71

COZINHA GOIANA

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Edicao especial do livro de Bariani Ortencio

Citation preview

Bariani Ortencio

ConCeito e reCeituário

Goiânia, 2012

estudo da alimentação em Goiás

receitas • história • humor

edição especial limitada

FOTOBariani cOm peixe na Telha

Copyright © 2012 by Bariani Ortenciol

Programação Visual:ad arte & design / adriana almeida

Revisão:

CIP – Brasil – Catalogação na Fonte

Impresso no BrasilÍndice para catálogo sistemáticoPrinted in BrazilCdU: 2012

TOdOS OS dIREITOS RESERVadOS – É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio sem a autorização prévia e por escrito da autora. a violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal Brasileiro.

Contatos com o autor:

ORT Ortencio, Bariani.

cozCozinha Goiana – Edição Especial. / Bariani Ortencio.

Goiânia: editora, 2012.

000 p.

ISBN

1. Literatura brasileira - culinária. I. Título

CdU:

sumáriO

10 | Bariani Ortencio

11COZINHa GOIaNa |

Em 1966 eu e a regina lacerda (não se pode falar em Folclore em Goiás sem citar regina lacerda) levamos o ilustre folclorista, que nos visitava, edison carneiro, a uma fazenda de hidrolândia para uma tradicional “pa-monhada”. edison carneiro, intusiasmadíssimo, acompanhou a azáfama daquele pessoal, os homens incumbidos de irem à roça quebrar e trazer o

milho, cortar as pontas das espigas, as mulheres descascarem, outras tantas ralando, escolhendo as mais adequadas palhas, picando os queijos frescos e mais pedaços fritos de lingüiça de porco, tudo produção própria, as moças retirando os cabelos (do milho) encrostados nas espigas, o tempero num grande tacho onde a massa fervia na banha de porco, mexida por enorme colher-de-pau. Depois o enchimento com a massa nas palhas dobradas, amarradas com embiras das próprias palhas, com um nó para as de sal e dois nós para as de doce. Também as especiais com pequi, queijo e pimenta bode sem curtir. “pamonhada” que fazia amizades, proporcionava namoros, compradescos e até casamentos.

Edison Carneiro definiu que, a “pamonhada” em Goiás, não é apenas um prato culinário, mas, também, uma reunião social. e contou isso para o papa do Folclore brasileiro, o potiguar luis da câmara cascudo, que me enviou carta pedindo a recei-ta da “pamonhada” e mais algumas, pois estava concluindo o importante história da alimentação no Brasil. enviei-lhe, além de diversas “pamonhadas” mais 33 receitas típicas de Goiás, que figuram em 7 páginas de sua obra. Depois estive com ele no congresso de Folclore em natal (rn), em 1962, quando me ensinou e orientou-me para que fizesse um levantamento da culinária goiana. Meti mãos à obra e, em 1967,

cOmO TuDOcOmeçOu

12 | Bariani Ortencio

publiquei, pela Brasilart, do rio de Janeiro, a cozinha Goiana – estudo e receituá-rio. hoje está na quinta edição, saindo a sexta, pela editora Kelps, de Goiânia e essa especial com as principais receitas e ricamente ilustrada, em comemoração aos 40 anos da primeira edição.

Goiás tem sua cozinha forjada em três raças e em três etapas a indígena, ai africana e a portuguesa. a primeira teve início com os Bandeirantes que aqui chegaram para a cata do ouro fácil e a preagem de índios para escravos,servindo-se da cozinha indígena; a segunda, com a vinda dos negros para a mineração especializada, quando a mulher negra, então, alterou e melhorou a cozinha exixtente, tanto no modo de fazer como no de servir; e a terceira, quando os portugueses se fixaram definitivamente em terra goiana, trazendo para ca as suas famílias e seus costumes europeus. assim, pode-se entender a cozinha goiana como produto dessa mistura e da capacidade de adaptar-se às receitas com a substituiçao dos

ingredientes que aqui se cultivavam, sendo a carne a base da alimentação, além da pesca, da mandioca, do milho e da cana de açúcar.

1) a maioria das receitas deste livro foram colhidas ao sabor da fala dos in-formantes, procurando, assim, conservar os nossos costumes, as nossas tradições.

2) citamos bastante neste trabalho os costumes mineiros, por serem bem semelhantes aos nossos.

3) as receitas repetidas, como biscoito e pão-de-queijo, bolo de arroz, em-padão, etc., são para mostrar algumas diferenças que há sobre um mes-mo prato em diversas regiões do estado.

4) as obras citadas neste estudo estão representadas pelos seus respectivos números, na Biblioteca consultada (Bc).

“Edison Carneiro definiu que, a “pamonhada” em Goiás, não é apenas um prato culinário,

mas, também, uma reunião social. E contou isso para o papa do Folclore brasileiro, o potiguar Luis da Câmara Cascudo [...]

13COZINHa GOIaNa |

Regina Lacerda

— “Boca de forno?— Forno.— Tirar um bolo?— Bolo.— O que o mestre mandar?— Faremos todos”.— Vai regina fazer prefácio?— Vamos, sim senhor”.

Vamos elogiar a iniciativa do autor ao organizar um receituário com sentido de di-vulgar riquezas e sabores da cozinha goiana com temperos de sua mão rica dentro da simplicidade de cozinheiro, fidelidade de pesquisador, autenticidade e muito bom humor.

não se limitou Bariani a colher receitas. cita literatura, registra costumes, com-para técnicas, estuda influências com método e paciência, numa contribuição que excede as características de trabalho pioneiro.

Dezenas de autores foram consultados para alicerçar o trabalho naquilo que refere à tradição e história, fatos sociais estudados para explicação de mudanças de hábitos na alimentação da gente goiana. em andanças pelas diversas regiões do estado mais de uma centena de pessoas foram ouvidas na coleta de receitas e infor-mações sobre processos de cozer, conservar e temperar alimentos. Quantos cadernos enxovalhados pelo uso foram compulsados para cópias de receitas de bolos, pratos salgados, doces, refrescos, licores, vinagres e molhos.

preFáciO, se pODe ser

14 | Bariani Ortencio

como bom “gourmet”, entre pescadores e companheiros de caçadas aventures-cas no rio araguaia aprendeu comer e como preparar caças e pescados: “capivara no borralho”, “Jaó na brasa”, “paca recheada com guariroba”, “peixe moqueado na cava”, “Gemada de ovos de tartaruga”, “Tartaruga de cristão” e muitos outros.

Os assuntos correlatos mereceram cuidados até onde se pode tomar o comer ou o de comer como nome de lugares e apelidos de pessoas: “Biscoito duro”, “Quiabo assado”, “pé de porco” são nomes de vilas e arraiais, “pamonha”, “Broa” e outros, pejorativamente, apelidam pessoas.

provérbios; ditos e anexins tiveram capítulo especial, desde os mais conhecidos literariamente aos populares regionais: “comer como um padre”. “comer gato por lebre”, “comer o pão que o diabo amassou”, “papagaio come milho, periquito leva a fama”, “Galinha velha dá caldo grosso”, “Debaixo da farinha tem carne...”

Recolheu, que recolheu mas ficou incompleta aquele que justifica o abuso do vinho à mesa:

“Antes da sopa, molha-se a boca. No meio dela, molha-se a goela. Sopa acabada, boca molhada”.

Das festas tradicionais informa Bariani o que foram é o que são os bodos nas Festas do Divino, a ceia dos inocen-tes, e ceia dos cachorros. — Fala da fartura (pensão padre. rosa), e fala da fome (Bernardo); não se esquece das formas

de tomar os alimentos: “capitão” e “arremesso”, dos utensílios e utilização dos recur-sos naturais e produtos da lavoura.

na preocupação de esgotar o assunto ousa um capítulo à antropofagia! suavizando seu documentário, faz blague, conta anedotas, lembra fatos pito-

rescos com o que a gente vai deglutindo a matéria sem perceber que está estudando História, Etnologia, Economia, Folclore, Sociologia, para no final sentir o apetite

“Suavizando seu documentário, faz blague, conta anedotas, lembra fatos

pitorescos com o que a gente vai deglutindo a matéria sem perceber que está estudando História, Etnologia [...]

15COZINHa GOIaNa |

aguçado e verificar que em Goiás não se Come como Co-mem os brasileiros de outras regiões.

assim trabalhou Bariani; pesquisando, registrando; ouvindo, escrevendo; jantando, guardando cardápio e, fi-nalmente, organizando seu material dentro de um critério próprio, para oferecer aos leitores saboroso prato em forma de livro.

a cozinha Goiana de Bariani Ortencio não é apenas su-culento prato, é mesada servida por mestre a gastrônomos e estudiosos, em nome de quem, agradecemos à maneira dos “inocentes”:

“Deus vos pague a bela mesa que vóis deu pros inocente, transformada numa rosa pros anjo foi de presente”.

amém.

SOBRE REGINA LACERDA

Nasceu na Cidade de Goiás, no dia 25 de junho de 1919, filha de Umbelino Galvão de Moura Lacerda e de Zenóbia Santa Cruz Camargo Lacerda. Foi a pri-meira mulher a ocupar uma Cadeira na academia Goiana de Letras e faleceu em Goiânia, no dia 14 de dezembro de 1992.

Filiada à Comissão Nacional de Folclo-re e à associação Brasileira de Folclore de São Paulo; à Sociedade Luso-Brasileira de etnologia do Rio de Janeiro e à União Bra-sileira de Escritores de Goiás; associação Goiana de Imprensa; membro-fundadora da associação da Cultura Franco-Brasileira e ocupante da Cadeira nº 35, da acade-mia Feminina de Letras e artes de Goiás.

Publicou os seguintes livros: Vila Boa (folclore), premiada pela bolsa Hugo de Carvalho Ramos; Pitanga (poesias); Ce-râmica Popular (Monografia), pela Secre-tariada Educação e Cultura do Estado; Papa-Ceia (folclore), publicação do de-partamen-to Estadual de Cultura; Cidade de Goiás, berço da Cultura Goiana (con-ferência); antecedentes e repercussão da Independência de Goiás, editora Oriente; Henrique Silva, General das Letras Goia-nas, em 1973.

17COZINHa GOIaNa |

Beto Selva

Lembro deste livro desde o lançamento de sua 1ª edição nos idos de1967, época do glorioso e precursor Bazar Oió, da Goiânia adolescente, que já tinha orgulho de seus artistas e intelectuais, que iniciavam seus ofícios e plantavam as sementes do movimento cultural que resultou no que temos hoje.

naquele momento, como não tinha muito interesse em gastronomia, a não ser visitas periódicas na cozinha como glutão, o aspecto do livro que me chamou a aten-ção, foi o do enfoque diferente e sui generis que o autor deu ao assunto, misturando receitas, informações históricas relevantes e o humor dos causos pitorescos cons-tantes em toda a obra. não prestei muita atenção nas receitas, mas após ler o livro, me senti mais informado sobre nossa cultura e da formação de nossa identidade. senti, talvez pela primeira vez, o que era ser um brasileiro Goiano.

Os anos foram passando e novas edições foram surgindo com algumas poucas mudanças em seu aspecto conceitual, mas sempre ampliando o estoque de receitas, graças a colaboradores que sempre aparecem com novas e diferentes receitas, ou modos de fazer e que passam ao autor em seus encontros em conferencias,palestras em escolas, na rua, em feiras e quase sempre com observações como: essa é a ver-dadeira, essa é a melhor, ou a mais tradicional, essa é do caderninho da minha mãe, etc. Isso significa que essa é e será sempre uma obra em processo de ampliação, pois como a culinária é dinâmica e uma das mais importantes manifestações de arte, cultura e prazer, podemos sempre esperar novidades em novas edições, mas sempre amparadas pelos pilares das receitas tradicionais, das invenções pioneiras de nossas

apresenTaçãO DaeDiçãO especial

18 | Bariani Ortencio

cozinheiras anônimas, dos muitos caderninhos de receitas que fizeram e ainda fazem essa nossa história gastronômica.

nas mudanças impostas pelo destino, comecei em minha vida adulta a trabalhar em hotéis, lanchonetes e restaurantes , para sobreviver fora do país. como lavador de pratos e ajudante de garçon, passei a freqüentar a cozinha profissional e então pres-tar mais atenção à função dos cozinheiros e admira-los como comandantes de uma atividade dinâmica e de muita criatividade. percebi aí a possibilidade de preencher uma lacuna da minha vida que me causava alguma frustração, a de ser grande admi-rador das artes, mas não ter dons artísticos. passei a ser um aprendiz de cozinheiro por vontade própria e ainda o sou, feliz e quase realizado. com essa nova visão e

prática passei a ver o livro a cozinha Goiana, mais no seu aspecto de culinária e na prática de passar das receitas para produtos acabados, cozinhar propriamente dito. aí então, outro aspecto me chamou a atenção, o de que o pesquisador, como escritor que é, em seu trabalho de campo e em sua finalização intelectual, se ateve a conclusão do projeto, que levou 15 anos para terminar e realmente não se sentiu na obrigação de comprovar ou testar todas as receitas, pois esse não é apenas um livro de receitas, é um inventário completo dos costumes alimentares da nossa terra, que ajuda inclusive na consolidação da gastronomia nacional, que é a somatória de informações dos costumes alimentares regionais. poder-

-se ia extrair um ou mais livros de receitas dessa obra, mas nunca faze-la apenas um livro de receitas.

com esse pensamento em mente e a facilidade de acesso ao autor, sr. Waldomi-ro, meu sogro a mais de 30 anos, passei a desafia-lo a fazer uma edição do A cozinha Goiana, com um pouco mais cara de livro de culinária, com mais detalhes do modo de fazer e das técnicas usadas, com mais ilustrações e me coloquei a disposição para ajudá-lo no que me fosse possível. ele topou a idéia, mas disse que por estar muito ocupado com outras produções literárias, me delegaria a missão de organizar esse trabalho. Quer dizer: O desafio passou a ser meu. Topei a empreitada. Fomos pri-meiramente à editora Kelps expor a idéia ao editor, sr. antonio almeida, que gostou

“O pesquisador, como escritor que é, em seu trabalho de campo e em sua finalização

intelectual, se ateve a conclusão do projeto, que levou 15 anos [...] pois esse não é apenas um livro de receitas [...]

19COZINHa GOIaNa |

e se colocou a disposição em ajudar no que for possível. reivindiquei um fotografo profissional para iniciar o trabalho de campo e o Bariani me apresentou o Nelson santos, auto proclamado ‘o fotógrafo lambe lambe da cultura goiana’ . precisava de um designer para o projeto editorial e o Nelson me apresentou o Josemar Callefi e com essa pequena equipe demos os primeiros passos. Fizemos algumas viagens para fotografar e compilar receitas em suas origens. participamos de muitas comilanças, festas tradicionais, etc. sempre norteados pela obra pioneira do Bariani.

impressionou-me sobremaneira, a receptividade que encontramos no desen-volvimento dessa tarefa. sou testemunha da grande receptividade dessa obra, as-sim como da simpatia e admiração que o Bariani exerce em todos os cantos desse Goiás.seu nome abriu portas e facilitou tudo.consegui colaboradores em todos os segmentos,desde intelectuais proeminentes do cenário cultural do estado,artístas plásticos de renome ,fotografos, professores de gastronomia, cozinheiros anônimos, restauranteiros, donas de casa,etc.

As dificuldades que encontrei, foram a disponibilidade do meu tempo e o ta-manho da obra. Ao pesquisar as diversas edições, eu ficava imaginando o trabalho que teve o pesquisador para conclui-la, pois não foi apenas um trabalho de compilar receitas, mas um completo estudo histórico-antropológico dos costumes e influên-cias que teve esse povo, desde seus autóctones, até sua formação como brasileiros goianos atuais. senti-me pretensioso em querer mexer nesse trabalho já acabado e bem feito, mas ao mesmo tempo percebi a oportunidade de participar dessa obra tão importante, a qual me agarrei como apenas mais um colaborador e espero, um continuador.

comer é mais que garantir a sobrevivência. É na mesa que a humanidade co-memora tudo, principalmente as alegrias. É na cozinha que se aprofunda as relações familiares e sociais, que se comemora a vida, a saúde, e onde experimentamos um dos maiores prazeres da existência humana. em Goiás esse prazer ainda não esta de todo comprometido com as práticas rasas desse tempo apressado. Graças a trabalhos como a cozinha Goiana, podemos nos considerar preservados.

20 | Bariani Ortencio

21COZINHa GOIaNa |

a cozinha Goiana iniciou-se com a entrada dos primeiros homens brancos, os Bandeirantes, em 1592. É oriunda de três civilizações: a indígena, dos nativos da terra; a africana, dos escravos negros; e a européia, com a chegada das famílias portuguesas. as receitas, os ingredientes para comporem as iguarias culinárias eram executadas de

conformidade com os produtos alimentícios existentes na região e, também, com as substituições desses produtos: não havia a batatinha inglesa, mas havia a mandioca e o inhame nativos; a serralha entrava no lugar do almeirão, a taioba substituindo a couve... Os Bandeirantes trouxeram algumas sementes e foram fazendo roças.

por conseguinte, a cozinha Goiana conta com mais de 1.200 iguarias, pratos registrados nos diversos compêndios especializados.

assim, as primeiras mulheres que cozinharam cereais, tubércu-los, frutos culinários, em Goiás, foram as goiases, ao tempo em que os Bandeirantes vieram fazer a preagem e buscar ouro de aluvião. Depois, as mulheres negras, quando chegaram com os escravos para explorarem a mineração. as mulheres indígenas abandonaram as panelas dos brancos para darem lugar às escravas negras. mais tarde cuidaram da cozinha, as mulheres portuguesas, utilizando e instruin-do as negras escravas. não será necessário dizer da melhora do cardápio da cozinha goiana com estas substituições.

assim, ali, onde viveram os Goyazes (Goyaz = muitos índios juntos), os bandeirantes paulistas-portugueses, mesclaram a sua ali-

a mulher VilaBOense e a culinária

“Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro.Taipa de lenha.Cozinha antigaToda pretinha.Bem cacheada de picumã.Pedra pontuda.Cumbuco de coco.Pisando alho e sal.

(Cora Coralina)

22 | Bariani Ortencio

mentação, não deixando de “saborear” o cauim mascado (bebida alcoólica fermen-tada por milho mascado pelas índias velhas da tribo). como dissemos, surgiram as primeiras iguarias à base das misturas, do caldeamento dos alimentos, ficando este mister por conta exclusivamente das mulheres.

De início tudo se deu às margens do rio Vermelho, onde se plantou o arraial de sant’ana, Vila Boa (Buena, em homenagem a Bartolomeu Bueno), depois Goyaz, capital do estado, hoje cidade de Goiás. a cidade de Goiás, além de ex-capital do

estado, mantém o cetro de capital da cultura Goiana.aquelas mulheres habilidosas, criativas, engenhosas,

multiplicaram as iguarias e emanaram e continuam man-dando as suas alquímicas culinárias para o resto do estado, saltando o rio paranaíba, para o Brasil e até para além mares.

pratos que enriquecem a história da alimentação brasi-leira, do trivial ao requinte, nas reuniões familiares e nas fes-tas tradicionais, como a empada Goiana (empadão), o peixe na Telha (prêmio cheques cardápio), a pamonhada, a Ga-linhada, o Bolo de arroz, o arroz com pequi, a Tigelada de Guariroba, o alfenim, o mané-pelado, o licor de Jenipapo, para citar apenas uma dezena destas maravilhas gustativas,

que constituem a cabeça, o carro-chefe da culinária goiana.a Galinhada e a pamonhada já não são mais apenas pratos, iguarias da nossa

cozinha, pois se tornaram reuniões sociais. a pamonhada empurrou os homens para a cozinha, cortando e ralando o milho. Atualmente ficam por conta dos homens, os churrascos, as peixadas, as feijoadas...

as maravilhosas mulheres vilaboenses são as melhores doceiras de que se têm notícias neste planeta. ninguém consegue o toque individual que elas têm. não so-mente nos doces, mas em todas as iguarias. para o Bolo de arroz, para o pão e o Biscoito de Queijo, por exemplo, toma-se a receita, preparam-se os ingredientes, pesam-se e medem-se rigorosamente todos eles, mas, no finalmente, não saem como as originais, porque faltou o toque, o jeito de fazer, o jeito mágico de pôr a mão.

e por falar nas mulheres tradicionais da cidade de Goiás, não vamos dissertar sobre elas, como a maior conhecedora da cultura popular desta região-central do

“Vamos citar apenas uma delas, que rasgou o manual da conduta austera da sua

cidade: anna Lins dos Guimarães dos Peixoto Bretas, a poetisa-doceira mundialmente conhecida por Cora Coralina [...]

23COZINHa GOIaNa |

Brasil, que foi regina lacerda; nem da autora consagrada dos quadros plásticos pin-tados com as areias multicoloridas da serra Dourada, a extraordinária Goiandira do couto; nem vamos falar da educadora mestra inhóla, a musicista nhanhá do couto... Vamos citar apenas uma delas, que foi uma vilaboense, como chiquinha Gonzaga, que rasgou o manual da conduta austera da sua cidade: anna lins dos Guimarães dos peixoto Bretas, a poetisa-doceira mundialmente conhecida por cora coralina. esta senhora quase centenária, dizendo que era filha de todos os tempos, vinda do século passado, fazia doces inigualáveis, fazia versos que contêm música e deu lições de vida para a juventude, com aquela sua voz tonitruante, que todo mundo ouvia. não somente nos doces, que quando as mãos e a cabeça não se concentravam nos versos, estavam nos tachos de cobre, no fogão à lenha, nas gamelas com as massas, uma usi-na alquímica de alimentos tradicionais. cora não criava pratos, ela os aperfeiçoava. Ditava ditos: “a mulher inteligente prende o seu homem pelo molho”.

24 | Bariani Ortencio

FOTOcaValhaDas

25COZINHa GOIaNa |

TraDiçÕesinFluÊnciase cOsTumes

27COZINHa GOIaNa |

“O índio sustenta-se quase exclusivamente de carne e peixe. Desde a lagartixa até a anta, a onça e o jacaré, desde o caramujo e a ostra até o pirarucu e o peixe-boi, tudo lhe é carne ou peixe e lhe serve de alimento, bom e sadio, e ele o prova com a sua robustez e com o grande número de anos a que atinge antes de lhe vir a decrepitude. notarei, para que se não faça idéia errônea de sua higiene alimentar, pelo que acabo de dizer, que, ao passo que eles se alimentam de muitos animais, que não comeríamos sem grande repugnância, não comem muitos dos que nós comemos; exemplo: a piraíba, grande parte dos peixes de pele, aves e pássaros em certas épocas do ano, por serem nocivos à saúde”. (Bc-69, pg. 285).

“O peixe e a caça, os principais elementos do sustento diário, conseguem-nos pela pontaria certeira das flechas e arpões, de que se servem com perícia inimaginável. E completam o cardápio a mandioca, o milho, os cocos, as frutas silvestres, o mel e às vezes a abóbora, a banana, a cana, a melancia”. (Bc-38, pg. 129).

“adoram a rapadura e a farinha de mandioca, que suplicam invariavelmente aos cristãos viandan-tes, porque não lhes apetecem ao ócio os servidos de tais indústrias facílimas. cozidos nas panelas, ou assados nos braseiros, os alimentos estão assim prontos para serem digeridos, sem o mínimo tempero, e apenas de quando em quando, por extravagância, adubam as carnes com a polpa ralada de um fruto ácido”. (Bc-38, pg. 129).

moqueado: “cássio e Oscar, porém, acharam-nos excelentes após serem moqueados, sistema de cozinha dos índios já por nos praticado comumente. O modo é simples e consiste em colocar a carne sobre improvisado jirau de madeira, entretendo-se o braseiro por baixo até assá-la. a diferença está em que nós usamos sal e outros temperos, enquanto os selvagens a ingerem sem o mínimo ingrediente”. (BC-38, pg. 71).

inhames: O inhame como alimento foi muito usado entre os índios, principalmente os caiapós. O seu uso é mais como remédio do que alimento. Dizem ser o inhame um grande depurativo do sangue. antigamente comia-se mais o inhame com esse intuito.

alimenTaçãO inDÍGena

28 | Bariani Ortencio

“O peixe e a caça, os principais elementos do sustento diário, conseguem-nos pela pontaria

certeira das flechas e arpões, de que se servem com perícia inimaginável. [...]

calugi ou cauim: “entretanto e costume entre eles o pre-paro de uma bebida alcoólica pelo cozimento do milho e da mandioca, que fermenta em 24 horas por via de processo abo-minável e nojento, a semelhança do cauim dos tupis. cumpre às mulheres mastigar demoradamente a pasta e cuspi-la depois na mesma panela, servindo a saliva de agente para a lavoura que se vai originar. e no dia seguinte a tremenda porcaria, cha-mada calushí, amanhece no ponto de um paladar excelente, consoante tenho o direito de imaginar pelas caras entusiásticas dos seus bebedores”. (Bc-38, pg. 130).

comida para os mortos: “em primeiro lugar quem visi-ta um cemitério indígena reconhece as sepulturas por pane-las, que eles depositam junto das covas, nas quais colocam comida; as armas do morto o acompanham, porque ele ne-cessita de comida e das armas para prover o seu sustento”. (Bc-69, pg. l64).

poucas, ou nenhuma mulher branca, acompanhavam os bandeirantes em suas expedições de desbravamento do inte-rior brasileiro. a mulher indígena foi nossa primeira cozi-nheira, ajudando os desbravadores brancos, introduzindo na nossa culinária os produtos da mandioca, do milho, algumas frutas silvestres, como o pequi, e os assados no moquém e no borralho,com folhas envolvendo carnes de caças e os pei-xes. portanto, com a utilização do assado, a técnica primitiva usada por nossos primeiros cozinheiros e a adição do sal, trazido pelos portugueses-paulistas, nasce a cozinha Goiana que, depois sofreria grandes influências das negras africanas e das brancas européias.

Pint

ura:

Di M

agal

hães

Pint

ura:

Di M

agal

hães

29COZINHa GOIaNa |

O que comeram os Bandeirantes por aqui, quando nos des-cobriram? Qual o cardápio do pessoal de manoel correia, de sebastião marinho (1592), de João pereira de sousa Botafo-go? e Domingos rodrigues (1596), Belchior Dias carneiro (1607), Martim Francisco Tenório de Aguiar (1608), Antônio Pedroso de Alvarenga (1615)? E os famosos Antônio Pires de Campos e Bartolomeu Bueno da Silva (1674)? O que comeram e como comeram eles?

acompanhemos os relatos anotados pelo emérito prof. Zoroastro artiaga em sua “história de Goi-ás”: “a alimentação consistia em arroz, feijão, carne de sol, palmitos, peixes e farinha de mandioca, quando havia. este cardápio era inteirado com alguma caça: aves, pássaros, camaleões e tatus. muitas bandeiras invernavam durante meses para fazerem roça”. (Bc-32, pg. 29).

“neste lugar começou a haver a falta de mantimento e assim foi preciso marchar 5 dias passando mal, e comendo o que dava a espingarda: pássaros, macacos, palmitos e algum mel”. (Bc-32, pg. 53).

“no segundo dia que marchamos a buscá-los encontramos um rio caudaloso, em que havia muito peixe, cajus, palmitos e muita caça, que nos serviu de muito. nessa aldeia achamos 200 mãos de milho, 25 batatais, muitas araras e também periquitos, que nos serviram de sustento e regalo”. (Bc-32, pg. 61).

“neste lugar só eu estive com dois soldados e com antônio Ferraz, sobrinho do cabo e este me pediu que lhes fizesse um sermão, porque estava bem cheio de fome mas tanto me pediu que fizesse um sermão, ao seu tio, para que arribasse, que eu, nesse dia não estava com vontade de pregar; mas, tanto pediu e rogou, que fiz o sermão, que foi o último, e ia me custando a vida, sendo que os tais sermões deram vida e coragem a muita gente, depois de ver meus companheiros cada dia morrerem 3 ou 4 de fome; depois de terem comido os cachorros e alguns cavalos, principiei a pregar, e fiz 35 sermões sem mudar de tema, animando a todos, que não retrocedessem; certificando-lhes, para adiante, rios de muita caça, mel, e guarirobas”. (Bc-32, pg. 54).

“no conhecido roteiro de urbano do couto, extratado por alencastre, há uma referência a este bandeirante, quando aquele companheiro de anhanguera diz que se vê sinal de correrem dois rios ou ribeirões, tudo fazendo barra no rio dos araés, onde estão 14 pilões em uma tapera antiga, que foi do cunhado do anhanguera, manoel pereira calhamares, que, quando andava ao gentio, aí fazia escala, por ter roça, e ajuntava o gentio para ir para S. Paulo”. (BC-71, pg. 40)

pelo visto e exposto, os bandeirantes trouxeram sementes e foram fazendo roças, largando pilões, parando parte da Bandeira para plantar e esperar a colheita, construindo celeiros, proporcionando re-servas. uberaba chamava-se Farinha podre, por ter a Bandeira, quando de seu regresso, encontrado as provisões deterioradas, já às margens do rio Grande, até onde se estendiam as nossas divisas.

O Que cOmeram Os BanDeiranTes

Inte

rnet

30 | Bariani Ortencio

O Que Viram e O Que cOmeram nOssOs VisiTanTes

Os estrangeiros que nos visitaram, cientistas uns, missionários religiosos, e curiosos, outros, deixaram os seus depoimentos sobre o que viram os da terra comer e as suas conclusões, quase todos franceses.

“no dia 18, pela manhã, montamos a cavalo e partimos. Transpondo montes e vales que cercam a cidade, atingimos uma pequena fazenda ao fim de meia hora. a tropa estava lá, presa, arreada. a mesa estava posta: pratos, colheres, garfos se estendiam sobre um couro de boi (ligal) posto em terra. ao centro, duas travessas, uma cheia de arroz branco como a neve, outra cheia de feijão fumegante, negro

como ébano. É só escolher... instintivamente — pois aqui o adágio parece verdadeiro: simile simili gaudet — vamos ao cardápio branco, enquanto os camaradas avançam sobre o feijão preto, de que se servem copiosamente e que devo-ram”. (BC-35, pg. 70).

Oscar leal, português inteligente, comeu melhor e em 1892: “levamos charque, farinha de mandioca, farofas, bo-los e arroz, cocadas, café e biscoitos, e foi disto que constou a nossa refeição servida ali sobre a relva e à sombra dos arvoredos”. (BC-75, pg. 66)

era pouco exigente: “Que comer, sim senhor, é isto o que desejo e seja o que for. se não tem carne fresca dê-nos

seca, arroz; feijão e café, e por hoje ficaremos satisfeitos”. (BC-75, pg. 40). Depois nos diz de “galinha com arroz” e quibebe, mas não deve ser a galinha feita juntamen-te com o arroz, como está usando hoje, e o quibebe deve ser de mandioca: “haviam ali algumas mulheres que me consultaram sobre várias enfermidades que diziam sofrer. uma delas preparou-nos a ceia constante de galinha com arroz e quibebe, que foi servida sobre uma banca de carapina à direita do paiol do milho” (BC-74, pg. 34).

henri coudrau parece que somente passou à carne seca com farinha de mandio-ca (uma paçoquinha, decerto, de vez em quando). Durante as quase 300 páginas da sua monumental obra só se preocupou 2 vezes com comida, e, assim mesmo, carne seca e farinha. era, talvez, o meio mais seguro: “nous nous arrêtons aujord’hui à são José; les provisions s’épuissent, je vais acheter um boef et le faire abattre, saler et se-cher... Je continue mes écritures pendant qu’on sèche la viande”. (BC-78, 108). “En

“Não se podia conseguir mesmo o mais comum e necessário, o toucinho, o

feijão e a farinha de milho. Esses víveres faltavam aos próprios habitantes, que agora se alimentavam de abóboras [...]

31COZINHa GOIaNa |

attendant je fais tuer un boeuf et préparer notre provision de farine pour le voyage du Tapirapé”. (BC-78, pg. 153)

Já r. p. marie h. Tapie encantou-se com a exuberância da, terra goiana: “une roça leur donnait presque sans tra-vail le riz, le mas le manioc. les bananes, les mamões, les oranges, les ananas venaient sans culture et en toute saison. la rivière fournissait le poisson en abondance. c’etait un paradis terrestre”. (Bc-9, pg. 52)

“a alimentação ainda é a mesma daquele tempo; fei-jão, toucinho, legumes lenhosos, carne seca ao ar, raramente fresca, galinha, arroz, açúcar de cana; açúcar nas frutas em conserva, e mandioca e milho são hoje, como outrora, os elementos da mesa brasileira.”... “não se podia conseguir mesmo o mais comum e necessário, o toucinho, o feijão e a farinha de milho. esses víveres faltavam aos próprios habi-tantes, que agora se alimentavam com abóboras, bananas e a repugnante, meio putrefata carne seca”. (BC-76, pgs. 335 e 383).

toucinho / carne seca

arroz com frango

Um visitante francês viu os goianos roendo pequis e tomou um na mão e perguntou:

— Comment s’appele ça?

ai responderam-lhe:

— Isso não se pela não, come-se assim mesmo.

— Comment? retrucou o francês.

— Com a mão, com a boca, do jeito que o senhor quiser.

— Vous ne me comprenez pas?

— Não precisa comprar pá, não senhor. Com a mão mesmo e muito cuidado com os espinhos.

— Comment?

— Isso, com a mão, do jeito que quiser!... ô italiano besta!...

32 | Bariani Ortencio

cOmiDas De TODas as parTes DO munDO

A cozinha Goiana sofreu bastante influência dos estados que muito contribuíram para o progresso de Goiás, que começou seu desenvolvimento após a revolução de 1930, quando recebeu um sem número de famílias paulistas, mineiras, nordestinas, nortistas e dos outros estados em menor escala. Também dos emigrantes estrangei-ros e descendentes que aqui chegaram, principalmente dos italianos e árabes (sírios e libaneses), dos espanhóis e evidentemente dos nossos descobridores portugueses.

Os paulistas do interior, os mineiros do Triângulo e os goianos em geral, são fru-tos da mesma grande influência dos Bandeirantes, que ao desbravarem essa região

do Brasil, criaram “o corredor das bandeiras) um corredor de misturas e absorção de culturas, produzindo uma nova cepa de brasileiros, que muito se identificam em seu jeito de falar, suas músicas, seus tipos humanos, e muito, especialmente, em sua alimentação.

em Goiás usa-se a comida de quase todos os países do mundo. antes da mudança da capital de Goiás, os habitantes daquela cidade viajavam muito para a corte e traziam de lá o modo de preparar as diversas iguarias encontradas. Depois da mudança, com o advento de Goiânia, a imigração provin-da de outros estados trouxe consigo os seus costumes. Vá-rios restaurantes passaram a exibir menus com pratos inter-

nacionais. são os resultados de uma cidade que surge. por isso Goiás consome desde o seu arroz com pequi, o empadão e a maria isabel até os mais encrencados pratos franceses, passando pelo tutu com couve e torresmos dos mineiros, o virado à pau-lista, as comidas “quentes” da Bahia, o charque e o churrasco gaúchos e o sarapatel do norte. Com Brasília encravada no centro geográfico do Estado, aí comunisou-se o caviar russo, os faisões dourados e os ninhos de andorinha da china.

“Não se podia conseguir mesmo o mais comum e necessário, o toucinho, o

feijão e a farinha de milho. Esses víveres faltavam aos próprios habitantes, que agora se alimentavam de abóboras [...]

33COZINHa GOIaNa |

piZZa, QuiBe e macarrOnaDa

pizza napolitana, quibe e macarronada viraram acepipes do trivial goiano. Os bares vendem pizza já cortadas, pedaços grossos como almofadas, servida quente, a muzzarella fundindo, escorrendo. em vez da muzzarella usam o queijo comum rendado, muitas vezes mais buracos que queijo.Quanto ao quibe, não existem festas de casamentos e aniversários sem o quibe, assim como em todos os bares lá está o quibe frito, muitas vezes com um ovo cozido dentro.

a macarronada é o prato mais comum nas mesas goianas. as donas de casa inventam, improvisam, conforme a necessidade e falta de ingredientes, macarronadas que fariam coçar a cabeça de muitos mestres-cucas da velha península; a “macarronada goiana”, receita neste livro, é um caso.

O Dr. Zuza, José do egito Tavares, falecido, ilustre advogado (me parece que o primeiro advogado de Goiânia), visitando parentes em são sebastião do ribeirão (Guapó), pediu para a sobrinha inhola fazer-lhe uma macarronada, iguaria de que sempre foi mestra. À falta de ingredientes, inhola pôs o macarrão no fogo, cortou bastante cebolinha verde e salsa, da horta, misturou com o caldo de feijão e temperou com isto a improvisada macarronada, que o Dr. Zuza comeu, repetiu e pediu a receita.

Quanto à macarronada não será necessário dizer mais nada, pois hoje é domingo e em noventa por cento das mesas goianas estão sendo servidas macarronadas.

cOmiDas pOrTuGuesas, espanhOlas e inFluencia sÍria

assim como a linguagem seiscentista deixou até nossos dias vários termos ainda com muito uso no inte-rior, vários pratos portugueses e espanhóis são também conservados, com ligeiras alterações, em Goiás. Os de mais uso: Olha ou cozido, alfenim, cuscuz, sonho e manuê, cujas receitas serão encontradas neste volume.

Inte

rnet

34 | Bariani Ortencio

Olha: “nestas descrições sente-se a composição da “olha podrida”, o “cozido”, a panelada de legumes e carnes que chegou até nós”. (Bc-15, pg. 6) .

manuÊ

“nessas tertúlias, nesses serões de residências solarentas, que um hálito centenário hoje ainda aquece e vivifica, enquanto não eram servidas deliciosas broas de fubá mi-moso, mãe-benta, manuês e uma série infinita de suculentas comezainas, analisava-se a escultura do conterrâneo Veiga Vale...” (Bc-36, pg. 18) .

“e para adoçar a boca, caldo de cana, rapadura, manuês, bolo-preto, pé-de--moleque, doce seco, acre pela pimenta-do-reino, arroz-doce enfeitado de canela”. (Bc-31, pg. 224).

alFenim

são bichinhos, objetos e bonecos muito alvos, de açúcar. muito usado em aniversários ou pelas festas do Divino. há quem os venda pelas ruas, mas não são mimosos como os de encomenda.

alfenim, como quase todas as palavras iniciadas em al, é de origem árabe. Diz câmara cascudo, em história da ali-mentação do Brasil, que: “O domínio árabe é inseparável do alimento doce. em portugal os bolos de mel, o alfenim, a alféola, são presenças árabes”... “um donatário da ilha da Madeira mandou a Roma oferta humilde ao Sumo Pontífice, o sacro palácio construído de açúcar e os cardeais, de alfe-nim, da estatura de um homem.”

35COZINHa GOIaNa |

QuiBe

como se sabe, em Goiás come-se de tudo. a comida árabe é muito apreciada e o quibe frito já se tornou prato goiano. não se faz festa sem o quibinho no pratinho de papelão junto com a empadinha e o pernil com farofa. Todas famí-lias fazem quibe em casa. É lógico que a maior parte delas não consegue a técnica que o quibe requer, paredes bem fininhas, bastante ocado. Em geral o quibe é maciço e, co-mercialmente, coloca-se um ovo cozido dentro, ou melhor, reveste-se um ovo cozido com a massa de quibe e vai para a fritura. há senhoras goianas que fazem o quibe tão bem quanto aquelas de descendência árabe. FOTO

36 | Bariani Ortencio

TriVial

No fim do século passado, em Goiás-Capital, o almoço era às 8 horas; merenda, ao meio dia; jantar às 3 da tarde e a ceia às 7 da noite. O almoço consistia quase sempre de arroz, feijão, carne picadinha, mexido de carne de porco com farinha de mandioca (farofa, não se conhecia a palavra em Goiás) e couve picada. para a merenda vinham quitandas várias, canjica e muito pouco leite, pois leite era bebida de menino, assim como verdura era comida de coelho: “não sou coelho pra comer folha!...” no jantar: sopa de arroz com couve picada ou rasgada grande ou, ainda, folhas inteiras, no caldo de carne, tudo bem consistente. carne cheia ou enrolada de panela. Guariroba com

“molho de vilão”. Tigelada. a carne variava ou de porco ou de gado. a ceia era sempre leve: arroz com frango ou canja de galinha. O doce em calda acompanhava todas as refeições, de menos uso ao almoço. (informações de cora coralina).

Várias refeições ao dia: O povo da roça e das olarias, que começa a labuta bem antes de nascer o sol, come três ve-zes ao dia (refeições completas). pela manhã e o tira-jejum, quase sempre de um requentado da sobra do dia anterior, ou mesmo feito na hora, consistindo de bastante feijão, arroz, farinha e carne. a mandioca substitui o pão. ninguém faz pão em casa. Às nove horas vem o almoço, Jantar às 15 ho-ras. na boca da noite comem qualquer “trem”, o que tiver.

“Às 4:30 da manhã, ouve-se o toque de alvorada. com o café às 5 servido tam-bém o pequeno almoço mais conhecido por “quebra jejum”, composto de tutu de feijão preto (virado de feijão) e “maria isabel”, ou arroz à carreteira, como chamam os gaúchos (arroz com carne seca de sol) . (Bc-66, pg. 65)

cOmiDa De pOBre

O trivial do povo pobre antigamente sempre consistia de angu, alguma verdura e a farinha de mandioca, imprescindível. atualmente o trivial é arroz, feijão, farinha de mandioca, carne (às vezes) e alguma verdurinha à paulista-mineira: couve, chuchu, abóbora ou vagem.

“decerto que a nossa culinária sofreu a influência das andanças e mobilidades do

colono e do índio, tanto que os pratos típicos das nossas populações que sofreram menor influência do negro [...]

37COZINHa GOIaNa |

Domingo em casa de gente que pode: nas casas de gente de posses, aos domingos, usa-se o ajanta-rado, almoçando mais tarde e somente lambiscando à noite, para dormir. em geral o ajantarado consiste destes pratos: macarronada, frango, frios ou maionese e pastéis.

TriVial: “não é necessário dizer-se que a cozinha goiana não discrepa, no trivial, da ementa comum e quase quotidiana de todo o Brasil: arroz, feijão, farinha (sendo preferida a de mandioca) verdura e legumes da estação, pouca carne

¨Veio o jantar. um boião de roça, não resta a menor dúvida, mas gororoba reforçada: lombo de por-co, recheado, arroz com carne, queijo frito, guariroba, feijão, ovo frito, banana frita, farinha de milho e de mandioca e umas quatro qualidades de doces pra sobremesa”. (Bc-49).

merenDa: “Os Vilelas almoçaram, deram uma volta pelo pomar, chegaram ao moinho e a serraria em descanso dominical e a hora da merenda regressaram para comer a coalhada, o requeijão frito na panela e os biscoitinhos de fubá”. (Bc-41, pg. 131).

em ViaGem: “As cavalgaduras ficaram livres das selas enquanto de embornais claros surgiram os farnéis: almôndegas, farofa de galinha, bolos e queijo”. (BC-41, pg. 147)

“arrumei as canastras velhas, ensebei elas e tuchei feijão. carne de sol. rapadura. Farinha. sal”. (Bc-41, pg. 36)

“Decerto que a nossa culinária sofreu a influência das andanças e mobilidades do colono e do índio, tanto que os pratos típicos das nossas populações que sofreram menor influência do negro, são feitos para serem comidos longe de casa, levados no picuá ou preparados a pressa no pouso, em meio da jornada, como a paçoca de carne, o virado, a farofa, o barreado, o churrasco, e chegam a receber nome de profissões andarengas, como o comboeiro, prato típico do Nordeste, e o carreteiro, do gaúcho”. (Bc-10, pg. 150).

em Goiás temos o nosso prato viajante, o “feijão-tropeiro”. pelos pousos do paranaíba à capital: 1896: “a cozinha em três grandes pedras onde se faz o fogo

sobre uma tripeça, com um gancho se dependura o caldeirão ou a chaleira. louça e xícaras são de ága-ta; o menu muito simples: feijão, arroz, farinha, carne seca (quando há), café; mas tudo isso tem o seu ingrediente no bom apetite que se goza durante a viagem”. (BC-17, pg. 41)

38 | Bariani Ortencio

De cócOras: O roceiro e muita gente do interior tira na panela e fica de cócoras ou assentado no calcanhar, com um garfo, fazendo proezas no prato. É de um ma-labarismo incrível, misturando o arroz com o feijão, garfada por garfada, buscando com uma agilidade incomum, com a ponta do garfo, um torresmo, uma fincada de couve, um pedaço de mandioca ou um naco de carne. O prato, quente, na palma da mão. Depois dá um golpe na pimenta malagueta ou bode, como se o garfo fosse uma cascavel, fazendo-a vir para o lado estratégico do prato, o lugar da operação-mistura; corta-a ao meio, esmigalha-a, faz o “capitão” com o garfo mesmo e engole quase sem mastigar. Dizem que a pimenta é o ingrediente da cozinha dos subdesenvolvi-dos: pimenta serve para empurrar a comida magra, “gororoba”, destemperada. e as vitaminas a e c das pimentas? passam de liso pelas tripas?

“um bocado de arroz e carne de espeto e farinha. refeição frugalíssima, tomada com a mais simples das simplicidades: de cócoras e no banco tosco do pilão, onde ficou Vilela. O café adoçado com rapadura comple-tou o jantar”. (BC-41, pg. 74).

cOnFraTerniZaçãO: no interior é muito comum a criação de porcos no quintal ou na horta, como dizem. Quase todo cidadão tem já o seu porquinho engordando no chiqueiro, com as sobras da cozinha. Quando alguém mata um capado os vizinhos mais íntimos ganham o seu

quinhão; ou um pedaço de carne ou uma lingüiça, que para aproveitar as tripas, as lingüiças fazem parte da labuta de preparar um capado. A finalidade também de ma-tar-se um porco gordo é para o aproveitamento da banha, sendo que a carne vai para as lingüiças. antigamente faziam-se os guardados de lombos e pernis em gordura. O mesmo costume tem os cavadores, em presentear, mas penso que a finalidade é mais de mostrar-se como caçador que vai e traz, que confraternização mesmo. Quando chegam da caçada presenteiam os amigos e vizinhos com uma parte da caça.

“nas festas de aniversário, casamento, batizado, brasileiras, é hábito presentear as famílias, que não puderam comparecer, com as provas ou lembranças do banque-te, carnes e doces, raramente bebidas”. (Bc-31, pg. 45).

“É de um malabarismo incrível, misturando o arroz com o feijão, garfada por garfada,

buscando com uma agilidade incomum, com a ponta do garfo, um torresmo, uma fincada de couve [...]

39COZINHa GOIaNa |

“na ocasião de matança de porco, feitura de queijos, de chouriço (as morcelas portuguesas), carneiro, ovelhas, novilhas, novilha gorda, constitui obrigação usual enviar uma prova aos vizinhos, determinando a reciprocidade natural. assim em portugal e espanha e também depois das “batidas” de caça, presenteiam-se peças aos amigos”. (Bc-31, pg. 45).

comer junto é sinônimo de amizade; quando se encontra com um amigo, usa-se dizer: “vai lá em casa para um café...”

“companheiro provém de cumpanis, comer o mesmo pão, alimentar-se juntos. aluno, alumnus, de alo, sustentar, criar com o alimento. O símbolo sagrado da união entre os janízaros era a grande panela comum, Kazan. Comer no mesmo prato, manger à la même écuelle, é confiança, irmandade, fusão”. (Bc-31, pg. 34).

O melhor modo de elogiar a dona da casa é pedir a receita da iguaria servida. se tratar-se de pratos simples, comuns, então deve-se perguntar qual foi o modo que fez, como é que o arroz pode ficar solto assim (embora pareça cola de sapateiro).

esse negócio de sustentar estranhos em casa “até as derradeiras misérias das suas reservas”, não se usa mais. Vou contar a estória de um andarilho que amuou em casa de um morador. Depois que se consumiram “as derradeiras misérias das suas reservas”, o caseiro, muito educado, procurando não ferir as sensibilidades do hóspede, lhe disse que seguisse a sua viagem porque nada mais havia para por no fogo. O visitante muito a contra gosto afirmou que partiria pela madrugada. E pela madrugada o dono da casa foi acordá-lo, satisfeito:

— Fulano, já é de madrugada. O galo já cantou. ah! ainda temos um galo? — virou-se para o outro lado e continuou a dormir.

as mulheres

É costume antigo das mulheres não comerem à mesa. Ficam lá pelos fundos, enclausuradas quase sempre na cozinha. as crônicas apontam vários motivos, os quais poderemos ver adiante, mas o que se conclui é que a responsabilidade da casa sempre esteve entregue diretamente a dona, a mulher. e principalmente quando há visitas, os trabalhos dobram-se e triplicam-se e a responsabilidade aumen-ta, fazendo com que a patroa se esbalde lá por dentro, sem nem tempo de dar uma espiada cá fora. a tarefa de servir compete, muitas vezes ao homem, ao caseiro, recebendo os pratos na porta da cozi-nha das mãos da esposa e trazendo-os para a mesa. Quanto a presença dela nas conversas de sala, o marido sempre diz, mostrando superioridade, que “em negócio de homem mulher não mete o bico”.

40 | Bariani Ortencio

Goiás do couto diz que na cidade de Goiás é diferente: “as mulheres, nas obras da interminável azáfama casei-ra, detinham sólido e indeclinável império, competindo--lhes a gerência absoluta das atividades internas do lar. Gozando de maior consideração, aparentemente submis-sas, sem direitos ostensivos, na semi-clausura que os cos-tumes impunham, diziam sempre a última palavra. nas

relações exteriores, os homens travavam planos, discutiam todos os ângulos de um problema, sem contudo chegar à solução final, pois, no recesso doméstico, cabia a elas, com ponderações sensatas, dar ou não beneplácito ao programado, deixando de realizar-se aquilo que fosse contra sua vontade, já que delas resumava o indiscutido bom-senso e habitual acerto nas decisões... parcimoniosas nos gastos, discutindo preços, amealhando com previdências, fazendo malabarismo financeiro, também contribuíam para o crescimento do pé-de-meia familiar com a fabricação de doces, biscoitos e bolos, vendidos em tabuleiros nos logradouros públicos ou fornecimento às festas”. (Bc-25, pg. 20).

a cOZinha

A cozinha deveria ser a parte principal da casa. a área mais ampla, tudo mais cômodo. É na cozinha que a boa dona de casa faz a parte mais agradável do lar: a comida. É com a cozinha que a esposa cativa o seu marido. em toda a casa o lugar que mais se trabalha é na cozinha. antigamente até a política se tramava ali. Os antigos resolviam todos os seus problemas na mesa grande da cozinha. muitas vezes um fulano vem em casa da gente tomar satisfações devido uma pe-dra que o garoto atirou e quebrou uma telha; então a gente dá um rodeio, leva o homem pra cozinha, manda passar um cafezinho gostoso, e pronto; fumou-se o cachimbo da paz. levar alguém para a cozinha significa amizade confiada, segura. Quando se deseja demonstrar intimidade com alguém, diz-se: “sou da cozinha do fulano...”, “Bebo café no rabo do fogão de beltrano...” É sempre na cozi-nha que a patroa mostra a sua maior aptidão.

supersTiçÕes: “Depois do café, os barqueiros fazem o seu tradicional cigarro de palha, cujo efeito mágico, no espírito do povo humilde, está em afastar toda a espécie de perigos, mais ou menos reais, sobretudo a congestão”. (Bc-35, pg. 113).

“[...] no recesso doméstico, cabia a elas, com ponderações sensatas, dar ou não

beneplácito ao programado, já que delas resumava o indiscutido bom-senso e habitual acerto nas decisões...

41COZINHa GOIaNa |

FOTO De cOZinha

42 | Bariani Ortencio

a cOnGesTãO é muito temida pelo povo, deixando quase sempre a vítima com defeito físico. como precaução não se toma banho após as refeições, nem se saboreiam sorvetes, garapa (caldo de cana), me-lancia e muito menos relação sexual. abstém-se também, após as refeições, de correr, pegar peso e ler. Todos nós conhecemos aquela explicação do roceiro: “comeu, garrô lê, morreu...”

misturas de frutas, leite e legumes: hoje já misturamos tudo, antes não misturávamos nada. menino não comia laranjas. O leite era o maior veneno, embora fosse sempre o corta-veneno, largamente usado, ontem como hoje, neste sentido. para qualquer caso de envenenamento era dar leite em quantidade ao paciente. se se comesse manga, somente poderia tomar leite à noite. muito leite engrossava os lábios. hoje ainda é muito usado esse regime de não misturar frutas, mas o caso é bem engraçado, pois não

se misturam frutas ou verduras, isoladamente? Quem chu-pa laranja, não come abacate; quem come pepino, não pode nem ver falar em ovo, principalmente ovo cozido ou frito, mas, todo mundo, sem exceção, come salada de frutas, toma vitaminas de frutas e aprecia muitíssimo a maionese, os frios, onde há a maior profusão possível de frutas e legumes misturados. não se misturavam pepinos com ovos e álcool considerados os mais venenosos. hoje, comumente usa-se o prato de frios, onde entram o pepino, ovos cozidos, álcool (vinagre) ou limão (o infame limão dos antigos). antes do almoço toma-se o aperitivo, comem-se os “venenos” e bebe--se um copo de leite por cima. Depois vem as sobremesas de

frutas várias e chupa-se até melancia. agora, garapa (caldo de cana), após as refeições, eu também não vou não!... e isto não é só aqui; em minas Gerais foi e, em alguns lugares, continua sendo: “e o leite? e as verduras? e as frutas? curioso é que o homem do sertão, mesmo o das fazendas de gado, não é muito chegado ao leite; legumes, não são coelhos para comerem folhas, como dizem; frutas, só as da terra, cada uma em ocasião própria, pois misturadas dariam congestão. não é só na roça. Também nas cidades se bebe pouco leite e há parcimônia no consumo de verduras e frutas. são correntes ainda hoje velhos preconceitos contrários ao uso do leite por adultos, sendo comum ouvir-se: “leite faz mal”, “leite é alimento de bezerros e cabritos”, “leite ataca o fígado e os intestinos” etc.”. (Bc-22, pg. 158)

“Quando se deseja demonstrar intimidade com alguém, diz-se: “Sou da cozinha do

fulano...”, “Bebo café no rabo do fogão de beltrano...” É sempre na cozinha que a patroa mostra a sua maior aptidão”.

43COZINHa GOIaNa |

cOmer na GaVeTa

O povo de itaberaí não está sozinho!... isso de comer na gaveta vem lá de trás, de outras regiões. De um modo geral ninguém se sente bem comendo às vistas dos outros. Vêem-se demais dois operários sentarem-se de costas, um para o outro, ao receberem de casa os seus caldeirões. em geral as pessoas humildes têm vergonha do que comem e acham mesmo que é falta de educação estar olhando o que o outro está comendo. Também é falta de educação falar com a boca cheia.

“não o dizia o autor do romanceiro Brasílico, mas pode-se mencionar aqui que o povo de mariana era chamado gaveteiro. Dava-se este nome, por desfrute, ao indivíduo que se dizia comer na gaveta, vale dizer, que escondia o prato quando à hora da refeição aparecia de improviso “algum estranho”. a insi-nuação tem caráter universal e não se come escondido, como no caso, pro sovinice, senão ocultar uma refeição pobre. A gente marianense era em geral de poucos recursos, mas presumia de boa qualificação social. comia angu, alimento do escravo, mas queria arrotar presunto. era um mecanismo de defesa para os que evitavam tornar pública a pobreza da própria alimentação, que desqualifica socialmente”. (Bc-22; pg. 123).

Frituras: Os goianos gostam muito de frituras. com o povo antigo então era mais. explica-se isso talvez pela fartura de gordura de porco. as refeições compunham-se de arroz, feijão, farinha, banana frita, mandioca frita e ovos fritos.

Benzer-se à mesa: e um costume cristão também muito comum em Goiás, o benzer-se às refeições. e há famílias, principalmente do interior, que rezam respeitosamente à mesa.

VelóriOs anTiGOs

no sertão, sempre que houvesse reunião de pessoas, o motivo era de festa, embora até se tratando de velórios. O povo não tinha onde ir e ficava catando festas. Plantavam-se o tanto do gasto, que mais não tinham a quem vender, pois todos também plantavam e não havia estradas e nem mercados para o escoamento, se caso houvesse maior colheita. Saía-se de uma festa e ficava preparando-se para uma outra. comprava-se com prazo de pagar no encontro da festa tal; Trindade, aparecida, moquém, Go-rino... Quando havia um velório, ninguém faltava, morando mesmo léguas de distância. Devido a isso não podia faltar comida. era uma boa oportunidade de encontrar-se com fulano e beltrano, tramar ou comprar algum “trem”. não havia velórios sem cachaça (ter que passar a noite sem um “esquenta-peito” era dureza). nas fazendas, além disso, ainda comia-se pela noite inteira: mexido de carne de porco com farinha de mandioca e ovos fritos, separadamente. café e quitandas, então não agüentavam intervalos. até noivados davam os velórios.

44 | Bariani Ortencio

FOTO FOTO

FOTO

FOTO FOTO

45COZINHa GOIaNa |

FesTas TraDiciOnais

não há festas de roça sem comezaina. Os pagodes, as folias, os mutirões são de uma fartura extra-ordinária. O arroz com suã de porco vem nas gamelas. com guariroba tem vez que é servido em baldes. Travessões com carne de porco, pelotas de carne de gado (guardadas na gordura) e frango em abundân-cia. Tutu de feijão, mandioca cozida, leitoa destrinçada e farinha. a verdura mais comum é o quiabo, se bem que as verduras são pouco apreciadas. a pimenta bode ou malagueta impera nestas mesas de roça. Das diversas latas de querosene cheias de doces, na despensa, vêm as tigeladas para a mesa. DOce De casca De laranJa, De leiTe, De FiGO, De ciDra e mamãO ralaDO sãO Os mais cOmuns. O doce de leite, muito bem feito, chamado “doce que engasga”, é devorado às pratadas. pela madrugada muita gente se levanta da sua cama improvisada e atola no doce, comendo uma mistura de todos em prato fundo. É um apetite de fazer medo.

as décimas, o coreto e o agradecimento de mesa: “O canto à mesa foi costume generalizado na europa. na velha alemanha, após o jantar, todos os convidados eram obrigados a recitar algumas rimas sob pena de serem obrigados a beber mais um copázio. creio que o costume foi introduzido no Brasil pelos invasores holandeses durante o século XVII”. (BC-77, pg. 253).

Forçosamente em toda mesa oferecida aos foliões pelas chegadas das folias, há o agradecimento que é cantado por eles, ficando a metade de um lado e a outra metade do outro. Um lado canta dois versos da quadra e o outro, os restantes. Depois vêm os vivas. primeiro comem os foliões; depois, os demais.

Vejamos o que nos forneceu o sr. Joaquim Bento sobrinho (Quinzinho) de americano do Brasil, antigo Olhos D’água:

FOTO

46 | Bariani Ortencio

“Deus vos pague a bela mesa que vos deu dessa vez há de ser recompensado Do Divino Santos Reis (ou o santo do dia)

O Divino Santo Reis e santo consolador consolai as nossas alma quando deste mundo for.

Bendito louvado seja as três palavras de Deus Pai, Filho e Espírito Santo seja pelo amor de Deus.

Oferecemos este bendito pro Senhor que está na cruz em louvor das cinco chagas pra sempre amém Jesus.”

Outro cântico:

“Lá do céu desceu dois anjo pra descer abriu as asa veio trazer vida e saúde pra os dono desta casa.

Lá do céu desceu dois anjo com seus livrinho na mão vem dizendo viva-viva essa bonita união.

Viva Santo Reis! (grita o gerente) Viiiivaaaa!... (respondem) viva a bela mesa! viiiivaaaa!... viva o dono da casa! viiiivaaaa!... viva as cunzinheira! viiiivaaaa!... viva os servente! viiiivaaaa!...

Aí um de fora do grupo grita: Viva os folião! Viiiivaaaa!...

FOTO

47COZINHa GOIaNa |

ceia DOs inOcenTes

“ceia dos inocentes” é um voto, uma promessa que o fazendeiro faz para determinado santo, prometen-do fazer a referida ceia por um ano ou mais, até durante toda a vida, às vezes. primeiramente comem os inocentes, (crianças até 7 anos de idade), servidos pelos “serventes” que trazem toalhas ao pescoço. Depois então servem-se os adultos. comumente a comida é essa: guariroba misturada com arroz ou com carne de porco ou, ainda, por incrível que seja, com frango, macarronada, arroz e feijão (quase sempre como tutu): tutu com guariroba é um negócio muito bom. O agradecimento de mesa é comum, acrescen-tando um verso referente, em geral de improviso, como esse do Quinzinho:

“Deus vos pague a bela mesa que vos deu pros inocente transformada numa rosa pros anjo foi de presente”.

ceia DOs cachOrrOs

a “ceia dos cachorros” é feita em geral por quem sofre de doenças da pele e em louvor a s. lázaro (os cachorros curaram s. lázaro lambendo-lhe as feridas). primeiro comem os cães, assim: ou o dono da promessa manda algum (um dos convidados) fazer o seu prato e pedindo licença toma-o e leva ao ani-mal, ou cada dono de cachorro faz o prato e leva pra ele, ou, por último, os “serventes” fazem os pratos e dão aos cachorros. Depois dos cães servidos, então, comem as pessoas. a comida tanto das pessoas como dos cachorros é a mesma.

muTirãO Ou TraiçãO

O agradecimento de mesa nos mutirões ou traições é o mesmo que nas folias. invocam qualquer santo e agradecem a mesa em louvor a este santo.

“Ouviam-se saúdes e coretos, gritos onomatopéicos, falas desconexas com muitas macaquices e os monótonos jongos africanos”. (Bc-22, pg. 182).

48 | Bariani Ortencio

agradecendo a mesa:

“Benditu lôvadu sêja Santissimu Sacramentu O Divino Ispiritu Santu Qui nus dá um alimentu. Deus vus pagui a boa janta Qui vois deu prus fulião Deus lhi ponha mesa no céu I dá a salvação”. (BC-27, pg. 76).

cOreTOs

Os coretos são usados no recolhimento da folia. em geral é em torno de bebida. um pega a cachaça mas é obrigado a recitar uma “decima” antes de bebê-la:

“A lua evém saindo pintando flor em rama bem assim pinta a saudade no coração de quem ama.

Os demais gritam: Viiivaaaa!... e fazem o coreto (coro pequeno, de poucas pessoas), enquanto que o recitador bebe a pinga:

“Esta festa não se acaba - bis esta festa não tem fim se esta festa acabar - bis ai meu Deus, ai meu Deus ai meu Deus, o que será de mim ah, ah...”

49COZINHa GOIaNa |

a pessoa que recitou entrega o copo para uma outra que escolheu e esta é obrigada a recitar também uma “décima”:

A lua evém saindo primeiro quem viu foi eu uma pedra deu na outra seu coração deu no meu”.

Viiiivaaaa! .. (ainda o mesmo)

Coreto“Quem compra, quem compra — bis quem compra meu coração eu dou ele por pouco dinheiro — bis um abraço, um abraço um abraço e um aperto de mão ah, ah...”

as cOmiDas e as FesTas De TraDiçÕes na ciDaDe De GOiás

pipoca, amendoim, batata doce e furrundum para as festas de junho. pela festa do Divino, as verônicas. pelas folias, os pirulitos (na cidade). semana santa, os confeitos de amendoim para as crianças, que cantavam na procissão, em cartuchos, tendo um deles um papelzinho dentro escrito “Judas”. azar de quem o tirasse. estas crianças vestiam-se de anjos. para sexta-Feira santa, a canjicada (canjica com amendoim). nos aniversários, alfenim.

“e as Folias do Divino espírito santo, acompanhadas por pessoas de respeitável projeção social, ao som das bandas de música, percorrendo a cidade de ponta a ponta, sem omitir uma casa sequer, coletan-do dinheiro e prendas para os leilões? Os seus integrantes, recobertos com opas vermelhas, empunhando a Bandeira, o cetro, a coroa e as sacolas para os óbulos, eram acolhidos em todos os lares, e em vários deles, se lhes propiciava generosa recepção com bebidas, doces e improvisavam-se reuniões dançantes

50 | Bariani Ortencio

rápidas e joviais. Falta a essa festa, atualmente, aquele sabor ingênuo e respeitoso que o tempo mutilou irreparavelmente. ainda são lembrados, pelos de mais idade, as mesadas que o imperador do Divino dava a população. após a missa da Festa as portas da casa do festeiro eram abertas para o povo, que se regalava o dia inteiro,

com toneladas de doces, cremes, pudins, enchendo estôma-gos de milhares de pessoas com essas guloseimas, às vezes preparadas com um mês de antecedência, o que consumia dezenas de contos de réis dos organizadores dos festejos”. (Bc-36, pg. 32) .

“na sexta-Feira da paixão, residências haviam em que a vassoura e outros instrumentos de limpeza não eram mo-vidos dos seus lugares. Do ruído, apenas as matracas per-correndo as ruas, com seu som peculiar, alertando os fiéis sobre os dramas do calvário, que seriam simbolicamente re-vividos na igreja da Boa morte, catedral da arquidiocese de santana de Goiás. predominando roupagens escuras, ia-se

orar aos pés da imagem do senhor morto, ou praticar piedosa meditação nos tem-plos. A própria alimentação era modificada, havendo abstenção de carnes e suprindo a sua falta com as clássicas canjicas de amendoim ou coco, cuscuz, merengues e acepipes regionais semelhantes”. (Bc-36, pg. 33).

“após a Missa da Festa as portas da casa do festeiro eram abertas para o povo,

que se regalava o dia inteiro, com toneladas de doces, cremes, pudins, enchendo estômagos de milhares [...]

FOTO

51COZINHa GOIaNa |

FOTO

FOTO

FOTO

FOTO

52 | Bariani Ortencio

uma caValhaDa se FaZ cOm amOr e DeDicaçãO exclusiValorimá Dionísio (pirenópolis)Jornal O Popular, 05.11.74

“O polvilho é misturado com o queijo ralado em um canto da grande gamela. as mãos enrugadas, limpas — unhas bem aparadas, vão trabalhando sob o comando dos olhos meio turvos. com o movi-mento calmo e seqüenciado a massa vai sendo formada em outro canto do vasilhame, após a mistura com ovos. em menos de 30 minutos, rita Fulô, 83 anos, 45 dos quais trabalhando nos festejos do Di-vino espírito santo de pirenópolis, tem material para enrolar e assar mais de 300 biscoitos de queijo.

O serviço das quitandeiras é contínuo desde o início do ensaio da cavalhada. Os biscoitos e bolos são feitos e consumidos quase em seguida nas reuniões de terço e orações realizadas na casa do impera-dor. rita pereira de sá, rita Fulô, é a mais antiga das mulheres que trabalham dentro da festa e se tornou figura indispensável nas cozinhas e varandas das casas das pessoas sorteadas para comandar os festejos. seu expediente de ação é de fazer inveja até aos homens. Dona nininha, mãe do imperador nélio cha-pini, comenta que “quando a gente diz para Rita Fulô descansar um pouco ela fica nervosa e responde mal. Detesta ser comandada e quando chegou já trouxe consigo o próprio esquema de trabalho. Quando chega certo ponto ela faz uma parada, geralmente durante as orações, e dorme sentada em um banco, tendo nas mãos o terço. De vez em quando, tira uma soneca com tempo determinado. coloca formas de biscoitos para assar e calcula o tempo. senta, dorme e 30 minutos depois acorda para concluir a etapa do trabalho”.

FOTO

53COZINHa GOIaNa |

FOTO

FOTO

54 | Bariani Ortencio

FOlia DO DiVinO

“apenas concluída a cerimônia, reconduzem o “imperador” a sua residência e lá, em amplo barracão feito de hastes de palmeiras e enfeitado de grinaldas, sentam-se em elevado trono de onde vai presidir o fabuloso lanche composto de todas as variedades de bolos, pastéis, e doces, regados com café e licores. se nas primeiras mesas reservadas às famí-lias se observam ordem e decência, nas seguintes nota-se menor reserva. a noite inteira, na sala e nas vizinhanças a balbúrdia mantém-se intensa; garrafas, garrafões e até baldes de aguardente circulam e esvaziam-se. lembram--nos de certo festeiro que instalara um pequeno chafariz, no qual o povo vinha encher a vontade copos de cachaça. entretanto, animam-se os bailes, uns mais decentes, para as famílias, outros mais livres e barulhentos, para negrada, que até o dia amanhecer saltará ao ritmo ensurdecedor das caixas e tambores.

até aqui, foram apenas os prelúdios do que vai reali-zar-se no dia da festa. embora todos tenham passado a noite “em branco”, acham-se prontos para enfrentar o programa, bem carregado, da gloriosa jornada. pela manhã, todavia o mais tarde possível, o ato litúrgico da missa; motivo do empenho de todo festeiro para assegurar a presença de um padre, por mais afastado que seja o arraial. pobre do padre que tinha de agüentar, além do rigoroso jejum de outrora, as intermináveis cantorias acompanhadas pelas violentas des-cargas de pólvora e de dinamite! Quanto mais compridos os cantos, mais frenética a orquestra e formidável o barulho no pátio, tanto mais apreciada será a festa e enaltecido o “imperador”, que os olhos de todos admiram sentado no seu trono, junto ao altar.

“apenas concluída a cerimônia, sentam-se em elevado trono de onde vai presidir o

fabuloso lanche composto de todas as variedades de bolos, pastéis e doces, regados com café e licores. [...]

FOTO

55COZINHa GOIaNa |

concluída a cerimônia, forma-se, novamente, o cortejo para reconduzir a seu palácio o herói do dia. chega, então, a hora do banquete e o espetáculo torna-se realmente estonteante. sob o olhar de “sua ma-jestade”, longas mesas cobrem-se num instante, de um sem-número de iguarias: leitões, frangos e perus, assados, enormes bifes, pasteis, tortas e empadas. seguem-se os bolos e os doces de calda. Tudo profu-samente regado com vinhos e com licores regionais de laranja, de ananás, de tucum, de jenipapo, etc. a cachaça corre copiosamente. assim será por toda a tarde, pela noite adentro, até de madrugada. sucedem as mesas, porque ninguém há de ser esquecido. até os mais pobres poderão comer e beber a fartar. aos parentes e amigos ausentes levar-se-ão saborosas migalhas da mesa real. Os doentes, também, recebem com devoção, um bolo ou biscoito enviado pelo Divino. O despontar do sol marca o término daquelas cenas pantagruélicas, dos sambas e batuques. É o sinal para a retirada geral, depois dos mais calorosos vivas ao “imperador”. (BC-70, págs. 121/25) .

FOTO FOTO

FOTO FOTO

56 | Bariani Ortencio

FarTura

nosso estado ainda continua preservando o antigo costume das mesas farturentas e dos exageros às refeições e festas. no interior, nas fazendas, ou mesmo aos do-mingos nas casas da capital, é costume a família se reunir em volta de mesas fartas,

saborosas e variadas. O almoço goiano sempre contém arroz, feijão, salada, legumes e carnes. a carne não falta nun-ca, e muitas vezes há mais de um tipo , como bife, Frango e carne de porco. nos Domingo e ocasiões especiais, a família gosta de se reunir para comer uma boa galinhada bem feita ou quem sabe uma pamonhada. sem dispensar muito tira-gosto, antes do prato principal, sendo churrasco, o favorito.

aqui em Goiás, nos cafés das manhãs não faltam os bolos, biscoitos caseiros, os pães de queijo, roscas doces, que normalmente são feitos em casa, ou senão comprados nas mais diversas e variadas padarias e confeitarias existen-tes na cidade. no interior, nas fazendas e nas cidades mais tradicionais, a fartura é grande, e tudo feito em casa, se-guindo receitas tradicionais das famílias. O mesmo ocorre no lanche da tarde, ocasião perfeita para se receber visitas e colocar a conversa em dia.

nada é mais emblemático, no que se refere a fartura na mesa dos goianos, de que o inesquecível Joanito da pensão padre rosa, na pirenopolis dos anos 50/60. a seguir a his-tória desse precursor e alguns textos ilustrativos da época.

57COZINHa GOIaNa |

a FamOsa pensãO paDre rOsapensão do Joanito

a pensão do Joanito, de pirenópolis, tem fama nacional. raquel de Queiroz, há alguns anos, dedicou a sua crônica semanal de “O cruzeiro” a esta pensão: “Fartura”, que ele ostenta num quadro na sala de refeições. muitos outros cronistas e jornalistas tem se ocupado em escrever sobre o passadio no seu estabelecimento. Quando estava na praça da igreja e o dinheiro valia (1956), cobrava 220 cruzeiros de estadia e oferecia um cheque (que já estava assinado e ensebado) de 30 mil para a mesa (10 pessoas) que consumisse toda a carne servida. hoje, em seu prédio próprio, à rua 24 de Outubro n. 4, a mesa é para 25 pessoas e os prêmios são os seguintes: “Quem encontrar em qualquer estado do Brasil as sobremesas da quantidade da minha pensão, tem a aposta de 4 milhões de cruzeiros contra uma carteira de hollywood, mas bem entendido, de comida brasileira, porque já vi falar muito em mesa dos turcos!...”

em 1956, pelas festas do Divino, comemos até doce de mangaba, o doce mais difícil que pode exis-tir para fazer. neste dia um estudante de anápolis, ao meio da refeição, pediu se podia mandar passar um filé, que ele não comia sem filé. Ora, naquele dia estava à mesa: pernil, lombo, almôndega, lingüiça frita, quibe cru, quibe frito, frango ao molho pardo, frango assado; frito, leitoa, carne-de-panela, que é o que me lembro. O pedido do estudante não era justo. Joanito respondeu: “perfeitamente”, e vazou cozinha adentro.

Depois voltou com uma bacia de tamanho razoável com um filé passado (devia ser inteiro) cobrin-do toda a bacia e ainda debruçado pelas bordas. serviu o rapaz e disse que não gostava que se deixasse resto. Saímos da mesa e o estudante ficou lá, sabe Deus como, com o seu “filezinho” bem passado.

serve comumente em dias da semana: de 12 a 15 pratos salgados e de 14 a 16 de sobremesas. Aos domingos: “o meu banquete” de 25 a 30 pratos e de 20 a 27 de sobremesas. José Feliciano, ex--governador do estado, almoçando em companhia de Geraldo de pina, queria ambrosia de queijo, para sobremesa. Joanico vai trazendo os pratos e pondo na mesa: era doce disso, doce daquilo, pudins e mais doces. José Feliciano reclamava sempre: “— mas a ambrosia de queijo não vem?” Joanito respondeu: — “Espera, Deputado!... a ambrosia de queijo aqui na minha pensão é n° 21 e ainda está no n° 17!...”

não gosta de servir salada de frutas e mesmo frutas às refeições, embora as tenha. um dia “um su-jeito importante da esfera da política federal” pediu salada de frutas. Joanito respondeu-lhe, sem agravar, que aquilo na sua pensão era comida pra passarinho e não pra homem.

Durante a semana atende poucos fregueses, mas aos domingos, entre as duas refeições, serve quatro mesas de 25 pessoas, uma de cada vez. enquanto não sai o último comensal não deixa ninguém assentar-

58 | Bariani Ortencio

-se. cobra 5 cruzeiros novos por refeição e 12 pela diária (cama e mesa). Os seus fregueses comuns são de anápolis, Goiânia e Brasília, embora tenha recebido muita gente de todo o Brasil e muitos turistas estrangeiros, também.

Vamos ver o seu trivial para um dia de semana: feijão preto temperado; feijão tropeiro ou pagão; tutu de feijão; arroz simples; filé passado, tipo churrasco; lombo de porco, assado; costelas de porco; lingüiça pura de porco, frita, feita na própria pensão, pastéis; carne de gado de vários modos; frango frito ou em molho; frango caldeado; farofa de carne de gado e de porco; salada de tomates, já temperada; ba-tatinhas fritas; mandioca cozida e frita; quiabo em molho; abobrinha batida; abobrinha mexida na farinha de milho;

chuchu, repolho, alface, cenoura, beterraba, batata doce cozida e frita; guariroba em molho; salada de pimentão com pepino; picles feito na pensão, com vinagre de pote e verduras novinhas.

sobremesas: Doce puro de leite, branco; doce de leite com coco; creme de leite com suco de limão; coalhada síria; doce de leite com açúcar queimado; doce de leite com mamão ralado; doce de leite com sangue de porco; doce de leite com a raiz do mamoeiro; sopa dourada com leite; ambrosia com leite, ovos e coco; ambrosia de leite, ovos e queijo; ambrosia de leite e ovos; ambrosia de leite, ovos e coco passado na peneira; doce de laranja em calda; doce de mamão ralado, doce de mamão em pedaços; melindro; cidrão; figos em calda; doce de jabuticaba verde e madura; doce de caju (na temporada); doce de mangaba (idem); arroz doce; doce de cidra; doce de moranga; doce de abóbora; doce de abóbora com coco; doce de batata doce com leite; doce de goiaba em calda; doce de goiaba em massa, de colher; doce de goiaba em casca; doce vermelho de banana figo (prata); doce de banana marmelo; doce de banana nanica; banana frita. não serve frutas “por tradição da pensão”. ainda mais os doces: doce de jenipapo, doce de limão em calda e baba-de-moça.

agora vamos ver o que serve no “banquete”, aos domingos, infalivelmente: feijoada completa; tutu de feijão; feijão tropeiro ou pagão; macarronada ao suco de frango. Frios: maionese; pizza, pernil assado; frango assado; frango frito; frango ao

59COZINHa GOIaNa |

molho pardo; filé a churrasco; lingüiça de porco, frita; pastelão; pastéis, leitoa assada (quase sempre); batatinha frita; mandioca cozida e frita; batata doce frita e cozida: salada de tomate já temperada; quibe cru e frito; bolinho de arroz; salada de repolho: favas (feijão branco) com pés, orelhas, rabo, focinho e entrecosto de porco.

pela manhã: café; leite; pão com manteiga; coalhada síria; lingüiça frita; ovos quentes e fritos; doce de goiaba e queijo (impreterivelmente).

FarTura, muiTa FarTura

Tem verdadeira obsessão de fartura. De filhos e de outras coisas. Faz questão de que, satisfeitos os hóspedes a mesa da pensão ainda esteja cheia. Gosta de dizer que está quase sem sobremesa, pede desculpas, avisa que não teve tempo de mandar fazer os doces... e depois enche a mesa de grande quan-tidade de iguarias, e fica num canto da sala olhando a cara estupidificada dos fregueses. Se derrete todo com os elogios. Desmancha-se em sorriso largo quando vê um visitante comer com satisfação. Quanto mais o cujo comer, mais alegre fica o Joanito.

DOces, TODOs Os DOces

Doces, doces, mais doces. Doces de leite, então, o Joanito se dá ao luxo de servir uma infinidade. Um arco-íris, do preto caminhando para o branco, em todas as tonalidades e consistências, gamas seguidas de cor e sabor. explica: uns gostam mais escuro ou mais claro. Outros mais moles ou mais duros; outros mais insossos ou mais adocicados. mistérios do Joanito. certa vez dois sujeitos de Brasília apareceram em pirenópolis e quiseram tirar uma prova com Joanito. Ficaram co-chichando um com o outro. O negócio era pedir um doce que não havia na casa e por o Joanito com a cara grande de vergonha. estavam cochichando — dizia eu — e o Joanito ali num canto. apesar dos seus 70 anos seus ouvidos funcionam como os de um menino de 12. Não era tempo de figos. Estavam ainda decidindo, na base do cochicho, pedir doce de figo, quando o Joanito, que de longe escutara a conversa, pulou no meio dos Janotas e replicou com seu vozerio incomensurá-vel: Seco, ou na calda!? Com cara de pau ficaram os dois de Brasília.

60 | Bariani Ortencio

raQuel Disse: FarTura!

O ano 1966, no Hotel Nacional de Brasília, a bancada de Goiás, em uma festa beneficente, promoveu a semana da pensão padre rosa. levaram o Joanito com o seu pessoal de cozinha. Foi um sucesso abso-luto. Deu entrevista na televisão. Gostou muito. Bateu um grande papo com o embaixador da França, mas não entendeu o embaixador da itália. O da itália — diz ele — não gosta de macarrão... recebeu convite para qualquer dia desses ir ao palácio da alvorada fazer um almoço para o presidente. está so-mente aguardando a confirmação da data. Seu maior orgulho consiste em dois quadros na parede: um, o da crônica de raquel de Queiroz, sobre seu estabelecimento, publicada no “O cruzeiro”, o outro o do padre rosa, boêmio, jogador de baralho, fazedor de serenatas, de um tempo muito longe, um tempo seu de valentias, andanças, cachaçadas e baralhos trucando a noite toda...”

FOTO FOTO

FOTO

61COZINHa GOIaNa |

BeBiDas ereFrescOs

cachaça

Goiás é o estado “rei da cachaça”. isso digo sem medo de errar. a pinga “estrela” do sr. Fiórido, de Trindade, marcou época e correu mundo, no sudoeste, principalmente em Bom Jardim e Quirinópolis, temos as marcas “Gradação” (a melhor de todas), “lagimeira”, “pantano”, “cachoeirinha”, “Bom Jar-dim”, “Água Branca”. Em Silvânia, antigo Bonfim, tem a fábrica na fazenda do Sr. Caixeta que produz a melhor cachaça do sul. em Buriti alegre e itumbiara contamos com a “anhanguera”, “real”, “parreiri-nha”. a “Fernandinha” e a “Orizonita” em Orizona, em pirenópolis temos a pinga branca do José Fran-cisco. em Goianésia tivemos a “itajaina” e em Guapó, a “coisa louca”. em Trindade, “Douradinha”, do sr. eduardo José Forte e a “pérola Goiana”. atualmente a cachaça “Vale do cedro”, de palestina de Goiás, é uma das melhores cachaças goianas.

Todas as aguardentes citadas, fora as brancas, são curtidas em dornas de bálsamo e somente são vendidas após dois anos de envelhecimento. há as paralelas, que abarrotam o mercado e com sabor à bálsamo, mas são falsificadas pelos processos de lavrarem o bálsamo e colocar os cavacos dentro para ativar o aroma e o envelhecimento; o outro processo consiste em pegar serragem de bálsamo na serraria, colocá-la num saquinho com a boca amarrada e deixar dentro da pinga. as marcas citadas conhecemos os alambiques e os respectivos fabricantes. são os próprios fazendeiros, homens que se orgulham da sua produção e zelam muito bem pelo seu nome.

62 | Bariani Ortencio

pinGa cOm murici

O murici é uma frutinha do cerrado muito cheirosa e que quando madura é colocada na pinga e muitíssi-mo apreciada em Goiás. Depois do pequi o murici á a fruta mais cheirosa dos campos e cerrados.”Tempo de murici, cada um cuida de si”.

resTilO

restilo é pinga de cabeça, redestilada, indo de 26 a 36 graus. É cachaça para “homem macho”, como diziam os antigos, mas que não faz mal devido a sua pureza. restilo e não restilho, como comumente se usa, pois é pinga desti-lada duas vezes.

nas fazendas o leite da manhã é tomado no curral, tira-do diretamente do peito da vaca, tendo a vasilha um pouco de conhaque. na falta do conhaque, antigamente, usavam o restilo.

“O restilho (extrato de cachaça, mais forte que rum) em pouco ativou-os” (Bc-68, pg. 104).

mOlhar a palaVra

ingerir bebida alcoólica. “Depois de molharmos a pa-lavra”, como dizem os canoeiros do Tocantins, ouvimos eloqüentes brindes e saudações, a que atentamente respon-demos”. (Bc-68, pg. 184).

cOrrer a rODa

“correr a roda”, frase agradável que se houve em reuniões na roça. lá vem o caseiro com a garrafa ou o garrafão de cachaça boa enchendo a tigelinha e servindo a turma satisfeita (todos na mesma tigelinha), “molhando a palavra”.

63COZINHa GOIaNa |

VinhO De Tucum

a dona maria da paixão, já bastante idosa, fabrica um vi-nho de coco tucum, muito gostoso e que será necessário a pessoa ser conhecedora de vinhos para notar que não se trata de vinho de uvas.

VinhO De GOiás

as parreiras na cidade de Goiás dão até três vezes por ano, conforme a poda. O asilo de são Vicente fabrica um vinho de uvas muito apreciado, bastante disputado, devendo as encomendas serem feitas com muita antecedência.

“se bem que a vinha produza aqui ótimos frutos, e que os ensaios de fabricação do vinho tenham sido felizes, um prato de uvas é ainda um objeto de luxo, tanta negligência e preguiça existem no país (região) . (BC-74, pg. 91) .

VinhO De JaTOBá

com um trado perfura-se o enorme tronco da árvore, em pé, até o cerne. a seiva vai escorrendo e tem jatobazeiro que dá uma quarta. É bastante amargo e deve ser adicionado açúcar ou mel, tendo gente que acrescenta também certa quantidade de álcool.

“a mata era espessa e sombria. havia ali numerosos jatobás ou jathais, da família das leguminosas, espécie de cujo tronco tira-se um licor que usado a miúdo, fortalece e engrossa a voz, dando a ela volume de beleza de tom. A fruta ou a vagem de jatobá é comestível”. (BC-75, pg. 37).

se os radialistas lerem esta notícia vai acabar com os jatobazeiros de Goiás. O chá de congonha-de-bugre é diurético e substitui o mate, no sertão, assim como também a dou-

radinha, ambos usados pelos banhistas em tratamento em caldas novas, após a saída das banheiras, de 38 a 41°.

64 | Bariani Ortencio

cerVeJas

“nestas emergências valia-nos a cerveja do nicolau e do João elias, o primeiro dos quais, um francês que não tenho o prazer de conhecer pessoalmente, mas que se celebrizou por ser o primeiro fabricante do gênero no Estado (Barro Preto, hoje Trindade). Chama-se Nicolau Joseph, ou vice-versa...” (BC-75, pg. 152).

Os padres redentoristas de Goiânia e Trindade, fabricam uma cerveja de arroz muito boa, mais como refresco, e de uma fermentação fora do comum. Basta uma garrafa tocar mais forte na outra para que estourem. É uma espécie do saquê japonês, sendo este servido quente e em banho-maria.

reFrescOs

além dos refrescos naturais (aluá, tamarindo, limão, laranja, jacuba, maracujá e essências), estamos invadidos pelos refrigerantes engarrafados. em Goiás já temos fábricas de quase todas as marcas es-trangeiras. certo dia indo para a cidade de Goiás com Bernardo elis, luiz mello e Daniel pereira (José Olímpio — editora), vimos um roceiro carregando uma caixa de crush para casa. e vai ver que a laranja lá está perdendo, que ninguém chupa, pois “laranja faz mal para crianças”.

maDurO

maduro é refresco colorido vendido nas festas religiosas. amarelo, vermelho, cor de rosa, verde e azul claro. hoje faz-se com anilinas, mas antigamente, na festa de Trindade, o negócio era colorido com papel de seda. O sabor é com essência. antes, quando não existia o gelado, o nome “refresco” era uma utopia e funcionava apenas como “tinge-tripas” e nunca como refresco.

65COZINHa GOIaNa |

JacuBa

Vários autores apontam a jacuba goiana (ver receituário) como sobremesa, mas na verdade a jacuba não passa de um refresco. a farinha de mandioca já possui uma certa quantidade de álcool (coisa mínima) e juntamente com a rapadura vão fermentar no estômago e tudo que fermenta refresca. É comumente usada bebida com bastante água, principalmente para quem mora em zonas maleitosas, a rapadura re-compondo o fígado de glicose, bastante primordial para preservar-se da maleita.

Voltando à cachaça, a melhor bebida do Brasil, quando ela é boa. tem a estória daquele fulano que lá ia levando no embornal uma garrafa de pinga, sendo a metade dele e a outra metade de um seu ami-go, para onde ia indo. como faltava vasilhame, ele mandou despejar a do amigo por cima da sua, cuja garrafa estava pelo meio. chegando ao destino a garrafa estava vazia:

— mas cadê a pinga que eu ganhei? — puseram por riba da minha... — e cadê a sua? — eu já bebi... — está certo, você bebeu a sua. agora, e a minha! cadê ela?! — uai, como é que eu ia poder beber a minha pinga que estava por baixo sem beber a sua que tava

por riba? podia jogar fora?!...

66 | Bariani Ortencio

caFÉ

a primeira coisa quando se muda de uma residência para outra é fazer imediatamente um café. a porção de café e de açúcar já vai separada pela dona da casa, para lá chegando não haver dificuldades de estar procurando na marafunda que a mudança acarreta.

“Fogo morto, casa morta”. (BC-31, pg. 87). café a duas mãos: É muito comum o café a duas mãos, numa a xícara e na outra a quitanda (em

Goiás quitanda não é a venda de frutas, e sim bolos e biscoitos). “Vazios os garrafões e o vasilhame, recomeça a faina, prolongada até meio dia, hora da pausa para

o “café com duas mãos”, que na gíria dos roceiros significa café com biscoitos”. (BC-22, pg. 182). café de roça: a coisa mais difícil de ver é um goiano levantar-se, ou da mesa ou do “de cócoras”,

sem tomar o seu café. nas regiões mais afastadas usam-se muito adoçar o café com rapadura. Quando não é possível açúcar nem rapadura, o sitiante tendo uma moita de cana plantada, espreme uma e tem-pera o café com garapa: fica uma miséria, mas sem um café não se pode ficar. É a boca de pito após, como, sem café?

café macho: Feito por homem. café valente: café puro, sem acompanhamento.

67COZINHa GOIaNa |

receiTuáriOAs receitas, de um modo geral, são misturas de ingredientes, observados os seus sabores, odores e até o visual. Mas há certas iguarias quase incompreensíveis, que nos chegaram depois de dezenas e centenas de anos de experiências ou por coincidências, como são os casos da geléia de mocotó de boi, a gelativa de ossos e couro, também de boi, e o chouriço, que é o doce de sangue de porco. Quem iria pensar que osso, couro e sangue de animais iriam resultar em doces?

68 | Bariani Ortencio

69COZINHa GOIaNa |

calDOs,sOpas eescalDaDOs

70 | Bariani Ortencio

71COZINHa GOIaNa |

calDO De cOsTela

Ingredientes1/2 quilo de costela de gado (com osso)

100 gr de mandioca (em cubinhos) cozida

Tempero a gosto

Modo de preparocozinhe a costela já temperada com alho e sal, em água abundante até derreter. Desosse e desfie a carne. separe a água, acrescente os temperos e a mandioca cozida. Deixe ferver até formar um caldo. acrescente a carne ao caldo e deixe cozinhar por 10 minutos.

v RENdE 4 PORçõES

calDO De FeiJãO

Ingredientes1/2 quilo de feijão

150 gr de bacon em cubinhos

tempero a gosto.

2ª receiTa

Ingredientes250 gramas de feijão novo, cozido (pagão),

sem tempero e sem amassar

5 fatias de bacon

2 cabeças de cebola bem picadas

6 dentes de alho

2 pimentas-bode sem curtir

uma boa pitada de pimenta do reino

2 molhos de cebolinha e 2 de salsa

1 galho de hortelã

Sal a gosto

Modo de preparocoloque o bacon na frigideira, e quando estiver de meia fritura, adicione o alho e a cebola, apenas para uma leve fritura. retire do fogo e deixe esfriar. esquente água e encha uma garrafa térmica. Misture tudo e bata no liquidificador, adicionando aos poucos óleo de oliva. não precisa coar. Ferva até pelar. para guardar, esvazie a garrafa térmica e encha-a com o caldo de feijão. Deve ser servido em tijelinhas próprias e em copos de dose. É também um suculento tira-gosto.