dessasafecc;6es: e consciencia do corpoe consciencia de si, ou, em Iingua-gem espinosana, ideia do corpo eideia da ideia do corpo. 0 corpo

constitui 0 objeto atual da alma:Espinosa emprega um verba for-tissimo, constituir, indicando comisso que 13 da natureza da almaestar Iigada internamente ao seucorpo porque ela 13 atividade depensa-Io (seja por meio de ideiasimaginativas, seja por meio de no-c;oes comuns, seja por meio deideias reflexivas, seja por meio dedesejos) e ele 130 objeto pensado(imaginado, concebido, compre-endido, desejado) por ela. A Iiga-c;ao entre a alma e 0 corpo nao 13

algo que acontece a ambos, mase 0 que ambos sac quando saccorpo e alma humanos.

Todavia, Espinosa enfatizaalgo decisivo. De que a alma eideia? A alma nao 13 ideia de umamaquina corporal que era observa-ria de fora e sobre a qual formariarepresentac;oes. Espinosa de-monstra com precisao: ela e ideiadas afecr;oes corporais. Em outraspalavras, e consciencia dos movi-mentos, das mudanc;as, das ac;6ese reac;6es de seu corpo na relac;aocom outros corpos, das mudanc;asno equilibrio interno de seu corposob a ac;ao das causas externas. Aalma e consci{mcia da vida de seu

. corpo e consciencia de ser consci-ente disso. Deixa de existir, portan-to, 0 problema metafisico da uniaoentre a alma e 0 corpo: 13da essen-cia da alma, por ser atividade pen-sante (ou, em nossa Iinguagemcontemporanea, atividade consci-

ente), estar Iigada ao seu objeto depensamento, 0 corpo. Melhor, avida do seu objeto. Como demons-tra a proposic;ao 23, a alma s6 temconsciencia de si atraves da cons-ciencia das modificac;oes, dos mo-vimentos, da vida ou das afecc;oesde seu corpo.

No entanto, nao nos preci-pitemos. Dizer que a alma 13 ideiadas afecc;oes de seu corpo e ques6 13 ideia de si atraves delas naosignifica, de maneira alguma, quepor isso a alma seria e teria imedi-atamente um conhecimento ver-dadeiro de seu corpo e de si. Pelocontrario. A alma comec;a e vivenum conhecimento confuso deseu corpo e de si. Tem ideias ima-ginativas e vive imaginariamente.

Imaginar nao 13 uma ativi-dade da alma, mas do corpo. Afe-tando outros corpos e sendo poreles afetado de inumeras manei-ras, 0 corpo cria imagens de si apartir do. modo como 13 afetadopelos demais corpos. Imaginarexprime a primeira forma da inter-corporeidade, aquela na qual aimagem do corpo e de sua vida 13formada pela imagem que os de-mais corpos oferecem do nosso.

A imagem, por nascer dosistema das afecc;oes corporais, 13instantanea e momentanea, vola-til, fugaz e dispersa, nao oferecen-

do a durac;ao continua da vida dopr6prio corpo, mas instantes frag-mentados dela. Nascida de en-contros corporais na ordem co-mum da Natureza, a imagem insti-tui 0 campo da experiencia vividacomo relac;ao imediata e abstratacom 0 mundo. Imediata, porquecontato direto de nosso corpo comos outros corpos. Abstrata, porquefragmentada, parcial, mutilada.

A alma, consciente do cor-po atraves dessas imagens, repre-senta-o e aos outros corpos pormeio delas, tendo por isso dele edeles um conhecimento inadequa-do ou imaginativo, isto 13, nao 0

conhece tal como e em si mesmo,nem tal como e sua vida pr6pria,mas 0 pensa segundo imagensextern as que ele recebe ou formana relac;ao intercorporal.

A alma pensa seu corpo e asi mesma segundo a ac;ao causalexterna exercida sobre nosso cor-po pelos outros corpos e sobre elespelo nosso. Por esse mesmo moti-vo, na experiencia imediata, naopossui uma ideia verdadeira doscorpos exteriores, po is os conhecesegundo as imagens que seu cor-po deles forma a partir das ima-gens que eles formaram dele, desorte que ha espelhamento deleneles e deles nele, e e isso 0 objetoatual que constitui 0 ser da alma.Ora, a.marca da imagem 13 a abs-trac;ao, no sentido rigoroso do ter-mo: a iinagem e 0 que esta sepa-

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rado de sua causa real e verdadei-ra e que, por esse motivo, leva a

\~Ima a fabricar causas imaginariaspara 0 que se passa em seu corpo,no~emais corpos e nela mesma,enredando-se num tecido de expli-ca<;oesi1usoriassobre si, sobre seucorpo e sobre 0 mundo, porque ex-plica<;oes parciais, nascidas da ig-norancia das verdadeiras causas.

A ideia imaginativa e 0 es-for<;o da alma para associar, dife-renciar, generalizar e relacionarabstra<;oes ou fragmentos, crian-do conexoes entre imagens paracom elas orientar-se no mundo.

Essa opera<;13.o,alias, e fa-vorecida pelo corpo, uma vez queneste, como demonstra a fisica-fi-siologia do Livro II da Etica, as re-la<;oesde movimento entre as par-tes fluidas e moles, em seus con-tatos com outros corpos, gravamem nosso corpo todos os vest!-gios dessas relayoes. Dessa for-ma, 0 corpo, al8m de imaginante,e memorioso, fazendo com quenossa alma tome como presentesimagens do que esta ausente ecom elas represente 0 tempo, istoe, sequencias associativas e ge-neralizadoras de imagens instan-taneas gravadas em nossa carne.

Como vimos anteriormente,em si mesma, a imagem, presenteou passada, n13.oe verdadeira nemfalsa: 8 uma vivencia corporal. Aideia imaginativa nao e falsa emsentido positivo, pois 0 falso nao e

posiy13.onem afirma<;ao de coisaalguma, e sim privayao do verda-deiro. A imagem 8 uma forya docorpo e, lembra Espinosa, seriauma forya da alma se esta, ao ima-ginar, soubesse que imagina. Aideia imaginativa torna-se fraquezada alma quando tomada por umaideia reflexiva, pois a causa destaultima e a propria forya pensanteda alma, enquanto a causa da pri-meira e a consciencia imediata quea alma tem de seu corpo. A ideiaimaginativa e "uma conclus13.ocomausencia das premissas", ou seja,um conhecimento desprovido desua causa ou de sua raz13.o.

Isso n13.osignifica, porem,como sempre afirmou a tradiy13.ointelectualista, que a alma estejaimpedida do conhecimento verda-deiro de seu corpo, de si e domundo porque estaria essencial-mente ligada a seu corpo como seencarcerada numa pris13.o.0 blo-queio a verdade nao nasce da Ii-ga<;13.ocorpo-alma, e sim do fatode que a alma deixa a iniciativa doconhecimento ao corpo e este s6e capaz de imaginar, po is n13.oe desua natureza pensar. 0 aces so aoverdadeiro abre-se para a almaquando esta assume sua nature-za propria, sua potencia propria,isto e, 0 poder para pensar, e tomaa iniciativa do conhecimento.

Ora, e aqui que, mais umavez, Espinosa inova de maneiraradical. Como a alma passa da

confus13.oentre 0 poder imaginan-te de seu corpo e seu proprio po-der pensante a iniciativa do conhe-cimento? Como podera ter umaforya para pensar equivalente aforya de seu corpo para imaginar?

Longe de afirmar, como fa-ria a tradiy13.ointelectualista, que taliniciativa depende de um afas-tamento da alma em face do cor-po, Espinosa demonstrara que,pelo contrario, sera aprofundandoessa relay13.oque a alma poderatomar iniciativa para pensar. Paracompreendermos de onde vem aruptura espinosana ante a tradi<;13.o,precisamos acercar-nos do lugar edo modo fundamental da rela<;13.oentre a alma e 0 corpo.

As afec<;oes do corpo e asid8ias das afec<;oes na alma n13.Os13.orepresenta<;oes cognitivasdesinteressadas. Se fossem ape-nas representa<;oes, seriam ape-nas experiencias dispersas e semsentido. S13.omodifica<;oes davida do corpo e significa<;oes pSI-quicas dessa vida corporal, fun-dadas no interesse vital que, dolado do corpo, 0 faz mover-se(afetar e ser afetado por outroscorpos) e, do lade da alma, a fazpensar. Qual e 0 interesse vital?o interesse do corpo e da alma 8a exist{mcia e tudo quanta contri-bua para mant€~-Ia.

Todos os seres possuem,em decorrencia da atividade dosatributos substanciais infinitos,uma potencia natural de autocon-serva<;13.oque Espinosa, seguindoa terminologia do seculo XVII, de-nomina conatus. Os seres s13.oindi-vlduosquando possuem conatus,isto e, quando possuem uma for<;ainterna para permanecer na exis-tencia conservando seu estado.

Os humanos, como os de-mais seres, sac dotados de cona-tus, com a peculiaridade de quesomente os humanos sac consci-entes de possuir 0 esforyo de per-severa<;13.ona existencia. Na ver-dade, os humanos n13.Opossuemconatus, s13.oconatus.

o conatus, demonstra Es-pinosa no Livro III da Etica, e aessencia atual do corpo e daalma. Mais do que isso. Sendouma for<;a interna para existir econservar-se na existencia, 0 co-natus e uma for<;a interna positivaou afirmativa, intrinsecamente in-destrutrvel, pois nenhum ser bus-ca a autodestrui<;13.o. 0 conatuspossui, assim, uma dura<;13.oi1imi-tada ate que causas exterioresmais fortes e mais poderosas 0~estruam. Definindo corpo e almapelo conatus, Espinosa faz comque sejam essencialmente vida ,de maneira que, na defini<;ao daessencia humana, nao entra amorte. Esta 8 0 que vem do exte-rior, jamais do interior.

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No corpo, 0 conatus se cha-ma apetite; na alma, desejo. Eis porque Espinosa afirma que a essen-cia do homem e desejo, conscien-cia do que, no corpo, se chamaapetite. Assim, dizer que somosapetite corporal e desejo psiquicoe dizer que as afecyoes do corpoSaD afetos da alma. Em outras pa-lavras, as afecgoes do corpo saDimagens que, na alma, se realizamcomo ideias afetivas ou senti men-tos. Assim, a relagao originaria daalma com 0 corpo e de ambos como mundo e a relaQao afetiva.

Afecgoes e afetos, expri-mindo nosso conatus, obedecema lei natural que rege 0 esforgo depreservaQao na existencia. Issosignifica, antes de mais nada, queatuamos passivamente enquantosomos causas eficientes parciais(na paixao) do que se passa emnos, e somos ativos ou atuamosativamente (na aQao) quando so-mos a causa total do que se pas-sa em nos. Somos causa inade-quada de nossos afetos quandosao causados em n6s pelo poderde causas externas; somos cau-sa adequada de nossos afetosquando saD causados em n6s pornossa propria potencia interna.Ser causa inadequada e ser pas-slvo e passional. Ser causa ade-quada a ser ativo e livre.

Com a definigao da paixaoe da a9ao pelo conatus comocausa eficiente inadequada ou

adequada, Espinosa afasta a su-posiQao tradicional de que somosmovidos (seja na paixao, seja naagao) por causas finais externase que somos Iivres quando nossoapetite e nosso desejo saD leva-dos por nossa vontade a escolheros fins bons e virtuosos. Somoscausas eficientes, apenas. Emoutras palavras, assim como naoha finalismo para Deus, nao ha fi-nalidades para n6s. Os prop6si-tos e intengoes que realizamos,passiva ou ativamente, nao saofins externos escolhidos por nos-sa vontade, mas exprimem a cau-salidade eficiente de nosso apeti-te e de nosso desejo, isto a, denosso conatus.

A lei natural da autoconser-vagao, no caso dos humanos,nao determina apenas a conser-vaQao da existencia como perse-veranga no mesmo estado (comoocorre com os demais seres daNatureza), mas a determina comoperseveranQa no ser, e, por essemotivo, determina a variagao deintensidade do conatus.

Nosso ser e definido pelaintensidade maior ou menor daforga para existir- no caso do cor-po, da forQa maior ou menor paraafetar outros corpos e ser afetadopor eles; no caso da alma, da for-Qa maior ou menor para pensar. Avariagao da intensidade da poten-cia para existir depende da quali-dade de nossos apetites e dese-

jos e, portanto, da maneira comonos relacionamos com as forgasexternas, sempre muito mais nu-merosas e mais poderosas do quea nossa. A forga do desejo aumen-ta ou diminui conforme a naturezado desejado, e a intensidade dodesejo aumenta ou diminui confor-me ele seja ou nao conseguido,havendo ou nao satisfaQao.

o desejo realizado aumentanossa forQa para existir e pensar.Chama-se alegria, definida por Es-pinosa como 0 sentimento que te-mos de que nossa capacidade deexistir aumenta, chamando-seamor quando atribuimos esse au-mento a uma causa externa (0 ob-jeto do desejo). 0 desejo frustradodiminui nossa forga para existir epensar. Chama-se tristeza, defini-da por Espinosa como 0 senti men-to que temos de que nossa capaci-dade para existir diminui, chaman-do-se 6dio, se considerarmos essadiminuigao existencial um efeltoproveniente de uma causa externa(0 objeto do desejo). Todos os de-maisapetites e afetos saD deriva-dos ou variantes dos tres origina-rios: desejo, alegria e tristeza.

Na vida imaginaria, as afec-Qoescorporais e os afetos saD pai-xoes. As paixoes, diz Espinosa,nao saD vicios nem pecados, nemdesordem nem doenQa, mas efei-tos necessarios do fato de sermosuma parte fin ita da Natureza cir-cundada por um numero i1imitado

de outras partes, que, maispode-rosas e mais numerosas do quen6s, exercem poder sobre n6s.Alem disso, como vimos, a relagaooriginaria do corpo com 0 mundoe a imagem, e a da alma com 0corpo e.o mundo, a ideia imagina-tiva. A passividade natural possui,assim, tres causas: a necessida-de natural do apetite e do desejode objetos para sua satisfagao; aforQa das causas externas maiordo que a nossa; e a vida imagina-ria, que nos dirige cegamente aomundo, esperando encontrar sa-tisfagao no consumo e apropria-Qao das imagens das coisas, dosoutros e de nos mesmos.

Por isso, na paixao, diz Es-pinosa, somos causa inadequadade nossos apetites e de nossosdesejos, isto e, somos apenas par-cialmente causa do que sentimos,fazemos e desejamos, pois a cau-sa mais forte e poderosa e a ima-gem das coisas, dos outros e den6s mesrnos, portanto a exteriori-dade e mais forte e mais podero-sa do que a interioridade causalcorporal e psiquica.

A originalidade de Espino-sa naoesta em naturalizar a pai-xao - sob este aspecto, e um car-tesiano -, nem em fazer do apeti-te e do desejo nossa essencia -nisto, pensa da mesma maneira

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quo Hobbos. Suu orlglnalidadeancontra'lo noutro lugar.

A trlldlQl1o.e 0 saculo XVIIdoflnom a palxllo e a ar;:ao comotormol rovors(vels a racrprocos: a1910 .ltIA referlda ao termo deondo algo parte; a paix13.o,ao ter-mo on do algo Inclde. Eis por queII fila no palxAo da alma comoD910 do corpo sobre ela e na pas-Ilvldade corporal como a913.Odavontada e da raz13.osobre ele. Aum eorpo ativo corresponderiaumo alma passiva. A uma almaallva, um corpo passivo.

Espinosa rompe radical-monte com essa concep913.o davida passional. Sendo a almaIdela de seu corpo e ideia de si apartir da ideia de seu corpo, sen-do ela desejo como express13.oeonsciente do apetite, sera passi-va Juntamente com seu corpo eaUva Juntamente com ele. Pelaprlmeira vez, em toda a historiade filosofia, corpo e alma sac ati-vos ou passivos juntos e por intei-ro, em igualdade de condiyoes esem relay13.o hierarquica entreales. Nem 0 corpo comanda aalma nem a alma comanda 0 cor-po. A alma vale e pode 0 que valea pode seu corpo. 0 corpo vale epode 0 que vale e pode sua alma.

Como seus contempora-neos, Espinosa julga a paix13.ona-tural. Essa naturalidade n13.ode-corre, porem, da observayao em-prrica que constata 0 fate bruto de

que temos experiemcias passio-nais e passivas. A naturalidadedecorre da demonstray13.o de queha leis da Natureza que determi-nam as causas, os efeitos e asformas da passividade. A inova-y13.Oespinosana, ante seus con-temponlneos, provem da manei-ra como nosso filosofo determinaa Iigay13.oprofunda entre corpo ealma, fazendo-os ativos au passi-vos por inteiro e conjuntamente.

Se reunirmos essa Iigay13.oprofunda entre corpo e alma a cri-tica espinosana da teoria da von-tade como faculdade da alma, en-carregada de dirigir a raz13.oparao dominio total sobre as paixoes,compreenderemos a outra origi-nalidade de Espinosa: no Livro IV .da Etica, demonstrara que umaideia verdadeira ou a raz13.oja-mais vencem uma paix13.o sim-plesmente por serem uma ideiaverdadeira ou raz13.o. Somenteuma paix13.ovence outra paix13.o,se for mais forte e contraria a ela.

Est13.odesfeitos tanto 0 vo-luntarismo quanto 0 intelectualis-mo que pretenderam, durante se-culos, outorgar a vontade e a ra-z13.oum poder que n13.opossuem eque, justamente para encobrir aimpotEmcia de ambas, inventou amoral ascatica e a moral dos fins evalores como paradigmas exter-nos a serem obedecidos pelos hu-manos. 0 moralismo, impondo fi-nalidades externas ao apetite e ao

desejo humanos, impondo mode-los de virtudes e vieios, a a formaimaginaria de suprir 0 fracasso deum outro imaginario: 0 da vontadeonipotente e da raz13.ooniscientecapazes de exercer a pleno impe-rio da alma sobre 0 corpo.

Desfaz-se, assim, uma dasimagens do homem que, duranteseculos, servira de modelo para ainvenyaO da imagem antropomor-fica de Deus: uma divindade do-tada de vontade onipotente e ra-zao onisciente agindo em vista defins externos, definidos comobans e justos em si mesmos.

Dai decorre outra inovayaoespinosana: bom e mau nao sacvalores em si nem correspondema qualidades que existiriam nasproprias coisas. Bom a tudoquanto aumente a forya de nossoconatus; mau, tudo quanta a di-minua. Eis por que Espinosa afir-ma que algo n13.oe desejado pornos por ser bom, mas a bom por-que 0 desejamos.

A naturalidade da paix13.oeo fato de que bom e mau depen-dam inteiramente da qualidade denosso proprio desejo n13.osignifi-cam, poram, que seus efeitos se-jam necessariamente positivos.Pelo contrario. Espinosa demons-trara que a paixao aumenta ima-ginariamente a intensidade do co-

natus e a diminui realmente. Esseaumento imaginario da for((a paraexistir e sua diminui((13.oreal a aservidao humana.

A servid13.on13.oresulta dosafetos, mas das paixoes. Resultada forya de algumas delas sobreoutras. Passividade signifiea serdeterminado a existir, desejar,pensar a partir das imagens exte-riores que operam como causasde nossos apetites e desejos. Aservidaoe 0 momento em que afor9a interna do conatus, tendo-se tornado excessivamente enfra-quecida sob a ayao das for((as ex-ternas, submete-se a elas imagi-nando submete-Ias.

lIusao de for9a na fraque-za interior extrema, a servidao edeixar-se habitar peia exteriori-dade, deixar-se governar por elae, mais do que isso, Espinosa adefine literal mente como aliena-9ao (0 individuo passivo-passio-nal e servo de causas exteriores,esta sob 0 poder de um outro ,ou,em Iinguagem espinosana, a al-terius juris, esta alienus juris).Alienados, n13.oso n13.oreconhe-cemos 0 poderio externo que nosdomina, mas 0 desejamos e nosidentificamos 90m ele. A marcada servid13.oe levar 0 apetite-de-sejo a forma limite: a carencia in-saciavel que busca interminavel-mente a satisfa((13.o fora de si,num outro que so existe imagina-riamente.

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Entre seus varios efeitos, aservidao produz dois de conse-qOencias gigantescas: do lade doindividuo, coloca-o em contradiyaoconsigo mesmo, levando-o a con-fundir exterior e interior, perdendoa referencia de seu conatus e, jus-tamente por isso, provocando suapropria destruiyao, como no casodo ciume, da auto-abjeyao e do sui-cidio; do lado da vida intersubjeti-va, torna cada urn contrario a todosos outros, em luta contra todos osoutros, temendo e odiando todosos outros, cada qual imaginandosatisfazer seu desejo com a des-truiyao do outro, percebido comoobstaculo aos apetites e desejosde cada urn e de todos os outros.

Ao suicidio individual corresponde,no plano intersubjetivo, a luta mor-tal das consciencias e, no plano po-litico, a guerra civil como luta entrefacyoes.

Ora, se somos passivos porNatureza, se somos passivos decorpo e alma, se a alma tern co-nhecimento inadequado dos ape-tites de seu corpo e de seus dese-jos, se nao ha uma vontade racio-nal capaz de dominar as paixoes,como a etica ha de ser possivel?

A etica supoe e exige se-res aut6nomos, mas somos natu-ralmente heter6nomos; a etica

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()N I II II \J1I0l.0l; do Amsterda celebram sua riqueza e a liberdade republicana,IIIIIIIHIIlIlIIlr!fni [Join func;:ao gloriosa das milicias civis que velam pela republica.

supoe e exige seres racionais,mas somos naturalmente afetos edesejos. Como sair do imaginariosem sair dos afetos? Como sairda passividade sem separar cor-po e alma? Em suma, como pas-sar da paixao a ayao? au, na lin-guagem espinosana, como nostornarmos causa adequada, istoe, causa total dos efeitos daquiloque se passa em nos?

"Ninguem pode desejar serfeliz, agir bem e bem viver que naodeseje ao mesmo tempo ser, agir eviver, isto e, existir em ato", lemosna proposiyao 21 do Livro IV da Eli-ca, imediatamente seguida, na pro-posiyao 22, pela demonstrayao deque "nao se pode conceber nenhu-ma virtude anterior a esta, isto e, aoesforyo para se conservar a si mes-mo". E, no corolario dessa proposi-yao, Espinosa escreve: "a esforyopara se conservar e 0 primeiro eunico fundamento da virtude".

A chave da etica encontra-se nessa posiyao do conatus comofundamento primeiro e unico da vir-tude, palavra que, como vemos, eempregada por Espinosa nao nosenti do moral de valor e modele aser seguido, mas em seu sentidoetimologico de forya interna (em la-tim, virtus deriva de vis, forya).

A virtude do corpo e poderafetar de inumeras maneiras simul-taneas outros corpos e ser por elesafetado de inumeras maneiras si-multaneas, pois, como vimos, 0

corpo e urn individuo que se definetanto pelas relayoes internas deequilibrio de seus orgaos quantapelas relayoes de harmonia com osdemais corpos, sendo por eles ali-mentado, revitalizado e fazendo 0

mesmo para eles.A virtude da alma, seu co-

natus proprio, e pensar, e sua for-ya interior dependera, portanto, desua capacidade para interpretar asimagens de seu corpo e dos cor-pos exteriores, pass ando dessasimagens as ideias propriamenteditas. Assim, ela €I a unica causapossivel das ideias. Em suma,passar da condiyao de causa ina-dequada a de causa adequadaexige passarmos das ideias inade-quadas as adequadas, de sorteque, para nossa alma, conhecer €Iagir, e agir e conhecer.

Em outros termos, urn dese-jo so se encontra em nossa almaao mesmo tempo que a ideia dacoisa desejada. Na paixao, a coisadesejada surge na imagem de urnfim externo; na ayao, como ideiaposta internamente por nosso pro-prio ate de desejar e, portanto,como algo de que nos reconhece-mos como causa, interpretando 0que se passa em nos e adquirindoa ideia adequada de nos mesmose do desejado. E e no interior doproprio desejo que esse desenvol-vimento intelectual acontece.

Em outras palavras, a vir-tude e, por urn lado, urn movimen-

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to e um processo de interioriza-yao da causalidade - ser causainterna ou adequada dos apetites,dos desejos e das ideias - e, poroutro lade, a instaurayao de novarelayao com a exterioridade,quando esta deixa de ser sentidacomo ameayadora ou como su-pressao de carencias imagina-rias. Mas isso significa que a pos-sibilidade da etica encontra-se,portanto, na possibilidade de for-talecer 0 conatus para que se tor-ne causa adequada dos apetitese imagens do corpo e dos dese-jos e ideias da alma.

A originalidade inovadora deEspinosa esta em considerar queessa possibilidade e esse proces-so sac dad os pelos pr6prios afetose nao sem eles ou contra eles.

A alegria e todos os afetosdela derivados, mesmo quandopassiva, 13 0 sentimento do au-mento da forya para existir. PorIsso, lemos na proposi9ao 18 doL1vro IV da Etica: "0 desejo quenasce da alegria 13 mais forte doque 0 desejo que nasce da triste-za". Ora, vimos que uma paixaonao e vencida por uma ideia ver-dadelra, mas por uma outra pai-xl10 contniria e mais forte. Espi-nosa nos mostra que a alegria e 0d080]0 nascido da alegria (e, por-Innlo, 0 desejo nascido de todos(H' nrot06 de alegria, como 011fflor , n nmlzade, a generosida-cia, 0 oonlonlamento, a misericor-

dia, a benevolencia, a gratidao, agloria) sac as paixoes mais fortes.

A vida etica comeya, as-sim, no interior das paixoes, pelofortalecimento das mais fortes eenfraquecimento das mais fracas,isto 13, de todas as formas da tris-teza e dos desejos nascidos datristeza (odio, medo, ambi9ao, or-gulho, humildade, modestia, ciu-me, avareza, vinganya, remorso,arrependimento, inveja). Umatristeza intensa 13 uma paixao fra-ca; uma alegria intensa, uma pai-x13.oforte, pois fraco e forte se re-ferem a qualidade do conatus ouda potencia de ser e agir, enquan-to a intensidade se refere ao graudessa potencia. Passar dos dese-jos tristes aos alegres 13 passar dafraqueza a forya. Ora, forya se dizvis e virtus, Iiteralmente, virtude.

Eis por que, no ultimo livre. da Etica, Espinosa escreve:

"Como os pensamentos eas ideias das coisas se ordenam ese encadeiam na alma, exatamen-te da mesma maneira as afec90esdo corpo, ou seja, as imagens dascoisas, se encadeiam e se orde-nam no corpo" (proposiy13.o1).

"Se, pelo pensamento, sepa-rarmos uma em0913.oda alma desua causa externa e a Iigarmos aoutros pensamentos, enta~ 0 amorou 0 odio para com a causa externaser13.Odestruidos" (proposi913.O2).

"Um afeto que 13 paix13.odeixa de ser paix13.oquando dele

formamos uma ideia clara e dis-tinta" (proposiy13.o3).

. "N13.oM nenhuma afecy13.odo corpo de que n13.opossamosformar um conceito claro e distin-to" (proposiy13.o4).

o que torna possiveis es-sas proposi90es 13 0 processo Iibe-rador iniciado no interior das pai-xoes. A medida que as paixoestristes V13.Osendo afastadas e asalegres VaGsendo aproximadas, aforya do conatus aumenta, de sor-te que a alegria e 0 desejo delanascido te·ndem, pouco a pouco, adiminuir nossa passividade e pre-parar-nos para a atividade.

o primeiro instante da ati-vidade e sentido como um afetodecisivo: quando, para nossaalma, pensar e conhecer for sen-tido como 0 mais forte dos afetos,o mais forte desejo e a mais fortealegria, um saito qualitativo temlugar, pois descobrimos a essen-cia de nossa alma e sua virtudeno instante mesmo em que a pai-x13.ode pensar nos lan9a para aay13.Ode pensar.

E 0 momento em que des-cobrimos a diferen9a entre a po-tencia imaginante-memoriosa docorpo e a potencia pensante daalma. E, simultaneamente, comoafirma a proposiy13.o5, quando sa-bemos que os pensamentos seencadeiam na alma exatamentecomo as imagens se encadeiam

no corpo, mas que uma ideia.di-fere de umaimagem porque 13 0

conhecimento verdadeiro dascausas das imagens e das ideias,conhecimento verdadeiro da es-sencia do corpo e da alma, co-nhecimento verdadeiro da rela-C;:13.oentre ambos e deles com 0

todo da Natureza.A partir desse momento,

as quatro primeiras proposic;:oesdo Livro V da Etica ganham sen-tido: a etica n13.o13 senao 0 movi-mento de reflex13.o,isto 13, 0 movi-mento de interiorizac;:13.ono qual aalma interpreta seus afetos e asafec90es de seu corpo, destruin-do as causas externas imagina-rias e descobrindo-se e a seu cor-po como causas reais dos apeti-tes e desejos. A possibilidade daay13.Oreflexiva da alma encontra-se, portanto, na estrutura da pro-pria afetividade: e 0 desejo dealegria que a impulsiona rumo aoconhecimento e a a913.O.Pensa-mos e agimos n13.ocontra os Cj.fe-tos, masgra9as a eles.

Pela primeira vez, depoisde seculos - isto 13, desde Aristo-teles e Epicuro - a fllosofia deixade diabolizar e culpabilizar os afe-tos, para toma-Ios como essenciado humano.

A essencia da alma, escre-ve Espinosa, 130 conhecimento e,quanta mais conhece, mais reali-za sua essencia ou sua virtude.Por isso mesmo, quanta mais

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apto for seu corpo para 0 multiplosimultaneo, mais ativa sera aalma, que, finalmente, poderacompreender-se como ideia daideia de seu corpo, isto 13, comopoder reflexivo que alcanya pelopensamento 0 senti do de si mes-ma, de seu corpo, do mundo e daNatureza inteira.

E isto a Iiberdade: reconhe-cer-se como causa eficiente inter-na dos apetites e imagens, dosdesejos e ideias, afastando a mi-ragem i1us6ria das causas finaisexternas.

E isso a felicidade supre-ma, pois reconhecemos agoraque somos uma atividade plenae, como tais, nao somos meraspartes do todo da Natureza, mastomamos parte ou participamosda atividade infinita.

E isso a eternidade, poisdescobrimos que somos 0 que fa-zemos e sentimos, que nossaexistencia, nossa essencia e nos-sa potencia sac identicas, comoo sac na substancia divina (aeternidade, nao tempo sem co-meyo e sem fim, mas identidadedo existir, ser e agir).

E e isso 0 "amor intelectualda alma por Deus", pois esseornor neo e senao 0 amor infinitodon homens uns pelos outros e• au omor por todos os seres daNnlurozfl.

o omor 8, para Espinosa,() Idnlo dn ulogria como percep-

yao do aumento de nossa foryapara ser, agir e viver em ato. Areflexao como interiorizayao ecomo interpretayao das causasreais e do sentido verdadeiro davida afetiva e, assim, uma Iibera-yao que nos faz chegar a Iiberda-de. Somos, agora, Iivres de corpoe alma, po is "quem tern um corpoapto para um grande numero decoisas simultaneas tem uma almacuja maior parte 13 eterna".

Na paixao e na servidao,os humanos sac contrarios a simesmos e contrarios uns aos ou-tros, cad a qual cobiyando como 0maior de todos os bens a possede um outro humane - pois, es-creve Espinosa no Livro IV da Eli-ca, 0 desejo passivo-passionalmais intense nao 130 da posse debens possuidos por outros, maso d,esejo de apropriar-se do outroe do desejo do outro. 0 bem su-premo da vida servil exclui os de-mais de sua fruiyao.

Em contrapartida, na ayaoe na liberdade, os humanos sedescobrem como concordantes e,sobretudo, que sua forya paraexistir e agir aumenta quandoexistem e agem em comum, desorte que 0 bem supremo da vidaafetiva e intelectual livre e justa-mente 0 que buscava 0 jovem Es-pinosa quando, na abertura doTratado da corre9ao do intelecto,escreveu: "um bem verdadeirocapaz de comunicar-se a todos".

i]A polftica

DIREITO NATURAL E ESTADODE NATUREZA

Observando a tradiyao dafilosofia polltica, Espinosa decla-ra que os fil6sofos tem side in-competentes para tratar da pol iti-ca, escrevendo tratados para ho-mens que fossem anjos - puros ebons - ou demonios - impuros eperversos -, e nao para os sereshumanos tais como real mentesao. Angelizando ou diabolizandoos seres humanos, os fil6sofosapenas escreveram utopias e sa-tiras, jamais uma polltica aplica-vel. Propuseram modelos debons governantes, virtuosos eamados, confundindo as qual ida-des privadas dos individuos e asqualidades publicas das institui-yoes politicas. Ou execraram go-vernantes como flagelos do gene-ro humano, nao indagando quetipo de instituiyao politica permitea existencia de tiranos.

Como os humanos real-mente sao? Sao seres natural-mente passionais, buscando seuinteresse pr6prio, mesmo comprejuizo para os outros. Sao na-turalmente ambiciosos, invejo-sos, imprudentes, medrosos, im-

piedosos, mas tambem amoro-sos, compassivos, generosos.Para escrever sobre a politica 13preciso, portanto, aceitar e com-preender os seres humanos taiscomo sac e indagar como e porque decidem instituir 0 Estado ea vida social.

Vimos acima que a essen-cia humana se define pelo cona-tus, isto El, pela potEmcia internade agir ou esfon;o de autoperse-verayao na existencia. Na politi-ca, 0 conatus se chama direitonatural.

Na tradiyao filos6fica, 0 di-reito natural era considerado aforma espontanea pela qual osseres humanos, criados por Deuscomo seres racionais, possuiamo sentimento inato de justiya, e 0respeitavam. Desse respeito nas-cia a vida em sociedade e 0 Esta-do como uma comunidade cujoobjetivo era 0 bem comum. Nes-sa tradiyao, 0 Estado surgia comoqesigniodivino, Deus encontran-do meios para indicar 0 governan-te como Seu representante entreos homens .

Ora, 0 Livro I da Eticadesmontou 0 imaginario teol6gi-co do Deus Monarca que gover-

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na 0 mundo segundo decretosde Sua vontade e, com isso, de-moliu 0 ediffcio da teologia polf-tica no qual se alojava a figurado bom governante desejadopor Deus a Sua imagem e seme-Ihanc;a. Nao M fundamento teo-16gico para 0 Estado.

Alam disso, desde Maquia-vel, 0 pensamento politico eura-peu ja nao podia manter a antigaidaia do direito natural, pois 0 es-critor florentino mostrara que oshomens nao vivem em comunida-des justas e sim em soCiedadesinternamente divididas entre 0desejo dos grandes de oprimir ecomandar e 0 desejo do povo denao ser oprimido nem comanda-do. Mostrara tambam que 0 Esta-do nao nasce da razao, nem dosentimento natural de justic;a,nem de um decreto divino, masda 16gicade forc;as e conflitos querege a vida social.

Por sua vez, Hobbes, pro-curando explicar a origem do Es-lado, afirmara que a vida civil nas-ce para superar 0 estado de Na-lureza, no qual, por direito natu-ml, cada homem a 0 lobo de ou-tro homem, reinando a guerra delodos contra todos.

Eloglando Maquiavel eInlplrando-se em Hobbes, Espi-1l0lltl consldera que 0 EstadoIlAIiOO plUG ultrapassar 0 estadodCl Nl1llHolCl 0 a guerra de todos(lUlltr/.t lodos, pr6prla do direito

natural, pois 0 conatus desco-nhece bondade e justic;a (pal a-vras que s6 tem sentido depoisda criac;ao da vida social e pollti-ca). Todavia, a filosofia politicade Espinosa difere da de Maqui-avel e de Hobbes, como vere-mos mais adiante.

Porque 0 direito naturalnao a senao 0 conatus individual,Espinosa 0 define como direito atudo quanta alguam tenha 0 po-der para conseguir. Meu direitovai ata onde for minha potEmciapara exerce-Ia, defende-Ia e faze-la \taler contra a de outros.

Sendo assim, 0 estado deNatureza a aquele no qual cadaum faz sua pr6pria lei, fazendovaler seus apetites e desejos con-tra os de todos os outros.

Ora, isso que parece seruma grande vantagem e umagrande liberdade acaba por reve-lar-se miseravel e terrlvel. De fato,como cad a um exerce seu podercontra todos os outras, a forc;a in-dividual a muito menor do que ade varios outros, de sorte quecada um nao faz senao temer to-dos os outros. Cada urn a ameac;ade morte e dano para os demais,e 0 estado de Natureza, longe deser a condic;ao na qual tudo pode-mos, mostra-se como a condiyaona qual nada podemos. real mente.Em lugar de fortalecer a potencianatural do conatus, 0 estado deNatureza a enfraquece, pois, pelo

medo, pelo 6dio, pela inveja, en-fraquece 0 direito natural, enfra-quecimento tanto maior quantamais 0 estado de Natureza impo-nha 0 isolamento como regra desobrevivencia.

Quando os homens tomamconsciemcia de que a vida em so-lidao, pr6pria do estado de Natu-reza, nao Ihes a favoravel, e queencontrarao maior utilidade sereunirem suas forc;as, descobremas vantagens da vida social e po-Iitica. Ela nao tem como finalida-de (como imaginava a tradic;:ao)estabelecer a vida justa pelo bemcomum, e sim garantir a liberda-de de cada um, proporcionando,assim, a paz e a seguranc;a de to-dos. 0 bem comum nao a a finali-dade da polftica, mas efeito deuma polltica adequada aos inte-resses e costumes dos cidadaosque a institulram.

D1REITO CIVIL E ESTADOCIVIL

Hobbes sup6s que os ho-mens saem do estado de Nature-za renunciando ao direito naturalpor meio de um contrato socialque Ihes permita transferir todo 0

poder ao soberano (seja esteuma assemblaia, na democracia;um colegiado de nobres, na aris-tocracia; ou um rei, na monar-quia). 0 Estado nasceria, portan-to, na sequencia de um contrato

social,de uma alienac;:ao de direi-tos e do fim do direito natural. Evi-dentemente, salienta Hobbes,nao M contrato politico, pois umcontrato pressupoe partes contra-tantes livres e iguais, e nao Migualdade entre os cidadaos e 0soberano, po is este resulta dadeCisao anterior dos indivlduosde alienar para ele seu direito na-tural. Entretanto, se nao M con-trato polflico, pois nao a posslvelum contrato entre os suditos e 0soberano, ha contrato social, istoa, um pacta pelo qual as homensconcordam entre si em alienarseu direito natural, transferindo-opara 0 soberano. Sem 0 pactanao ha Estado civil.

Para Espinosa, todo direi-to a um poder, isto a, nosso di-reito vai ata onde possuirmospoder para realiza-Io e forc;:aparagaranti-Io. Par esse motivo, dife-rentemente de Hobbes, Espino-sa afirma que 0 direito civil (asleis positivas escritas que defi-nem para a coletividade 0 justa eo injusto) e 0 Estado civil (0 po-der soberano) nao nascem con-tra 0 direito natural e 0 estado deNatureza, mas para realiza-Iosconcretamente. Em outras pala-vras, aquiloque 0 direito naturale 0 estado de Natureza nao con-seguem - utilidade, liberdade,seguranc;a -, 0 direito civil e 0

Estado civil devem conseguir egarantir. Eis por que Espinosa

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define 0 poder soberano ex ata-mente como definira 0 direito na-tural: e soberano, aquele que temo poder para fazer valer seus di-reitos,e tera tanto direito quantapoder tiver para impor, defendere garantir esse direito-poder.

Tambem diferentemente deHobbes, Espinosa recusa tanto aideia de contrato social quanta ade aliena«ao do direito natural nodireito civil. De fato, quando os ho-mens, em estado de Natureza,descobrem as vantagens de unirfor«as para a vida em comum, naofazem pactos nem contratos, masformam a multidao ou a massacomo algo novo: 0 sujeito politico.A massa, constituindo um sujeitounico, cria urn indivfduo coletivocujo eonatus e mais forte e supe-rior ao de cad a um dos indivfduosisolados. Esse eonatus coletivo eo soberano ou 0 Estado civil. Des-sa maneira, ninguem transfere aurn outro 0 direito e 0 poder paragoverna-Io, mas cad a urn e todosconservam, aumentado, 0 direitonatural, agora transformado emdlrelto civil e Estado.

Diferentemente de Maquia-vol, para quem 0 povo precisavado urn principe que fosse capazdo reallzar 0 desejo popular denfto Bar oprimido nem comanda-do, Espinosa afirma que a pollti-on consorva a marca principal dodlralto natural: 0 desejo de cad aurn do govornar e nao ser gover-

nado. Longe de precisar de al-guem para governa-Io, 0 sujeitopolftico (0 eonatus coletivo damassa ou do povo) deseja gover-nar e nao ser governado.

sua as armas e saiba maneja-Ias,de tal maneira que, ao voltar a paz,o poder ja pertence ao guerreirotransformado em rei. Por medo daguerra, diz Espinosa, 0 povo aca-ba aceitando viver na ausencia dapaz, pois urn rei amea«a continua-mente seus suditos porser 0 de-tentor do poderio militar.

A causa da aristocracia,escreve Espinosa, e a desigual-dade economica que leva um gru-po de particulares mais ricos aapossar-se do poder politico e apersuadir os demais de que temo direito de exerce-Io justamentepor suas riquezas. 0 povo, dizEspinosa, costuma ticar deslum-brado e abobalhado com a exibi-c;:aodo luxe e da riqueza, aceitan-do submeter-se politicamente porjulgar-se inferior aos detentoresdo poderio economico.

A causa da tirania e 0 en-fraquecimento do eonatus coleti-vo ou do direito-poder do sujeitopolitico coletivo que, fraco e ame-drontado, mas tambem deslum-brado com as exibi«oes militarese a vida luxuosa de um indivfduo,deixa-o tomar 0 poder e governarsegundo seus caprichos.

As analises espinosanassac perturbadoras, pois nao atri-buem as causas da monarquia, daaristocracia e da tirania a algumamaldade ou perversidade nem dorei, nem dos aristocratas nem dotirano, mas ao proprio povo. E este

Ora, qual 0 regime politicomais propfcio e mais apto pararealizar 0 desejo de governar enao ser govern ado? RespondeEspinosa: a democracia.

Por que a democracia?Porque nela todos sao autoresdas leis, todos participam do go-verno (diretamente ou por meiode representantes), de sorte que,ao obedecer as leis, cada umobedece a si mesmo, po is e autorda legisla«ao.

Assim, num seculo que viuo surgimento e a consolida«aodas monarquias absolutas e noqual todos os fil6sofos tenderama defender 0 regime monarquico,Espinosa e 0 unico pensador queafirma a superioridade da demo-cracia para realizar 0 desejo poli-tico de todos e de cad a urn.

Se assim e, se a democra-cia e 0 mais natural dos regimespolfticos, por que existem monar-quias, aristocracias e tiranias?

A causa da monarquia, es-creve Espinosa, e 0 medo da mor-te durante guerras. 0 povo, desar-mado e apavorado, entrega a di-re«ao do Estado aquele que pos-

que se deixa dominar e nao teraque se queixar nem se lamentar,pois 0 poder do governante de-pende da renuncia popular aos di-reitos. Porem, se assim e, reis,nobres e tiranos tambem nao te-rao porque se queixar e se lamen-tar se perderem 0 poder quando 0povo 0 reconquistar, pois se 0 per-derem e porque seu direito e maisfraco do que a potencia do eona-tus do sujeito politico coletivo.

Observamos, assim, porque a politica espinosana nao Iidacom anjos nem com demonios,mas com seres humanos, seusdireitos, poderes, fraquezas e for-«as, conflitos e entendimentos.

A DOMINA«;AO DOSESPIRITOS E A L1BERDADEPOLITICA

Vimos, no inicio deste Iivru,Espinosa afirmar que a liberdadeindividual de pensame'nto e ex-

- -. . \pressao nao e pengosa pa~a 0Estado, mas condi«ao da segu-ranc;:apolitica e da paz.

Vimos, agora, que a Iiber-dade coletiva (realizada na demo-cracia) e a condi«ao do melhordos regimes politicos, na medidaem que garante 0 direito natural eo desejo natural de governar enao ser governado.

Vimos, enfim, que, apesardisso, outros regimes polfticospodem ser instituidos contra a Ii-

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Embora haja tolerancia religiosa e liberdade de expressao durante 0 periodo republi-cano, 0 clero calvinista ortodoxo lorc;:a os governantes a praticar a censura, proibindoa impressao e circulac;:ao de livros, entre os quais os de Espinosa, que delende aplena liberdade de pensamento e expressao.

berdade. a paz e a seguranyado sujeito politico coletivo. Medoda morte no povo desarmado,admirayao e respeito pelas ri-quezas dos ricos, fraqueza doconatus coletivo levam a monar-quia,. a aristocracia e a tirania.Mas por que tais regimes seconservam, se neles 0 direitonaturale 0 desejo natural naopodem realizar-se?

Conhecemos a respostade Espinosa: os regimes politicosviolentos sao conservados pormeio da superstic;ao,do medo decastigos, da esperanya de bene-ffcios, da censura do pensamen-to e da palavra, da submissao aos

poderes religiosos e teol6gicos.Eis por que a filosofia espinosanaergue-se contra essas formas dedominayao. pois aprisionam osespiritos, submetem as conscien-cias, alimentam a tristeza, 0 6dioe 0 medo. enfraquecendo 0 cona-tus de cada um e 0 do sujeito po-litico coletivo.

Assim como a liberdade in-dividual exprime a forya do corpoe da alma enquanto causas ade-quadas de suas afecyoes, afetose ideias, assim tambem a liberda-de polltica s6 se realiza quando 0direito civil (as leis) e 0 Estado (asinstituiyoes de governo) fortale-cem 0 conatus coletivo, em lugar

de enfraquece-Io e subjuga-Io nomedo. na ilusao supersticiosa enas promessas de recompensasnuma vida celeste futura para osofendidose humilhadosnestavida.

Donde 0 cuidado de Espi-nosa em examinar os diferentesregimes politicos, analisando asinstituiyoes que Ihes saDpr6prias,de maneira a garantir que, sejaqual for 0 regime - exceyao paraa tirania,evidentemente -, e dointeresse do governante, assimcomo do poder soberano e do su-jeito politico coletivo, garantir trescondiyoes sem as quais nenhumaforma politica pode conservar-se:

• em primeiro lugar, que alegislayao se refira exclusivamen-te aos atos externos dos cida-daos, jamais ao que se passa nointima de suas consciencias;

• em segundo lugar, queem momentos de crise e dificul-dade nenhum particular nemqualquer grupo de particularespossa apresentar-se como defen-sor das leis;

• em terceiro lugar, que alegislayao e as instituiyoes naoestejam em contradiyao com oscostumes politicos dos cidadaos.

Que significam essas tresexigencias?

A primeira delas afirma queos sentimentos e as ideias naopodem ser legislados, sob pena

de passar-se da polftica a tirania.A segunda, que a tirania se insta-la justamente quando um indivi-duo ou grupo de individuos pro-cura ocupar 0 lugar da soberania,sob a aparencia de defesa dasleis coletivas. A terceira, que umcorpo politico torna-se muito fra-gil e fraco quando propoe um re-gime para 0 qual os Mbitos doscidadaos nao estao preparados:um povo acostumado a demo-cracia matara reis, se a monar-quia for instituida; um povo acos-tumado a monarquia delegara aoutros 0 direito de legislar, se forinstituida a democracia; e assimpor diante. Significaria essa ter-ceira condiyao que um povo es-tara fadado a estar sempre sob 0mesmo regime politico? Demodo algum. 0 que Espinosaafirma e que a forma politica de-pende, em todas as circunstan-cias, do proprio povo (como vi-mos acima) e que impor-Ihe umregime no qual nao veja comoexercer 0 direito natural por meiodo direito civil e preparar umapolitica de simulacros, em que sevive sob um tipo de regime, masatua-se como se se estivessenoutro. A terceira exigencia s6ganha pleno sentido quando Iiga-da as duas primeiras: para habi-tuar um povo a monarquia ou atirania. tera sido preciso que asduas primeiras condiyoes nao te-nham sido respeitadas.

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" Conclusao:.Espinosa, nossoiicontemporaneo

Einstein declarou que a te-oria da relatividade, ao identificarespayo e tempo, materia e ener-gia, conduz a uma metafisica, eque esta e a de Espinosa. Mui-tos fisicos contemporaneos temestudado a ideia espinosana deNatureza, procurando os pontosde contatoentre ela e a Hsicaeinsteiniana.

Do mesmo modo, muitospsicanalistas tem insistido no pa-rentesco entre a obra de Espino-sa e a de Freud: a teoria espino-sana das relayoes entre a alma eo corpo, das paixoes, do desejo;a teoria da imaginayao como re-layao de espelhamento entre 0eu e 0 outro; a afirmayao de Es-pinosa de que a razao nao ven-ce um sentimento, mas somenteum sentimento vence outro se formais forte e contrario ao primeiro;a concepyao espinosana da pas-sagem da passividade a ativida-de como trabalho interpretativoque a alma realiza sobre seusafetos para descobrir-se comocausa interna deles; tudo isso, di-zem varios estudiosos, leva-nosdiretamente a psicanalise.

Outros interpretes, queacompanharam 0 processo de

"Tudo 0 que e precioso e lac dificilquanlo raro." Espinosa, Etica, Livro IV.

constituiyao do pensamento deMarx (que leu e anotou 0 Tratadoteo/6gico-po/ftico e a Etica), con-sideram inegavel que ele deve aEspinosa muito do que elaborouna teoria da alienayao, na crfticaa ideia burguesa de contrato so-cial, e sobretudo na compreensaodo peso do poder teoI6gico-politi-co na Alemanha, 0 que Ihe permi-tiu fazer a crftica da filosofia poli-tica de Hegel. Para tais interpre-tes, 0 verdadeiro predecessor deMarx nao e Hegel, mas Espinosa.

Como se observa, a filoso-fia de Espinosa tem side lida,

atualmente, como um pensamen-to fundamental para as formula-yoes contemporaneas sobre aNatureza, 0 homem, a hist6ria ea politica. Para quem Ie a obraespinosana, em cujo centro es-tao conceitos que, hoje, parecemdesprovidos de sentido (causa desi, causa imanente, essencia infi-nita, existencia finita, substancia,modo, conatus, virtude etc.), po-de parecer surpreendente queseu autor possa ser consideradonosso contemporaneo. Como se-ria isso possivel?

De maneira geral, fomosacostumados a estudar os fil6so-fos do passado com duas atitudesopostas: ou como inteiramentedeterminados por sua epoca e,portanto, irremediavelmente supe-rados e ultrapassados, ou comogenios que sac eternos por suagenialidade, como se nao houves-se qualquer diferenya entre suaepoca e a nossa. Esses dois habi-tos interpretativos rivais sac ge-meos, pois ambos esquecem 0que e propriamente um classico eo que e uma obra de pensamento.

Um classico, escreveu cer-ta vez Merleau-Ponty, e aqueleque sempre tera alguma coisa anos dizer porque, ao pensar, nosdeu 0 que pensar. No modo comoenfrenta as questoes de seu tem-po e a elas oferece respostas,ensina-nos a interrogar nossopr6prio tempo.

Uma obra de pensamentoe grancfe quando e fecunda. E fe-cunda quando nos faz pensarpara alem deja, e grayas a ela. Enos da a pensar porque cria, porsua propria forya, um campo depensamento no qual aprendemosa ouviruma interrogayao queabre caminho para a nossa.Quanto mais imerso em seu tem-po, mais 0 verdadeiro pensadorse abre para 0 tempo futuro.

o que preocupa Espinosa?A servidao humana, em todas assuas formas, ilusoriamente imagi-nada como Iiberdade. Por essemotivo, voltou seu pensamentopara as c8.usas reais e os efeitosreais da servidao como i1usao deIiberdade. Ao faze-Io, buscou ca-

"Somenle as pessoas Iivres sao gralasumas as oulras e procuram Iigar-sepelos forles layos da amizade."Espinosa, Etica, Livro IV.

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minhos pelos quais a verdadeiraIiberdade pudesse tornar-se de-sejada e acessivel a todos os se-res humanos. '

Localizou em sua epoca oslugares onde se alojavam as cau-sas da servid&o: superstic;ao reli-giosa, tirania teol6gica, despotis-mo politico, ignorancia filos6fica ecientrfica. Buscou as causas des-sas causas e as encontrou emn6s mesmos enquanto seres pas-sionais. Indagou, entao, 0 quepoderia ser feito para governar aspaix6es de maneira a desfazer asuperstiC;ao religiosa, quebrar a ti-rania teol6gica, derrubar 0 despo-tismo politico e alcanc;ar a saberverdadeiro, oferecendo sua pr6-pria filosofia como exemplo des-se caminho Iiberador.

E verdade que a supersti-9ao religiosa e a tirania teol6gicade que fala eram pr6prias do se-culo XVII. Porem, ao analisa-Ias,buscando-Ihes a genese, nao nostorna mais capazes de compreen-der as formas de nossa aliena9aOcontemporanea, cuja origem seencontra na midia, na imprensa,na escola, na propaganda?

E verdade que a despotis-mo monarquico de que fala e 0

das monarquias absolutas do se-culo XVII. Porem, ao analisar agenese do poder violento quecontrol a corpos e almas, benefi-cia os corruptos, persegue os ho-nostos, censura as ideias, nao

nos ajuda a compreender commais clareza os poderes autorita-rios, corruptos e violentos quehoje nos dominam e bloqueiam aIiberdade de pensamento e de ex-pressao, a direito a opiniao e aparticipaC;ao poHtica?

E verdade que a ideia deuma "reforma do intelecto" e tip i-ca do seculo XVII. Mas ao CO(1ce-ber a diferen9a profunda entreconhecer par imagens e opini6ese conhecer por ideias verdadei-ras, entre conhecer por repeti9aOmecanica do que nos ensinam ea exercicio livre do pr6prio inte-lecto, nao nos ajuda a compreen-der melhor par onde passa a dife-ren9a entre i1usao e verdade, irra:-cionalidade e razao?

Ao articular internamentealma e corpo, for9a pensante efor9a imaginante, virtude e apti-dao para pensar e agir, e ao tor-nar inseparaveis a pensamento eo sentimento, a liberdade e a feli-cidade, nao nos oferece uma viaampla - embora ardua e dificil -para compreendermos as rela-90es entre 0 psiquico e 0 fisico, 0

intelectual e 0 afetivo, a autono-mia e a alegria de viver? Que e 0

Deus-Natureza de Espinosa se-nao n6s mesmos quando desco-brimos a for9a para pensar e agirlivremente na companhia dos ou-tros? Que e a filosofia espinosa-na senao a mais belo convite aperder 0 medo de viver em ato?

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•• Nota introdutoria

as textos aqui citados sacretirados das seguintes tradw;:oes:

1. Textos 1 e 2, sobre 0 co-nhecimento e 0 metodo, sao doTratado da reforma da inteligen-cia, tradugao de Uvio Teixeira(Sao Paulo, Ed. Nacional, 1966).a professor Uvio Teixeira prefe-riu "reforma da inteligencia", emlugar de "corregao do intelecto",forma escolhida pelo professorCarlos Lopes de Mattos na tradu-gao feita para a Colegao Pensa-dores, da Abril Cultural.

2. Textos 3, 4, 5, 6, 7 e 8,sobre Deus e 0 homem, sac da Eti-ca, tradugoes de Joaquim de Car-valho (texto 3), Joaquim FerreiraGomes (texto 4) e Antonio Simoes(texto 8) (Sao Paulo, Abril Cultural,Colegao Pensadores,1972) e deLivio Xavier (textos 5, 6 e 7) (SaoPaulo, Ediouro, sId).

3. Textos 9, 10 e 11, sobrea Iiberdade politica, sac do Trata-do teo/6gico-polftico, na tradugaode Diogo Pires Aurelio (Lisboa,Casa da Moeda-Imprensa Nacio-nal,1988).

4. Texto 12, sobre a teo-ria potrtica, e do Tratado polfti-co, na tradug8.o de Manuel deCastro ( Sao Paulo, Abril Cultu-ral, Colegao Pensadores,1972).

5. Ossubtitulos sac meus.6. As tradugoes constan-

tes desta Antologia foram coteja-das com 0 original em latim e,quando necessario, foi dad anova versao de alguns trechos epalavras; elas estao indicadaspor [ ]* e acompanhadas por notade rodape, com a traduc;ao origi-nalmente publicada.

7. Nas traduc;oes portugue-sas toi mantida a gratia do original.

1. a CAMINHO REFLEXIVO: AUTOCONHECIMENTO DO INTE-LECTO E DE SUAS FORQAS

Para isso, a ordem que natural mente temos exige que resuma aquitodos os modos de perceber de que ate agora me servi ingenuamente paraafirmar ou negar alguma coisa, a fim de escolher 0 melhor e come~ar aconhecer minhas fon;as e minha natureza, que desejo levar a perfei~ao.

A consideni-los com atenc;iio, estes modos podem, em suma, redu-zir-se a quatro:

I) Ha uma percepc;iio que temos pelo ouvir ou por algum outro sinalque se designa convencionalmente.

II) Ha uma percepC;ao que se adquire da experiencia vaga, isto e, deuma experiencia que nao e determinada pela inteligencia e que assim e cha-mada porque urn fato ocorre de certo modo e nao temo,> nenhuma outraexperiencia que a ele se oponha e por isso ela permanece firme.

III) Ha uma percepc;iio em que a essencia de uma coisa se conclui deoutra, mas nao adequadamente; 0 que se da quando de algum efeito deduzi-mos sua causa. ou quando sc cOl1clui u parlir de ulgo universal, que vemscmprc ucompanhudo dc ulgulllu oulra propricdadc.

IV) Finalmente ha uma percepC;ao em que uma coisa e percebida sopela sua essencia ou pelo conhecimento de sua causa proxima.

Para que tudo isso fique mais claro, quem valer-me de urn exemplounico, a saber: dados tres numeros, procurar um quarto que esteja para 0

terceiro como 0 segundo esta para 0 primeiro. as comerciantes, habitual-mente,dizem que sabem 0 que se deve fazer para descobrir 0 quarto nume-ro, isso porque ainda nao esqueceram aquela operaC;ao que, pura, sem de-monstrac;ao, aprenderam de seus professores; outros, da experiencia de ca-sas simples, tiram uma regra geral, par exemplo, quando 0 quarto numerose encontra explfcito, como nos seguintes 2, 4, 3, 6, vc-se pela experienciaque 0 segundo multiplicado pelo terceiro e dividido pelo primeiro da a quo-ciente 6. E como veem que se apresenta a proprio numero que ja antes da

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I) conhecer exatamente nossa natureza, que desejamos levar aperfeir;uo e, igualmente, conhecer a natureza das coisas tantoquanto for necessario;

II) para que corretamentese possa saber quais as diferenr;as, asconcordancias e as oposir;6es das coisas;

III) e compreender assim, de modo justo, 0 que podem e 0 que nuopodem admitir;

IV) a fim de confrontar isto com a natureza e a forr;a do homem.Destas condir;6es facilmente surgira a suma perfeir;ao a qual 0

homem pode chegar.

As coisas se passam neste caso como com os instrumentos materiais; emrefcrencia a clcs scria possfvel argumentar do mesmo modo. Assim, pararorjar 0 rcrro c ncccssario um marlclo e, para tcr urn marlelo, e necessariorabrica-Io, para 0 quc suo nccessarios outro martelo e outros instrumentos,os quais, por sua vcz, para que os possufssemos, exigiriam ainda outrosinstrumenlos, e assim ao infinito; c desta maneira se poderia, vumente, que-rer provar que os homens nuo lcm nenhum poder de forjar 0 ferro. Mas domcsmo modo quc os homcns, dc infcio, conscguiram, ainda que dificultosae imperfeitamente, fabricar, com instrumentos naturais, certas coisas muitofaceis e, feitas estas, fabricaram outras ~oisas mais diffceis ja com menostrabalho e maior perfeir;ao e assim, progressivamente, das obras mais sim-ples aos instrumentos, e dos instrumentos a outras obras e outros instru-mentos, chegaram a fabricar com pouco trabalho coisas ta~diffceis; assimtambem a inteligencia pela sua forr;a natural fabrica para si instrumentosintelectuais com os quais ganha outras forr;as para outras obras intelectuaise com estas outros instrumentos ou capacidades de continuar investigando;e assim, progressivamente, avanr;a ate atingir 0 cume da sabedoria.

operar;uo sabiam ser 0 proporcional, daf concluem que essa operar;uo c sem-pre boa para descobrir 0 quarlo numcro proporcional. Os matcmaticos, po-rem, por forr;ada dcmonstrar;uo da 191! Proposir;uo do livro 72 dc Euclides,sabem quais numeros suo proporcionais entre si, isto e, sabcm-no pela na-tureza da proporr;uo e por esta propriedadc sua, segundo a qual 0 produtodo primeiro numero pelo quarto e igual ao produto do segundo pelo tcrcci-rooEntretanto nuo veem a adequada proporcionalidade dos numcros dadose, se a vcem, nuo a veem por forr;adaquela Proposir;uo, mas intuitivamenle,sem fazer nenhuma operar;uo.

Agora, para que entre esses se escolha 0 melhor modo de percepr;ao,e preciso enumerar brevemente os meios necessarios para atingir nossofim, a saber:

Visto, pois, que a verdade nao necessita de nenhum criterio, mas que esuficiente ter a essencia objetiva das coisas ou ideias, (... ) daqui se segue queo verdadeiro metodo nao e procurar urn criterio da verdade ap6s a aquisir;aodas ideias, mas 0 verdadeiro metodo e 0 caminho pelo qual a pr6pria verda-de, ou a essencia objetiva das coisas, ou as ideias (todas estas palavras signi-ficam a mesma coisa) sao procuradas na devida ordem. Ainda uma vez, 0

Metodo deve ~ecessariamente falar de raciocinar e de entender, isto e, 0 Me-todo nao e 0 pr6prio raciocinar para entender as causas das coisas e !liuitomenos e 0 entender as causas das coisas, mas e entender 0 que seja a ideiaverdadeira, distinguindo-a das outras r 11, investigando a natureza dela, a fimde quc, por csse meio, conher;amos nosso podcr de conheccr c nssim obri-guemos nossa mente a conhecer, segundo aquela norma, as coisas que deveconhecer, dando, como auxflio, regras certas, e fazendo tambem que a menteevite fadigas inuteis. Donde se conclui que 0 Metodo nao e outra coisa senaoo conhecimento reflexivo ou a ideia da ideia; e como nao ha idCiada ideia anuo ser que primeiro haja a id6ia, segue-se que nuo ha Metodo a nuo ser quehaja primeiramente uma ideia [verdadeira]2.

2. a METODa REFLEXIVO: A IDEIA VERDADEIRA, iNDICE DESI MESMA, COMO PONTO DE PARTIDA DO METODa

Sabendo agora qual 0 conhecimento que nos e necessario, importaindicar 0 Caminho e 0 Metodo pelos quais conher;amos as coisas que, poressa especie de conhecimento, ha necessidade de conhecer. Para isso, deve-se, primeiramente, considerar que nao ha aqui lugar para uma inquirir;aoinfinila; isto e, para descobrir 0 melhor metodo de investigar a vcrdade, nuoCnecessario outro metoda para investigar 0 melhor metoda de investigar;aodn verdade; e para este segundo metodo nao e necessario urn terceiro eIIssim ao infinito: por esse modo, na verdade, nunca se chegara a um co-nhecimcnto vcrdadeiro e nem mesmo a qualquer especie de conhecimento.

1 Na tradur;ao: "percepr;6es". (N.E.)2 Nao consta da tradur;ao. (N.E.)

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3. A IMAGINAQAO FINALISTA E A IMAGEM DE DEUS COMOMONARCA DO UNIVERSO

Etica, apemdice do Livro I, trad. de Joaquimde Carvalho, p. 117-118.

as homens sup6em comumente que todas as coisas da Naturezaugcm, como eles mesmos, em considera9ao de um fi~, e ate chegam a terpOl' cerlo que 0 proprio Deus dirige todas as coisas para detenninado fim,I)(~isdizcm que Deus fez todas as coisas em considera9iio do homem, e quecnou 0 homem para que este Ihe prestasse cui to. (...) [Isto ac()ntece por9u~.lc:~a]g:.~~e?~:~~~~~orante das causas das coisas e queto-dos desej.inlal---can~iif 0 que Illes e util e de que siio consci()s.

Com efeito, disso resulta, em primeiro lugar, que os seres hu-man os tern a opiniao de que sao livres por estarem conscios das suas~!!s6es e das suas apetencias, e nem por sonhos Ihes passa pela cabe-9a ~ ideia das causas que os dispoem a apetecer e a querer, visto queas Ignoram.

Resulta em segundo lugar que os homens procedem em todos osseus atos com vistas em urn fim, a saber, a utilidade, de que tern apeten-cia; daqui 0 motivo por que sempre se empenham em saber somente ascausas finais dos acontecimentos ja passados e ficam tranqiiilos quandoas ouvem dizer, certamente por nao terem uma causa que os leve a proporduvidas para alem disto. Se nuo puderem, porem, vir a sabe-Ias poroutrem, nada mais tern a fazer do que se voltarem para si mesmos e ret1e-tircm sobre os fins por que habitual mente se determinam em atos seme-Ihantes, c desta mancirajlligam ncccssariamcnic a cOlllplci<;aoIllheill pelllsua propria.

Alem disso como encontram em si e fora deles bastantes coisas quesao meios que contribuem nuo pouco para que alcancem 0 que Ihes e util,como, por exemplo, olhos para ver, dentes para mastigar, vegetais e ani-Illais para alimenta9iio, sol para iluminar, mar para 0 sustento de peixes,sa~.lcvados a considerar todas as coisas da Natureza como meios para a suaullhdadc pcssoaI. E porque sabem que tais meios foram pOl'eles achados enfto dispostos, daqui tiraram motivo para acreditar na existcncia de olltrelllque os dispos para que os utilizassem.

COlli delio, depoiH de 1i1lve/,(~1I1cOIIHldenl(lo Ilfl COlflllfl COIIIO I/l(~lofl,

lliio podilllll lIefl'dillll lilli' /'111<1il!' /',jitilllf'/1I II ill 1/"'/1'111111, /~ dOll /I"lll/li Ill/IIl:Wltllllllllll di/llllll Illllll/WIl lHI/IIIII',PI/O 1'01111" j,lvlldUlIIlIIIIII' 1l1~lllIIduliI'lIlh\que !lollve algllc,II Oil alj(ll/HI n:jl,l.:lIlell dll Natumza, dOl III10/1COl/'O 011 110-

rncnH de liherdadc, e quc cuidararn CIII ludo que Iheu IliuJlcuuefcupell" epara sua lllilidaoe l'izeram looas as coisaH.

Quanto a complei~iio destes seres, como nunca ouviram nada a talrespeito, tambem foram levados a julga-Ia pda que em si notavam. Daquihaverem estabelecido que os deuses ordenaram tudo 0 que existe para usohumano, a fim de os homens Ihes ficarem cativos e de serem tidos em sumahonra; donde 0 fato de haverem excogitado, conforme a propria complei-9uo, diversas maneiras de se render culto a Deus, para que Deus os estimeacima dos outros e dirija a Natureza inteira em proveito da cega apeti9ao einsaciavel avareza .

Assim, este prejulzo tomou-se em supersti9ao e lan90u profundasralzes nas mentes, dando origem a que cada urn aplicasse 0 maximo es-for90 no senti do de compreender as causas finais de todas as coisas e deas explicar; mas, conquanto se esfor9assem por mostrar que na Naturezanada se produz em van (isto e, que nao seja para proveito humano), pare-ce que nuo deram a vel' mais do que isto: a Natureza e os deuses deli ramtal qual os homens.

Repare-se, se me permitem, a que ponto se chegou!No meio de tantas coisas proffcuas da Natureza, nao podiam ter dei-

xado de deparar com bastantes que san nocivas, tais como as tempestades,os terremotos, as doen9as, etc., e estabeleceram que tudo isso aconteciaporque os deuses se irritavam com ofensas que os homens Ihes tivessemfeito ou com pecados cometidos no culto divino.

Embora a experiencia. de cada dia protestasse e patenteasse comexemplossem conta que os eventos beneficos e maleficos atingiam indis-tintamentc indivfduos devotos e fmpios. nem pOI'isso abandonaram 0 inve-terado prejufzo. Foi-Ihes mais ('aeil coloear islo no numcro <lascoisas cujautilidade desconheciam, e assim se conservarem no estado presente e nati-vo da ignodincia, do que destruir toda esta construtura e pensar numa nova.Daqui assentarem por certo que os jufzos dos deuses ultrapassavam muitfs-simo a capacidade humana.

Isso so por si seria causa bastante para que a verdade ficasse parasempre oculLa an gcnero hllmano, se a matematica, que niio sc ocupa definalidades mas apenas da esscncia das figuras e respectivas propriedades,nftodesse a conheccr aos homens lima outra norma da verdade.

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4. A POTENCIA DE DEUS NAo E SENAO A L1VHI::NECESSIDADE DE SUA ESSENCIA

Etica, Livro II, esc6lio da proposivao 3, trad. deJoaquim Ferreira Gomes, p. 139.

o vulgo entende por potencia de Deus a livre vontade de Deus e 0 sellpoder sobre todas as coisas que existem, as quais, por esse fato, SaDcomu-mente consideradas como contingentes. Efetivamente, diz-se que Deus tern 0

poder de tudo destruir e de tudo reduzir ao nada. Vai-se mais longe, e compa-ra-se, muitas vezes, 0 poder de Deus ao dos reis. Mas nos ja refutamos isso(...) e demonstramos que Deus age em virtude da mesma necessidade pelaqual se compreende a si mesmo, isto e, que do mesmo modo que se segue danecessidade da natureza de Deus que Deus se compreenda a si mesmo (0 quetodos admitem unanimemente), segue-se igualmente, com a mesma necessi-dade, que Deus produza coisas infinitas, numa infinidade de modos. Alemdisso, demonstramos (...) que a potencia de Deus nao e senao a essencia ativade Deus; por conseqiicncia, e-nos tao impossfvel conceber que Deus nao agecomo conceber que Deus nao existe. Alem disso, se eu quisesse prosseguir,poderia provar aqui que essa potencia, que 0 vulgo atribui a Deus, nao esomente uma potencia humana (0 que mostra que 0 vulgo imagina Deus comourn homem, ou semelhante a urn homem), mas que implica mesll10 impoten-cia. Nao quero, todavia, retomar tantas vezes 0 mesmo assunto. ( ...) Comefeito, ninguem podeni compreender perfeitamente 0 que quero dizer, se naotoma muito seriamente cuidado em nao confundir a potencia de Deus com apotencia humana ou com 0 direito dos reis.

•• As paix6es

5. A ORIGEM E A NATUREZA DAS PAIXOES: OS AFETOS SAONATURAlS AOS SERES HUMANOS

Etica, prefacio do Livro III, trad. de Livio Xavier, p. 87.

Aqueles que escreveram sobre as Paixoes e a conduta da vida humanaparecem, na sua maioria, tratar nao de coisas naturais que decorrem das leiscomuns da Natureza, mas de coisas que estao fora da Natureza. Na verdade,

U1r-sc-1aque cOllccbcll1 U 1l0lllCmlIa Natureza como um imperio dentro de urnimperio. Supoem, com efeito, que 0 homem perturba a ordem da Naturezamais que a segue, que tern sobre suas proprias a<;oes urn poder absoluto e tiraap~nas del: ~esmo sua determina<;ao. Procuram pois a causa da impotencia eda mconstancla humanas nao na potencia comum da Natureza, mas em nao seiqual vfcio da natureza humana e, por essa razao, choram por causa dela, riem,desprezam-n~, ou ~s mais das vezes a detestam; quem sabe mais eloqiiente-n:e~te ou _maJ~sutllmente censurar a impotencia da alma humana e tido pordIVIno. Nao tern faltado decerto homens eminentes (a cujo labor e industriaconfessamos dever muito) para escrever sobre a reta conduta da vida muitascoisas ex~elentes e dar aos mortais conselhos cheios de prudencia; mas, quantoa determmar a natureza e as for~as das Paixoes e 0 que rode a alma, por seulado, para as govemar, ninguem que eu saiba ainda 0 fez. Na verdade, 0 celebreDescartes, se bem que tenha admitido 0 poder absoluto da alma sobre suasa<;6.es,tentou, ao que sei, explicar as afec~6es humanas pelas suas causas pri-melras e mostrar ao mesmo tempo por que vias a Alma pode ter sobre as Pai-xoes um imperio absoluto; mas, na minha opiniao, nao mostrou ele senao apenetra~ao do seu grande espfrito, como estabelecerei em lugar proprio. Porenquanto, quero referir-me aqueles que preferem detestar ou ridicularizar asPaix6es e as a<;6es dos homens, a conhece-Ias. A eles decerto parecera sur-preen?ente que eu empreenda tratar dos vfcios dos homens e da sua inepcia amaneml dos geometras e que queira demonstrar por urn raciocfnio rigoroso 0que nao cessam de proclamar contrario a razao, vao, absurdo e digno de horror.Mas eis aqui a minha razao. Nada acontece na Natureza que possa ser atribuidoa urn vicio. existente nela, ela e sempre a mesma, com efeito; sua virtude epoder de a<;aosao os mesmos em loda parle, islo C. as leis e regras da Natureza,con forme as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, sao, em todaparte e sempre, as mesmas; por conseqiiencia, 0 unico meio de conhecer analurcza das coisas. sejam c1as quais l'orem. deve scr lambcm 0 mcsmo: isto csempre pelas leis e regras universais da Natureza. As Paixoes, pois, do Mio, d~calera, da inveja, etc., consideradas em si mesmas, decorrem da mesma neces-sidade ~~da. mesm:l virtude da Nalureza que as outras coisas singulares; porconsequencIa admltem certas causas, poronde SaDc1aramente eonhecidas, etern certas propriedades tao dignas de conhecimento como as propriedades deuma outra coisa qualquer cuja considera<;iio apenas nos causa prazer. Tratareipois da natureza das Paixocs c de suas l'on;as, do poder da Alma sobre elas,segundo 0 mesmo metoda com que nas partes precedentes tratei de Deus e daAlma, e considerarei as a<;6es e apetites humanos, como se se tratasse de li-nhas, superficies e de salidos.

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•• A etica

6. PERFEi~AO, IMPERFEI~AO, 80M E MAU: MODOS DEIMAGINAR E DE PENSAR

Etica, prefacio do Livro IV, trad. de Livio Xavier, p. 139-140.

Quem resolveu fazer uma coisa e a levou a termo ~ira que a p.r6priacoisa e perfeita, e nao s6 ele, mas tambem todo aquele que tlver c.onhec~do oupretendido conhecer 0 pensamento do autor daquela coisa e a sua mtenc;ao. Se,por exemplo, se vir uma obra (que suponho inacabada) e se se ~~uber qu~ .aintenc;ao do autor e edificar uma casa, dir-se-a que a cas a e imperfelta, e pe~el-ta, ao contrario, logo que se vir que ela foi levada ao termo que 0 seu a~to~ tm~aresolvido faze-Ia alcanC;ar. Mas, se se vir uma obra a qual nao se VIUJamalscoisa alguma de semelhante, e se se ignorar 0 pensamento do artifice, nao s.epodera saber certamente se ela e perfeita, ou imperfeita. Tal parece ser a pn-meira significaC;ao destes vocabulos. Quando, todavia, os homens comec;ar:l1~a formar ideias gerais e a representar no pensamento modelos de casas, edlfl-cios, torres, etc., e tambem a preferir certos modelos a outros, aconteceu quecada qual chamou perfeito 0 que via concordar com a ide~a gera~ formad~ porele das coisas da mesma especie, e imperfeiC;ao ao contrano, aqUllo que via sermenos conforme ao modelo concebido par ele, ainda que 0 artifice a tivesseexecutado inteiramente segundo 0 seu pr{)prio desfgnio. Parece que nuo ha ou-tra razao para que se chamem perfeitas ou imperfeitas as coisas da Natureza,isto C, nuo reitas pela mao do homcm; os homens, com efeito. se a~~s~llI~a~~ma formar, tanto das coisas naturais. como dos produtos do scu artlllclO, Idell~sgerais que tem a estas par modelos; e creem que a natureza :s toma ~m consl-deraC;ao (segundo eles. esta s6 age com um lim) e as propoem a SI.mesmoscomo modelos. Quando, pois, veem fazer-se, na Natureza, alguma cOisa poucoconforme ao modelo concebido por eles mesmos, para uma coisa da mesmaespecie, creem que a pr6pria Natureza falhou ou pecou e supoem que e~a?~i-xou imperfcita a sua obra. Assim, vemos que os homens chamam. de ordlllar~o,perfeitas ou imperfeitas as coisas naturais mais em virtude de um preconceltodo que pelo verdadeiro conhecimento destas coisas. Mostramos (...) que a Na-tureza nao age com urn fim; este Ser etemo e infinito que ~hamamos Deus o~Natureza age com a mesma nccessidade com que cxistc. POlSa mcsma nccessl-dade da Natureza pela qual ele existe e tambem, como fizemos ver (...), a ne-cessidade pela qual de age. Portanto, a razao ou causa par que Deus 011 a Natu-

reza.l age ou existe e uma e sempre a mesma. Nuo existindo para nenhum tim,ele nao age, pais, tambem por nenhum; e. como sua existcneia, sua aC;aotam-bem nao tern princfpio nem fim. a que se chama causa final, alias, nao e senaoo desejo humano, na medida em que e considerado como princfpio ou causaprimitiva de uma coisa. Quando, por exemplo, dizemos que a habitac;ao foi acausa final de tal ou qual casa, certamente nao entendemos nada mais senaoque um homem. tendo imaginado as vantagens da vida domcstica, teve desejode construir uma casa. AhabitaC;ao, pois, enquanto considerada como causafinal, nao e senao um desejb singular, e este desejo e real mente uma causaeficiente. considerada primeira, porque os homens ignoram comumente as cau-sas dos seus desejos. Com efeito, sac des, como ja disse muitas vezes, consci-entes de suas ac;6es e desejos. mas ignorantes das causas pelas quais sac deter-minados a desejar alguma coisa. (...) Portanto, a perfeiC;ao e a imperfeiC;ao naosao. na realidade, senao modos de pensar, quera dizer, noc;6es que nos acostu-mamos a formar porque comparamos entre si indivfduos da mesma especie oudo mesmo genero; eis por que (...) entendo par perfeiC;ao e realidade a mesmacoisa. Temos 0 costume, na verdade, de reduzir todos os indivfduos da Nature-za a um tinico genera, chamado mais geniI, ou, por outra, a noc;ao de ser quepertence absolutamente a todos as indivfduos da Natureza. Na medida, pois,em que reduzimos os indivfduos da Natureza a este genero e que os compara-mos entre si, e na medida em que achamos que uns tern maior entidade ourealidade que os outros, dizemos que sac mais perfeitos uns que outros, e en-quanta Ihes atribufmos alguma coisa como um limite, um fim, uma impoten-cia, quc cnvolva uma ncg;\l;ao. n6s os chamamos impcrfcitos porque nao are-tam nossa alma semelhantemente aqueles que chamamos perfeitos, e nao por-que Ihcs f~IIlCalguma coisa que Ihes perten~a ou porque a Natureza tenha peca-do. Nada, com elcilo. pertence £1naturcza de uma coisa.scnao 0 que decorre danecessidade da natureza de uma causa eficiente, e tudo que se segue da necessi-dade da natureza de uma causa eftciente acontece necessariamente.

Quanta ao bom e ao mau, nao indicam eles tambem nada de positivonas coisas, consideradas, pelo men os, ern si mesmas, e nao senao modos de.pensar au noc;oes que formamos porque comparamos as coisas entre si.Uma s6 coisa podc ser ao mcsmo tcmpo hoa c ma, e tambem indiferente.Por exemplo, a Musica e boa para 0 melanc6lico, ma para 0 aflito; para 0

surdo nao e boa nem ma. Se bem que seja assim, contudo e precise conser-var estes vocabulos. Desejando, com efeito, formar uma idcia do homemque seja como que um modele da natureza humana colocado diante de

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nossos olhos, nos sera de utilidade conservar estes vocabulos no sentidoque disse. No que vai seguir, pois, entenderei por born 0 que sabemos,com certeza, .ser urn meio de nos aproximar, cada vez mais, do modelo danatureza humana que nos propomos. Por mau, ao contnirio, aquilo quesabemos, com certeza, impedir que reproduzamos este modelo. C···)

7. RAZAO E L1BERDADE: A ALMA INTERPRETA SEUS AFETOSE as ENCADEIA INTERIORMENTE

Quando mio somos dorninados por paixoes que .wio cO/ltrdrias anossa natureza, ternos 0 poder de ordenar e concatenar as afecfoes docorpo segundo a ordem do [intelecto r.

As paixoes que SaDcontrarias a nossa natureza, C •• ·) sao mas namedida em que impedem a alma de conhecer. C ••. ) Enquanlo, pois, naosomos dominados por paixoes que SaDcontrarias a nossa natureza, a po-t<~nciada alma, pela qual ela se esfor~a por conhecer Coo.), nao e impedida,e tern portanto, ate enta~, 0 poder de formar ideias claras e distintas e dededuzi-Ias urnas das outras Coo.); e, conseqiientemente Coo.), ate entao, te-mos 0 poder de ordenar e concatenar as afec~oes do corpo segundo aordem do entendimento.

Por este poder de ordcnar c concatcnar corrctamentc as afec~6esdo corpo, podemos fazer com que nao sejamos facilmente afetados depaixoes mas. Com efeito (oo.), requer-se maior for~a para reprimir paixoesordenadas e concatenadas de acordo com a ordem do entendimento, doque se elas SaDincertas e vagas. 0 melhor, pois, que temos a fazer, en-quanto nao temos urn conhecimento perfeito das nossas paixoes, e conce-

ber uma conduta reta de vida, ou, Por outra, princfpios certos de vida,imprimi-Ios na memoria e aplid-Ios conlinuamente as coisas particularesque se encontram freqiientemente na vida, para que a nossa imagina~aoseja largamente influenciada por eles e que nos sejam eles sempre pre-sentes. Pusemos por exemplo entre as regras da vida Coo.) que 0 6dio deves,er vencido pelo amor e pela Generosidade, e nao compensado por urnOdio recfproco. Para ter este preceito da Razao sempre presente quandofor util, deve-se pensar muitas vezes nas ofens as que se fazem os homensuns aos outros, e de que modo e por que meio sao repelidas 0 melhorposslvel pela Generosidade; desta maneira, reuniremos a imagem da ofen-sa a imagina~ao deste princfpio, que nos sera sempre presente Coo.) quan-do nos ofenderem. Se tivermos tambcm presente a considera~ao de nossointeresse verdadeiro e do bem que produz uma amizade mutua e uma so-ciedade comum, e, alem disso, se nao perdermos de vista que 0 supremocontentamento interior nasce da conduta reta na vida Coo.), e que os ho-mens, como os outros seres, agem por uma necessidade da Natureza aofensa entao, isto e, 0 6dio que nasce dela habitual mente, ocupani u~aparte minima da imagina~ao e seni facilmente superada; ou se a Ira quenasce ordinariamente das ofens as mais gravesnao e superada tao facil-men Ie, 0 sera, enlrclanlo, se bem quc nao scm rtuluaC;aoda alma, em urnespac;o de tempo muito menor do que no caso de nao term os de antemaomcditado ncstas coisas C •.• ). Do mcsmo modo, deve-se pensar na firmezada alma para afastar 0 Temor; deve-se enumerar e imaginar muitas vezesos perigos comuns da vida e como se pode evita-Ios e supeni-Ios peIapresen~a de esplrito e for~a de animo. Mas deve-se notar que, ordenandonossos pensamentos e imagens, e preciso sempre atender ao que (oo.) hade born em toda coisa, a fim de que sejamos assim sempre determinadosa agir por uma paixao de Alegria. Se, por exemplo, alguem ve que gostamuito da Gloria, que pensa no bom uso que dela pode fazer e no fim emvirtude do qual se deve procura-la, e assim como nos meios de adquiri-las, mas nao no seu mau usa ou em sua vaidade propria e na inconstanciados homens, ou em outfaS coisas desta especie, nas quais ninguem pensasem desgosto; por tais pensamentos, com efeito, os mais ambiciosos sedeixam afligir em alto grau quando desesperam de alcan~ar as honras queambicio~am, e querem parecer ponderados quando na verdade espumamde Ira. E certo, pois, que SaDdesejosos de Gloria aqueles que mais cla-mam a respeito do abuso dela e da vaidade do mundo. Isto, alias, nao eproprio dos ambiciosos, mas c comum a todos aqueles a qucm c contrariaa fortuna e que san impotentes de animo. Quando e pobre, com efeito, 0

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avaro nao cess a de falar do abuso do dinheiro e dos vfcios dos ricos. 0que nao tern outro efeito senao 0 de se afligir a si proprio e m?strar aosoutros que Icva a mal nao somcntc a pr6pria pobrcza, mas a nqucza dcoutrem. Da mesma maneira ainda, aqueles que foram deixados por suasamantes s6 pensam na inconstflllcia das mulhcres e na sua falsidade eoutros defeitos femininos bem decantados; c tudo isso c esquccido sc asamantes os recebem de novO. Portanto, quem cuida de governar as suaspaixoes e seus apetites unicamente pelo amor da Liberdade se esfon;ara,tanto quanto possa, por conhecer as virtudes e suas causas, e P?r encher.oanimo daquela felicidade que nascc do conhecimento vcrdadclro das pm-xoes; nao, de modo algum, por considerar os vfcios dos homens nem porimprecar contra eles e nem se comprazer com uma falsa a~ar~nc.i~ ~eliberdade. E quem observar diligentemente esta regra (0 que na? ~ ~lflCll)e a exercitar certamente podera em breve espa<;o de tempo dmglr suasa<;oessegundo lo que dita nossa Razaol~ (...)

Etica, Livro V, esc61io da proposi<;ao 41 , trad.de Livio Xavier, p. 211-212.

Parece que 0 vulgo esta persuadido de coisa diferente. A maioria doshomens, com efeito, parece crer que e livre na medida em que e permitidoaos homens obedecerem ao apetite sensual, e que eles renunciam a sua au-tonomia enquanto SaDobrigados a viver segundo os preceitos da lei divina.Creem, assim, que a [Moral]6 e a Religiao e, em absoluto, tudo que se rel~-ciona a fortaleza da alma SaDfardos de que esperam ser desonerados depOlsda morte para receber 0 pre<;oda servidao, isto e, da Moral e da Religiao; enao so esta esperan<;a como tambem, e principal mente, 0 temor de serempunidos por duros supHcios depois da morte os induz a viver segu~do asprescri<;oesda lei divina tanto quanto 0 permitem a sua pequenez e Impo-tencia. E se os homens nao tivessem esta esperan<;a e este temor, se cres-sem, ao contrario, que as almas perecem com 0 corpo e que os infelizes,sobrecarregados com 0 fardo da Moral, nao tern diante de si outra vida,voltariam ao seu natural e quereriam tudo governar segundo 0 seu apetitesensual e obedecer mais a fortuna do que a si mesmos. 0 que nao me pare-

5 Na traduvao: "segundo 0 imperio da Razao". (N.E.) •6 Na traduvao: "Moralidade". Neste escolio, todas as vezes em que se Ie

"Moral", Iia-se "Moralidade". (N.E.)

ce menos absurdo do que alguem, porque nao acreditasse poder nutrir eter-namente seu corpo com bons alimentos, preferisse saturar-se de venenos esuhstancias mortffcras; ou porquc Sllpuscssc quc a alma nuo c ctcrna oumortal, preferisse ser louco e viver scm Razuo; absurdos tais que nao mere-cem quase ser notados.

8. A FELICIDADE NAa E a PREMia DA VIRTUDE MAS APROPRIA VIRTUDE '

Etica, Livro V, proposi<;ao 42, trad. de AntonioSimoes, p. 300-301.

A felicidade nao e 0 premio da virtude, mas a propria virtude; e naogozamos dela por refreannos as paixocs, mas, ao contnirio, gozamos delapOI'podermos refrear as paixoes.

A felicidade consiste no amor para com Deus (...), amor esse quenasce do terceiro genero de conhecimento (...); e, por conseguinte, esteamor, [sendo uma a<;aoe nao uma paixao, deve ser referido a alma enquan-to e ativa e, por conseguinteF, e a propria virtude. 0 que era a primeira

, coisa que havia que demonstrar. Depois, quanto mais a alma goza deste: amor divino, ou seja, da felicidade, tanto mais compreende (...), isto e (,..),

tanto maior eo poder que cia tern sobre as afec<;oese (...) tanto menos sofrepor parte das afec<;oesque SaDmas; e, por conseguinte, pelo fato de a almagozar deste amor divino, ou seja, da felicidade, tem poder de refrear aspaixoes. E como 0 poder do homem para refrear as afec<;oesconsiste so nainteligencia, ninguem, por consequencia, goza da felicidade por refrear asafec<;oes,mas, pelo contnlrio, 0 poder de refrear as paixoes nasce da pro-pria felicidade.

7 Na traduvao: "na medida em que age, deve ser referido Ii alma' e por con-sequencia". (N.E.), ' ,

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Esc6lio

Com estas coisas terminei tu~o 0 que eu queria demonstrar ~ respei-to do poder da alma sobre as [paixoes]8 ~ da li~erdad~ da alma. Ve-se; poraqui, qual seja 0 valor do sabio e como e supenor ao Ignora.nte, que so~gelevado pela paixuo. 0 ignorante, com efeito, alem de ser aglta~o de mUltasmaneiras pelas causas externas e de nunca ~~oz~rdo v.erda~elro content.a-mento intimo, vive, ainda, quase sem consClenCIa de Sl ~esmo, ~e Deus edas coisas e, ao mesmo tempo que ele deixa de sofrer, delxa tam?em de ser.

P I t ,. nquanto que 0 sabio na medida em que se consldera comoe 0 con rano, e ' .tal dificilmente se perturba interiormente, mas, consciente de Sl mesmo,.deD:us e das coisas, em virtude de uma certa necessidade ~ten~a, nunca delx.ade ser, mas goza sempre do verdadeiro contentament? In,tenor. Se ~ cam:-nho que eu mostrei conduzir a este estado pareee mUlto arduo, pod.e, tod.l-via encontrar-se. E com certeza que deve ser arduo aquilo que mUlt~ rara-me~te se encontra. Como seria possivel, com efeito, se a salva\uo estl~essea mao e pudesse encontrar-se sem grande tra~alho; ~ue :I~:osse neghgen

9-

ciada por quase todos? [Mas tudo 0 que e preclOso e tao dlficil quanto raro] .

•• A polftica

9. POR QUE EMPREENDER A INTERPRETAQAOHISTORICO-CRITICA DAS SAGRADAS ESCRITURAS

Tratado teo/6gico-polftico, prefacio, trad. de DiogoPires Aurelio, p. 112-113.

A que ponto 0 medo ensandece os homens! ? medo c .<~c<~usaqueorigina, conserva e alimenta a supersti\ao. Se, depOis ~o quc J<ldlssemo~,alguem quiser ainda exemplos, veja-se ~Iexandre, que so se tornou sup~rst~~cioso e recorreu aos adivinhos quando, as portas de Susa, co~ne\ou. p~la pnmeira vez a temer pela sua SOrte ( ...); assim que venceu Dano, deslstlu logode consul tar os adivinhos e aruspices. Ate 0 momento em que, uma vezmais aterrado pela adversidade, abandon ado pelos Bactrianos, atacado pelos

B Na tradw;:ao: "afec<;:6es". (N.E.) .. - - .. ' " (N E)9 Na tradu<;:ao:"Mas todas as coisas notavels sao tao dlflcels como raras. "

Citas e imobilizado devido a uma ferida, recaiu (... ) na superstir;iio, esse 10-gro das mentes !Iumallas, e mandou Aristalldro, em quem deposita va umacOllfiallfa cega, exp/oror por meio de sacrificios a evo/ufiio futuro dos ocon-tecimentos. Poderiamos acrescentar muitos outros exemplos que provam comtoda a c1areza 0 mesmo: os homens s6 se deixam dominar pela supersti\uoenquanto tem medo; todas essas coisas que ja alguma vez foram objecto deum futil culto religioso nao sao mais do que fantasmas e delfrios de um carac-ter amedrontado e triste; final mente, e quando os Estados se encontram emmaiores dificuldades que os adivinhos detem 0 maior poder sobre a plebe esao mais temidos pelos seus reis. Mas como tudo isto, ao que presumo, esuficientemente conhecido de todos, nao insistirei mais no assunto.

Se esla c a causa da supersliyao, ha que com:luir, primeiro, que todosos homens Ihe estao natural mente sujeitos (digam 0 que disserem os quejul-gam que cIa dcriva do facIo dc os mortais tcrcm todos uma quaIqucr ideia,mais ou menos confusa, da divindade); cm segundo lugar, que eia deve serextremamente varia vel e inconstante, como todas as ilusoes da mente e osacessos de furor; e, por ultimo, que s6 a esperan~a, 0 6dio, a c6lera e a fraudepodem fazer com que subsista, pois nao provem da razao, mas unicamente dapaixao, e da paixao mais eficiente. Dai que seja ta~ facil os homens acabaremvftimas de supersti~oes de toda a especie quanto e diffcil conseguir que elespersistam numa s6 e na mesma supersti~ao. Precisamente porque 0 vulgopcrsistc na sua miscria c quc nunca csta par muilo tcmpo tranquilo e s6 Iheagrada 0 quc c novidade e 0 que ainda nao 0 enganou, inconstuncia esta quelem sido a causa de inumeraveis IUl11ullose gucrras atrozcs. Na vcrdade (...),niio IIlI nada lI1ais eficaz do que a ,\'upersti{'{/o para governar as multidoes.Por isso e que estas sao facilmente levadas, sob a capa da religiao, ora aadorar os reis como se fossem dcuses, ora a exccra-Ios e a detesta-Ios comose fossem uma peste para lodo 0 gcnero humann. Foi, de resto, para prevc'nireste perigo que houve sempre 0 cuidado de rodear a religiao, fosse ela verda-deira ou falsa, dc culto e aparato, de modo a que se revestisse da maior gravi-dade e fosse escrupulosamente observada pOl' todos. ( ...)

Retlectindo sobre tudo isto - a saber, que a luz natural e nao s6desprezada, mas ate condenada pOl' muitos como fonte de impiedade; queas inven~oes humanas passam pOl' documentos divinos e a crendice por fe;quc as controversias dos fil6sofos desencadeiam na Igreja e no Estado asmais vivas paixoes, originando os 6dios e disc6rdias mais violentos, quefacilmente arrastam os homens para subleva~oes e tantas outras coisas quescria longo descrcvcr aqui - fiquci seriamcnte decidido a empreender urnnovo c intciramcnte livre cxamc da Escritura, rccusando-me a afirmar ou a

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admitir como sua doutrina tudo 0 que dela nao ressalte com toda a clareza.Com esta precau~ao, elaborei urn metodo para interpretar os Livros Sagra-dos e, uma vez na posse dele, comecei por perguntar, antes de mais, 0 que ea Profecia, como se revelou Deus aos profetas, porque foram estes escolhi-dos por ele, isto e, se foi por terem pensamentos sublimes acerca da nature-za e de Deus ou em virtude apenas da sua piedade. Resolvidas estas ques-toes, facilmente pude concluir que a autoridade dos profetas so tem algumpeso no que diz respeito 11 vida pnitica e 11 verdadeira virtude. Quanto aoresto, pouco nos interessam as suas opinioes.

10. POR QUE LEIS SOBRE A OPINIAO S~O INUTEIS EPERIGOSAS PARA A VIDA POLITICA

Tratado teoI6gico-polftico, cap. 20, trad. de DiogoPires Aurelio, p. 369-370.

Se, finalmente, considerarmos que a fidelidade de cada um ao Esta-do, assim como a fidelidade a Deus, s6 se pode reconhecer pelas obras, auseja, pcla caridade para com 0 proximo, nao oferece a menor duvida queum Estado, para ser bom, deve conceder aos individuos a mesma liberdadede filosofar que a fe, tal como vimos, Ihes concede. Claro que reconhe<;oque uma talliberdadc traz por vezes certos inconvcnientes; mas scra que jahouve alguma coisa instituida com tanta sabedoria que daf nao pudesse sur-gir depois qualquer inconveniente'! Qucm tudo qucr fixar na Ici acaba !)(~rassanhar os vfcios em vez de os corrigir. Aquilo que nao se pode prOlblrtem necessariamente que se permitir, nao obstante os danos que muitas ve-zes daf advem. Quantos males nao derivam da luxuria, da inveja, da avidez,do alcoolismo e doutras coisas parecidas? E, no entanto, elas sao toleradasporque nao esta no poder das leis evita-Ias, apesar de realmente se tratar devfcios. Donde, por maioria de razao, cleve ser penniticla a libcrclaclcclepen-samento, que e sem duvida uma virtude e nao pode coarctar-se. Alem deque esta nao provoca nenhum inconveniente que nao possa, como a seguiryou demonstrar, ser evitado pela autoridade dos magistrados. Isto, para janao falar de quanto ela e absolutamente necessaria para 0 avan~o das cien-cias e das artes, as quais so podem ser cultivadas com exito por aquelescujo pensamen to for livre e inteiramente descomprometido.

Mas suponhamos que esta liberdade pode ser reprimida e os homensdominados ao ponto de nao se atreverem a munnurar uma palavra que con-

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Univ. Sao Judaa Tao..

trarie 0 prescrito pelos poderes soberanos; mesmo assim, nunca estes hao-deconseguir que nao se pense senao 0 que eles querem: 0 que iria necessaria-mente acontecer era os homens pensarem uma coisa e dizerem outra, cor-rompendo-se, por conseguinte, a fidelidade imprescindfvel num Estado e fo-mentando-se a abominavel adula<;ao,a perffdia e, dai, os ardis e a completadeteriora<;aodos bons costumes. Longe, porem, de uma coisa dessas poderacontecer, ou seja, dc todosse limitarem a dizer 0 que esta prescrito, quantamais se procura retirar aos homens a liberdade de expressao mais obstinada-mente des resistem. Nao, como e obvio, os avaros, os bajuladores e outros deanimo impotente, para quem a suprema felicidade consiste em contemplar asmoedas no cofre e ter a barriga cheia, mas aqueles a quem uma boa educa-<;:10,a intcgridadc dc costumcs c a virtudc tornaram ainda Illais Iivrcs.

as homens, na sua maior parte, sao constitufdos de tal maneira quenao ha nada que cles menos suportem do que verem as opini6es que julgamverdadeiras rotuladas de crime e aquilo que os estimula 11 piedade para comDeus e para com os homens considerado como delito. Por isso acontece, asvezes, detestarem as leis, atreverem-se a recorrer 11 for~a contra os magistra-

I dos e julgarem que e a coisa mais honesta e nao uma vergonha fomentar comtal pretexto subleva<;6ese comeler toda a espccie de crimes. Sendo, portanto,evidente que a natureza humana e assim constitufda, segue-se que as leis emmateria de opiniao contemplam nao os criminosos, mas os homens livres, esao feitas nao tanto para reprimir as nUIUS,como para provocar as pessoas debem, alem de que nao podem manter-se sem grave risco para 0 Estado. A islaacresce que leis destas sao de todo inuteis: com efeito, quem acredita que saocorrcctas as opiniocs quc as leis condcnalll nao pode obedecer a essas mes-mas leis; quem, pelo conlrario, as rejeita como falsas considera urn privilegioas leis que as condenam e sentir-se-a por isso de tal maneira triunfante que 0

magistrado, mesmo que queira, ja nao consegue depois revoga-Ias.

11. A L1BERDADE DE PENSAMENTO E DE EXPRESSAO EESSENCIAL PARA A SEGURANc;A E A PAZ POLiTICAS

Tratado teoI6gico-polftico, cap. 20, trad. de DiogoPires Aurelio, p. 371.

... leis que determinam aquilo em que cada um deve acreditar eproibem que se diga ou escreva qualquer coisa contra esta ou aquelaopiniao foram frequentemente institufdas a titulo de concessao ou ate

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de cedencia a ira dos que nao podem suportar as naturezas livres, masque, por uma nao sei que terrivel autoridade, podem facilmente trans-formar em raiva a devo~ao da plebe amotinada e instiga-Ia contra quemeles quiserem. Quanto mais nao valeria conter a ira e 0 furor do vulgo,em vez de promulgar leis inuteis que so podem ser violadas por aqueIesque prezam as virtudes e as artes, leis que reduzem 0 Estado a uma situ-a~ao tal que c incapaz de defender os homens livres! Que coisa piorpode imaginar-se para tllll Estado que serem mandados para () exfliocomo indesejaveis homens honestos, so porque pensam de maneira di-ferente e nao sabem dissimular? Havera algo mais pernicioso, repito,do que considerar inimigos e condenar a morte homens que nao pratica-ram outro crime ou ac~ao criticavel senao 0 pensarem Iivremente, e fa-zer assim do cadafalso, que e 0 terror dos delinquentes, um palco belfs-simo em que se exibe, para vergonha do soberano, 0 mais sublime exem-plo de tolerancia e de virtude? Porque os que sabem que san honestosnao tern, como os criminosos, medo de morrer nem imploram clemcn-cia; na medida em que nao os angustia 0 remorso de qualquer feito ver-gonhoso _ pelo contrario, 0 que fizeram era honesto -, recusam-se aconsiderar castigo 0 morrer por uma causa justa e tern por uma gloria 0

dar a vida pela liberdade. Que exemplo podera entao ter ficado da mor-te de pessoas assim, cujo ideal e incompreendido pelos fracos e moral-mente impotentes, odiado pelos revoltosos e amado pelos homens debem? Ninguem, certamente, af colhe exemplo algum, a nao ser para osimitar ou, pelo menos, admirar.

Se se quiser, pois, que se aprecie a fidelidade e nao a bajula<;ao, sese quiser que as autoridade's soberanas mantenham intacto 0 poder e naosejam obrigadas a fazer cedencias aos revoltosos, tera' obrigatoriamentede se conceder a liberdade de opiniao e governar os homens de modo aque, professando embora publicamente opinioes diversas e atc contrarias,vivam apcsar diss() cm conc<lrdia. E nao h:l dlivida que csta maneira de,governar e a melhor e a que traz menos inconvenicntes, porquanto c a quemais se ajusta a natureza humana. Com efeito, num Estado democnitico(que e 0 que mais se aproxima do estado de natureza), todos, como disse-mos, se comprometeram pelo pacto a sujeitar ao que for commumentedecidido os seus actos, mas nao os seus jufzos e raciocfnios; quer dizer,como e impossfvel os homens pensarem todos do mesmo modo, acorda-ram que teria for<;a de lei a opiniao que obtivesse 0 maior numero devotos, reservando-se, entretanto, a autoridade de a revogar quando reco-nhecessem que havia outra melhor. Sendo assim, quanto menos Iiberdade

de opiniuo se concede aos homens, mais nos afastamos lde nosso estadonatural e da forma mais natural de governo [a democracia], e, por conse-guintc, mais violcnto co podcrjlll.

12. 0 MORALISMO TORNA OS FILOSOFOSINEPTOS EM POLiTICA

Os filosofos concebem as emo~oes que se combatem entre si, emnos, como vlcios em que os homens caem por erro proprio; e por isso quese habituaram a ridiculariza-Ios, deplora-Ios, reprova-Ios ou, quando que-rem parecer mais morais, detesta-Ios. Julgam assim agir divinamente eelevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda a especie de lou-vorcs a uma natureza humana que em parte alguma existe, e atacandoatraves dos seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens,efectivamente, nao tais como sao, mas como eles proprios gostariam quefossem. Oaf, por conseqtiencia, que quase todos, em vez de uma Etica,hajam escrito uma Satira, e nuo tinham sobre Polftica vistas que possamser postas em pratica, devendo a Polftica, tal como a concebem, ser toma-da por Quimera, ou como respeitando ao domfnio da Utopia ou da idadedo ouro, isto e, a urn tempo em que nenhuma institui~ao era necessaria.Portanto, entre todas as ciencias que tern uma aplica<;ao, e a Polftica 0

campo em que a teoria passa por diferir mais da pnitica, e nao ha homensque se pense menos proprios para governar 0 Estado do que os teoricos,quer dizer, os filosofos.

10 Na traduc;:ao: "do estado mais parecido com 0 de natureza e por conse-guinte, mais violento e 0 poder". (N.E.) , ,

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•• Questoes para reflexao

1. Como tem side interpretada a obra de Espinosa, desde 0 seculoXVII?

2. Como estava organizada e dividida a comunidade judaica sefaradide Amsterda?

3. Qual 0 efeito das divisoes da comunidade judaica de Amsterda so-bre a vida de Espinosa?

4. Que foi 0 Seculo de auro holandes?5. Quais as consequelncias, para a obra de. Espinosa, das divis6es

polftico-teol6gicas da Holanda?6. Por que a filosofia espinosana e um racionalismo absoluto?7. Quais os intrumentos criados por Espinosa para garantir a raciona-

lidade filos6fica?8. Que e uma imagem? Uma ideia inadequada? Uma ideia adequada?9. Por que a verdade (ou a ideia adequada) e indice de si mesma?

10. Quais sac os generos de conhecimento (ou modos de percepQao)para Espinosa?

11. Quais as teses de Espinosa, resultantes de sua interpretaQao das 'Sagradas Escrituras?

12. Que sac substancia e modo?13. Que significa a expressao "Deus ou Natureza" (Deus sive Natura)?14. Por que, em Espinosa, contrariamente a tradiQao teol6gica e meta-

fisica, necessidade e liberdade nao sac ideias opbstas?15. Que e 0 homem? Por que ele e uma parte da Natureza?16. Que e 0 corpo humano? Por que e um individuo complexo?17. Que e a alma humana?18. Por que Espinosa supera as dificuldades do dualismo cartesiano?19. Qual a inovaQao espinc>sana quanta as ideias de paixao e aQao?20. Que e 0 conatus? Por que Espinosa fala em apetite corporal e de-

sejo psiquico?21. Como, quando e por que somos causas inadequadas e adequa-

das? Como passamos da passividade a atividade?22. Que e a servidao humana?23. Que sac 0 bem, 0 mal e a virtude?24. Que e a liberdade?25. Por que a felicidade nao e 0 premio da virtude, mas a pr6pria

virtude?

Alfao. Afetos ou sentimentos, ideias ou pensamentos, atitudes ou com-portamentos dos quais somos a causa ou os agentes.

Afeclfao. Toda mudanQa, alteraQao ou modificaQao de alguma coisa,seja produzida por ela mesma, seja causada por outra coisa.

Atributo. Qualidades, propriedades ou predicados essenciais de umasubstancia. Espinosa altera essa concepQao tradicional afirmandoque os atributos nao sac propriedades ou predicados da substan-cia, mas as qualidades essenciais que constituem 0 pr6prio ser dasubstancia (0 Pensamento e a Extensao sac atributos da substan-cia divina). A Extensiio constitui a essencia da materialidade, istoe, as leis universais e necessarias que regem 0 mundo fisico doscorpos segundo nexos e encadeamentos causais ordenados anecessarios. a Pensamento constitui a essencia da inteligibilida-de, isto e, dos encadeamentos e nexos necessarios e ordenadosdas ideias verdadeiras que dao sentido ao mundo e 0 explicam.

Causa adequada. Nosso conatus como causa total do que faz, sente epensa; somos causa adequada na aQao porque nela somos acausa interna necessaria do que fazemos, sentimos e pensa-mos. A virtude e a liberdade consistem em deixarmos de ser cau-sa inadequada e nos tornarmos causa adequada.

i Causa de si. a ser que se causa a si mesmo ou que se produz a simasmo.

Causa eficiente. A causa que produz um efeito, 0 agente que faz algu-ma coisa.

Causa eficiente imanente. A causa que produz 0 efeito sem separar-sedele, po is 0 efeito e uma propriedade interna da propria causa auma expressao determinada dela. No caso das filosofias imanen-tistas, como na de Espinosa, nao ha criaQao do mundo, pois eitee um efeito interno e eterno do proprio ser de Deus, causa quenao se separa do mundo, mas seexprime nele. Donde a celebreexpressao espinosana: Deus ou Natureza, Deus sive Natura.

Causa eficiente transitiva. A causa que produz um efeito e se separadele, de sorte que depois da aQao causal ha dois seres indepan-dentes (a causa e 0 efeito) e sem ligayao, cad a qual com sua vidapr6pria. E.assim que Deus e imaginado na teologia e metaffsicacriacionistas: Deus e diferente do mundo e transcendente a ele.

Causa inadequada. Nosso conatus como causa parcial do que faz,sente e pensa; somos causas inadequadas na paixao porquenesta somos determinados a fazer, sentir e pensar pela aQao decausas externas mais fortes e poderosas do que n6s.

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Conatus. Termo latina que significa esfor90 de, ou esfor90 para; nafilosofia do sEkulo XVII, e usado a partir da nova fisica que, aoapresentar 0 princfpio de inercia (um corpo permanece em movi-mento ou em repouso se nenhum outro corpo atuar sobre elemodificando seu estado), torna possivel a ideia de que todos osseres do universo possuem a tend€mcia natural e espontfmea aautoconserva9ao e se esfor9am para permanecer na existencia.

Conting€mcia. 0 que pode acontecer ou d~ixar de acontec~r; 0 qu~pode ser ou nao ser; 0 que pode ser dlferente do que e; 0 que emeramente possivel; 0 acidental.

Definiyao nominal. A que determina 0 nome de alguma coisa; nela, 0predicado explicita 0 conteudo do sujeito.

Definiyao real. A que descreve 0 modo como 0 o~j.eto definid.o foi pro-duzido, determinando suas causas necessanas; 0 predlcado ex-plicita a causa da qual 0 sujeito definido e 0 efeito. ., .

Defstas racionalistas. Pensadores dos seculos XVII e XVIII que Identlfl-cam Deus como uma inteligencia ou razao suprema que governao mundo enquanto Natureza Hsica submetida a leis rigorosas decausa e efeito; Deus nao e pessoa transcendente, nao realiza mi-lag res e nao se relaciona com os homens como um pai ou um rei.

Fariseus. Intelectuais da fase final do Reino de Juda que consideram asalva9ao do povo judaico dependente .d~ respeito inco~di?ionale total as leis reveladas por Deus a MOises, no Monte Sinai, e astransmitidas por Moises aos seus desc~n?entes sob a f9r~~ d~Lei Oral, codificadas por escrito pelos sablos do povo. Sao Inlml-gos dos saduceus. .

Ideia. No pensamento de Espinosa, 0 termo "ideia" e tomado em do IS

sentidos principais: a ideia como um conceito que nossa menteforma (fer ideia de alguma coisa); a ideia como a natureza denossa pr6pria alma (ser ideia do corpo e ser ideia ?e, ~i ~esma).Nos dois casos, porem, ha um tra90 comum: uma Idela e um ato(ato do intelecto para ter ideia; e a existencia da m~nteou almacomo for9a para ser ideia, isto 8, um modo do atnbuto Pensa-mento). No sentido de fer ideia, ha dois tipos de ideias: as imagi-nativas ou inadequadas e as intelectivas ou adequadas.

Ideia adequada. A ideia verdadeira de alguma coisa, porque conhecetanto a causa que produz essa coisa quanta a causa que produza pr6pria ideia em n6s.

Ideia inadequada. A imagem de alguma coisa sem 0 conhe?i~e~t~ :an-to da causa real da coisa quanta da causa real da propna Idela.

Inteligibilidade. A racionalidade perfeita daquilo q~e e conhecido pel?intelecto ou pela inteligencia; 0 conteudo raclonal de alguma COI-sa, tal como apreendido pelo intelecto ou pela inteligencia.

Inteligfvel. 0 que e conhecido e compreendido pelo intelecto ou inteli-gencia, sem auxilio dos 6rgaos sensoriais da percep9ao; 0 quepossui sentido apreensivel pelo intelecto.

Ladino. Lingua falada pelos judeus da Peninsula Iberica; hoje, designaos dial!3tos preservados pelos sefaradis na Grecia, Turquia, nor-te da Africa e Palestina, assemelhando-se a um castelhano ar-caico. Etimologicamente, e forma derivada de "Iatino".

I Liberdade. Identificada, tradicionalmente, com 0 livre-arbitrio da vonta-de para escolher entre varias oP90es. De acordo com Espinosa, aliberdade nao e um ato de escolha voluntaria, mas a capacidadepara sermos os agentes ou sujeitos autonomos de nossas ideias,sentimentos e a90es, de acordo com a causalidade interna de nos-so conafus.

Livre-arbftrio. Conceito criado pelo cristianismo para explicar a causado pecado original cometido por f.dao e dos pecados que, de-pois dele, os homens cometem. E a liberdade da vontade paraescolher entre varias OP90es. Para alguns, 0 livre-arbitrio sem agra9a divina s6 leva ao erro, ao vido e ao pecado; para outros,basta que a vontade seja bem guiada pela razao para que 0 Ii-vre-arbitrio fa9a as escolhas certas. Essa n09aO pressupoe queos acontecimentos do mundo sac contingentes e que dependemda vontade humana para se realizarem ou nao. E ela que permi-te afirmar que 0 homem e responsavel por sua salva9ao tantoquanta por sua perdi9ao. 0 Iivre-arbitrio cria um problema te6ri-co grave para 0 cristianismo, po is nao se sabe como concilia-Iocom a ideia de um Deus onisciente (que conhece e sabe tudodesde toda eternidade) eonipotente (que pode tudo quanta quei-ra, desde toda eternidade) que sabe de antemao se um homempecara ou se salvara. Como 0 homem poderia ser consideradolivre para escolher se, desde a eternidade, Deus ja decidiu 0 des-tino de cada um dos seres humanos?

Milenarismo. Cren9a de que havera, no fim dos tempos, uma batalhaentre Cristo e 0 Anticristo, com a vit6ria de Cristo, que instaurarano mundo um Reino de Mil Anos de felicidade e abundancia, justi-9a e paz; e nesse sentido que se diz aguardar 0 Juizo Final. Mui-tos consideram 0 milenio um periodo de"descanso para os justos,antes de serem recebidos por Deus para a eternidade nos ceus.

Mishnah. Compendio ou colegao de todas as leis judaicas; ensino oralda lei e da jurisprudencia judaicas para a aplica9ao pratica dalegisla9ao.

Modo. Tradicionalmente, maneiras variadas e variaveis de ser e deatuar de uma substancia (seriam os comportamentos de umasUbstancia). Espinosa altera essa concepgao tradicional dizen-

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do que 0 modo a um efeito determinado e uma expressao de-terminada da subsUincia, isto a, 0 modo a um ser real e naouma maneira variavel de existir e de atuar de uma substancia.o movimento e 0 repouso, por exemplo, sac modos infinitos dasubstancia divina; as idaias verdadeiras que formam 0 intelectodivino sac modos infinitos da substancia. Nosso corpo e ummodo fin ita do atributo Extensao; nossa alma e um modo fin itado atributo Pensamento.

Natureza Naturada. Os modos infinitos e finitos imanentes a substan-cia divina, produzidos pela atividade dos atributos, que consti-tuem 0 mundo em que vivemos.

Natureza Naturante. A substancia divina com seus infinitos atribu-tos infinitos como causa de si e causa imanente de todas ascoisas.

Necessidade. 0 que a exatamente tal como a e jamais poderia serdiferente do que a; 0 que acontece e acontecera sempre, semexcec;:ao; 0 que existe e nao poderia deixar de existir; 0 encade-amento, a conexao e a ordem dos fatos, das coisas, dos aconte-cimentos e das ac;:oesdivinas, naturais e humanas.

Noc;:ao comum. Para a tradic;:ao, a noc;:aocomum eram idaias inatas egerais existentes na razao de todos os seres racionais. Espinosaaltera esse sentido tradicional e chama de noc;:ao comum 0 co-nhecimento racional das relac;:oes internas necessarias entre umtodo e suas partes.

Paixao. Afetos ou sentimentos causados em nos por coisas ou causasexteriores a nos e das quais somos os receptores passivos.

Saduceus. Classe rica e dominante do final do Reino de Juda que con-sidera sagrada apenas a Lei Escrita, dada por Deus a Moisas noMonte Sinai, e julga a Lei Oral simplesmente humana e adapta-da as necessidades sociais e hist6ricas do povo judaico.

Substancia. Ser que existe em si mesmo e por si mesmo, sem depen-der de nenhum outro. Espinosa acrescenta: que pode ser co nce-bide por si mesmo, sem necessidade de nenhum outro, e que ecausa de si.

Talmud. Comentario da Mishnah que permite determinar, para cadacaso, situac;:ao, pes!)oa ou fato, urn preceito legal que oriente aconduta e 0 julgamento, em conformidade com a Lei Escrita ecom a Lei Oral.

Torah. A lei hebraica; a lei dada por Jeova a Moisas, no Monte Sinai, econsignada por escrito, formando 0 c6digo religioso, polftico, so-cial e cultural dos hebreus.

•• Bibliografia

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Etica; demonstrada a maneira dos ge6metras (em cinco partes ou Iivros)Tratado polflieoCompendio de gramatiea hebraicaTratado do calculo algebrico do arco-frisCalculo de probabilidades .Cartas

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