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CRISTOLOGIA PAULINA 1. Considerações Preliminares 2. As origens da Cristologia Paulina A abordagem da origem da Cristologia Paulina 2.2. Elementos referenciais importantes 3. A força estruturante da Cristologia no pensamento teológico paulino 3.1. DEUS 3.2. O Espírito 3.3. A Igreja 4. Repercussões hermenêuticas da Cristologia Paulina 4.1. Do ponto de vista antropológico 4.2. Do ponto de vista da eclesiologia 4.3. Do ponto de vista da escatologia 4.4. Do ponto de vista da Soteriologia 4.5. Outras observações 5. Vocabulário teológico na construção da Cristologia Paulina 5.1. Dez imagens marcantes da Cristologia Paulina 5.2. Títulos cristológicos a) Cristo/Kristós b) Senhor/Kúrios c) Filho de Deus/Ùiós toú Theoú 6. A relevância da experiência do encontro pessoal com Cristo 7. Paulo, discípulo e missionário de Cristo (auto-retrato cristão) 7.1. O encontro de Paulo com o Senhor 7.2. A nova identidade de Paulo em Cristo 7.2.1. Paulo Apóstolo 7.2.2. Paulo Servo 7.2.3. Paulo Diácono 7.3. Paulo age em nome de Jesus 7.4. Paulo comprometido diretamente com Deus 1

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CRISTOLOGIA PAULINA

1. Considerações Preliminares

2. As origens da Cristologia Paulina 2.1. A abordagem da origem da Cristologia Paulina2.2. Elementos referenciais importantes

3. A força estruturante da Cristologia no pensamento teológico paulino3.1. DEUS3.2. O Espírito 3.3. A Igreja

4. Repercussões hermenêuticas da Cristologia Paulina4.1. Do ponto de vista antropológico4.2. Do ponto de vista da eclesiologia4.3. Do ponto de vista da escatologia4.4. Do ponto de vista da Soteriologia4.5. Outras observações

5. Vocabulário teológico na construção da Cristologia Paulina5.1. Dez imagens marcantes da Cristologia Paulina5.2. Títulos cristológicos

a) Cristo/Kristósb) Senhor/Kúriosc) Filho de Deus/Ùiós toú Theoú

6. A relevância da experiência do encontro pessoal com Cristo

7. Paulo, discípulo e missionário de Cristo (auto-retrato cristão) 7.1. O encontro de Paulo com o Senhor7.2. A nova identidade de Paulo em Cristo

7.2.1. Paulo Apóstolo7.2.2. Paulo Servo7.2.3. Paulo Diácono

7.3. Paulo age em nome de Jesus7.4. Paulo comprometido diretamente com Deus7.5. Paulo, um modelo a ser imitado pelos seguidores de Jesus7.6. Paulo consciente de seus limites

8. Discípulo, aquele que imita o Mestre buscando Vida Nova

9. Referências bibliográficas

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CRISTOLOGIA PAULINA

1. Considerações Preliminares

A Cristologia é o centro da pregação pós-pascal. É determinante, nesse contexto, uma hermenêutica cristológica. Foi esse o caminho da pregação e da literatura paulinas. Paulo arquiteta, na sua Cristologia, uma estrutura de pensamento muito aprofundada, complexa e especulativa. Ele usa um vocabulário rico e de variadas nuances filosóficas. Ele, também, conhece muito bem o corpo de doutrina acerca do Messias, existente no Judaísmo. Tratava-se de algo, também, extremamente bem elaborado. Esta é uma referência fundamental no seu trabalho de elaboração da sua Cristologia, colaborando na compreensão da riqueza do seu pensamento cristológico, extenso e muito profundo. Essa extensão e profundidade não permitem, pois, uma abordagem rápida para tocar, ao mesmo tempo, e, num único conjunto, a globalidade do seu pensamento cristológico. É importante elaborar, portanto, uma compreensão do conjunto das questões abordadas, como a constituição de instrumento, para se poder fazer uma garimpagem nas minas ricas desse seu pensamento cristológico.

Esta abordagem aqui será mais de caráter hermenêutico teológico, assentada em argumentações exegéticas, menos de caráter histórico-teológico. Isto é, a meta posta é configurar uma compreensão do conjunto daquilo que constitui a Cristologia Paulina, sem exames exegéticos detalhados de textos em particular, tomando, no entanto, alcance de sua significação para configurar a compreensão buscada. Em razão da exigüidade do espaço não se faz abordagem abundante de questões de caráter mais histórico-teológico ou histórico-literário, como é o caso da evolução do pensamento paulino no processo de redação de suas cartas ou mesmo a questão importante da tradição paulina relacionada com a tradição de Jesus nos evangelhos, considerado como contexto pré-pascal, centrado na mensagem do Reino.

É importante, ainda sublinhar que esta riqueza de pensamento na configuração da cristologia paulina não se trata de uma simples idéia especulativa. O apóstolo elabora sua cristologia como fruto de uma experiência real. Suas elaborações nascem da convicção do seu encontro pessoal com o Cristo Vivo. Sua Cristologia se constrói a partir desta experiência. Na verdade, ela é uma autêntica linguagem da experiência. Foi o encontro pessoal com Cristo que transformou sua vida. A força dessa transformação, ele advoga, vem da significação real da vida e da pessoa de Cristo. É o que ele ensina e constitui como caminho para a vivência autêntica da fé para aqueles que crêem em Cristo. Por isso, Paulo elabora sua Cristologia com um profundo entrelaçamento da história de Cristo com a história do homem. Não é, pois, uma compreensão especulativa de uma pessoa, mas experiencial. O conjunto das argumentações revela, pois, a magnanimidade de Deus ao enviar seu Filho Amado. A vida da humanidade tem, então, em Cristo o seu significado. Sem Ele esta não tem significado. Assim, se o homem não é filho de Deus, não é autenticamente homem. A entrada de Cristo na história humana é a garantia dessa conquista e de sua consolidação.

É determinante considerar no pensamento de Paulo a focalização que ele faz em se tratando da vida individual de Jesus. Jesus se imola. Nessa sua imolação ele abre um caminho novo na relação com a humanidade e com Deus. Seu ministério terrestre e sua morte, prostrando por terra todos os inimigos, por último a morte, abrem um caminho interior novo para os corações, sendo referência essencial no pensamento de Paulo. Ele frisa a importância da morte de Cristo, na sua força redentora, não menos

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a força ética do seu exemplo e dos seus ensinamentos, como processo de configuração da vida cristã. Essa referência ética é também uma confirmação do conhecimento que Paulo tem do Jesus dos evangelhos. Nesta direção é importante considerar o Evangelho de Lucas, tendo presente este colaborador de Paulo, que no seu trabalho, certamente, visa ao atendimento de uma necessidade eclesial importante no que se refere à demanda específica entre os gentios. Assim, pois, um caminho também muito rico é o de articular as categorias do pensamento paulino e o conteúdo da vida humana de Cristo.

A compreensão da abordagem da visão de Paulo, marcada com os traços da universalidade, tem importância própria na articulação desta com o que é próprio da narrativa do Evangelho, enquanto mostra Jesus Cristo na sua longa peregrinação e rica missão. Paulo ajuda a compreender, pois, que essa importante missão é sustentada por um ato vivido de libertação na vida humana.

Paulo é um pensador muito criativo. Certamente, o mais criativo das origens cristãs. Ele se beneficia, pois, das matrizes do judaísmo de origem e do cristianismo anterior a ele. Sua impostação perpassa três referências temáticas fundamentais: 1- Cristo como autor da salvação: I e II Tess; I Cor 15, acentuando a perspectiva escatológica; 2- O dom de Cristo: I e II Cor, Gl e Rm, sublinhando a soteriologia, enquanto focaliza a participação do cristão na vida do ressuscitado; 3- O mistério de Cristo: Fil, Ef e Col, focalizando a identidade pessoal de Cristo, particularmente a sua divindade.

É verdade que a experiência pessoal de Paulo contextualiza seu pensamento cristológico. Contudo, é importante ter presente que sua Cristologia tem objetividade própria. Portanto, sua Cristologia não é, simplesmente, uma hermenêutica de sua experiência pessoal vivida na estrada de Damasco.

A compreensão da pré-existência de Cristo é determinante no pensamento paulino, segundo o que aparece no hino pré-paulino de Fil 2,6-11.

A Cristologia Paulina, portanto, nos escritos de Paulo, não é tratada como uma temática à parte. De tal modo que sua abordagem não é mais conveniente quando se trata, por exemplo, carta por carta. Assim, sua Cristologia é a premissa indiscutível para a abordagem de todas as outras questões e temáticas, tal como a soteriologia. Sua Cristologia, então, nasce da consideração que ele tem de Jesus Cristo como o dado determinante do seu discurso, a partir de uma compreensão que se tem d’Ele. O desafio que permanece sempre na abordagem cristológica é, exatamente, o de garimpar sempre, com precisão, os conteúdos das cartas e enuclear as elaborações explicitadoras do significado de Cristo. Pode-se admitir que solus Christus é o princípio hermenêutico e propulsor do pensamento paulino. Isto é, sem Cristo, Paulo não teria tomado, de modo tão denodado, a atividade missionária, nem mesmo teria repensado e reorganizado o patrimônio cultural-religioso que possuía como um fariseu fiel. Assim, Paulo não trabalha como um filósofo que, no escritório, explicita conceitos. Na verdade, ele interpreta uma história que tem como centro a morte-ressurreição de Cristo, sua experiência pessoal na estrada de Damasco e a situação vivida pelas Igrejas às quais ele dirige sua mensagem e ensinamentos. De tal modo que o discurso sobre Cristo não é apenas um discurso informativo, mas performativo. Ressalta-se, então, a singularidade da experiência do encontro pessoal com o Cristo que marcou o sentido decisivo e novo da vida do apóstolo e o sentido de sua missão.

Tais aspectos abordados, e tantos outros, permitem perceber a riqueza e complexidade da Cristologia Paulina. Ao mesmo tempo confirma que só por esse prisma de leitura e compreensão é possível alcançar o sentido e a singularidade de sua abordagem, possibilitando, no alcance de sua experiência como apóstolo e missionário, a todos os crentes conquistarem a grandeza do que o mobilizou profundamente e fez dele aquele de quem disse o Pe. Lagrange: “ Depois de Cristo, Paulo é único”.

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2. As origens da Cristologia Paulina

É importante considerar, em primeiro lugar, o horizonte mais amplo do pensamento do apóstolo Paulo, este se configura em torno da concepção de Jesus Cristo como o Filho de Deus. Assim, sua Cristologia, permeia então todo o seu pensamento e joga luzes em todas as direções de sua abordagem teológica. Há um exemplo interessante, entre outros, quando o apóstolo, de maneira midráschica, apresenta Jesus, dirigindo-se aos Coríntios, como aquela rocha da qual os Israelitas receberam a água durante sua peregrinação pelo deserto:

“…todos beberam da mesma bebida espiritual; de fato, bebiam de uma rocha espiritual que os acompanhava. Essa rocha era o Cristo.” (I Cor, 10,4)

É muito claro que Paulo trabalha aqui a partir da compreensão sapiencial que trata do papel personificado da sabedoria em Israel (Sb 11,2-4). O apóstolo, na verdade, compreende que Cristo Jesus é esta sabedoria de Deus vinda na carne, na condição humana:

“ Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e sabedoria de Deus.” (I Cor 1,24)

Vê-se, então, a largueza e o alcance da concepção paulina a respeito de Cristo, compreendendo, pois, que Ele estava envolvido nas coisas de Deus, antes de seu nascimento e de seu ministério terrestre. Assim, ao pensar as raízes da Cristologia Paulina, pode-se detectar o seu longo alcance, permeando e fecundando toda a compreensão teológica de Paulo, tornando-se a referência central de sua experiência de fé, de sua compreensão da vida na comunidade e de seus ensinamentos teológicos. Uma centralidade de Cristo que não apenas opera como força conceitual, mas, tem uma força experiencial determinante. Na verdade, é o segredo transformador de sua experiência de conversão e a alavanca magnífica de sua invejável força no sustento de sua missão. Assim, ao considerar as origens da Cristologia Paulina, há de se considerar dois movimentos fortes. Um se encontra na direção do que Paulo tinha como raízes de conceitos e tradições influenciando sua compreensão e abordagem teológicas. Outra direção é aquela que faz Paulo, a partir de Cristo, como no exemplo acima, compreender toda a história e a vida.

2.1. A abordagem da origem da Cristologia Paulina

Essa abordagem pode ser feita a partir de diferentes perspectivas, comprovando sua inquestionável e complexa riqueza de pensamento e articulação da sua compreensão de Cristo Jesus. Três perspectivas importantes não podem deixar de ser consideradas para a comprensão da sua cristologia: 1. o Judaísmo, lembrando Paulo como Fariseu e, conseqüentemente, a força e particularidades de sua crença a respeito da vinda do Messias. 2. o Helenismo, uma influência que não pode ser desconhecida e descartada. Quando se fala do título Kyrios, a apropriação do conceito tem raízes, obviamente, no sentido pagão do uso de “Senhor”, com suas influências no pensamento cristão dos inícios. 3. a Conversão de Paulo ou seu chamamento e a tradição cristã

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primitiva. Nesses três âmbitos se concentram raízes importantes, com ricos desdobramentos e informações, de sua bem elaborada visão cristológica.

a) Quando se pensa, pois, o Judaísmo, é inquestionável a força de sua influência na concepção que Paulo tem a respeito da vinda do Messias. Ele não fala tão explicitamente da sua concepção a partir da matriz farisaica. Não se detém nessa explicitação. Obviamente que, na base de sua concepção messiânica, está a convicção a respeito da vinda de um Messias, humano e de origem davídica. É claro que Paulo recebe muito destas concepções do messianismo judaico, particularmente do farisaísmo. A detecção desses estratos supõe um percurso próprio e abordagens muito específicas. Aqui, basta a referência incontestável da influência dessas concepções messiânicas existentes e presentes, de maneira forte, no tempo precedente à vinda de Cristo.

b) Em se tratando do mundo do helenismo, é incontestável que de lá vieram muitos elementos influentes para o pensamento paulino como para os conceitos do cristianismo nascente. Essas averiguações são feitas especialmente por intermédio da história das religiões, quando se constata a presença de formas próprias advindas do mundo Greco-romano. Nesse sentido, o corpo literário de Macabeus e Sirácida atesta uma clara influência do helenismo no pensamento judaico em se tratando da concepção de Deus.

c) Nas cartas paulinas e no seu pensamento, é significativa a centralidade da referência

à sua conversão/chamamento, focalizando a relevância do seu encontro e à confissão da fé cristã nos inícios. A formulação de sua cristologia, então, recebe dessa referência uma considerável e determinante influência. Há de se considerar, pois, a relevância de sua experiência e a ligação desta com a confissão cristã primitiva.Em Gl 1,11-23 se encontra a mais antiga colocação de Paulo a respeito de sua conversão e suas conseqüências. Ele destaca que não recebeu o evangelho por meio de seres humanos. Sua experiência não é fruto de intervenções ou instruções humanas. Seu testemunho afirma que recebeu a revelação diretamente de Deus. É claro que o mais importante, ele enfatiza, é o Evangelho que recebeu, mais do que o fato de sua conversão, como conseqüência. Nesse sentido, verifica-se uma diferença entre a narrativa de Gálatas e as narrativas dos Atos dos Apóstolos, 9 e 22 que acentuam a perspectiva de sua conversão. Em Atos 9, Ananias cumpre o que lhe é designado de ir ao encontro de Saulo para lhe dar o sinal, ser batizado, enquanto em Atos 22, Ananias expõe algo acerca do encargo do apóstolo. Bem assim, como em relação à narrativa de Atos 26. De qualquer forma, é importante sublinhar que Paulo entende que sua missão, o encargo recebido e o conteúdo essencial de sua missão não vieram de seres humanos. É muito claro que Ananias não foi a instância última de instrução e encargo para Paulo na sua missão.

“ Mas o Senhor disse a Ananias: Vai, porque este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome às nações pagãs e aos reis, e também aos israelitas.” (At 9,15)

“Ele (Ananias), então, me disse: O Deus de nossos pais escolheu-te para conheceres a sua vontade, veres o Justo e ouvires a sua própria voz.” (At 22,14)

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“Todos nós caímos por terra. Então, ouvi uma voz que me dizia, em hebraico: Saul, Saul, por que me persegues? É inútil teimares contra o ferrão! Eu respondi: Quem és, Senhor? E o Senhor me respondeu: Eu sou Jesus, aquele que estás perseguindo. Mas, agora, levanta-te e fica de pé…” ( At 26,14-16)

2.2.Elementos referenciais importantes

Nesse âmbito estão alguns elementos de referência, muito importantes, a serem considerados: o Evangelho de Cristo, Cristo Ressuscitado e Exaltado, a corporalidade de Cristo, Cristo Salvador.

a) Paulo insiste no conteúdo do Evangelho e se preocupa com ele. Não é sua preocupação mostrar provas da autenticidade de sua condição de cristão. Ora, ele identifica o seu Evangelho com o “Evangelho de Cristo”, Gál. 1,7, isto é, o Evangelho que vem de Cristo, Cristo é o seu conteúdo. Por isso, ele acentua o querer de Deus na revelação do seu filho a ele, Gl. 1,15-16. O Filho de Deus é, pois, o conteúdo desta revelação. Isso comprova o seu testemunho de que não foi Ananias quem lhe ensinou algo sobre Cristo. Ananias lhe faz uma revelação profética, sem nenhuma instrução ou conselho oferecidos. Contudo, é importante ter presente que Paulo testemunha ter recebido tradições e ensinamentos sobre Jesus advindos de outros cristãos, como é o caso de Pedro, quando ele visitou Jerusalém, Gl. 1,18, bem como testemunha em Gl 2,1-10.

b) Cristo Ressuscitado e Exaltado: o apóstolo aprendeu que Cristo estava vivo. Ele era um fariseu e acreditava na ressurreição. Sem dificuldade, compreendeu que os cristãos professavam essa verdade da ressurreição de Cristo. Na 1ª Carta aos Coríntios, ele sublinha essa perspectiva:

“Eu não vi o Senhor ressuscitado?” ( I Cor 9,1) e I Cor 15,8: “…por ultimo, apareceu também a mim, que sou como um aborto.”

Paulo compreende que Jesus Ressuscitado, vivo no céu, é o ungido de Deus. Sua morte vitoriosa o entroniza como o ungido de Deus. Ele se fez maldição por todos a fim de redimir todos do jugo da lei. Assim, a ressurreição ilumina toda a compreensão de Paulo a respeito de Jesus e sua crucifixão (I Cor 12,3) Foi a sua experiência no caminho de Damasco que iluminou essa sua compreensão de Jesus. Anteriormente, ele via Jesus do ponto de vista meramente humano (II Cor 5,16), jamais como o messias judeu. Sua experiência o leva a ver Cristo Jesus como o Filho de Deus, naturalmente sustentado pelas tradições apostólicas compartilhadas.Sua experiência no caminho de Damasco o leva a compreender que Jesus é plena e estreitamente identificado com os cristãos. O Senhor ressuscitado pergunta a Paulo: “Por que me persegues? … Eu sou Jesus a quem estás perseguindo (At 9,4-5; At 22,7-8; At 26,14-15). Há, pois, uma conseqüente compreensão e conclusão de que os cristãos formam o povo de Deus. Deus estava muito próximo daquele povo perseguido por Saulo. Com esse povo, o Senhor se identificava. Assim, perseguir os cristãos, povo de Deus, era fazer oposição a Deus. As aflições dos cristãos eram as aflições de Deus.

c) Jesus, Salvador, sua corporalidade: Paulo compreende que, independentemente de suas ações, Cristo o interpela e lhe abre, por graça, a chance da conversão. A

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experiência dessa graça indica que Paulo deveria assumir uma nova postura em relação à lei. Até então, a lei tinha sido a referência central de sua vida religiosa. Cristo e sua experiência se tornaram, então, o centro de sua nova vida. Por isso, o apóstolo compreende que Cristo é o ápice da lei. Pela ação da graça, ele é capacitado para a obediência da fé. É a obediência da fé é fruto de uma experiência de gratuidade. Não funciona mais aquela compreensão em que a vida diante de Deus era vivida segundo o princípio ‘faz isto e viverás’. Obviamente que Paulo não desconsidera ou esvazia o sentido da lei mosaica. A lei mosaica é justa, santa e boa, e tantas de suas instruções têm um precioso valor moral. Mas, na verdade, a lei não alcança mais do que a indicação do que é bem e mal. Ela, em si, não capacita para a superação do mal. Só Cristo, por seu espírito, pode garantir a força e a condição para a superação do mal. Compreendemos porque Paulo se concentra na pregação de Cristo crucificado e ressuscitado, pois é Ele, Cristo, o evento que mudou a situação humana diante de Deus. É mediante a graça e a fé que se alcança a salvação. Paulo está consciente da força decisiva da escolha e da graça que recebe por Cristo, quando afirma:

“Quando, porém, Àquele que me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça, agradou reveler-me o seu Filho, para que eu anunciasse aos pagãos, não consultei carne e sangue…” ( Gl 1,15-16)

Ele está convicto de que a sua conversão tem tudo a ver com o seu chamado como missionário para anunciar o Evangelho de Jesus Cristo aos pagãos. Esse chamado compete a sua experiência da graça de Deus. Por isso mesmo, entendendo que diante de Deus vale a força da graça, entende também que não justifica e não tem sentido que qualquer um fique fora da graça de Deus. Assim, é de se pressupor que Paulo entende o coração do seu Evangelho a partir da sua experiência de conversão. O Evangelho, é, pois, uma experiência de conversão. A revelação de Cristo para ele é, pois, a experiência desta mudança, aquela luz que brilha e o cega. É a luz do Cristo Ressuscitado, a glória de Deus (Gl1,12.16/II Cor 4,6). Paulo entende, portanto, a revelação como a chegada da era escatológica, do tempo das coisas novas de Deus. Cristo se torna, então, conseqüentemente, o centro da lei e da ética. Por isso, ele relê a história de Israel à luz da história de Cristo.

3. A força estruturante da Cristologia no pensamento teológico paulino

A Cristologia Paulina emerge da experiência do encontro pessoal de Paulo com Cristo e da reflexão a respeito dele. Não bastaria ao apóstolo o conhecimento que possuía da Sagrada Escritura e da própria história humana para alavancar a rica abordagem cristológica por ele oferecida. A experiência do encontro é a fonte dessa compreensão rica. Cristo é, pois, o centro de sua reflexão. A centralidade de Cristo na sua reflexão lhe permite a configuração e articulação do seu pensamento teológicamente complexo e de diferentes nuances. Compreende-se, então, que Cristo, no seu encontro pessoal com Ele, é a chave hermenêutica da construção do seu patrimônio conceitual teológico. Sua compreensão de Cristo articula a novidade do seu pensamento e dá luz nova às raízes judaicas do seu conhecimento. Alguns conceitos no seu horizonte de compreensão revelam a asserção acima e comprovam a força estruturante de sua cristologia como base de seu pensamento teológico. Vale, pois, tomar os conceitos teológicos de Deus, Espírito, Cruz, Igreja, Cristão e dia final para perceber a riqueza

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semântica usada por Paulo para explicitar a sua compreensão de Jesus. Na verdade, ocorre, à luz da compreensão de Jesus, uma verdadeira nova sistematização do tecido da própria compreensão da fé, seja da fé hebraica, seja da fé cristã. Essa configuração singular vem da singularidade do mistério de Cristo que ele compreende e explicita. 3.1. DEUS: passa a ser compreendido não apenas como o Pai de Israel, o Deus do

Shemah (Ex 4,22: Dt 32,6; Jr 3,4.19; Os 11,1), ou pai do Messias, ou ainda o pai no sentido genérico ( I Cr 29,10; Is 63,15 ou M 6,9). Paulo focaliza toda sua importância maior na referência a Deus como “O Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 15,6; II Cor 1,3; 11,31). Ele sublinha, de modo muito especial, a dimensão relacional deste filho com o pai. O Pai envia ao Filho com a missão de realizar o ato central da história e de sua ação no mundo, a redenção. Há, nesse âmbito, uma perspectiva a ser sublinhada diferente da perspectiva presente na Haggadah pascal, presente em Dt 26,8, que pensa Deus como o Salvador, ele próprio, sem nenhuma mediação. Cristo, o Filho Amado do Pai, é o mediador. É por meio dele / dia que o Pai realiza seu desígnio de salvação. Nesta relação com o Pai, na morte de Cristo (Rm 7,4), na sua vida de ressuscitado ( I Cor 1,21), na sua pregação, e na condição do cristão, ele Cristo é o mediador. É por Ele que se chega a Deus. O uso de ‘prosagogé’, único em toda a Bíblia Grega, ocorrências na literatura paulina, em Rm 5,2 e Ef 2,18 e 3,12, acentua a perspectiva de que é por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo que chegamos à graça na qual somos salvos. Esse verbo tem na sua significação a nuance semântica da aproximação, num movimento semelhante ao do barco que se aproxima do porto; semelhante a alguém que é introduzido para audiência na presença do rei ou daquele que se aproxima do altar para fazer a sua oferta. Cristo, como mediador de Deus, seu Filho Redentor, elimina toda distância e sentimento de estranheza em se tratando da relação com Deus. Por Cristo, e com Cristo todo homem pode olhar a Deus face a face e dele se aproximar.

3.2. O Espírito era uma referência para falar de Deus, o Santo. Paulo o compreende e o qualifica como Espírito de Cristo (Rm 8,9), do Filho (Gl 4,6, de Jesus Cristo (Flp 1,19). É grande a importância do augúrio trinitário de II Cor 13,13:

“A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.”

É à luz da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo que se pode compreender e experimentar o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo.A Cruz na compreensão paulina tem seu sentido explicitado pela moldura que recebe do horizonte da cristologia. Ao falar de cruz, ele fala da cruz de Cristo, por isso tem sentido o convite de carregar a própria cruz. Pois que a cruz com Cristo se torna fonte de redenção. A cruz de Cristo é o instrumento de sua oferta redentora. Por isso, o cristão dela participa enquanto imersão no mistério da morte de Cristo, partilhando secundariamente dos seus sofrimentos. Por isso mesmo, Paulo compreende que os sofrimentos da missão apostólica significam essa participação secundária no sofrimento de Cristo. São os sofrimentos suportados pelo bem do anúncio do Evangelho de Cristo.

3.3. A Igreja é entendida, à luz da Cristologia, como Corpo de Cristo ( I Cor 12,27). Para além de um possível sentido de comparação metafórica, o apóstolo sublinha especialmente o sentido de que a Igreja não existe e não subsiste sem um especial

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relacionamento e referência a Cristo. É dele que vem a sua identidade. Uma identidade que sustenta o verdadeiro sentido de Povo de Deus.Bem assim, o Cristão só define sua feição autenticamente na medida em que vive sua vida ‘em Cristo Jesus’ e na medida em que nele Cristo vive. Esta vida do cristão, na perspectiva do dia final, ‘o dia do Senhor’, é compreendido como um momento decisivo vivido em Cristo e para Cristo.É inquestionável, pois, que Paulo configura sua teologia a partir da sua fé cristológica. Não é um segundo Deus, embora trabalhe de maneira clara sua própria ontologia pessoal. Sua condição própria é esta: reconduzir o homem a uma nova e profunda comunhão com Deus. Assim, seu senhorio realiza no mundo o senhorio de Deus. Cristo é, portanto o mediador entre Deus e o homem.

4. Repercussões hermenêuticas da Cristologia Paulina

A fé em Jesus Cristo é a referência hermenêutica determinante da experiência e do sentido de compromisso do apóstolo Paulo bem como de sua teologia. Na mesma perspectiva, como já referido, Paulo relê a tradição bíblica e judaica à luz da fé em Jesus Cristo. É da fé em Jesus Cristo que ele extrai os critérios para elaboração dos seus ensinamentos e as intuições para a concretização da missão cristã. Não se trata de um processo meramente teórico de elaboração. Na verdade, suas atividades missionárias e de evangelizador constituem o contexto próprio de sua elaboração e configuração do seu entendimento a respeito da experiência cristã.

O uso da Sagrada Escritura é abundante na elaboração teológica que Paulo produz, seja para a configuração da ética cristã, seja para delinear o sentido da esperança escatológica. O cumprimento das referências messiânicas em Jesus Cristo leva o apóstolo a reler com uma nova iluminação um conjunto grande de textos bíblicos. Conhecedor da tradição midráschica como método rabínico para leitura atualizante da Bíblia, bem como pesher da escola qumrânica , facilita a Paulo esta configuração de uma nova perspectiva hermenêutica para a leitura e atualização dos textos da Escritura. Nessa nova perspectiva hermenêutica, a iluminação determinante vem da pessoa de Jesus Cristo. Essa fé cristológica, de força hermenêutica determinante, não significa para Paulo um conhecimento meramente teórico ou de simples caráter histórico. A este tipo de conhecimento ele qualifica de ‘conhecimento segundo a carne (II Cor 5,16) O que conta para Paulo é o encontro com Jesus Cristo “constituído Filho de Deus”, ressuscitado dentre os mortos (Rm1,3). É a ressurreição que, naturalmente, determina e configura essa força própria da pessoa de Cristo como critério hermenêutico insubstituível para a releitura e compreensão dos textos da escritura e da própria vida. A morte de Cristo, seguida de sua ressurreição, é a fonte inesgotável do amadurecimento da Cristologia de Paulo, tornando-se o núcleo central do querigma/kérygma que ele recebeu e anuncia como fundamento de sua fé cristã. É a morte de Cristo Ressuscitado que tem a propriedade de configuração de sua perspectiva de fé. Assim, sua fé cristológica é configurada a partir de muitos títulos atribuídos a Cristo, como ‘Senhor’, ‘Filho’, ‘Salvador’. Na epístola a Tito, ele sublinha que os cristãos vivem na espera da vinda do “nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo” (Tt 2,13), reafirmando o seu papel único e insubstituível de mediador, evitando qualquer tipo de favorecimento de compreensão e práticas sincréticas. Essa mediação única e insubstituível de Cristo o localiza também numa relação única com Deus. Usando emprestada a linguagem da Bíblia, em referência à sabedoria criadora e reveladora que é chamada de ‘imagem’ de Deus, Paulo apresenta Cristo como ‘imagem de Deus’ e o ‘primogênito’ (cf. II Cor 4,4;

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Rm 8,29; Cl 1,15). Não menos importante é o uso que ele faz da tradição cristã primitiva para a formulação de sua fé cristológica. Essa tradição cristã tem seu eco na invocação de Jesus Cristo como Senhor, como aparece em I Cor 16,22: “Se alguém não ama o Senhor, seja anátema. Maraná thá, vem, ó Senhor”. Bem assim, Jesus é proclamado Senhor no contexto da experiência batismal, na liturgia eucarística e batismal, um critério determinante para reconhecer a autenticidade das manifestações carismáticas na comunidade de Corinto: “Ninguém pode dizer ‘Jesus é Senhor’, a não ser pelo Espírito Santo” ( I Cor 12,3).

É, pois, evidente que a cristologia paulina determina o horizonte de compreensão e significação de todas as demais perspectivas de sua teologia.

4.1. Do ponto de vista antropológico:

Paulo tem uma concepção cuja caracterização se define a partir da relação do ser humano com Jesus Cristo. Ele, Cristo, é uma espécie de selo de autenticidade da existência cristã. Assim Paulo compreende que todos aqueles que estão unidos a Cristo e com Ele formam um ser vivo único, participando de sua condição de Filho, são capacitados para tanto em razão de inserção batismal por meio da fé. Na condição de batizados, inseridos em Cristo, compartilham com sua condição de crucificado e ressuscitado. Tal intimidade traz ao crente a vitória sobre o pecado e, conseqüentemente, sobre a morte, o fruto do pecado. Paulo ensina, pois, que essa união a Cristo concede aos crentes a condição de viver a vida segundo um estatuto novo conduzido pelo dom do Espírito. A vida do crente, pois, é entendida como um contrato com Cristo. Um contrato que lhe garante a superação e a vitória sobre a morte:

“Sabemos que o nosso homem velho foi crucificado com Cristo, para que seja destruído o corpo sujeito ao pecado, de maneira a não mais servirmos ao pecado. Pois, aquele que morreu está livre do pecado.” (Rm 6,6-7)

É importante sublinhar que Paulo, ao focalizar que o corpo permanece por si vinculado ao regime do pecado e da morte, não está propondo uma antropologia de tipo dualista. A linguagem antropológica de Paulo nada tem a ver com o dualismo dos filósofos gregos. É verdade que ele retoma alguns elementos da antropologia grega para indicar o ser humano total, como em I Ts 5,23, “espírito, alma e corpo”. Mas, ao associar as paixões e os desejos do ser humano ao regime do pecado, Paulo entende a condição do ser humano sob o domínio do pecado enquanto um ser ou viver na carne. Por isso, ele fala dos desejos da carne que são contrários aos desejos do espírito. Os desejos da carne conduzem à morte; e os desejos do espírito conduzem à vida ( Cf. Gl 5,16-23; Rm 8,5-8). Por isso também, Paulo, ao falar de imortalidade e de incorruptibilidade, ele atribui essas qualidades ao corpo dos ressuscitados, diferentemente dos filósofos gregos que o fazem em referência à alma ou ao espírito.Assim, ele compreende que a presença e ação salvífica de Cristo é determinante no dinamismo da justiça e da vida na história humana. Assim como o primeiro Adão, com o pecado, introduziu a morte no mundo, Cristo, o Adão definitivo, é a origem de uma nova humanidade. Essa perspectiva comprova sua compreensão de Cristo, como aquele que é solidário com todos os seres humanos:

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“Por um só homem que pecou, a morte começou a reinar. Muito mais reinarão na vida, pela mediação de um só, Jesus Cristo, os que recebem o dom gratuito e transbordante da justiça.” (Rm 5,17)

É forte e determinante, portanto, que Cristo Jesus é a opção para o ser humano na vivência dramática de sua condição. Paulo, em Rm 7,18-13, descreve essa dramaticidade. Termina exclamando: “Infeliz que eu sou! Quem me libertará deste corpo de morte?” (Rm 7,24) A resposta a essa pergunta está na iniciativa de Deus Pai que mediante o envio de Jesus Cristo, o Filho, eliminou o pecado e assim tornou possível o que jamais a lei poderia alcançar, a plena realização da justiça de Deus.Essa radical mudança da situação dos crentes, por meio de Cristo, é o que Paulo entende como uma nova criação. Por isso ele proclama: “Ser ou não ser circuncidado não tem importância; o que conta é ser nova criatura.” (Gl 6,15) 4.2. Do ponto de vista da eclesiologia:

A cristologia Paulina também configura o tecido da sua eclesiologia. A atividade apostólica de Paulo, mediante o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, dá origem, nas grandes cidades da Ásia e da Grécia, a pequenos grupos de cristãos que se reúnem nas casas de pessoas abastadas. O triclínium de uma casa romana do I século comportava trinta a sessenta pessoas. Eram pequenas comunidades domésticas chefiadas por um casal cristão. Tais comunidades se encontravam em assembléia para a celebração da Ceia do Senhor, ou a solene oração comum. Tudo celebrado em memória da ressurreição do Senhor ( I Cor 16,2). Paulo, então, fala da “Igreja de Deus”, herança da tradição bíblica que designa o povo convocado por Deus no contexto da aliança. É o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo que convoca e configura a comunidade igreja. Na I Ts 1,1, Paulo fala da ‘Igreja dos Tessalonicenses que está em Deus Pai e no Senhor Jesus’. Paulo compreende que a Igreja é convocada por iniciativa gratuita de Deus. Na medida em que se acolhe o Evangelho de Jesus Cristo por meio da fé nasce a Igreja. Na sua linguagem eclesial Paulo inclui a expressão ‘o corpo de Cristo’ / ‘o corpo do Senhor’. Sua intenção é indicar um horizonte que ajude a superar as diferenças sociais e possíveis divisões, nascidas da tendência de privilegiar grupos que se reúnem nas casas, presididos por pessoas carismáticas ou de prestígio. É uma advertência para a importância da comunhão eclesial que não pode ser ferida. É o que vem tratado na I Cor 11, 17-22, especialmente no contexto da Ceia do Senhor, quando não se privilegiam os mais pobres, respingando, como ele observa, na Igreja de Deus que corre o risco de perder a credibilidade. Ora, o apóstolo recorda à Igreja que a Ceia do Senhor é a celebração de sua memória. Pois, quando se come deste pão e se bebe deste cálice, se está anunciando a morte do Senhor até que Ele venha. É preciso, à luz desta verdade, refletir sobre o próprio comportamento: “Examine-se cada um a si mesmo, e assim, coma do pão e beba do cálice, pois quem come e bebe sem distinguir devidamente o corpo, come e bebe sua própria condenação” ( I Cor 11,28-29). Fica claro que para Paulo há uma íntima interligação entre o corpo do Senhor e a Igreja de Deus. Os próprios dons vividos e recebidos na Igreja têm a ver e são possíveis quando se professa e se vive a fé como reconhecimento de que Jesus é o Senhor.

4.3. Do ponto de vista da escatologia:

A compreensão escatológica na teologia Paulina se expressa bem com a figura do atleta que se lança na corrida. É preciso viver para alcançar a meta. Seu testemunho significativo focaliza que foi agarrado por Jesus Cristo “visando ao prêmio

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ligado ao chamado que, do alto, Deus nos dirige em Jesus Cristo” (Fl 3,14). Ele completa:

“ Nós, ao contrário, somos cidadãos do céu. De lá aguardamos como Salvador o Senhor Jesus. Ele transformará o nosso corpo, humilhado, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, graças ao poder que o torna capaz também de sujeitar a si todas as coisas” (Flp 3,20-21).

É fácil concluir que o entendimento escatológico de Paulo se localiza no contexto da fé em Cristo Jesus, o Senhor Ressuscitado. Ele entende, pois, que a realidade última é a realização daquela relação com o Senhor Jesus, relação vivida agora por ele na fé. Os que crêem e vivem essa fé são associados a Cristo na sua vitória. A espera escatológica, a parusia, é a experiência máxima desta realização de encontro.É o momento definitivo da vitória sobre a morte porque os que estão mortos ressuscitarão para estarem todos e para sempre ‘com o Senhor’ (I Ts 4,17; I Cor 15,52). Paulo gostaria de passar para a vida definitiva sem experimentar a morte, por ser esta um trauma e uma ameaça angustiante (cf. II Cor 5,1-5). Contudo, ele reconhece que o ser humano não está preparado agora para o reino de Deus. Por isso diz: “É necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade, e que este ser mortal revista a imortalidade” (I Cor 15,53). Esta é a vitória definitiva de Cristo sobre a morte. É óbvio, portanto, que a compreensão escatológica de Paulo passou por mudanças quando ele se tornou discípulo de Jesus Cristo. Por exemplo, não é evidente que a concepção judaica concebesse duas vindas do Messias. Mas Paulo crê nessas duas vindas. Na verdade, Paulo passa a ler a história numa perspectiva de caráter escatológico. Ora, a morte de Cristo tinha desarmado o mecanismo das forças sobrenaturais do mal. O crente já não pode mais ser separado do amor de Deus por causa da morte redentora de Cristo. Ele afirma que a figura deste mundo passa (I Cor 7,31), mas ainda não tinha passado. O cristão era já uma nova criatura sem, contudo, ter experimentado fisicamente a ressurreição, a plena redenção do corpo (Rm 8,21-22). A fé cristológica de Paulo muda, alargando, sua compreensão escatológica porquanto não havia nenhuma evidência no Judaísmo primitivo expectativas de uma ressurreição individual, menos ainda uma ressurreição isolada do Messias antes da ressurreição dos crentes. Ele faz, pois, uma íntima conexão entre a ressurreição de Jesus e a ressurreição dos crentes ( I Cor 15). 4.4. Do ponto de vista da Soteriologia:

No âmbito da soteriologia também se constata uma nova configuração da compreensão teológica paulina a partir da sua fé cristológica. Não existe até o momento nenhuma evidência, por exemplo, de que houvesse expectativas nos judeus seus contemporâneos, da existência de um Messias crucificado. A história da morte e ressurreição de Jesus leva Paulo a repensar como a salvação aconteceria. Ele mesmo diz que essa mensagem era um escândalo para os judeus e tolice para os gregos ( I Cor 1,23)Mesmo a significação do Servo Sofredor de Is 53 não tem evidências de ser entendido pelo Judaísmo primitivo como referência à vinda do Messias, assim como foi aplicado ao ministério de Cristo. Nem mesmo o texto de Dt 21,23, ao falar da maldição de ser pregado no madeiro, refere-se ao Messias sofredor. Paulo, então, passa a compreender a salvação como um ‘já e ainda não’. Paulo trata amplamente tal questão em Rom 9-11, referindo-se particularmente ao plano de salvação de Deus para os judeus.

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4.5. Outras observações:

A Cristologia Paulina, portanto, causou impacto mesmo fora do contexto cristão primitivo. Por exemplo, é grande sua influência na chamada Carta aos Hebreus, como no 4º. Evangelho. No 4º. Evangelho se encontra uma compreensão de exaltação na morte sacrifical de Cristo, associando-o ao cordeiro pascal. Assim como a pneumatologia do 4º. Evangelho é relacionada com a compreensão da morte e ressurreição de Cristo ( Jo 14,18-21). Pode-se constatar sua influência na I Pedro e na IIa.

Um aspecto singular da Cristologia Paulina, como força de impacto, é o uso da fórmula ‘em Cristo’, para falar da união espiritual profunda entre Cristo e os cristãos. Esse é um conceito desenvolvido por Paulo sem paralelo no cânon do Novo Testamento. Essa é uma singularidade do modo como Paulo vê a condição daquele que crê inserido em Cristo. É a graça de Deus que realiza o processo de inserção e configuração do crente na morte e ressurreição de Cristo. Assim, a união do que crente com Cristo no seu corpo faz deste um em Espírito com Cristo.

Uma observação importante é que em Paulo não se encontra a referência de Jesus como o Filho do Homem, distinguindo-se dos Evangelhos. Paulo usa, na verdade, a tipologia do novo Adão. Portanto, Paulo se inspira mais no Gênesis do que em Dn 7 ou Ezequiel. A cristologia do Filho do Homem não focaliza com a perspectiva do novo fundador da nova raça do ser humano. Nesse sentido, a teologia do novo Adão é mais universal do que aquela do Filho do Homem. A teologia do novo Adão trabalha com o conceito de ser humano, abrindo espaço para inclusão tanto de judeus quanto de gentios, já que são humanos igualmente.

A Cristologia Paulina sempre impactou na história. Por isso mesmo, ela é central, até mesmo eclipsando outras cristologias no Novo Testamento. É uma cristologia complexa, desafiando a todo tipo de trabalho que tenta fazer um seu sumário. Suas partes não facilitam esta possível pretendida síntese. Para se compreender isso se diz que a Cristologia Paulina é fundamentada na história sagrada de Cristo que, por sua vez, tem suas raízes na história de Israel, como configuração da história de toda a raça humana.

5. Vocabulário teológico na construção da Cristologia Paulina

5.1. Dez imagens marcantes da Cristologia Paulina

I. A justiça de Deus se realiza mediante a fé em Jesus Cristo – Rm 3,21-31

Rm 3,21 – 21Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; 22justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem; porque não há distinção,

II. Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores – Rm 5,1-11

Rm 5,8 – 8Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores.

III. Cristo o novo Adão – Rm 5,12-21

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Rm 5,17 – 17Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo.

IV. Morremos com Cristo e viveremos com ele – Rm 6,1-11

Rm 6, 8 – 17Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo.

V. A pregação da cruz como força de Deus – 1Cor 1,18-31

1Cor 1,23-25 – 22Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; 23mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; 24mas para que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. 25Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

VI. JESUS CRISTO, o único alicerce – (1Cor 3,10-23)

1Cor 3,11 – 11Porque ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo.

VII. Os membros do corpo que formam um só conjunto - (1Cor 12,1-13,13)

1Cor 12,12-13 – 12Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo. 13Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito.

VIII - O glorioso ministério do Espírito – o tesouro - (2Cor 3,4-5,21)

2Cor 4,7 – 7Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós.

IX – O Deus despojado (Kenosis) – (Fl 2,1-30)

Fl 2,7 – 7antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, 8 a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz.

X – Ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja – (Cl 1,9-2,23)

Cl 1,18 – 18Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia, 19porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude.

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Títulos cristológicos

A titulação critológica na literatura paulina não inclui certos títulos próprios da tradição sobre Jesus, como mestre, profeta, filho do homem e servo. Paulo trabalha com três títulos fundamentais, com desdobramentos cristológicos qualificativos.Entre os títulos tradicionais estão: Cristo/ Christós; Senhor/Kúrios; Filho de Deus/Ùiós tou Theoú. Entre os títulos novos, desdobrados destes três tradicionais estão: Último Adão/ ò eschatos Adam; Imagem de Deus/ Eikón Theoú; Deus.

a) Cristo/Kristós

Este é o título mais freqüente, cerca de 270 ocorrências, com mais outras 114 nas cartas deutero - paulinas. De certo modo, o grande número de ocorrências leva a uma qualificação do título como nome próprio de pessoa, especialmente quando junto de Jesus, Rm 1,1, perdendo a força significativa de Messias. Parece que essa era já uma prática antes de Paulo. Talvez em Rm 9,5 e I Cor 10,4 esteja presente no vocábulo o sentido de título. Contudo, é observável que Paulo nunca afirma explicitamente que Jesus é o Cristo-Messias prometido no Antigo Testamento. Mas, parece que ele pressupõe o sentido de título quando “Senhor é Jesus”, Rm 10,9, I Cor 12,3, ou o “Senhor é Jesus Cristo”, Flp 2,11, ou “o Senhor nosso Jesus Cristo”, nunca usando “Senhor é Cristo”.A significação semântica desse título se apreende no enunciado das fórmulas de fé, referência aos conceitos relativos ao evento salvífico, como a cruz, os sofrimentos, a ressurreição, corpo-sangue, o Espírito, o ágape, a glória, a libertação, reconciliação, justificação, fé. Ele nunca diz ‘os sofrimentos do Senhor ou do Filho’. Ele sempre diz dos sofrimentos de Cristo, como em II Cor 1,5 e Flp 3,10. Compreende-se que Cristo designa a pessoa do evento salvífico. O título também aparece nas locuções eclesiológicas, seja em referências individuais, como apóstolo, servo, diácono. A referência é sempre ‘de Cristo’. Ou em referências de caráter comunitário como a expressão típica ‘corpo de Cristo’, significando pertença e ao que é constitutivo da vida cristã. Também, o título Cristo aparece nas parêneses, enquanto o apóstolo recomenda o acolhimento ou gestos fraternos e solidários como Cristo. Isso evoca o fundamento cristológico da ética e sua importância na obra salvífica de Cristo. Neste mesmo âmbito aparecem referências mais de tipo místico como aquela de Gl 2,20: “Não sou eu quem vive, é Cristo quem vive em mim” ou “para mim viver é Cristo.” (Flp 1,21)Outras ocorrências aparecem em referência à parusia quando se refere ao ‘dia de Cristo’, em Flp 1,6.10; 2,16.Conclui-se que a significação semântica da referência Cristo é consistente e própria. É diferente da compreensão semântica presente na lingüística messiânica do Judaísmo, contexto do qual ele procede. Cristo é, pois, é a referência que significa a indicação daquele que é o protagonista dos eventos salvíficos, o objeto essencial da fé e o elemento distintivo da identidade cristã.

d) Senhor/Kúrios

São 190 ocorrências deste título nas cartas autênticas e 82 nas deutero-paulinas, sendo que uma boa parte é referência a Deus, de modo semelhante à compreensão de sua tradição judaica. Isso se torna, naturalmente, um desafio hermenêutico. Quando, então, o título Senhor se une ao título Cristo o sentido cristológico é incontestavelmente evidente. São 64 ocorrências, como em Rm 14,14,

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quando Paulo diz: “Eu sou e fui persuadido pelo Senhor Jesus”, ou I Cor 9,1: “Não vi o Senhor?”.

‘Senhor’, como referência de significação cristológica, tem este sentido quando o título aparece inserido em frases como: I Cor 2,9 “...não crucificaram o Senhor da Glória?”; I Cor 6,14: “ Deus ressuscitou o Senhor”; I Cor 7,10: “ordeno não eu mas o Senhor”. Rm 14,6-9 o título ‘Senhor’ aparece por seis vezes em referência ao tema pascal do morrer-viver em Cristo. Compreende-se que dele como Senhor é que vem o sentido da vida e da morte do cristão.‘Em Cristo/ én Kúryó” ocorre cerca de 30 vezes com um evidente sentido cristológico, com alguma nuance tomada do Antigo Testamento, como em I Cor 1,31 e II Cor 10,17, em referência a Jer 9,23, mas em paralelo ao sintagma.Em algumas citações bíblicas o título se refere a Deus e a Cristo, como em Rm 10 citando Jl 3,5; I Cor 1,31 citando Jer 9,23; I Cor 2,16 citando Is 40,13; I Cor 10,26 citando Sl 24.

‘Dia do Senhor’/ éméra Kúryou tem raízes no Antigo Testamento, mantendo algumas vezes o sentido teológico original de ‘dia de ira e da manifestação do juízo de Deus’, como em Rm2,5. A conotação cristológica é evidente quando se usa a expressão “dia do Senhor nosso Jesus Cristo ( I Cor 1,8; II Cor 1,14), ou “dia de Cristo” ( Flp 1,6.10 e 2,16), ou ainda o uso tradicional de “dia do Senhor” ( I Cor 5,5; I Tess 5,2.4). Isso se confirma quando aparece em correlação à parusia, dita de Cristo (I Cor 15,23), ou do Senhor Jesus (I Tess 2,19; 3,13; 5,23), ou do Senhor (I Tess 4,15). Ou também nas referências às vindas futuras.

É importante sublinhar, nesse contexto, entre outros aspectos, a grande novidade cristã quando se trata do Shemá, a confissão fundamental da fé hebraica, Dt 6,4. Em Flp 2,11 o estrito monoteísmo hebraico é enriquecido pela introdução da qualificação “Deus” e “Senhor”, com uma evidente coincidência.

Em síntese, a semântica cristã da significação do título ocorre especialmente quando se trata de aclamações, quando os cristãos firmam sua identidade reconhecendo o Cirsto como seu Senhor e Senhor do mundo ( Rm 10,9; I Cor 8,6); e nas exortações parenéticas, quando se firma que o batizado não tem outro Senhor a não ser Jesus Cristo, no compromisso de viver toda a sua existência buscando agradá-lo (I Cor 7,10.32)

e) Filho de Deus/Ùiós toú Theoú

Este é um título raro nos escritos paulinos, embora de grande peso semântico. São 15 ocorrências ( Rm 1,3.4.9; 8,3.29.32; I Cor 1,9; 15,28; II Cor 1,19; Gl 1,16; 2,20; 4,4.6; I Tess 1,10; além de Col 1,13 e Ef 4,13).

No contexto pré-paulino, Rm 1,3b-4ª, a ótica é de uma cristologia ‘adocionista’, ligada à ressurreição como entronização real. Paulo ajusta essa perspectiva mostrando que Jesus é Filho desde sempre, como se vê em I Tess 1,10.

A significação aparece quando as fórmulas são de missão, (Rm 8,3; Gl 4,4) referência à condição divina do Filho de Deus pressupondo, pois, a sua pré-existência. Os verbos usados ( Ecsapésteilen e Pémpsas) evocam as ocorrências de Sab 9,10.17 quando se pede o envio da Sabedoria dos céus. O envio da Sabedoria significa a redenção da Lei, em Rm 8,3, agravada por sua conexão com o pecado. O resultado é a conquista da condição de filhos adotivos. É, pois, total a confiança depositada no Filho. Também aparece esta significação quando do uso das fórmulas de doação. Sublinha-se o gesto de benevolência. É o gesto de doação que Cristo faz de si, no esquema judaico da ‘áqedáh. Assim, Jesus é o conteúdo do Evangelho, como aparece nas narrativas da experiência na estrada de Damasco; a comunhão com o Filho traz a novidade

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antropológica da constituição da família de Deus, referindo-se aos batizados, entre os quais Jesus tem o papel de primogênito, Rm 8,29. Ainda, a significação aparece na referência à parusia, sublinhando a permanência de uma comunhão que sustenta o cristão diante da ira de Deus ( I Cor,19; I Tess 1,10, bem como a submissão escatológica do Filho ao Pai mostrando o que se chama ‘teoarquismo’ e ‘teotelismo’ do Pai no processo de salvação ( I Cor 15,28).

Esse título configura a proximidade e afinidade de Jesus Cristo com Deus, um relacionamento de geração e não de adoção. Contudo, este título que ocorre tão pouco não só ele diz tudo da afirmação da divindade de Jesus. Na verdade, o título Kyrios é que sugere e sublinha a equiparação de Jesus com Deus. O título Filho de Deus expressa o conceito de uma relação que une Jesus a Deus, impedindo que Ele como Senhor venha ser considerado como um segundo Deus.

Outros títulos ocorrem como “Último Adão” ( I Cor 15,45), quando Paulo acentua a tipologia antitética Adão-Cristo, em I Cor 15,21-22.45-49, focalizando a morte física e a ressurreição de todos; e em Rm 5,12-21, com uma perspectiva sobre o pecado, focalizando o resultado danoso do pecado e sua redenção. Observa-se que Paulo usa nessa tipologia Adão e não Moisés, acentuando a dimensão universal e menos aquela nacionalista.

Entre estes outros títulos, “Imagem de Deus”, II Cor 4,4, uma referência a Gn 1,26; 9,6, falando da imagem e semelhança; Sab 7,26 em referência à Sabedoria como reflexo da luz perene e espelho da luz sem mancha da atividade e da bondade de Deus.

É um título rico de significações. Cristo não é uma cópia, mas um representante vivo de Deus, por isso digno do culto de adoração religiosa. Os Cristãos são chamados a ser ‘conforme a imagem do Filho de Deus’ ( Rm 8,29). Isso significa dizer, um chamado à participação efetiva na filiação de Cristo, uma referência única para configurar sua identidade nesta e na outra vida. ‘Deus’ é também uma qualificação referida a Cristo, Rm 9,5, o Deus bendito nos séculos. Ele está acima de qualquer coisa. Ele não usa o título Deus para qualificar a Cristo. Em I Cor 8,6 distingue claramente entre ‘um só Deus’, referência ao Pai, e ‘um só Senhor’, em referência a Cristo. Não é que venha negada a divindade de Cristo. Ela é afirmada especialmente com os três conceitos tradicionais referidos anteriormente.

6. A relevância da experiência do encontro pessoal com Cristo

A Cristologia Paulina tem como ponto de partida uma experiência e não uma

referência doutrinal. Quando Paulo passa a falar de Cristo não o faz por ter ouvido dizer a respeito dele. Mas porque o encontrou na experiência singular vivida na estrada de Damasco. A singularidade dessa experiência se comprova, por exemplo, no fato significativo do seu discípulo Lucas, nos Atos dos Apóstolos, narrá-lo por três vezes em At 9,1-22; 22,1-21; 26,1-23 com ecos fortes em várias passagens de suas cartas, como I Cor 9,1; 15,8; II Cor 4,6; Gl 1,12.15-16; 2,20; Flp 3,7-10.12. Essa perspectiva não só toca profundamente a subjetividade do apóstolo como também reorienta toda a sua compreensão de mundo. Naturalmente, daí vem o seu ímpeto profético e a beleza sedutora do seu falar. Compreende-se, então, o que produz sua força querigmática na pregação, uma experiência pessoal de ter sido conquistado e de viver esta conquista com grande paixão. Ele diz: ...continuo correndo para alcançá-lo, visto que eu mesmo fui alcançado pelo Cristo Jesus. Eu não julgo já tê-lo alcançado. Uma coisa, porém,

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faço: esquecendo o que fica para trás, lanço-me para o que está à frente.” (Flp 3,12b-13)

Em Gl 1,15ss, Paulo expõe o alcance e a significação da cristofania acontecida, proporcionando o entendimento da experiência por ele vivida. São três componentes fundamentais na explicitação deste acontecimento, à luz da consciência que Paulo elabora do fato. Há uma componente de caráter teológico, na medida em que Paulo aponta Deus como o responsável e, também, o primeiro agente da experiência pessoal por ele vivida. Bem assim, a nomeação de Cristo como seu Filho. Por isso o apóstolo sublinha que Deus o colocou à parte, o chamou, revelou-se nele. Compreende-se, conseqüentemente, que o acontecimento é pela força da graça de Deus e de seu beneplácito amoroso. Paulo acentua que o encontro e conhecimento de Cristo é fruto da ação luminosa de Deus, como Deus que na criação, recordando Gn 1,3, ordena e acontece a luz. O seu coração foi iluminado por essa luz criadora de Deus.

Um segundo componente é, naturalmente, de caráter cristológico. O episódio revela a identidade de Cristo Jesus como Filho de Deus. Este título não expressa toda a riqueza da compreensão que o apóstolo tem da identidade de Cristo. Ele compartilha o grande impacto que a pessoa de Cristo causou na sua pessoa, levando-o a considerar como lixo tudo o que precedentemente era de grande importância para ele: “ Julgo que tudo é prejuízo diante deste bem supremo que é o conhecimento do Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele, perdi tudo e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo...” ( Flp 3,8).

O terceiro componente é de caráter missionário com raízes nos componentes precedentes. Ele sabe que o seu chamado é em razão da missão de anunciar o Evangelho aos gentios ( Rm 11,13). Assim, sua compreensão cristológica e teológica não tem um fim em si mesma. Mas, a razão é a missão recebida a partir do chamado que ele recebe. É central nesse componente missionário a consciência que ele tem e aprofunda de que Cristo Vivente é o verdadeiro mediador entre Deus e o homem. Para ele não é mais a lei. Existencialmente, ele experimenta a mediação de Cristo que modifica a sua vida e faz dele seu missionário. Embora não use o vocábulo discípulo, neste horizonte está a compreensão e a explicitação do que é ser e viver a experiência de discípulo.Nesse contexto é que se levanta a pergunta se a experiência vivida por Paulo é uma experiência de chamado ou de conversão. Em que categoria se localiza o que ele compartilha como sendo sua experiência central diante de Cristo Jesus? Alguns exegetas indicam que é mais pertinente pensar a categoria chamado. Isso porque o próprio apóstolo não faz uso, nas explicitações que faz dessa experiência, do vocabulário de conversão ( metanoein/ épistréfein), mas usa o vocabulário que se refere ao chamado (kalein/ áforizein, apokalúptein), sublinhando mais o aspecto teológico do evento do que aquele de caráter antropológico. Algo semelhante ao que viveram profetas como Isaías ou Jeremias. O próprio fato do acontecimento se localiza na estrada de Damasco, relembrando o que é próprio de uma vocação profética. É interessante, nesse sentido, observar a nuance em que o acontecimento de Damasco não identifica, imediatamente, a figura de Cristo com o Deus invisível e nem com um simples homem. Muitos pensam que Paulo interpretou o acontecimento nos parâmetros de categorias místico-apocalípticas, como se apresenta em Ezequiel 1. Uma ligação entre aspecto humano e divindade caracteriza a compreensão que Paulo dá ao entendimento desta cristofania. Nesse sentido são muitos elementos que podem ser explicitados para se configurar tal compreensão. No entanto, para se considerar a experiência como conversão se pode focalizar o elemento da descontinuidade na sua biografia. É a referência à passagem da sua condição de perseguidor àquela de evangelizador. Esta é, de fato, uma mudança muito grande. O que para ele era uma grande honra, a LEI, torna-se lixo.

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É importante considerar que Paulo não se converte a uma doutrina ou a uma instituição. Mas ele se converte a uma pessoa, Cristo Jesus, estabelecendo com ele um relacionamento vivíssimo e totalizante. Tudo é Cristo: “Não sou eu mais que vivo, mas Cristo vive em mim.” (Gl 2,20) A pessoa de Cristo se torna, pois, a verdadeira razão de ser e passa a ser o único e abrangente sentido de sua vida. Essa experiência pessoal se torna o substrato essencial de seu pensar e do seu agir. Não é uma referência para comprovar seus argumentos cristológicos ou outros quaisquer. A cristofania vivida por ele fundamenta e comprova o sentido profundo do seu apostolado.

A experiência de Paulo como conversão tem no seu reverso o chamado. Assim como o chamado tem no seu reverso a conversão. Isso significa dizer que o chamado inclui uma profunda experiência de conversão, dando sustento à condição de uma fecunda missão evangelizadora. Compreende-se que a experiência de conversão do apóstolo é conseqüência do seu chamado. O chamado exige intrinsecamente o processo de radical mudança. Só esta radical mudança como processo de conversão a Deus, constituindo o apóstolo, um apaixonado por ele, dá sustento e consistência à missão decorrente deste chamado. Distintas, a experiência do chamado e a experiência da conversão são inseparáveis. Só um chamado convertido sustenta a experiência da missão na grandeza do seu sentido e no alcance de sua significação.

7. Paulo, discípulo e missionário de Cristo (auto-retrato cristão)

Como fariseu, Paulo considerava Jesus um blasfemo e seus seguidores ignorantes iludidos por uma terrível heresia. Mesmo não tendo jamais encontrado com Jesus, Paulo sabia que ele fora um mestre ao qual se atribuíam muitas maravilhas; que sendo acusado pelos judeus do crime de lesa-majestade, foi crucificado pela ordem de Pôncio Pilatos. E que, após sua morte, seus seguidores haviam acreditado que ele fosse mesmo o Messias esperado.

Paulo havia julgado Jesus apenas segundo a carne, mas, a partir do seu encontro com o Senhor, tudo havia mudado radicalmente, como ele mesmo afirma: “Assim, doravante, não conhecemos ninguém à maneira humana. E se, outrora, conhecemos Cristo à maneira humana, agora já não o conhecemos assim. Portanto, se alguém está em Cristo, é criatura nova. O que era antigo passou, agora tudo é novo” (2Cor 5,16-17)

7.1. O encontro de Paulo com o Senhor

A mão e a luz de Deus atuaram sobre Paulo a ponto de transformar completamente sua vida, suas convicções, seus valores, seu modo de ver as coisas. Paulo menciona explicitamente seu encontro com o Senhor nas seguintes passagens:

1Cor 9,1“Acaso não sou livre? Não sou apóstolo? Não vi o Senhor Jesus? E não sois vós a minha obra no Senhor?”

1Cor 15,4-8 “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e, ao terceiro dia, foi ressuscitado, segundo as Escrituras, e apareceu a Cefas e, depois aos Doze. Mais tarde, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez. Destes, a maioria ainda vive e alguns já morreram. Depois, apareceu a Tiago depois, a todos os apóstolos; por último apareceu a

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mim, que sou como um aborto.”

Gl 1,11-12“Irmãos, asseguro-vos que o evangelho pregado por mim não é conforme critérios humanos, pois não o recebi nem aprendi de uma instância humana, mas por revelação de Jesus Cristo.”

A experiência do encontro de Paulo com Jesus foi totalmente inesperada. O

próprio Senhor Jesus toma a iniciativa e mostra a sua identidade a Paulo. A partir desse momento, Paulo passa a reconhecê-lo como o Messias e Senhor. O testemunho de Paulo sobre essa grande experiência é claro: “vi o Senhor Jesus”; “ele apareceu a mim”; “ele se revelou a mim”. Testemunho muito parecido com o de Maria Madalena que afirma: “Eu vi o Senhor” (Jo 20,18); com o testemunho dos dez apóstolos a Tomé: “Nós vimos o Senhor” (Jo 20,25) e também com o grito de Tomé: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28).

O chamado de Paulo através deste encontro todo especial com o Senhor foi construído literariamente por meio de analogias com as narrativas de vocação dos grandes profetas do passado: Isaías, Jeremias e Ezequiel. Vejamos os principais elementos comuns:

a. A purificação de Isaías e a experiência da luz iluminando e purificando os corações

Isaías (Is 6,5-7)“Ai de mim, estou perdido! Sou um homem de lábios impuros, vivo entre um povo de lábios impuros, e, no entanto, meus olhos viram o rei, o Senhor dos exércitos. Um dos Serafins voou para mim segurando, com uma tenaz, uma brasa tirado do altar. Com ela tocou meus lábios dizendo: Agora que isto tocou teus lábios tua culpa está sendo tirada, teu pecado, perdoado.”

Paulo (2Cor 4,5-6)“De fato, não é a nós mesmos que pregamos, mas a Jesus Cristo, o Senhor. Quanto a nós, apresentamo-nos como servos vossos, por causa de Jesus. Com efeito, Deus que disse: ‘Do meio das trevas brilhe a luz’, é o mesmo que fez brilhar a luz em nossos corações, para que resplandeça o conhecimento da glória divina que está sobre a face de Cristo.”

b. O chamado para ser a “luz das nações”

Isaías (Is 49,5-6) “E agora o Senhor vai falar, ele que desde o útero me vem formando para que eu seja seu servo, de volta lhe traga Jacó, e reúna Israel para ele. Fui valorizado aos olhos do Senhor, o meu Deus e minha força. Ele disse: ‘É bem pouco seres o meu servo só para restaurar as tribos de Jacó, só para trazer de volta os israelitas que escaparam, quero fazer de ti uma luz para as nações, para que a minha salvação chegue até os confins da terra.”

Paulo (Rm 15,15-16)“No entanto, em alguns trechos desta carta eu vos escrevi com certa ousadia, a fim de vos reavivar a memória em virtude da graça que Deus me deu: a graça de ser ministro de Jesus Cristo junto aos pagãos, prestando um serviço sacerdotal ao evangelho de Deus, para que os pagãos se tornem uma oferenda bem aceita, santificada no Espírito Santo”.

c. O chamado de Jeremias desde o ventre materno e o seu envio às nações

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Jeremias (Jr 1,5) “Antes de formar-te no seio de tua mãe, eu te conhecia, antes de saíres do ventre, eu te consagrei e te fiz profeta para as nações.”

Paulo (Gl 1,15-16)“Quando, porém, Àquele que me separou deste o ventre materno e me chamou por sua graça, agradou revelar-me seu Filho, para que eu o anunciasse aos pagãos, não consultei carne e sangue...”

d. A impossibilidade de lutar contra a escolha divina e os sofrimentos que isso implica

Jeremias (Jr 20,7)“Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir! Foste mais forte do que eu e me subjugaste! Tornei-me a zombaria de todo dia, todos se riem de mim.”

Paulo (Fl 3,7-8)“Mas estas coisas, que eram ganhos para mim, considerei-as prejuízo por causa de Cristo. Mais que isso, julgo que tudo é prejuízo diante deste bem supremo que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele, perdi tudo e considero tudo lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado unido a ele.”

e. A ação do Espírito de Deus dando consistência à missão do profeta e do apóstolo

Ezequiel (Ez 2,1-2)“Ele me disse: ‘Filho do homem, põe-te de pé! Quero falar contigo! Logo que ele me falou, entrou em mim um espírito que me pôs de pé. Então eu ouvi aquele que falava comigo.”

Paulo (Rm 8,14-15)“Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. De fato, vós não recebestes espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes o Espírito que, por adoção, vos torna filhos, e no qual clamamos: ‘Abbá, Pai!’.”

7.2. A nova identidade de Paulo em Cristo

A revelação do Cristo ressuscitado formou em Paulo de Tarso uma identidade nova. Suas antigas questões foram respondidas. Sua força espiritual foi plenificada. Sua coerência de fé se agigantou. Sua capacidade de doação e os muitos sofrimentos ganharam sentido. Com toda a bagagem cultural que havia herdado do judaísmo e do helenismo, transformadas agora pelo seu encontro com o Cristo vivo, Paulo está pronto para iniciar sua corrida como “Apóstolo das nações pagãs”.

Recompor os traços espirituais e teológicos da nova identidade do “Apóstolo das nações” consiste em uma desafiadora tarefa. Paulo se auto-apresenta em suas cartas do seguinte modo:

1Cor 1,1“Paulo, chamado a ser apóstolo do Cristo Jesus, por vontade de Deus...”

Rm 1,1.5

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“Paulo, servo do Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus. Por ele recebemos a graça da vocação para o apostolado a fim de trazermos à fé, para a glória de Deus, todas as nações.”

Os traços essenciais da identidade espiritual de Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo, podem ser identificados a partir de algumas perguntas fundamentais:

1. Como Paulo define seu próprio ministério?2. Qual é a fonte da autoridade e da jurisdição de Paulo?3. Quais as qualidades e os limites da personalidade de Paulo? 4. Por que Paulo não teme em colocar-se como modelo para os outros cristãos?5. Em que medida o trabalho braçal foi importante no desenvolvimento de sua

missão?6. Como Paulo integrou os terríveis sofrimentos em sua missão?7. Qual o auto-retrato de Paulo?

As respostas a essas perguntas, dentro das cartas, norteiam os rumos da árdua tarefa de compor o perfil espiritual de Paulo, homem novo em Cristo e Apóstolo de todas as nações. Pode se iniciar observando os títulos dados por ele a si mesmo para definir seu serviço na igreja: Apóstolo; Servo; Diácono.

7.2.1. Paulo Apóstolo

Contestado por muitos, Paulo é forçado, sobretudo, no inicio de sua missão a apresentar com todas as letras as suas credenciais de autêntico apóstolo de Cristo. Vejamos os textos principais:

Gl 1,1-2“Paulo, apóstolo – não por iniciativa humana nem por intermédio de nenhum homem, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dos mortos – e todos os irmãos que estão comigo...”.

1Cor 1,1“Paulo, chamado a ser apóstolo do Cristo Jesus por vontade de Deus...”

2Cor 1,1 “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus...”

Gl2,8-9“ De fato, o mesmo que tinha separado Pedro para o apostolado entre os judeus, preparou também a mim para o apostolado entre os pagãos. Reconhecendo a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e João, considerados as colunas da Igreja, deram-nos a mão, a mim e a Barnabé, como sinal de comunhão recíproca. Assim ficou confirmado que nós iríamos aos pagãos e eles, aos judeus.”

Ser apóstolo para Paulo significa ter sido preparado, separado, escolhido e

chamado por Deus mesmo para uma missão específica e necessária. Não podendo a comunidade cristã sobreviver sem o testemunho do apóstolo, pois “na Igreja, Deus estabeleceu, primeiro, os apóstolos...” (1Cor 12,28a), o ministério de Paulo foi estabelecido por Deus para dar vida, sustento e dinamismo às igrejas helênicas.

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Como apóstolo legítimo, autêntico, idôneo e autônomo, mesmo em profunda comunhão com “as colunas da Igreja”, Paulo pôde orientar livremente as suas comunidades, dar normas próprias para uma série de situações pastorais concretas e encaminhar soluções a pendências sem ter de consultar ninguém. Seu apostolado é conseqüência direta do encontro pessoal com o Senhor ressuscitado e da resposta fiel a ele, por meio de sua radical e total conversão.

7.2.2. Paulo servo

Paulo rejeitou, protestando com severidade, a tendência em Corinto de fazer várias “igrejinhas”; uma de Paulo, outra de Apolo, uma outra de Cefas e ainda uma outra de Cristo. Chega a perguntar com grande ironia: “Será Paulo que foi crucificado por amor a vós? Ou foi no nome de Paulo que fostes batizados?” (1 Cor 1,13)

Paulo se considera servo de Jesus (doulos). Ouçamos seu testemunho:

Rm 1,1“Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado a ser apóstolo, separado para o Evangelho de Deus...”Fl 1,1 Paulo e Timóteo, servos de Jesus de Cristo..”

1Cor 4,1“Que as pessoas nos considerem como ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus.”

Gl 1,10“Tenho eu buscado a aprovação dos homens ou a de Deus? Acaso procuro agradar aos homens? Se ainda quisesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo.”

Paulo não aceita ser igualado a Jesus. Jesus Cristo é o Senhor e ele, o seu apóstolo e discípulo, é o seu servo (doulos). Paulo sabe que “o servo (doulos) não pode ser maior que seu senhor, nem o mensageiro (apóstolo) maior do que aquele que o envia.” (Jo 13,16)

7.2.3. Paulo diácono

Dos títulos usados para definir sua missão, Paulo prefere se considerar um “diácono”, isto é, um servidor das mesas, um garçom, um ministro . Ao redor do ícone da “diaconia”, uma profunda teologia dos cargos e funções na igreja pode ser desenvolvida. Vejamos o belo caminho do serviço pelo qual Paulo nos conduz:

a. Diáconos da Nova Aliança : A Diaconia do Espírito para gerar a vida. A Diaconia da justificação e da salvação.

2Cor 3,4-9“É por Cristo que temos total confiança perante Deus. Por nós mesmos, não somos capazes de pôr a nosso crédito qualquer coisa como vinda de nós; a nossa capacidade vem de Deus, que nos tornou capazes de exercer o ministério (diaconia) da aliança nova, não da letra, mas do Espírito. A letra mata, o Espírito é que dá a vida. Se o ministério (diaconia) da morte, gravado em pedras com letras, foi cercado de tanta glória que os israelitas não podiam fitar o rosto de Moisés, por causa do seu fulgor, ainda que passageiro, quanto mais glorioso não será o

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ministério (diaconia) do Espírito? Pois, se o ministério (diaconia) da condenação foi glorioso, muito mais glorioso há de ser o ministério (diaconia) da justificação.”

b. Diáconos de Deus e Diáconos de Cristo: Nas dificuldades e sofrimentos, Paulo

é provado no seu serviço exclusivo ao Senhor.

2Cor 6,4-5“Pelo contrário, em tudo nos recomendamos como ministros (diáconos) de Deus, por uma constância inalterável em tribulações, necessidades, angústias, açoites, prisões, tumultos, fadigas, vigílias, jejuns...”

2Cor 11,23-28“São ministros (diáconos) de Cristo? Delirando, digo: Eu mais ainda. Muito mais do que eles, pelos trabalhos, pelas prisões, por excessivos açoites, muitas vezes em perigos de morte, cinco vezes recebi dos judeus quarenta chicotadas menos uma; três vezes, fui batido com varas; uma vez, apedrejado; três vezes naufraguei; passei uma noite e um dia em alto-mar; fiz inúmeras viagens com perigos de rios, perigos de ladrões, perigos da parte de meus compatriotas, perigo da parte dos pagãos, perigos nas cidades, perigos em regiões desertas, perigos no mar, perigos por parte de falsos irmãos; trabalhos e fadigas, inúmeras vigílias, fome e sede, freqüentes jejuns, frio e nudez; e, sem falar de outra coisa, a minha preocupação de cada dia, a solicitude por todas as igrejas.”

c. Diáconos da reconciliação : A Paulo e às comunidade cristãs, foi confiada a palavra da reconciliação. Nós, os cristãos, somos agora os embaixadores de Cristo.

2Cor 5,18-20“Ora, tudo vem de Deus, que, por Cristo, nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério (diaconia) da reconciliação. Sim, foi o próprio Deus que, em Cristo, reconciliou o mundo consigo, não levando em conta os delitos da humanidade, e foi ele que pôs em nós a palavra da reconciliação. Somos, pois, embaixadores de Cristo; é como se Deus mesmo fizesse seu apelo através de nós. Em nome de Cristo, vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus”.

d. Diáconos da Palavra de Deus e Diáconos do Evangelho: O Evangelho da

verdade ao qual Paulo serve é Jesus Cristo mesmo. Paulo leva essa verdade a toda a criatura debaixo do céu.

2Cor 4,1-2“Por isso, não desanimamos no exercício deste ministério (diaconia) que recebemos da misericórdia divina. Rejeitando todo procedimento dissimulado e indigno, feito de astúcias, e não falsificamos a palavra de Deus.”

Cl 1,23“Isso, enquanto permaneceis bem fundados na fé, sem vos desviardes da esperança dada pelo evangelho que ouvistes, pregado a toda criatura debaixo do céu e do qual eu, Paulo, me tornei ministros (diácono).”

e. Diácono da Igreja: Paulo aceita, com Cristo, sofrer por sua Igreja. Vejamos seu belíssimo testemunho:

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Cl 1,24-26“Alegro-me nos sofrimentos que tenho suportado por vós e completo, na minha carne, o que falta às tribulações de Cristo em favor do seu corpo que é a Igreja. Dela eu me fiz ministro (diácono), exercendo a função que Deus me confiou a vosso respeito: a de fazer chegar até vós a palavra de Deus, ministério (diaconia) que ele manteve escondido desde séculos e por inúmeras gerações e que, agora, acaba de manifestar a seus santos.”

7.3. Paulo age em nome de Jesus

A fonte de autoridade do Apóstolo não são mandatos humanos emanados de líderes superiores, mas origina-se na sua identificação plena com Cristo. Unido a ele e em nome dele, Paulo prega, escreve, exorta, admoesta, consola, corrige, em uma palavra, gera comunidade de fé em Cristo, como faz um pai (1Ts 2,11). Escutemos as próprias palavras de Paulo edificando a igreja de Deus:

a. Exorta em nome de Jesus:

1Ts 4,1“Enfim, irmãos, nós vos pedimos e exortamos, no Senhor Jesus, que progridais sempre mais no modo de proceder para agradar a Deus.”

1Cor 1,10“Irmãos, eu vos exorto, pelo de nosso Senhor Jesus Cristo, a que estejais todos de acordo no que falais e não haja divisões entre vós.”

2Ts 3,6“Exortamos, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que eviteis todos irmãos que leve uma vida desordenada e contrária à tradição que de nós recebestes.”

b. Dá ordens e preceitos em nome de Jesus:

1Ts 4,2“Sabeis quais são as normas que vos temos dado da parte do Senhor Jesus.”

2Ts 3,12“A essas pessoas, ordenamos e exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranqüilamente e, assim, comam o seu próprio pão.”

c. Faz correções e toma difíceis decisões em nome de Jesus:

1Cor 5,3-5“Pois bem, embora ausente fisicamente, mas presente em espírito, já julguei, como se estivesse aí entre vós, aquele que assim procede: em nome do Senhor Jesus, estado vós e eu em espírito unidos com o poder de nosso Senhor Jesus, entregamos esse indivíduo a Satanás, para a destruição de sua índole carnal, a fim de que seu espírito seja salvo no dia do Senhor”.

d. Faz revelações em nome de Jesus:

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1Ts 4, 15“Eis o que temos a vos dizer, de acordo com a palavra do Senhor: nós, os vivos, os que ficarmos em vida até a vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que tiverem morrido”.

Testemunha sua identidade em Jesus Cristo:

Gl 2,20 “Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim. Minha vida atual na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”.

2Cor 13, 3-4“Já que pedis uma prova de que Cristo fala em mim. Ele não é fraco a vosso respeito, mas, pelo contrário, tem mostrado poder, entre vós. É verdade que ele foi crucificado em razão de sua fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus. Nós também somos fracos nele, mas, pelo poder de Deus, estamos vivos com ele, em relação a vós”.

Fl 1,21“Para mim, de fato, o viver é Cristo e o morrer, lucro”.

A identificação espiritual profunda e a adesão vital ao mistério de Cristo de Paulo estão descritas de forma plena no clamor à igreja de Roma: “Quem nos separará do amor de Cristo?”. Vamos escutar essa bela confissão de amor:

Rm 8,35-39 “Quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada? Pois está escrito: ‘Por tua causa somos entregue à morte, o dia todo, fomos tidos como ovelhas destinas ao matadouro’. Mas, em tudo isso, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou. Tenho a certeza de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potências, nem a altura, nem a profundeza, nem outra criatura qualquer será capaz de nos separar do amor de Deus, que está no Cristo Jesus, nosso Senhor.”

Da mesma forma como Paulo age somente em nome de Jesus Cristo, suas cartas aprofundam e prolongam a força da Palavra de Deus que nele e em sua missão é manifestada às igrejas. Como Paulo mesmo nos diz: “Agradecemos a Deus sem cessar, porque, ao receberdes a palavra de Deus que ouvistes de nós, vós a recebestes não como palavra humana, mas como o que ela é de fato: palavra de Deus, que age em vós que acreditais.” (1Ts 4,13)

7.4. Paulo comprometido diretamente com Deus

Sendo a vontade de Deus a origem do ministério de Paulo, ele não aceita prestar contas a ninguém de sua missão, a não ser ao próprio Senhor. Mantendo sempre a plena comunhão com os outros apóstolos e com a igreja e Jerusalém, enfrentou com toda coragem e segurança os seus inimigos, chamando-os de “Satanás disfarçados em anjo de luz” (2Cor 11,14). Eis como Paulo testemunha sua responsabilidade unicamente diante de Deus:

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a. Paulo procurar agrada somente a Deus

2Ts 2,4“Mas Deus nos examinou e provou para nos confiar o evangelho, e é assim que falamos, não para agradar a seres humanos, mas a Deus que examina os nossos corações.”

Gl 1,10“Tenho eu buscado a aprovação dos homens ou a de Deus? Acaso procuro agradar aos homens? Se ainda quisesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo.”

b. Paulo aceita ser julgado somente por Deus

1Cor 4,3-5“Quanto a mim, pouco me importa ser julgado por vós ou por alguma instância humana. Nem eu me julgo a mim mesmo. É verdade que minha consciência não me acusa de nada. Mas isto não quer dizer que eu deva ser considerado justo. Quem me julga é o Senhor. Portanto, não queirais julgar antes do tempo. Aguardai que o Senhor venha.”

c. Paulo gloria-se somente no Senhor

2Cor 10.12-18“Na verdade, não ousamos equiparar-nos nem comparar-nos com alguns que se recomendam a si próprios. Quanto a nós, não nos gloriamos além da medida, mas somente dentro dos limites que Deus marcou para nós, fazendo-nos chegar até vós. De fato, não estamos ultrapassando os nossos limites, como seria o caso, se não os tivéssemos chegado até vós. Na verdade, somos os primeiros a chegar até vós pregando o evangelho de Cristo. Não nos gloriamos, indevidamente, em trabalho alheios. Mas esperamos que, com o progresso da vossa fé, nós também cresçamos sobremaneira no meio de vós, dentro dos limites marcados para nós. Assim, poderemos levar o evangelho além de vossas fronteiras, nunca nos gloriando do que os outros tenham feito no seu terreno e a seu modo. Quem se gloria, glorie-se no Senhor. Pois é aprovado só aquele que o Senhor recomenda, não aquele que se recomenda a si mesmo.”

7.5. Paulo um modelo a ser imitado pelos seguidores de Jesus

Como um exército vitorioso que recebe sacrifícios perfumados, assim Paulo vê a humanidade convertida como um grande sacrifício de louvor a Deus por meio de Jesus Cristo. Ele nos diz isto na bela imagem: “De fato, nós somos o bom odor de Cristo para Deus.” (2Cor 2,15a)

Indo ele à frente, como o comandante das fileiras de Cristo, sente-se como o elo unindo estreitamente as igrejas a Jesus Cristo. Por isso, ele pode afirmar com ousadia: “sede meus imitadores”. Ele se oferece como modelo para as igrejas nas seguintes situações:

a. Modelo de união com Cristo

1Cor 11,1“Sede meus imitadores, como eu sou do Cristo.”

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b. Modelo nas tribulações

1Ts 1,6“Tanto assim que vos tornastes imitadores nossos e do Senhor, acolhendo a Palavra em meio a muita tribulação e, no entanto, com a alegria que vem do Espírito Santo.”

c. Modelo de apóstolo trabalhador

2Ts 3,7-8“Sabeis muito bem como deveis imitar-nos, porque não vivemos entre vós de maneira desordenada. De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário enfrentamos um trabalho penoso e cansativo, de noite e de dia, para não sermos pesados a nenhum de vós.”

d. Modelo de solidariedade e de inculturação

Gl 4,12“Irmãos, eu vos suplico: sede como eu, pois eu também me tornei como vós.”

e. Modelo de pai que gera a comunidade em Cristo

1Cor 4,15-16“De fato, mesmo que tenhais milhares de educadores em Cristo, não tendes muitos pais. Pois fui eu que, pelo anúncio do evangelho, vos gerei em Cristo Jesus. Portanto, eu vos peço, sede meus imitadores.”

f. Modelo de conversão e de rompimento com o passado

Fl 3,17“Irmãos, sede meus imitadores, todos vós, e reparai bem os que vivem segundo o exemplo que tendes em nós. Já vos disse muitas vezes, e agora o repito, chorando: há muitos por aí que se comportam como inimigos da cruz de Cristo.”

7.6. Paulo consciente de seus limites

A estrutura física franzina, o semblante alquebrado, o temperamento explosivo e problemas de comunicação geraram muitas críticas ao ministério de Paulo. Mas, tendo consciência de tudo isso, pois sabe “que ele não é nada” (2Cor 12,11), Paulo faz da perseverança, da humildade e dos sofrimentos as marcas essenciais da pregação do evangelho. Ele mesmo nos fala de suas limitações humanas:

a. A personalidade tímida e as dificuldades com a retórica grega

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1Cor 2,1-4“Irmãos, quando fui até vós anunciar-vos o mistério de Deus, não recorri à oratória ou ao prestígio da sabedoria. Pois, entre vós, não julguei saber coisa alguma, a não se Jesus Cristo, e este, crucificado. Aliás, estive junto de vós com fraqueza e receio, e com muito temor. Também a minha palavra e a minha pregação não se apoiaram na persuasão da sabedoria, mas eram uma demonstração do poder do Espírito, para que a vossa fé se baseasse no poder de Deus e não na sabedoria humana.”

b. A presença física fraca diferentemente da força das cartas

2Cor 10,9-10“De fato, não quero dar a impressão de vos amedrontar com minhas cartas. Pois há quem diga: ‘As cartas são severas e enérgicas, mas a presença física é fraca e o discurso, desprezível.”

c. As fraquezas comuns a qualquer ser humano

2Cor 12,5-6“Quanto a esse homem, eu me gloriarei, mas, quanto a mim mesmo, não me gloriarei, a não ser em minhas fraquezas. No entanto, se eu quisesse gloriar-me, não seria louco, pois só estaria dizendo a verdade. Mas evito gloriar-me, para que ninguém faça de mim uma idéia superior àquilo que vê em mim e ouve de mim.”

d. O espinho na carne: angústia constante ou depressão; epilepsia, cegueira ou defeito na fala; febre malaria ou dor de cabeça muito forte; ou ainda os adversários que Paulo encontrou em todas as comunidades que fundou? (Em Tessalônica, os ociosos; em Filipos, Évodia e Síntique; na Galácia, judaizantes e acomodados; em Éfeso, ressentidos; em Colossas, místicos; em Corinto, os espirituais etc). Não dá para saber precisamente.

2 Cor 12,7-9“E para que a grandeza das revelações não me enchesse de orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás para me esbofetear, a fim de eu não me torne orgulhoso. A esse respeito, roguei três vezes ao Senhor que o afastasse de mim. Mas o Senhor disse-me: Basta-te a minha graça; pois é na fraqueza que a força se realiza plenamente.”

Não realizando o ideal do homem esteticamente perfeito grego, Paulo manifesta o homem perfeito em Cristo (Cl 1,28) e a criatura nova no Senhor Jesus (Cl 3,10). A formosura plena da nova criatura em Cristo somente poderá ser experimentada na eternidade. Esta certeza nos é assim anunciada por Paulo: “Nós, ao contrário, somos cidadãos do céu. De lá aguardamos como salvador o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo, humilhado, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, graças ao poder que o torna capaz também de sujeitar a si todas as coisas.”

8. Discípulo, aquele que imita o Mestre buscando Vida Nova

Paulo não se deu o título de discípulo e nem aos cristãos, usando esse vocábulo presente nos evangelhos. Contudo, claramente se percebe o seu interesse pela

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vida de Cristo e seus ensinamentos. Isso aparece no uso do vocábulo “Jesus” e “Cristo Jesus”. Mas pode afirmar-se que, na sua compreensão, o discípulo é aquele que assume a imitação do mestre. Cristo deu sua vida. Sua imitação inclui a corajosa oferta de si na caridade, abnegação e humildade. Os cristãos, portanto, são desafiados a humilhar-se e a entregar-se por seus irmãos. Cristo se fez pobre e de todos cuidou. Esse é o parâmetro da imitação que cabe aos seus discípulos, configurando o relacionamento com o Mestre. Nesse íntimo relacionamento, Paulo compreende que está o fundamento da moral dos discípulos, de tal modo que as relações humanas devem ser para facilitar a experiência do relacionamento com Cristo. O relacionamento com Cristo é a iluminação de todos os relacionamentos de modo que no outro cada um é chamado a ver o Cristo. No bilhete a Filêmon 915-16), com uma extraordinária delicadeza, Paulo faz uma comunicação ao seu discípulo Filêmon quanto ao retorno de Onésimo. Filêmon é instado a encontrar em Onésimo não mais um escravo, mas um irmão bem amado no Senhor Jesus. É Cristo Jesus quem permite alcançar a possibilidade desta igualdade. No contexto parenético de Romanos, 14-1-12, o apóstolo indica a importância do respeito a cada qual, particularmente o respeito à consciência dos fracos. Vivendo ou morrendo, tudo tem que ser para Cristo. Essa intimidade, configurando o relacionamento entre Cristo e os cristãos, tem uma adequada expressão na imagem tradicional do matrimônio. A intimidade com Cristo se constitui numa verdadeira união conjugal. Tal pertença não é jurídica. É uma propriedade que atinge o fundo do ser de cada discípulo.

Quando Jesus revela aos discípulos que eles tinham um Pai no céu sublinha que este é também o seu Pai. Ele é o Pai de misericórdia e das consolações, o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e nosso Pai ( II Cor 1,2-3).

O apóstolo explica, como em Gl 3,26ss, que a consciência do estado real dos filhos e filhas de Deus vem da ação do Espírito Santo. A fé em Cristo faz, pois, passar do estado de escravidão à condição da verdadeira liberdade.

“É porque sois filhos que Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama Abba,Pai.” (Gl 4,3-6)/ (Cf Rm 8,14-16) Este Espírito configura a verdadeira identidade de filhos de Deus. O apóstolo experimenta essa realidade de maneira muito forte, enchendo-o de uma confiança absoluta. Por isso ele exclama: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Rm 8, 35-39) Paulo entende que essa união profunda sustenta a participação do cristão na morte e na vida do ressuscitado. Esta união se verifica pelo batismo, pela Ceia eucarística, pela participação na paixão e participação na vida do ressuscitado.

A experiência do batismo, prática das primeiras comunidades, é a experiência de penitência e renúncia ao pecado para receber o dom do Espírito Santo. Paulo fala da riqueza desse rito, Rm 6,3-13, como uma consagração ao Mestre, vinculando o discípulo. Por isso, o mergulho do batismo é imagem de um sepultamento. É Deus operando para a conquista de uma vida nova, realidade ontológica que será acompanhada de novos costumes, excluindo o pecado.

A comunhão na Ceia eucarística, longe de toda idolatria, é a prova da experiência de profunda intimidade e proximidade do cristão de Cristo. Ele exemplifica: “Não sabeis que aquele que se une a uma prostituta torna-se com ela um só corpo? Mas quem adere ao Senhor torna-se com ele um só espírito.” (Rm 6,16-17) Esta união com o Senhor na Ceia tem, pois, uma importância fundamental e determinante. É um contato físico, real com o corpo e o sangue do Senhor, garantindo uma profunda união com ele.

A comunhão na Paixão de Cristo é muito forte na teologia Paulina. Ele enfrenta muitas dificuldades que são apontadas como fraquezas no seu ministério e na sua vida apostólica, os ataques dos judaizantes na defesa da lei, a atitude dos coríntios e

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outros pecados nas igrejas. Ele compreende e focaliza o sentido da participação dos sofrimentos de Cristo. A participação nesses sofrimentos garante a conquista da ressurreição. A ressurreição é a vida dilatada na alegria. A vida de Cristo se manifesta no seu corpo e no seu ministério. É o Espírito que faz experimentar a vida de Cristo no discípulo.

A Comunhão em Cristo, Hino

( Fl 2, 1-11 )

Súplica pela comunidade e hino

( Cl 1, 15-20 )

Saudação e hino( Ef 1, 3-14 )

¹Se, portanto, existe algum conforto em Cristo, alguma

consolação no amor, alguma comunhão no

Espírito, alguma ternura e compaixão, ²completai a minha alegria, deixando-vos guiar pelos mesmos propósitos e pelo mesmo

amor, em harmonia buscando a unidade. ³Nada façais por ambição ou van-

glória, mas, com humildade, cada um

considere os outros como superiores a si 4e não cuide somente do que é seu, mas

também do que é dos outros.

5Haja entre vós o mesmo sentir e pensar que no

Cristo Jesus.6Ele, existindo em forma divina, não considerou

como presa e agarrar o ser igual a Deus, 7mas

despojou-se, assumindo a forma de escravo e

tornando-se semelhante ao ser humano, E encontrando

em aspecto humano, 8humilhou-se, fazendo-se obediente até à morte – e

morte de cruz!9Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de

todo nome, 10para que, em o Nome de Jesus, todo

joelho se dobre, no céu, na terra e abaixo da terra, 11e

15Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, 16pois é nele que foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, os

seres visíveis e os invisíveis, tronos,

dominações, principados, potestades; tudo foi criado

através dele e para ele.17Ele existe antes de todas as coisas e nele todas as coisas têm consistência .

18Ele é a Cabeça do corpo, que é a igreja; é o

princípio, Primogênito dentre os mortos, de sorte

que em tudo tem a primazia.

19Pois Deus quis fazer habitar nele toda a

plenitude 20e, por ele, reconciliar consigo todos

os seres, tanto na terra como no céu, estabelendo a paz, por meio dele, por seu sangue derramado na cruz

3Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus

Cristo, que nos abençoou com toda benção espiritual

nos céus, em Cristo.4Nele, Deus nos escolheu,

antes da fundação do mundo, para sermos santos e íntegros diante dele, no

amor.5Conforme o desígnio

benevolente de sua vontade, ele nos

predestinou à doação como filhos, por obra de Jesus Cristo, 6para o louvor de sua graça gloriosa, com que nos agraciou no seu bem-amado. 7Nele, e por seu sangue, obtemos a

redenção e recebemos o perdão de nossas faltas,

segundo a riqueza da graça, 8que Deus derramou

profusamente em nós, abrindo-nos para toda a sabedoria e inteligência.9Ele nos fez conhecer o mistério de sua vontade,

segundo o desígnio benevolente que formou desde sempre em Cristo,

10para realizá-lo na plenitude dos tempos:

recapitular tudo em Cristo, tudo o que existe no céu e

na terra.11Em Cristo, segundo o propósito daquele que

opera tudo de acordo com a decisão de sua vontade,

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toda língua confesse: “Jesus Cristo é o Senhor”, para a glória de Deus Pai.

fomos feitos seus herdeiros, predestinados 12

a ser, para louvor da sua glória, os primeiros a pôr

em Cristo nossa esperança.13Nele, também vós

ouvistes a palavra da verdade, a Boa-Nova da

vossa salvação. Nele acreditastes e recebestes a marca do Espírito Santo

prometido, 14que é a garantia da nossa herança, até o resgate completo e definitivo, para louvor da

sua glória.

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