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Dario Drezzadore CUM-MUNUS: COMUNIDADE E PODER IMANENTE EM ROBERTO ESPOSITO Dissertação de Mestrado em Estudos Europeus, orientado pelo Professor Doutor Alexandre Franco de Sá, apresentada ao departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2014

Cum-munus. Comunidade e Poder Imanente Em Roberto Esposito

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  • Dario Drezzadore

    CUM-MUNUS:COMUNIDADE E PODER IMANENTE EM ROBERTO ESPOSITO

    Dissertao de Mestrado em Estudos Europeus, orientado pelo Professor Doutor Alexandre Franco de S, apresentada ao departamento de Histria, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

    2014

  • Faculdade de Letras

    CUM-MUNUS:COMUNIDADE E PODER IMANENTE EM ROBERTO ESPOSITO

    Ficha Tcnica:

    Tipo de trabalhoTtulo

    AutorOrientador

    Identificao do Cursorea cientfica

    Especialidade/RamoAno de apresentao

    Nota

    Dissertao de MestradoCUM-MUNUS: COMUNIDADE E PODER IMANENTE EM ROBERTO ESPOSITODario DrezzadoreDoutor Alexandre Franco de S2 Ciclo em Estudos EuropeusFilosofiaFilosofia Poltica201418 valores

  • Imagem da capa: Leonardo da Vinci, Studio per un gruppo di cavalieri per la Battaglia di Anghiari, 1503-1504

  • Resumo

    Objecto do presente trabalho a evoluo dos modelos prevalecentes de exerccio do

    poder na modernidade, evoluo assente numa confrontao com o pensamento de Roberto

    Esposito. Quando a comunidade pensada como uma proteo face ao seu perigo principal

    a exposio violenta alteridade ela assume internamente a forma de uma comum diviso.

    No paradigma social imunitrio que Esposito individua, atravs duma abordagem etimolgica

    e genealgica, vida e poder no so pensados como originariamente separados e

    sucessivamente unidos, mas como as duas componentes de um nico n que assume sentido

    unicamente a partir da relao entre elas. O poder no exterior s dinmicas da vida mas

    vive juntamente com ela: deste ponto de vista, se a doena fortalece a vida, a sua presena

    portanto necessria no interior do prprio corpo comunitrio.

    Para Michel Foucault, a caracterstica principal da biopoltica o facto de o poder

    assumir a vida como objecto e como objectivo. A anlise de Esposito visa estabelecer uma

    ligao profunda entre a prpria biopoltica e a questo da imunidade, fazendo dessa ltima

    categoria a engrenagem portante de toda a modernidade. Para uma biopoltica que leve em

    conta a vida, em sentido afirmativo, preciso assumir o perigo da comunidade a objecto de

    reflexo, sem instrumentaliz-lo nem neg-lo atravs da imunidade.

    O pensamento da imanncia, pano de fundo nas anlises de Esposito, representaria

    tambm uma das peculiaridades da filosofia italiana, capaz unicamente de se dotar duma

    linguagem centrada nas categorias de vida e poder, e nas relaes por elas produzidas.

    Palavras-chave: comunidade, imunidade, biopoltica.

  • Abstract

    The object of this work is the evolution of the main models of exercise of power

    within modernity, an evolution which follows Roberto Esposito's thought. When community

    is considered as a protection towards its own main peril the violent exposure to otherness

    it assumes the internal shape of a common division. Within the immunitarian paradigm drawn

    by Esposito, through an etymological and genealogical approach, life and power can't be

    treated as two originally separate concepts which are later joined together. Quite on the

    contrary, they are the two components of the same unique block, which gains its meaning only

    from their reciprocal relation. Power is not exterior to life dynamics, but these two categories

    live together. From this viewpoint, the illness strengthen life as its presence becomes

    necessary within the communitarian body.

    As Michel Foucault puts it, the main characteristic of biopolitics is the fact that power

    takes life as its object and target. Esposito's analysis aims to establish a deep relation between

    biopolitics and immunity, turning the latter the most important gear of the whole modernity.

    In order to think biopolitics affirmatively, it is necessary to assume the danger of the

    community as the main object of reflection, avoiding its exploitation and avoiding its negation

    through immunity.

    The thought of immanence, as a common standpoint in Esposito's work, represents one

    peculiarity of the whole Italian philosophical thought. This tradition seems to be able to use

    and produce a language purely centered on the categories of life and power, and the relations

    they produce.

    Key-words: community, immunity, biopolitics.

  • CUM-MUNUS: COMUNIDADE E PODER IMANENTE EM ROBERTO ESPOSITO

    PLANO DA DISSERTAO

    Introduo.....................................................................................................1

    I. Comunidade e imunidade a partir de Roberto Esposito...........................5

    II. Crise do modelo transcendente do poder sobre a vida.........................141. O reino da igualdade de Rousseau..........................................14 2. Famlia e corpo na modernidade................................................233. Biopoltica em Michel Foucault.................................................31

    III. O poder imanente................................................................................441. Paradigma Social Imunitrio......................................................442. Teologia Poltica.........................................................................543. Imunidade e Biopoltica..............................................................61

    IV. Questes abertas..................................................................................681. Para uma biopoltica afirmativa.................................................682. Mundanizao da filosofia italiana............................................70

    Bibliografia................................................................................................73

  • Introduo

    A reflexo que aqui pretendemos levar a cabo desenvolve-se, em larga medida, a partir

    de uma confrontao com o pensamento do filsofo italiano contemporneo Roberto

    Esposito, levando em causa a sua abordagem ao tema comunidade e s novas formas de

    exerccio de poder sobre a vida1.

    A forma comunitria moderna em que a vida se organiza moldada segundo aquilo

    que Esposito chama paradigma social imunitrio: O elemento de novidade que eu prprio

    introduzi no debate, naquela que me parece ser a primeira elaborao sistemtica do

    paradigma imunitrio, tem a ver, por um lado, com uma simetria contrastante com o conceito

    de comunidade, ele prprio relido luz do seu significado originrio, e, por outro, com a sua

    especfica caracterizao moderna2. A chave interpretativa que Esposito entende fornecer,

    virada inicialmente para a prpria comunidade, com base na etimologia e em contraste com a

    filosofia poltica de tipo tradicional, no pode deixar de representar, num segundo momento, o

    ponto de apoio para a interpretao de quanto deixado em suspenso por Michel Foucault, na

    dcada de setenta, sobre o tema da biopoltica.

    Objecto do presente trabalho a evoluo dos modelos prevalecentes de exerccio do

    poder na modernidade, eles prprios relidos luz da anlise de Esposito: a teoria clssica da

    soberania vive um paradoxo que assenta na crise dum modelo de poder que transcende a vida,

    e sobre ela se exerce de forma direta e imposta, abrindo a possibilidade para um modelo do

    poder imanente, em que vida e poder no so pensados como originariamente separados e

    sucessivamente unidos, mas como as duas componentes de um nico n que assume sentido

    unicamente a partir da relao entre elas.

    Desde a filosofia poltica clssica de Thomas Hobbes, a comunidade pensada como a

    resoluo de um estado natural conflituoso atravs da criao dum vnculo contratual, assente

    na legitimao de um poder soberano cuja prerrogativa a excluso do conflito do prprio

    corpo institudo. Jean-Jacques Rousseau quem mais enfrentou Hobbes no seu prprio

    1 So os temas abordados na trilogia Communitas (1998), Immunitas (2002) e Bios (2004).2 Roberto Esposito, Bios. Biopoltica e filosofia, trad. M. Freitas da Costa, Lisboa, Edies 70, 2010, p. 80.

    1

  • terreno, remontando ao discurso sobre o estado de natureza e tentando deslegitimar uma

    comunidade fundada no medo derivado do Estado. No que diz respeito a esta filosofia, a

    communitas de Esposito no pode deixar de evidenciar uma diferena estrutural no redutvel

    apenas a uma diferente abordagem no procedimento heurstico. til especificar que, na

    tradio europeia, a passagem entre os sculos XVIII e XIX consequentemente idade das

    luzes, sada do ancien rgime e revoluo industrial precedente ao avano capitalista

    representa o momento em que os elementos mais tpicos do nosso tempo comeam a

    cristalizar-se, e consequentemente, o momento em que leituras radicalmente novas, e longe da

    linguagem contratualista, encontram o espao para se afirmar.

    Para percebermos a estrutura dum paradigma cuja hiptese quanto mais actual,

    tentaremos inicialmente dar conta da relao entre as categorias de comunidade e imunidade,

    repercorrendo a anlise etimolgica do ncleo comum entre estes dois termos, o latino munus.

    Este termo veiculador dum aspecto ao mesmo tempo relacional e expropriante, conotando-

    se essencialmente como uma negao de subjectividade, de propriedade, de identidade. Para

    Esposito, o paradigma social imunitrio ope-se ao significado mais intenso da communitas,

    pois a categoria da imunidade representa sim a diversidade em relao condio do outro,

    mas ela sobretudo uma prctica de preveno face a um risco: a negao de uma negao. A

    immunitas pressupe a presena do mal que tem de contrastar a alteridade e define-se

    como reaco a este, funcionando assim como uma barreira protectora, isto , metendo

    morte a capacidade relacional prpria da comunidade. Um tal vnculo comunitrio levanta o

    problema da recproca separao entre os indivduos, o paradoxo de um mundo do nada em

    comum. Como e desde quando possvel pensar os indivduos modernos, tornados imunes

    de todos os males, mas cados num estado de comum isolao?

    A direcionar este pensamento individualizamos o discurso de circularidade entre vida

    e poder, eventualmente orientado a favor da vida em si, onde no se trata de omitir a velha

    teoria do poder soberano, mas de descrev-la e inseri-la num discurso de utilidade.

    Consequentemente, o mesmo vlido relativamente s anlises de Michel Foucault volta do

    conceito de biopoltica, cujas intuies fundamentais so aqui de primria importncia. A

    viragem biopoltica torna evidente como no exista uma teoria geral do poder, mas

    unicamente formas heterogneas em constante transformao. A ttulo de exemplo suficiente

    pensarmos como Foucault assume, no primeiro volume da Histria da sexualidade (1976),

    todo o discurso volta da sexualidade como condio do novo poder sobre a vida. Mas

    2

  • porqu essa incluso sempre maior da vida nas dinmicas do poder? Por um lado, Foucault

    questiona a relao entre economia e poder, isto , se o poder tem, ou no, como razo e como

    propsito final servir a economia3. Mas por outro lado, a questo que aqui se impe refere-se

    s duas interpretaes possveis da biopoltica: uma essencialmente afirmativa, promotora e

    potenciadora da vida; outra negativa, que prev a incluso da morte para a conservao da

    vida, e potencialmente virada para uma tanatopoltica4.

    Considerando a comunidade moderna como o lugar onde vida e poder se encontram, a

    interpretao da biopoltica que a partir da se constri no se refere unicamente ao mbito

    filosfico, mas surge no interior do prprio horizonte poltico: No momento em que a

    poltica inclui a vida como objecto de interveno directa, acaba por reduzi-la a um estado de

    absoluta iminncia5. Uma poltica que assume a vida como objecto e como objectivo corre o

    risco de esmag-la no seu contedo biolgico. com vista a ultrapassar esta mesma

    dominao do poder sobre a vida, tentando procurar um ponto de interrupo no circuito

    dialctico entre a sua negao e a sua proteco, que Esposito pode afirmar de ter encontrado,

    no paradigma de imunizao, a chave interpretativa que parece escapar a Foucault6. O seu

    discurso coloca-se transversalmente ao longo de um percurso que comea no campo jurdico,

    com o delito hobbesiano da comunidade, e se estende at todo o horizonte da vida, portanto

    biolgico, relacional e social. Da o relevo decisivo que assumir a tentativa de pensar uma

    poltica da vida que leva em conta o corpo, individual e social, e a sua defesa moral, tica e

    enfim prctica. A pergunta de fundo que emerge a seguinte: qual a perspectiva imunitria

    que conjuga biopoltica e modernidade?

    De acordo com o pensamento da imanncia que a partir das anlises de Esposito

    assume forma, tentaremos finalmente delinear os traos de uma biopoltica afirmativa. Para

    Esposito, a subverso da biopoltica do seu xito destrutivo, de promoo da vida, no passa

    pela proposta de modelos de aco poltica, ou de pensar a vida em funo da poltica, mas

    sim de pensar a poltica na forma mesma da vida, como dois elementos inseparveis. Na

    3 Michel Foucault, Il faut dfendre la socit, Curso no Collge de France 1975-1976, trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, preciso defender a sociedade, Lisboa, Livros do Brasil, 2006, p. 29.

    4 De tnatos, morte. No momento em que o nazismo estabelece um limiar entre uma vida que tem de ser salvaguardada integralmente, enquanto portadora de valores mximos, e uma vida que pode pelo contrrio ser sacrificada em nome duma viso ariana, estamos dentro da tanatopoltica. A consequncia que a vida reverte no seu contrrio. Antonio Gnoli, Ma chi decide veramente sulle vostre vite?, em La Repubblica, Milo, 15 outubro 2004.

    5 Roberto Esposito, Immunitas, pp. 17-18: Nel momento in cui la politica assume la vita come oggetto di intervento diretto, finisce per ridurla ad uno stato di assoluta imminenza.

    6 Roberto Esposito, Bios, p. 74.

    3

  • concluso da trilogia dedicada comunidade, Esposito parece reconhecer como os passos

    mais difceis para o pensamento moderno sejam os de repensar as categorias da filosofia

    poltica clssica, por um lado, e de se libertar das categorias teolgico-polticas modernas, por

    outro. Isto significaria encarar um percurso que tem o seu fulcro na ideia originria inerente

    communitas, e que no seja per se baseado na sua mitificao. Num horizonte de pensamento

    destinado a alargar-se, como demonstra a sucessiva e mais recente obra do autor, o que em

    Bios se abre a possibilidade de um pensamento que insere a constituio das normas no

    interior do movimento da vida e faz da vida a fonte primria de instituio das normas7.

    Paralelamente a estes problemas, que so de natureza ascendente, colocaremos

    tambm uma questo final de carcter peculiar. Mantendo Roberto Esposito como interlocutor

    principal, a tese proposta a da filosofia de produo italiana representar uma excepo em

    comparao com o grande panorama da filosofia europeia. Segundo Esposito, a contnua

    referncia prpria contemporaneidade representa a abordagem mais tpica da filosofia

    italiana, cuja caracterizao principal estaria na incapacidade de se dotar de um lxico

    especializado e auto-referencial. No que concerne estritamente a tentativa de inscrever a

    filosofia num quadro nacional, Esposito demonstra-se um pensador original: at que ponto a

    filosofia, como a matemtica, a medicina ou a msica, no tem conotaes locais mas, pelo

    contrrio, universais? Para Esposito, no se trata de delimitar a filosofia a um espao

    geogrfico, ou de individuar um determinado territrio: a especificidade de uma filosofia -

    nos dada pelo conjunto de caractersticas ambientais e lingusticas que remetem a uma

    especfica maneira de pensar. Enfim, se o papel da filosofia de colocar as justas questes,

    poderemos eventualmente perguntar se exista ou no uma filosofia italiana8.

    7 Ivi., p. 265.8 Roberto Esposito, Pensiero vivente. Origine e attualit della filosofia italiana, Turim, Einaudi, 2010, p. 13.

    4

  • I. Comunidade e imunidade a partir de Roberto Esposito

    Para podermos levar as declinaes da comunidade ao nvel de profundidade com que

    Esposito entende enfrentar o nosso tempo, de primeira importncia escavar a fundo na sua

    etimologia: cum-munus. Nesse sentido, as primeira pginas de introduo a Communitas.

    Origine e destino della comunit, e similarmente, de Immunitas. Protezione e negazione della

    vita so extremamente fecundas. A densa reconstruo do munus, base de toda a estrutura

    argumentativa, introduz no discurso aquele ncleo original de sentido sem o qual seria

    impossvel seguir o pensamento do filsofo italiano9.

    O significado primeiro que os dicionrios atestam do latino munus (pl. -eris, pl. arq.

    moenera) ofcio, ddiva, ou dom, como mostra a afinidade com os vocbulos officium, onus,

    donum. A sua especificidade o facto de no ser tanto um simples dom unilateral, mas aquele

    dom que no se pode no dar10, um dever constante, o dom que obriga a um intercmbio, a

    uma relao. Em comparao tanto com a economia do dom-intercmbio, pensada a partir da

    antropologia de Marcel Mauss11, ou com o donum latino, que mais simplesmente denota a

    gratuitidade, o munus s indica o dom que se d e no o que se recebe1213. Desta forma

    emerge a possibilidade de pensar o dom comunitrio como um dever: por um lado,

    Esposito admite que devolver o munus exprima bem mais do que a acepo de munis, o

    9 A categoria interpretativa fundamental nesse trabalho segundo o seu promotor, a mxima expresso do tempo contemporneo no ser tanto a communitas, mas o seu oposto conceptual e etimolgico: a immunitas, e a ideia de imunidade do corpo, individual e comunitrio, correlativa.

    10 Roberto Esposito, Communitas: origine e destino della comunit, Turim, Einaudi, 1998, p. X.11 Est aqui em jogo a ligao que Mauss estabelece entre as cerimnias rituais, presentes em micro sociedades

    arcaicas, e a economia baseada na troca de dons, precedente economia de mercado. Nas relaes estabelecidas pelo intercmbio de um donum, ontem como hoje, Mauss evidencia a presena duma lgica debitria, do retorno destes mesmos dons, que segundo Esposito j implcita na raiz do- (Communitas, p. XI). Nesse sentido, o potlc, o mais clebre dos rituais arcaicos, o exacto contrrio do nosso sistema econmico, cujos processos de intercmbio tm um sentido aquisitivo, de apropriao. Da que o munus, enquanto ddiva, sujeito a uma remunerao, e portanto sempre um dar: ele no pode determinar uma estrutura rgida, de apropriao ou acumulao, mas o seu contrrio. Ao mesmo modo, a communitas s poder ser entendida como ponto de partida e nunca de chegada.

    12 Roberto Esposito, Communitas, p. XII.13 O sentido de munus como o dom que se faz, mas no o que se recebe, secundria, mas muito frequente:

    Significat officium cum dicitur quis munere fungi. Da munero como doar, e remunero como recompensar. Alfred Erneut e Antoine Meillet, Dictionnaire tymologique de la langue latine, [1932], Paris, Librairie C. Klincksieck, 4 edio, 1959, p. 422, munus.

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  • adjectivo prprio da pessoa grata; por outras palavras, ele reconhece de forar o elemento que

    torna o dom um dever. Mas por outro lado, tenta demonstrar que o grato quem deve

    fortemente alguma coisa da qual foi beneficirio e da qual chamado a dar conta numa forma

    que o torna plenamente 'a disposio', ou mais drasticamente ' merc', de um outro14. Assim,

    ao filtrar a semntica do genrico dom atravs das estreitas malhas do munus, o resultado

    refinamento do seu sentido, no qual reconduzimos sim a ideia de mutualidade, mas enquanto

    vnculo de coniuratio. A communitas, a sociabilidade do cum- relacionada ao -munus,

    constituda por uma doao recproca entre os seus membros: o pr em comum desta relao.

    Para Esposito, aquela comunidade que no se sustente por uma ideia de dom iminente e

    obrigatrio, posto necessariamente sua base, e que no esteja intrinsecamente dotada do

    aspecto relacional, no se desenvolve a no ser ao longo duma linha antinmica

    communitas.

    Em sentido geral, o termo comunidade evoca a ideia do ter-em-comum, o que

    partilhado por um certo nmero de pessoas, que se reflete primeiramente na partilha de algo

    constituinte e prprio dos sujeitos uma origem, um territrio, uma lngua dentro da forma

    na qual a vida se organiza. Uma tal semntica do proprium, da comum pertena, faz com que

    a comunidade seja pensada como um nico e um todo, e como uma propriedade que se

    acrescenta aos sujeitos, tornando-os sujeitos tambm de comunidade. Ela assim pensada

    como uma organizao colectiva da vida, caracterizada por vnculos profundos de pertena,

    mesmo quando em visvel contraposio com as caractersticas individualistas da sociedade

    moderna. precisamente em contraste com este modelo que Esposito utiliza anlise das

    especificidades do munus: para ele, a conceptualizao da comunidade proveniente de certa

    filosofia, como no caso da Gemeinschaft de Ferdinand Tnnies, mas tambm do sentido

    comum, no conseguiria chegar ao seu fundo portante e estrutur-la plenamente. A mesma

    abordagem, considerada como a mitificao da communitas, visvel tambm nos estudos

    de Max Weber em campo sociolgico e filosfico, no neo-comunitarismo americano de fim

    de sculo XX, e at nas vrias ticas comunicativas15. O paradoxo de um tal olhar

    14 Roberto Esposito, Communitas, p. XII: deve fortemente qualcosa di cui stato beneficiario e di cui chiamato a rendere conto in una forma che lo mette 'a disposizione', o pi drasticamente 'in balia', di qualcun altro.

    15 Ivi., p. IX. Em referncia a Tnnies e Weber, Esposito sublinha que nem a comum pertena referida ao territrio, mesmo se subjectivamente sentida, no altera as coisas: o territrio apropriao como matriz originria de toda a propriedade sucessiva. A referncia s ticas comunicativas sobretudo pensado em relao a Jrgen Habermas, como o prprio Esposito sublinha repetidamente.

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  • comunidade est no facto de os sujeitos partilharem um prprio, de a coisa pblica ser

    identificada com o seu oposto16. A communitas, e o adjectivo communis que lhe corresponde,

    adquire fora quanto mais pensada como em oposio semntica do proprium: o comum

    indica exactamente o que no prprio, o que pertence a mais do que um, a muitos ou a

    todos e portanto que 'pblico' em contraposio a 'privado', ou 'geral' em contraste com

    'particular'17. Na communitas preciso retornar o dom recebido, ou seja ela obriga os seus

    membros ao cumprimento de um onus circular, desvinculando-se de qualquer estrutura rgida.

    O lado mais problemtico de uma tal partilha comunitria encontra-se na questo da

    incompleta, ou falhada, realizao do cum. Afirma Esposito que o munus no implica de

    modo nenhum a estabilidade de uma posse e muito menos a dinmica aquisitiva de um

    ganho mas perda, subtrao, cesso: um 'penhor', ou um 'tributo', que se paga de forma

    obrigatria18. Pragmaticamente mais forte do que um donum, o munus leva consigo o

    carcter de expropriao, de negao: o que a communitas partilha no uma propriedade ou

    uma pertena. No um ter, mas, pelo contrrio, uma dvida, um compromisso, um dom-para-

    fazer. portanto o que determinar, que est para se tornar, que virtualmente j , uma

    falta19. Uma tal ideia de dever na sua dimenso social, de unio, expe os sujeitos a um

    vazio, constitudo pela falta de propriedade e de controle sobre o outro. A partilha crucial

    deste munus denota-se por um carcter extremamente pesado, incmodo: os sujeitos so

    expropriados da prpria subjectividade inicial; esto ao mesmo tempo virados para o comum,

    caracterizado do outro, e descentrados de si prprios. A communitas no tem assim a tarefa de

    confirmar as identidades pessoais, ou de fortalecer o proprium, ao contrrio ela empurra os

    homens para fora-de-si, para uma relao exigente e perigosa: O que os membros da

    communitas partilham , acima de tudo, uma expropriao da sua substncia que no se limita

    ao seu 'ter' mas que aflige o seu prprio 'ser sujeitos'20.16 Ivi., p. IX.17 Ivi., p. X: Esso ci che pertiene a pi di uno, a molti o a tutti e dunque che 'pubblico' in

    contrapposizione a 'privato', o 'generale' (ma anche 'collettivo') in contrasto con 'particolare'. E acrescenta: Em todas as lnguas neolatinas, mas no s, 'comum' (commun, comun, common, kommun) o que no prprio; o que comea l onde o prprio acaba (In tutte le lingue neolatine, ma non solo, 'comune' (commun, comun, common, kommun) ci che non proprio; che comincia l dove il proprio finisce.

    18 Ivi., p. XII: Non implica in nessun modo la stabilit di un possesso e tanto meno la dinamica acquisitiva di un guadagno ma perdita, sottrazione, cessione: un 'pegno', o un 'tributo', che si paga in forma obbligatoria.

    19 Ivi., p. XIII: Il munus che la communitas condivide non una propriet o una appartenenza. Non un avere, ma, al contrario, un debito, un pegno, un dono-da-dare. E dunque ci che determiner, che sta per divenire, che virtualmente gi , una mancanza.

    20 Ivi., p. 148: Ci che i membri della communitas condividono [...] piuttosto una espropriazione della propria sostanza che non si limita al loro 'avere', ma che coinvolge ed intacca il loro stesso 'essere soggetti'.

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  • Se no desta forma que a comunidade se apresenta aos nosso olhos, pois estamos, de

    alguma forma, protegidos face a este risco do comum, como que ela ento se constitui? A

    resposta vem de uma outra categoria interpretativa, a immunitas tal como o adjectivo

    immunis que, enquanto vocbulo privativo, ou negativo, deriva o prprio sentido do que

    ele nega, ou do que resulta privado, isto , o munus21. Por meio de um estranhamento, o

    imune dispensado do onus, e protege a sua identidade22. Uma tal semntica imunitria

    assume forma no cruzamento entre duas linhas hermenuticas: por um lado, verifica-se nas

    instituies, portadoras do carcter necessariamente inibitrio da civilizao23, segundo o

    mecanismo de despensa, desobrigao, no sentido de Entlastung; e por outro lado,

    individuando a tese de os sistemas funcionarem no descartando conflitos e contradies,

    mas produzindo-os como antignios destinados a reactivar os seus anticorpos24, a violncia

    perigosa tem de ser necessariamente includa no mesmo corpo em formas controlveis. O

    curto-circuito criado pela immunitas representado pela directa negao do cum, e da fora

    violenta do qual ele portador, mas exprime-se pela produo da mesma em formas

    reduzidas.

    Em Bios, Esposito resume assim os elementos do debate: Dispensatio mesmo

    aquilo que alivia do pensum de uma obrigao gravosa, assim como a exonerao liberta

    daquele onus a que recondutvel desde a origem a semntica do munus recproco. [] A

    immunitas, protegendo aquele que portador do contacto arriscado com aqueles que esto

    privados dela, repristina as fronteiras do 'prprio' postas em perigo pelo 'comum'. Mas se a

    imunizao implica uma substituio, ou uma contraposio, pelos modelos privatsticos ou

    individualistas de uma forma de organizao de tipo comunitrio seja qual for o significado

    que se queira dar agora a tal expresso evidente a sua conexo estrutural com os processos

    de modernizao25. A imunidade na sua dimenso social no tanto uma novidade

    conceptual, enquanto j precedentemente elaborada por pensadores de reas diferentes, da

    biologia sociologia antropologia filosfica, mas pensada agora como a engrenagem mais

    subtil, e mais tpica, da modernidade e do nosso tempo. O paradigma de imunizao social

    21 Roberto Esposito, Immunitas, p. 7: vocabolo privativo, o negativo, che deriva il proprio senso da ci che nega, o di cui risulta privo, vale a dire il munus.

    22 Sobre o adjectivo immunis, -e: isento de cargo; s vezes sinnimo de ingratus a causa do duplo sentido de munus, cargo e dom. Alfred Erneut e Antoine Meillet, op. cit., p. 421, munis.

    23 Roberto Esposito, Bios, p. 77.24 Ivi., p. 79. 25 Ivi., pp. 80-81.

    8

  • que a partir da se conota, colocado no profundo das civilizaes modernas, funciona como

    proteco negativa da vida. Se o imune o sujeito que no ou no tem nada em

    comum, ento Esposito pode afirmar: Justamente esta implicao negativa com o seu

    contrrio indica que o conceito de imunizao pressupe aquilo que entanto nega26. Se j

    com a noo de secularizao se adverte uma diferena com o passado pr-moderno, esta

    distncia torna-se definitivamente palpvel na contraposio entre communitas e immunitas,

    ou seja na inverso de perspectiva que denota toda a potncia da negao.

    Os indivduos tornam-se absolutos enquanto protegidos e isolados por um confim

    identitrio, enquanto libertos da ddiva que os obriga uns com os outros. Esposito pensa a

    libertao do contgio relacional a partir da filosofia de Hobbes, pelo qual a communitas

    leva dentro de si um dom de morte27, e o vazio do munus enchido por um vazio ainda mais

    radical: ausncia de relao dentro da unidade. Isto torna-se visvel ao considerarmos o

    modelo absolutista da soberania como exemplo mximo desde paradigma de imunizao,

    onde o Estado-Leviat coincide com a excluso de qualquer relao social alheia ao vnculo

    vertical de obedincia e proteco, um vnculo que tambm estritamente individual. Como

    explica Esposito: uma vez assumido como constitutivamente arriscado em relao auto-

    conservao, o cum vai ser drasticamente eliminado a favor de uma forma poltica que ponha

    cada indivduo em contacto directo com o poder soberano pelo qual representado. Ora, o

    elemento especificamente imunitrio de tal operao no est s na dessocializao que ela

    pressupe, quanto na modalidade homeoptica do seu funcionamento: tal como o medo

    provocado pelo Leviat a curar do medo recproco do estado de natureza, assim a igualdade

    de todos os sbditos perante ao soberano a desactivar o perigo determinado da igual

    capacidade de dar, ou receber, a morte antes da constituio da ordem civil28. Ningum mais

    de que Rousseau tentou deslegitimar, no mesmo terreno da sua produo, a comunidade

    fundada no medo derivado do Estado. Todo o seu combate contra a destruio da relao

    recproca entre os homens, uma vez constituda a sociedade civil, pode ser levado a cabo a

    26 Idem.27 Roberto Esposito, Communitas, p. XXII: la communitas porta dentro un dono di morte.28 Roberto Esposito, Immunitas, p. 103: Una volta assunto come costitutivamente rischioso nei confronti

    dell'autoconservazione, il cum va drasticamente eliminato a favore di una forma politica che metta ciascun individuo a diretto contatto com il potere sovrano da cui rappresentato. Ora l'elemento specificamente immunitario di simile operazione non sta soltanto nella desocializzazione che essa presuppone, quanto nella modalit omeopatica del suo funzionamento: come la paura provocata dal Leviatano a guarire dalla paura reciproca dello stato di natura, cos l'uguaglianza di tutti i sudditi davanti al sovrano a disinnescare il pericolo il pericolo determinato dall'uguale capacit di dare, o ricevere, la morte prima della costitutizione dell'ordine civile.

    9

  • testemunho de como tambm a filosofia poltica clssica estava consciente do perigo

    identitrio, da incumbncia da alteridade. Assim, em primeiro lugar, a reflexo de Esposito

    remonta quele momento em que o corte hobbesiano das razes vivido ento como uma

    'culpa' em relao a uma comunidade da qual se constata a ausncia e ao mesmo tempo a

    necessidade29.

    Para alm disso, preciso constatar o facto de o processo de imunizao no esgotar

    por inteiro o espao da vida na modernidade. Se, por um lado, a ausncia auto-legitimada de

    qualquer relao representa o spero fruto do crculo sacrifical da vida, paradoxalmente a

    favor da conservao da mesma, por outro lado abre-se no interior da comunidade a

    conscincia trgica do carcter niilista de uma tal deciso30 e aqui est provavelmente o seu

    maior elemento de novidade. O munus, quando dado, no estabelece um contacto inocente,

    no indolor pelo sujeito que o experimenta: enquanto veiculador de medo sempre possvel

    advertir o seu perigo. Isto vlido mesmo no caso da sua mais oculta negao, alis,

    sobretudo na coincidncia entre o sacrifcio e a conservao da vida que emerge a fora

    niilista do negativo. Se a prerrogativa do munus originrio a de ser algo que quebra os

    confins identitrios, ento a communitas habitada por uma ausncia de subjectividade,

    de identidade e de propriedade: ela sempre dos outros enquanto baseada numa negao; o

    nada pensado no tanto como xito ou como condio da communitas, mas como o seu

    nico modo ser31.

    Todavia, o lugar do munus, quando esvaziado da prpria substncia pela categoria da

    imunidade, enche a sua aparncia com algo que assume o aspecto de um plenum, da mesma

    relao proibida: como seria seno possvel pensar uma comunidade seja qual for a sua

    constituio sem que esta assuma alguma expresso afirmativa? Este pleno visvel no

    momento em que o carcter constitutivamente cncavo da communitas, a sua falha

    negativa, substitudo pela sua entificao positiva, um elemento de subjectividade

    necessrio. No pensamento de Esposito a tal propsito, uma ilha preciso assumir o

    vazio do munus a objecto de reflexo32. Se este o dom que se faz e que prev uma

    remunerao circular, a falha substancial que se abre da sua negao tem o aspecto de uma

    29 Roberto Esposito, Communitas, p. XXIII: il taglio hobbesiano delle radici vissuto allora come 'colpa' nei confronti di una comunit di cui si constata l'assenza e insieme la necessit.

    30 Idem.31 Roberto Esposito, Nichilismo e comunit, em Communitas, apndice, pp. 148-149.32 Roberto Esposito, Communitas, p. XXIV.

    10

  • comum diviso33. A deriva niilista que ento se origina no paradigma hobbesiano assenta na

    conscincia de uma nada (a falta de relao na unio) construdo acima dum outro nada (a

    expropriao original), e exprime-se assim na proliferao daqueles discursos comunitrios

    modernos, que representam o oposto frontal, e paradoxal, da communitas. Se, por um lado,

    Esposito v em Hobbes a gnese do pensamento niilista moderno, medida em que a sua

    comunidade se funda nesta operao de ocultao, por outro lado, segundo o filsofo italiano

    a nica maneira de repensar a comunidade de prend-la ao nada que a constitui.

    A partir da negao do lugar do munus, e do fortalecimento conseguinte do seu

    contrrio, o proprium, define-se assim um paradigma imunitrio baseado numa dupla

    vertente, tanto na rea jurdico-poltica quanto na rea biomdica. Se a primeira vertente diz

    respeito quela filosofia poltica clssica que se joga sobretudo na luta entre Hobbes e

    Rousseau, a vertente da biologia e da medicina pensvel s atravs de uma abordagem

    biopoltica, em que vida e poder se ligam numa relao indissocivel. O mecanismo de

    poder que gere a vida na sua totalidade precisa de um sistema imunitrio para viver

    juntamente com ela, e, consequentemente, o carcter tipicamente biopoltico do nosso tempo e

    a normativizao crescente da vida manifestam toda a presso sobre o elemento subjectivo

    individual e comunitrio. Voltando novamente um instante para o trabalho de Mauss, se por

    um lado as suas intuies so precursoras de um certo aspecto social intrnseco comunidade,

    por contraposio lgica apropriativa actual, por outro avanam tambm a questo da

    interveno reguladora sobre a vida, mesmo se por parte duma entidade contraposta vida

    mesma, o Estado34. Para Esposito, a questo fundamental da biopoltica assenta numa ruptura

    33 It. condivisione. A direco da communitas sempre do dentro para fora, uma externalizao do interior. Como afirma Esposito: Este movimento de descentramento reconhecvel na mesma ideia de 'partio' que remete juntamente a 'comum diviso' e a 'partida': a comunidade nunca um lugar de chegada, mas sempre de partida. (Questo movimento di decentramento riconoscibile nella stessa idea di 'partizione' che rimanda insieme a 'condivisione' e a 'partenza': la comunit non mai un luogo d'arrivo, ma sempre di partenza.) Roberto Esposito,Nichilismo e comunit, em Communitas, apndice, p. 150.

    34 Nas Concluses de carcter moral do Ensaio sobre a ddiva, Mauss utiliza palavras que transpiram uma valncia biopoltica no sentido, ainda bsico, de que o Estado deve cuidar da vida do seu povo. Escreve o antroplogo francs em 1923: Toda a nossa legislao de segurana social, este socialismo de Estado j realizado, se inspira no princpio seguinte: o trabalhador deu a sua vida e o seu trabalho colectividade, por um lado, aos seus patres, por outro, e, se deve colaborar na obra de segurana, os que beneficiariam dos seus servios no esto quites para com eles atravs do pagamento do salrio e o prprio Estado, representando a comunidade, deve-lhe, juntamente com os seus patres e com a sua prpria contribuio, uma certa segurana na vida, contra o desemprego, contra a doena, contra a velhice e a morte. [] Toda esta moral e esta legislao correspondem, na nossa opinio, no a uma perturbao, mas a um regresso ao direito. Por um lado, vem-se despontar e tornar-se um facto a moral profissional e o direito corporativo. [] Por outro lado, dos indivduos que o Estado e os seus sub grupos querem cuidar. A sociedade quer reencontrar a sua clula social. Ela inquire, envolve o indivduo, num curioso estado de esprito, em que se misturam o sentimento dos direitos que ele tem e outros sentimentos mais puros: de caridade, de servio

    11

  • com um tal modelo de poder transcendente em relao vida, e portanto no dilogo com a

    comunidade. O seu pensamento no quer ser uma tentativa de negar a lgica imunitria, ou de

    restabelecer um certo tipo de tica, antes pode ser levado a cabo como instrumento de anlise

    do nosso tempo. Admitir a communitas de Esposito, com as premissas aqui dadas, ou negar a

    immunitas, significaria que toda a dicotomia da res publica face esfera privada no poderia

    mais se sustentar. A communitas no pode ser directamente pensada como uma res, mas como

    a falha na qual os sujeitos correm o risco de cair, uma vez expostos. Contudo, Esposito mostra

    como a comunidade moderna lute continuamente para se definir enquanto fruto de

    apropriao particular que se exalta por exemplo nas lgicas de mercado manifestando a

    cada vez uma contenda polmica. O ncleo temtico que ele enfrenta se refere possibilidade

    de repensar a vida da e na comunidade. A ameaa da perda dos confins do indivduo, da sua

    identidade e daquilo que assegura a sua subsistncia, implcita no carcter do munus como

    hospital a presena da alteridade ao mesmo tempo que hostil a natureza violenta do

    contacto com o outro. Isto bem se resume na inquietante contiguidade lexical entre hospes e

    hostis35, particularmente significativa no que concerne a problematizao posta por toda a

    filosofia do cum, da convivncia pacfica de uma unidade, a partir de uma luta identitria

    entre duas partes internas36. Esposito est aqui disposto a assumir a lgica desta convivncia

    interna e lev-la at o fundo do seu pensamento. A tipicidade do paradigma imunitrio est no

    facto de pensar bios e nomos, vida e poltica, como as duas componentes de um nico

    conjunto que assume sentido unicamente a partir da relao entre eles. De forma mais

    abrangente, a interpretao de Esposito quer ser uma tentativa de repensar o cum da

    comunidade moderna luz da interpretao da biopoltica: se a immunitas no sequer

    social, de solidariedade. Os temas da ddiva, da liberdade e da obrigao na ddiva, o tema da liberdade e do juro que se deve dar, reaparecem entre ns, como acontece com um motivo dominante esquecido por demasiado tempo. Marcel Mauss, Ensaio sobre a ddiva. Forma e razo da troca nas sociedades arcaicas, trad. Antnio Filipe Marques, Lisboa, Edies 70, 2008, pp. 197-199.

    35 Roberto Esposito, Communitas, p. XV.36 Quem aborda a temtica do cum originrio da cultura ocidental, desde as suas razes mais antigas,

    Massimo Cacciari: em Geofilosofia dell'Europa, a questo central a harmonia dos opostos, a convivncia entre os luoghi dell'interrogarsi d'Europa guerra e paz, mar e terra, oriente e ocidente, lei e desenraizamento. As ilhas do arquiplago europeu seriam a demonstrao de uma continua instabilidade, de paz no sentido de pactum: individuao contnua de um mdio. Hospes e hostis, amigo e inimigo, so pensados a partir da relao de guerra, central na histora grega: Nenhuma luta comea a no ser em vista da vitria, mas vencer significa harmonizar em si o inimigo. [] No instante mesmo em que emerge o Dois, e a maravilha por este inquieta e assusta, emerge tambm a pesquisa em torno da sua origem, das suas internas relaes, do seu mesmo fim, ou seja a interrogao em torno daquela potncia que faz dos dois um Dois. Massimo Cacciari, Geofilosofia dell'Europa, Milo, Adelphi, 2003, pp. 11-12. A hiptese que da nasce reduzida aos mnimos termos a de uma Europa sem voz, cujas nicas expresses seriam nada mais do que tmidos exerccios de distino.

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  • pensvel fora do munus comum, que no entanto nega, talvez tambm a biopoltica, que at

    hoje tem experimentado essa prega constritiva, poder inverter o seu sinal negativo para uma

    diferente afirmao de sentido37.

    37 Roberto Esposito, Bios, p. 28.

    13

  • II. Crise do modelo transcendente do poder sobre a vida

    1. O reino da igualdade de Rousseau

    Quelle est l'origine de l'inegalit parmi les hommes, et si elle autorise par la Loi

    naturelle o ttulo sobre o qual se exprime Rousseau, no seu Discurso sobre a Origem e os

    Fundamentos da Desigualdades entre os Homens, com data a 1754. No geral, o texto do

    discurso afirma que para compreender a razo da desigualdade inerente sociedade preciso

    primeiramente compreender a natureza do homem na sua originalidade, pois tal desigualdade

    foi-se desenvolvendo medida que o homem se afastava da sua condio natural. A tal

    propsito, toda a sua obra e, como ele mesmo diz, a de todos os filsofos que se

    concentraram no estudo da sociedade, fundamenta-se naquela passagem38.

    Para Rousseau, esta abordagem no finalizada a mostrar a verdadeira origem das

    coisas, qual era a condio objectiva do homem, baseando-se na pesquisa histrica e na

    reconstruo atenta dos detalhes dos primeiros alvos de vida comunitria, nem,

    evidentemente, a filosofia poltica quer alcan-la. As suas teses so pelo contrrio avanadas

    na suposio hipottica, de maneira parecida ao trabalho dos fsicos que nos mostram a

    formao do mundo. De acordo com isso, explicita logo no incio do Discurso de querer

    rejeitar todos os factos, no sentido de acontecimentos, porque no tocariam a questo acerca

    dessa origem; no prefcio do seu texto, esclarece que o remontar origem da primeira

    sociedade construdo por raciocnio hipottico3940. Poucos anos mais tarde, o autor do

    38 Esposito foge a esta reconstruo medida em que o seu pensamento se coloca fora daquelas categorias em cuja contraposio se funda a poltica moderna: privado/pblico, absolutismo/democracia, direita/esquerda.

    39 Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l'origine et le fondaments de l'inegalit parmi les hommes, [1754], em Oeuvres Compltes. Vol. III: Du contrat social; crits politiques, Paris, Gallimard, 1964, p. 132. A passagem completa : Commenons donc par carter tous les faits, car ils ne touchent point la question. Il ne faut pas prendre les Recherches, dans lesquelles on peut entrer sur ce Sujet, pour des vrits historiques, mais seulement pour des raisonnements hypothtiques et conditionnels; plus propres claircir la Nature des choses, qu' en montrer la vritable origine, et semblables ceux que font tous les jours nos Physiciens sur la formation du Monde.

    40 Para alm da falta de reconstruo histrico-cientfica, raro encontrar na obra de Rousseau referncias quer a relaes de viagem, quer a obras de tipo enciclopdico, a no ser quando includas pelo autor nas notas, como no caso da Histoire Naturelle de G.L. Buffon, obra publicada entre 1749 e 1789. Assim, a observao,

    14

  • Contrato Social incluir no livro primeiro da sua obra principal um captulo intitulado Qu'il

    faut toujours remonter une premire convention, onde manifesta a vontade de examinar o

    acto pelo qual um povo se torna um povo, como o acto a fundamento da sociedade. Nesse

    captulo, o exemplo dado o da eleio de um chefe: antes de se dar um rei, um povo

    constitudo por uma conveno, seno no seria um povo; sem esta conveno, onde estaria a

    obrigao da minoria isto , no caso de eleio no unnime de se submeter a uma

    autoridade? De consequncia, tambm a regra da maioria uma regra estabelecida por

    conveno, e supe, pelo menos na primeira vez em que utilizada, a prpria unanimidade.

    Emerge a vontade de delinear um princpio de fundo, expresso daquilo que podemos chamar

    o princpio da democracia. Para Rousseau trata-se, por meio de uma cultura da virtude cvica

    e republicana, de exigir que os cidados que compem a sociedade civil, assumindo o poder

    poltico, determinem o Estado enquanto expresso desse mesmo poder41. O Discurso citado

    em abertura quis ser o vector de uma mensagem de carcter universal, que circunscreve toda a

    obra poltica do filsofo de Genebra: a necessidade de refundar a sociedade com base num

    pacto social unnime, de maneira a encontrar uma forma de associao que defende e

    protege de toda a fora comum a pessoa e os bens de cada associado, e atravs da qual, cada

    um, unindo-se aos outros, no obedece que a si mesmo e permanece na liberdade como

    antes42. Um tal acordo passaria a ser respeitado porque concludo por indivduos livres e

    racionais, que aceitam voluntariamente a entrada em sociedade. A sua abordagem refere-se

    portanto ao acto que legitima o poder, visando a uma possvel refundao de toda a sociedade

    a ele contempornea.

    A forma como Rousseau coloca a questo, a sua vontade de democracia plena,

    remonta hiptese sobre o estado de natureza, que a partir da segunda metade do sculo XVII

    se tinha tornado um fulcro central entre toda a filosofia poltica da tradio ocidental. A sua

    identificao e sua definio so, desde Hobbes e Locke, mas tambm entre todos os juristas

    torna-se um instrumento de confirma ao servio da reflexo, diz Robert Derath: Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1995, pp. 133-134. O mtodo no cientfico integrado s vezes por elementos de uma espiritualidade religiosa crist, como no caso da chave de leitura final do Contrato Social.

    41 Alexandre Franco de S, A sociedade civil em Rousseau, em Sociedade civil. Entre miragem e oportunidade, Coimbra, 2003, p. 83.

    42 Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social, [1762], em Oeuvres Compltes. Vol. III: Du contrat social; crits politiques, Paris, Gallimard, 1964, p. 360: Trouver une forme d'association que dfnde et protge de toute la force commune la personne et les biens de chaque associ, et par laquelle chacun s'unissant tous n'obisse pourtant qu' lui-mme et reste aussi libre qu'auparavant.

    15

  • da escola do direito natural, intimamente ligadas ao problema da fundao do Estado43.

    suficiente pensarmos que a definio de estado de natureza determina logo a questo de como

    colocar o poder poltico no interior do corpo que se constitui: formulaes diferentes desta

    hiptese levam a definies diferentes da ideia do contrato. Na altura em que Rousseau

    escreve, a colocao do problema j se tinha tornado um lugar-comum, mas ao mesmo tempo

    uma passagem irrevocvel entre as teorias clssicas.

    Ao considerar o homem natural, segundo Rousseau, parecem os filsofos a ele

    precedentes terem essencialmente cometido um erro de mtodo: eles no tiveram em conta

    das modificaes fundamentais que a natureza do homem assume com a vida comunitria,

    mas procederam segundo um mtodo puramente analtico, isto , no tiveram em conta

    daquelas mutaes sofridas ao longo dos sculos pela categoria homem, dos atributos das

    paixes e das necessidades mutveis44. Se fosse assim, at quele momento o homem s teria

    sido estudado a partir de situaes muito posteriores original, natural, e portanto situaes

    enganadoras. Numa longa nota ao Discurso, inicialmente endereada a Locke mas que acaba

    por se dotar de carcter geral, explicitada a maneira de entender o estado de natureza como

    um estado onde os homens viviam isolados, onde tal homem no tinha nenhum motivo de

    viver um ao lado de outro homem45. longo esta linha argumentativa, manifesta em bem mais

    de uma passagem, que se marca a diferenciao de Rousseau face filosofia a ele precedente:

    com o esforo de ir para alm daquele tempo onde os homens sempre tinham uma razo de

    viver em conjunto; no admitir o estado originrio de disperso ou isolamento; no recusar em

    tal estado a existncia da propriedade privada; no separar as pulses primitivas do homem

    selvagem com as paixes fictcias do homem civilizado46; no preferir a ideia de homem

    solidrio uma teoria do homem naturalmente conflituoso, pois que na mesma doutrina da

    43 Para alm dos estudados e mais influentes Hobbes e Locke, so frequentemente chamados em causa, quer nas anlises de Derath, quer directamente nas notas de Rousseau, sobretudo os jusnaturalistas Hugo Grcio (1583 1645) e Samuel von Pufendorf (1632 1694). No sculo XVIII estes autores j eram considerados clssicos do direito natural, mas mesmo contra eles que Rousseau defende, a cada vez, a sua posio: Ele escreve geralmente sob a influncia dos seus leitores e no pensa que por reaco contra as teorias dos seus predecessores. Robert Derath, op. cit., pp. 66-71: Il crit gnralment sous l'influence de ses lecteurs et ne pense que par raction contre les thories de ses prdcesseurs. Hobbes, em particular, representa a mxima expresso daquilo que chamaremos o paradigma social imunitrio, segundo um modelo de poder que, a partir do sculo XVI, passa por uma metamorfose cujo alcance ns hoje tentamos medir. A nossa escolha visa mostrar a forma de articular-se da primeira contestao do modelo imunitrio, atravs da ruptura rousseauniana com a filosofia de Hobbes.

    44 Robert Derath, op. cit., pp. 131-134.45 Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l'inegalit, nota XII, ponto 4, p. 218.46 O termo utilizado por Rousseau para indicar o homem civilizado o arcaico francs de homme polic, que

    remete acepo de moderno, que vive em sociedade.

    16

  • guerra natural de cada um contra os outros implcita uma relao. por ter marcado e

    alinhado essas razes que o texto do Discurso sobre a desigualdade no para de ser o terreno

    frtil a partir do qual se desenvolve o pensamento de Rousseau. O mtodo assim estabelecido,

    o mtodo quase gentico pelo qual o autor imposta o discurso, agarra-se ao homem assim

    como ele sairia das mos da natureza, no podendo-se basear na observao analtica dos

    prprios contemporneos47. A origem, apesar de representar o ponto mais recuado no passado,

    tambm o ponto mais profundo e delicado de toda a reconstruo heurstica: as associaes

    dos homens resultam em grande parte dos acidentes da natureza48, grandes catstrofes

    naturais fizeram com que os homens se juntassem para reparar em comum as partes comuns e

    teis a todos, em forma de uma primeira solidariedade; as necessidades criam os gestos e as

    paixes criam a voz, assim o homem primitivo responde inicialmente ao grito da natureza,

    dota-se da linguagem apenas por uma confrontao com o grande contexto no qual se

    encontra49.

    Rousseau supe a permanncia original de uma primavera eterna na terra, onde se

    encontra um homem solto, entre as abundncias do ambiente: por qual razo deveria ele

    renunciar a esse estado de liberdade primitiva, deixando tudo o que lhe natural, para se

    impor, sem qualquer necessidade, a escravido, o trabalho e as misrias indissociveis da vida

    em sociedade?50 Ao mesmo tempo, esta reflexo tambm evidencia a condio de no-

    sociabilidade do homem primitivo: a natureza plenamente oposta civilizao, certamente

    no sentido em que os valores desta se constituem como uma corrupo e uma degenerescncia

    em relao quela, mas sobretudo a condio natural caracterizada pela ausncia de

    qualquer relao.

    Tudo isso nos ajuda a compreender que Rousseau tenha tido de reconduzir o estado de

    47 Robert Derath, op. cit., pp. 132-133.48 Jean-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a origem das lnguas, trad. fernando Guerreiro, Lisboa, Editorial

    Estampa, 2001, p. 82: Les association d'hommes sont en gran partie l'ouvrage des accidents de la nature. Esse texto (Essai sur l'origine des langues, o il est parl de la mlodie et de l'imitation musicale) publicado pstumo, em 1781, integra o Discurso e pode ser lido paralelamente a ele, mas no representa a sua continuidade nem a sua antecedncia discursiva. No obstante seja um texto quase de lingustica, mais do que de filosofia poltica, inteiramente fundamentado nas mesmas posies do Discurso sobre o estado de natureza.

    49 Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l'inegalit, p. 221.50 Esta pergunta sai do captulo principal do Ensaio sobre a origem das lnguas, ou seja Formao das lnguas

    meridionais. De forma a mostrar como e onde se desenvolveu a primeira lngua falada pelo homem, Rousseau supe tambm a maneira como se organizou a vida na primeira sociedade. Ele localiza os homens originrios em regies meridionais quentes: l, na primavera eterna geradora de vida, vive um homem pastoral, solitrio e preguioso: no fazer nada, uma vez garantida a sua conservao, a mais antiga e a mais forte das paixes do homem. Jean-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a origem das lnguas, IX, p. 85.

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  • natureza a um estado de igual liberdade, que essencialmente um estado de independncia. A

    prpria igual liberdade o principio que tem necessariamente de estar base de uma

    sociedade democrtica: se o estabelecimento da sociedade civil, tal como Rousseau a critica,

    corrompeu o homem e criou as desigualdades, a igual liberdade ento aquela ordem de

    principio que o contrato deveria restabelecer. A sua explicitao no quer simplesmente dizer

    que os homens nascem iguais em fora ou talento, porque por quanto se recuse utilizar a

    observao, isto seria negar a evidncia. Mais precisamente, ela significa que toda a

    superioridade fsica, intelectual e tambm moral de um homem no lhe d o direito de impor

    aos outros a prpria vontade, ou de os submeter prpria autoridade. Da as dificuldades em

    conciliar as vontades particulares. Tambm Locke, no Segundo tratado do governo, num

    discurso j orientado colocao do poder em sociedade, convm sobre a condio em que se

    encontra o homem em natureza. Esta condio seria a de uma liberdade perfeita, a condio

    de os homens ordenarem das suas aces e disporem como entenderem, seja das suas

    propriedades, seja das prprias pessoas, sem necessitarem de permisso ou dependerem da

    vontade de qualquer outro homem, dentro dos limites da lei da natureza51. Todavia, este seu

    escrito representou uma tentativa de legitimar o chefe do corpo poltico que ele apoiava na

    altura52, e, para alm disso, a sua formulao do contrato foi pensada com intento a reforar os

    direitos individuais, e no a faz-los concordar, como contrariamente entendido por Rousseau.

    Importa tambm pr em evidncia que, admitindo a teoria da igual liberdade, nenhum pacto

    pode privar o homem da prpria liberdade individual. A autoridade, para ser legtima, tem que

    se fundar no consenso dos que esto a ela submetidos; qualquer outra autoridade pode ser

    vista como um abuso, uma obrigao, e remete para a lei do mais forte. Esta ltima afirmao,

    51 John Locke, Segundo tratado do governo, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 2007, p. 35. Nesta definio do estado de natureza emerge a dificuldade lgica de antepor a propriedade ao regime normativo que a institui. A propriedade lockiana precede a soberania ordenada a defend-la, ou seja o pressuposto e no o resultado da organizao social. Ela tem um duplo sentido: por um lado, a propriedade uma forma de vida exprimida pela aco pessoal do sujeito agente; por outro lado, sujeito, aco e liberdade esto includos na figura do prprio. O ponto de contacto entre as duas perspectivas do senhorio do sujeito ao da coisa situa-se no carcter privativo da apropriao. Segundo Esposito, estas duas modalidades so integradas e sobrepostas num nico efeito de sentido: a vida ao mesmo tempo interior e exterior propriedade, ou seja vida e propriedade so pensadas como ser e ter; o sujeito domina a coisa no sentido especfico de que a pe sob o seu domnio, e simetricamente a coisa domina o sujeito na medida em que constitui o objectivo necessrio da sua tenso aquisitiva. Esta apropriao imanente fornece o paradigma de um processo imunitrio bem mais poderoso do que o hobbesiano, enquanto se perpetua no interior do corpo dos sujeitos, onde o prprio, sendo por definio o no comum, sempre imune. Deste carcter infinitesimal da imunizao d conta Esposito em Bios, pp. 97-102.

    52 John Locke, op. cit., p. 27, onde visa com a sua obra legitimar o poder do nosso grande restaurador, o nosso actual rei Guilherme (Guilherme III de Inglaterra, 1650-1702).

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  • traduzida da linguagem da filosofia poltica, significa que nenhum pacto legitimo se sujeita

    os homens a um soberano que seja outro, isto , imposto ou no coincidente com a vontade de

    quem o institui. Se o homem nasceu igualmente livre, ento toda a actividade poltica deve ser

    exercida em funo desta mesma liberdade: quando os homens aceitam constituir uma

    sociedade civil, quando portanto constituem um corpo que j em si unidade na

    multiplicidade, eles constituem um sujeito poltico cuja vontade capaz de, identificando-se-

    lhe, determinar a vontade do Estado53. A ambio explicitada no Contrato , em sntese, a de

    fundar o corpo poltico na soberania popular, onde povo e soberano coincidem, mas o

    problema central que esta formulao comporta o relacionamento entre as vontades

    particulares e uma nica vontade geral.

    No interior desta abordagem s teorias clssicas, o que aqui mais importa evidenciar

    como e onde a teoria do Contrato contesta a comunidade fundada no modelo existente,

    considerando que, mais em geral, a obra de Rousseau fornece no complexo importantes hiatos

    com tudo o que lhe antecedente.

    Para Thomas Hobbes, as pulses primitivas do homem degeneram sempre em uma

    guerra de cada um contra os outros. Num estado natural de anarquia, o que faz com que os

    homens sejam conflituosos o seu orgulho: a escolha do bem ditada por uma razo livre e

    no por uma natureza do homem j em si poltica54. Nesses termos, a mesma capacidade de

    matar representa o ponto comum a todos os homens, paradoxalmente a base da igualdade. No

    que concerne estritamente a constituio do vnculo societrio, os indivduos consentem

    alienar a prpria liberdade exactamente por causa desse estado de guerra geral, e o direito que

    eles concentram nas mos do soberano representa o mecanismo fundamental do exerccio do

    poder volta do ncleo originrio da vida, de modo mais brutal e directo. O seu esquema

    vertical exemplificado pelo caso extremo de o topo da estrutura, o soberano, marcar

    eventualmente a separao entre o que deve viver e o que deve morrer, com vista a sua

    prpria conservao. De acordo com isto, a comunidade hobbesiana ento constituda e

    mantida em vida por um sacrifcio contnuo gerido pelo medo, bloqueando todas a ameaas s

    vidas particulares a custo de cada uma se sujeitar a um poder soberano absoluto. Na sua

    formulao da origem da sociedade, Rousseau luta contra esta poltica do sacrifcio de

    53 Alexandre Franco de S, A sociedade civil em Rousseau, p. 92.54 Segundo a definio de Hobbes, recorrente em mais duma passagem do Leviat, o estado natural uma

    condio de bellum omnie contra omnes, o qual se ope ao estado civilizado enquanto privo daquele poder absoluto que, atravs do terror, conseguiria harmonizar as vontades de todos os homens.

    19

  • Hobbes, contra aquelas categorias modernas acima de tudo o paradigma individualista que

    representariam a morte da sociedade55. Esta contestao est construda ao longo de duas

    vertentes, uma psicolgica outra jurdica, ambas constitutivas de uma mesma viso de

    fundo56.

    Pela vertente da psicologia, ou dos sentimentos, a questo esclarecida atravs da

    distino dos termos em jogo. Em Hobbes, o amor prprio, intrnseco aos homens,

    corresponde a um instinto de auto-preservao. Assim, vivendo entre seus similares, o homem

    seria naturalmente levado comparar a sua sorte com a dos outros, uma comparao que

    persiste mesmo se em forma controlvel. Todavia, para Rousseau, as pulses do homem, uma

    vez entrado em sociedade, foram medida transformando-se, at chegarem a ter carcter

    prprio: O homem selvagem e o homem civilizado diferem tanto ao fundo do corao e das

    inclinaes, ao ponto que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao

    desespero57. Ele nega portanto que a ordem conflituosa se possa aplicar ao homem no estado

    de natureza, medida que ela estaria baseada num sentimento relativo, fictcio, isto , nascido

    em sociedade. Encontramos novamente a justificao do mtodo, a ordenao lgica no

    tanto dos factos, mas primeiramente do raciocnio. Graas ao amor de si, pelo contrrio, o

    homem desnaturalizado por boas instituies transformado em cidado, e transporta o

    sentimento para a coletividade. A passagem do estado de natureza ao estado civil continua

    Rousseau no Contacto Social faz com que o homem substitua, na sua conduta, a justia ao

    instinto, dando s suas aces a moralidade que antes lhe faltava58. Um tal amor de si, elevado

    do particular para o geral, para constituir a vontade geral, representa assim uma contribuio

    de tipo gratuito comunidade, admitindo a existncia da relao comum, da abertura ao outro,

    enquanto baseada num modelo de igualdade.

    A segunda vertente, a jurdica, afinal no que um prolongamento desse mesmo

    raciocnio: entendendo o estado de natureza como essencialmente privo de relao, um estado

    de independncia, Rousseau considera a teoria do estado de guerra natural como

    juridicamente falsa, devido impossibilidade duma verdadeira guerra entre os particulares,

    antes da constituio das sociedades civis e do estabelecimento da propriedade privada. A

    55 Roberto Esposito, Communitas, p. 29.56 Para todo o pargrafo: Robert Derath, op. cit., pp. 135-141.57 Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l'inegalit, p. 192: L'homme Sauvage et l'homme polic, diffrent

    tellement par le fond du coeur et des inclinations, que ce qui fait le bonheur suprme de l'un rduiroit l'autre au dsespoir.

    58 Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social, p. 364.

    20

  • justificao dada a durao e o objecto da hostilidade mesma: s pode existir uma

    verdadeira guerra onde haja constncia nas hostilidades e vista a obter a reparao de uma

    dano sofrido. No estado da natureza, nos termos rousseaunianos evidenciados, onde tudo

    comum a todos, no existindo a propriedade, por falta de um sistema jurdico apto a defend-

    la, no h razo para ofender: no pode existir a guerra entre os homens, mas s entre

    Estados. Ele contesta filosofia de Hobbes o facto de os homens poderem salvar a prpria

    vida apenas metendo morte o seu bem comum, o que, para Esposito, corresponde

    imunizao em relao a esse mesmo mal59.

    Estas ltimas reflexes acabam por delinear o carcter do homem rousseuaniano como

    essencialmente virtuoso, exigente de cidadania. Um tal homem mantm em vida a prpria

    causa comunitria submetendo-se s condies que ele est tambm a impor aos outros,

    pensando num reino da igualdade, onde a sociedade corresponde plenamente com a

    soberania. Evidentemente, o curso da histria social no confirmou a evoluo da sociedade

    nesse sentido, e apesar de ser este um dos pontos do debate da filosofia poltica, surgem os

    limites das ideias at agora expostas. A procura das origens responde a um interesse que

    bem centrado no presente, uma exigncia critica em relao ao poder existente, mas o que ,

    realmente, a origem? O que est aqui em jogo a relao entre o poder poltico e a sua mesma

    fundao jurdica, o que, tanto em Rousseau como em Hobbes, equivale a perguntar: como

    podemos reduzir a formao de toda a sociedade a um acto ainda por cima estipulado entre

    homens primitivos que tenta dar fundamento jurdico ao poder? A hiptese da soberania

    popular de Rousseau se desfaz no momento em que se tenta constituir o seu prprio quadro

    legal, levantando assim o problema da figura do legislador. Para alm disso, importa

    evidenciar tambm como no possvel transportar o discurso de um pensador tal como

    Rousseau para a contemporaneidade, sem antes constatar que a sua obra ainda no tinha

    passado por um processo de secularizao. O Contrato Social tem um captulo chave, que o

    ltimo, em que a motivao divina utilizada como reforo definitivo e inegvel de todas as

    suas posies. Como se o amor de si do homem, transportado para o amor da comunidade e

    depois para a Vontade Geral, no fosse suficiente, a interveno duma vontade superior

    fecha para Rousseau a questo. Essa vontade deveria finalmente mexer os homens, no sentido

    de completar um processo de tomada de conscincia sobre o funcionamento da comunidade

    em que eles prprios vivem.

    59 Roberto Esposito, Communitas, p. 39.

    21

  • Se Hobbes deu origem filosofia poltica moderna fundamentada no binmio de

    soberania estatal e direitos individuais, esfera pblica e esfera privada, Rousseau contribui a

    esse debate apenas em termos reacionrios, introduzindo a questo da democracia e

    consequentemente inaugurando uma certa tradio de pensamento. Com olhar transversal que

    visa ao conceito de comunidade, importa limitar o nosso discurso do particular contra o geral

    (ou comum), e termos em mente a contraposio entre uma idealizada liberdade igual, o ideal

    democrtico constrangido, contra os dados de facto. Mas no tudo: admitindo a

    pertinncia do modelo hobbesiano, este discurso introdutrio ajuda-nos a colocar as justas

    bases para o discurso do poder entre Estado e sociedade leia-se tambm comunidade, que

    para Esposito no vem nem antes nem depois da sociedade. Quando os indivduos, guiados

    pelo perigo e pela necessidade, constituem o corpo poltico, entra a vida no domnio do direito

    pertencente ao soberano? Em que termos?

    22

  • 2. Famlia e corpo na modernidade

    O termo comunidade practicamente ausente tanto no Discurso quanto no Contrato

    Social, enquanto Rousseau se refere unicamente ao conceito de sociedade civil60. Na

    segunda e mais conhecida das duas obras citadas encontramos o tema da famlia em duas

    passagens que merecem ser brevemente evidenciadas. O primeiro caso, logo no captulo I do

    Livro I, em Des premires societs; outro, ao longo do texto, no Livro III, em De la

    democratie, De l'aristocratie e De la monarchie.

    No primeiro caso, a famlia ao mesmo tempo a mais antiga de todas as sociedades e

    a nica que seja natural. Sobre esse tema, e de tal forma, abre-se o primeiro captulo do livro.

    Ela representa tambm uma sociedade de tipo poltico, seguindo aquele caminho, aberto por

    Hobbes, feito de comparaes com a noo de corpo poltico. Se o pai a imagem do chefe

    e os filhos a imagem do povo, para Rousseau, a sua peculiaridade assenta no facto de o poder

    existente no interior deste corpo ir a favor de todos os indivduos que o compem. A

    constituio da famlia-comunidade verificar-se-ia por meio de uma alienao parcial da

    liberdade dos seus membros, mas uma alienao que na verdade trocada por algum tipo de

    utilidade. O que se torna til a todos os membros uma contribuio prpria manuteno,

    tal como proteo fsica, defesa dos interesses, patrimnios materiais e simblicos, e no se

    verifica que o poder vira a favor dos ss governantes. A famlia conota-se como

    essencialmente totalitria: o seu carcter principal de querer designar aos prprios

    membros as suas finalidades. Para Rousseau as dinmicas da famlia so as mesmas que o

    Estado devia adotar, medida que ambas as comunidades so constitudas num contrato

    assente na sobreposio e na convergncia entre os interesses dos membros particulares com

    as finalidades do todo, um modelo de transparncia onde o soberano reconduzido

    vontade geral.

    O segundo caso em que a famlia citada na principal obra de Rousseau, tem a ver 60 Este conceito designa em si dois plos distintos: por um lado, a sociedade civil como tal, e os cidados que

    lhe pertencem; por outro, o Estado e poder poltico presente nessa mesma sociedade. Entre os dois plos, intimamente ligados, e entre os princpios polticos que lhe correspondem, democracia e liberalismo, passa-se uma contnua contenda que caracteriza a poltica ocidental moderna e contempornea. Alexandre Franco de S, A sociedade civil em Rousseau, p. 83.

    23

  • com a anlise dos vrios tipos de governo que ele faz no meio do texto61. O autor mostra a

    distino dos possveis tipos de governo em base ao nmero de pessoas que o constituem, isto

    , dividindo o corpo social entre os governantes e os cidados. No que concerne o

    funcionamento de um governo, o princpio de fundo por ele individuado o seguinte: contra

    a ordem natural que o grande nmero governe o pequeno. Porm, vemos como ele atribui aos

    governantes um carcter progressivamente mais firme, isto , coerente nos interesses,

    medida em que o seu nmero diminui, partindo no complexo de um volume de populao

    tambm relativamente baixo. Constate-se que ele, cidado de Genebra, sempre teve em

    mente as caractersticas geogrficas que um bom Estado deveria ter e, consequentemente,

    atribuiu um carcter particularmente virtuoso sua pequena Repblica nativa. Da que no

    captulo sobre a democracia do Contracto Social pode escrever: Nada mais perigoso que a

    influncia dos interesses privados nos negcios pblicos62. A famlia-comunidade parece

    projectar-se em avante como o ambiente ideal para a governao, onde os interesses privados

    representariam tambm o interesse geral deste corpo, agora sim, plenamente poltico.

    Na sociedade do incio de sculo XIX estamos perante a um conjunto de mltiplas

    estruturas de tipo aristocrtico: os chefes de famlia deliberam entre si os negcios pblicos;

    os jovens cedem autoridade da experincia. Tambm a posio de Rousseau , nesse

    sentido, historicamente pertinente: medida que a desigualdade de instituio [em seio

    famlia] ultrapassou desigualdade natural [dos seus membros], a riqueza ou a fora foram

    preferidas idade, tornando a aristocracia electiva63. Os trs captulos sobre a democracia, a

    aristocracia e a monarquia so de fundamental importncia para termos uma ideia das reais

    posies de Rousseau. Temos de descartar os argumentos que a primeira vista parecem

    fornecer legitimidade para um governo de aristocracia electiva, pelo contrrio, segundo a

    leitura mais coerente, importante individuar nas componentes do nmero, extenso de

    territrio e correspondncia das vontades os signos de uma boa governao. De tal forma a

    maior legitimidade democrtica fazer-se-ia nos pequenos Estados, e a soberania conseguiria

    fundar-se em toda a base social.

    Das passagens evidenciadas importa pr em evidncia, em primeiro lugar, o fenmeno

    da alienao. A partir do momento em que os filhos obtm as suas independncias, se a

    61 Para todo o pargrafo: Jean-Jacques Rousseau, Du contrat social, pp. 402-420 (Livro III, captulos III-IX).62 Ivi., p. 403: Rien n'est plus dangereux que l'influence des intrts privs dans les affaires publiques.63 Ivi., p. 406: Mais, msure que l'ingalit d'institution l'emporta sur l'ingalit naturelle, la richesse ou la

    puissance fut prfre l'ge, et l'Aristocratie devint lective.

    24

  • famlia continua a permanecer junta s por conveno. Isto faz com que haja lugar o

    primeiro processo de alienao da prpria liberdade total por parte dos seus membros.

    Rousseau imagina estender o paradigma da famlia ao da comunidade: este fenmeno, apesar

    de ser concretizar com uma perda, ou uma subtrao, sofrida pela naturalidade de cada

    indivduo, tem aqui carcter constitutivo. Ser a partir desta lgica que Esposito abordar a

    imunidade: o acto constitutivo uma proteco subjectividade, primeiro passo para uma

    condio de isolamento, fruto da unidade sem relao. Se para Esposito, o acento tem que ser

    posto no fenmeno da negatividade, da perda, da soma de subtraes, a mesma passagem o

    acto constitutivo pensada por Rousseau como o estritamente inverso, como a essncia da

    comunidade, como resultado positivo, e isto devido vontade de uma correspondncia plena

    das vontades. Cerrando os termos, podemos ler nela um aspecto proporcional: quanto menor

    for o tamanho da comunidade tanto menos os interesses privados podem potencialmente

    diferir. Rousseau sonhava com a transparncia dos interesses privados dos quais a famlia

    gestora, e neste sentido que ele tentou deslegitimar a comunidade hobbesiana fundada na

    relao vertical soberano-sbdito: o seu modelo de transparncia, de coincidncia das

    vontades, contraposto figura da patria potestas romana, que representou a condio da

    vida colectiva ao longo dos sculos. Hobbes teorizou at o fundo uma tal viso de exerccio

    vertical do poder, baseando-a no princpio de conservatio vitae, onde a comunidade um

    corpo hierarquizado de indivduos nela subordinados, unidos com fim a se conservar e

    proteger reciprocamente.

    A pertinncia do modelo hobbesiano ao longo da modernidade torna de alguma forma

    problemtica a viso de fundo de Rousseau, o seu ideal de espao poltico, isto , a

    possibilidade de criar um reino da igualdade. A abordagem de Esposito no pode deixar de

    evidenciar o alcance j em si limitado da reaco rousseauniana: A cada vez que tal ideal

    assume corpo numa realidade colectiva pequena ptria, cidade, festa popular a pungente

    exigncia rousseauniana de comunidade revira-se no seu mito64. Se a famlia fosse o todo

    superior s partes, o lugar dentro do qual os indivduos esto naturalmente submetidos, ela

    mostraria um interesse homogneo, e o seu carcter nesse caso seria de tipo holstico,

    totalitrio, e fortalecedor do proprium. Podemos pensar que se Rousseau descreve de tal

    maneira detalhada as vrias formas de governo postas na prctica, no segundo excerto

    64 Roberto Esposito, Communitas, p. 43: Ogni volta che tale ideale prende corpo in una realt collettiva piccola patria, citt, festa popolare la struggente esigenza roussoviana di comunit si rovescia nel suo mito.

    25

  • proposto, porque ele observava contudo a sua contemporaneidade. Este ponto de correlao

    entre teoria e prctica, este contacto, portanto necessrio ao discurso do filsofo que, como

    j se disse, insere-se no debate filosfico no mesmo terreno dos seus predecessores.

    Secundariamente, quanto esfera do privado, por contraposio res publica, o sculo

    XIX viu o incio a uma longa srie de lutas intestinas: estas podem servir como guia na

    reconstruo dos acontecimentos volta da comunidade particular constituda, a partir da

    primeira modernidade. Para alm de relaes de sangue, patrimnio, e o papel dos vrios

    membros da famlia, o discurso sobre o corpo e os domnios de saber a este ligados da sade

    s polticas do trabalho assumem uma posio fundamental no discurso que visa s

    modernas ligaes comunitrias. nesta altura que se abre tambm a o espao para as

    pequenas histrias, como diria Foucault, e, como possvel ver na Histria da sexualidade,

    o poder dotar-se- de mecanismos sempre mais subtis para se infiltrar neste privado.

    A teoria poltica clssica, se bem que atravs de abordagens heursticas diferentes,

    articulava-se entre duas partes bem separadas: o indivduo contratante e o corpo social que

    tinha sido constitudo pelo contrato, voluntrio ou implcito. A soberania instituda no modelo

    hobbesiano teve, durante muito tempo, o privilgio do direito de vida e de morte: no h

    dvida diz Foucault que esse direito derivava da velha patria potestas romana, que

    conferia ao pai de famlia poder sobre os filhos como sobre os escravos65. Todavia, esse

    mesmo direito de vida e de morte se formula de maneira consideravelmente atenuada nos

    tericos clssicos, at no prprio Hobbes, pois exercido em funo de direito ltimo, como

    no caso de ameaa integridade do corpo do prprio soberano. A sada da linguagem

    tipicamente tradicional da filosofia poltica sempre mais evidente quanto mais remetemos a

    ateno dimenso particular, aos indivduos, aos corpos e aos gestos, em vez que s teorias

    de organizar o Estado. Na altura que aqui se abre, a dicotomia do pblico/privado, a relao

    entre o Estado e a sociedade, se torna o problema principal, e o potencial que ela liberta se

    revela grande e complexo. Podemos individuar dois grandes plos de reflexo volta dessa

    passagem: o prprio contedo da sociedade civil e a fronteira entre a esfera pblica e a

    privada.

    O grande cenrio dentro do qual inscrever a sociedade durante a plena modernidade

    introduzido com as palavras de Michelle Perrot: enquanto o laisser-faire, o ideal da mo

    invisvel prevalece no pensamento econmico que marca esse tempo e vive das brilhantes

    65 Michel Foucault, Histria da sexualidade. Vol. I: A vontade de saber, Lisboa, Relgio d'gua, 1994, p. 137.

    26

  • conquistas do sculo XVIII, o pensamento poltico mostra-se preocupado com a delimitao

    das fronteiras e a organizao dos interesses privados66. O que se projecta como novo, a

    importncia dada famlia como clula de base da sociedade. Uma base que deve ser

    entendida como alargada, parte constitutiva de todas as camadas sociais, e verdadeiro motor

    da sociedade. O mesmo ensaio da historiadora francesa mete em evidncia o modo como

    Hegel, em Grundlinien der Philosophie des Rechts (1820), analisa as relaes entre as trs

    instncias fundamentais: o indivduo, a sociedade civil e o Estado. A famlia , juntamente

    com as corporaes, um dos crculos essenciais da sociedade civil, e o indivduo est nela

    subordinado. Sem a famlia, o Estado s poderia relacionar-se com colectividades

    inorgnicas, ou seja multides, facilmente sujeitveis ao despotismo. A sociedade civil o

    agrupamento de todas as comunidade-famlias dispersas e independentes, que so por sua vez

    constitudas por crculos de pessoas concretas67. Segundo uma viso coerente com a funo

    que ele atribui filosofia, Hegel tenta justificar a realidade histrica com a razo: por um

    lado, o Estado tem de existir para alm das vontades dos crculos da sociedade civil, a cujos

    interesses no redutvel; por outro, emerge que a famlia uma construo razovel e

    voluntria, ligada por fortes laos espirituais e materiais a memria, o patrimnio, as

    relaes internas entre os seus membros. A ttulo de exemplo podemos ver como a herana, no

    interior da famlia, seja no s de tipo material, mas tambm um conjunto de relaes, um

    capital simblico de reputao, uma situao na qual os membros se encontram. Todavia,

    quando a ligao familiar pensada como a maior das proteces e a pior das

    desigualdades68, formulao que se aplica ainda a todo o sculo XIX, ela representa j um

    dos dados importantes contra o qual medirmos o paradigma contemporneo, questionando os

    movimentos emancipatrios69. O modelo familiar agora delineado, o modelo prevalecente na

    modernidade, no deixa de incrementar aquele proprium contraposto semanticamente

    communitas. Vemos bem como aqui se aplica o raciocnio do Esposito: uma vez identificada

    66 Michelle Perrot, La famille triomphante, em Histoire de la vie prive. Tome 4: de la Rvolution la Grande Guerre, Paris, Seuil, 1987, p. 93: Tandis que le laisser-faire, l'idal de la main invisible prvaut dans une pense conomique qui marque le pas et vit sur le brillant acquis du XVIII sicle, la pense politique se montre soucieuse de dlimiter les frontieres et d'organiser les intrts privs.

    67 Ivi., p. 94.68 Ivi., p. 114.69 Uma ideia parecida contida na ltima obra de Nietzsche, Crepsculo dos dolos, de 1888. A concluso dos

    seus inumerveis ataques, escreve Nietzsche: A beleza de uma raa ou de uma famlia, a sua graa e bondade em todos os gestos, tambm adquirida: como o gnio, ela o resultado final do trabalho acumulado de geraes. [] As coisas boas so intensamente custosas: sempre impera a lei de que quem as tem diferente de quem as adquire. Todo o bom herana: o que no herdado imperfeito, comeo. Friedrich Nietzsche, Crepsculo dos dolos, trad. Artur Moro, Lisboa, Edies 70, 1985, pp. 106-107.

    27

  • com uma essncia a comunidade vem murada no interior de si prpria e separada do seu

    exterior70.

    A famlia encontrava-se, no sculo XIX, numa posio contraditria: por um lado, o

    seu poder e a sua dignidade eram fortalecidos por toda a sociedade, que via nela um meio

    essencial de regulao social e de agrupamento dos interesses; mas por outro lado, a

    proclamao do igualitarismo, e os progressos contnuos do individualismo, exercem foras

    geradoras de conflito71. O aparecimento das primeiras pulses individualistas deve-se, em

    parte, questo de como fixar os traos caractersticos dos papeis masculino e feminino,

    dicotomia base da vida privada. Relativamente aos papeis sexuais, o direito cannico, a

    pastoral crist e a lei civil ocupavam-se, cada um sua maneira, da diviso entre o lcito e o

    ilcito72. O sentido comum estava centrado na relao matrimonial: a famlia legtima era

    portanto a que mais tinha direito discrio; qualquer forma de desvio, de procura de prazeres

    alheios s leis do casamento, era rejeitada, tanto pela moral crist como por proibies de

    natureza jurdica. Todavia, vemos bem como Foucault quis evidenciar, quase em forma de

    denncia, todos os casos que representavam uma excepo rgida normalidade, e a maneira

    como estes que foram progressivamente levados em conta pelo Estado e pelas vrias

    instituies nele contidas. Trata-se de casos que se encontravam sempre numa posio de

    ambiguidade, suspensos entre um discurso de afirmao identitria positiva e proibio

    negativa. Assim, se ainda na altura de Lus XIV, as peculiaridades mdicas, as doenas, a

    sanidade no eram matria de preocupao, tal como a proteco dos idosos, das mulheres e

    das crianas no interessava o aparelho de Estado, sucessivamente, entre os vrios aparelhos

    de poder e os indivduos os mesmos assuntos tornaram-se um valor em jogo. Acerca da

    entrada do discurso sobre a sexualidade nas dinmicas do poder, escreve Foucault: Atravs

    da economia poltica da populao forma-se toda uma grelha de observaes sobre o sexo.

    Nasce a anlise dos comportamentos sexuais, das suas determinaes e dos seus efeitos, na

    fronteira entre o biolgico e o econmico. Aparecem igualmente aquelas campanhas

    sistemticas que, para alm dos meios tradicionais exortaes morais e religiosas, medidas

    fiscais , tentam fazer do comportamento sexual dos casais um comportamento econmico e

    poltico concertado. Os racismos dos sculos XIX e XX iro encontrar aqui alguns dos seus 70 Roberto Esposito, Communitas, p. XXIV: Una volta identificata con un'essenza la comunit viene murata

    all'interno di se stessa e separata dal suo esterno.71 Michelle Perrot, Drames et conflits familiaux, em Histoire de la vie prive. Tome 4: de la Rvolution la

    Grande Guerre, Paris, Seuil, 1987, p. 263.72 Michel Foucault, Histria da sexualidade. Vol. I: A vontade de saber, pp. 41-45.

    28

  • pontos de amarrao. preciso que o Estado saiba o que se passa com o sexo dos cidados e

    com o uso que dele fazem, mas tambm que cada um seja capaz de controlar o uso que dele

    faz73. significativo considerar que o poder levado em causa por Foucault, atravs da sua

    aco sobre os corpos individuais, os gestos, os comportamentos, essencialmente um poder

    produtor de desejos e saberes.

    Estamos na superfcie do discurso biopoltico que pode assumir conotaes variadas,

    quanto mais se aposte nos aspectos interdisciplinares: