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O livro fala da realidade dos fatos e apresenta propostas, além de mostrar a trajetória da vida de um cidadão na luta por um ideal e como nasceram, no seu íntimo, os valores e princípios fundamentais para a gestão pública.
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Rebuscando minhas anotações sobre a herança nefasta deixada pela corrupção, encontrei material precioso no artigo Lei e inversão de valores, de Luiz Julião Ribeiro, delegado de polícia do Distrito Federal, publicado no Jornal de Brasília, em 14 de novembro de 2005, p.6.
CORRUPÇÃO
Ah, se nós pudéssemos Eliminar a corrupção,O Brasil seria mais respeitadoComo uma grande nação.
As crianças sorririamE os jovens iriam além, Os pobres se orgulhariamE os miseráveis diriam amém.
As oportunidades seriam iguais, Dar-se-ia fim à distinção,Nem todos andariam sorrindo, Mas não haveria coação,
Pois, para corruptos e corruptores,Acabaria a mordomia, E o país, feliz da vida,Extinguiria a epidemia.
Viva, então, O fim da vidaDa corrupção!
José Daniel de Alencar
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CORRUPÇÃO Memórias de um cabra da peste
José Daniel de Alencar
“Tive a oportunidade de ler previamente este livro CORRUPÇÃO Memórias de um cabra da peste. Confesso que fiquei emocionado com o que li. Se antes respeitava o Daniel, agora o admiro. É uma rica história sobre uma alma que dedicou sua vida buscando contribuir para a falência da corrupção, apesar dos percalços no caminho. Não vai ser fácil suprimi-la, pois o Brasil levou mais de 500 anos para construir essa parafernália, e não vai ser em pouco tempo que o terreno será totalmente limpo. Há de haver sempre uma grande mobilização, mesmo de poucos, para amenizar esse mal. Considero hoje o Daniel um ícone nessa luta, um homem de caráter, e por tal deve ser respeitado. O livro fala da realidade dos fatos e apresenta propostas, além de mostrar a trajetória da vida de um cidadão na luta por um ideal e como nasceram, no seu íntimo, os valores e princípios fundamentais para a gestão pública. A dobradinha Daniel X Fernando de Oliveira vai dar o que falar.”
‘A realidade é que nosso país precisa menos de leis e mais de seriedade, comprometimento com o bem comum e com a formação moral e intelectual das nossas crianças e de nossos jovens.Quanto mais educarmos o homem, menos precisaremos de leis, porquanto a lei somente se faz necessária quando os bons costumes, os princípios da civilidade e do respeito mútuo falham.’
Tais palavras levam-me a lançar um brado, que espero seja ouvido em todos os recantos do Brasil e não seja olvidado:
‘Por que fecham os olhos e esquecem os principais responsáveis por essa vergonhosa e inominável situação, não se tocando, pelo menos, de que esse grandioso país será dirigido, no futuro, nas mais variadas áreas de atividades (jurídica, legislativa, executiva, administrativa, contábil, empresarial, etc.), justamente pelas crianças e pelos jovens de hoje e de amanhã? Que exemplo estão lhes transmitindo?’
A propósito, é de se recordar as lições que sábios legaram à humanidade:
‘Educai as crianças, e não será preciso castigar os homens.’ (Confúcio)
‘A corrupção do melhor é a pior das corrupções.’ (São Gregório, o Grande)
‘O bom exemplo não é apenas um meio de influenciar as pessoas. É o único!’ (Albert Schweitzer, médico alemão)
José Daniel de Alencar
Fernando estevez Gadelha
administrador de empresas pela Faculdade de ciências políticas e econômicas do rio de Janeiro e especialista em políticas públicas para micro e pequenas empresas pela universidade de campinas (unicamp). atua hoJe como Gerente da unidade de políticas públicas do sebrae do espírito santo e Foi diretor da empresa brasileira de correios e teléGraFos do espírito santo 1988 a 2001.
Das lições que transmite o articulista à nossa sociedade, destacam-se os seguintes parágrafos do referido artigo:
Rebuscando minhas anotações sobre a herança nefasta deixada pela
corrupção, encontrei material precioso no artigo Lei e inversão de valores, de Luiz
Julião Ribeiro, delegado de polícia do Distrito Federal, publicado no Jornal de Brasília,
em 14 de novembro de 2005, p. 6.
Das lições que transmite o articulista à nossa sociedade, destacam-se os
seguintes parágrafos do referido artigo:
‘A realidade é que nosso país precisa menos de leis e mais de
seriedade, comprometimento com o bem comum e com a formação moral e
intelectual das nossas crianças e de nossos jovens.
Quanto mais educarmos o homem, menos precisaremos de
leis, porquanto a lei somente se faz necessária quando os bons costumes, os
princípios da civilidade e do respeito mútuo falham.’
Tais palavras levam-me a lançar um brado, que espero seja ouvido em
todos os recantos do Brasil e não seja olvidado:
‘Por que fecham os olhos e esquecem os principais
responsáveis por essa vergonhosa e inominável situação, não se tocando, pelo
menos, de que este grandioso país será dirigido, no futuro, nas mais variadas
áreas de atividades (jurídica, legislativa, executiva, administrativa, contábil,
empresarial, etc.), justamente pelas crianças e pelos jovens de hoje e de
amanhã? Que exemplo estão lhes transmitindo?’
A propósito, é de se recordar as lições que sábios legaram à
humanidade:
‘Educai as crianças, e não será preciso castigar os homens.’
(Confúcio)
‘A corrupção do melhor é a pior das corrupções.’
(São Gregório, o Grande)
‘O bom exemplo não é apenas um meio de influenciar as pessoas. É o único!’
(Albert Schweitzer, médico alemão)
José Daniel de Alencar
José Daniel de Alencar
CORRUPÇÃO ― Memórias de um cabra da peste
CRÉDITOS
Autor: José Daniel de Alencar
Colaboração: Carlos Marcelo Estevez de Alencar
Digitação e revisão: Sandra Regina de Oliveira
Supervisão: Maria Inez Dorça da Silva
Capa: Jonas Gadelha de Andrade Bento
III
SUMÁRIO
Apresentação, VI
Prefácio, VII
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
1. ANDANÇAS INICIAIS, p. 1
1.1 Em Parnaíba – Piauí, p. 1
1.2 No Rio de Janeiro – Guanabara, p. 8
1.3 Em Montes Claros – Minas Gerais, p. 21
1.4 Em Brasília – Distrito Federal, p. 29
1.5 Em Boa Vista – Território Federal de Roraima, p. 34
1.6 Em Macapá – Território Federal do Amapá, p. 38
1.7 De volta a Brasília – Distrito Federal, p. 60
CAPÍTULO II
2. CONTINUAÇÃO DAS BATALHAS, p. 61
2.1 O Projeto Verama, p. 62
2.2 As Secretarias de Controle Interno, p. 64
2.3 Mudança funesta, p. 68
2.4 Reinício da luta, p. 69
2.5 No Ministério da Agricultura, p. 74
2.5.1 Cargos exercidos, p. 75
2.6 Na Secretaria de Planejamento da Presidência da República, p. 75
2.6.1 Cargos exercidos, p. 76
2.7 Novamente no Ministério da Agricultura, p. 76
2.7.1 Cargo exercido, p. 77
2.8 No Serviço Nacional de Informações, p. 79
2.8.1 Cargos exercidos, p. 80
IV
2.9 Na Fundação Visconde de Cabo Frio, p. 80
2.9.1 Cargo exercido, p. 80
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO I
1. O SISTEMA DE CONTROLE INTERNO NO PODER EXECUTIVO FEDERAL
PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988, p. 83
CAPÍTULO II
2. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO, p. 86
CAPÍTULO III
3. O CUSTO DA CORRUPÇÃO, p. 87
3.1 O prejuízo anual da corrupção no Brasil, p. 88
CAPÍTULO IV
4. O MENSALÃO NO DISTRITO FEDERAL, p. 89
4.1 A estatística da corrupção, p. 95
4.2 Não à intervenção federal, p. 96
CAPÍTULO V
5. A LEI DA FICHA LIMPA, p. 97
5.1 Repercussão mundial, p. 107
5.2 Agora, é o voto, p. 109
V
CAPÍTULO VI
6. AINDA A PROPÓSITO DA CORRUPÇÃO, p. 110
6.1 O Congresso Nacional e a corrupção, p. 111
6.2 Caracterizando e batizando os corruptos, p. 112
6.3 Nós e você, já são dois gritando, p. 114
6.4 Dia Internacional contra a Corrupção, p. 121
6.5 Resposta à corrupção em várias partes do mundo, p. 124
6.6 Prisão de políticos corruptos em Curitiba, p. 124
CAPÍTULO VII
7. BASTA DE CORRUPÇÃO! , p. 125
7.1 Os Tribunais de Contas , p. 161
7.2 Fiscalização para fiscal, p. 163
7.3 Propostas do autor, p. 166
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO I
1. CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 168
ANEXO
1. TRABALHOS PARALELOS, p. 169
1.1 Cursos ministrados, p. 170
1.2 Livros publicados, p. 170
2. ELOGIOS RECEBIDOS, p. 171
VI
Apresentação Há cerca de quarenta anos, venho lutando contra a corrupção. E não têm sido fáceis as batalhas travadas. Agindo sorrateiramente, a corrupção prejudica o desenvolvimento de qualquer nação, deixando um rastro inconfundível de sua nocividade. As crianças, os adolescentes, os pobres e os miseráveis são suas vítimas em potencial. Que pátria vamos entregar-lhes? Graças à ajuda de meu filho, Carlos Marcelo Estevez de Alencar, jornalista, e de minha sobrinha, Sandra Regina de Oliveira, pude concluir este livro. Desta, que desconhecia o meu combate à perniciosa corrupção, recebi o bilhete abaixo transcrito, com referência à minha luta e à esperança, que não deve ser olvidada:
“Tio Pan, Parabéns pela sua digna luta! Comparo-o a um mártir, em constante batalha, mesmo com os perigos que possam advir desse grito abafado em prol da decência, da honra e da respeitabilidade. Admiro-o pela coragem e perseverança. Oxalá esse clamor de justiça que intenta eclodir do seu interior possa, um dia, ser entendido pelos que somente visam à ganância, ao vilipêndio e ao poder como o caminho da prosperidade e da realização do indivíduo em sua essência.
Um grande abraço, Sandra Regina 1º/8/2010” Peço desculpas pelas palavras usadas no livro, em diversos casos citados, referentes aos elogios sobre a minha atuação. No entanto, trata-se de relato dos fatos por mim vivenciados. Brasília, 15 de agosto de 2010 José Daniel de Alencar
CORRUPÇÃO ― Memórias de um cabra da peste
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
1. ANDANÇAS INICIAIS
‘No meio do caminho tinha
uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.’
(Carlos Drummond de Andrade)
1.1 Em Parnaíba – Piauí
Daniel, o cabra da peste, nasceu no dia 15 de janeiro de 1934,
numa casa coberta com palha de coqueiro, piso de areia, paredes de taipa,
próxima aos barrancos do rio Parnaíba, na cidade do mesmo nome, no Estado
do Piauí.
Filho de João Alencar dos Santos, mais conhecido como seu
Janoco, e de Bernarda Costa dos Santos, a dona Nadina, foi o terceiro de uma
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prole de dezoito, segundo do sexo masculino. Após seu nascimento,
seguidamente, vieram mais dois daquele mesmo sexo. Depois, ano a ano,
nasceram, alternadamente, uma mulher e um homem. Somente onze
sobreviveram: seis homens e cinco mulheres.
Daniel que tinha feições japonesas ― e seu irmão Jonas eram
morenos. Os outros eram brancos, alguns de olhos verdes. Os quatro primeiros
meninos ― João, José (Daniel), Jaime e Jonas ― eram quase do mesmo
tamanho e pareciam, quando lado a lado, uma escadinha. Muito unidos, viviam
aprontando. Só sossegavam na hora de dormir.
Àquela época ― 1934, e por seguidas décadas ―, doenças
desconhecidas mutilavam as crianças da cidade. Diariamente, passavam nas
ruas vários caixões com criancinhas mortas.
Quando ainda dava os primeiros passos, Daniel foi acometido de
pneumonia e permaneceu doente por seis meses. Definhava a cada dia e já não
tinha mais carne, somente os ossos. Parecia um esqueleto. Um dia, começou a
balbuciar; de sua boca, a saliva escorria. Nadina apelou para a empregada que
fosse correndo chamar o médico, pois Janoco, também doente, se retorcia na
rede com uma congestão. O médico chegou, examinou Daniel e balançou a
cabeça negativamente:
― Este menino não viverá até o amanhecer. Amanhã passarei
aqui para entregar-lhe o atestado de óbito, informou tristonho.
“Meu Deus, o que faço?”, pensou Nadina, atordoada, pois, ao
mesmo tempo, o marido gritava seu nome desesperadamente.
Católica fervorosa, pegou Daniel, acolheu-o nos braços e foi até a
sala onde estava, em bonitos quadros de vidro, a Família Sagrada, na seguinte
ordem: São José, Jesus e Nossa Senhora. Ela olhou fixamente São José e,
ajoelhando-se com o menino nos braços, pediu-lhe:
― Se meu marido tiver que morrer, entrego-lhe meu filho. Leve-o
no lugar dele, pois sem o Janoco não teremos como viver. Seja o padrinho do
meu filho.
Retornou rapidamente, colocou Daniel na rede e foi atender o
marido, que se queixava de não mais sentir a perna esquerda. Aplicou
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massagens na perna dele e, exausta pelas noites indormidas, recolheu-se à sua
rede.
Acordou com os primeiros raios de sol e lembrou-se do aviso do
médico de que Daniel não atravessaria a noite. Ao chegar à rede, olhou para a
criança e quase desmaiou de tanta emoção. O menino fitava Nadina e sorria.
O médico vinha chegando e assustou-se.
― Isso é inacreditável. Nunca me enganei nos meus diagnósticos.
Reexaminou Daniel e, estupefato, acrescentou:
― Se me contassem, eu não acreditaria. A pneumonia sumiu.
Nunca vi caso igual. Se existe milagre, aqui houve um.
Em seguida, examinou Janoco e também se espantou com a sua
melhora. Notou, porém, que a perna esquerda definhara, em comparação com
a outra. Em poucos dias, o esposo de Nadina começou a andar, embora tivesse
que jogar a perna esquerda de lado. Tal defeito, carregou-o pelo resto da vida.
Um dia, Nadina estava trabalhando na máquina de costura e pediu
a Daniel, que brincava ao lado, que fosse pegar a tesoura em cima da cama. O
menino, já com quase dois anos de idade, assim o fez, mas escorregou, e parte
da lâmina entrou na coxa de sua perna direita. O sangue começou a jorrar. Sua
mãe, desesperada, gritava por socorro. Como ninguém apareceu, fechou os
olhos, rogou a Deus por Sua ajuda e puxou com firmeza a tesoura.
O sangue ainda correu por poucos minutos e estancou. Daniel foi
levado para a cama. O médico chegou logo depois e recomendou repouso
absoluto por aproximadamente um mês. Somente com cerca de três anos é que
o menino pôde caminhar com firmeza.
Sempre andando junto com João, Jaime e Jonas, Daniel era o
mais terrível dos irmãos: subia em árvores e corria o dia inteiro. Os quatro, de
tantas estripulias, levavam várias surras por dia, ora de palmatória, ora de
chiqueirador. Nadina não sabia o que fazer. Católica fervorosa, decidiu ir à
igreja revelar suas preocupações ao Monsenhor Roberto. Ele, então, deu-lhe o
seguinte conselho:
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― Levante as mãos ao céu, minha filha. Dê graças a Deus. Grave
é quando um adoece e você fica acordada por diversas noites cuidando da
criança.
Janoco, natural do Crato, no Ceará, era descendente de índio
casado com portuguesa. Nascera pobre, mas herdara uma fortuna de um
senhor chamado Zacarias, a quem servira em sua farmácia, por muitos anos.
Em face dessa herança, a situação financeira da família era boa. Infelizmente,
Janoco foi vítima de tifo e, entre o início da moléstia e a convalescença, ficou
cerca de seis meses ausente de seus negócios. Nessa ocasião, possuía um rico
armazém de comidas e bebidas, tendo, em confiança, deixado os afazeres por
conta de seus empregados. Quando retornou ao trabalho, já não havia mais
quase nada. Os empregados o roubaram e fugiram sem deixar rastro.
Começou, então, a via-crúcis. Para honrar os compromissos,
Janoco vendeu todos os bens e passou a sustentar a família com os parcos
recursos que recebia de sua aposentadoria. Ficaram numa pobreza de dar dó. A
comida, que antes era farta, foi reduzida drasticamente. Os filhos, mesmo na
tenra idade, esforçavam-se como podiam para ajudar: uns iam colher frutas
nas árvores, outros iam pescar e lavar jegues no rio Parnaíba.
Daniel, com apenas oito anos, ia trabalhar no campo, nos
arredores da cidade. Capinava o dia inteiro. Ao fim dos primeiros dias, suas
mãos estavam cheias de bolhas, que furava com espinhos, todas as noites, até
que se formassem calos. Assim, podia suportar, com menos dores, o cabo da
enxada.
As pescarias eram realizadas às noites de lua cheia. Ficavam,
Daniel e os irmãos, com lama até os joelhos, sempre preocupados com o
movimento dos jacarés, cujos olhos pareciam bolinhas de fogo. A impressão era
a de serem observados por eles durante todo o tempo.
Apesar da penúria que atravessavam, Janoco, ao contrário de
Nadina, não surrava os filhos. Ainda hoje, Daniel guarda na memória os
conselhos que dele recebia. O pai chamava os quatro meninos ― João, José
(Daniel), Jaime e Jonas ― e, rodeando-os, dava início às recomendações. Dizia
ele, começando sempre com meus fios:
5
― Junta-te aos bons e serás um deles. Junta-te aos maus e serás
pior do que eles.
― A vingança que se tem contra o mentiroso é que, mesmo que
ele fale a verdade, não se acredita nele. Por isso, nunca mintam.
E completava:
― A verdade nasceu de manhã,
A mentira nasceu ao meio-dia,
Quando a verdade engatinhava,
A mentira já corria.
E continuava Janoco, depois de falar sobre o tempo e a pressa em
se resolver assuntos:
― O tempo perguntou ao tempo:
― Quanto tempo tem o tempo?
E o tempo respondeu ao tempo:
― Tudo com o tempo tem tempo.
E vinham mais conselhos:
― Dinheiro não se empresta porque, quando não se perde o
dinheiro, perde-se o amigo ou os dois.
Recomendava aos quatro filhos que andassem sempre direito e
cumprissem seus deveres. E finalizava:
― Só assim, quando uma pessoa der um grito em um de vocês,
vocês dão dois nela.
Certa vez, Janoco afirmou aos filhos que havia uma medida que
nunca enchia. Os meninos se entreolharam e perguntaram:
― Como assim, papai?
― Por exemplo, respondeu Janoco, um copo, você enche de água.
Se você coloca mais água, transborda. A mesma coisa acontece com uma
garrafa.
Como nenhum deles entendeu o enigma, Janoco encostou o dedo
polegar no dedo indicador da mão direita e, em círculo, esfregando um no
outro, disse:
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― Meus fios, a medida que nunca enche é a medida do ter:
quanto mais a pessoa tem, mais ela quer ter.
E vinha mais outro conselho do pai:
― Quem quiser viver neste mundo,
E para dele gostar,
É tomar por capricho
Ver, ouvir e calar.
Hoje, Daniel fica admirado ao relembrar o pai, que, mal sabendo
fazer um o com o auxílio de uma moeda, tinha tanta sabedoria. Era um
verdadeiro filósofo matuto.
E a sofrida infância foi passando...
Após completar quatorze anos (15/1/1948), Daniel começou a
procurar emprego. Em 2 de fevereiro de 1948, foi admitido na firma Moraes
S.A. Indústria e Comércio, tendo ali permanecido até 25 de março de 1950.
Nessa época, fazia o curso ginasial pelas manhãs, no Ginásio
Parnaibano. Entretanto, com o intuito de trabalhar na empresa e continuar os
estudos, pediu transferência para o Ginásio Nossa Senhora de Lourdes, no
período noturno.
Nos meses de junho, eram realizadas as primeiras provas do ano;
em dezembro, as últimas. Os professores de Ciências, Geografia e História
selecionavam os temas das dissertações e, no dia da aplicação das provas,
colocavam em um saquinho os números correspondentes a cada um deles. Em
junho, sorteavam dez temas; em dezembro, repetiam os dez de junho e
acrescentavam mais outros dez. Um dos alunos era escolhido para o sorteio. Ao
desdobrar o papel, o professor dizia o número sorteado e a que dissertação
correspondia. Então, começava a prova. A dissertação valia cinco pontos e era
acompanhada de cinco perguntas sobre assunto dado em cada semestre. Quem
tirasse menos de cinco no teste era reprovado na matéria. Ao final do ano, se o
aluno fosse reprovado em, no máximo, duas das sete ou oito matérias
estudadas, iria fazer prova um mês depois. Se a reprovação passasse de duas
matérias, repetia o mesmo ano. Isso no ginasial.
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Durante quinze dias antes das provas, Daniel levantava-se às 4
horas da manhã. Enchia uma bacia com água fria, trancava-se na despensa de
casa, acendia uma lamparina e colocava os pés na bacia para não dormir. Lia,
atentamente, as matérias de cada dissertação e, sintetizando-as, transcrevia o
que entendia ser importante. Às 7 horas parava, tomava banho, vestia-se e ia
trabalhar. Nunca fora reprovado e era tido como um dos melhores alunos.
Gostava tanto de estudar que uma de suas professoras, Maria da Penha, o
escalava, vez por outra, para que repetisse aos alunos o que ela ensinara na
aula anterior. Daniel, ainda hoje, traz boas lembranças de sua mestra.
Jaime, irmão mais novo de Daniel, já estava trabalhando no Rio
de Janeiro. Janoco e Nadina haviam aceitado de um comandante da empresa
de aviação Cruzeiro do Sul a oferta de emprego para o filho naquela cidade.
Todos os meses, Jaime mandava aos pais, pelos Correios ― por vale-postal ―,
certa quantia para ajudar nas despesas.
Daniel, diversas vezes, pediu aos pais para também ir morar no
Rio de Janeiro, onde poderia trabalhar e contribuir com as despesas. Eles não
concordavam, a não ser que Jaime garantisse, por escrito, que já conseguira
emprego para o irmão.
Daniel, então, pensou, pensou... e, às escondidas, enviou carta a
Jaime, apelando para que ele escrevesse a Janoco e Nadina. E assim
aconteceu.
O prazo para se apresentar era curto. Mas, qual emprego, que
nada... Tudo era fruto da combinação entre os irmãos a fim de que os pais
concordassem com a viagem.
Daniel pediu dispensa da firma em que trabalhava e partiu para o
Rio de Janeiro nos últimos dias de março de 1950.
Na véspera, Janoco chamou o filho e deu-lhe dois conselhos,
dizendo-lhe que não os esquecesse:
― O cabra em terra estranha é o último que fala e o primeiro que
apanha.
― Diz-me com quem andas e eu te direi quem és.
8
1.2 No Rio de Janeiro – Guanabara
Chegando ao Rio de Janeiro, o irmão estava à sua espera. Daniel
ficou espantado ao ver tantas luzes. Tomaram um táxi em direção à pensão em
que ele se acomodaria. No caminho, pela janela traseira do carro, Daniel olhava
fixamente para as casinhas, umas em cima das outras, indo perto do céu ―
calculava erradamente.
O irmão, após vários minutos, puxou-o pelo braço e segredou-lhe:
― Aqui, os nordestinos são identificados, pois falam muito alto.
Somos xingados de pau de arara e cabeça-chata. Quando os cariocas estão em
grupo e passa um nordestino, eles o chamam e perguntam:
― Sabe por que tu tem a cabeça chata, seu pau de arara?
E eles, batendo com a mão na cabeça do nordestino, dizem:
― Porque, quando tu nasceu, teu pai bateu na tua cabeça,
dizendo: cresce, meu filho, para ir ganhar dinheiro no Rio de Janeiro ou em São
Paulo e mandar para teus pais criarem o resto dos filhos.
Se o nordestino não sair correndo, apanha.
Daniel arregalou os olhos, e Jaime completou:
― Tem mais: não fica feito besta, parado, olhando a altura dos
prédios, que eles passam de carro e gritam: ‘Pau de arara!’, ‘Cabeça-chata!’... e
dão risadas.
O táxi já estava chegando à porta da pensão, na Rua Corrêa
Dutra, onde Jaime alugara uma das vagas, em um quarto com três lugares.
Desceram do carro, pagaram a corrida ao motorista e retiraram as malas.
Daniel conheceu a dona da pensão e a sua vaga. Jaime despediu-se do irmão,
pois morava em outra rua, deixando seu endereço e telefone. Antes, porém,
aconselhou-o a comprar, na manhã seguinte, o Correio da Manhã e o Jornal do
Brasil e ir à luta, à procura de emprego. Mesmo com seus quinze anos, Jaime
trabalhava numa empresa ferroviária do governo federal e era remunerado pela
chamada Verba-3.
E Daniel seguiu o conselho do irmão. Cerca de um mês andara,
perguntando daqui, perguntando dali, em considerável parte do centro do Rio
9
de Janeiro. Com o dinheiro quase acabando, às tardes, sentava-se no meio-fio
da calçada em frente à pensão e chorava. Não tinha recursos financeiros para
retornar ao seu Piauí. Quanta saudade!
Naquele tempo, as empresas podiam contratar pessoas a partir
dos quatorze anos, mas eram obrigadas a não despedir o empregado quando
este era convocado para servir, aos dezoito anos, às Forças Armadas. Depois
de servir, o emprego estava garantido, daí a dificuldade de Daniel, já com
dezesseis anos, conseguir trabalho com carteira profissional assinada. E tome
choro e lamentações: “Ah, meu Piauí, você lá, e eu chorando aqui!”...
Uma noite, no final do mês de abril, desiludido por não conseguir
emprego, Daniel ajoelhou-se aos pés da cama e rezou, pedindo a São José, a
quem considerava e ainda considera seu padrinho, que amenizasse seu
sofrimento e o ajudasse a arranjar um trabalho com a carteira profissional
assinada. Precisava mandar dinheiro aos pais e irmãos para que não passassem
fome.
No dia seguinte, levantou-se às 6 horas da manhã. Foi até a
primeira banca de jornais e revistas e comprou um exemplar do Jornal do
Brasil. Leu algumas páginas na Seção de Empregos e localizou um que lhe
agradou. Só ainda não entendia o significado de office boy. Como precisavam
de rapaz de dezesseis anos, resolveu arriscar. Partiu da Rua Corrêa Dutra,
transversal à do Catete, atravessou a Praça Paris e chegou à Avenida
Presidente Wilson. E o office boy não lhe saía da cabeça. E pensava: “Que
diacho é isso?”
Identificou o prédio e, sempre com o periódico na mão, entrou no
elevador. Ao dele sair, dirigiu-se à sala indicada no jornal, onde leu na porta:
Escritório Brasileiro de Imprensa NEWS PRESS Ltda. Viu um jovem de cor
negra, em pé, no corredor do escritório. Foi até uma mesa e perguntou ao
senhor sentado atrás dela:
― É aqui que estão precisando de um office boy?
― Sim, respondeu.
E Daniel, envergonhado, de cabeça baixa, voltou a perguntar:
― E o que é office boy?
10
O senhor deu um pequeno sorriso e respondeu que office boy era
o mesmo que contínuo. Em seguida, levantou-se, estendeu a mão e
apresentou-se:
― Meu nome é Ari Cunha, e o seu?
Daniel disse-lhe, então, o seu nome completo.
Ari Cunha pediu que Daniel ficasse na fila, atrás do jovem que
chegara antes, e aguardasse a entrada do chefe, Amaury Cunha, paulista, que
vinha para o Rio de Janeiro na ponte-aérea.
Poucos minutos depois, um senhor entrou no escritório, olhou de
soslaio os dois candidatos e trancou-se em uma sala, separada por divisórias.
Ari Cunha foi chamado e, após certo tempo, foi até os candidatos,
perguntando-lhes se sabiam datilografia. O jovem que chegara primeiro,
balançando a cabeça, disse que não. De Daniel, recebeu resposta afirmativa.
Então, o candidato que antecedera Daniel foi dispensado.
Ari Cunha dirigiu-se à secretária, uma alemã, e pediu-lhe que
colocasse um exemplar do Correio da Manhã ao lado da máquina de
datilografia. Mandou que Daniel se sentasse na cadeira à frente da máquina.
Assim ele o fez, mas, antes que começasse a datilografar, a alemã, com um
sotaque carregado, disse, já parecendo irritada:
― Esse menino é como os outros. É um cata-milhos. Vai ser perda
de tempo.
Daniel, intimamente, ficou nervoso. Mas a necessidade falava mais
alto. A secretária deu-lhe as costas e foi mexer em um arquivo de metal. Ari
sentou-se à sua mesa de trabalho. O senhor Amaury estava enclausurado na
sala com divisórias. A máquina de datilografia era da marca Remington, muito
usada naquela época. O seu barulho lembrava o de uma metralhadora, quando
o datilógrafo era exímio.
Daniel começou a datilografar a reportagem que lhe fora indicada.
O tempo era de 10 minutos. Olhou para o relógio, e ainda não havia decorrido
o tempo estabelecido quando o senhor Amaury, que saíra de sua sala, chegou,
observou o trabalho durante alguns segundos e tirou o papel da máquina.
Antes que dissesse alguma coisa, a secretária, espantada, adiantou:
11
― Esse menino estar brincando com coisa séria.
O senhor Amaury leu o que fora datilografado, pegou o jornal e
conferiu. Abriu um largo sorriso e disse:
― O emprego é seu. Me diga: onde e como você aprendeu a
datilografar tão rápido?
Daniel respondeu-lhe que tinha sido lá na Parnaíba, no Piauí,
quando tinha onze anos de idade. Em seguida, entregou-lhe sua carteira
profissional para o devido registro.
O senhor Amaury dirigiu-se a Ari e pediu-lhe que transmitisse a
Daniel os seus afazeres. Ari, então, começou a enumerá-los: chegar às 7 horas,
apanhar na banca de jornais, em frente ao prédio, os principais periódicos do
Rio de Janeiro, varrer o escritório, espanar as mesas e passar nelas óleo de
peroba, servir o café quando solicitado, entregar correspondência, etc.
Daniel estava espantado com tantas obrigações. Ari entregou-lhe
um envelope. Chamou-o ao fundo da sala e, da janela, apontou para o
Aeroporto Santos Dumont. Ordenou-lhe que fosse até lá e despachasse, por
uma empresa aérea, para um jornal de São Paulo, dito envelope. Daniel
cumpriu, rigorosamente, a missão, mas confundiu-se no momento de retornar à
NEWS PRESS. Andou por várias ruas, mas não conseguia reconhecer o prédio,
que ficava bem perto do aeroporto. Parou diversas vezes. Perguntava aos
passantes:
― Moço, o senhor sabe onde fica o prédio da NEWS PRESS?
As pessoas riam quando Daniel, com seu sotaque nordestino,
começava a dar as características do edifício. Ele pensou e lembrou-se do jornal
que havia comprado pela manhã. Chegando à primeira banca, pediu o exemplar
e pagou. Foi direto à página do anúncio do emprego e perguntou ao jornaleiro
onde ficava a Avenida Presidente Wilson. O vendedor esticou a mão e disse-lhe
que bastava continuar andando em frente, que a avenida começava logo após
o término da rua em que estava. Assim que Daniel chegou, Ari perguntou-lhe
por que demorara tanto. Desculpando-se, respondeu que ficara admirando a
beleza da decolagem e da aterrissagem dos aviões.
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Após vários meses de trabalho, atribuíram a Daniel mais uma
missão: passaria, todas as manhãs, a ler os jornais e a eleger as notícias mais
importantes. Então, iria resumi-las, datilografá-las, colocá-las em envelopes
endereçados a jornais de São Paulo com os quais a NEWS PRESS tinha contrato
e despachá-las no Aeroporto Santos Dumont. Para isso, acordava todos os dias
às 6 horas da manhã, inclusive aos sábados. Andava da Rua Corrêa Dutra à
Avenida Presidente Wilson, por quase uma hora, até chegar ao local de
trabalho.
No final de cada mês, durante quase dez anos seguidos ― de
1950 a 1960 ― Daniel enviava dinheiro aos pais pelos Correios ― por vale-
postal ―, como prometera. Ficava com poucos recursos no bolso para pagar a
vaga na pensão e fazer as refeições. Havia meses em que recebia cartas de
Janoco, pedindo-lhe que aumentasse o valor remetido, pois precisava comprar
remédios para os filhos.
Para atender os pedidos, por várias vezes, teve de mudar de
pensão. Além de morar na Rua Corrêa Dutra, morou também nas ruas Dois de
Dezembro, Buarque de Macedo e do Catete, todas no bairro do Flamengo. E em
outras em Botafogo.
Em algumas ocasiões, entre uma mudança e outra, faltava
dinheiro para a despesa com o aluguel da vaga, mesmo trabalhando na NEWS
PRESS. Então, ia dormir nos bancos das praças públicas, de preferência nos do
Tabuleiro da Baiana. Cobria-se com pedaços de jornais que levava da firma,
debaixo do braço. E não foram poucas as vezes que isso ocorreu. Acordava
cedo para, antes dos colegas, chegar ao escritório. Lavava rapidamente o rosto,
escovava os dentes e começava a trabalhar. Café da manhã? O jejum era seu
companheiro...
Pensando em driblar a fome, Daniel almoçava em pensões. A
comida era farta. Ele comia sete bifes no almoço, pois, erradamente, julgava
que, com isso, não precisasse jantar. “Não é assim com os camelos?”,
raciocinava. Em menos de um mês, começou a sentir dores insuportáveis no
estômago. Foi parar no pronto-socorro conhecido, no Rio de Janeiro, como
Sandu. O médico, conversando com ele, tomou conhecimento da besteira que
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fazia. Deu-lhe conselhos, advertindo que não comesse mais de um bife por dia.
A história de Daniel espalhou-se entre os colegas, que o apelidaram de Sete
bifes.
Não sobrava dinheiro para os jantares. Foram anos de fome, de
sofrimento e de muitas lágrimas. Com o pouco que restava, passava em um bar
na Rua Dois de Dezembro, antes de ir deitar-se. Sentava-se à mesa, e o
garçom, português, dizia, ao atendê-lo:
― Que vais jantar, ô gajo?
― Um copo de leite com café e pão, respondia Daniel.
― Com manteiga no pão?, perguntava o portuga.
― Não. A manteiga me faz mal, dizia Daniel.
O português olhava Daniel com ares de gozador e, antes que ele
falasse, Daniel lhe dizia:
― É que no Piauí tive malária várias vezes, e manteiga faz mal ao
meu fígado.
E o português saía resmungando.
― Raios, estoupore!
Que mal, que nada! Daniel dava graças a Deus porque podia
comer um pouco, pois houve dias ― e foram muitos ― em que, a conselho de
colegas, tomava dois copos d’água e dormia de bruços. Gozação ou não, foi a
saída que encontrou para tapear a fome.
Sua irmã, Lourdinha, penalizada, levou-o para morar com ela no
quarto, na Rua da Lapa. Daniel aceitou, feliz. Ficava mais perto da Avenida
Presidente Wilson e, assim, não precisava acordar tão cedo. Viu ali situações
que antes não vira: mulheres, praticamente nuas, só usando calcinha,
malandros com seus ternos brancos, camisas da cor creme, gravatas coloridas
e sapatos de camurça branca com bico marrom e salto carrapeta. Naquele
tempo, a malandragem era romântica, diferente da de hoje, em que só vigora a
violência.
Daniel, embora menor de idade, conheceu gafieiras e muitas
mulheres, mas não tinha coragem de manter relações sexuais com nenhuma
delas. Na primeira vez em que se aproximou para conversar com uma, veio ao
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seu encontro o chamado cafetão da mina e, dirigindo-se a ele, com aquela voz
de malandro, disse:
― Vem cá, meu irmão. Toma cuidado! Tu anda cercando minha
nega. Cavalo morre é pastando.
Tirou a navalha do bolso e, com ela, fez malabarismos. Daniel,
como se dizia em Parnaíba, ficou todo arrupiado, e nunca mais olhou para
qualquer uma daquelas mulheres. Ao delas se aproximar, baixava a cabeça e
seguia em frente.
Na Rua Pedro Américo, transversal à do Catete, havia uma
delegacia de polícia. Um dos delegados, conhecido como Padilha, era o terror
das redondezas. De surpresa, em um camburão seguido de carros da polícia,
fazia rondas em dias alternados das semanas. Quando apareciam na Rua da
Lapa, era um corre-corre e uma gritaria de endoidecer. Triste de quem ele
pegasse e não justificasse o que estava fazendo ali. Os malandros (cafetões),
tão ágeis com a navalha, se borravam de medo. Se o delegado Padilha pegasse
um deles, colocava uma maçã na cintura de uma das pernas da calça do
indivíduo para testar a largura da boca da vestimenta ― à época, acreditava-se
que só os malandros usavam calças com a boca da perna justa. Se a fruta
descesse e nela não passasse, Padilha cortava as pernas das calças do
malandro em várias partes.
Começou a circular o boato, na jurisdição da delegacia do famoso
Padilha, que um tarado tinha feito mal a várias crianças. Investiga daqui,
investiga dali, e prenderam o dito cujo. Os policiais o entregaram ao delegado
para lavrar a ocorrência. Contavam que Padilha olhou o preso de cima abaixo e
perguntou-lhe, gritando:
― É você o tarado?
― Sim, senhor, respondeu o preso, baixando a cabeça.
O delegado pegou-o pelo braço, chamou os policiais e levou-o, à
força, aos fundos da delegacia. Puxou um tamborete, mandou os policiais
tirarem a roupa dele e ordenou:
― Bota esse troço aí em cima do tamborete.
― Policiais, segurem firme esse desgraçado!
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Em seguida, com um cassetete desferiu violento golpe no pênis do
infeliz. O sangue espirrou longe e continuou a jorrar. O homem deitou-se no
chão, uivando de dor e rolando de um lado para o outro. E nunca mais as
crianças do Catete foram molestadas.
À época, Daniel conheceu, de longe, o famoso Madame Satã. Ai
do macho de que Satã gostasse e não mantivesse relações sexuais com ele.
Contava-se que, certa vez, ao atravessar a Avenida Rio Branco, ele não usara a
área de segurança demarcada pela Delegacia de Trânsito. O guarda, irritado,
apitou várias vezes, e Madame Satã não parou. O guarda correu e, chegando
perto dele, esbravejou:
― O senhor está multado!
― Anota, então, o número da minha placa, respondeu Satã,
rebolando por entre os carros.
No início do ano 1953, Daniel foi convocado para servir o Exército.
Apresentou-se ao Batalhão de Cavalaria em São Cristóvão. Ali permaneceu por
três meses, recebendo instruções sobre como se comportar ao se apresentar a
um superior ou quando passasse por um deles, sobre como armar e desarmar
um fuzil, marchar, prestar continência, conhecer a direita (volver!), a esquerda
(volver!) e a meia-volta (volver!).
O soldo de reco era pequeno. Como mandar dinheiro aos pais?
Daniel foi até a NEWS PRESS. O senhor Amaury concordou que ele trabalhasse
às noites, desde que assumisse o compromisso de não comentar a respeito.
Mesmo assim, era preciso fazer economia.
Às 5 horas da manhã, ele tomava o bonde nº 24 no Largo do
Machado. Ficava em pé no balaústre. Como militar, não pagava passagem. O
24 ia do Largo do Machado à proximidade da Central do Brasil. Ali, saltava e
tomava outro bonde até o Batalhão de Cavalaria, em São Cristóvão. Chegando
ao Batalhão, sempre na hora do café, com o estômago já pregando às costas,
saciava sua fome. Depois trocava de farda, às pressas, para começar a marchar
ou a lavar cavalos.
Daniel fora escolhido, dentre os vinte e cinco de muitos outros
convocados, para, após devidamente instruído no Batalhão, completar seus
16
nove meses de serviços à pátria no quartel do Ministério da Guerra. A escolha
era considerada uma distinção. Ele havia se destacado numa prova de
datilografia.
Daniel tinha o péssimo hábito de jogar sinuca nas noites de
sábado e domingo, indo, às vezes, até o raiar do dia. Pensava em engordar
seus parcos recursos, mas estava prejudicando a saúde. Um colega de infância,
piauiense, o inesquecível Manoel Cunha, também reco, um dia, pegou-o pelo
braço e aconselhou-o a parar, porque seu fim poderia ser triste. Convidou-o,
ainda, para visitar parentes seus, que moravam no bairro de Santa Teresa.
Daniel aceitou o convite, e combinaram o dia e a hora do encontro na estação
dos bondes.
Era um dia de sábado. Daniel nunca havia ido a Santa Teresa.
Geograficamente, a casa estava situada abaixo do nível da rua e fora construída
em dois planos, em um terreno inclinado. Ao chegarem, Manoel abriu um
portão pequeno, de ferro. Começaram a descer as escadas quando Daniel
avistou, em frente à porta principal da casa, no primeiro nível, duas moças,
várias meninas brincando de queimada e mais dois garotos. Todos pararam e
ficaram olhando Daniel e Manoel descerem. Daniel fixou os olhos em uma das
meninas. Seu coração disparou, deixando-o trêmulo.
“Meu Deus!”, pensou ele, duas moças ali, e seu coração batendo
apressado e desenfreado por uma das crianças. “Não sou tarado.” Mas ela
também não tirava os olhos dele. A menina devia ter uns nove ou dez anos.
Daniel, mais tarde, voltou para a pensão, todavia a menina não lhe saía da
cabeça. Ele rezou e pediu a Deus que a eliminasse de seus pensamentos.
Aquele rosto, porém, logo aparecia. E o fato se repetiu quase todas as noites.
A parte da casa em que os familiares de Manoel Cunha moravam,
de aluguel, ficava no nível inferior. Era ali que, pelas manhãs, durante os dias
úteis da semana, Daniel e o amigo iam praticar levantamento de peso,
conforme haviam combinado, já que o trabalho no Ministério da Guerra tinha
início às 12 horas.
Um dia, Daniel estava se exercitando quando um senhor, da
janela do alto, começou a olhar para ele com cara de poucos amigos. Daniel
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despistou, fingiu que esquecera alguma coisa na casa dos parentes de Manoel
Cunha e entrou. Ao sair, já estava vestido com a farda.
No dia 6 de outubro de 1953, Daniel e Manoel deram baixa do
Exército. Pouco tempo depois, a numerosa família da menina perdia o chefe da
casa, um espanhol, o senhor que olhara Daniel do alto ― Carlos. Ficaram em
extrema penúria. A viúva, dona Arminda, para sobreviver, viu-se forçada a
internar duas filhas, Suely e Nancy, em um abrigo no bairro das Laranjeiras,
sem que nada pagasse. Como sofria com essa decisão! Felizmente, Marly, a
menina que provocara taquicardia em Daniel, não fora internada, assim como
suas outras irmãs Marlene e Carmen. Só havia vaga para aquelas duas. Carlos e
Fernando foram internados no Serviço de Assistência aos Menores (SAM) e,
posteriormente, transferidos para o Colégio Padre da Nóbrega, em
Jacarepaguá, em regime de internato. Dona Arminda viu-se, além disso,
obrigada a sublocar quartos de sua casa.
Lourdinha, a irmã de Daniel, e o marido dela, Mário, alugaram um
desses quartos. Daniel aproveitou a oportunidade e, junto com o namorado de
Marlene, o ainda hoje adorável Raimundo, também alugou um deles.
Um dia, Lourdinha chamou Daniel e, reservadamente, entregou-
lhe um bilhete, dizendo-lhe que era da Marly. Após ler o tal bilhete, o coração
de Daniel disparou. Ela começava chamando-o de meu príncipe chinês e
lembrava a primeira vez que o vira descendo as escadas de sua casa.
Entrelaçava a escrita com palavras de amor. Lourdinha, fã de Marly, disse a
Daniel:
― Coitada da bichinha. Tão meiga, tão doce, um amor.
― Você está maluca, minha irmã! Vão dizer que estou
desmamando uma criança, respondeu Daniel.
Uma menina de apenas nove anos de idade, e Daniel por ela
apaixonado. Nas ruas por onde passava, as moças não tiravam os olhos dele.
Com os exercícios que fizera, parecia um atleta, com músculos e pernas de
chamar a atenção.
A cada dia, as dificuldades na casa de dona Arminda
aumentavam. Até o pão que ela servia aos filhos no café, conseguia na fila dos
18
pobres, no Convento de Santo Antônio. Semanalmente, uma senhora bem
idosa, dona Avelina, lavadeira paupérrima, que, em suas folgas, pedia esmola
na porta do Convento, levava à dona Arminda, a quem dedicava uma sincera
amizade, algum produto alimentício, como um saco de farinha ou de feijão.
A NEWS PRESS foi fechada, e Daniel conseguiu novo emprego na
iniciativa privada, em novembro de 1953, onde permaneceu até o mês de
janeiro de 1956.
Daniel guarda, no seu íntimo, gratidão por Ari Cunha e considera-
o seu segundo pai. Este o aconselhava, dava bronca, ensinava-lhe português,
corrigia seus trabalhos e o orientava como se comportar diante de várias
situações.
Leitor assíduo da sua coluna VISTO, LIDO E OUVIDO, publicada
no Correio Braziliense de terça a domingo, Daniel lembra-se sempre da figura
de Ari, que, após o fechamento do escritório, se mudou para São Paulo.
Atualmente, mora em Brasília e é vice-presidente institucional do citado jornal.
Ainda hoje, Daniel sente saudades dos primeiros passos que deu no Rio de
Janeiro sob as ordens dele. E também se sente agradecido por ter Ari Cunha
prefaciado o 19º livro de sua autoria, Bandeira Contra a Corrupção & Suas
Irmãs Siamesas, publicado em 2000.
Somente em julho de 1956, após incansável procura de emprego,
Daniel começou a trabalhar. Dessa vez, como auxiliar administrativo na
Comissão Nacional de Alimentação (CNA), entidade do Ministério da Saúde. Um
conterrâneo seu, o saudoso Alarico José da Cunha Júnior, que mais tarde foi
para a Organização dos Estados Americanos (OEA), conseguira empregá-lo na
citada Comissão. Nela permaneceria até 18 de novembro de 1957.
Pelo exercício da chefia do Setor Contábil na CNA, Daniel recebeu
elogio do presidente da entidade, mesmo depois de haver pedido dispensa do
cargo. Tal elogio foi publicado em portaria, no Boletim de Serviço do Ministério
da Saúde nº 37, de 31 de março de 1958.
Deixou a Comissão por haver prestado concurso para datilógrafo
do Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC), autarquia do
Ministério da Agricultura, tendo sido classificado em primeiro lugar na prova
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(92,40), conforme publicação no Diário Oficial da União, de 3 de maio de 1957.
Entrou em exercício no dia 19 de novembro de 1957.
Por feliz coincidência, foi trabalhar subordinado a Alarico Cunha,
engenheiro agrônomo do mencionado Instituto. Ainda por ele ajudado, foi
requisitado para voltar a trabalhar na Comissão Nacional de Alimentação e
cedido, algumas vezes, à então Associação Brasileira de Luta Contra a Fome
(Ascofam), presidida pelo notável Dr. Josué de Castro. Ali ficou subordinado ao
escritor Manoel de Souza Barros, de bondade incomparável. Conheceu, ainda,
Ana Maria de Castro e Josué de Castro Filho, rebentos do Dr. Josué. Desligou-
se do INIC em 3 de junho 1961.
De meados de 1953 até 1958, alternadamente, foi contratado pela
Rádio Mayrink Veiga para trabalhar, às noites, como secretário do Dr. Gilson
Amado. Homem inteligente, de família tradicional, Dr. Gilson, quando chegava
àquela Rádio, já trazia na memória o que deveria ser ditado. Daniel, além da
atividade datilográfica, comandava o programa Panorama Político, que ia ao ar
a partir das 22 horas, de segunda a sexta-feira.
Para chegar à Rádio Mayrink Veiga, Daniel, cansado, porque
trabalhava durante oito horas por dia, ia até a Lapa. Ali, poucos minutos depois
das 18 horas, tomava o bonde nº 34, que andava, parava e recomeçava, até
chegar à estação próxima à Central do Brasil. Depois, alcançava a Rua Marechal
Floriano e seguia reto. Ao parar na esquina da Avenida Rio Branco, próxima à
Rua Mayrink Veiga, Daniel saltava e ia direto à cantina da Rádio, no primeiro
andar do prédio. Jantava um copo de leite com café e, como fazia antes para
economizar, pedia um pão sem manteiga.
Na cantina, conheceu figuras inesquecíveis como Chico Anysio, Zé
Trindade, Caçulinha, Antônio Carlos, o pai da atriz Glória Pires, etc., etc. Batia
papo com todos eles e, principalmente, com Cid Moreira e Carlos Henrique, os
locutores do Panorama Político. Terminados o jantar e os bate-papos, subia um
lance de escadas e, ali, no segundo andar, esperava o Dr. Gilson Amado.
Daniel não era tão bom em português como em datilografia.
Sentado ao lado de Dr. Gilson, papel na máquina, dava início ao trabalho. Dr.
Gilson ia ditando e Daniel datilografando. As palavras, formando frases de
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impressionar, saíam com uma rapidez, que, às vezes, o atordoava e
atrapalhava seu desempenho.
― Vírgula, coloca vírgula, repetia Dr. Gilson.
― Vírgula onde?, perguntava Daniel.
― Antes de gerúndio, seu burro.
E dava risadas.
― Gerúndio, o que é gerúndio?, indagava Daniel encabulado...
E ele:
― Palavras terminadas em ando, endo, indo, ondo, respondia, e
voltava a sorrir.
Por várias vezes, com outras colocações, o episódio se repetiu.
Daniel trabalhava, à época, em uma empresa privada, no Edifício Odeon, na
Cinelândia. Próximo ao edifício, havia sido inaugurada a Livraria Ediouro. Ele
entrou e viu vários livros de formato pequeno, cujas capas chamaram a sua
atenção. Tratavam de análise léxica e sintática, do uso do que, por que,
porque, por quê e porquê, da conjugação de verbos, etc. Não teve dúvidas,
meteu as mãos nos bolsos e, cata daqui, cata dali, comprou logo o que seus
parcos recursos permitiam. E, no fim daquele mesmo mês, comprou os
restantes, que, acreditava, iriam ser-lhe úteis.
A partir desse dia, passou a carregar, sempre debaixo do braço,
os livros que podia. Como a viagem da Lapa à Rádio Mayrink Veiga durava mais
de uma hora, ia lendo até o seu destino e se esforçando para memorizar tudo o
que eles ensinavam. Seu hábito tornou-se um vício, e um conterrâneo seu, José
Sombra Borges, com quem morava em uma pensão, certa vez, em tom de
gozação, rindo, disse-lhe:
― Chininha, se axila lesse, você era o homem mais inteligente do
mundo.
Por sua aparência oriental, os colegas o chamavam, às vezes, de
Chininha, Japonês ou simplesmente Ponês.
A situação financeira de dona Arminda ia de mal a pior. Por isso,
Daniel resolveu casar-se com Marly, mesmo estando ela com apenas dezesseis
anos. Convidou Dr. Gilson Amado, sua esposa, dona Henriette, bem como o
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senhor Manoel de Souza Barros e sua companheira para seus padrinhos. Todos
aceitaram, de pronto, o convite. Então, no dia 22 de agosto de 1959, Daniel e
Marly foram unidos pelos laços do matrimônio. Dessa união, vieram ao mundo
três filhos: Danielle, Carlos Marcelo e Lucienne.
Daniel continuou trabalhando na iniciativa privada até 3 de janeiro
de 1965. Havia se desligado da Rádio Mayrink Veiga em 1958 para continuar os
estudos. Em 1959, aos vinte e cinco anos de idade, concluiu o curso ginasial na
escola Educandário Ruy Barbosa. De 1960 a 1962, frequentou o curso de
técnico de contabilidade no Colégio da MABE.
No dia 4 de janeiro de 1965, ajudado, mais uma vez, por Alarico
Cunha, foi contratado como auxiliar administrativo da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Em exercício no escritório da Sudene
no Rio de Janeiro, Daniel foi nomeado, a partir daquela data, assessor do
superintendente, Dr. João Gonçalves de Souza, lotado na sede da autarquia,
em Recife ― Pernambuco. O fato de Daniel já ter prática em taquigrafia foi
fundamental para sua designação de assessor.
Dr. João Gonçalves de Souza, católico fervoroso, era uma figura
de senso humanitário indescritível. De origem humilde como Daniel, trabalhara,
em sua juventude, capinando nos sertões cearenses. Fora contratado pelo
governo, que dava emprego aos flagelados vítimas das secas ― os cossacos.
Depois, estudara com afinco. Encontrava-se nos Estados Unidos quando foi
chamado por nossas autoridades para dirigir a Sudene.
1.3 Em Montes Claros – Minas Gerais
Dr. João ia ao Rio de Janeiro pelo menos duas vezes em cada
mês, e Daniel ficava sempre ao seu lado, assessorando-o. O assunto mais
urgente era os preparativos para a inauguração do escritório da Sudene em
Montes Claros. A cidade havia sido escolhida como sede da entidade em Minas
Gerais, complementando a chamada Zona do Polígono das Secas, que abrangia
quarenta e dois Municípios do Estado.
22
O professor Antenor Vieira de Melo, também funcionário da
Sudene, que trabalhava com Daniel no Rio de Janeiro, fora designado chefe do
novo escritório. Convidou Daniel para acompanhá-lo, pois precisava de uma
pessoa que estivesse sempre disposta a enfrentar qualquer tipo de serviço. Os
trabalhos antecedentes à inauguração iriam exigir esforço redobrado de todos
os participantes, mas, infelizmente, o professor não sabia com quem poderia
contar, em Montes Claros, para ajudá-lo. Daniel respondeu imediatamente que
concordava, claro, se Dr. João Gonçalves também aquiescesse.
“Ora”, refletiu Daniel, “um dinheirinho extra não faz mal. Serão
algumas diárias de não se jogar fora.”
O professor Antenor falou com Dr. João, que concordou com a ida
de Daniel a terras mineiras. Iniciaram-se, então, os preparativos, pois a
solenidade fora marcada para o dia 17 de julho de 1965. Uma caminhonete
Rural Willys foi praticamente lotada com o material necessário para o evento e
para o início dos trabalhos. Tudo pronto, o motorista Sebastião recebeu ordem
de dirigir-se a Belo Horizonte e ali aguardar, em local combinado, a chegada do
professor e de Daniel, porque avião de carreira para Montes Claros só ocorria
uma vez por semana, e não havia tempo a perder.
Os dois embarcaram no Aeroporto Santos Dumont para Belo
Horizonte em um Constellation. Durante o voo, o professor Antenor queixou-se,
várias vezes, de dores no peito. A cada momento, elas aumentavam. O avião
aterrissou no aeroporto da Pampulha, tendo o professor se movimentado com
dificuldade, amparado por alguns tripulantes da aeronave.
Ao sentar-se em uma das poltronas do saguão do aeroporto,
meteu a mão no bolso, em seu paletó, e tirou um papel. Pediu a Daniel que
ligasse para o número do telefone ali escrito. Atenderia, informou, um primo
seu, cardiologista. Daniel deveria pedir-lhe que viesse com urgência. Pouco
tempo depois, o médico chegou em uma ambulância e levou-os a um hospital
com o nome de Incor. Fez os devidos exames no professor e colocou-o em um
quarto. A seguir, informou a Daniel que o primo iria ficar internado, em
princípio, por uma semana. E, ainda, que deveria retornar ao Rio de Janeiro e
permanecer em repouso absoluto, no mínimo por um mês.
23
Daniel foi às nuvens. Teve a impressão de faltar chão aos seus
pés. Apelar para quem? Estava no quarto do hospital, fazendo companhia ao
professor Antenor. Este lhe pediu que ligasse para o Dr. João Gonçalves, em
Recife, e o colocasse a par do acontecido. E assim Daniel o fez. Era dia ainda. À
noite, Daniel recebeu telefonema do Dr. João e, ao atendê-lo, suas pernas
começaram a tremer.
― Meu filho, disse-lhe, tome a frente dos trabalhos para a
inauguração do escritório. Várias autoridades foram convidadas e não há mais
tempo de cancelá-la.
E Daniel apelou para Deus. “Ora, meu Pai, um simples cabra da
peste dirigindo trabalho de tamanha repercussão?” Seu passado na iniciativa
privada e nos humildes cargos exercidos na administração pública federal não o
credenciavam para ficar à frente da missão. “Mas por que não?”, começou a
dizer com seus botões. Se aos dezesseis anos de idade redigia notícias na
NEWS PRESS para serem divulgadas em jornais de São Paulo, se começara a
aprofundar seus conhecimentos de português com os livros da Ediouro, se lia,
diariamente, três a quatro jornais, sempre com um dicionário ao lado para tirar
as dúvidas... Disse de si para si: “Agora, com trinta e um anos de idade, muitas
coisas ficaram em minha cabeça. É só selecionar e me esforçar para continuar
aprendendo.” Contudo, foi até o saguão do hospital, olhou as nuvens e,
elevando seu pensamento, invocou:
― Ajuda-me, meu Pai, nesta tarefa.
Ajoelhou-se e rezou com o pensamento voltado para o Além.
Às 5 horas da manhã do dia 11 de julho de 1965, embarcou na
Rural Willys para Montes Claros, em companhia do motorista Sebastião.
Passaram por várias cidades e foram almoçar em Curvelo. Pediram, cada um,
um bife a cavalo (carne com dois ovos fritos). Quando o garçom colocou a
comida na mesa, ambos se entreolharam, espantados: o bife era do tamanho
do prato e os ovos pareciam de avestruz. Ficaram entupidos de tanta comida.
De Curvelo a Montes Claros, numa extensão considerável, a estrada não era
asfaltada. Debaixo de sol escaldante, de ventos fortes levantando poeira,
chegaram ao destino por volta de 16 horas daquele mesmo dia. O veículo
24
estava com cor diferente, de tanta poeira. Daniel e Sebastião estavam
avermelhados e espirravam quase sem parar. Imediatamente, antes mesmo de
retirar o material da Rural, foram tomar banho no único hotel existente na
cidade, no qual se hospedaram. Depois, para que não se sujassem,
conseguiram que funcionários do hotel retirassem os objetos do carro e
providenciassem a lavagem dele.
No dia seguinte, às primeiras horas da manhã, Daniel, como havia
sido instruído pelo professor Antenor, dirigiu-se à associação comercial da
cidade. Antes, porém, instruiu o motorista para levar a encomenda que haviam
trazido e a acomodasse na casa que fora alugada para montar o escritório.
E o jornal Diário de Montes Claros, em sua edição de 15 de julho
de 1965, estampava em sua primeira página:
‘Inauguração do Escritório da SUDENE já tem programa
A reunião semanal da Associação Comercial de M.
Claros, realizada terça-feira última, contou com a presença, entre
outras pessoas, do sr. José Daniel de Alencar, secretário do prof.
Antenor Vieira de Melo, chefe do Escritório que a SUDENE instalará
nesta cidade, no próximo dia 17. Durante o encontro foi aprovado o
programa de inauguração do referido Escritório, que será o seguinte:
– inauguração da placa comemorativa do evento; logo após,
oferecimento de uma “corbeille” de flores à sra. João Gonçalves de
Souza, entronização de uma imagem pelo Monsenhor Gustavo
Ferreira de Souza; discurso do superintendente João Gonçalves e de
um representante de Montes Claros, que será escolhido,
oportunamente. As solenidades serão encerradas com um almoço no
Automóvel Clube, oferecido pelas classes produtoras, comércio e
indústrias locais aos representantes da SUDENE.
BOA VONTADE
Durante a reunião, usou da palavra o sr. José Daniel de
Alencar, que discorreu sobre as vantagens que trará para Montes
Claros e a região, o Escritório da SUDENE. Ressaltou ainda o
representante da SUDENE a boa vontade do sr. Antenor Vieira de
Melo que, mesmo acamado na Capital mineira, não esquece os
25
interesses da região, tendo, inclusive, desaprovado um possível
adiamento da inauguração do Escritório, alegando que Montes Claros
e o Polígono das Secas merecem qualquer sacrifício quando o
propósito é o de trazer para aqui os benefícios a que têm direito.
AUTORIDADES ESPERADAS
Para a inauguração do Escritório, marcada para às 11
horas, são esperadas, entre outras, as seguintes autoridades, que
deverão chegar ao aeroporto local às 10 horas de sábado, viajando
em companhia do superintendente João Gonçalves de Souza, em
avião cedido pelo governador Magalhães Pinto; sr. José Cabral,
Secretário do Desenvolvimento e o ex-ocupante daquela pasta Darcy
Bessone; prof Paulo Campos de Oliveira Pena, presidente do BDMG;
sr. Marcio Bhering, presidente da CEMIG e o economista Roberto
Campos, diretor financeiro do FRIGONORTE e da equipe do BDMG.’
E no dia 17 de julho de 1965, acompanhado de seleta comitiva da
sociedade montes-clarense, Daniel foi esperar a comitiva que vinha de Belo
Horizonte. Depois do pouso do avião, pipocaram foguetes por cerca de 10
minutos. Dr. João Gonçalves foi o primeiro a descer da aeronave, seguido de
autoridades. Dentre elas, encontravam-se o deputado federal Francelino Pereira
e o Dr. Raimundo Nonato de Castro, assessor do governador Magalhães Pinto.
A comitiva seguiu em carreata até o escritório da Sudene, no
centro da cidade. Durante o desfile, os fogos não pararam de estourar. A frente
do escritório estava enfeitada com bandeirolas e apinhada de espectadores.
Abraços e mais abraços se sucediam. Todos felizes pelos benefícios que a
autarquia poderia proporcionar à área mineira com seus incentivos fiscais,
extensivos à agricultura familiar.
Os discursos se sucediam, ressaltando o desenvolvimento que a
Sudene traria para a região. O deputado Francelino Pereira, ao usar a palavra,
discorreu, em comovente discurso, sobre o esforço que empreendera para que
fosse instalado, o mais rápido possível, o escritório. De repente, ainda com o
microfone na mão, chamou Daniel para perto de si. Colocou uma das mãos no
ombro dele e disparou, mais ou menos assim, emocionado e emocionando os
presentes:
26
― Aqui está mais um piauiense, como eu, desbravando o rico
Estado de Minas Gerais. Veio de terras longínquas, mas não mediu esforços
para, de igual modo, colaborar para a grandeza de nosso povo e deste Estado.
Abraçou, comovidamente, Daniel. As palmas ecoaram por
bastante tempo. Daniel ficou pasmo com tanta eloquência e admirado pelo fato
de o deputado já conhecer detalhes de sua origem.
Terminado o evento, Dr. João Gonçalves, com a humildade que o
caracterizava, chamou Daniel para uma conversa reservada e disse-lhe:
― Meu filho, preciso contar com o seu sacrifício e o de sua família.
O professor Antenor seria o chefe deste escritório. Fui pego de surpresa e não
tenho candidato para o posto. Você fica aqui como meu assessor, dirigindo o
escritório, até que eu consiga um novo chefe.
― Está bem, Dr. João. Para dar os primeiros passos, preciso de
que sejam contratados pelo menos quatro funcionários, respondeu Daniel.
― Concordo, meu filho. Apresente os nomes e eu os nomearei.
Incrível, mas a notícia correu rápida como rastilho. A esposa de
Daniel comparecera também à solenidade, e ele lhe contou o ocorrido. Ela
manifestou seu apoio à decisão do marido.
Dos candidatos, Daniel optou, e foram contratados: Maria de Melo
Mendes, senhora bastante capacitada; Ezequiel, pau pra toda obra; Damázio,
contínuo, e, finalmente, o motorista, só lembrado agora pelo apelido de Zé do
Jeep, assim conhecido na cidade.
Passaram-se vários meses, até que, um dia, Dr. João Gonçalves
informou a Daniel que iria nomear o economista Dr. Mauro para a chefia do
escritório. Tratava-se de profissional residente em Montes Claros, que fora
recomendado por autoridades mineiras.
Publicada sua nomeação no Diário Oficial da União, Dr. Mauro
assumiu o cargo como diretor do referido escritório. Após as apresentações de
praxe, chamou Daniel para uma conversa particular.
― Preciso de sua ajuda no setor administrativo, enquanto vou
cuidar da parte técnica ― a dos incentivos fiscais para a região mineira. Já
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conversei com o Dr. João Gonçalves, que concordou. Se você aceitar, e nós
esperamos que sim, ele assentirá.
Com a aceitação, Daniel foi nomeado, inicialmente, em 25 de
agosto de 1965, como responsável pela chefia da Divisão de Administração, e
titular, a contar de 1º de janeiro de 1966, cargo que exerceu até 23 de
fevereiro de 1967. Mudou-se com a família para Montes Claros. O casal levara,
em sua companhia, a filha mais velha, Danielle, que nascera no Rio de Janeiro,
e também Maria de Lourdes Castro ― para ajudar nos serviços da casa ―, mais
tarde por ele adotada. Ainda hoje, há mais de quarenta anos, com sua lealdade
e seu trabalho, Maria os acompanha. Em Montes Claros, nasceu seu filho,
Carlos Marcelo, no dia 17 de abril de 1966.
Nos primeiros meses em Montes Claros, Marly andava triste com a
disparidade, em comparação com o seu Rio de Janeiro: as ruas eram
demasiadamente estreitas e pouco movimentadas, não havia mar nem
restaurantes, o calor seco, quase insuportável, etc. Decorreram vários meses
para que ela se adaptasse. Estranhou também a terminologia mineira: “Pega
meu trem aí, menino!” ou “Filha, cadê meus trens?” Na primeira vez, olhou
rapidamente para os lados e não havia trem algum. Depois, acostumou-se com
o linguajar.
Daniel, ao contrário, tinha a sensação de que voltara à
adolescência, na sua inesquecível Parnaíba, no Piauí. Fez amizades no Minas
Tênis Clube e, nas tardes de sábado e domingo, não faltava às peladas. Pode
ter esquecido o nome de alguns amigos, mas as fisionomias de todos estão
guardadas em sua mente. Zé Oswaldo, irmão do Tostão, aquele exímio jogador
da Seleção Brasileira de Futebol, era seu companheiro assíduo nos jogos. Zé
trabalhava na agência do Banco do Brasil, a única na cidade. E o Ruy, por onde
anda, ô Ruy? Ô mineiro gozador!
Certa vez, Zé Osvaldo convidou Daniel para ir com ele a Belo
Horizonte assistir a uma partida da Seleção e apresentá-lo ao seu mano Tostão,
promessa não cumprida, porque o jogador estava na concentração. Foram ao
estádio, e Daniel jamais se esqueceu da torcida mineira. Ocorreu um fato que
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sempre é lembrado: um jogador da seleção adversária passou por um marcador
da Seleção Brasileira, e uma voz isolada, numa altura ensurdecedora, gritou:
― Come o figo dele, come o figo dele!...
No campo do Minas, Daniel ia levando a vida que pediu a Deus.
Após o fim de cada partida, o grupo seguia para os bares. O churrasquinho e as
cervejas desciam pelo gogó. Quando já estavam meio grogues, iniciavam as
piadas. Só de salão. Os bares eram movimentados, e não ficaria bem usar
palavrões.
Antes, um adendo. Daniel era muito popular em Montes Claros.
Por onde passava, as pessoas o chamavam para conversar, fosse sobre sua
terra natal, fosse sobre o Rio de Janeiro, fosse sobre os benefícios da Sudene
para a região, etc. Mas, se você, leitor, chegasse à cidade e perguntasse se
conheciam Daniel, todos balançariam a cabeça negativamente. Porém, se
perguntasse a qualquer pessoa: “Você conhece o Sudene?”, a resposta era
afirmativa, e os mineiros, educadamente, como sempre, indicariam onde ele
poderia ser encontrado.
Os biriteiros ― pareciam até combinados ― sempre gritavam, em
uníssono: “O Sudene começa!”
E todos os sábados e domingos a cena se repetia. E haja
desculpas de Daniel, ao chegar tarde a casa, mas Marly dava um sorriso
maroto, balançava a cabeça em sinal negativo e dizia:
― Me engana, que eu gosto.
Os dois, então, caíam na gargalhada.
Antes de encerrar sua estada em Montes Claros, Daniel registra a
amizade que mantinha com o deputado Luiz de Paula Ferreira. Conversavam
sempre animadamente. Um dia, o deputado deu-lhe um conselho, que ele
jamais esqueceu. Disse-lhe:
― Meu amigo, é bom ser importante, porém é mais importante
ser bom.
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1.4 Em Brasília – Distrito Federal
Em 24 de fevereiro de 1967, Daniel passou a exercer a chefia da
Divisão de Administração do escritório da Sudene em Brasília, para onde fora
transferido, a pedido. Preocupava-o a necessidade de fazer curso superior a fim
de poder melhorar sua condição financeira. Dr. João Gonçalves de Souza havia
sido substituído pelo general Euler Bentes Monteiro na Superintendência da
autarquia.
Ao visitar o escritório em Brasília, todos os funcionários foram
convocados para uma reunião. Sentados à sua frente, o general fez explanação
sobre os novos serviços que vinham sendo desenvolvidos em sua gestão e
sobre as metas que a Sudene esperava alcançar. A certa altura, discorreu
acerca de assunto que considerava inadmissível, dizendo que mandara bloquear
o salário de um funcionário que havia recebido diárias pagas pelo escritório da
autarquia no Rio de Janeiro e não prestara contas. E, ainda, que o processo de
sua dispensa estava sendo concluído, pois jamais poderia concordar com
desonestidade.
Daniel, presente, tomou um susto. A emoção foi tão grande que
seu coração começou a bater descompassadamente, pois, naquele momento,
voltando os pensamentos para o passado, entendeu a razão pela qual não
vinha recebendo salário há três meses, e também a razão de ter sido obrigado
a devolver à Sudene o carro que ela lhe havia financiado. Para comprar o
mínimo possível de comestíveis, já colocara na praça vários cheques, que
estavam prestes a ser depositados pelos credores. Quanta angústia!
Logo que o general terminou de falar nesse assunto, Daniel pediu
a palavra e, concedida, disse:
― Vossa Excelência me perdoe, mas o que acaba de afirmar não
corresponde à realidade.
― O senhor está dizendo que sou mentiroso?
― Não, Excelência. É que fiquei tenso, pois o funcionário a quem
o senhor acaba de se referir sou eu, respondeu Daniel.
E acrescentou:
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― Minha família e eu temos passado até dias de fome. Espero que
Vossa Excelência releve minha atitude. Jamais ofendi, ofendo ou ofenderei
sequer um subordinado e muito menos um superior. Para provar minha
inocência sobre as falsas informações passadas a Vossa Excelência, autorize-
me, agora mesmo, a seguir para Montes Claros, porque toda a documentação
da prestação de contas das diárias está lá. Preciso também de um veículo
emprestado e, ainda, de que Vossa Excelência autorize o diretor do escritório a
que eu tenha acesso aos arquivos.
― Está bem, respondeu o general, educadamente.
Eram cerca de 15h30min. Daniel chegou a Montes Claros por volta
das 23 horas. No dia seguinte, foi ao escritório da autarquia, dirigindo-se
diretamente à pasta do arquivo. Ali encontrou cópia do memorando que enviara
ao escritório da Sudene no Rio de Janeiro. A ela anexada, a cópia da prestação
de contas das diárias. De lá mesmo, colocou tudo, em nome do general Euler,
no malote que era despachado para Recife semanalmente.
Após alguns dias, Daniel soube que o general havia adotado
medidas severas contra os que lhe disseram inverdades. E, pouco tempo
depois, recebeu amável carta do mesmo general, pedindo-lhe desculpas pelo
ocorrido e informando-lhe que determinara o desbloqueio de seus salários e,
ainda, a devolução do carro. Daniel agradeceu, comovidamente, a gentileza,
lamentando não poder mais ficar com o veículo.
Somente em 1968, após aprovação no vestibular, Daniel pôde
matricular-se nos cursos de Administração e de Ciências Contábeis, na
Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF).
Em meados de 1968, Daniel foi chamado ao gabinete do diretor.
Este lhe informou que o escalara para trabalhar à noite, na datilografia da
redação do anteprojeto I PLANO DIRETOR DA SUDENE. Tratava-se, inclusive,
de assunto de repercussão internacional. Daniel deveria aguardar, mesmo sem
ir jantar, o tenente-coronel Stanley Fortes Baptista, superintendente adjunto da
autarquia.
Precisamente às 19 horas, Daniel, no fundo do corredor, com
salas separadas por divisórias de madeira, ouviu passos vindos da entrada dos
31
elevadores. Lembrou-se, imediatamente, do seu tempo de reco. Passos firmes e
fortes, aquele senhor abriu a porta da sala e perguntou:
― O senhor foi o escalado para datilografar o anteprojeto?
Levantando-se, Daniel respondeu afirmativamente.
― Então, acompanhe-me.
O tenente-coronel Stanley abriu uma pasta, dela tirou várias
folhas de papel e adiantou:
― Aqui está. Amanhã tenho uma reunião com os representantes
do Nordeste no Congresso Nacional para apresentação deste documento ― e
mostrou-lhe uma via do Plano. A reunião está marcada para as 10 horas. Será
presidida pelo senador Virgílio Távora, e dela participarão senadores e
deputados da região nordestina. Preste bastante atenção ao trabalho que o
senhor vai datilografar.
― Sim, senhor, respondeu Daniel.
Àquela época (1968), as antigas máquinas de datilografia estavam
sendo substituídas por máquinas elétricas da marca IBM. Daniel sentou-se,
colocou o papel na máquina e começou a trabalhar. Eram cerca de 60 páginas.
Tinha ele, por hábito, acompanhar, ao mesmo tempo em que datilografava, a
redação do texto, guardando-o na memória.
Por volta de meia-noite, terminou e foi entregar o trabalho. O
tenente-coronel Stanley olhou, levantou-se da cadeira e enfiou o braço na
manga direita do paletó. Antes de vesti-lo completamente, satisfeito, perguntou
a Daniel:
― O que o senhor achou do anteprojeto?
Daniel, meio encabulado, respondeu:
― Sinceramente?
― Claro. Se estou perguntando, é para o senhor responder. Qual
a sua opinião?
E Daniel:
― Há vários erros neste anteprojeto, como, por exemplo:
repetições desnecessárias, sujeitos no plural e verbos no singular, inadequação
vocabular, etc.
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O tenente-coronel olhou Daniel, espantado. Tirou o braço direito
da manga do paletó, colocou-o novamente na cadeira, sentou-se à mesa e,
chamando-o para seu lado, disse:
― Aponte os erros que o senhor encontrou...
Daniel, que os decorara, mostrou.
― O senhor tem razão, afirmou. Corrija-os. Tem minha
autorização para tirar ou acrescentar o que julgar necessário para melhorar o
anteprojeto.
Daniel lembrou-se, como se um filme rapidíssimo passasse diante
de si, dos ensinamentos que lhe transmitira o jornalista Ari Cunha, em 1950,
quando trabalhavam na NEWS PRESS, das primeiras lições que aprendera nos
livrinhos da Livraria Ediouro e do Dr. Gilson Amado, na Rádio Mayrink Veiga. As
vicissitudes que atravessara haviam sido seus melhores professores.
Finalmente, por volta de 3 horas da manhã, entregou o trabalho
ao tenente-coronel Stanley. Este mandou que Daniel ficasse ao seu lado e lhe
mostrasse as correções que havia feito. E, página por página, Daniel as
apontava e complementava com explicações verbais.
O tenente-coronel concordou com todas as alterações. Já eram
cerca de 4 horas da manhã. Colocou o paletó, estendeu a mão a Daniel e
perguntou-lhe:
― O senhor estuda à noite?
― Sim, senhor.
E continuou:
― Este anteprojeto foi redigido por funcionários da Sudene com
curso de PhD na Sorbonne.
E prosseguiu:
― Qual o curso que o senhor está fazendo e em que
universidade?
― Faço dois cursos: Administração e Ciências Contábeis. Estudo
na Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF), completou
Daniel.
― O senhor é de que Estado?
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― Do Piauí.
― Que coincidência. Também sou do Piauí.
Estendeu a mão a Daniel, cumprimentando-o afavelmente.
― O senhor já jantou?, perguntou.
― Não, tenente-coronel, ainda não.
O coronel enfiou a mão no bolso, tirou uma quantia e ordenou:
― Vamos sair agora. O motorista está embaixo esperando. Ele vai
me levar ao hotel. De lá, o senhor vai jantar e depois vai pra casa. Fica de
licença durante uma semana. A partir de agora, as coisas vão mudar. Eram
péssimas as informações que me deram a seu respeito. Todas falsas.
Daniel soube depois, por terceiros, que a reunião do tenente-
coronel Stanley com a bancada nordestina havia sido um verdadeiro sucesso.
As perseguições que sofria no escritório da Sudene em Brasília foram
amenizadas. Não eram tão graves como antes. Tempos depois, aceitou convite
para trabalhar na Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste
(Sudeco), autarquia vinculada ao então Ministério do Interior. Ali desempenhou
a função de chefe do Serviço de Documentação e Divulgação, a partir de 7 de
outubro de 1968 até setembro de 1970.
Nesse mesmo mês de setembro de 1970, foi colocado à disposição
do Ministério do Interior, tendo sido nomeado para a função de auxiliar
administrativo “A”. Ainda no mesmo exercício, foi designado responsável pela
chefia da Turma de Pessoal e Material do Serviço de Administração da
Inspetoria-Geral de Finanças (IGF) e substituto do chefe do Serviço de
Administração da IGF. Em maio de 1971, foi promovido a auxiliar técnico “C” da
mesma IGF.
De setembro de 1970 a julho de 1971, datilografava, com outros
colegas, os relatórios e os certificados de auditoria dos auditores do Ministério
do Interior.
Enquanto datilografava, Daniel procurava assimilar as ocorrências
que eram detectadas na fiscalização do emprego de recursos públicos,
apontadas como deslize ou falha grave. Lembrava-se de alguns dos conselhos
34
de Sun Tzu, general chinês, que, em seu livro A Arte da Guerra, de 2.500 a.C.,
ensinava:
― Se você conhece o seu terreno e o terreno do inimigo, não há o
que temer nas batalhas;
― Se queres a paz, prepara-te para a guerra.
Por isso, seguindo os conselhos do general, Daniel estudara os
115 artigos da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que Estatui Normas
Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e
balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
É de se esclarecer que o Orçamento da União é um dos
documentos mais importantes da nação. Nele estão sintetizadas todas as
previsões das receitas e fixadas as despesas dos Três Poderes da União.
Era intenção de Daniel diplomar-se, primeiro, em Ciências
Contábeis e, depois, em Administração. Seu objetivo principal era fazer parte da
equipe de auditores do Ministério do Interior, viajando por este Brasil. Com seu
trabalho, receberia diárias gordas e ajuda de custo, caso as viagens
ultrapassassem trinta dias. E quase sempre isso ocorria, para que os auditores
tivessem tempo suficiente na análise da documentação a ser encaminhada ao
Tribunal de Contas da União (TCU) para julgamento.
Após inesquecíveis esforços, às vezes varando as noites, inclusive
aos sábados e domingos, conseguiu seu intento. Diplomado em Ciências
Contábeis, em agosto de 1971, e em Administração, em dezembro do mesmo
ano, recebeu, do Conselho Regional de Contabilidade no Distrito Federal
(CRC/DF), carteira provisória para iniciar trabalhos de auditoria. Em setembro
de 1971, foi designado auditor do Ministério do Interior.
1.5 Em Boa Vista – Território Federal de Roraima
Depois de regressar de viagem a vários Estados, auditando as
tomadas e prestações de contas de órgãos e entidades subordinados e
35
vinculados ao Ministério do Interior, Daniel foi chamado ao gabinete do
inspetor-geral de Finanças, Dr. Benecdito Ruy Goiabeira Corrêa, que lhe disse:
― Você foi escolhido para ir ao Território Federal de Roraima fazer
o levantamento dos bens patrimoniais do Território. Será um trabalho árduo,
pois duas comissões, com o mesmo objetivo, fracassaram. Escolha dois
auxiliares e leve-os.
― Levarei o Oswaldo Menezes e o Lourival Pinto Saraiva,
respondeu-lhe Daniel.
Embora fossem apenas assistentes III-A, eram técnicos de fazer
inveja a muitos dos auditores da IGF.
Chegaram a Roraima no início do mês de fevereiro de 1972. Após
alguns dias de pesquisas, Daniel solicitou a colaboração de servidores do
Território, tendo sido colocados à sua disposição Arrais, Yolanda, Maria e
Ludmila. No dia a dia dos trabalhos, à procura dos bens e dos responsáveis
para a devida identificação, as tarefas eram penosas e exigiam grandes
esforços de toda a equipe. Preocupado em não fracassar ― seria, portanto, a
terceira vez, para vergonha da IGF ―, Daniel pediu ao Dr. Goiabeira que
enviasse, para compor a comissão, os técnicos Rubem Darcy de Oliveira,
Waldemir Alves Maia e Edson Saldanha. Enriquecida a equipe, pôde Daniel ficar
tranquilo, tendo conseguido cumprir a missão que lhe fora atribuída.
O prezado leitor pode avaliar a difícil tarefa, fielmente cumprida,
no ofício que se segue, dirigido ao Dr. Benedicto Ruy Goiabeira Corrêa,
inspetor-geral de Finanças do Ministério do Interior:
‘GAB/Ofício nº 365/72 Boa Vista, T.F.R. Em 27.09.72
Senhor Inspetor Geral:
Os senhores JOSÉ DANIEL DE ALENCAR, Assessor IV-E
e OSWALDO MENEZES, Assistente III-A, servidores desse Ministério,
entregaram-nos, nesta data, os cinco (5) volumes do Inventário Geral
dos Bens Patrimoniais do Governo deste Território, acompanhados
36
das Normas de procedimento a serem adotadas, para registro e
controle dos referidos Bens, trabalho pelos mesmos caprichosamente
elaborado, em cumprimento ao disposto nas Portarias IGF/001/A e
002, de 04.02.72 e 03.06.72, dessa Inspetoria, e no qual tiveram a
prestimosa colaboração dos técnicos RUBEM DARCY DE OLIVEIRA,
WALDEMIR ALVES MAIA, EDSON SALDANHA e LOURIVAL PINTO
SARAIVA.
2. Ao recebermos tão valiosa contribuição para a obra de
organização administrativa que este Governo se esforça por deixar
implantada no Território Federal de Roraima, é-nos sumamente grato
manifestar a Vossa Senhoria o quanto apreciamos o trabalho
verdadeiramente precioso, executado por aqueles devotados
servidores, cuja dedicação, habilidade, competência e eficiência foi
cabalmente demonstrada no empenho com que se deixaram absorver,
inteiramente, pela árdua tarefa, numa faina intensa de oito meses,
assim como no esmero com que se aplicaram à elaboração gráfica e
literária que constitui a consolidação de sua obra.
3. Não podemos deixar de expressar, também nesta
oportunidade, o nosso penhorado reconhecimento a Vossa Senhoria,
ante a compreensão e boa vontade com que se dignou prestar-nos a
sua indispensável e inestimável cooperação pondo à disposição deste
Governo elementos de tão eminente capacidade, para a realização do
importante trabalho.
Apresentando a Vossa Senhoria os servidores JOSÉ
DANIEL DE ALENCAR e OSWALDO MENEZES, cuja missão foi
cumprida, assim, de forma tão meritória, desejamos registrar os
nossos aplausos e os mais efusivos agradecimentos a eles e aos seus
dignos colaboradores, enquanto renovamos a Vossa Senhoria as
homenagens do nosso distinguido apreço.
HÉLIO DA COSTA CAMPOS
Governador’
Para agradável surpresa de Daniel, foi publicado no Boletim de
Serviço nº 315, de 13 de outubro de 1972, o seguinte documento:
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‘PORTARIA Nº 01113, DE 13 DE OUTUBRO DE 1972
O MINISTRO DE ESTADO DO INTERIOR, no uso das
atribuições que lhe conferem o Decreto nº 54.026, de 1964,
R E S O L V E:
ELOGIAR os servidores JOSÉ DANIEL DE ALENCAR,
Assessor IV-E e OSWALDO MENEZES, Assistente III-A, pela
dedicação, eficiência e espírito público com que se houveram na
árdua tarefa de proceder ao levantamento dos Bens Patrimoniais do
Governo do Território Federal de Roraima e à fixação de normas que
disciplinam os procedimentos a serem adotados para registro e
controle dos referidos Bens.
Brasília,
JOSÉ COSTA CAVALCANTI Ministro’
Embora diplomado em Ciências Contábeis e em Administração,
Daniel carregava consigo o ensino popular de que a melhor universidade é a da
vida. Por isso, sempre esteve atento aos dizeres de sábios, que, às vezes, não
são encontrados em livros de graduação universitária, daí o fato de ter
memorizado dizeres que lera em Roraima, quando fora convidado pelo
governador para com ele almoçar.
Ao subir os primeiros degraus da escada que permitiria o acesso
ao local do almoço, vira papel pregado na parede, onde se lia:
“Quando você começar a subir os degraus do sucesso, não pise
nas pessoas que neles estão sentadas, porque, amanhã, você pode descê-los e
encontrá-las no mesmo lugar.”
Entre o primeiro e o segundo pavimentos, estava escrito:
“Quando você fizer algo, faça-o bem feito, porque não sabe se
amanhã terá oportunidade de refazê-lo.”
E no alto do segundo lance de escadas:
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“Quando você tirar algo de algum lugar, recoloque-o no mesmo
lugar. Só assim saberá sempre onde encontrá-lo.”
1.6 Em Macapá – Território Federal do Amapá
Eis que Daniel, em julho de 1973, foi novamente designado, com
Oswaldo Menezes e Roberto Bustamante, pelo mesmo inspetor-geral de
Finanças, Benedito Goiabeira, [...] para orientar e prestar assessoramento
técnico ao Governo do Território Federal do Amapá, com vistas ao
aprimoramento do sistema de registro e controle de seus bens patrimoniais
[...].
Os Territórios Federais eram equiparados às autarquias do
governo federal e vinculados ao Ministério do Interior, de acordo com os
dispositivos do Decreto-lei nº 411, de 8 de janeiro de 1969. As autarquias estão
definidas no artigo 4º do Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967.
Apenas a título de esclarecimento, entende Daniel ser importante
ressaltar que os Territórios Federais de Roraima e do Amapá foram
transformados em Estados federados, mantidos em seus atuais limites
geográficos, de acordo com o disposto no art. 14 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias de 1988. O Território Federal de Rondônia, por lei
anterior, já havia alcançado a condição de Estado, e o Território Federal de
Fernando de Noronha, em obediência ao prescrito no art. 15 daquele mesmo
Ato, foi extinto, sendo sua área reincorporada ao Estado de Pernambuco.
Com a experiência anterior, a equipe desincumbiu-se, com
sucesso, de mais essa missão.
A vida de auditor de Daniel ia correndo a contento, viajando de
Porto Alegre ao Território Federal do Amapá, fiscalizando os órgãos e as
entidades subordinados ao Ministério do Interior. Andava de avião pela
necessidade de cumprir a tarefa em tempo hábil, recompensado por diárias e
ajuda de custo, mas, antes de embarcar, passava três dias com disenteria, em
39
decorrência da claustrofobia de que era vítima. E ainda vinham os colegas de
equipe meter-lhe medo ao dizer-lhe:
― Medo de andar de avião, por quê? Isso só ocorre três vezes:
quando ele decola, quando aterrissa ou quando está no ar.
E morriam de rir de Daniel, trêmulo.
Mas, quando o avião chegava ao seu destino, e os passageiros
começavam a desembarcar, Daniel descia as escadas e dizia:
― Agora, eu sou macho! risos em geral.
Chegamos ao ano de 1974. Em abril, Daniel foi chamado ao
gabinete do inspetor-geral de Finanças. Ali se encontrava um senhor, que foi
apresentado a Daniel, identificando-se como comandante Arthur Azevedo
Henning, da reserva da Marinha. Havia sido nomeado governador do Território
Federal do Amapá.
― Eu indiquei você para ir trabalhar com o comandante Henning
no Amapá, disse o Dr. Goiabeira a Daniel.
Daniel ficou estupefato. A experiência que tivera em Montes
Claros, terra inóspita àquela época (1965/1967), viera à sua mente. Já
conhecera Macapá, capital do Território Federal do Amapá, pois lá estivera
fazendo auditoria. Era terra também praticamente inóspita. Mas não sabia
como rejeitar o convite.
Em fins do mês de abril de 1974, acompanhou ele a comitiva do
comandante Henning, que se dirigiu ao Território para a cerimônia de posse do
novo governador. Depois de empossado, houve um almoço de confraternização
na residência oficial do governo. Atencioso, o comandante Henning chamou
Daniel para sentar-se ao seu lado, numa mesa de mais ou menos oito metros
de extensão. Os garçons começaram a servir. Primeiro, foi o governador. Em
seguida, um a um, foram servidos os convidados. Todos atendidos, o
governador continuava conversando, e nenhum dos convidados começava a
comer. Como estavam absortos às palavras do comandante Henning, Daniel
não perdeu tempo: pegou a faca e o garfo e iniciou o almoço. E o governador
permanecia conversando... E nenhum outro convidado dava a primeira
garfada... Quando Daniel, solitário, já estava quase terminando, o comandante
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iniciou a refeição. Aí, Daniel notou, envergonhado, que somente depois que ele
começou, os convidados o seguiram.
Depois dos comes e bebes, os convidados se retiraram para tomar
o avião de volta a Brasília. O comandante Henning convidou Daniel para ficar
hospedado no palácio residencial do governo a fim de manterem entendimento
mais estreito, e até que Daniel trouxesse a família para Macapá, em julho
daquele mesmo ano, época das férias de seus filhos nos colégios onde
estudavam, em Brasília.
Certa noite, após uma partida de baralho, o governador lembrou a
Daniel a mancada que ele dera durante o almoço de sua posse. E, risonho,
disse:
― Agora, vou lhe dar aula de etiqueta.
Pegou duas taças e uma garrafa de vinho. Colocou o líquido em
ambas, um pouco acima da metade.
― Pegue a sua taça e beba, disse a Daniel.
Daniel abriu a mão, abarcou a parte de cima da taça e ia
colocando à boca quando o comandante atalhou:
― Não, está errado. Você coloca o dedo indicador e o polegar na
taça. Assim...
Em seguida, levou a taça à boca e tomou apenas um gole.
Aí Daniel interveio:
― Ora, comandante, pra que perder tempo? Não é mais fácil
pegar na parte mais grossa e tomar logo todo o vinho?
O comandante riu e, gargalhando, soltou:
― Você é mesmo um pau de arara...
E os dois riram a valer.
O Diário Oficial do Território publicou, em sua edição de 6 de maio
de 1974, a designação de Daniel para o cargo de secretário de Administração e
Finanças do Território Federal do Amapá, a contar de 2 de maio do mesmo ano,
data em que de fato assumira dito cargo. Foi um dia de quinta-feira.
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Terminados os cumprimentos relativos à posse, Daniel, dirigiu-se
à sua sala de trabalho. Convocou, então, reunião com seus subordinados
imediatos. Reunidos, Daniel dirigiu-lhes a palavra:
― Vocês todos me conhecem de auditorias que já fiz aqui. Por
favor, não me chamem de Vossa Excelência quando estivermos a sós. Só se for
na presença de estranho. Outra coisa: não recebo subordinados de vocês, a
não ser que tenham autorizado ou que venham com um de vocês, para que
não haja desrespeito à hierarquia. Fiquem tranquilos, que o poder não me
subiu à cabeça. Carregarei sempre comigo a minha origem humilde. Só exijo
sinceridade de todos.
Daniel respirou fundo, esperou que algum dos presentes usasse a
palavra, mas nada... Então, continuou:
― Fui procurado por vários colegas em Brasília que queriam vir
trabalhar aqui. Todos de olho na ajuda de custo e nas mordomias. Disse-lhes
que jamais cometeria injustiça na minha vida. Primeiro, vou testá-los nos seus
respectivos cargos, na capacidade de cada um. Tenho certeza de que vocês
não vão me decepcionar.
Finalizada a reunião, Daniel pediu ao seu chefe de gabinete,
Edemburgo, que lhe trouxesse os problemas mais graves, que ele sabia
estarem sendo preteridos.
Edemburgo colocou sobre a mesa de Daniel cerca de trinta
processos. Referiam-se eles a compras da administração anterior, algumas sem
terem sido realizadas com base no empenho. Pareciam fraudes, mas como
apurar, se os beneficiários já tinham ido embora? Passou parte da manhã
estudando todos os casos. À tarde, pediu audiência ao governador, contando-
lhe as anomalias que encontrara. Tinha até aquisição de modess, comprado
pela ex-secretária de Educação. Um horror!
O governador ficou atônito. E perguntou a Daniel qual o melhor
caminho a adotar.
― Governador, respondeu Daniel, se formos criar comissões de
sindicâncias para apurar os fatos, não vamos iniciar a governar tão cedo.
Aconselharia a não iniciarmos a caça às bruxas e pagarmos.
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O governador concordou. Então, Daniel lavrou o seguinte
despacho, anexando-o aos processos:
Excepcionalmente, para manter o bom nome da administração
deste Território, solicito a Vossa Excelência seja autorizado o pagamento.
E, logo abaixo, vinha o despacho do governador:
De acordo. Pague-se.
O primeiro dia de trabalho de Daniel tinha sido um verdadeiro
sufoco. Terminado o expediente, foi para o palácio residencial do governo.
No dia seguinte, 3 de maio de 1974, uma sexta-feira, Edemburgo
colocou sobre a mesa de Daniel cerca de dez processos, e foi dizendo:
― São as diárias do pessoal da Segup (Secretaria de Segurança
Pública), que vai fazer investigação no interior.
Daniel ficou espantado. Na condição de secretário de
Administração e Finanças, estava ele autorizado pelo governador a permitir
pagamentos até uma certa importância. Dali em diante, só o governador
autorizava. Enfim, o governador e Daniel mantinham a chave do cofre.
― Pode recolher todos esses processos. Não vou autorizar. Esses
policiais vão pescar nos rios e beber cachaça. Eles têm a semana inteira para
fazer seus trabalhos.
A partir daquele dia, quase toda a Polícia Civil se voltou contra
Daniel. Até mesmo alguns policiais militares, porque a notícia se espalhou
rapidamente.
Aqui, Daniel abre um parêntese para registrar que exerceu, por
quinze vezes, o cargo de governador substituto, durante o período
compreendido entre 2 de maio de 1974 a 6 de agosto de 1975, tempo em que
esteve a serviço no Território.
Para poder cumprir suas responsabilidades, Daniel levantava-se
todos os dias às 5 horas da manhã. Tomava café e às 5h30min. estava no
trabalho. Só retornava para casa às 22 horas. Ia e voltava andando, e, no
trajeto, não havia vivalma. Abria a porta de sua sala, sentava-se à mesa e
começava a trabalhar, porque, às 9 horas, diariamente, tinha despacho com o
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comandante Henning. Os outros secretários ― de Educação, de Saúde e de
Obras ― só despachavam com o governador uma vez por semana.
Chegou o fim do mês de maio de 1974. Daniel começou a analisar
o balanço financeiro e identificou despesas que considerou absurdas: gasolina,
troca de óleo, carne, arroz, feijão, etc. Chamou o seu diretor financeiro e
perguntou-lhe quem eram os beneficiários de tais despesas.
― Todos os chefes têm jeep. A comida é para a casa dos
secretários.
Daniel contou ao governador o acontecido. Ficou combinado,
então, que todos os veículos usados por chefes de divisão ou de seção fossem
alienados. E também que fossem reduzidas as mordomias.
Daniel, imediatamente, adotou as providências. Mandou que seu
diretor da Divisão de Administração diminuísse drasticamente os comensais dos
secretários. E, ainda, que fosse convocada a Comissão Permanente de Licitação
para venda de todos os veículos entregues a chefes de cada secretaria. E assim
foi feito.
Após alguns dias, foram abertas as propostas. Os vencedores
foram deslocados para as respectivas secretarias, em cuja garagem se
encontravam os veículos que arremataram. Ao chegarem à Segup, porém, para
retirar os jeeps, constataram que eles não funcionavam. Ao contrário do que
havia sido detalhado pela Comissão Permanente de Licitação, faltavam peças
nos veículos. Os vencedores ficaram irritados e ameaçaram processar o
governo. Eram pessoas do próprio Território, de Belém ― Pará e até mesmo de
São Paulo.
O diretor da Divisão de Administração e presidente da Comissão
Permanente de Licitação, Cassio Dolabela Romeiro, pediu-lhes que
aguardassem um pouco, pois ele ia conversar com o governador. Daniel estava
em exercício como governador substituto. Cassio contou-lhe o ocorrido. Daniel
pegou o telefone, ligou para o secretário de Segurança e foi logo dizendo:
― O senhor tem meia hora para que sejam colocados nos veículos
as peças que foram deles retiradas.
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― Eu não sei do que se trata. Não tenho condições de atender sua
determinação, respondeu-lhe.
― Bem, disse-lhe Daniel, se minha ordem não for respeitada,
amanhã pode ler sua dispensa no Diário Oficial. E os funcionários responsáveis
por esses desmandos serão objeto de comissão de sindicância para apuração
das responsabilidades.
Não demorou meia hora e todas as peças que haviam sido
retiradas foram recolocadas.
Na segunda quinzena do mês de junho de 1974, Daniel recebeu a
visita do Dr. Raimundo Nonato de Castro, que, por coincidência, estivera na
inauguração do escritório da Sudene, em Montes Claros, representando o
governador de Minas Gerais. Disse ele a Daniel que fora nomeado assessor do
ministro do Interior, general José Costa Cavalcanti. Informou-lhe, em seguida,
que haviam chegado várias queixas ao gabinete do ministro sobre sua atuação
como secretário de Administração e Finanças do Território. E mais, que estivera
fazendo pesquisa no comércio local. Concluiu:
― Se eu fosse você, não traria a família para o Território. Não
houve quem não criticasse sua atuação. Está dando prejuízo ao comércio local.
Daniel, então, pediu-lhe um favor:
― Dê-me seis meses e, depois, o senhor vem refazer a pesquisa.
Essa revolta é natural, porque foram adotadas medidas enérgicas contra o
desperdício.
Em um dos despachos com o governador, este informou a Daniel
que a Associação Comercial do Amapá havia lhe pedido audiência para colocá-
lo a par dos prejuízos que o comércio local estava atravessando, em
decorrência da drástica diminuição das compras. O governador pediu a Daniel
que viesse devidamente municiado, pois a briga ia ser feia.
Ao retornar à Secretaria de Administração e Finanças, Daniel
cuidou de estudar, detalhadamente, o balanço financeiro do ano anterior
(1973). Verificou que havia vários lançamentos na rubrica Restos a pagar e
Despesas de exercícios anteriores. Pediu aos seus subordinados todos os
processos relativos a esses lançamentos. Havia casos de compra de material
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que, há mais de três anos, não havia sido entregue. E, como tal, não existia
razão dos vencedores que justificasse a não entrega das encomendas.
No dia e na hora marcados para a reunião, Daniel levou todos os
processos. Sentou-se ao lado do governador, numa mesa de mais ou menos
sete metros. O primeiro a falar foi o presidente da Associação Comercial que,
em longo discurso, criticou a atuação do governo do Amapá por haver
diminuído drasticamente as compras. Terminadas as críticas, o governador
cedeu a palavra a Daniel, que, ao iniciar, perguntou ao orador o nome da firma
em questão. Após identificá-la entre os vários processos que havia levado,
Daniel disse-lhe:
― Sua empresa, há cerca de dois anos, ganhou uma licitação para
fornecimento do seguinte material. E listou-o a seguir.
Continuando, acrescentou:
― Até hoje, não houve qualquer comunicação de sua parte
informando o motivo pelo qual o material não foi entregue. Os prejuízos que o
senhor deu ao Território são indescritíveis.
Em seguida, perguntou-lhe:
― O senhor, bem como os demais participantes da reunião, tem
condições de entregar o material agora pelo mesmo preço que ganharam a
licitação?
Para surpresa de Daniel, todos se levantaram, encerrando a
reunião. Ao retornar à Secretaria de Administração e Finanças, mandou
cancelar todos os pedidos. Como o Território era equiparado a uma autarquia,
os recursos retornaram ao seu orçamento.
E, seis meses depois, Dr. Raimundo Nonato voltou, e, ao abrir a
porta da sala de Daniel, foi logo dizendo:
― Nossa, você agora é um Deus. Que é que você fez?
Daniel disse-lhe que alguns interesseiros espalhavam boatos de
que ele estava fingindo-se de durão, mas, na verdade, iria se comportar do
mesmo modo que os antecessores, ou seja, só iria levar vantagem no cargo
que exercia. Entretanto, com o passar dos dias, a população percebeu que ele
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estava agindo estritamente dentro da lei, sem beneficiar quem quer que fosse.
Dr. Raimundo Nonato abraçou Daniel, comovido, e despediu-se. Saiu satisfeito.
Chegara a vez da venda dos aviões. A Comissão Permanente de
Licitação terminara os trabalhos de avaliação das aeronaves, e o Edital de
Licitação Pública foi publicado no Diário Oficial do Território. O primeiro
aparelho colocado à venda foi um monomotor CESSNA, ano de fabricação 1964.
Abertas as propostas, o vencedor foi o dono de um garimpo na selva
amazônica. Daniel recebeu a visita de várias pessoas da sociedade amapaense,
protestando contra o vencedor, um senhor que raramente ia à cidade e que
não tinha ligação alguma com o povo de Macapá. Pediram-lhe que anulasse a
licitação. Ele discordou, justificando que foram cumpridas todas as exigências
legais.
Eis que Daniel recebe a visita de um cidadão, vestindo roupas
desgastadas, de chinelo nos pés e chapéu de palha na cabeça. Sentou-se na
cadeira em frente a Daniel, tirou o chapéu e foi dizendo:
― Excelência...
Daniel interrompeu-o, pedindo-lhe que não o tratasse por
Excelência, mas apenas pelo nome. E ele prosseguiu:
― Soube que várias pessoas estiveram com o senhor, pedindo
para cancelar a licitação que fui vencedor. Queria lhe dar um presente pela sua
honestidade. O senhor vai comigo no avião. Tenho um garimpo no meio da
selva. Lá tem um pico que é usado para pouso e decolagem. Depois, o pico é
coberto com galhos de árvore e vira tudo selva. Quem se aproxima do garimpo,
eu mando matar. O senhor vai ganhar um saquinho de pedras preciosas e
nunca mais será pobre.
Daniel agradeceu-lhe e disse que tudo tinha sido feito dentro da
lei, e que ele não lhe devia nada. Ao que o senhor respondeu:
― Mas, Dr., o senhor não será mais pobre para toda a vida.
Daniel levantou-se, abraçou-o e agradeceu a gentileza.
Além de trabalhar de segunda à sexta-feira, de 5h30min. às 22h,
Daniel também dava expediente aos sábados pela manhã. Às tardes de sábado,
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às 16 horas, ia jogar pelada. Certa vez, jogando no campo da Polícia Militar,
todos o chamaram de governador.
― Passa a bola, governador!
― Chuta a gol, governador!
Até que, numa bola dividida, o adversário tirou o pé, não travando
com ele. E Daniel, para o seu adversário:
― Aqui, todos somos jogadores. Não tem esse negócio de tirar o
pé numa bola dividida.
E, em outra dessas bolas divididas, o adversário entrou de sola,
machucando o tornozelo de Daniel, que foi retirado de campo nos braços dos
colegas. O tornozelo ficou tão inchado que a tornozeleira que calçava teve de
ser cortada com tesoura.
Um dia, o substituto de Daniel, Domício, pediu-lhe que fosse
dispensado um subordinado dele, Leandro. Já entregou a Daniel o texto da
portaria para ser assinado. Prontamente atendido, o documento foi publicado
no Diário Oficial do Território.
Após a publicação da portaria, para surpresa de Daniel, adentrou
em seu gabinete um dos poderosos empreiteiros do Território. Foi logo lhe
dizendo que a dispensa de Leandro tinha de ser desfeita, porque ele (Leandro)
era secretário-geral da ARENA e o presidente Geisel não ia gostar. E Daniel
respondeu-lhe:
― Jamais farei uma coisa dessas. A única saída é o governador
me demitir e o meu substituto atender sua determinação. Afinal, o que a
população vai pensar? Eu ou o senhor, quem é o secretário?
― Então, vou falar com o governador, disse o empreiteiro.
Em menos de 10 minutos, o governador ligou para Daniel,
perguntando-lhe o que havia ocorrido. Este lhe relatou o fato. E o governador:
― Foi assim? Então, você está correto.
Já se passara mais ou menos um mês quando, às 6 horas da
manhã, Leandro entrou na sala de Daniel, que ficou apreensivo. Chegou à sua
frente, começou a chorar e desabafou:
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― Vim aqui lhe pedir desculpas. Já falei muito mal do senhor,
pensando que tinha me dispensado. Ontem à noite, soube que foi meu
compadre Domício.
E Daniel, também comovido, disse-lhe:
― Você vai voltar para o seu lugar. O Domício vai ser diretor do
escritório do Território em Belém. Quem vai substituí-lo é o Rubens. Aliás, já
conversamos, e você vai voltar para o seu lugar.
Certa vez, Daniel estava em despacho com o governador. Este, ao
ler um processo para assinar, olhava para o secretário e sorria. Fez a mesma
coisa três vezes. Então, Daniel perguntou-lhe:
― Há algum problema, governador?
― Sim. Toda a minha vida foi dirigindo homens. Nunca me
enganei com nenhum, mas me enganei com você. Jamais pensei que você,
nessa simplicidade, fosse tão capaz. Quem ia ser o secretário de Administração
e Finanças era um amigo meu, porém você me impressionou tanto que
dispensei os serviços dele.
― Nossa, governador, respondeu Daniel.
E acrescentou:
― Agora, vou ter de me esforçar em dobro para não decepcioná-
lo.
Risos.
Daniel era o único secretário que mantinha sempre a porta de sua
sala aberta, não fazendo distinção entre qualquer cidadão que com ele
desejasse falar. Um dia, entrou na sala uma irmã. Aproximou-se e:
― Excelência...
Daniel não deixou que continuasse. Aproximou-se dela e,
beijando-lhe a mão, disse:
― A que devo tão ilustre visita? Por favor, não me chame de
Excelência.
― Eu sou do Ginásio Feminino de Macapá. Lá ensinamos crianças
pobres e cuidamos da saúde delas. Todos os meses, recebemos uma ajuda
financeira do Ministério da Educação e Cultura e do governo do Território. Já
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vim aqui várias vezes e me dizem que a liberação do dinheiro enviado pelo
Ministério está sendo estudada. Já estamos passando privação.
Daniel pegou o telefone e chamou o responsável. Perguntou-lhe
por que não tinham, ainda, entregue o dinheiro. Ele lhe deu uma desculpa
esfarrapada. Daniel ordenou-lhe:
― Dentro de 20 minutos, no máximo, quero que o cheque seja
entregue. E que isso não se repita mais...
Daniel pediu desculpas à irmã pelo atraso e solicitou-lhe que
ficasse em sua sala, aguardando. Aqueles 20 minutos ainda não haviam
transcorrido e ela estava com o cheque em mão.
O governador ligou para Daniel, informando-lhe que estava em
seu gabinete o vice-reitor, de nome Moita, da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, vinculada ao Ministério da Educação e Cultura. Fora tratar da
instalação do Campus Avançado do Amapá, do Projeto Rondon. Tratava-se de
um projeto lançado pelo regime militar, objetivando o contato de estudantes
com a realidade nacional, diferente, portanto, do que as forças contrárias ao
regime apregoavam nas grandes cidades.
Com os contatos diários, mantidos durante as pesquisas para
locação da casa destinada aos universitários e a realização das compras de
utensílios e móveis, Daniel e Moita tornaram-se amigos. Em longas conversas,
trocavam até mesmo confidências sobre os mais variados assuntos. Moita
retornou ao Rio de Janeiro e ficou de informar a Daniel o dia do embarque dos
estudantes para o Território e o nome do professor responsável pelo Campus
Avançado.
Chegando o dia, Moita comunicou a Daniel que viria com a
comitiva. Ao desembarcarem do avião, foram todos apresentados ao secretário,
inclusive o professor Nilde Ceciliano Santiago, o responsável pelo mencionado
Campus. No primeiro domingo após a chegada do grupo ao Território, o
governador ofereceu à equipe um almoço de boas-vindas. Daniel, presente, ia
passando pela mesa onde estavam sentados Moita e o professor Santiago, que
o convidaram para sentar-se à mesma mesa. O professor Santiago pediu a
Daniel que contasse um pouco da sua vida e como chegara a secretário de
50
Administração e Finanças. Daniel, então, fez um breve histórico de seu
passado.
Daniel notou que o professor Santiago olhava incrédulo para
Moita, que sorria. Daniel disse com os seus botões: “Será que falei alguma
bobagem?” Terminaram de almoçar, e o professor prometeu que iria fazer uma
visita a Daniel, após certificar-se dos afazeres a seu encargo e das
responsabilidades que competiam à Secretaria de Administração e Finanças.
No dia da visita, os dois tiveram uma conversa amigável sobre as
responsabilidades das respectivas áreas. Em seguida, o professor Santiago não
se conteve e disse:
― Quando cheguei ao Território, perguntei ao Moita quem era o
homem forte do governo. Ele ficou de me apresentá-lo durante o almoço.
Contudo, antes da hora marcada, cobrei dele: ‘Mostra aí, nesse amontoado de
gente conversando, quem é o homem forte’... Aí, ele apontou você. Eu disse:
‘Moita, aquele vestido de bermuda e de camiseta, que está contando piadas?
Conta outra.’ Pois é, você me surpreendeu. Quem vir você na rua, não dá um
vintém pela sua figura.
― Bondade sua, meu caro. O que mais me ensinou na vida não
foram os diplomas de nível superior que consegui, mas, sim, as chicotadas da
Universidade da Vida. Agradeço seus elogios. Sinceramente, não me sinto
envaidecido. Aumenta a minha preocupação para não decepcionar os amigos e
jamais esquecer a minha origem humilde.
O tempo ia correndo. Chegou o mês de junho de 1975. Eis que,
um dia, o filho de Daniel, Carlos Marcelo, com nove anos de idade, estava à
procura de seus livros e cadernos da quarta série primária. Daniel perguntou-
lhe o motivo da busca, e ele respondeu:
― Estou na oitava série. A professora vai dar a prova pelos meus
cadernos da quarta série.
Daniel ficou chateado. Como poderia ser o futuro de seu filho?
Chamou a filha mais velha, Danielle ― já que a mais nova, Lucienne, ainda não
estudava ―, e perguntou-lhe como ela ia na escola. Nova decepção: estava
atrasadíssima. Daniel combinou com a esposa que em julho teriam de voltar
51
para Brasília. Os filhos estavam muito atrasados, e o futuro de ambos era
preocupante. Falou com o governador, que lamentou a decisão, mas a
compreendia.
Rapidamente, a população tomou conhecimento da novidade.
Sempre que Daniel saía da Secretaria, havia na porta de entrada uma romaria
de pessoas esperando-o. Faziam até comícios, apelando para ele ficar. Diziam
que ele seria facilmente eleito deputado federal pelos bons serviços prestados
ao Território. Daniel agradecia comovido e adiantava que não gostaria de ser
político.
O Jornal do Povo, de 8 de junho de 1975, na Coluna F, publicou a
seguinte notícia:
‘SUPER SECRETÁRIO
O sr. Daniel Alencar, Secretário de Finanças do
Governador Arthur Henning, tem atribuições que vão além de suas
responsabilidades específicas. Segundo informaram ao repórter, o
titular das Finanças é uma espécie de ‘cérebro eletrônico’ de todo o
mecanismo da atual administração, e todas as decisões programadas
só entram em execução depois da aquiescência do homem do
Tesouro. Ele seria, assim, um Super-Secretário, em quem o
Governador confia sem restrições, embora isso atrapalhe ou incomode
as figuras que não se afinam com o guardião da caixa-forte.’
Os presentes que Daniel recebeu estavam guardados em sua
casa. Todos foram doados à Associação de Voluntários do Amapá ― Abrigo São
José, de onde recebeu o documento abaixo transcrito:
‘Recebi do Sr. JOSÉ DANIEL DE ALENCAR, como doação
ao Abrigo dos Velhinhos, os seguintes objetos, que lhe foram
presenteados por terceiros durante a sua gestão como Secretário de
Administração e Finanças do Governo do Território Federal do Amapá:
1 (um) faqueiro, de prata meridional, 1ª classe
mundial, com 130 peças;
2 (dois) quadros, um representando um preto velho e
outro, uma parte da Rua Mendonça Furtado;
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1 (um) isqueiro, marca PORKA, suíço, com um relógio
nele encravado;
1 (uma) escultura em cobertura de manganês,
retratando um casal;
1 (um) DRINKO’MATIC, marca FORDA;
1 (um) isqueiro ornamental para mesa, com a
respectiva carga;
1 (um) jogo para coquetel de plástico, com sete peças;
1 (uma) rede, trabalhada em fios lamê, com desenhos
da Arábia.
Macapá, 09 de junho de 1975.
Lícia Góes Barbosa’
E, novamente, o Jornal do Povo, em sua edição de 15 de junho de
1975, dava a seguinte notícia:
‘MOSQUETEIROS
O Governador Arthur Henning tem quatro Secretários
dando IBOPE, em algumas correntes de opinião do Território. Na faixa
das preferências, figuram em primeiro plano o Secretário de Finanças,
Daniel Alencar, e o Secretário de Segurança, Coronel José Índio
Machado. Em seguida, pontificam os nomes do engenheiro Fernando
Ramos Dias, Secretário de Obras, e do agrimensor Cleiton Azevedo,
prefeito de Macapá.
Considerados como os quatro mosqueteiros de Arthur
Henning, em que pesem as dificuldades da atual administração, esses
homens se desdobram ― cada qual a seu modo ― para projetar uma
imagem alegre, otimista e descontraída do Governo do Território.
A maior torcida, contudo, é pela permanência do
Secretário de Finanças no esquadrão Henning. Demissionário, mesmo
assim o sr. Daniel Alencar tem mantido um elevado espírito público à
frente da SAF, atento para as finanças do Governo e para o equilíbrio
da estrutura administrativa do Amapá, embora não tenha escapado
de críticas radicais, e quase sempre injustas. O repórter analisa a
questão à luz de depoimentos trazidos ao bureau por pessoas
responsáveis que, embora, admitam que o sr. Daniel Alencar não seja
insubstituível no cargo, defendem a sua permanência como um
53
imperativo de ordem e segurança, autoridade e responsabilidade no
comando da Secretaria que tinha o triste conceito de fazer parte de
uma herança maldita.’
Meses antes de pedir dispensa do cargo, Daniel mandara fazer o
levantamento do material necessário ao governo, a ser utilizado no prazo de
um ano. Foi realizada uma tomada de preços em Macapá, em Belém e em São
Paulo. Daniel tomou um susto quando foi comparar os preços: os de São Paulo
chegavam à diferença astronômica de até 500% menos que os de Macapá.
Nomeou, então, novos membros para a Comissão Permanente de Licitação para
comprar, em São Paulo, o material. Este, ao chegar a Belém, foi despachado
em barcas do governo, com destino a Macapá.
Ao ligar o rádio do carro, quando saía para o almoço, Daniel ouviu
pela Rádio Educadora São José, da cidade de Macapá, críticas que considerou
até ofensivas sobre a compra do material: que ele estava, inclusive,
extrapolando seus deveres, empobrecendo o comércio local, fazendo compras
que lhe renderiam boa comissão, justamente no momento em que iria deixar o
Território.
Daniel ficou chocado. Quando retornou do almoço, ligou para a
rádio e falou com o comentarista, Alcy Araújo. Pediu-lhe, por gentileza, que
viesse até a Secretaria, pois desejava conversar com ele. No dia seguinte, Alcy
apresentou-se.
Daniel estendeu-lhe a mão, pediu-lhe que se sentasse na cadeira
à sua frente e disse-lhe:
― Fiquei perplexo ao ouvir sua crônica ontem pela rádio.
Deixemos o Excelência de lado. Pode tratar-me pelo próprio nome. Afinal, já
trilhei os mesmos caminhos que você.
A seguir, Daniel fez reminiscências de sua vida, lembrando seus
tempos de foca na NEWS PRESS e de secretário na Rádio Mayrink Veiga. E,
mostrando-lhe os processos, acrescentou:
― São processos de tomada de preços. Veja as diferenças de
preços. Um absurdo. Foi tudo feito de acordo com o Decreto-lei nº 200/67.
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Alcy olhou, manuseou os processos e fez várias perguntas a
Daniel.
― Pois é, Alcy. Aí está a verdade. As informações que você
recebeu foram mentirosas. Compreendo sua situação de jornalista: na ânsia de
dar a notícia em primeira mão, o chamado furo, dá-se credibilidade à fonte.
Não se checa a informação.
Alcy, que também era funcionário do Território, pediu desculpas a
Daniel, dizendo-lhe que iria reparar o mal que tinha feito. E Daniel atalhou:
― Estou saindo do governo, como você já sabe. Queria pedir-lhe
um favor: não quero que você me defenda. Quero que você defenda os
membros da Comissão Permanente de Licitação, que vão ficar aqui, e não
sejam eles expostos à execração pública.
Ao despedir-se, Daniel sentiu que Alcy estava emocionado. No dia
seguinte, à mesma hora, Daniel ligou o rádio do carro e ouviu, comovido:
‘PROGRAMA “ELES, A MÚSICA E A NOTÍCIA”
TRANSMITIDO NO DIA 18/06/75 (4ª feira)
RÁDIO EDUCADORA SÃO JOSÉ
CORTINA MUSICAL:
PROPAGANDA:
COM A PALAVRA ALCY ARAÚJO: Tivemos a satisfação de um primeiro
contato pessoal com o Dr. DANIEL ALENCAR, Secretário de
Administração e Finanças do Território. O encontro constituiu abertura
para um diálogo franco, honesto e inteligente, permitindo um
estabelecimento claro das posições em que se encontram o jornalista
e a autoridade. A autoridade, de sua alta posição, zelando pela
dignidade do Governo, zelando pela honrosa confiança que lhe foi
depositada e zelando ainda pela responsabilidade delegada a um dos
altos funcionários da Secretaria, para que não pairem dúvidas no seio
da coletividade, quanto à exação de uma política de material que visa
emprego, em termos legais, e no sentido da economia, de recursos
que a União carreia para os programas administrativos do Território
do Amapá. Foi uma demonstração patente e o jornalista tem a
satisfação de registrar a responsabilidade funcional. O jornalista, na
posição menos responsável, de homem apressado, que transforma a
informação em notícia, sem as limitações que caracterizam as ações
55
administrativas que envolvem leis, normas e instruções, que não
regulamentam as atividades de um simples repórter. Apresentou o
Secretário seus pontos de vista, a sua opinião respeitável em torno do
tratamento que foi dado a uma nota divulgada por este programa,
demonstrando não estar alheio aos labirintos da profissão deste
escriba. O jornalista, por sua vez, declarou as suas intenções, nunca
subalternas, nunca ocultas, nunca ditadas por sentimentos menos
dignos, embora houvesse a notícia que divulgou criado uma situação
momentânea desagradável. Mas que ofereceu um ângulo positivo.
Lamenta o jornalista que deveres funcionais do Secretário de Finanças
e as obrigações do repórter não tenham produzido contacto entre um
e outro há mais tempo. O encontro em tela constituiu uma
demonstração de urbanidade, de respeito pelo profissional e pela
pessoa humana de parte do homem a quem agora o jornalista tem a
satisfação de tratar, não como Secretário de Governo, não como sua
Excelência, mais singelamente de amigo DANIEL DE ALENCAR,
incluindo aquele que exerce as funções de Administrador-Geral no rol
dos que têm lugar em nossa estima, lugar que já ocupava em nosso
respeito. As palavras dirigidas ao jornalista foram uma mostragem
nítida do homem ponderado, lúcido e perfeitamente integrado no
cargo que lhe foi confiado. Permitiu a radiografia do administrador,
um diagnóstico do chefe, do companheiro de trabalho. Enquanto isso,
o diálogo do jornalista assegurou o enfoque de uma sistemática
administrativa contemporânea. Após o encontro, lamentamos
profundamente termos que dar a notícia de que DANIEL DE ALENCAR
vai deixar o Território. Não fossem motivos imperiosos e de ordem
particular, que nos expôs com a transparência de quem não tem nada
a ocultar, e o jornalista engrossaria a corrente dos que tentam
demovê-lo de sua decisão, isto pela certeza de que o Governo vai
perder um colaborador de primeira água e o Amapá vai deixar de ter
em seu convívio um amigo que veio de outras vivências e de outras
comunidades e logo aprendeu a querer bem a esta terra e ao seu
povo. Mas paremos aqui, o Repórter não deseja ferir mais do que
feriu a modéstia de um amigo que nos vai dizer adeus.
PEDRO SILVEIRA: Muito bem, Alcy, muito bem, faço meus os seus
conceitos, porque também mantive contato com o ilustre Secretário
de Finanças e encontrei na autoridade um homem aberto, franco,
preocupado como os problemas humanos.
56
ALCY ARAÚJO: Exatamente. Cremos, de alguma forma, embora de
maneira condensada, que demos uma idéia do homem que aciona o
coração administrativo do Governo.
CORTINA MUSICAL.’
As irmãs do Ginásio Feminino de Macapá não se esqueceram de
Daniel, tendo ele recebido este documento:
‘Ofício nº 14/75 – GPM Macapá, 19/05/75.
DA(S) : Diretora do Ginásio Feminino de Macapá
e Vice-Diretora
AO DD Secretário de Administração e Finanças
do Amapá
ASSUNTO : Agradecimento (apresenta)
EXMO. SR. SECRETÁRIO
Vimos, através do presente, agradecer a Vossa
Excelência os importantes e significativos favores com que fomos
contempladas durante o período de vossa gestão, à frente da
Secretaria de Finanças do Território Federal do Amapá, em nosso
nome e no nome das Irmãs, religiosas do Ginásio Feminino de
Macapá.
Que Deus onipotente cumule Vossa Excelência
e digna família com ricas bênçãos divinas.
Na oportunidade, apresentamos nossas
despedidas, em virtude de estarmos também em vésperas de viagem.
Atenciosamente,
As Irmãs: Irmã Carmen Bello
Irmã Elvira Buyatti
Irmã Odete Bahia
Irmã Maria das Graças de Souza Góes
Irmã Nelizia Pereira Colares’
57
E, mais uma vez, talvez ainda lembrando-se da maneira afável
com que fora tratado por Daniel, o jornalista Alcy Araújo escreveu na coluna
Gazetilha, de 22 de junho de 1975:
‘Os que me conhecem sabem que eu sou parco em
elogios. Sou mais da crítica. Não tenho as mãos cheias de ditirambos
para oferecer aos que mais necessitam de louvor. E a faculdade de
elogiar se estreita, se espreme, quando se trata da autoridade. Isto
porque considero que ― quando a autoridade trabalha com exação,
quando realiza, está cumprindo apenas com o seu dever e nada mais,
nada menos. Mas é natural que cada um de nós que trabalha, que
recebe a remuneração do ofício, receba também a do
reconhecimento.
É bom receber um elogio. Sabe bem. Não se esgota
como o ‘papel’ do pagamento mensal. Fica. Todos nós, no
desempenho de nossas humildes obrigações ou no exercício honroso
do comando, sentimos a satisfação do elogio, notadamente quando
ele vem revestido da justiça.
Uma das razões de nossa parcimônia é o medo de ser
mal interpretado. Pelo alvo do louvor ou pelos que tomam
conhecimento deste. Mas hoje vou elogiar sem peias, descontraído e
tranqüilo. Vou elogiar um homem que nos diz adeus. Deve ter tido os
seus defeitos e erros. Deve carregar humanas limitações. Deve deixar
descontentamentos. Vou dizer desta coluna que Daniel Alencar tem
saldo positivo. Haver. É um homem simples, capaz de entender
problemas humanos e encontrar a solução mais adequada, no nível
de suas atribuições e da hierarquia do seu posto. Foi dito o ‘homem
forte’ do Governo. Deve ter sido na dimensão de suas
responsabilidades e não no sentido autocrático do administrador
apegado a detalhes sem relevo. Prestou, na área de sua competência,
a contribuição de sua capacidade profissional ao Amapá. Merece o
reconhecimento dos seus méritos e a pouco valia do meu aplauso.
Rendo a minha homenagem a Daniel Alencar, porque
ele vai embora, vai deixar o Amapá. Não vai remunerar essa
homenagem. Não vai chamar o jornalista para um posto de confiança
ao seu lado, nem proporcionar uma sinecura ou ficar tentado a fazer
algum favor. Nada pedimos a Daniel Alencar e nada nos foi negado ou
concedido. Não o fez ontem, nem o fará hoje, muito menos amanhã,
58
separado do Governo onde foi dito ‘homem forte’. O que nos deu foi
de maneira espontânea e franca. Foi a compreensão e o respeito pelo
profissional, sem pedidos ou interveniências subalternas. Nada mais.
Isto espelha um dos ângulos positivos do seu caráter. Rendo a minha
homenagem a Daniel Alencar, como despedida, quando ninguém
pode dizer que o fazemos rastejando ou coleando, com intenções
genuflexas ou outra desvirtude. Que Daniel Alencar seja feliz em
outros brasis onde possa continuar dando a contribuição do seu
trabalho, para qualquer outra grandeza nacional. Daniel amigo,
receba o meu abraço.’
A sinceridade de Alcy fez Daniel chorar, emocionado.
― Alcy, amigo, onde estiver, que Deus o proteja!
Enquanto arrumava as malas para mudança, Daniel recebeu dois
importantes documentos, que vão abaixo transcritos:
‘ATESTADO
Atesto, para os fins de direito, que o Dr. JOSÉ DANIEL
DE ALENCAR, durante o tempo em que permaneceu como Secretário
de Administração e Finanças do Território Federal do Amapá, prestou
relevantes serviços ao Juízo de Direito da Comarca de Macapá, bem
como à Justiça Eleitoral deste Território, colaborando sempre com a
máxima boa vontade com o Poder Judiciário local e contribuindo de
todas as formas para que as instruções do Tribunal Superior Eleitoral,
referentes às eleições de 15 de novembro de 1974, fossem fielmente
cumpridas neste Território.
Macapá, 05 de julho de 1975
JOSÉ CLEMENCEAU PEDROSA MAIA
(Juiz de Direito Eleitoral
com atribuições de Juiz Federal)’
‘Em 06/07/75
Do: Diretor do Campus Avançado do Amapá
Ao: Dr. José Daniel de Alencar
59
Prezado Dr. Daniel
O Campus Avançado, através de sua direção, se sente
na obrigação de agradecer a V.Sª pelo empenho, carinho e dedicação
que teve junto ao Projeto Rondon, quando de vossa participação à
frente da Secretaria de Administração e Finanças.
Sempre solícito aos pedidos do Campus Avançado,
Vossa Senhoria dispensava os momentos de lazer para nos atender,
visando maior integração dos nossos universitários com o Território
Federal do Amapá, registrando consequentemente seu alto espírito
público e de civismo.
É, pois, com tristeza, que o Campus Avançado vê o
afastamento de tão ilustre camarada, mas, em se tratando de Brasil,
sabemos perfeitamente que a dedicação persistirá em vossa nova
função e que mesmo longe, estarás pronto a nos atender.
Queira V.Sª receber o verso abaixo que caracteriza
vossa pessoa junto a nossa atividade:
‘Quando os homens dão-se as mãos,
Metade da batalha estará vencida.
Quando de mãos dadas, unem-se os pensamentos,
Em favor de um bem comum, aí, então, tudo dará
certo...’
Agradecendo aos vossos relevantes serviços, o Campus
Avançado encontrar-se-á a vossa inteira disposição.
Atenciosamente
Prof. NILDE CECILIANO SANTIAGO
Diretor do Campus
Avançado’
Daniel foi reapresentado ao ministro do Interior, Dr. Maurício
Rangel Reis, pelo Ofício nº 0177/75 ― GAB, de 11 de agosto de 1975, cujo
texto vai abaixo:
60
‘SENHOR MINISTRO:
Cumpre-me apresentar a Vossa Excelência o Senhor
JOSÉ DANIEL DE ALENCAR, Contador e Técnico de Administração,
Assessor IV - C desse Ministério e que se encontrava à disposição do
Governo deste Território para exercer o cargo de Secretário de
Administração e Finanças, função da qual foi exonerado, a pedido,
com o Decreto (P) nº 0643d/75 ― GAB, de 31 de julho findo.
Apresentando agradecimentos pela valiosa colaboração
que essa Secretaria de Estado prestou ao Amapá, informo que, de
acordo com o critério estabelecido, os vencimentos e demais
vantagens a que fez jus o referido técnico foram pagos, até a data de
sua exoneração, pela Administração territorial.
Esclareço a Vossa Excelência que o Doutor JOSÉ
DANIEL DE ALENCAR aqui realizou um magnífico trabalho, dando
nova organização ao Órgão que dirigia, o que muito contribuiu para a
eficiência do seu funcionamento.
Trata-se de um técnico de alta capacidade
administrativa, de grande dedicação à causa pública e que merece o
reconhecimento e os melhores encômios do Governo e povo do
Amapá.
Aproveito o ensejo para renovar a Vossa Excelência os
protestos de minha alta estima e mais distinta consideração.
ARTHUR AZEVEDO HENNING
Governador’
1.7 De volta a Brasília – Distrito Federal
Depois de tanta luta e de tantos sacrifícios, o chefe de gabinete
do ministro disse a Daniel que ele procurasse um lugar para trabalhar. A
Inspetoria-Geral de Finanças, que o havia indicado para trabalhar no Território,
não o queria mais. Ficou decepcionado. Perambulou pelos órgãos do Ministério,
até encontrar uma vaga na Secretaria do Meio Ambiente (Sema), embrionária
do atual Ministério do Meio Ambiente. Em 22 de junho de 1976, conseguiu ser
61
nomeado coordenador de Elaboração e Acompanhamento Orçamentário do
órgão e, em 13 de outubro de 1976, foi designado secretário adjunto de
Planejamento, substituto, da Sema, tendo dela se desligado em meados de
1977.
Em setembro de 1977, retornou ao Território Federal do Amapá
para reorganizar a auditoria do referido Território.
CAPÍTULO II
2 CONTINUAÇÃO DAS BATALHAS
Ainda em 1977, sentindo-se deprimido, Daniel pediu demissão do
serviço público federal e foi trabalhar como autônomo na área de contabilidade.
Havia poucos clientes, e a situação financeira definhava a cada mês. Encorajou-
se e procurou seu colega Gerardo Antônio Monteiro de Paiva Gama, que era
diretor da Divisão de Auditoria do Ministério da Agricultura. Contou-lhe as
dificuldades que estava atravessando, tendo Gerardo prontamente atendido o
seu pedido de ajuda. Daniel foi, então, admitido, em 1º de setembro de 1978,
na Cobal ― Cia Brasileira de Alimentos, sucedida pela atual Conab ― Cia
Nacional de Alimentos, e colocado à disposição do Ministério da Agricultura,
indo trabalhar na referida Divisão de Auditoria.
Daniel passa a narrar, agora, a continuação de suas batalhas e a
de abnegados lutadores para frear os malefícios da corrupção. Para isso, foi
buscar no livro Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas o seguinte
histórico, esclarecendo que Haziel foi o nome usado por ele no texto do referido
livro:
62
2.1 O Projeto Verama
‘Em 1978, Haziel recebeu telefonema do então
Tenente-Coronel Nelson Barcelos da Veiga Filho, Inspetor-Geral de
Finanças do então Serviço Nacional de Informações (SNI), que
desejava trocar idéias sobre a malfadada corrupção. Conversa vai,
conversa vem, no final, ficou acordado convidar outros especialistas
para realizar trabalho de profundidade, com vistas a combater a
corrupção e suas irmãs siamesas. Foram convidados civis e militares
para formar um grupo de trabalho, tais como: Rubens de Oliveira
Lima, Consultor Jurídico da Presidência do TCU; Gerardo Antônio
Monteiro de Paiva Gama, Diretor da Divisão de Auditoria da
Inspetoria-Geral de Finanças do Ministério da Agricultura; Joaquim
Gonçalo de Almeida, Auditor do Denatran/MI e Tenente-Coronel Darcy
Blanco Garcia, chefe da SOF/SAD/SNI. O grupo de trabalho contou
ainda com a colaboração especial de oficiais da 1ª Inspetoria-
Seccional de Finanças do Exército, Francisco Luiz Dutra, hoje General
da reserva, e José de Barros Cabral Filho, Coronel e também na
reserva, bem como de vários servidores da IGF do próprio SNI.
Após seguidas reuniões, o trabalho foi concluído, tendo
sido batizado por Haziel de ‘Projeto Verama’ ― as três primeiras letras
do verde e as três primeiras do amarelo das cores da bandeira
brasileira. O TC Nelson Veiga ficou encarregado dos contatos com as
autoridades superiores, a fim de convencê-las a implantar as
sugestões que deram os participantes.
O ‘Projeto Verama’, concluído em 30 de novembro de
1978, apresentava novidades importantes em termos de fiscalização
de aplicação dos recursos públicos e inovava quanto à subordinação
de novo órgão, ou seja, ‘Criar a Secretaria de Controle Interno ― SCI
― como órgão de assessoria imediata do Presidente da República’,
justificado na introdução do referido projeto nos seguintes termos:
‘Estamos sentindo, fortemente, nos dias que correm,
principalmente neste segundo semestre do presente exercício
financeiro, uma preocupação por demais justa de entidades e homens
públicos de mais elevado gabarito moral sobre procedimentos de
controle de recursos públicos quanto à sua correta aplicação, dentro
dos planos de ação do Governo.
63
Sabemos que existe um sistema criado com a finalidade
primordial de exercer o controle e sentimos, também, que o sistema é
bom e cumpre sua missão, mas, dentro do próprio sistema,
encontramos duas falhas que prejudicam e, em última análise, afetam
as próprias intenções governamentais: a primeira é o próprio homem,
o técnico, que, por circunstâncias alheias à sua vontade, pressões,
etc., vê-se obrigado a calar-se ou verificar mutilações esdrúxulas em
seus trabalhos. A segunda é a descentralização da auditoria que força
o aparecimento da falha primeira. Existem soluções à vista e a curto
prazo? Temos convicções que sim! E aqui, e agora, as apresentamos,
modestamente, mas carregadas de um elevado sentimento de
patriotismo.
O Governo não dispõe de um órgão que possa centralizar os
trabalhos de auditoria em que estes fiquem independentes de seus
Ministérios. O sistema, como dissemos, é bom, mas precisa ser
atualizado para acompanhar o próprio desenvolvimento do País,
oferecendo, diretamente, ao Presidente da República, os dados
concretos, não manipulados por terceiros, sobre o controle e
acompanhamento de recursos de que o próprio Governo determinou
seu emprego. Ainda mais, oferecendo ao TCU meios reais que possam
assegurar a eficácia ao controle externo, como determina a própria
lei.’
O TC Veiga aproximou-se do então Inspetor-Geral de
Finanças da ex-Secretaria de Planejamento da Presidência da
República, Dr. Fernando de Oliveira, de quem recebeu total apoio. Dr.
Fernando conversou com o Ministro Delfim Neto, ao qual estava
subordinado, tendo sua excelência gostado das inovações. Mas
ponderou que, inicialmente, fossem elas implementadas na própria
estrutura da ex-SECIN/SEPLAN/PR, prometendo ao Dr. Fernando que
iria falar com o Presidente João Figueiredo a respeito.
E, para satisfação dos membros do Grupo de Trabalho
― e quiçá do próprio País ―, o Presidente João Figueiredo assinou,
com os Ministros Karlos Rischbieter e Delfim Neto, o Decreto nº
84.362, de 31 de dezembro de 1979, publicado no Diário Oficial da
União de 04 de janeiro de 1980. Surgia, em conseqüência, uma luz no
fim do túnel no combate à corrupção e às suas asseclas, como se
poderá concluir pelo que registrou Haziel, sinteticamente, em seu livro
‘Os sistemas de Controle Interno Federal, Estadual e Municipal’,
páginas 10/12:’ (p. 172-174)
64
2.2 As Secretarias de Controle Interno
O livro Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas contém a
constituição das Secretarias de Controle Interno, com a inovação criada no sistema:
‘Profunda modificação sofreu o Sistema de Controle
Interno, com a edição do Decreto nº 84.362, em 31 de dezembro de
1979, que dispôs sobre a estrutura do controle interno aplicável a
recursos de qualquer natureza, estabelecia novos instrumentos de
fiscalização e acompanhamento da despesa pública e dava outras
providências.
O novo sistema trazia várias inovações. As Inspetorias-
Gerais de Finanças passariam a denominar-se Secretarias de Controle
Interno, registrando-se, ainda, as seguintes modificações no âmbito
do controle interno:
a) O órgão central dos Sistemas de Administração
Financeira, Contabilidade e Auditoria, que era o
Ministério da Fazenda, passou a ser a Secretaria
Central de Controle Interno ― SECIN, subordinada
à então Secretaria de Planejamento da Presidência
da República ― SEPLAN/PR.
b) Com a inovação acima, dissociou-se o órgão
setorial que se encontrava na IGF do Ministério da
Fazenda. Assim, o Inspetor-Geral de Finanças do
Ministério da Fazenda deixou de acumular essas
funções, bem como a de Presidente da INGECOR ―
Comissão de Coordenação das Inspetorias-Gerais
de Finanças, órgão de deliberação dos Sistemas de
Administração Financeira, Contabilidade e Auditoria,
na qual tinham assento todos os Inspetores-Gerais
de Finanças dos Ministérios Civis e de órgãos de
competência equivalente às IGFs dos Ministérios
Militares, da Presidência da República e dos
Poderes Legislativo e Judiciário. Observa-se que um
mesmo servidor desempenhava três funções, não
lhe sobrando tempo, portanto, para exercê-las
eficientemente.
65
c) Em cada capital de Estado, foi criada uma
Delegacia Regional de Contabilidade e Finanças ―
DECOF, subordinada à SECIN, responsável pela
execução Orçamentária, Financeira e Patrimonial da
União, excetuando-se as DECOFs do Distrito
Federal, que eram subordinadas aos Secretários de
Controle Interno de cada Ministério.
d) Foram criadas 10 (dez) Delegacias Regionais de
Auditorias nas capitais dos principais Estados
(Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Minas
Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio
de Janeiro e São Paulo), tendo sido implementadas
apenas a do Distrito Federal e a do Rio de Janeiro.
e) Introduziu-se o Acompanhamento Físico e
Financeiro de Projetos e Atividades a cargo de
unidades subordinadas ao Ministério ou órgão,
inclusive os decorrentes de contratos, convênios, e,
sob qualquer forma, a aplicação, pelos órgãos da
administração e pelas entidades de administração
indireta ou descentralizada de recursos públicos.
f) A Comissão de Coordenação das Inspetorias-Gerais
de Finanças ― INGECOR passou, sob nova
composição e estrutura, a denominar-se Comissão
de Coordenação de Controle Interno ― INTERCON.
g) No âmbito das Secretarias de Controle Interno,
foram instituídas: Secretaria de Administração
Financeira, Secretaria de Contabilidade, Secretaria
de Processamento de Dados, Delegacia Regional de
Contabilidade e Finanças, apenas no DF, e uma
Divisão de Apoio Administrativo, em substituição à
estrutura anterior.
h) A estrutura básica da Secretaria Central de Controle
Interno, como órgão central normativo e
consolidador de resultados das atividades de
Administração Financeira, Contabilidade e Auditoria,
ficou assim constituída: Secretaria de Normas e
Desenvolvimento, Secretaria de Processamento de
Dados, Secretaria de Administração Financeira,
Secretaria de Contabilidade, Secretaria de
66
Auditoria, Delegacia Regional de Contabilidade e
Finanças, em todas as capitais de Estado, Delegacia
Regional de Auditoria, nas grandes capitais e no
Distrito Federal, e uma Divisão de Apoio
Administrativo.
i) Em conseqüência do que está dito na alínea ‘d’, a
auditoria passou a ser centralizada na
SECIN/SEPLAN/PR.’
A ex-SECIN/SEPLAN/PR, em decorrência das
determinações contidas no citado Decreto Nº 84.362/79, recebeu
auditores de vários Ministérios, profissionais desejosos de não verem
mais seus trabalhos mutilados pela independência conquistada com a
centralização da auditoria em um único órgão.
Dr. Fernando Oliveira foi nomeado Secretário Central
de Controle Interno, tendo Haziel sido designado Delegado Regional
de Auditoria no Distrito Federal. Seu sonho e os de seus colegas
começavam a se tornar realidade. O que se apurara de irregularidade,
em Brasília, e por este país afora, começou a incomodar [...]
[...] E o jornalista Alexandre Garcia, na Rádio
Manchete-FM, em seu programa ‘Cinco Minutos com Alexandre
Garcia’, em 17 de maio de 1983, fez, empolgado, a leitura do seu
comentário desse dia, sintetizando, brilhantemente, os benefícios que
adviriam com a criação e os trabalhos a serem desenvolvidos pelo
novo órgão, assim:
‘SECIN
A Revolução de 31 de março de 1964 foi feita para
afastar do nosso país o perigo de uma ditadura comunista e livrar o
Brasil da corrupção que grassava. Hoje, decorridos 19 anos, verifica-
se que os comunistas e totalitários em geral são uma minoria
desprestigiada e sob controle dos democratas. Já com a corrupção,
infelizmente, ela continua mostrando as garras.
Você, que é contribuinte do Imposto de Renda, às
vezes não sente raiva quando está recolhendo honestamente o seu
imposto, ao saber de algum caso de má aplicação do dinheiro
público? O chamado dinheiro público não é um dinheiro sem dono.
67
Pode imprimir dinheiro, mas não cria o recurso, a riqueza. Toma o
dinheiro do contribuinte para aplicá-lo em obras de interesse público.
Certamente vocês perguntarão como o governo
controla a correta aplicação do dinheiro que é de todos. Pois saiba
que existe um órgão, recém-instalado, que já começou sua árdua e
difícil tarefa de investigar como o dinheiro do povo está sendo
aplicado. Chama-se Secretaria Central de Controle Interno e está
vinculado à Secretaria de Planejamento da Presidência da República.
Esse órgão tem todo o apoio do Presidente Figueiredo, para controlar
a correta aplicação do dinheiro de todos e para apurar as
irregularidades.
Falo isso agora porque quero pedir a vocês um grande
apoio para esse órgão. É a Secretaria Central de Controle Interno que
tem, hoje, a incumbência de completar a outra metade da tarefa da
revolução de 1964: combater a corrupção.
A Secretaria Central de Controle Interno vai ser o diabo
diante dos corruptos e corruptores. Mas é um anjo para nós,
contribuintes, e povo em geral. Por isso, ela vai precisar muito do
nosso apoio. Ela precisa sentir que há o povo em suas costas, a
estimular o seu difícil trabalho. Quando algum figurão tentar
pressioná-la a afastar-se de alguma investigação, o figurão precisa
saber que os eleitores e contribuintes estão aplaudindo e apoiando o
trabalho dos homens da Secretaria Central de Controle Interno.
(Guardem bem esse nome).
Quando o dono de algum feudo político resolver
protestar contra a ação da Secretaria Central de Controle Interno,
esse dono de feudo político precisa saber que os eleitores de sua
região estão conscientes de que o trabalho da Secretaria vai fazer
diminuir as despesas públicas. E os contribuintes vão saber que,
diminuindo as despesas públicas, não vai ser preciso aumentar os
impostos.
A Secretaria Central está sediada em Brasília e presente
em todos os Estados. Está presente também em toda a administração
direta do Governo Federal, e deverá acompanhar a aplicação das
verbas federais pelos Estados e Municípios que estiverem se
beneficiando com elas. E está começando a entrar nas empresas
públicas e autarquias federais.
Os homens da Secretaria Central do Controle Interno
não são apenas os nossos fiscais na aplicação do nosso dinheiro. São
68
também os que se sacrificam e se sacrificarão para que os corruptos
sintam que as coisas não estão fáceis para eles e que suas defesas
serão insuficientes. Essa é uma Revolução feita por uns poucos, que
precisa ter o apoio de todos os brasileiros. BOM DIA.’ (p. 175-179)
2.3 Mudança funesta
Eis o que registrou, ainda, Daniel no mesmo livro Bandeira Contra
a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas:
‘E a luz surgida no fim do túnel, que avançava firme,
mas vagarosamente, de repente, não mais que de repente, foi
apagada. O sonho de Haziel e de seus colegas fora mesmo um
pesadelo, e as palavras do jornalista Alexandre Garcia foram jogadas
no vácuo. Decepção geral para os que tanto lutaram. Pois não é que
as auditorias voltaram a ser descentralizadas, isto é, cabendo os
trabalhos aos servidores dos respectivos Ministérios, cujos Secretários
de Controle Interno estavam subordinados aos próprios ministros?
[...]
[...] Logo no primeiro dia do Governo Sarney, eis que é
expedido o Decreto nº 91.150, em 15/03/85, retirando da ex-
SEPLAN/PR o órgão central do Sistema de Controle Interno,
passando-o, novamente, para o Ministério da Fazenda. Quase um ano
depois, em 10/3/86, foi criada, no Ministério da Fazenda, a Secretaria
do Tesouro Nacional (STN) ― Decreto nº 92.452 ― extinguindo a
Secretaria Central de Controle Interno, e aquela Secretaria passou a
ser o órgão central dos sistemas mencionados. Como conseqüência,
também, desse diploma legal, as auditorias foram novamente
descentralizadas, cabendo, portanto, às Secretarias de Controle
Interno dos Ministérios o exame de contas dos dirigentes da
Administração Federal Direta e Indireta.’ (p. 179)
69
2.4 Reinício da luta
E continuando suas batalhas contra a nocividade da corrupção,
está também registrado no livro Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs
Siamesas:
‘Mas Haziel não se conformou e reiniciou sua luta. Em
29 de outubro de 1990, foi entrevistado pela TV Brasília, no programa
Telemanhã, vaticinando, mais uma vez, os graves escândalos que
ainda apareceriam, em decorrência da modalidade na fiscalização da
aplicação dos recursos públicos. Sua profecia foi além do que
pensara, pois, infelizmente, houve até o impedimento, pela primeira
vez, de um Presidente da República.
Mesmo aconselhado por colegas do perigo de um
Boeing cair na sua cabeça, Haziel aceitou convite para realizar, pela
segunda vez, palestra no auditório do Tribunal de Contas da União, ao
ensejo do ‘I Encontro de Dirigentes de Controle Interno ― I
ENDICON’. Ali compareceu e, no dia 11 de março de 1993,
pronunciou a seguinte palestra:
‘A Revisão Constitucional e o Controle Interno
Não só a corrupção mas também, e principalmente, a
má aplicação e o desperdício dos recursos públicos vêm
empobrecendo, sobremaneira, este País. Urge a adoção de medidas
enérgicas e urgentes, embora tardias, para se pôr fim a esses males.
Desde agosto de 1976, quando entreguei ao então
Deputado Francelino Pereira, na presidência da extinta ARENA,
minuta de projeto para a criação de uma Secretaria Nacional de
Auditoria ― SENAUD ― subordinada à Presidência da República, que
luto pelo fortalecimento do Sistema de Controle Interno Federal,
responsável pela fiscalização da aplicação de todos os recursos
públicos.
Ao ensejo do I SEMINÁRIO SOBRE AUDITORIA FISCAL
PREVENTIVA, PÚBLICA E PRIVADA, realizado em Brasília, no período
de 02 a 05 de maio de 1978, sob os auspícios da Ordem dos
Auditores Independentes do Brasil e da Associação Comercial do
Distrito Federal, voltei a insistir na criação daquela Secretaria,
70
mostrando a dependência do controle interno, a subordinação do seu
Secretário (à época Inspetor-Geral de Finanças) e o verdadeiro
massacre que sofriam os auditores. Estes, os reais responsáveis pelo
cumprimento das leis, recebiam toda ordem de pressão na hora de
emitirem os certificados de auditoria. O ex-Inspetor de Finanças, sem
nenhum compromisso com o sistema, ditava os caminhos que bem
lhe interessavam, desde que não fosse apontada nenhuma
irregularidade.
Em novembro de 1978, uma equipe foi formada, sob a
liderança do Cel. Nelson Barcelos da Veiga Filho, Inspetor-Geral de
Finanças do ex-SNI, composta pelas seguintes pessoas: Darcy Blanco
Garcia, TC ― Chefe da SOF/SAD/SNI ― Gerardo Gama ― Diretor da
Divisão de Auditoria da IGF-MA ― Joaquim Gonçalo de Almeida ―
Auditor do DENATRAN/RJ ― Rubens de Oliveira Lima ― Consultor
Jurídico da Presidência do TCU ― e por mim.
Após exaustivos dias de trabalho, conseguimos elaborar
um documento, a que denominamos PROJETO VERAMA. Nele
estavam inseridos não só os meus pronunciamentos como também os
de eminentes Ministros do TCU ― Wagner Estelita Campos, Gilberto
Pessoa, Batista Ramos e Mauro Renault Leite ― que, desde 1978,
também alertavam os dirigentes federais para a deficiência do
controle interno e primavam pela sua subordinação à Presidência da
República.
O PROJETO VERAMA deu origem ao Decreto nº 84.362,
de 31/12/79, retirando do Ministério da Fazenda o órgão central, e
criou a Secretaria Central de Controle Interno, subordinada à ex-
SEPLAN/PR. Dentre as várias modificações no Sistema de Controle
Interno, cite-se a centralização da Auditoria naquela Secretaria
Central, a criação de dez Delegacias Regionais da Auditoria nas
capitais dos principais Estados e Delegacias Regionais de
Contabilidade e Finanças, em cada capital. A partir dessa data, as
Inspetorias-Gerais de Finanças passaram a denominar-se Secretarias
de Controle Interno ― CISETs.
Logo no primeiro dia do Governo Sarney, eis que é
expedido o Decreto nº 91.150, em 15/03/85 retirando da ex-
SEPLAN/PR o órgão central do Sistema de Controle Interno,
passando-o, novamente, para o Ministério da Fazenda. Quase um ano
71
depois, em 10/03/86, foi criada, no Ministério da Fazenda, a
Secretaria do Tesouro Nacional (STN) ― Decreto nº 92.452 ―
extinguindo a Secretaria Central de Controle Interno, e aquela
secretaria passou a ser o órgão central dos sistemas mencionados.
Como conseqüência, também, desse diploma legal, as auditorias
foram novamente descentralizadas, cabendo, portanto, às Secretarias
de Controle Interno dos Ministérios o exame de contas dos dirigentes
da Administração Federal Direta e Indireta.
Em 29 de outubro de 1990, fui entrevistado pela TV
Brasília, no programa TELEMANHÃ, no qual antevi as dificuldades que
o País atravessaria, caso não fortalecesse o Sistema de Controle
Interno.
Em palestra realizada neste auditório, em 29 de
novembro de 1990, a convite da UNITEC ― União Nacional dos
Analistas de Finanças e Controle Externo ― apontei as deficiências do
controle interno, os males que daí poderiam advir e as providências
que poderiam ser adotadas, com vistas a se colocar um ponto final
nas denúncias que a todo momento surgiam.
Ainda em 1990, lancei um livro intitulado ‘OS SISTEMAS
DE CONTROLE INTERNO FEDERAL, ESTADUAL E MUNICIPAL’, em que
narrava a fraqueza do controle interno e as dificuldades dos auditores
para bem cumprirem sua missão, estando registrado à página 48:
‘Embora muito bem estruturado, e mesmo com o
prestígio que as Constituições lhe vêm atribuindo, a verdade é que, na
prática, o Sistema de Controle Interno não funciona, seja para dar
combate à corrupção, seja para evitar a má aplicação ou o
desperdício dos recursos públicos, males esses tão ou mais graves do
que a corrupção.
O fracasso do Sistema de Controle Interno no Poder
Executivo Federal, embora criado para dar eficácia ao controle
externo, a cargo do Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de
Contas da União, deve-se, principalmente, aos seguintes fatores:
a) Necessidade de criação de uma Secretaria Nacional
de Controle Interno diretamente subordinada à
Presidência da República, na qualidade de órgão
central;
b) indicação dos Secretários de Controle Interno,
servidores pertencentes à Carreira de Finanças e
72
Controle, pelo Secretário de Controle Interno, e
nomeação do Presidente da República;
c) implantação do Acompanhamento Físico-Financeiro
dos Projetos e Atividades, a cargo do Governo
Federal;
d) criação de Delegacias Regionais de Auditoria nas
capitais dos Estados.
Contento-me em registrar que estão engajados na
luta para reformulação do controle interno o próprio Governo Federal,
com o envio de projeto ao Congresso Nacional; o TCU, seus ministros
e funcionários, especialmente o Presidente da Casa, Ministro Carlos
Átila, que, segundo noticia a imprensa, já alertou o Presidente Itamar
Franco, em correspondência reservada, sobre o estado de
desorganização do sistema; o Senador Pedro Simon, que propôs a
criação de uma Secretaria Federal de Controle Interno, subordinada à
Presidência da República; o Deputado Jackson Barreto, que sugeriu a
criação da Auditoria Geral da República, também subordinada à
Presidência da República; a UNACON ― União Nacional dos Analistas
e Técnicos de Finanças e Controle; o SINATEFIC ― Sindicato Nacional
dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle, no incansável
trabalho de bastidores, e os abnegados auditores, que,
anonimamente, esforçam-se também pelo revigoramento do controle
interno.
Todavia, senhores, mudei de opinião. Isso se deve
aos últimos acontecimentos, que abalaram esta Nação, com o
impedimento de um Presidente da República. Mudei de opinião,
porque adotei a filosofia de Pascal, que sabiamente nos ensina: ‘Não
me envergonho de mudar de opinião, porque não me envergonho de
pensar’.
Hoje penso em um órgão ainda mais forte,
totalmente isento de pressões, partam de onde partir. Um órgão
imparcial, nos moldes de um Ministério Público, não só para fiscalizar
a aplicação dos recursos públicos na área federal mas também no das
esferas estadual e municipal.
A preocupação, entendo, não deve ser apenas com os
recursos federais. Os Estados e Municípios também devem ser
fiscalizados, com o mesmo vigor e disposição que na área federal.
Toda vez que há mudanças de governantes, são noticiados os estados
73
calamitosos em que ficam os cofres públicos. Recentemente, tivemos
exemplos vergonhosos em vários Municípios, não se tendo
conhecimento de punição de ex-dirigentes responsáveis.
Não há necessidade, contudo, de retirar-se as CISETs
da estrutura dos Ministérios, deixando os ministros sem condições de
exercem a supervisão ministerial nos órgãos e entidades
subordinados. Basta tão-somente trazer a auditoria dos Ministérios
para o novo órgão, dando-se aos auditores total independência para
poderem relatar o que de fato viram e apuraram, respeitado assim o
disposto no artigo 74, IV, da Constituição Federal ― ‘apoiar o controle
externo no exercício de sua missão institucional’.
A par da criação desse novo organismo, que seja
elaborado um ‘Código Nacional Anticorrupção’, tipo Código Penal, para
que não haja modificação na legislação, ao sabor das conveniências e
interesses dos governantes, dificultando, sobremaneira, a fiscalização,
pela necessidade de se consultar um verdadeiro cipoal de leis,
decretos, portarias, resoluções, etc. Obviamente, não pode ser um
órgão anômico.
Que na revisão constitucional que se aproxima, além
desse novo órgão ― uma verdadeira revolução em termos de
fiscalização dos recursos públicos ― não se apressem os legisladores
em aprovar dispositivos que não sejam respeitados, como o artigo 74,
determinando que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário
manterão, de forma integrada, sistema de controle interno. Essa
‘forma integrada’ não saiu do papel. Ou como prevê o parágrafo
primeiro desse mesmo artigo 74, em que ‘os responsáveis pelo
controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer
irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas
da União, sob pena de responsabilidade solidária’.
Para ilustrar o desrespeito a essa obrigatoriedade
constitucional, cito dois exemplos: o dos elevados salários dos
dirigentes das estatais e o que nos dá conta o CORREIO BRAZILIENSE
do dia 22 de fevereiro último, noticiando irregularidades que deixaram
de ser apuradas pela Secretaria de Controle Interno do Ministério da
Cultura por ordem do Secretário-Executivo. Aliás, nesse último caso,
está a confirmação do que disse naquele livro de minha autoria.’
O leitor, certamente atento à leitura desta obra, notou
que Haziel fez, nessa palestra, um retrospecto de sua luta, do
74
considerável número de autoridades, de pessoas e até mesmo da
imprensa que se engajaram no combate à persistente corrupção e
suas irmãs siamesas, responsáveis pelo empobrecimento do País e
pelo sofrimento das classes menos favorecidas.
A profundidade das novas idéias de Haziel, servindo-se,
para isso, do filósofo Pascal, deve merecer, a par das medidas
lançadas pelo Governo, profundas reflexões. Porque, somente um
órgão forte, isento de pressões, partam de onde partirem, poderá
atenuar, consideravelmente, a horripilante corrupção e a nocividade
de suas irmãs siamesas, com o desperdício e a má aplicação dos
recursos públicos.’ (p. 179-185)
2.5 No Ministério da Agricultura
Voltemos aos idos de 1º de setembro de 1978, quando Daniel foi
admitido pela extinta Cobal ― Cia Brasileira de Alimentos ― e colocado à
disposição do Ministério da Agricultura, tendo ido trabalhar na Divisão de
Auditoria do mesmo Ministério.
Terminada a redação do Projeto Verama, Daniel reiniciou as
viagens pelo Brasil, auditando as contas dos órgãos e das entidades
subordinados ao Ministério da Agricultura. Em 15 de março de 1979, o Dr.
Fernando de Oliveira assumiu o cargo de inspetor-geral de Finanças do referido
Ministério. Cinco meses depois, em agosto de 1979, passou ele a exercer o
mesmo cargo na Secretaria de Planejamento da Presidência da República ―
SEPLAN/PR, sempre acompanhando o então ministro Delfim Netto, já agora
titular dessa pasta.
Para substituí-lo no Ministério da Agricultura, cujo titular passara a
ser o Dr. Amaury Stábile, assumiu o cargo de inspetor-geral de Finanças a Drª
Lucy de Andrade Moraes, vinda da Secretaria de Contabilidade da IGF do
Ministério da Fazenda.
75
2.5.1 Cargos exercidos
Daniel continuava o seu trabalho. De repente, começaram as
fofocas na Divisão de Auditoria. Sentindo-se incomodado, foi ao gabinete do
ministro oferecer seus préstimos. Ao retornar à IGF, foi chamado pela Drª Lucy.
Ela lhe disse que haviam telefonado, determinando que ele fosse colocado à
disposição do referido gabinete. Insistiu com Daniel, perguntando-lhe o motivo
de tal decisão. Daniel, então, contou-lhe o que estava ocorrendo. Ao terminar,
a Drª Lucy anunciou:
― Tenho um cargo de assessor para ser preenchido. Você aceita?
Daniel ficou atordoado. Jamais vira em sua vida funcional tanta
generosidade. Um cargo de assessor do inspetor-geral de Finanças? Voltando a
si, Daniel aceitou. Só não beijou a mão da Drª Lucy porque não tinha, ainda,
intimidade para tanto. Mas agradeceu, e viu na face dela um verdadeiro anjo.
Foram seis meses de contatos diários, e ficaram tão íntimos que até brincavam:
“Na próxima encarnação, vamos voltar de sexos trocados e nos casar.”
Passados alguns meses, o diretor da Divisão de Auditoria, Gerardo
Antônio Monteiro de Paiva Gama, teve de retornar ao seu órgão de origem. E,
novamente, num gesto magnânimo, a Drª Lucy convidou Daniel para ser o
novo diretor da citada Divisão, cargo que exerceu de 25 de janeiro de 1980 a 2
de junho de 1982.
2.6 Na Secretaria de Planejamento da Presidência da República
Daniel deixou a Divisão de Auditoria do Ministério da Agricultura
para trabalhar, a partir do dia 3 de junho de 1982, na Secretaria Central de
Controle Interno, órgão da Secretaria de Planejamento da Presidência da
República.
76
2.6.1 Cargos exercidos
Na Secretaria de Auditoria da SECIN/SEPLAN/PR, Daniel exerceu,
até o dia 10 de março de 1983, o cargo de coordenador de Auditoria de
Programas.
A partir de então, foi nomeado delegado regional de Auditoria no
Distrito Federal. Ressalte-se, mais uma vez, que o DF ficou com jurisdição em
todo o território nacional, até que fossem instaladas as demais Delegacias de
Auditoria, à exceção da do Rio de Janeiro, já criada.
Com a independência dos auditores, porque subordinados agora à
Delegacia Regional de Auditoria no Distrito Federal e não mais aos secretários
de Controle Interno dos respectivos Ministérios, foram descobertos e relatados
casos de extrema gravidade. O mais sério deles, apenas para citar um, foi o
caso da farra do uísque ou a adega do poder, que será narrado por Dr.
Fernando de Oliveira, no Capítulo VI desta obra, no conteúdo da carta que ele
enviou a Daniel, sob o título A SOCIEDADE ETILISTA DE BRASÍLIA.
2.7 Novamente no Ministério da Agricultura
O telefone tocou, Daniel atendeu. Era o Dr. Fernando de Oliveira,
chamando-o ao seu gabinete. Ao entrar, Daniel viu a Drª Lucy. Ficou admirado.
Ao abraçá-la, ela lhe disse:
― Vim aqui falar com o Dr. Fernando para liberá-lo a fim de que
você seja nomeado secretário de Controle Interno do Ministério da Agricultura.
Daniel ficou atônito. Secretário de Controle Interno do Ministério
da Agricultura? Cargo disputadíssimo, com carro chapa de bronze, salário alto,
DAS-101.5, subordinado diretamente ao ministro? Era prestígio demais para um
cabra da peste.
77
2.7.1 Cargo exercido
O Dr. Fernando relutou, mas concordou. Daniel foi nomeado no
dia 16 de janeiro de 1984 e empossado nesse mesmo dia. Houve discursos de
parte do ministro Amaury Stábile e da Drª Lucy, finalizando com as palavras de
agradecimento de Daniel.
A Drª Lucy, anjo protetor de Daniel, ao se despedir, confessou-
lhe:
― Eu nunca agi incorretamente com qualquer pessoa, muito
menos com subordinado. As informações que tinha a seu respeito eram
descabidas. Para conferi-las, comecei nomeando-o meu assessor e, depois,
diretor da Divisão de Auditoria. Quanta injustiça você sofreu! E brincando,
recordou:
― Ficamos então combinados: na próxima encarnação, viremos
de sexos trocados e nos casaremos... Risos dos dois.
Ainda hoje, decorridos mais de vinte e cinco anos, todas as noites
Daniel lembra-se, em suas orações, da Drª Lucy de Andrade Moraes, pessoa
digna de reconhecimento por todos os que com ela trabalharam.
Em 15 de março de 1985, assumiu a Presidência da República o
senhor José Sarney, nomeando Pedro Simon ministro da Agricultura. Poucos
dias depois, entrou no gabinete de Daniel um senhor, dizendo-lhe que tinha
vindo assumir o cargo de secretário de Controle Interno. Daniel perguntou-lhe:
― A sua portaria de nomeação já foi publicada no Diário Oficial da
União?
― Ainda não, respondeu-lhe.
― Pois só deixarei o cargo depois da publicação.
E admitiu:
― Não devo entregar um cargo sem documento oficial. Se a sua
nomeação demorar, a responsabilidade por qualquer ato será minha.
O senhor deixou a Secretaria de Controle Interno irritado. Não
demorou nem 10 minutos e Daniel foi chamado ao gabinete do ministro. Ali foi
atendido por um assessor do secretário-geral, que também quis impor a Daniel
78
a entrega do cargo sem a publicação da portaria. Daniel recusou, informando-
lhe que ia aguardar a publicação do ato, e retirou-se, decepcionado. O
secretário de Controle Interno era diretamente subordinado ao ministro, no
caso, ao senhor Pedro Simon, e este não se dignara sequer a falar com Daniel
para saber como estavam se portando os órgãos e as entidades do Ministério
da Agricultura no que dizia respeito às auditorias.
Enfim, no dia 10 de abril de 1985, eis que foi publicada a portaria
destituindo Daniel do cargo de secretário de Controle Interno do Ministério da
Agricultura e nomeando seu substituto.
A rádio corredor comentava que havia ordem do gabinete do
ministro para demitir Daniel assim ele que retornasse à Cobal, em represália
por ter sido um dos autores do Projeto Verama. A dispensa seria sem justa
causa, recebendo Daniel o FGTS e a multa de 40% incidente sobre o saldo. E
ainda perderia o apartamento funcional.
Daniel, temeroso, apresentou-se à Cobal. E pensava: “Depois de
tantos e inestimáveis serviços prestados ao governo nos relevantes cargos que
exercera, mercê de esforço pessoal, o reconhecimento seria um chute no
traseiro?”
Ao ser recebido pelo chefe do Setor de Auditoria da Cobal,
Raimundo Nonato dos Santos, este pediu a Daniel:
― Aguarde um pouco. Sente-se ali e espere.
Em seguida, chamou todos os funcionários da Auditoria e saiu,
com eles, da sala. Demoraram cerca de meia hora. Ao retornar, dirigiu-se a
Daniel:
― Fomos até a sala do presidente do Conselho de Administração
para solicitar-lhe nossas dispensas, caso persistisse a ordem de demiti-lo. Seria
uma atitude desumana e injustificável. Você sempre foi um ótimo colega,
jamais procedeu incorretamente, e nós não iríamos pactuar com essa decisão
absurda. O presidente do Conselho ligou para o gabinete do ministro, que
desfez a ordem. Agora, vamos trabalhar.
Daniel ficou perplexo. E refletia: só fizera o bem ao país, e esse
era o pagamento que recebia de um governo que assumira pós-
79
democratização? Se jamais participara de qualquer ação que ferisse o direito de
pessoas, fosse durante o regime militar, fosse em algum outro movimento, por
que a paga tão mesquinha?
2.8 No Serviço Nacional de Informações
Daniel não se conformava com a injustiça que sofrera. Começara
a fazer auditorias nos supermercados da Cobal, em várias cidades do interior de
Goiás e de Minas Gerais. Dormia em pensões humildes, em vagas de quartos
com três pessoas. Não via futuro. Por isso, procurou o coronel Nelson Barcelos
da Veiga Filho, secretário de Controle Interno do Serviço Nacional de
Informações (SNI), pedindo-lhe que o requisitasse a fim de poder servir nesse
órgão. O Cel. atendeu sua solicitação.
Durou cerca de seis meses o período entre o início do pedido da
requisição e a data de sua concretização. A vida de Daniel foi vasculhada de fio
a pavio, até que chegou o dia da entrevista, a última fase dos testes do
processo requisitório. Daniel foi chamado à Escola Nacional de Informação
(ESNI) e colocado em uma sala. De repente, diante dele, apareceram dois
armários, cada um mais parrudo que o outro. Mandaram Daniel sentar-se em
uma cadeira e ocuparam outras duas, em volta de mesa redonda. Fizeram-lhe
uma série de perguntas. Todas foram respondidas. Para finalizar, indagaram:
― O que o senhor acha dos comunistas?
― Onde?, perguntou Daniel.
― Ora, aqui no Brasil, responderam.
― No Brasil não há comunistas. Há oportunistas. Vejam se eles
trocam um prato de caviar por um de farinha com rapadura? Se eles tiverem
duas casas, dão uma para quem precisa de moradia?, respondeu Daniel.
― O senhor está aprovado, concluíram.
80
2.8.1 Cargos exercidos
Daniel foi requisitado e passou a prestar serviços ao SNI, a partir
de 21 de novembro de 1986. Foi nomeado, a começar dessa data, como chefe
da Seção de Administração Financeira. E, a partir de 1º de janeiro de 1989, foi
designado subsecretário de Auditoria, cargo que exerceu até 16 de novembro
do mesmo ano.
2.9 Na Fundação Visconde de Cabo Frio
Depois de deixar o Serviço Nacional de Informações (SNI), Daniel
foi convidado a trabalhar na Fundação Visconde de Cabo Frio, entidade dos
servidores do Ministério das Relações Exteriores.
2.9.1 Cargo exercido
Aceitando o convite, Daniel foi nomeado para exercer o cargo de
diretor administrativo e financeiro, a partir de 21 de fevereiro de 1990.
Trabalhou na Fundação por mais de dez anos, dela tendo sido dispensado em
18 de setembro de 2000. Acusado de mau administrador por não ter
contribuído para superar os problemas que enfrentava a Fundação, não
evitando o prosseguimento da redução do patrimônio da entidade, foi
dispensado por justa causa.
Referida acusação foi montada com base em três fatos:
1. empréstimos tomados à Fundação como diretor;
2. não recolhimento relativo ao FGTS dos funcionários da
Fundação e
3. não pagamento de multa pela concessão de férias, no prazo
legal, a si e a funcionários da Fundação.
81
É de se esclarecer que, no primeiro caso, as contas haviam sido
aprovadas pelos Conselhos Fiscal e de Administração da entidade. No segundo
e no terceiro casos, foram atendidas as determinações do Conselho de
Administração. Todos os fatos estavam registrados em atas desse Conselho,
referendadas pela Promotoria de Tutela das Fundações e Entidades de
Interesse Social do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
Por considerar injusta a acusação, Daniel ingressou na Justiça do
Trabalho ― Processo nº 17-1197/2000 ―, reivindicando o que lhe era devido.
Depois de quase dois anos de luta, seus direitos foram reconhecidos pelo
Tribunal Superior do Trabalho (TST). Recebeu ele, então, a devida indenização,
por ter sido julgada improcedente a culpa que lhe fora atribuída.
O despacho do ministro Ives Gandra Martins Filho, dando razão a
Daniel, foi publicado no Diário da Justiça, de 9 de maio de 2002, Seção I, p.
381:
‘Proc. NºTST – Airr-20438-2002-900-10-00-3
AGRAVANTE: FUNDAÇÃO VISCONDE DE CABO FRIO
Advogado: Dr. Heráclito Zanoni Pereira
AGRAVADO: JOSÉ DANIEL DE ALENCAR
Advogado: Dr. João Duarte Moreira
DESPACHO
A Presidência do 10º Regional trancou a revista
interposta pela Reclamada, com supedâneo nas Súmulas nos 126,
196,e 297 do TST (fls. 329-330).
Inconformada, a Reclamada veicula o presente
agravo de instrumento, sustentando que foram demonstradas, nas
razões do recurso de revista, violações legais e constitucionais, bem
como divergência jurisprudencial (fls. 322-338).
Contraminutado o agravo (fls. 398-408), sendo
dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do
Trabalho, em face da Resolução Administrativa nº 322/96.
O recurso é tempestivo (fls. 331-332), regular a
representação (fl.48) e foi processado nos autos principais.
No que tange à justa causa decorrente de suposto
ato de improbidade administrativa, o Tribunal de origem foi claro
ao consignar que os empréstimos feitos pelo Autor, ainda que para si
82
mesmo, não configuram justa causa, se as contas da instituição foram
aprovadas tanto pelo conselho fiscal quanto PELA ADMINISTRAÇÃO.
Consignou, ainda, que à época da concessão dos
empréstimos, o Reclamante não sofreu nenhuma sansão, o que
configura perdão tácito da Reclamada.
Por último, o Tribunal a quo afirmou que os
empréstimos foram quitados, não causando nenhum prejuízo para
a Reclamada.
A demanda, no particular, restringe-se a determinar se
os empréstimos que o Reclamante efetuou para si mesmo, como
diretor da Reclamada, configura ou não ato de improbidade
administrativa, suficiente para ensejar sua demissão por justa CAUSA.
A matéria é de cunho nitidamente
interpretativo, porquanto nem o art. 37, caput, da Constituição
Federal, que se limita a elencar os princípios básicos a serem
obedecidos pela administração pública, nem o art. 482, ‘a’, da CLT,
que consigna que o ato de improbidade pode amparar a demissão por
justa causa, apontados como violados pela Reclamada, disciplina
expressamente a vertente abordada nos autos em que o Reclamante
se concedeu empréstimos que foram posteriormente pagos e,
ainda, que as contas referentes à sua gestão foram aprovadas
tanto pelo conselho fiscal quanto pela administração.
Assim sendo, a matéria só pode ser combatida por
intermédio de demonstração de dissenso pretoriano, ônus do qual
não se desincumbiu a Reclamada, visto que o único aresto
colacionado desserve ao fim colimado por ser inespecífico, já que
parte da premissa de que o Reclamante se apropriou indevidamente
de numerários da Reclamada.O Recurso encontra óbice na Súmula
nº 296 do TST.
Quanto à alegação de que são indevidos o recolhimento
referente ao FGTS e à multa por não-concessão de féria no
prazo legal, porque foi o próprio Reclamante que, como diretor, não
concedeu as férias e não fez o correto recolhimento do FGTS, também
não prospera o recurso, uma vez que o Tribunal, a quo foi claro no
sentido de que a mora em honrar tais compromissos decorreu do fato
de que a Reclamada não dispunha de recursos suficientes e não da
má gestão do Reclamante. Cabe ressaltar que, segundo afirmou o
Tribunal a quo, a administração anterior já decidira que, em tais
casos, seria melhor acumular as férias.
83
Ora, não ficando configurada que a má gestão do
Reclamante acarretou o atraso na concessão das férias e no
recolhimento dos valores destinados ao FGTS, não há como
vislumbrar violação dos arts.159 e 1.058 do CCB e 5º,II, da
CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Por outro lado, a verificação de má gestão por parte do
Reclamante exigiria o revolvimento de fatos e provas, procedimento
vedado em sede de recurso de revista pela Súmula nº 126 do TST.
Diante do exposto, com lastro no arts. 896,§ 5º, da
CLT e 557, caput, do CPC, denego seguimento ao agravo de
instrumento, em face do óbice da Súmula nº 126 e 296 do TST.
Publique-se.
Brasília, 29 de abril de 2002.
IVES GANDRA MARTINS FILHO
Ministro-Relator’
Com esse episódio, Daniel lembrou-se de um dos sábios conselhos
de seu pai quando recomendava aos filhos que andassem sempre direito e
cumprissem seus deveres:
― Só assim, quando uma pessoa der um grito em um de vocês,
vocês dão dois nela.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO I
1. O SISTEMA DE CONTROLE INTERNO NO PODER EXECUTIVO
FEDERAL PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988
Está relatada no subtítulo 2.3, Mudança funesta, a transformação
ocorrida no sistema de controle interno, no início da gestão do governo José
Sarney, em 1985. Os servidores que fiscalizavam a aplicação de recursos
públicos, na época, eram denominados auditores, mas com a edição do
84
Decreto-lei nº 2.346, de 23 de julho de 1987, regulamentado pelo Decreto nº
95.076, de 22 de novembro de 1987, foi criada, no âmbito do Ministério da
Fazenda, a carreira de Finanças e Controle, composta dos cargos de técnico de
Finanças e Controle, nível médio, e de analista de Finanças e Controle, nível
superior.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o sistema
de controle interno continuou subordinado ao Ministério da Fazenda.
Em 1994, o presidente Itamar Franco assinou a Medida Provisória
(MP) nº 480, de 27 de abril de 1994, que criou a Secretaria Federal de Controle
Interno. Essa Medida foi reeditada até a de nº 2.112-88, de 26 de janeiro de
2001, tendo sido convertida na Lei nº 10.180, de 6 de fevereiro de 2001,
assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, portanto, mais de sete
anos depois da primeira edição da MP.
A referida Lei determinava como integrantes do sistema a
Secretaria Federal de Controle Interno, como órgão central, subordinada ao
Ministério da Fazenda, e as Secretarias de Controle Interno dos Ministérios da
Defesa e das Relações Exteriores, a Advocacia-Geral da União e a Casa Civil,
como órgãos setoriais. Determinava ainda que o controle interno da Casa Civil
abrangia, como área de atuação, todos os órgãos integrantes da Presidência e
da Vice-Presidência da República, além de outros determinados em legislação
específica. Instituiu a mencionada Lei a Comissão de Coordenação de Controle
Interno, órgão colegiado de coordenação do sistema, com o objetivo de
promover a integração e de homogeneizar entendimentos dos respectivos
órgãos e unidades.
Foi criada no governo Fernando Henrique Cardoso pela Medida
Provisória nº 2.143-31, de 2 de abril de 2001, no âmbito da Presidência da
República, a Corregedoria-Geral da União. E novas alterações se sucederam no
âmbito do controle interno, com a edição do Decreto nº 4.113, de 5 de
fevereiro de 2002, que transferiu a Secretaria Federal de Controle Interno para
a Casa Civil da Presidência da República e, posteriormente, com o Decreto nº
4.177, de 28 de março de 2002, para a Corregedoria-Geral da União, também
da Presidência da República.
85
Em 8 de maio de 2002, a Medida Provisória nº 37 transformou,
em seu artigo 3º, a Corregedoria em Controladoria-Geral da União (CGU), e o
cargo de ministro de Estado corregedor-geral da União em ministro de Estado
chefe da Controladoria-Geral da União.
A Medida Provisória nº 37/2001 foi convertida na Lei nº 10.539,
de 23 de setembro de 2002, retirando os artigos que transformavam a
Corregedoria em Controladoria-Geral da União. Com essa providência, então,
ficaram revogados dispositivos dos Decretos nos 3.591, de 6 de setembro de
2000, e 4.304, de 5 de fevereiro de 2002, que alteravam tal denominação.
A Controladoria-Geral da União foi recriada no início do governo
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a assinatura da Medida Provisória
nº 103, de 1º de janeiro de 2003. Convertida na Lei nº 10.683, de 28 de maio
de 2003, o artigo 31, inciso III, transforma a Corregedoria em Controladoria-
Geral da União e o artigo 1º, parágrafo 3º, inciso I, considera a Controladoria-
Geral da União como órgão integrante da Presidência da República.
O Decreto nº 4.785, de 21 de julho de 2003, que aprovou a
estrutura regimental dessa Controladoria, foi revogado pelo Decreto nº 5.683,
de 24 de janeiro de 2006. O Decreto nº 4.923, de 18 de dezembro de 2003,
regulamentou as disposições contidas nos parágrafos 1º e 2º do artigo 17 da
Lei anteriormente citada.
Por fim, em 2005, mediante o Decreto nº 5.480, de 30 de junho
de 2005, são organizadas, sob a forma de sistema, as atividades de correição
do Poder Executivo federal a fim de promover sua coordenação e
harmonização. A Controladoria-Geral da União integra o referido sistema de
correição como órgão central, consoante o disposto no inciso I do artigo 2º do
mencionado Decreto.
E nova Lei, nº 11.204, de 2005, estabeleceu a estrutura básica da
Controladoria e a denominação do seu titular como ministro de Estado do
Controle e da Transparência.
Atualmente, no Poder Executivo federal, o sistema de controle
interno é exercido pela Controladoria-Geral da União como órgão central do
sistema, tendo como órgãos setoriais as Secretarias de Controle Interno dos
86
Ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, a Advocacia-Geral da União e a
Casa Civil.
CAPÍTULO II
2. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO
Daniel acompanhava pela mídia os casos de corrupção, quando
uma notícia chamou-lhe a atenção: o Brasil promulgara a Convenção da
Organização das Nações Unidas (ONU) para combater a corrupção.
Foi buscar, então, o teor da histórica Convenção no Decreto nº
5.687, de 31 de janeiro de 2006, publicado no Diário Oficial da União ― Seção
1, de 1º/2/2006, com a seguinte ementa:
‘Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,
adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro
de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003.’
A Convenção, que entrou em vigor internacional em 14 de
dezembro de 2005, foi ratificada pelo governo brasileiro em 15 de junho de
2005. O texto original está em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo,
possuindo estes igual autenticidade. Seu conteúdo trata de obrigações e
responsabilidades atinentes aos países participantes da ONU ― cerca de 300 ―,
as quais, se seguidas à risca, reduzirão ― e muito ― a corrupção mundial.
Ora, quem diria que uma luta iniciada há cerca de quarenta anos
por Daniel, um cabra da peste nascido à beira dos barrancos do rio Parnaíba,
Piauí, numa casa de taipa, com piso de areia, iria coincidir com providências
adotadas pela Organização das Nações Unidas para coibir a corrupção?
87
CAPÍTULO III
3. O CUSTO DA CORRUPÇÃO
Daniel se aprofundava em pesquisas para embasar, ainda mais,
sua luta contra os malefícios causados pela corrupção. E a Folha de S. Paulo, de
9 de março de 2010, à página A2, na coluna Editoriais, veio confirmar sua
preocupação e as razões de suas batalhas, pois, com o título em referência e o
texto abaixo, reforçou sua inquietação:
‘Estudo da PF indica que superfaturamento em obras públicas
consome quase 30% dos recursos e é prática generalizada
Não é incomum que autoridades brasileiras rechacem
os rankings de corrupção divulgados anualmente pela Transparência
Internacional por considerá-los imprecisos e falaciosos.
Além do fato de o país aparecer em posições
constrangedoras, os critérios adotados pela organização não
governamental são depreciados por seu aspecto subjetivo ― não se
trata de medir a corrupção, mas de aferir como os diversos governos
são avaliados neste quesito por analistas e homens de negócios.
No último sábado, relatório da Polícia Federal, obtido
pela FOLHA, conferiu alguma objetividade àquilo que nos rankings é
apenas a percepção. Levantamento feito pelo Serviço de Perícias de
Engenharia e Meio Ambiente da PF apontou superfaturamento de
cerca de R$ 700 milhões em 303 obras inspecionadas.
O trabalho conclui que de cada R$ 100 desembolsados
pelo poder público, R$ 29, em média, foram superfaturados. Ainda
que se levem em conta algumas ressalvas à inspeção, apontadas por
empresas, e o caráter por ora inconcluso da investigação, o resultado
não deixa dúvida quanto à gravidade do fenômeno.
Pelos quatro cantos do país, da esfera federal à
municipal, cerca de 30% do dinheiro do contribuinte aplicado em
prédios, obras viárias, sistemas de esgoto, portos e aeroportos pode
escoar pelo ralo da corrupção.
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Em valores absolutos, Rio de Janeiro, Goiás e São
Paulo, nesta ordem, lideram este novo ranking da dissipação de
recursos públicos, com um total de R$ 418 milhões. Embora tenham
sido periciadas no ano passado, as obras em questão datam de
períodos variados. Há contratos assinados de 1994 a 2009.
Nas palavras do diretor técnico-científico da PF, o
estudo evidencia ‘uma prática de sobrepreço reinante’, que irriga
‘diversos gabinetes e setores’.
Note-se que o trabalho refere-se apenas a uma
modalidade de malversação. Além do superfaturamento, há, como se
sabe, uma miríade de artifícios criada pela imaginação de políticos e
governantes com o intuito de alimentar suas campanhas e contas
bancárias. Casos de fraudes em concorrências, propinas, caixa dois,
comissões e pagamentos por tráfico de influência são corriqueiros no
noticiário político, por vezes demasiadamente próximo da crônica
policial.
A corrupção não é um mal que aflige apenas a
sociedade brasileira, mas é inegável que aqui os desvios são
incentivados pela cultura da desinformação, do compadrio e da
impunidade. Não será com instâncias de fiscalização ornamentais e
casos encerrados sem punição que esse quadro será modificado.’
3.1 O prejuízo anual da corrupção no Brasil
O jornal O Globo, de 14 de maio de 2010, publicou chocante
matéria com dados sobre o desvio anual de recursos no Brasil, sob o título:
‘Corrupção desvia por ano R$ 41,5 bilhões, diz Fiesp’
E, logo abaixo, vem o subtítulo:
‘Total é equivalente a 1,38% do PIB’
‘Estudo da Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo (Fiesp) mostra que, se os apelos por moral e ética parecem não
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sensibilizar parlamentares e governantes, os custos econômicos
deveriam.
De acordo com estudo do Departamento de
Competitividade e Tecnologia da Fiesp, o custo médio anual da
corrupção no Brasil é de pelo menos 1,38% do PIB (a soma de toda a
riqueza produzida no país), algo como R$ 41,5 bilhões que são
desviados todos os anos para os bolsos de políticos e grupos aliados
em vez de serem injetados na economia.
A Fiesp simulou o quanto poderia ser investido a mais
em determinados setores-chave da economia, caso o dinheiro
desviado pelos corruptos fosse aplicado na economia. Na educação, a
quantidade de alunos matriculados na rede pública do ensino básico
poderia subir 47%, ou seja, de 34,5 milhões de jovens e crianças para
51 milhões. Segundo as estimativas do PAC, o total de domicílios com
acesso a esgoto é de 22,5 milhões. Com menos corrupção, outras
23,3 milhões de casas poderiam receber esgoto, uma alta de 103,8%.
Na saúde, a quantidade de leitos para internação poderia crescer
89%: mais 327.012 leitos. Sem corrupção, o PAC poderia construir
casas populares para atender outras 2,9 milhões de famílias além das
3,9 milhões beneficiadas hoje.
Para combater o fenômeno, a Fiesp aconselha reformas
como a reavaliação da representatividade no Congresso e regras
claras para o financiamento de campanha.’
CAPÍTULO IV
4. O MENSALÃO NO DISTRITO FEDERAL
Em uma operação deflagrada pela Polícia Federal por
determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 27 de novembro de
2009, denominada Caixa de Pandora*, foi descoberto o envolvimento de
* Expressão oriunda de mito grego. A Caixa de Pandora é um mito grego que se tornou uma expressão muito utilizada quando se quer fazer referência a algo que gera curiosidade, mas que é melhor não ser revelado ou estudado, sob pena de se mostrar algo terrível, que possa fugir de controle. Pela lenda, Pandora foi enviada a Epimeteu, irmão de Prometeu, como um presente de Zeus. Prometeu, antes de ser
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autoridades em esquema de corrupção, em um dos casos mais repugnantes já
vistos na história deste país.
Em matéria dos jornalistas Diego Escortegui e Alexandre
Oltramari, a revista Veja, que circulou em 9 de dezembro de 2009, publicou
cenas de vídeo em que aparecem políticos distritais e empresários recebendo
propina. A estrela maior foi o então governador de Brasília, José Roberto
Arruda.
O autor de tais vídeos foi o delegado aposentado da Polícia Civil,
Durval Barbosa, que responde a trinta e sete processos na Justiça, alvo de
diversas ações penais. Espera o ex-delegado, com o seu trabalho de gravação,
receber os benefícios da delação premiada, negociada com o Ministério Público
do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
Vários pedidos de impedimento do governador e de seu vice
foram protocolados na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF). O
governador desfiliou-se do partido Democratas (DEM) em 10 de dezembro de
2009, ficando impossibilitado de concorrer a qualquer cargo público no pleito de
2010.
E fato histórico e sem precedentes aconteceu na capital da
República: pela primeira vez no Brasil, um governador, em pleno exercício do
cargo, é preso. Por 12 votos a 2, a Corte Especial do STJ, em reunião no dia 11
de fevereiro de 2010, determinou o afastamento do cargo e decretou a prisão
preventiva do governador José Roberto Arruda, sob acusação de atrapalhar a
Operação Caixa de Pandora, decisão estendida a outras cinco pessoas.
Paralelamente a essa decisão, o procurador-geral da República,
Roberto Gurgel, requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) intervenção
federal no DF.
Antes que o mandado de prisão lhe fosse entregue, o governador
apresentou-se, voluntariamente, à polícia. Enviou mensagem à Câmara
condenado a ficar 30 mil anos acorrentado no Monte Cáucaso, alertou o irmão quanto ao perigo de se aceitar presentes de Zeus. Epimeteu ignorou a advertência do irmão e aceitou a oferenda do rei dos deuses, e se casou com Pandora. Ela trouxe uma caixa, que acabou aberta por Epimeteu, liberando os males que haveriam de afligir a humanidade dali em diante: o trabalho, a doença, a loucura, a mentira e a paixão. (Correio Braziliense, 28/9/2009).
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Legislativa, solicitando afastamento do cargo. Em consequência, assumiu a
chefia do Executivo o vice-governador Paulo Octávio (DEM).
E, em 23 de fevereiro de 2010, Paulo Octávio renunciou,
encaminhando sua decisão à CLDF, tendo o processo de impedimento contra
ele sido extinto.
Com a renúncia do vice-governador, assumiu interinamente o
cargo de governador do Distrito Federal o presidente da Câmara Legislativa,
deputado Wilson Lima ― Partido da República (PR). E, em apenas doze dias, o
Distrito Federal contou com três governadores.
Em 4 de março de 2010, em dois julgamentos considerados
históricos, o Supremo Tribunal, ao decidir ação do advogado de Arruda,
recusou, por 9 votos a 1, o pedido de habeas corpus e manteve o governador
preso. Ressalte-se que o pedido de liberdade já havia sido negado
anteriormente, por liminar. A Câmara Legislativa decidiu, por 19 votos a zero,
iniciar o processo de impedimento do governador.
O Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE/DF), em
sessão realizada no dia 16 de março de 2010, cassou o mandato do
governador. Houve empate entre os vogais, e, pelo voto de minerva do
presidente da sessão, desembargador Lecir Manoel da Luz, foi decidida a
cassação por infidelidade partidária.
Em 17 de março de 2010, os advogados de Arruda ingressaram
com ação no STJ, pedindo que a sua prisão passasse a ser domiciliar, baseados
em dois argumentos: a cassação do seu mandato pelo TRE/DF e o seu estado
de saúde. No dia seguinte, o ministro do STJ, Fernando Gonçalves, negou o
pedido.
No dia 18 de março de 2010, a Câmara Legislativa foi notificada
pelo TRE/DF sobre a cassação de Arruda. Os deputados aguardaram as 72
horas que ele tinha de prazo para recorrer da decisão. Mas, em 22 de março de
2010, o ex-governador dirigiu carta a seus advogados, Nélio Machado e Luciana
Lóssio, recomendando que não recorressem ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
contra a decisão do TRE/DF. A advogada, então, protocolou no TRE/DF a
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decisão de Arruda, anexando à sua petição a carta, de quatro páginas, que dele
recebera e na qual afirmava sua saída da vida pública.
Os advogados do ex-governador, nesse mesmo dia,
encaminharam também ao STJ novo pedido de revogação de sua prisão
preventiva, justificando que Arruda não era mais governador, portanto, não
poderia interferir na coleta de provas para instruir as investigações sobre
corrupção em seu governo.
Em decorrência da decisão do ex-governador, tornaram-se sem
efeito a substituição dos deputados envolvidos na Caixa de Pandora pelos
suplentes, a notificação ao ex-governador pela Câmara Legislativa sobre a
abertura do processo de impedimento contra ele e o pedido de autorização
feito pelo STJ para processá-lo.
O ministro Fernando Gonçalves, do STJ, determinou à Polícia
Federal que fossem realizados, no prazo de dez dias, os estudos técnicos de
todo o material apreendido durante a Operação Caixa de Pandora. E mais: que
as pessoas que apareceram nos vídeos entregues por Durval Barbosa fossem
ouvidas pela corporação.
Em 25 de março de 2010, foi publicado, no Diário da Câmara
Legislativa, Ato da Mesa Diretora nº 26, declarando vagos os cargos de
governador e vice-governador do Distrito Federal e fixando a data de 17 de
abril para a realização da eleição indireta. O dito Ato estabeleceu também as
normas para sua concretização.
Na sessão de 29 de março de 2010, os deputados distritais
referendaram, em 2º turno, a proposta que modifica a Lei Orgânica do Distrito
Federal, adaptando-a aos preceitos constitucionais para eleição de governador
e vice, no caso de vacância nos dois últimos anos de mandato.
Ainda no dia 29 de março de 2010, orientado pelo seu advogado,
Nélio Machado, José Roberto Arruda manteve silêncio no momento de depor na
Superintendência da Polícia Federal. A defesa de Arruda apresentou ao STJ
petição, assinada pelo ex-governador, declarando as razões da impossibilidade
do depoimento. Ditas razões se referem ao não conhecimento do processo
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investigativo na sua totalidade pela defesa. Esta reiterou, ainda, no mesmo
documento, o pedido de revogação da prisão de Arruda.
Em 30 de março de 2010, Durval Barbosa compareceu à
Superintendência da Polícia Federal para prestar depoimento na CPI da
Codeplan, que investiga irregularidades no governo nos últimos dezenove anos.
Munido de habeas corpus, só falou por, no máximo, 8 minutos. Não respondeu
às perguntas da CPI, mas declarou que suas denúncias foram feitas porque não
suportava mais os achaques do ex-governador Arruda e do vice-governador,
não tendo revelado os tipos de pressão que sofreu. Declarou ainda que estaria
por vir um rolo compressor.
Depois de sessenta e um dias preso, a Corte Especial do (STJ), em
sessão realizada em 12 de abril de 2010, revogou, por 8 votos contra 5, a
prisão do ex-governador José Roberto Arruda.
Durante o julgamento, o ministro Fernando Gonçalves, relator do
inquérito, alegou que, ao perder o cargo de governador, Arruda não tinha mais
condições de interferir na coleta de provas relativas ao suposto esquema de
corrupção no Governo do Distrito Federal (GDF), e ressaltou que sua liberdade
não representava mais perigo às investigações, já que o período de
depoimentos havia sido encerrado na semana anterior. Adiantou mais o relator
que a Polícia e o Ministério Público Federal haviam passado à fase de estudo
dos documentos apreendidos e de dados de quebra de sigilos fiscais e
bancários, além da análise de perícias. Na mesma sessão, o STJ liberou
também da prisão os outros acusados.
Das dez chapas inscritas na Câmara Legislativa, em 7 de abril de
2010, para concorrer à eleição indireta de governador e vice, somente quatro
delas participaram da disputa:
1. Chapa 2: Partido Trabalhista Brasileiro ― PTB
governador: Luiz Filipe Ribeiro Coelho
vice-governador: João Estênio Campelo Bezerra
2. Chapa 3: Partido dos Trabalhadores ― PT
governador: Antônio Ibañez Ruiz
vice-governador: Cícero Batista Araújo Rola
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3. Chapa 4: Partido do Movimento Democrático Brasileiro ―
PMDB
governador: Rogério Schumann Rosso
vice-governadora: Ivelise Maria Longhi Pereira da Silva
4. Chapa 6: Partido da República ― PR
governador: Wilson Ferreira de Lima
vice-governador: Jucivaldo Salazar Pereira
Para surpresa geral, foi eleito, em 17 de abril de 2010, em 1º
turno, com 13 votos (maioria absoluta), para governador do Distrito Federal,
Rogério Rosso e, para vice-governadora, Ivelise Longhi. Os eleitos tomaram
posse em 19 de abril de 2010.
De dezembro de 2009 a abril de 2010, em dias alternados, houve
confronto entre manifestantes, contra e a favor de Arruda, tendo a Polícia
Militar de intervir em várias ocasiões. Em 25 de março de 2010, representantes
de cinquenta e sete entidades, encabeçadas pela Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), deram um abraço simbólico no prédio do STF, tendo sido
entregue ao ministro Cezar Peluso, que assumiria a presidência da Corte em
abril, um manifesto contrário à intervenção federal no DF. Em 7 de abril de
2010, cerca de duzentas pessoas juntaram-se, à noite, para se expressar em
favor da intervenção federal no DF. Carregando cartazes e velas, protestaram
contra a corrupção. Grades separavam o STF dos participantes, que não
puderam abraçar o prédio como desejavam. A polícia, de longe, acompanhou o
protesto.
Em sessão extraordinária realizada no dia 22 de junho de 2010, a
Câmara Legislativa cassou, em votação secreta, por 16 votos a 3, o mandato da
deputada Eurides Brito ― PMDB. Os parlamentares entenderam que ela
praticou os crimes de improbidade administrativa, formação de quadrilha e
lesão ao erário. A deputada apareceu em um dos vídeos de Durval Barbosa
guardando dinheiro na bolsa.
Todos os citados na Operação Caixa de Pandora terão de se
defender perante a Justiça. Faz-se mister, para juízo de valores, aguardar o
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resultado das investigações e o pronunciamento da Justiça, bem como a
conclusão dos trabalhos da CPI da Codeplan.
4.1 A estatística da corrupção
A jornalista Ana Dubeux, em artigo intitulado A estatística da
corrupção, publicado no Correio Braziliense, de 30 de maio de 2010, p. 20,
Opinião, aborda o impressionante esquema de corrupção, que veio à baila com
a Operação Caixa de Pandora. No artigo, expressa sua indignação contra os
desmandos constatados e os prejuízos irreparáveis sofridos pela população do
Distrito Federal:
‘No engenhoso esquema da corrupção, montado em
sete anos de governo (ou desgoverno) no DF, há cifras milionárias,
organogramas, planilhas, siglas e classificações que se assemelham a
organizações partidárias, neste caso por reunir em grupos políticos
com mais ou menos poder de ocupar cargos públicos. Os documentos
da investigação que se desdobrou na Operação Caixa de Pandora, aos
quais as repórteres do Correio Ana Maria Campos e Lilian Tahan
tiveram acesso e vêm publicando desde a semana passada, revelam
não somente um esquema documentado ― e, por isso, já histórico ―
de gestão fraudulenta, que começou num governo e se sofisticou no
seguinte de forma impressionante. Mostram também uma criminosa
bifurcação para o Legislativo e o Judiciário. O mais grave, no entanto,
são as consequências do derrame do dinheiro, escoado para o bolso
dos políticos, ao longo de quase uma década.
Recentemente, publicamos uma reportagem da
repórter Samantha Sallum sobre a saúde no DF, em especial no
Hospital de Base. A situação é de calamidade e o sentimento
decorrente dela é de inconformismo total. Transporte público e
escolas também padecem de problemas crônicos e funcionam cada
vez pior. Foram milhões e milhões ― quem poderá dizer ao certo? ―
desviados. Pelos cálculos da auditoria do Tribunal de Contas do DF,
estão sob suspeita contratos que superam R$ 300 milhões, a maioria
com despesas na área de informática. Superfaturamentos, gastos com
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projetos fictícios e desperdícios compõem o ralo grosso por onde
passa toda a bandalheira da política local. Fora as propinas pagas e
todo o resto já sabido.
Quanto deixou de ser investido em áreas essenciais? É
revoltante constatar dia após dia que a corrupção no DF é uma
prática endêmica e, ao longo do tempo, tornou-se hegemônica ―
tanto que as listas não deixam quase ninguém de fora. Políticos
beneficiaram-se com o dinheiro que deveria equipar hospitais, escolas
etc. Lembrar-nos disso diariamente, ainda que seja torturante, é
necessário. Perdemos dinheiro, perdemos votos e perdemos um
tempo precioso, que poderia ter sido investido para fazer de Brasília
uma cidade melhor. Portanto, resta-nos a torcida e a fiscalização para
que este caso não caia no esquecimento e as investigações não
parem.’
4.3 Não à intervenção federal
Quanto à intervenção federal no DF, solicitada ao Supremo
Tribunal Federal pela Procuradoria-Geral da República, a Corte jurídica julgou,
em sessão realizada no dia 30 de junho de 2010, improcedente o pedido. E o
Correio Braziliense, de 1º de julho de 2010, publicou a seguinte manchete:
‘STF REJEITA INTERVENÇÃO POR AMPLA MAIORIA: 7x1’
Em seguida, descreve, em síntese, os votos dos ministros no
julgamento da intervenção:
‘O primeiro voto contrário à violação da autonomia
política do Distrito Federal partiu de Cezar Peluzo, presidente do
Supremo e relator do caso. Ele considerou que a ordem foi
restabelecida na capital da República, não havendo sentido para uma
medida tão drástica como a intervenção. Os integrantes da Corte de
Justiça que acompanharam o voto de Peluso ressaltaram as ações
saneadoras no DF, como a eleição indireta de um governador e a
punição de envolvidos. Foram contrários os ministros Dias Toffoli,
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Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio
Mello e Celso de Mello. Carlos Ayres Brito foi o único a deferir o
pedido apresentado pela Procuradoria-Geral da República.’
E, na página 37 do jornal, na coluna Visão do Correio, foi
publicado o seguinte comentário:
‘Vitória da sensatez
Merece aplauso a decisão do Supremo Tribunal Federal
contra a intervenção na capital da República. O bom senso imperou
na sessão de ontem quando, por 7 X 1, respeitou-se a autonomia
política do DF. Em harmonia com os princípios da Carta Magna, a Lei
Orgânica estabelece as regras do processo sucessório no caso de
vacância do cargo de chefe do Executivo. A solução constitucional
assegurou a governabilidade.
O Correio Braziliense, desde o primeiro momento da
crise, defendeu a alternativa democrática como a melhor para a
cidade. Acertou. Apesar da gravidade dos fatos, a ordem pública foi
mantida sem traumas. A população retomou a rotina, o Estado
funciona, as eleições seguem o curso previsto na lei. Brasília soube
encontrar a saída que lhe preservou a soberania duramente
conquistada. Sai da tormenta mais madura, mais forte e mais
confiante nas instituições.’
CAPÍTULO V
5. A LEI DA FICHA LIMPA
Não obstante o que já foi abordado até agora sobre a
perversidade da corrupção, igualmente contra ela há poderosas forças
engajadas com o objetivo de reprimi-la, como poderá ser observado pelo que
vai descrito em seguida.
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O Senado, em sessão realizada no dia 19 de maio de 2010,
aprovou, por unanimidade ― 76 votos favoráveis ―, o chamado projeto de lei
da Ficha Limpa.
A Folha de S. Paulo, do dia 21 de maio de 2010, na p. A2, em
Opinião, na coluna Editoriais, publicou o artigo reproduzido a seguir:
‘Vitória moral
Aberta a dúvidas tanto práticas quanto teóricas, lei da ‘ficha
limpa’ mostra ainda assim o peso da mobilização popular
O MAIS IMPORTANTE aspecto da lei da ‘ficha limpa’,
aprovada pelo Senado Federal nesta quarta-feira, é que o diploma
resultou de um amplo esforço de mobilização da sociedade.
Subscrito por cerca de 1,6 milhão de cidadãos, o
projeto foi apresentado ao Legislativo pelo mecanismo constitucional
da iniciativa popular, dispensando o patrocínio de qualquer partido,
deputado ou senador.
Por mais de uma ocasião, previu-se que terminaria
engavetado. Não parecia plausível, com efeito, que a maioria dos
parlamentares manifestasse interesse num diploma visando a impedir
a candidatura de quem tivesse condenações na Justiça, em função de
crimes contra o patrimônio público ou de natureza eleitoral, por
exemplo.
Mesmo eliminados os pontos mais draconianos do
projeto, permanece a surpresa de sua aprovação. Explica-se,
sobretudo, pelo interesse, pelo respaldo de opinião e pela publicidade
― no bom sentido ― que cercaram a iniciativa, tornando
insustentável para os próprios políticos, ainda mais num ano eleitoral,
que se inclinassem a dar ao processo algum outro desfecho.
A pressão da sociedade teve efeitos sobre o Legislativo.
Não é pouco. Mas é provavelmente tudo. Na prática e na teoria, a lei
da ‘ficha limpa’ comporta uma série de dúvidas quanto à sua
conveniência e aplicação.
Fica por resolver, no plano imediato, se seus
dispositivos irão valer já para as próximas eleições. Minúcias técnicas
e questões de regulamentação ainda estão por decidir.
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Do ponto de vista jurídico, há largo espaço para
discussões, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, quanto à
constitucionalidade da lei. De que modo se concilia o princípio da
presunção da inocência, tantas vezes reiterado em decisões polêmicas
do STF, com a ideia de que alguém deva ser privado de seus direitos
políticos enquanto ainda não foi julgado em última instância?
Note-se que a esmagadora maioria, se não a totalidade,
dos atuais deputados e senadores não se vê atingida pela nova lei.
Surge até a figura do ‘ficha sujo oculto’ ― o parlamentar que, votando
a favor do projeto, julga avalizar para si próprio uma disposição ética
que nada, em sua vida pregressa, autorizou-o alguma vez a ostentar.
Eis, para lembrar o conhecido bordão, a homenagem
que o vício presta à virtude. Vitória moral, sem dúvida, de quem se
sente inconformado com o espetáculo do oportunismo, da fraude e da
criminalidade pura e simples na vida política brasileira.
A lei da ‘ficha limpa’ não os elimina ― e nem tem poder
sobre as decisões de inúmeros eleitores que, por desinformação ou
indiferença, reiteradamente conduzem corruptos ao poder.
Na surpresa de sua aprovação, mostrou-se todavia o
peso que pode assumir a mobilização de muitos, quando essa mesma
tentação da indiferença deixa de contaminá-los também.’
O projeto foi sancionado, sem veto, no dia 4 de junho de 2010,
pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e foi transformado na Lei
Complementar nº 135, publicada no Diário Oficial da União do dia 7 seguinte.
Por tratar-se de fato digno de pertencer à História, é transcrita
abaixo matéria publicada no jornal O Globo, de 5 de junho de 2010, de autoria
das jornalistas Luíza Damé e Isabel Braga:
‘Sem veto, Ficha Limpa vira lei
Tribunais superiores terão de decidir agora sobre o alcance
da medida para este ano
Cinco dias antes do encerramento do prazo final, em 9
de junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou ontem, sem
vetos nem mudanças, a lei que proíbe a candidatura de políticos com
condenação judicial por crimes graves. A lei, conhecida como Ficha
100
Limpa, é resultado de um projeto de iniciativa popular, apresentado
na Câmara em setembro do ano passado, com mais de 1,3 milhão de
assinaturas. Agora, começará no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e
no Supremo Tribunal Federal (STF) o debate sobre se a exigência de
ficha limpa vale para as eleições de 2010 e se a lei será aplicada para
barrar os candidatos que já foram condenados ou apenas para os que
vierem a ser condenados.
Uma emenda de redação, apresentada pelo senador
Francisco Dornelles (PP-RJ) e aprovada no Senado, provocou
polêmica sobre a abrangência da lei e sua validade para as eleições
de outubro. Os senadores substituíram a frase ‘os que tenham sido
condenados’ por ‘os que forem condenados’. Há a interpretação de
que a nova lei só valerá para condenações futuras. O presidente do
TSE, Ricardo Lewandowski, entende que a lei abrange apenas os
condenados entre a sanção (segunda-feira) e o registro das
candidaturas, em 5 de julho.
A Advocacia Geral da União (AGU) recomendou ao
presidente a sanção da lei, sem vetos. Sobre a emenda de redação, a
AGU disse que deve ser ouvida a Comissão de Constituição e Justiça
do Senado, que a aprovou, considerando que não modifica o espírito
da proposta. Integrante do Movimento Ficha Limpa, o presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante,
comemorou:
— O recado foi dado pelos eleitores: basta de
corrupção, de usar os mandatos como instrumento de impunidade.
Basta de tratar a política como negócio privado. É uma vitória da
sociedade, um grito de independência pela ética na política.
Ophir disse que não há por que pôr em dúvida a
aplicação da nova lei nas eleições deste ano. E lembrou que a própria
lei de inelegibilidades foi aprovada em maio de 1990 e vigorou nas
eleições do mesmo ano:
— Justificou-se à época que não haveria modificação no
processo eleitoral, mas no requisito de elegibilidade. Por que valeu
para aquela época e agora não vale?
Ophir disse achar que a alteração do tempo verbal feita
pelo Senado não alterou a essência do projeto:
— É uma interpretação absurda. O entendimento é o de
que ainda não temos candidatura, elas só serão formalizadas depois.
A lei abrange todos os que estão condenados em processo em curso.
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Especialistas em legislação eleitoral entendem que,
como a lei foi sancionada antes de 9 de junho, data de início das
convenções partidárias para escolha dos candidatos, as regras
poderão ser aplicadas neste ano. Mas os prejudicados pela lei poderão
recorrer à Justiça, pois a Constituição estabelece que as normas
eleitorais têm de ser aprovadas pelo menos um ano antes do pleito.
Inelegibilidade passa para oito anos
Pela legislação atual, são considerados inelegíveis
apenas os candidatos com condenação definitiva, em última instância
da Justiça. A Lei Ficha Limpa veda a concessão do registro eleitoral
aos condenados na Justiça por crimes graves, em instância colegiada
(decisões tomadas por mais de um juiz). Estão incluídos, por exemplo,
processos de cassação de mandato, crimes contra a vida, tráfico de
drogas e improbidade administrativa.
A lei veda ainda o registro de candidatura aos políticos
condenados por crime eleitoral cuja pena é a prisão, e também aos
políticos que renunciarem aos mandatos para que não seja aberto
processo por quebra de decoro. O prazo de inelegibilidade é ampliado
de três para oito anos.
O deputado Índio da Costa (DEM—RJ), um dos
relatores do projeto na Câmara, comemorou a sanção:
— Foi um grande passo, mas precisamos dar
continuidade a esse trabalho, através da reforma política.
Jovita José Rosa, do Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral, que articulou a coleta de assinaturas para o
projeto de iniciativa popular, vibrou com a sanção. O MCCE integra
mais de 40 entidades da sociedade civil:
— Estamos que é só alegria e já pensamos na reforma
política. Se o Congresso não faz, a sociedade vai fazer. Estamos com
uma mobilização boa, não podemos deixar que se desfaça. Temos
que ousar mais.
A proposta original vetava a candidatura até dos
políticos condenados por crimes graves em primeira instância, mas
enfrentou resistência.’
102
O Tribunal Superior Eleitoral, em sessão de 10 de junho de 2010,
decidiu, com o voto contrário apenas do ministro Marco Aurélio Mello, que a
validade da lei para políticos de ficha suja se aplicaria para as eleições deste
ano. Quanto à sua abrangência e às dúvidas ainda existentes, seriam elas
tratadas na reunião seguinte da Corte, a realizar-se no dia 17 de junho de
2010.
De fato, o TSE, em sessão realizada nesse dia, decidiu sobre o
alcance da lei em relação aos políticos de ficha suja. É o que informa o jornal O
Globo , de 18 de junho de 2010, com a manchete na primeira página:
‘TSE bane destas eleições todos os já condenados’
E, com o subtítulo:
‘Decisão inclui condenações anteriores à sanção da Lei da Ficha
Limpa’,
está a síntese assim redigida:
‘Em resolução histórica, o Tribunal Superior Eleitoral
decidiu que a Lei da Ficha Limpa valerá para todos os candidatos
condenados por crimes graves em órgãos colegiados ― mesmo que a
condenação seja anterior à sanção da lei, em 4 de junho. Com isso,
todos os condenados ficam banidos das eleições. O resultado foi 6 a
1, e só Marco Aurélio Mello votou contra. O relator, ministro Arnaldo
Versiani, enfatizou que a lei alcança processos em tramitação, já
julgados ou sobre os quais cabe recurso. Para o TSE, o direito
eleitoral deve proteger a moralidade.’
Na página 3, a jornalista Isabel Braga resume as normas
estabelecidas pelo Tribunal Superior Eleitoral:
‘REGRAS QUE VALEM PARA ESTE ANO
FICHA SUJA
103
Veta candidaturas de políticos com condenação na Justiça, nos
julgamentos em instâncias colegiadas (decisão de mais de um juiz)
DIREITOS POLÍTICOS
Amplia de 3 para 8 anos a inelegibilidade
RECURSO
Permite que um político condenado por órgão colegiado recorra a
uma instância superior, para tentar suspender a inelegibilidade. Neste
caso, o tribunal superior terá que decidir, também de forma colegiada
e em regime de prioridade, se a pessoa pode ou não concorrer
SERÃO ABRANGIDOS PELA PROPOSTA:
Os crimes dolosos, onde há a intenção, e com penas acima de dois
anos. Por exemplo, tráfico de entorpecentes, crimes contra a vida, a
economia popular, o sistema financeiro e o meio ambiente, entre
outros
Os condenados por atos de improbidade administrativa. Geralmente
os que exercem cargos no Executivo e os ordenadores de despesa
Os que tiverem seus mandatos cassados por abuso de poder político,
econômico ou de meios de comunicação, corrupção eleitoral e compra
de votos, entre outros
Os condenados por crimes eleitorais que resultem em pena de prisão.
Estão fora da lista os crimes eleitorais em que os políticos são punidos
com multa
Os que forem condenados, em decisão transitada em julgado, por
crimes graves
Os que tiverem sido excluídos do exercício da profissão, por algum
crime grave ético-profissional. Aqui incluem-se os casos de pessoas
que tiverem seus registros profissionais cassados.
104
Os eleitos que renunciarem a seus mandatos para evitar processo por
quebra de decoro também ficam inelegíveis nos oito anos
subseqüentes ao término da legislatura’
Na mesma página 3, em matéria dos jornalistas Tatiana Farah,
Adauri Antunes Barbosa e Natanael Damasceno, estão citadas opiniões sobre o
assunto.
‘Entidades comemoram decisão
SÃO PAULO e RIO. Magistrados e entidades como a
AMB (Associação dos Magistrados do Brasil) e o MCCE (Movimento de
Combate à Corrupção Eleitoral), comemoraram ontem a decisão do
TSE de vetar a candidatura de todos os políticos com condenações de
órgãos colegiados e não só aqueles que tivessem sido condenados a
partir da publicação da Lei da Ficha Limpa, no dia 7 de junho.
― A inelegibilidade não é pena, é critério. E o que
determina? Que os candidatos não tenham condenação em órgão
colegiado. A sociedade é quem determina os critérios para eleições,
por meio do Congresso. Até a última eleição, concordamos com
outros critérios, a partir de agora, quisemos mudar ― diz o juiz
eleitoral de Imperatriz (MA) Marlon Reis, do comitê nacional do MCCE.
Para Reis, ‘ninguém tem direito adquirido’ quando se
trata de direito eleitoral.
Para o presidente interino da AMB (Associação dos
Magistrados do Brasil), o juiz Francisco Oliveira Neto, a interpretação
do chamado ‘tempo verbal’ da lei não deveria ser mesmo vista como
questão de retroatividade.
― Estabeleceu-se um novo critério para ser candidato
às eleições. Esse critério diz que o candidato não pode ter
condenações em decisões colegiadas. Mesmo quando a Constituição
fala sobre irretroatividade, ela trata da questão penal e não da
matéria (eleitoral).
O entendimento da Procuradoria Regional Eleitoral de
São Paulo foi o mesmo do TSE: de que a lei deve ser estendida a
todos os candidatos com condenação por decisão colegiada.
Para o presidente da Comissão de Direito Eleitoral da
OAB de São Paulo, Sílvio Salata, a vigência a partir desta eleição da
105
Lei da Ficha Limpa provocará uma enxurrada de recursos dos
tribunais regionais, no TSE e no STF.
― Vai tumultuar o processo eleitoral. Imagina um
candidato que está trabalhando há quatro anos, tem uma eleição
garantida, e agora pode ter sua candidatura anulada porque vai ser
atingido pela lei. É óbvio que esse candidato vai recorrer.
Para Salata, a decisão de ontem à noite do TSE fere
alguns itens da Constituição:
― Essa decisão traz alterações que vão ter como
consequência a busca de direitos que se julga garantidos. [...]’
O Correio Braziliense, de 20 de junho de 2010, em Opinião, p. 20,
em Visão do Correio, publicou artigo discorrendo sobre o êxito alcançado pela
sociedade com a aprovação do projeto Ficha Limpa e a sobre a esperança para
o fortalecimento da democracia.
‘Vitória da cidadania
A cidadania tem bom motivo para tocar as vuvuzelas,
pois seu alarido só vai incomodar quem vinha atirando contra a boa
prática republicana e os interesses do povo. Mas a sociedade terá de
ficar atenta ao gigantesco, embora ainda incipiente, passo que o país
pode dar rumo ao saneamento dos quadros da representação popular
e da administração pública brasileira. O Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) cumpriu quinta-feira o que dele se esperava: livrou a sociedade
dos efeitos da esperteza de uma emenda de última hora ao texto da
Lei da Ficha Limpa.
O senador Francisco Dornelles (PP-RJ) mudou o tempo
verbal da frase ‘tenham sido condenados’ para ‘que forem
condenados’. A tentativa de anistiar os julgados culpados por
corrupção e improbidade esteve perto de frustrar o sonho de 1,6
milhão de eleitores que assinaram o projeto de iniciativa popular,
apoiados pela maioria da opinião pública. Se tivesse prevalecido a
interpretação pretendida pelo autor e alguns políticos interessados em
preservar amigos, a porta se fecharia apenas aos futuros bandidos e
acabaria servindo de abrigo e de imerecido perdão a figuras que
106
dispensam apresentação, mas não a necessidade de serem banidas
da vida pública.
Questões semânticas à parte, seguiram os ministros do
TSE a boa prática jurídica de levar em conta a intenção do legislador.
No caso, o desejo dos milhões de cidadãos que patrocinaram a
redação do projeto e não desistiram de pressionar o tempo todo —
por meio de entidades como o Movimento de Combate à Corrupção
Eleitoral (MCCE) — pela rápida tramitação e aprovação pelo
Congresso Nacional. Como ocorre numa negociação democrática, o
texto original foi abrandado em seus rigores para evitar protelações
por parte de interesses poderosos dentro e fora do Legislativo. As
duas principais alterações aceitas por todos foram a exigência de
condenação por decisão colegiada (mais de um juiz) e a admissão de
recurso à instância superior para suspender a inelegibilidade.
Mas o saldo dessa batalha cívica chega a ser
surpreendente, ante o festival de desmazelos que vinha fazendo da
carreira política no Brasil um campeonato de espertezas e velhacarias,
frustrando as verdadeiras vocações para a vida pública. Não se
conhece democracia que tenha avançado rumo à construção da
prosperidade econômica e da justiça social sem que o povo tenha
contado com lideranças confiáveis, aptas ao debate elevado e
comprometidas com projetos de país claramente colocados à escolha
do eleitor.
Em vez do valhacouto procurado pelos fichas sujas que
se especializaram em tirar vantagem das verbas e cargos públicos, a
representação política, desde as câmaras municipais até o Senado
Federal, assim como a administração dos municípios, dos estados e
da União, podem voltar a atrair os que somam honestidade e
inteligência com dedicação à causa pública. É verdade que nem tudo
está resolvido. Há ainda muito a fazer pela democracia e pelas boas
práticas republicanas no Brasil. Mas, com a Lei da Ficha Limpa, a
cidadania volta a ter a certeza de que esse é um combate que vale a
pena travar.’
107
5.1 Repercussão mundial
A Folha de S. Paulo do dia 13 de junho de 2010, na p. A3, em
Opinião, na coluna Tendências/Debates, publicou artigo do mexicano Alejandro
Salas, cientista político, mestre em políticas públicas pelo Institute of Social
Studies, em Haia ― Holanda, diretor do Departamento das Américas da
Transparência Internacional.
Com o título Ficha Limpa é vitória exemplar, o cientista ressalta a
importância da interação Estado/sociedade no amadurecimento da democracia
no país.
Eis, abaixo, o texto do mencionado artigo:
‘O processo de mobilização que resultou na lei deve ser
referência para a relação entre Estado e sociedade na luta
contra a corrupção
A sanção do projeto Ficha Limpa é um marco na luta da
sociedade brasileira contra a corrupção. Porém, sua importância vai
além dos benefícios que trará diretamente — e já no curto prazo —
para o sistema político brasileiro. O processo de mobilização da
sociedade civil que resultou na iniciativa do projeto de lei, sua
subsequente aprovação e sanção serve como referência para a
relação entre Estado e sociedade na luta global contra a corrupção.
De um lado, as organizações sociais que lideraram a
elaboração do projeto e a coleta de assinaturas exerceram um papel
crucial na conformação e vocalização do interesse público. Através da
criação e ampliação de espaços de debate, tais organizações
canalizaram a indignação coletiva diante da corrupção política para
avançar com transformações estruturais.
Igualmente importante, embora menos evidente, é o
papel que exercem essas organizações na criação de identidades,
ampliando as condições para a transformação de indivíduos
indignados em agentes da mudança social, isto é, cidadãos.
Do outro lado, as instituições estatais, acolhendo o
projeto de origem popular e respondendo com sua tramitação e
108
aprovação, confirmam o processo de amadurecimento da democracia
brasileira.
O instrumento de iniciativa popular de lei, criado pela
Constituição de 1988, revela-se como recurso eficaz, e a participação
política da sociedade afirma-se, cada vez mais, como traço
característico e duradouro do modelo democrático brasileiro.
Por sua vez, a atuação responsiva da classe política
(partidos, parlamentares e presidente da República) corrobora a
possibilidade de esse modelo favorecer o interesse público mesmo
quando confrontando o interesse privado do legislador — contanto
que a sociedade civil também exerça seu papel, incitando o
funcionamento adequado das instituições representativas.
Em um continente marcado por um histórico de
governos pouco sensíveis ao interesse público e por atores sociais
tradicionalmente orientados pela polarização extremada ao Estado,
essa vitória conjunta da sociedade e das instituições estatais no Brasil
torna-se ainda mais extraordinária e exemplar.
Contudo, uma pesquisa recente do Instituto Sensus
revelou que apenas 8% dos brasileiros consideram que a corrupção
esteja diminuindo no país.
Portanto, para o cidadão brasileiro, cético quanto à
possibilidade de mudança, talvez a importância mais imediata da nova
lei seja trazer-lhe esperança de que a sociedade esteja se tornando
mais justa.
Resta ainda que a nova lei passe pelo teste de sua
aplicação efetiva para que, aí sim, possamos celebrá-la como um
instrumento de combate à corrupção política.
A julgar pelos efeitos de outra vitória popular, a lei nº
9.840, sobre compra de votos, há motivos para esperar resultados
concretos do novo ordenamento. Além disso, as transformações
necessárias para vencer a corrupção no sistema político deverão ser
ainda muito mais profundas e abrangentes.
Mas há, novamente, motivos para esperança, pois a
sociedade brasileira já está comprometida com a discussão de uma
ampla reforma política e, conhecedora de seu papel, pressionará para
que suas instituições representativas acolham esse debate e
processem as transformações necessárias.
109
A Transparência Internacional reforça o apoio na luta
do país contra a corrupção e parabeniza o povo brasileiro pela sua
importante conquista com o projeto Ficha Limpa.’
5.2 Agora, é o voto
A jornalista Ana Dubeux, em artigo publicado no Correio
Braziliense, de 20 de junho de 2010, na coluna Opinião, p. 20, considera a
aprovação do projeto Ficha Limpa uma conquista da sociedade, e ressalta que
esta deve honrar a vitória com votos conscientes contra os corruptos:
‘Agora, é o voto
Agora, é o voto. Não foi uma nem duas vezes que
ocupei este espaço nos últimos meses para explorar um tema
indigesto. Paciência: de fato, ele ainda não foi digerido. Falo da
corrupção, da safadeza, da desonestidade, que existe desde sempre
no Brasil e que desde o ano passado assombra Brasília com uma
frequência tão incômoda quanto talvez seja a opção por lembrá-la
sempre aqui nesse espaço nos domingos de leitura agradável, porém
também de reflexão e discussão em família. Por respeito à Brasília,
queridos leitores, ainda o farei algumas vezes, sobretudo neste
período que antecede nossa ida às urnas.
Na semana passada, comemorei a decisão do Tribunal
Superior Eleitoral de tornar válido o projeto Ficha Limpa para as
próximas eleições. Disse também que dificilmente o mesmo tribunal
iria contra ao espírito da lei popular ao interpretá-la nas minúcias. Pois
bem: na noite na última quinta-feira, o TSE decidiu, por seis votos a
um, que todos os políticos condenados por decisão colegiada, antes
ou depois da publicação da lei do Ficha Limpa, estão impedidos de se
candidatar para a disputa eleitoral de outubro. Além disso, os
ministros decidiram também que ficam inelegíveis aqueles que
renunciaram para escapar da cassação e os cassados pela Justiça
Eleitoral por irregularidades cometidas nas eleições de 2006.
Esse entendimento não apenas representa a vitória do
movimento anticorrupção e da sociedade civil organizada como
110
interfere diretamente nas eleições de vários estados e do Distrito
Federal. Algumas candidaturas já colocadas, como a do ex-
governador Joaquim Roriz terão que ser reavaliadas e, quem sabe,
extintas. Mas, ainda que, por força de lei, os condenados e os que
renunciaram sejam afastados das eleições, não podemos em nenhum
momento esquecer aqueles que ainda não chegaram a ser julgados,
embora tenham um leque de acusações tão extenso que deveriam
cuidar de provar inocência antes de concorrer de novo a qualquer tipo
de mandato.
Por exemplo: existe a necessidade de uma renovação
total, salvo raríssimas exceções, na política local, sobretudo na
Câmara Legislativa. É impossível promover uma faxina geral no
Distrito Federal sem varrer o lixo acumulado por anos de ineficiência e
corrupção. Deputados distritais, desta legislatura e também de outras,
é verdade, passaram seu tempo trabalhando para arriscar nossa
sonhada autonomia política, estimular invasões, mudar destinações de
áreas públicas, criar currais eleitorais de miseráveis e encher os
próprios bolsos. Não se pode esquecer isso nem um dia que seja
daqui até as próximas eleições. O TSE cumpriu seu papel, selando o
memorável trabalho feito pelos incansáveis trabalhadores em prol do
projeto Ficha Limpa. Cabe a nós honrar tudo isso com votos a favor
de Brasília e contra os corruptos.’
CAPÍTULO VI
6. AINDA A PROPÓSITO DA CORRUPÇÃO
São apresentadas, a seguir, mais notícias publicadas na mídia
atinentes à corrupção, com o escopo de levar o leitor a aprofundar-se na
reflexão sobre o tema, que tantos males causa à população.
111
6.1 O Congresso Nacional e a corrupção
O jornalista Cláudio Humberto, em sua coluna no Jornal de Brasília
do dia 25 de setembro de 2009, nos dá a seguinte notícia:
‘CÂMARA ENGAVETA 70 PROJETOS ANTICORRUPÇÃO
A Câmara dos Deputados não deixa tramitar projetos
que endurecem o combate à corrupção. Setenta projetos estão
parados desde 2004, como o do deputado Francisco Praciano (PT-
AM), que criminaliza a riqueza injustificada de agente público, ou de
Ônyx Lorenzoni (DEM―RS), que torna crime a utilização de emendas
parlamentares como instrumento de barganha para influir em
votações no Congresso.
FALTA DE VONTADE
Segundo Praciano, ‘falta motivação’ para pautar temas
contra a corrupção. Apesar do bom momento, ‘não há interesse’, diz o
deputado.’
Em nota na coluna VISTO, LIDO E OUVIDO, o jornalista Ari Cunha
publicou no Correio Braziliense, em 20/3/2010:
‘ESCASSEZ
Nenhum projeto contra a corrupção está na pauta de votações da
Câmara ou Senado. O deputado petista Francisco Praciano é quem
protesta. Ele protocolou na Mesa das duas Casas pedido para que
fosse criado um grupo de trabalho conjunto sobre o tema. Para as
próximas eleições, seria mais honesto que os próprios partidos
mudassem as regras nesse sentido. Não mudam porque falta
coragem.’
112
6.2 Caracterizando e batizando e os corruptos
Em artigo publicado no jornal Correio Braziliense, de 27 de
novembro de 2009, intitulado O corruptômetro, Frei Beto caracteriza e batiza os
corruptos do Brasil. São tantos os exemplos por ele citados, meu caro leitor,
que vale a pena você conhecê-los. Eis, abaixo, a matéria:
‘O corruptômetro
FREI BETTO
Escritor, é autor do romance Um homem chamado Jesus, lançamento
da editora Rocco para o próximo Natal.
A Transparência Internacional divulgou, a 17 de
novembro, na Alemanha, o índice de corrupção no mundo. Numa
escala de 0 (sem corrupção) a 10 (haja lanterna de Diógenes para
descobrir um honesto!), o Brasil mereceu 3,7 pontos. Avançou da 80ª
posição para a 75ª, entre 180 nações analisadas. Nosso país se
equipara, agora, à Colômbia, ao Peru e ao Suriname. O país onde há
menos corrupção é a Nova Zelândia.
Por que há tanta corrupção no Brasil? Temos leis,
sistema judiciário, polícias e mídia atenta. Prevalece, entretanto, a
impunidade ― a mãe dos corruptos. Você conhece o nome de um
notório corrupto brasileiro? Ele foi processado e está na cadeia?
Padre Vieira, no sermão em homenagem à festa de
Santo Antônio, em 1654, indagava: ‘O efeito do sal é impedir a
corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa,
havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser
a causa desta corrupção?’ A seu ver, havia duas causas principais: a
contradição de quem deveria salgar e a incredulidade do povo diante
de tantos atos que não correspondiam às palavras.
O corrupto caracteriza-se por não se admitir como tal.
Esperto, age movido pela ambição de dinheiro. Não é propriamente
um ladrão. Antes, trata-se de um requintado chantagista, desses de
conversa frouxa, sorriso amável, salamaleques gentis. Anzol sem isca,
peixe não belisca.
O corrupto não se expõe; extorque. Considera a
comissão um direito; a porcentagem, pagamento por serviços; o
113
desvio, forma de apropriar-se do que lhe pertence; o caixa dois,
investimento eleitoral. Bobos aqueles que fazem tráfico de influência
sem tirar proveito.
Há muitos tipos de corruptos. O corrupto oficial se vale
da função pública para tirar proveitos a si, à família e aos amigos.
Troca a placa do carro, embarca a mulher com passagem custeada
pelo erário, usa cartão de crédito debitável no orçamento do Estado,
faz gastos e obriga o contribuinte a pagar. Considera natural o
superfaturamento, a ausência de licitação, a concorrência com cartas
marcadas.
A lógica do corrupto é corrupta: ‘Se não aproveito,
outro leva vantagem em meu lugar’. Seu único temor é ser apanhado
em flagrante delito. Não se envergonha de se olhar no espelho,
apenas teme ver o nome estampado nos jornais. Confiante, jamais
imagina a filha pequena a indagar-lhe: ‘Papai, é verdade que você é
corrupto?’
O corrupto não tem nenhum escrúpulo em dar ou
receber caixas de uísque no Natal, presentes caros de fornecedores
ou patrocinar férias de juízes. Afrouxam-lhe com agrados e, assim, ele
relaxa a burocracia que retém as verbas públicas.
Há o corrupto privado. Jamais menciona quantias, tão
somente insinua, cauteloso. Assim, torna-se o rei da metáfora. Nunca
é direto. Fala em circunlóquios, seguro de que o interlocutor saberá
ler nas entrelinhas.
O corrupto franciscano pratica o toma lá, dá cá. Seu
lema é ‘quem não chora, não mama’. Não ostenta riquezas, não viaja
ao exterior, faz-se de pobretão para melhor encobrir a maracutaia. É
o primeiro a indignar-se quando o assunto é a corrupção que grassa
pelo país.
O corrupto exibido gasta o que não ganha, constrói
mansões e castelos, enche o latifúndio de bois, convencido de que
puxa-saquismo é amizade e sorriso cúmplice, cegueira. Vangloria-se
de sua astúcia ao enganar e mentir.
O corrupto nostálgico orgulha-se do pai ferroviário, da
mãe professora, da origem humilde na roça, mas está intimamente
convencido de que, tivessem as mesmas oportunidades de meter a
mão na cumbuca, seus antepassados não deixariam passar.
O corrupto previdente, calculista, já está de olho na
Copa do Mundo no Brasil, em 2014, e nas Olimpíadas do Rio, em
114
2016. Ele sabe que os jogos Pan-americanos no Rio, em 2007,
tiveram orçamento de R$ 800 milhões e consumiram R$ 4 bilhões.
O corrupto não sorri, agrada; não cumprimenta,
estende a mão; não elogia, incensa; não possui valores, apenas saldo
bancário. De tal modo se corrompe que nem mais percebe que é um
corrupto. Julga-se um negocista bem-sucedido.
Melífluo, o corrupto é cheio de dedos, encosta-se nos
honestos para se lhe aproveitar a sombra, trata os subalternos com
uma dureza que os faz parecer o mais íntegro dos seres humanos.
Aliás, o corrupto acredita piamente que todos o consideram de uma
lisura capaz de causar inveja em madre Teresa de Calcutá.
O corrupto julga-se dotado de uma inteligência que o
livra do mundo dos ingênuos e torna-o o mais arguto e esperto do
que o comum dos mortais. Enquanto os corruptos brasileiros não vão
para a cadeia, ao menos nós, eleitores, ano que vem podemos
impedi-los de serem eleitos para funções públicas.’
6.3 Nós e você, já são dois gritando
O jornal O Globo, de 25 de novembro de 2009, publicou a
seguinte notícia:
‘Seminário no GLOBO vai discutir corrupção’
Informa, a seguir, que:
‘Senador, ONGs e leitores vão debater ao vivo o problema
mais comentado em site de debates na internet’
Esclarece o jornal:
‘Desde o lançamento, o site da campanha ‘Nós e você,
já são dois gritando’ ― na qual leitores do GLOBO conversam sobre
os problemas da sociedade brasileira ― tem na corrupção seu tema
mais concorrido. Dos 40 tópicos de discussão no endereço
115
www.oglobo.com.br/doisgritando, a preocupação com a má
administração de verbas, privilégios do poder e extorsões do dia-a-dia
é de longe o assunto mais eloquente do fórum, com milhares de
participações. Exatamente por isso, a corrupção foi escolhida para
trazer o debate do meio digital para o mundo real, num encontro que
vai reunir, no auditório do GLOBO, políticos e integrantes de ONGs
que atuam no combate ao problema.
O evento ‘Corrupção ― o debate’ ocorrerá segunda-
feira, dia 30, às 10 h, com o senador Pedro Simon (PMDB/RS); o
diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, Cláudio Abramo; a
coordenadora da ONG Voto Consciente, Rosângela Giembinsky e
Maria Apparecida Fenizola, vice-presidente do Instituto de
Desenvolvimento de Estudos Políticos e Sociais. A mediação do debate
será pelo colunista do GLOBO Merval Pereira. O evento será gratuito,
e os debatedores responderão também a perguntas de outros
colunistas. O auditório do jornal fica na Rua Irineu Marinho 35, e tem
capacidade para 200 lugares. Será proibida a entrada de pessoas com
bermuda, chinelo ou camiseta.’
O jornal O Globo lembra em sua reportagem que:
‘Para muitos, as origens da corrupção no Brasil
remontam os primórdios da sociedade brasileira, no período colonial.
Porém, mais do que discutir as causas, o objetivo do encontro é
ajudar a construir soluções. Uma delas, na opinião do senador Pedro
Simon, é o combate à impunidade. Para o senador ― que desde os
anos 80 tenta levar para dentro do Congresso um debate sobre a
questão em todas as esferas do poder público ―, o Brasil ainda vive
uma vergonhosa realidade nessa área: ‘aqui, ainda, só os pobres são
presos’, diz ele.
― O problema do Brasil é que só ladrão de galinha vai
para a cadeia. O resto, político e empresário, paga um bom
advogado. E não é para defendê-lo, mas para postergar ao máximo o
processo. Para empurrar com a barriga e cair no decurso de prazo ―
diz Simon.’
E termina:
116
‘O senador afirma que o maior grau de corrupção ainda
ocorre na classe política, mas preocupa-se também com o avanço da
questão em outras áreas da sociedade.
― O Congresso vive um momento triste, mas a
corrupção tem evoluído também no dia-a-dia das pessoas. É motorista
pagando propina para o guarda, outro dando dinheiro para furar fila
― critica o senador, que assumiu votos de pobreza há nove anos.’
No dia aprazado, ou seja, em 30 de novembro de 2009, foi
realizado o seminário. E o jornal O Globo, de 1º de dezembro de 2009, em
reportagem de autoria do jornalista Gustavo Autran, publicou o resultado do
encontro, com o seguinte título:
‘Simon: ‘Não esperem nada do Congresso’
E como subtítulo:
‘Senador do PMDB afirma que só a sociedade organizada tem
forças e vontade para lutar contra a corrupção’.
Eis, abaixo, o texto do jornalista:
‘A máxima de que ‘de onde não se espera nada é que
não vem nada mesmo’ foi usada com conotações de humor negro
ontem pelo senador Pedro Simon (PMDB-RS), durante um debate
sobre corrupção realizado na sede do GLOBO. A frase foi uma das
conclusões do senador frente ao cenário cada vez mais assustador de
casos de corrupção envolvendo parlamentares, governadores e outros
políticos de alto escalão, especialmente agravado este fim de semana,
após a divulgação de vídeos mostrando o governador do Distrito
Federal, José Roberto Arruda (DEM), assessores e deputados distritais
de Brasília manuseando maços de dinheiro vivo com origens e
destinos ainda não explicados.
― Temos um Congresso pobre, sem preparo técnico,
sem formação, que se beneficia de um modo de governo calcado em
interesses de grupos de influência. Também não percebo nenhuma
117
ação concreta no combate à corrupção. Não há interesse. Hoje, o
político com problemas judiciais contrata um advogado para emperrar
o andamento do processo até o crime prescrever. Se a população
brasileira quer mudar a situação que aí está, deve se mobilizar, deve
protestar, como já vi fazerem na época dos caras-pintadas, por
exemplo. Mas não esperem nada do Congresso. De onde menos se
espera é que não vem nada mesmo ― disse o senador.
Na saída do debate, o senador gaúcho também
classificou o episódio envolvendo José Roberto Arruda de ‘mensalão
do DEM’:
― Vinte quatro horas antes de a denúncia ser
divulgada, eu era fã do governador, até então considerado um
administrador exemplar. Mas as gravações de vídeo e áudio não
deixam dúvidas de que existe um mensalão do DEM, que opera mais
ou menos no mesmo estilo do que foi denunciado no episódio
envolvendo o PT em 2005 ― afirmou Simon, completando em tom de
desânimo:
― É triste constatar que as denúncias que derrubaram
o Fernando Collor hoje parecem brincadeira de criança frente ao que
estamos vendo. Em vez de melhorar, as coisas andaram para trás.
Fórum sobre mazelas do país
O seminário do qual o senador participou é um
desdobramento da campanha ‘Nós e Você. Já São Dois Gritando’, na
qual O GLOBO convida a população para um debate público sobre os
maiores problemas do Brasil, por meio de um fórum na internet
(www.oglobo.com.br/doisgritando). O encontro reuniu cerca de 150
pessoas no auditório do jornal e contou com a presença do diretor-
executivo da ONG Transparência Brasil, Claudio Abramo, da
coordenadora da ONG Voto Consciente, Rosângela Giembinsky, e da
socióloga Maria Apparecida Fenizola, vice-presidente do Instituto do
Desenvolvimento de Estudos Políticos e Sociais e líder de um
movimento de cidadãos brasileiros contra a corrupção. A mediação do
debate foi feita pelo jornalista Merval Pereira, colunista do GLOBO. Os
também colunistas Miriam Leitão, Ancelmo Gois e Flávia Oliveira
gravaram em vídeo suas perguntas relacionadas ao tema.
Apesar da repercussão do caso envolvendo o
governador do Distrito Federal, ‘o mensalão do DEM’ não foi a tônica
118
do debate. Por cerca de uma hora e meia, os convidados debateram
diversos aspectos da corrupção que grassa no serviço público e no
cenário político brasileiro, especialmente sobre os mecanismos
disponíveis para o cidadão comum fiscalizar a atuação dos políticos
em seus mandatos. Apesar de algumas discordâncias a respeito das
origens e das formas mais eficientes de combate ao problema, os
quatro convidados concordaram que a apatia política, a falta de
engajamento e de mobilização social por parte da maioria dos
brasileiros também ajudam a aumentar os índices de corrupção
registrados no Brasil.
― Fica difícil mudar a situação de verdade se o cidadão
não mudar a sua postura. Não basta ir a passeatas, tem que fiscalizar
o tempo todo. É importante que a sociedade acorde e assuma o seu
compromisso sobre o que ocorre hoje na administração pública no
Brasil. Temos o poder de tirar os parlamentares que aí estão, com o
nosso voto. E isso é só uma parcela pequena do que a sociedade
organizada pode fazer ― defendeu. Maria Apparecida Fenizola,
arrancando aplausos da plateia.
Maria Aparecida recebeu o apoio da professora
Rosângela Giembinsky, da ONG Voto Consciente, na defesa do projeto
Ficha Limpa, proposta de iniciativa popular para rejeitar o registro de
candidaturas de políticos com processos na Justiça, os chamados
fichas-sujas. Elas que, sem mobilização popular, não será possível
resolver o problema da corrupção no Brasil, e citaram o abaixo
assinado em defesa do projeto, entregue ao presidente da Câmara
dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), como um eficiente
mecanismo de pressão.
― Foram mais de um milhão de assinaturas recolhidas.
E nós temos que continuar insistindo para o projeto ser votado e sair
do papel. Sem a nossa cobrança, não haverá milagre ― disse a
professora.
Corrupção pode ser medida, diz
O diretor da Transparência Brasil procurou mostrar que,
mais do que questão de ordem moral, corrupção é um problema
concreto. E que pode ser medido.
― Quase 40% dos senadores em exercício respondem
por crimes na Justiça. E, na Assembleia Legislativa de Goiás, nada
119
menos que 75% dos deputados são alvo de alguma denúncia nos
tribunais ― disse ele, arrancando expressões de espanto na plateia.
― A corrupção é uma dimensão da ineficiência do
Estado. Ela não pode ser reduzida a uma questão moral. E, na hora
de enfrentá-la, devemos ser objetivos. O fato é que a corrupção anula
a possibilidade de o Estado alocar seus recursos com eficiência e,
dessa forma, ela só será combatida quando mexermos nas leis e
combatermos certos vícios da administração pública, ponto a ponto ―
disse Abramo, ao ressaltar os dados levantados pelo projeto
Excelências, que disponibiliza na internet informações detalhadas e
atualizadas sobre os gastos de todos os parlamentares em exercício
no país (www.excelencias.org.br).
As questões levantadas pelos colunistas do GLOBO
contribuíram para esquentar ainda mais o debate. A jornalista Flávia
Oliveira, titular da coluna Negócios e Companhia, questionou as
fronteiras existentes entre o que seria o lobby legítimo promovido por
empresários, que não constitui crime, e as pressões políticas pela
aprovação de emendas em projetos de lei.’
Na mesma reportagem, foi publicado:
‘Aplausos, gritos e protestos no auditório’.
E logo abaixo desse título:
‘Debate no GLOBO foi acalorado’.
O texto vai a seguir:
‘A coincidência com o escândalo envolvendo o
governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, serviu para
deixar ainda mais quente o debate sobre corrupção organizado ontem
pelo GLOBO. Desde cedo, 150 pessoas começaram a chegar para
participar do encontro promovido pela campanha ‘Nós e você. Já são
dois gritando’, na qual O GLOBO estimula leitores a discutir os
principais problemas do país. O tema do evento tinha sido escolhido
120
por ser o mais debatido do site nos últimos meses. A realidade
mostrou que a escolha não podia estar mais certa.
O senador Pedro Simon, conhecido pela sua luta contra
a corrupção no Congresso, era o mais famoso dos convidados, mas
não foi o mais aplaudido. Nem o especialista no assunto Claudio
Abramo, da ONG Transparência Brasil. A honra coube a uma
professora e a uma socióloga.
Coordenadora da ONG Voto Consciente, Rosângela
Giembinsky defendeu a tese de que cabe à população fiscalizar ―
através do voto e da denúncia ― a atuação de parlamentares e
administradores públicos. A mesma defesa foi feita pela socióloga
Maria Apparecida Fenizola. Vice-presidente de uma ONG de estudos
sociais e líder de um movimento de brasileiros contra a corrupção,
Maria Apparecida foi convidada por sua atuação como cidadã. Os
discursos de ambas, feitos mais com a emoção do que com dados
estatísticos, conquistaram a plateia.
A cada intervenção delas, muitos aplausos. Ainda mais
comuns eram as expressões de concordância, manifestada com
movimentos de cabeça. O que os cidadãos presentes queriam ouvir
não eram análises nem tristes constatações. Eram propostas de
mudança na atual situação.
― Vamos às ruas! ― chegou a bradar um dos
espectadores, durante uma das intervenções de Rosângela, em que a
professora defendia a necessidade de mobilização popular em torno
da luta contra a corrupção.
O evento seguiu cheio de manifestações do público,
protestos e tentativas de intervenção, não só no auditório, mas
também pela internet. Cerca de 500 leitores deixaram perguntas e
comentários sobre o evento no site da campanha ‘Dois gritando’.
Finalizando, ao lado da reportagem, há uma coluna intitulada:
‘NÓS E VOCÊ. JÁ SÃO DOIS GRITANDO.
oglobo.com.br/doisgritando
O LEITOR OPINA.’
‘A melhor imagem para comparar com esse debate é aquela do
cachorro tentando morder o próprio rabo’.
121
― Jorge Manoel Santos da Silva, em comentário no site do GLOBO
‘Se punirem Arruda e não punirem os petistas envolvidos no mensalão
federal, continuaremos afundando na lama na corrupção
eternamente’.
― Edmundo Bezerra de Góis, em comentário no site do GLOBO.
‘O povo é o que tem menos culpa. Já virou lugar comum dizer que o
povo é culpado porque elege esses políticos. Querem mesmo que o
povo demonstre que não é culpado? Coloquem o voto não
obrigatório’.
― Jorge Manoel Santos da Silva, em debate sobre ‘Corrupção no site
da campanha ‘Nós e você. Já são dois gritando’.
‘Só o investimento pesado na educação pública pode ajudar a
solucionar a corrupção. Não vejo outro caminho que não passe por
uma sociedade consciente de seus deveres, direitos e obrigações’.
― Paulo Cesar Guedes, em debate sobre ‘Corrupção’ no site da
campanha ‘Nós e você. Já são dois gritando’.
‘Ficamos com cara de trouxas, e a maracutaia andando solta. Desta
vez são R$ 50 mil para comprar panetone. Cadê a polícia? Se fosse
pobre, já estaria preso’.
― Carlos Otavio, em debate sobre ‘Corrupção’ no site da campanha
‘Nós e você. Já são dois gritando’.
‘Se não houvesse reeleição indefinida para deputados e senadores, a
situação ficaria melhor’.
― Leonardo Vieira, em debate sobre ‘Corrupção’ no site da campanha
‘Nós e você. Já são dois gritando’.
6.4 Dia Internacional contra a Corrupção
Comemorando o Dia Internacional contra a Corrupção, a Folha de
S. Paulo, em 10 de dezembro de 2009, publicou reportagem de autoria da
jornalista Simone Iglesias, da Sucursal Brasília, com o seguinte texto:
122
‘Corrupção pode estar dentro da casa, diz Lula
Presidente compara crime à situação de um pai que não
percebe que ‘o filho está queimando um baseadinho no
quarto’
Sem mencionar mensalão do DEM, Lula diz que governos
precisam de ‘check-up’ anual para identificar políticos
corruptos com ‘cara de anjo’.
Ao anunciar ontem o envio de projeto ao Congresso
que endurece os flagrantes de corrupção, o presidente Lula afirmou
que esse tipo de crime às vezes acontece dentro de casa sem que se
perceba.
‘A corrupção é como uma droga (...) Às vezes, o filho
está queimando um ‘baseadinho’ no quarto, e ele [pai] não sabe. A
corrupção é assim. Às vezes ela está dentro da tua casa, ela está na
tua porta e você não sabe.’
Há quatro anos, o presidente enfrentou denúncias de
que seu governo pagava mensalão a deputados em troca de apoio em
votações. Lula disse na época que não sabia do esquema.
‘Eu prefiro que saia manchete para a gente poder
investigar, do que não sair nada e a gente continuar sendo roubado e
continuar não sabendo o que está acontecendo’, disse.
Em nenhum momento no evento contra a corrupção,
Lula mencionou o escândalo do mensalão do DEM no Distrito Federal.
Lula afirmou que, ao apresentar a proposta, o governo
está agindo para combater a ‘safadeza’ com o dinheiro público e
defendeu rigor nas punições, principalmente as que atinjam o ‘alto
clero’.
‘Um cara que rouba um pãozinho vai preso e um cara
que rouba R$ 1 bilhão não vai preso (...) Se não aumentarmos a
punição para essa gente, vamos continuar enchendo as cadeias de
pobres’, declarou.
Lula criticou a existência dos paraísos fiscais, disse que
o Brasil é um dos países que mais têm instituições de combate à
corrupção e afirmou que levará o seu projeto à próxima reunião do
G20 (grupo das maiores economias do mundo).
Segundo o presidente, a administração pública deve
fazer um ‘check-up’ anual para tentar identificar ações de corrupção,
123
já que muitos que a praticam têm ‘cara de anjo’ e não dão sinais de
que estão desviando recursos públicos.
O ministro da Controladoria-Geral da União, Jorge
Hage, que organizou o evento pelo Dia Internacional Contra a
Corrupção, apresentou vídeos com 25 depoimentos de pessoas
exaltando o trabalho da Controladoria, desde servidores a
funcionários da ONU e o diretor-geral da Polícia Federal, Luiz
Fernando Corrêa.’
Ao lado dessa mesma reportagem, há a seguinte explicação:
‘[+] saiba mais
Projeto prevê que prática seja crime hediondo
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O projeto de lei que o governo encaminha hoje ao
Congresso endurece as penalidades para crimes de corrupção
cometidos por políticos e os diferencia legalmente de servidores
públicos. Como passará por Câmara e Senado, é provável que o texto
seja abrandado.
Segundo o projeto, corrupção cometida por autoridades
com poder decisório e ocupantes de cargos elegíveis passa a ser
crime hediondo, portanto inafiançável, e abre possibilidade para
prisão temporária de até 60 dias. Hoje, o prazo previsto para prisão é
de cinco a dez dias. O projeto amplia para 30 a 60 dias.
O projeto amplia as penas de crimes de corrupção ativa
e passiva, peculato (uso de cargo público em benefício próprio), hoje
de dois a 12 anos, e concussão (extorsão praticada por funcionário
público), hoje de dois a oito anos, para oito a 16 anos.
Estão entre as altas autoridades abrangidas pela
proposta presidente, vice-presidente, ministros, governadores,
prefeitos, secretários estaduais e municipais, vereadores, deputados,
senadores, presidentes e diretores de estatais, juízes,
desembargadores, promotores de Justiça, comandantes das Forças
Armadas, conselheiros e membros do Tribunal de Contas da União e
dos tribunais de contas dos Estados.[...]’
124
A reportagem é encerrada assim:
‘[...] ‘O corrupto é o cara que tem a cara mais de anjo,
é aquele cara que mais fala contra a corrupção, é aquele cara que
mais denuncia, porque ele acha que ele não vai ser pego’. LULA.’
6.5 Resposta à corrupção em várias partes do mundo
O jornalista Ari Cunha, em sua coluna VISTO, LIDO E OUVIDO,
publicada no Correio Braziliense em 25 de abril de 2010, descreve a reação de
cidadãos em partes de nosso planeta diante da
‘CORRUPÇÃO
Nada nem ninguém protege o cidadão quando o interesse supera a
ganância humana. No caso da corrupção, nem a oposição condena
quando está com a mão na botija. No mundo a situação é a mesma.
Em países árabes, usa-se cortar a mão. Na Europa, a renúncia é
incisiva. No Japão, o acusado foi à televisão. Sem que ninguém
pudesse evitar, tirou o revólver da cinta e atirou na própria boca.
Morreu em frente às câmeras.’
6.7 Prisão de políticos corruptos em Curitiba
O Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, mostrou, na noite
do dia 7 de junho de 2010, manifestantes carregando cartazes, comemorando a
prisão, em Curitiba ― Paraná, de políticos corruptos da Assembleia Legislativa
do referido Estado, e o jornalista Ari Cunha, em sua coluna VISTO, LIDO E
OUVIDO, no Correio Braziliense de 10 de junho de 2010, assim registrou o fato:
‘Mudanças
Curitiba puxa o cordão contra políticos corruptos de assembleias
legislativas. O comando da instituição está preso. Os exemplos de
125
protestos pelo país têm indicado que cabe à sociedade mostrar que
democracia não é sinônimo de roubo ou balcão de negócios. Muitas
mudanças depois do Ficha Limpa.’
CAPÍTULO VII
7. BASTA DE CORRUPÇÃO!
O livro de autoria de Daniel ― Bandeira Contra a Corrupção &
Suas Irmãs Siamesas ― já havia sido lançado em novembro de 2000. Recebeu
o autor, com data de 28 de fevereiro de 2001, carta do Dr. Fernando de
Oliveira, paulista quatrocentão, infelizmente já falecido. Ao lê-la, Daniel julgou
tão importante o seu conteúdo que correu às livrarias e delas retirou os
exemplares de seu livro. Foi à gráfica e ali pediu que fosse impressa uma
SEPARATA, nela constando a Lei nº 10.180, de 6 de novembro de 2001, ― que
Organiza e disciplina os Sistemas de Planejamento e de Orçamento Federal, de
Administração Financeira Federal, de Contabilidade Federal e de Controle
Interno do Poder Executivo Federal, e dá outras providências ― e a carta do
Dr. Fernando. Juntou-a ao livro e devolveu os exemplares às livrarias.
Deixa Daniel ao julgamento do leitor a histórica narração do Dr.
Fernando de Oliveira, que deve ser motivo de orgulho para o povo brasileiro,
especialmente para os paulistas:
‘São Paulo, 28 de fevereiro de 2001 Meu caro colega, colaborador e amigo José Daniel de Alencar
‘Há um tempo para pescar. E há um tempo
para secar as redes’
(provérbio japonês)
126
Obrigado pelo exemplar de sua obra ‘Bandeira Contra a
Corrupção & Suas Irmãs Siamesas’ e, em particular, pela amável
dedicatória. Registre-se um pequeno reparo: meu nome é Fernando
de Oliveira, com o genitivo de, e não como grafado na mensagem e
na página 177.
Ao me telefonar, previamente à remessa, manifestou o
prezado Autor o desejo de que eu dissesse algo acerca do trabalho.
Aquiesço prazerosamente e tentarei esmiuçar meu
pensamento a respeito do sempre momentoso tema do Controle, e
desde já pedindo escusas pela veemência com que, por vezes, me
conduzo. Nasci assim, combativo e autêntico, e, nesta quadra de
minha vida, incapaz de me amoldar a coisas em cujas entranhas sinto
o mau cheiro ou a percepção do comportamento nefasto. Sou filho de
imigrantes portugueses, que adotaram o Brasil como sua verdadeira
pátria e que, enquanto vivos, o honraram com o traço uniforme da
honestidade. Pobres, trabalhadores, foram êmulos do respeito aos
bens alheios e sem jamais se ater à circunstância de que alhures
pudesse haver uns trocados a mais. Dentro dessa perspectiva, emitirei
minhas observações, em estreita caminhada, asseguro, com as
preocupações lançadas no livro. E nisso acompanharei a lição nele
repetida, de que as palavras doces nem sempre são verdadeiras e as
palavras verdadeiras nem sempre são doces.
A ORIGEM DO TRIBUNAL DE CONTAS
A Constituição Republicana de 1891 estatuiu no art. 89:
‘É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as
contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de
serem prestadas ao Congresso. Os membros deste Tribunal serão
nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado, e
somente perderão os seus lugares por sentença’.
Duas observações, de início: a) não foi criado junto ao
Poder Legislativo ou ao Judiciário, mas no próprio Ministério da
Fazenda; b) não deveria ter recebido a denominação de ‘tribunal’ e,
sim, v.g., de Conselho de Contas, Corpo Coletivo de Contas ou
qualquer denominação ou intitulação reveladora do cuidado no exame
prévio das contas a prestar.
Tribunal é entidade reservada a órgãos do Poder
Judiciário, com sua competência exercida através de juízes,
127
desembargadores, ministros ― magistrados, enfim, com a função
precípua de dar interpretação final às leis. Tribunal de Contas, na
concepção brasileira, atrelado ao Poder Legislativo, é excrescência, é
aberração, seja no título, seja na subordinação.
Tanto é verdade que a Constituição de 1946, ao dispor
sobre o então TCU, o localizou no cerne do Poder Legislativo, mas,
apagadamente, na Seção VI ― Do Orçamento (arts. 73 ‘usque’ 76). Já
a Constituição de 1988 colocou o TCU de novo sob o Poder
Legislativo, porém, na Seção IX ― Da Fiscalização Contábil, Financeira
e Orçamentária (arts. 71 a 73). Se, por um lado, mal se colocou a
filiação do TCU, pior ficou a escolha de seus membros, praticamente
oriundos da Câmara dos Deputados mediante simples indicação
política a beneficiar parlamentares em fim de mandato. Não se
poderia jamais esperar que as pessoas habituadas a ‘fazer política’ e a
proferir discursos laudatórios se transformassem, de repente, como
num passe de mágica, em vigilantes do Erário. Nem precisaria ser
aqui repisada a circunstância de que a eventual escolha implicaria de
certa forma obrigar à contrapartida da gratidão, fechando um olho ou
os dois quando o padrinho ou afim viesse a cometer um deslize de
gestão. Ainda que o nomeado possuísse a têmpera do auditor
independente, muito remotamente concordaria em manietar o
falcatrueiro. Deriva desse raciocínio a absoluta conveniência de que
todos os membros da Corte de Contas deveriam ingressar pela
estreita porta do concurso público, a exemplo de igual exigência em
relação ao corpo técnico e administrativo. Os quadros auxiliares
revelam a verdadeira força motriz dos trabalhos. São esses abnegados
servidores os responsáveis pelo funcionamento da máquina do
controle externo.
Não se nos afigura adequada, decorrentemente, a
proteção corporativa exposta no parágrafo 2º do art. 73, ‘verbis’:
‘Os Ministros do TCU serão escolhidos:
I ― um terço pelo Presidente da República, com
aprovação do Senado Federal, sendo dois
alternadamente dentre auditores e membros do
Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista
tríplice pelo Tribunal, segundo os critérios de
antigüidade e merecimento;
128
II – dois terços pelo Congresso Nacional’.
Vale dizer, os nove ministros serão escolhidos assim:
a) dois dentre auditores e titulares do Ministério
Público;
b) um de livre escolha do Chefe do Executivo; e
c) seis indicados livremente pelo Congresso (leia-se
especificamente Câmara dos Deputados)
Por que a proteção a auditores e membros do
Ministério Público? E quem nos explicará a presença acaso necessária
de promotores de justiça fora dos domínios do Poder Judiciário, os
quais, além dessa aberração teratológica, ainda concorrem ao cargo
de ministro livremente nomeado?
Disso emana a triste certeza de que os técnicos, os
assessores e os inspetores de controle externo da Casa nunca
poderão aspirar à condição de ministro. A única hipótese, nada
provável, está consubstanciada na lembrança de que sejam
lembrados, um dia, para a única vaga disponível de competência do
presidente da República ou escolhidos pelo Senado.
Os ministros do TCU, sabemos, já recebem o prato
feito, isto é, o processo examinado, depurado, instruído,
documentado e pronto para o julgamento, ao qual, à guisa de
sustentação de seu voto, acrescentam habitualmente suas
considerações pessoais.
Ainda hoje sinto saudade do eminente Ministro Iberê
Gilson, presidente do TCU na época de instalação das Inspetorias-
Gerais de Finanças, criadas pelo Decreto-Lei nº 200, de 25/02/67. Fui
o ‘pai do controle interno’, na condição de responsável pela
implantação dos órgãos central e setoriais dos Sistemas de
Administração Financeira, Contabilidade e Auditoria, a cargo da
Inspetoria-Geral de Finanças do Ministério da Fazenda, no Rio de
Janeiro. Estávamos em 15 de março de 1967, início do Governo
Arthur da Costa e Silva, com o Professor Antônio Delfim Netto no
superior comando do Ministério da Fazenda. Permita-se-me revelar
que o Ministro Iberê Gilson se deslocava, em algumas sextas-feiras,
de Brasília para o Rio (sempre se referia ao Município de Vassouras,
seu torrão natal, como a coisa mais linda do mundo...), e,
129
invariavelmente, vinha conversar comigo, em meu gabinete.
Sentados, lado a lado, em mangas de camisa, sem protocolo, nem
percebíamos o transcorrer das horas, tal a consistência de nossas
preocupações. Esse diálogo, sem testemunhas, era aberto, franco e
mais abordava as misérias recíprocas dos controles externo e interno
e menos as coisas boas que já começavam a assomar. Era uma prosa
de gente leal, despida de vaidades, envolta no propósito de melhorar
as coisas e de fortalecer os mecanismos de controle.
Foi por essa época que fiquei conhecendo o então
Secretário da Presidência do Tribunal, o saudoso Ivo Krebs
Montenegro, guindado, mercê de sua cultura e liderança ― além de
profundo conhecedor da máquina ― à chefia da Assessoria Técnica
do Tribunal e na qual empregou todos os instantes de sua vida na
moldagem de um figurino cristalizador da boa imagem do controle.
Sua saúde começou a cambalear após nossa despedida do serviço
público federal, em março de 1985. Fiquei sabendo, por intermédio de
amigos comuns, que viera a falecer. Esse, sim, merecia ser ministro,
mas, sua hombridade moral e técnica jamais foi merecedora do
galardão que lhe deveria coroar a invejável carreira pública. Afinal,
não era egresso da Câmara e muito menos membro da confraria do
‘toma-lá-dá-cá’. Logo que iniciávamos os trabalhos de encerramento
dos balanços-gerais da União (eufemisticamente e erradamente
chamados de Contas do Presidente da República), lá estava, firme,
assíduo, presente, nosso querido e pranteado amigo Ivo, a colher os
primeiros números e dados para o Relatório que sua assessoria
deveria elaborar.
Digo tudo isto, meu caro Daniel, com o escopo de se
não perderem de memória alguns traços delimitadores das glórias e
fracassos dos controles interno e externo. O TCU, malgrado a
presença de pouquíssimos membros voltados ao campo do
aprimoramento da eficiência, nunca mais repetiu as glórias e o
respeito que Iberê Gilson (nunca mais o vi!) e Ivo Krebs Montenegro
lhe emprestavam. Restou-me para sempre a certeza de que são os
Homens que dignificam as instituições, e não o contrário.
A TRANSCRIÇÃO DE PENSAMENTOS EMANADOS DO TCU
Sou obrigado, já a esta altura de minhas apreciações, a
discordar parcialmente dos encômios feitos por José Daniel de Alencar
130
a alguns ministros. Guardo mágoa, por exemplo, de Luciano Brandão
Alves de Souza e de Fernando Gonçalves, que nada criavam ou
aperfeiçoavam, mas se deleitavam em fustigar o controle interno.
Davam a impressão de que desejavam chegar ao estrelato da glória,
nos mais altos píncaros, transformando em escadas as costelas dos
responsáveis pela controladoria interna. E que dizer da infeliz
colocação de Humberto Souto, reportada à página 116:
‘Se o governo quer fortalecer o controle, tem que
fortalecer o Tribunal, argumentou. Segundo ele, o mandato de seis
anos deixa o ministro do TCU numa situação de fragilidade. Humberto
questiona ainda a proposta de restrição à nomeação de ex-
parlamentares para ministro do Tribunal. A condição para ser
ministro, depende, não é ter sido deputado ou técnico, mas, ser
honrado e competente...’
Aí está, indisfarçada, a confraria protetora dos
interesses, às vezes até legítimos, de seus membros. Não nesta
assentada, no entanto, porque a proposta moralizadora terá
encontrado eco nas pessoas de bem e na própria opinião pública, que
não suporta a presença de tribunais condescendentes e omissos e
que mais atuam na base da leitura de escândalos divulgados pelos
jornais ou pelos televisores do que por iniciativa própria. Para
começar, há no texto uma impropriedade. ‘Competência’ é poder
hierárquico, é ser investido em comando ou chefia, como sinônimo de
determinar o que deva ser feito ou o que não deva ser feito. ‘Compete
ao chefe distribuir tarefas aos subordinados’. Creio que o Ministro
Souto pretendeu dizer, no final de sua fala, ‘honrado e capaz’.
‘Capacidade’ é o conjunto de atributos pessoais obtidos pelo estudo
ou pela prática, conducentes à boa realização de algo. Não se
confundam, portanto, os significados das palavras ‘competência’ e
‘capacidade’. Um chefe analfabeto é sempre competente. Já um
indivíduo capaz é aquele que conhece, dá conta do recado e domina
seu mister, ainda que não seja chefe. A análise do mérito da assertiva
não resiste ao bom senso, porque emanada dos confins do compadrio
e porque prega abertamente a necessidade de manter o modelo falido
que se quer modificar. Nossa fórmula anteriormente sugerida, de se
dar provimento aos cargos de ministro através de concurso público,
131
encontrará sem dúvida melhor ressonância que a teimosia em
recrutar no parlamento os ‘amigos-do-rei’.
Mais adiante arrisco uma proposta merecedora, essa sim, do
respeito e da inteligência das pessoas devotadas às coisas sérias.
Chegaremos lá.
CONTROLE INTERNO/CONTROLE EXTERNO ―
CONCEITUAÇÃO
Podemos aglutinar as expressões ‘controle interno’ e
‘controle externo’ nos seguintes limites universalmente aceitos e
adotados:
a) controle interno ― é o conjunto de meios técnico-
legais capaz de manter a direção superior de um
órgão, entidade ou empresa informada a respeito
da fiel ou má execução dos programas a
desenvolver. O controle interno está, assim, voltado
para dentro do próprio organismo que o nutre e tem
a função de alertar se algo discrepa do que se
estabeleceu.
b) controle externo ― é, igualmente, o conjunto de
meios técnico-legais capaz de manter os acionistas
informados quanto à boa ou má condução dos
programas previamente estabelecidos. O controle
externo, desta maneira, está voltado para fora do
próprio organismo e se dirige às pessoas que o
sustentam.
CONTROLE INTERNO/CONTROLE EXTERNO ―
INTEGRAÇÃO
A integração controle interno/controle externo resulta
naturalmente da divisão do trabalho e se revela simples. A harmonia,
o respeito, a cooperação e a uniformidade de procedimentos
convergirão para um resultado eficaz. Quem milita na área de
auditoria sabe de cor e salteado essa premissa. Nenhum auditor
externo (ou independente) inicia sua tarefa sem o exame inicial e
indefectível dos relatórios de auditoria interna. Não é curiosidade, é
132
obrigação. É preciso conhecer o que se passa dentro da empresa, da
entidade, do organismo, para verificar os pontos passíveis de
aprimoramento ou admoestação ou, em última análise, para firmar a
convicção de que as coisas caminham bem ou mal. Resulta daí a
imprescindibilidade de que sejam sepultados ciúmes ou estrelismos
dentro do corpo unificado chamado simplesmente de controle.
Controle é substantivo, é essência. Os adjetivos interno
e externo apenas qualificam a divisão de trabalho outorgada à
competência de cada um. O controle interno não é superior ao
controle externo, nem este se sobrepõe àquele: ambos são iguais,
porque idênticas suas funções.
O TCU precisa aprender a aceitar essa lição e, em
conseqüência, banir seu vezo de superioridade, de querer valorizar
suas atribuições de mero auxiliar do Poder Legislativo à custa do
aviltamento dos órgãos legalmente definidos como condutores da
Administração Financeira, da Contabilidade e da Auditoria. Não há, em
absoluto, a relação ‘rei-vassalo’, ‘patrão-empregado’ ou ‘rei-da-
cocada-preta’. O TCU é, nem mais nem menos, um dos dois pilares do
controle e, mesmo assim, sujeito às ordens e prescrições emanadas
do Congresso Nacional.
Nosso precioso e comum amigo, Cel. Nelson Barcelos
da Veiga Filho, costumava dizer, em suas apreciadas palestras sobre o
controle interno, que o nosso Sistema era uma espécie de banquinho
com três pernas, porque três eram as prerrogativas de nossa alçada.
E concluía indagando qual seria a perna mais importante, para ele
mesmo concluir que num banco trípede as pernas do controle
financeiro, da contabilidade e da auditoria se completam ao se
auxiliarem mutuamente.
CONTROLE INTERNO ― ALGUNS DEPOIMENTOS
Faltou reunir no livro ‘Bandeira Contra a Corrupção &
Suas Irmãs Siamesas’, meu prezado Autor, com a devida licença, as
manifestações e atos e fatos produzidos pelas autoridades do controle
interno no decorrer de 1967 até o presente e dentro de um universo
compreensivelmente abrangente, como corolário de igual deferência a
membros do controle externo, que tiveram generosa acolhida nas
páginas do livro. Talvez, não sei, valesse obter o depoimento de
nossos antigos colegas e os atuais, da mesma forma, para que
133
pudéssemos colher e registrar os fatos dignos de menção. Aí fica a
sugestão. De minha parte, quero anotar algumas ocorrências que
jamais fugirão de minha memória, mesmo sem registro escrito.
O INCÊNDIO NA IGF―FAZENDA/RIO DE JANEIRO
Em 1968, ou 1969, houve uma grosseira falcatrua
praticada pela Diretora de Obras do Ministério da Fazenda,
Engenheira Laura, na adjudicação de serviços de engenharia. Havia
três propostas de licitantes, todas preenchidas pela mesma máquina
de escrever. Nossos auditores perceberam a mistificação e nos
mostraram o esboço do relatório que começavam a redigir,
externando certa desconfiança acerca do desfecho. Recomendei que
caminhassem com firmeza até o fim e desnudassem o crime de lesão
ao Erário, sem receio. Havia respeitável dispêndio em jogo. Era obra
de vulto. Isso foi feito. O então Secretário da Receita Federal, Antônio
Amílcar de Oliveira Lima, tentou protegê-la por via da grotesca
fórmula de ataque a quem desvenda a prática de anomalias.
Ponderei ao Ministro Delfim Netto, ao submeter-lhe o
processo, que eu não poderia continuar a pertencer a uma equipe
onde militasse uma pessoa desse jaez. Deixei o campo livre para que
ele ou eu permanecêssemos. A essa altura, o assunto já havia
transposto o âmbito do Ministério da Fazenda, tanto que a Comissão
Geral de Investigações, do Ministério da Justiça, nos requisitava cópia
do processo em causa. Avisei ao Ministro Delfim que havia recebido o
pedido e iria atendê-lo, como atendi, porque as solicitações feitas pela
CGI não se vinculavam à corrente hierárquica. Eram dirigidas às
pessoas ou autoridades que pudessem de alguma forma contribuir
para o deslinde. Foi nossa sorte. Por essa época, recebemos convite
do Vice-Reitor da Universidade Católica de Caxias do Sul ― RS, Padre
Sérgio Leonardelli, no sentido de realizarmos palestra destinada aos
acadêmicos de Ciências Contábeis, Ciências Administrativas e Ciências
Econômicas. O tema envolveria o controle interno e, em particular, o
modelo dos Decretos ns. 64135 e 64136/68, ambos de nossa modesta
autoria e que implementavam as IGFs central e setoriais junto aos
Ministérios Civis, órgãos de igual equivalência nos Ministérios Militares
e, ainda, na Presidência da República.
Chegamos lá na véspera da missão, 14 de outubro de
1970. Na parte da manhã do dia 15, recebemos um telegrama de
134
nosso Secretário Homero José Lobo Jr., em que nos pedia regresso
imediato porque ‘um incêndio destruiu nossa IGF-Fazenda’. O sinistro
ocorreu na madrugada de 14 para 15 de outubro de 1970, data que
jamais esquecerei. Fiquei atônito, pasmo. Um turbilhão de
pensamentos me invadiu de assalto. Tentei voltar imediatamente ao
Rio, mas somente havia lugar em avião às 15 horas. Marquei minha
passagem na Cruzeiro do Sul e aproveitei o tempo ainda disponível
para tentar dizer algumas palavras aos acadêmicos caxienses. Foi em
vão. O Padre Leonardelli havia preparado a moçada para nos receber
com tolerância. Mal entrei no imenso auditório, uma grande salva de
palmas mostrava, à guisa de solidariedade, que ali recebia o primeiro
conforto. Foi um gesto espontâneo. Explodi, em resposta, numa crise
de choro. E aí as palmas redobraram, impedindo-me de falar. Não
obstante, consegui articular algumas palavras e, graças a Deus,
mostrar a estrutura desenhada pelo modelo do Dec.-Lei nº 200/67.
Foi uma palestra tartamudeante, em que, ao final e mesmo sem
conhecer ainda toda a extensão da tragédia, lamentava a maldade
perpetrada contra quem apenas desejava trabalhar com seriedade.
Quem o teria feito? E por quê? A resposta, óbvia, não me acudia de
pronto. Ao desembarcar no Aeroporto Santos Dumont, no centro do
Rio de Janeiro, dirigi-me imediatamente ao 9º andar do Ministério da
Fazenda, onde se localizavam nossas dependências. E aí chorei
novamente. O incêndio havia devorado meu gabinete, a sala de meus
assessores, a do Secretário Homero, o salão da Divisão de Auditoria e
o salão de reuniões, todos contíguos. Salvaram-se, com
chamuscaduras, a Divisão de Contabilidade, a Divisão de
Administração Financeira, a Seção de Mecanografia e o Serviço de
Administração. Os bombeiros chegaram a tempo de salvar essas salas
e tudo não foi consumido pelo fogo por obra da sorte. Mas a água
que jorrava das mangueiras era tanta que até o gabinete do Ministro
Delfim Netto, no 8º andar, cuja localização correspondia à mesma
prumada nossa, foi seriamente afetado. Foi um dilúvio.
As desgraças, entretanto, têm o condão de revelar o
lado bom das coisas. E esse lado benfazejo veio dos dirigentes e
amigos do Departamento Federal de Compras, que nos cederam suas
melhores salas para que pudéssemos trabalhar. E isso demorou mais
de seis meses, quando, após as obras de recuperação, pudemos
retornar ao 9º andar, na mesma sala onde se via o Pão-de-Açúcar,
com sua misteriosa águia esculpida (quem a desenhou ali?), e a ponte
135
Rio―Niterói, a cuja construção assistimos desde o início, por volta de
1969, se não me engano.
Não se consumou o efeito desejado pelos incendiários, de
queimar todos os processos em andamento na Divisão de Auditoria.
Embora os originais se perdessem, foi possível recompor a maioria
deles, paciente e paulatinamente. E o processo que cuidou da dupla
Laura/Amílcar foi refeito sem qualquer dificuldade, porque fomos
pessoalmente à CGI pedir cópia da cópia que lhe havíamos fornecido.
Tivemos notícia, à época, de que a Engenheira Laura fora
aconselhada a pedir aposentadoria e assim se livrar do processo
administrativo. Quanto ao Sr. Antonio Amílcar, acabou sendo
exonerado do cargo de Secretário da Receita Federal e,
decorrentemente, desligado da Equipe Delfim Netto.
A SOCIEDADE ETILISTA DE BRASÍLIA
Outro episódio a merecer comentário é o do famoso
caso que ficou conhecido como a ‘farra do uísque’ ou a ‘adega do
poder’. A Secretaria da Receita Federal, dirigida pelo Sr. Francisco
Neves Dornelles, houve por bem presentear altas autoridades em
Brasília com bebidas apreendidas em contrabando. A lei, pelo menos
à época, impunha quatro caminhos alternativos para sanear
operações dessa natureza: a) destruição; b) doação a entidades de
benemerência; c) venda em hasta pública; e, d) devolução à origem.
Nossos auditores fisgaram a irregularidade e a trouxeram, com as
provas, a nosso conhecimento. Como sempre, recomendei-lhes
prosseguissem com seu trabalho, que, concluído, foi, como de praxe,
submetido ao Gabinete do Ministro Delfim, já na SEPLAN/PR, para sua
habitual manifestação, antes do encaminhamento ao TCU. Isso foi por
volta de 1983. O processo, contudo, estava demorando a retornar, e
aí pensei nas dificuldades e no estremecimento que nosso Chefe iria
sentir por parte das autoridades contempladas. Pensei, então, numa
engenhosa fórmula capaz de resolver o impasse. Fui pessoalmente ao
Tribunal de Contas da União e, em conversa reservada com seu
presidente, expus o dilema. Ficou combinado entre nós ― sem
testemunhas, claro ― que montaríamos um estratagema: o Tribunal
me chamara para esclarecer as doações de bebidas, porque os
rumores ‘chegavam ali’ e eu diria ao Ministro Delfim que fui
convocado para fornecer esclarecimentos. Assentada essa estratégia,
136
combinamos um telefonema para o dia seguinte e, por isso, nada falei
ao Ministro Delfim. Recebi de fato um telefonema, no dia seguinte, do
próprio presidente do TCU, pedindo-me que lá voltasse. Fui e fiquei
estarrecido com as explicações recebidas. As caixas de madeira onde
a bebida (uísque, principalmente) é embalada não podem apresentar
avarias, como amassamento ou esmagaduras, porque seriam
recusadas no leilão... E foi o próprio Sr. Dornelles quem forneceu essa
desculpa esfarrapada, após ser alertado pelo TCU. Senti-me
abandonado, sozinho, traído. É como se alguém deixasse de comprar
um par de sapatos de cromo alemão apenas porque houvesse
algumas escoriações na caixa de papelão. Deixei o TCU e sua
monumentalidade escancaradamente falida, depois de perguntar ao
meu interlocutor, sem resposta, se acreditava na versão de que o
invólucro era mais importante do que o conteúdo.
Para mim, as atitudes vaidosas e entufadas se
esboroavam naquele episódio, em que o decantado controle externo
lançou mão de desculpa esfarrapada para tentar subverter a verdade.
Na hora crucial de cumprir o dever, o habitual urro do leão se
transfigurou no tênue miado do gatinho de estimação. E dizer-se que
um de seus ministros chegou até a asseverar que o controle interno
era um cabrito que tomava conta da horta, julgando-nos incapazes de
punir os faltosos. Pelo menos no episódio do uísque deixamos o
controle externo menos arrogante, menos falador, menos discurseiro.
No momento em que sua propalada vigilância era posta à prova, fugiu
da raia. E, pior: foi buscar no próprio acusado a desculpa para
justificar o injustificável.
E é bom recordar, por oportuno, que o Sr. Francisco Neves
Dornelles era o titular do Ministério da Fazenda no Governo Tancredo
de Almeida Neves, que inobstante, não chegou a assumir o Poder, em
virtude de sua morte. Foi o Sr. José Sarney, Vice-Presidente eleito,
quem permitiu a Dornelles o desmoronamento do Decreto nº
84.362/79. O Decreto nº 91.150, de 15 de março de 1985, acabou
com o sonho da SECIN. Durou pouco o poder do Sr. Francisco
Dornelles, mas o suficiente para destruir nosso modelo de controle
interno e inclusive devolvendo os auditores aos Ministérios de origem,
para que lá obedecessem, hierarquicamente, às ordens recebidas.
Toda a concepção de independência, todo o entusiasmo da
centralização auditorial foi por água abaixo. Até o edifício-sede da
SECIN, denominado INTERCON, até hoje está em ruínas, fisicamente.
137
Abandonado, rachado, sem ocupação, é o atestado irrecorrível de que
a certeza de sua progressiva destruição encontra correspondência no
procedimento destruidor aplicado à auditoria.
A ELIMINAÇÃO DOS CENTAVOS
O período de janeiro de 1980 a 15 de março de 1985
nos proporcionou alguns êxitos, todos creditados ao espírito de
conjunto de nossas equipes. A eliminação dos centavos no resultado
final dos cálculos, que representavam naquela época dois dígitos
inexpressivos, veio a desafogar nossas máquinas calculadoras por
força da exigência de somente 11 dígitos (99.999.999.999) em lugar
dos treze algarismos anteriores (99.999.999.999,99). Como sempre,
no entanto, os analistas apressados acoimavam de absurda e
prejudicial a medida que mandávamos cumprir, argüindo com a
‘ilegalidade’ ou o ‘prejuízo’ futuro. Lembre-se o caso do Departamento
de Águas do Ceará, que não admitia a perda dos centavos porque
eles faziam parte do cálculo formador do preço unitário do produto.
Redargüí com a leitura de nossa Instrução Normativa, onde se
estabelecia que o abandono dos quebrados se verificava ‘no resultado
final dos cálculos’. Se o m3 de água estivesse tarifado, digamos, em
1,333, e o consumo mensal fosse ficticiamente de 17 m3, o cálculo
seria, pela sistemática antiga, de 22,661. Entretanto, o final de conta
passaria a ser de 22, pela nova conduta. Mais: nada obrigaria a
perder os centavos mensalmente desprezados. Bastaria acumulá-los
ao longo do ano e capturá-los na última conta (dezembro). Se o valor
mensal fosse homogêneo, a perda anual aparente seria de 12 x 0,661
= 7,932. O número inteiro se incorporaria à conta de dezembro e a
fração de 0,932 seria acumulada (e não perdida) nas operações do
ano seguinte. Simples, como se vê. Por oportuno, e em abono de
nosso procedimento naquela época, cabe agora registrar, para nossa
imensa satisfação, que o INSS acaba de autorizar, a partir dos
pagamentos a aposentados e pensionistas referentes a janeiro de
2001, o arredondamento, para maior, de todos os centavos existentes
(por exemplo, de R$ 4.734,02 para R$ 4.735,00). Decidiu,
coerentemente, que os centavos assim levados à unidade de reais
serão descontados no último pagamento do ano. A conta-corrente
assim definida melhora os procedimentos do beneficiário (que não
mais necessita portar trocadinhos para favorecer o caixa-pagador), o
138
estabelecimento bancário, pela economia de moedas divisionárias, e o
próprio INSS, que se torna credor do agradecimento de todos em face
da simples e benéfica idéia ― e sem perder nada.
ATUALIZAÇÃO DE VALORES PATRIMONIAIS
O controle interno foi, ademais, o propulsor de
atualização dos valores patrimoniais inseridos nos balanços da União.
A adesão unânime de todas as áreas setoriais foi o vigoroso remo que
impulsionou o barco então paralisado. Referimo-nos à urgente
necessidade de ajustar os números da escrituração patrimonial, o que
foi feito com invulgar interesse e entusiasmo. A incorporação de itens
novos, assim como a desincorporação de outros, por obsolescência ou
outros motivos, permitiram mostrar um conjunto mais representativo
ao espelhar, como espelhou, um universo mais vizinho da realidade.
Não foi tarefa fácil. Ficam aqui os agradecimentos a todos quantos
laboraram na faina comum. Os trabalhos foram fundamentalmente
desenvolvidos, é claro, dentro dos próprios Ministérios e órgãos, pelas
próprias equipes de gestores e controladores, com o fito de chegar a
resultados mais animadores do que os conhecidos. Os lançamentos
contábeis, na época, de ‘insubsistências ativas’, ‘insubsistências
passivas’, ‘superveniências ativas’ e ‘superveniências passivas’
captaram os fatos administrativos ligados à atualização. A tarefa,
contudo, não deve parar aí. Há que fazer levantamentos periódicos e
contrastá-los com as posições contábeis. O exemplo típico pode advir
das fazendas experimentais da agricultura, onde nascem e morrem
animais sem registro patrimonial. Ou, também, dos estabelecimentos
penais, onde se adquire linha, pano, palha, madeira e uma enorme
variedade de insumos ligados à produção de bens, inclusive
permanentes. Assim se exercita a laborterapia e se proporciona a
redução da pena imposta a sentenciados, além de proporcionar
ganhos financeiros compartilhados entre os artífices e seus familiares.
No entanto, surgem desse labor colchões, vassouras, cadeiras, camas,
tapetes, mesas e uma infinidade de produtos, sem controle contábil,
muitas vezes. É claro que nos referimos aos bens permanentes,
cadastráveis, e não aos de consumo. E é evidente, outrossim, nossa
intenção de melhorar os procedimentos, gradativamente, porque,
segundo dizia Iberê Gilson, ‘onde houver dinheiro público aí estará o
dedo do controle’.
139
FUNDOS DE NATUREZA CONTÁBIL
Originários da permissão contida na Lei nº 2.416, de
16/06/40, mais tarde substituída pela Lei nº 4320, de 17/03/64, os
fundos de natureza contábil captavam recursos não incluídos como
despesa no Orçamento Geral da União e não lhe agregavam as
receitas auferidas. Eram uma espécie de feudo, onde o suserano
arrecadava e gastava sem prestar contas aos súditos. Ora, a
expressão ‘contábil’, que os acompanhava, supunha haver uma
contabilização desses recursos. Não, não havia balancetes mensais
nem demonstrativos de saldos anteriores, receitas arrecadadas,
despesas realizadas e saldos para o período seguinte. O fato de serem
‘contábeis’ foi nossa justificativa para obrigar seus gestores a
apresentar seus demonstrativos contábeis para centralizá-los na
escrita geral da União, a nosso cargo. Foi uma epopéia, porque
ninguém estava acostumado a fazê-lo. E, quase sempre em nome do
suposto sigilo das operações, tentavam torpedear a medida racional
que determinávamos fosse posta em prática.
De nada valeu o argumento, e os balancetes dos
fundos contábeis fluíram normalmente e os balanços-gerais da União
puderam espelhar os números das operações até então ausentes. Era,
na prática, a extinção do Caixa 2.
UM PALESTRANTE FRUSTRADO
Em 1978, em Porto Alegre ― RS, a convite de meu
amigo e companheiro ímpar de tantas jornadas, Dr. Antonio Alves de
Oliveira Neto, então titular da Secretaria de Orçamento e Finanças ―
SOF, da SEPLAN/PR, pretendi fazer uma palestra, na sede da SOGIPA,
a seminaristas de orçamento público. Eram umas quinhentas pessoas
reunidas em auditório respeitoso. Cheguei antes, como de habito, e
pude assistir à palestra do Sr. Reinhold Stephanes, então presidente
do INSS e antigo Inspetor-Geral de Finanças do Ministério da Saúde,
sob o império do Decreto nº 64.136/69. Fiquei revoltado com a
anarquia orçamentária que ele pregava. Se não houvesse, por
exemplo, dotação suficiente à aquisição de medicamentos ou
esparadrapo, ele propugnava a utilização de qualquer outro recurso
orçamentário, por mais inadequado que fosse, para amparar a
despesa. Essa tese representava a anarquia do orçamento-programa,
140
seus desdobramentos e classificações. O pior é que o auditório
prorrompeu em palmas, a convalidar a absurda apelação. Senti-me
chocado e enviei um bilhete à Mesa, protestando contra a infeliz idéia
e lembrando ao orador nossa militância, ele na Saúde e eu no Órgão-
Central, Fazenda. Entretanto, ao que parece, a Mesa não fez chegar
meu protesto ao destrambelhado palestrante, anos depois guindado à
titularidade de um Ministério.
Ao chegar nossa vez de falar, como de hábito, sobre o
controle interno do qual havíamos nos despedido em 1972, tivemos
amável silêncio por parte dos presentes. De repente, porém, os alto-
falantes do corredor adjacente começavam a avisar que ‘a excursão
para Montevidéu está prestes a sair, e os inscritos devem tomar
assento imediato no ônibus’. A locução foi repetida umas quatro ou
cinco vezes, seguidamente. Foi o caos, a desordem. Os ‘turistas’
começaram a se levantar, a se acotovelar, a querer sair de qualquer
maneira e, a essa altura, já criando o ambiente desrespeitoso aos
colegas que permaneciam sentados e ao modesto palestrante, que
ingenuamente supunha estar alguém interessado em ouvi-lo. Está
claro que tivemos de encerrar abruptamente nossa palestra através
do artifício de que ‘não há clima, a partir de agora, para prosseguir
em nossa explanação’.
O DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL
Lá pelos anos 82, o Departamento de Imprensa
Nacional emitiu uma circular comunicando a todos os órgãos federais
que se achava em condições operacionais de fornecer, além do Diário
Oficial, impressos de uso comum, tais como notas de empenho,
ordens de pagamento, papel para escritório, envelopes e muitos
outros formulários usados nas repartições. Éramos o titular da
SECIN/SEPLAN/PR, e nos apercebemos da sensível economia que se
obteria se todos passassem a comprar do DIN. Sua Diretora-Geral, Sra
Dinorah Moraes Ferreira, havia feito curso de artes gráficas na
Alemanha e mandava confeccionar nas máquinas da Imprensa
Nacional os balanços-gerais da União, os relatórios administrativos e
técnicos e as capas com que se encadernavam essas peças. Emitimos,
em face desse comunicado, uma recomendação a todos os órgãos
setoriais de nosso Sistema e, também, aos responsáveis pelas
diferentes áreas da própria SEPLAN/PR, inclusive o Departamento de
141
Administração. Alertávamos para a sensível economia que todos
poderiam obter se comprassem daquele órgão, diretamente, todos os
artigos de escritório de que necessitassem, com a vantagem adicional
de que não se fazia necessário o processo licitatório. Foi, de novo, um
‘ai-jesus’. Estávamos redondamente enganados ao pensar que alguém
estivesse motivado a poupar recursos orçamentários. Os que estavam
habituados a comprar nas papelarias e gráficas particulares foram os
primeiros a profligar a medida, de resto moralizadora, porque, a partir
desse momento, cessariam os afagos dos antigos fornecedores.
Uns dias após a emissão de nossa Circular, recebemos
grosseiro ataque do jornal O Estado de S. Paulo, que, em editorial,
nos açoitava em nome da livre iniciativa por nós agredida e que
passaria a perder suculento naco de seu faturamento. Concluía o
libelo pedindo às autoridades superiores que determinassem a
extinção da nefanda e execrável medida protetora dos cofres públicos.
Nesse mesmo dia, encaminhamos àquele periódico nossa resposta,
respaldada no simples argumento da economicidade adjacente. Na
verdade, o Estadão não estava defendendo a iniciativa privada, da
qual fazia parte, mas seus próprios interesses, já que mantinha ao
lado do jornal um parque gráfico produtor, por exemplo, das listas (ou
catálogos) telefônicas, sob a sigla OESP. Não foi o patriotismo nem
tampouco a defesa dissimulada de supostas agressões ao conjunto
empresarial. Foi a defesa em causa própria, a defesa do próprio bolso.
Entretanto, e apesar da gritaria, as encomendas de impressos
passaram a percutir o Depto. de Imprensa Nacional, vinculada ao
Ministério da Justiça. Houve economia, não apenas de recursos
orçamentários senão, em particular, de intimidade ou duvidoso
relacionamento entre compradores e fornecedores. Ainda hoje, se lá
estivesse, repetiria a dose. É muito salutar, e mais ainda no serviço
público, não ter o ‘rabo preso’, como se diz à boca miúda. Colocava-
me por vezes na pele de Dom Quixote, a enfrentar o poderoso
exército dos maus gestores do dinheiro público.
CONGRESSOS, SIMPÓSIOS E...TURISMO
Depois do desagradável episódio de Porto Alegre, em
que narrei a debandada dos seminaristas de orçamento rumo ao
ônibus com destino ao Uruguai, restou-me a convicção de que
trabalho e turismo não se coadunam, ao menos concomitantemente.
142
E aconselho a todos que prefiram o turismo, o passeio de barco e a
água de coco geladinha, ou o bom vinho das serras gaúchas, em
lugar da monotonia da palestra fastidiosa e cansativa. Nada de
inscrições, pranchetas, monografias, apostilas, canetas e crachás.
Talvez uma fascinante viagem incluindo visita a pagodes asiáticos e
faustosos banquetes fosse o bálsamo e o refrigério para quem é
obrigado, sempre contra a vontade, a receber a claridade dos
holofotes e a presença de uns dez microfones. Velejar por Angra dos
Reis, por exemplo, se possível com o apoio de alguém que patrulhe o
mar e o torne exclusivo para nosso passeio, é outra sugestão para
atenuar os aborrecimentos de quem é obrigado a visitar países de
outros continentes. Nada de trabalho. No entanto, é necessário o
disfarce, para efeito popular, de que isso não é passeio turístico, e
apenas uma enfadonha obrigação ligada ao árduo trabalho.
Não sei por que razão o humano Presidente João
Baptista de Oliveira Figueiredo não usufruía tais benefícios, ou
melhor, não se adaptava a reuniões de trabalho no exterior. Ele era,
todavia, autêntico. Preferia a companhia de seus cavalos, que nada
lhe pediam além de milho e alfafa e muito menos o incomodavam
com os conchavos da suposta governabilidade. Como diria um
folclórico presidente do clube Corinthians Paulista, os animais são
mais humanos que as pessoas.
O PROJETO VERAMA
Tive oportunidade, quando me tornei Inspetor-Geral de
Finanças do Ministério da Agricultura, a partir de 15 de março de
1979, em Brasília-DF, de conhecer, em caráter reservado, o trabalho
‘Projeto Verama’. Eu já sabia que o modelo das IGFs estava a carecer
de reforma substancial, que lhe devolvesse a autoridade e os meios
para fazer ressurgir o controle interno e arrancá-lo do marasmo a que
pouco a pouco era condenado. Colegas antigos, a esta altura todos
sediados na Capital Federal, nos reportavam sua decepção em face do
visível enfraquecimento. Esboroava-se o sonho dos reformistas de
1967, que preconizavam um controle sistêmico e de fato atuante.
Lembrei-me de que a área de auditoria, em vez de
respeitada, era achincalhada. É fácil o raciocínio: se os dirigentes da
Casa são escolhidos pelo mesmo ministro que escolhe o IGF, a
convivência entre ambos, controladores e controlados, passa a entrar
143
em crise, a sofrer desgaste, quando o relatório não produz encômios,
mas vergastadas. E aí meu pensamento retornou aos anos 70, em
que um incêndio destruiu nossas instalações, no Rio, mas nunca os
nossos ideais.
Uma das premissas do Verama advogava a presença da
auditoria no mais alto escalão do Executivo, sob a direta autoridade
do presidente da República, para que nenhuma injunção se
interpusesse aos resultados colhidos pelos auditores. Esse era o
cerne, o âmago, o centro do estudo. E nós, que sempre pregávamos
a auditoria imune a pressões políticas, de compadrio ou de amizades
pessoais, nos rendemos à evidência de que o caminho adequado era
esse, direto, sem esconsos nem trilhas a toldar a caminhada. Depois
da leitura do trabalho, pude me reunir com a maior parte da equipe
que o produziu. Acabei aderindo à idéia ― quem não o faria? ― de
que a centralização da auditoria na Presidência da República era
imposição natural.
Cinco meses depois, em agosto/79, passei a ser o
Inspetor-Geral de Finanças da Secretaria de Planejamento da
Presidência da República ― SEPLAN/PR, acompanhando de novo o
Ministro Delfim Netto, já agora como titular daquela pasta.
Nunca nos habituamos à prática de repentes.
Preferimos, sempre, o amadurecimento natural das idéias, de molde a
testar a presença de aspectos negativos e positivos inerentes a
qualquer inovação.
Não levei a idéia do Verama a meu chefe, de inopinado.
Lembrei-me, em minhas elucubrações, da viagem oficial que fiz aos
Estados Unidos da América, sob os auspícios da USAID, em
novembro/67, na qualidade de titular da IGF ― Fazenda. Aprendi que
o Bureau of Budget (Escritório de Orçamento, em tradução livre)
mantinha a figura do comptroller, controlador supremo dos dispêndios
federais. Essa autoridade, com poderes ilimitados em sua esfera de
ação, era nomeada pelo prazo de 10 anos consecutivos, sem
recondução, para fiscalizar o Executivo, embora oriundo do Congresso
que havia aprovado o Orçamento. Não poderia ser afastada ou
substituída em qualquer hipótese. Daí o natural comentário de nossos
interlocutores de que, ‘se esse homem for mal escolhido, a
Administração terá de suportá-lo por todo esse tempo’. ‘Mas, se for o
bem, será uma pena vê-lo sair ao fim do mandato’. É isso,
precisamente isso. Em outros países, teoricamente, poderia haver até
144
laudos atestando a insanidade do controlador com o fito de alijá-lo.
Tivemos a alegria de conhecer o comptroller. Era um homem
relativamente idoso e nos dizia, em tom sério, que iria brevemente
pagar uma promessa feita à esposa, de que estava na hora de chegar
a hora de largar tudo e ir pescar. Creio que o merecia, segundo as
carinhosas referências de seus comandados.
Já na SEPLAN/PR, como falei, procurei depois de algum
tempo de reflexão o Professor Delfim, a fim de motivá-lo a ajudar a
mudar as coisas. Disse-lhe das idéias do Verama, em essencial das
que propunham a centralização da auditoria interna no âmago da
Presidência da República. Seria a redenção, a volta aos pressupostos
do respeito e a certeza de que ninguém se atreveria a praticar atos
mesquinhos, corporativos ou de fuga aos preceitos da higidez
administrativa. Inteligente, arguto, o Ministro Delfim Netto percebeu o
alcance da idéia, à qual aderiu, mas com uma ressalva: a Auditoria
deveria ficar por enquanto circunscrita ao âmbito da SEPLAN,
centralizadamente. O raciocínio era perfeito. Afinal, a SEPLAN estava
diretamente subordinada à Presidência da República.
Era a primeira vitória, sem dúvida. A reformulação
começava a ganhar corpo, dentro do espírito de agregação de forças
numa só repartição.
Com o sinal verde posto nesses termos, pudemos
estabelecer a estratégia, em que pesou por igual a contraposição que
a IGF ― Fazenda, então Órgão Central, provavelmente adotaria. Foi
constituída, sob nossa presidência, uma comissão interministerial de
alto nível, formada pelos mais destacados lideres do controle interno,
para debater as propostas e colocá-las no papel. Das reuniões,
bissemanais, emergiam convergências e discrepâncias, todas
respeitáveis e, sempre que possível, consideradas nas minutas que se
sucediam. Muitos titulares de IGFs não oficialmente representados
apareciam de quando em vez para acompanhar as linhas do contorno
esboçado. E nos davam sua opinião sobre o futuro modelo
precolocado em nossas reuniões.
Havia, no entanto, quem procurasse revelar seus
propósitos meramente pessoais, como o fez o titular da IGF ― Minas
e Energia, Francisco das Chagas Mariano, que comparecia a todas as
reuniões não para conhecer os alinhavos que íamos tecendo, mas,
sobretudo, para saber qual seria o valor... do DAS no futuro modelo.
E, pior, não se mostrava reservado ao fazê-lo. O importante era
145
adivinhar quanto receberíamos por um trabalho que nem estava
concluído. Esse tipo de reflexão não pode prevalecer.
Aos poucos foi emergindo a redação final e, com ela, a
inconformidade da IGF ― Fazenda ante a perda do poder central.
Pronto o trabalho, que propunha a transferência dos poderes da IGF
― Fazenda para a SEPLAN/PR, e nela instalava o Sistema de Auditoria
centralizado, demos por finda nossa colaboração. O Ministro Delfim
Netto levou o projeto de decreto, com a devida justificativa, ao
Presidente Figueiredo, que o despachou, para exame, ao Gabinete da
Casa Civil, dirigido pelo inesquecível General Golbery do Couto e Silva,
por sinal, o criador do Serviço Nacional de Informações ― SNI, extinto
no Governo Collor. O exame gramatical da peça ficou, como de
hábito, a cargo do excelente Professor Carvalho, lotado na Casa Civil e
profundo conhecedor da língua portuguesa, de redação e de técnica
legislativa. Foi nosso primeiro contato pessoal, em que nosso trabalho
foi acolhido, sem qualquer observação, por quem sabia fazê-lo. Bons
tempos, aqueles.
Vencida essa etapa, faltava o exame do mérito, da
conveniência e da oportunidade de se produzir um novo desenho
representativo do controle interno. Aí começou o drama. Fomos
convocados pelo Gal. Golbery, que chamou também o meu prezado
amigo de tantas jornadas, o leal Antonio Alves de Oliveira Netto,
investido no comando dos Sistemas, ante sua titularidade no cargo de
IGF ― Fazenda. Para nossa sorte, foi igualmente convocado (ou pediu
para ser convocado, não sei) o Sr. Márcio Fortes, Secretário-Geral da
Pasta da Fazenda e que, com a palavra inicial, foi logo fulminando o
novo modelo, mais para não perder a liderança das IGFs e menos
para reconhecer, malgrado o esforço da maioria dos integrantes do
controle interno, que o instrumento em vigor estava falido, acuado e
desmoralizado. Ninguém dispunha de força suficiente para coibir a
prática de má-gestão de dinheiros, valores e outros bens públicos.
Aparteei-o seguidas vezes, diante do Gal. Golbery,
quanto aos aspectos legislativos que pretendia questionar. Houve um
instante em que o Sr. Fortes, perdendo a calma, alegou que eu não o
deixava falar. Respondi que, enquanto não se cingisse estritamente
aos ditames legais ― que não por acaso eu conhecia muito bem ― eu
continuaria a aparteá-lo, até que chegasse minha vez de falar.
Produzi, em seqüência, um relatório verbal e sucinto acerca dos
modelos anterior e proposto, com a culminância de tentar a realização
146
de um trabalho de verdade, sério, e não para transformar o controle
interno num faz-de-conta. Fez-se silêncio. Aguardava-se a palavra de
quem nos convocara. Veio então a decisão, memorável, mais ou
menos com estas palavras: ‘O controle interno, do jeito que está hoje,
não funciona. Vamos experimentar o novo modelo proposto. Se não
funcionar, paciência, mas não custa tentar’. Esse texto, citado de
memória, foi um endosso, um aval, um crédito de confiança e, ainda
mais que isso, a esperança do Governo João Baptista de Oliveira
Figueiredo na colheita de resultados mais animadores que as safras
da época não logravam conseguir.
Saí dali em disparada, rumo ao gabinete do Professor
Delfim, para transmitir-lhe a notícia, em primeira mão, antes que
outrem o fizesse. Essa é a gênese, por inteiro, do Decreto nº 84.362,
de 31/12/79, publicado no mesmo dia e que circulou em 04/01/80.
O destino me faria pai, pela segunda vez, do controle interno. A
primeira, como disse, em 1967, ao instalar o conjunto IGFs. Eu
chamava as IGFs setoriais de ‘minhas meninas’, tal o amor com que
me lancei à tarefa de torná-las exemplares e responsáveis. Aos 13
anos de idade, o Decreto nº 84.362/79 as fez renascer sob o novo
nome de Secretarias de Controle Interno ― CISETs e nova roupagem
de atribuições. A IGF ― Fazenda, a seu turno, depois da devoção de
Arthur Pereira, que nos sucedeu, e, mais tarde, de Antônio Alves de
Oliveira Netto, que igualmente a engrandeceu, viu sua competência
adjudicada à Secretaria Central de Controle Interno ― SECIN, da qual
fomos o primeiro titular, mercê da renovada confiança do Ministro
Antonio Delfim Netto, que nos indicou ao Chefe do Executivo.
Deus sabe das dificuldades que se nos antolharam, da
guerra surda, ostensiva ou disfarçada que nossos antigos
colaboradores e auxiliares declaravam contra seu antigo chefe. O
poder embriaga, tolda a visão e veste de ridículo os que raciocinam
em função de seu ego. Havia, na verdade, tão-somente o supremo e
legítimo dever do País no sentido de prover de condições mínimas de
funcionalidade a regência das relações entre controlados e
controladores. Não me recordo de haver recebido sequer um
telefonema ou visita de ministros do TCU sobre a hercúlea missão
posta diante de nós. Seria até despiciendo supor descessem do alto
de sua majestade para render homenagem ao titular da SECIN. Pena
é que lá não estivesse essa criatura boníssima e simples, Iberê Gilson,
que não telefonaria, mas viria a nosso encontro, em mangas-de-
147
camisa, como nos velhos tempos do Rio de Janeiro, para cingir-nos
com seu abraço de fraterna amizade. Nunca mais o vi. As brumas do
tempo não me favoreceram com a continuidade do convívio
reconfortante, respeitoso e bom.
O ARCABOUÇO DA SECIN
Faz-se necessário esclarecer que o Ministro Delfim
Netto nos proporcionou a independência necessária ao preenchimento
dos cargos, tal como já o fizera na montagem do Sistema IGFs. Isso
nos permitiu convocar estritamente os melhores profissionais dos
quadros técnicos dos diferentes Ministérios. Nenhuma interferência
política e nenhuma relação de amizade prevaleceu. A avaliação do
mérito se deveu estritamente ao currículo de cada um. Como
conseqüência, os delegados regionais de contabilidade e finanças em
cada capital de Estado foram empossados graças a seus méritos. A
maioria deles me era pessoalmente desconhecida. Lembro-me até de
haver telefonado ao Sr. César Augusto Incot, para informá-lo de que
seu padrinho político o havia feito delegado da SECIN no Estado do
Paraná (Curitiba). ‘Como? ― estranhava ―, eu não tenho padrinho
político’. ‘Tem, sim, redargüimos nós. É o seu currículo!’ No dia da
posse, coletiva, lá estavam todos, homens e mulheres, a se identificar
mutuamente e eu, no meio deles, a tentar descobrir quem era fulano,
beltrano e sicrano. Foi uma decisão feliz, porque todos se revelaram
capazes e atentos e nunca atrasaram a remessa dos balancetes
incorporados à centralização contábil. O digno Professor Delfim sabia
ser essa a melhor maneira de cumprir tarefas que implicavam elaborar,
em última análise, os balanços-gerais da União dentro do prazo
constitucional, até 30 de abril do exercício financeiro subseqüente.
A CONTADORIA GERAL DA REPÚBLICA
O Decreto-Lei nº 200/67, como já disse, é a gênese de
nossa existência. Ao lado da Constituição de 1967 (24/02/67), a
Administração Superior de nosso país passou a contar com um
controle orgânico e sistêmico disseminado pelas diferentes áreas
setoriais e tendo com ápice da pirâmide a IGF ― Fazenda, dita Órgão
Central. Fui, por imposição do destino, o coveiro da Contadoria Geral
da República, que tanto admirava e respeitava, e cujos assinalados
148
serviços prestados ao Brasil se confundiam com a própria história que
ajudou a escrever. Como egresso da Contadoria Central do Estado de
São Paulo, colocada no organograma da Secretaria da Fazenda,
sentia-me absolutamente à vontade, em casa, para assimilar as lides
orçamentárias, a execução financeira, a escrituração pública,
financeira e patrimonial de toda a intrincada cadeia de atribuições
inserida no campo das finanças públicas. Falávamos a mesma língua,
embora os números fossem bem mais longos. Créditos especiais,
despesas extra-orçamentárias, restos a pagar, despesas de exercícios
anteriores e quejandos constituíam a base de nossa atividade,
primeiro obediente ao Dec. Lei nº 2.416 e, depois, à Lei nº 4.320, de
1964, que rege a matéria até hoje. Integrante da Equipe Delfim
Netto, fui designado Assessor-Chefe do Gabinete do Ministro, já em
março/67. Foi assim que pude conhecer a CGR e já me familiarizava
com os Assessores Jonil Rodrigues Loureiro e Marcos Vinicius Mendes
Bastos, com os quais trocava impressões a respeito da competência
da notável Instituição. O último Contador Geral da República, Dr.
Álvaro Brandão, nos recebeu amavelmente nessa fase. Disse-nos
estranhar nossa presença, porque ninguém havia até aquela data
procurado a Contadoria Geral da República para buscar informações.
Tranqüilizei-o dizendo que minhas visitas ali tinham caráter
meramente técnico, porque me considerava oficial do mesmo ofício,
ao mesmo tempo em que colhia dados para manter o Ministro Delfim
a par do andamento da execução orçamentária e financeira. Mal sabia
eu que, mais tarde, lá por volta de novembro/67, eu me tornaria, sem
querer e sem pleitear coisa nenhuma, o Inspetor-Geral de Finanças do
Ministério da Fazenda e com a responsabilidade adicional de ser o
Órgão Central dos Sistemas de Administração Financeira,
Contabilidade e Auditoria. Assim terminou a atividade da Contadoria
Geral da República, fértil, valiosa, respeitada. E a fecundidade de
Álvaro Brandão não se encerrou aí, porque foi merecidamente
guindado ao cargo de Inspetor-Geral de Finanças do Ministério do
Interior, com o advento dos Decretos nº 64.135 e nº 64.136/68.
CONSTRUIR OU REFORMAR?
Talvez valha a pena, meu prezado Dr. Daniel, abordar o
sempre momentoso problema relacionado à construção ou à reforma
de alguma coisa. Há adeptos e inimigos dos dois lados. Há correntes
149
apaixonadas pela construção, porque o resultado observa
precisamente o que foi planejado. E as há a favor da reforma, porque
se conserta exatamente aquilo que não funciona, que prejudica o
conjunto. Muitas vezes as falhas ou os defeitos não estão colocados
na parte material, física, das coisas, mas, na verdade, nas pessoas
incumbidas de fazê-las operar. Não adianta fazer reformas num
edifício e nele conservar as mesmas pessoas que o danificaram.
Também de nada vale construir algo e não saber selecionar as
pessoas certas para cuidar disso. Afinal, reforma ou construção? Qual
a opção mais consentânea? Que nossos eventuais leitores decidam.
Apenas diremos, sem pretender colocar lenha na fogueira, que o
Decreto-Lei nº 200 foi conhecido como ‘reforma administrativa’.
Deveria funcionar bem, porque as alterações produzidas na
Administração Federal foram relevantes, de grande valor no campo
das inovações. E talvez tenha falhado ao manter nos cargos novos o
ranço de vícios antigos trazidos pelos mesmos indivíduos responsáveis
pelos procedimentos que sugeriam as reformas. Talvez um sociólogo
ou um pesquisador independente, ligado apenas à tese, nos possa
responder com a exatidão desejável. Fica a sugestão no sentido de o
fator preponderante a definir possa dizer se é melhor construir,
reformar... ou destruir.
Sou suspeito para influenciar a resposta, porque sou o
‘pai’ da corporificação de uma idéia trazida por uma... reforma.
REMINISCÊNCIAS
O controle interno, meu caríssimo Autor, sempre esteve
presente na luta contra a corrupção, os desmandos e a malversação
de bens e outros valores públicos. Foi relativamente fácil redigir o
Dec. nº 64.135 e o nº 64.136, ambos de 25/02/69, aquele dispondo
sobre o Regulamento da IGF ― Órgão Central e este editando o dos
Órgãos Setoriais (IGFs e equivalentes). Difícil, mesmo, foi outras
áreas tolerarem a presença dos órgãos de controle, inclusive os da
área de auditoria, que, embora disseminada e, pois, adstrita aos
próprios Ministérios a que se filiava, começava a incomodar. O caso
do incêndio de 14-15/10/70 é uma clara confissão de ‘delenda
Cartago’ (destrua-se Cartago, diziam os romanos). Algumas
autoridades não se pejavam da prática habitual do trato da coisa
pública como se fosse propriedade privada. E, quando apanhadas,
150
vociferavam e procuravam seus superiores hierárquicos com o escopo
de denegrir a conclusão que os desabonasse ou que não coadunasse
com suas práticas habituais.
Cabe-me declarar, por dever de lealdade e de
admiração, que o Professor Delfim Netto sempre nos estimulou
encorajando-nos a fulminar procedimentos acaso incorretos. De
minha parte, procurei corresponder a quem me abria as portas da
generosa confiança trabalhando com seriedade e o rigor uniforme do
comportamento, e sem deixar de deferir o respeito merecido a quem
mourejava com natural dignidade.
Ainda hoje, e desgarrado da equipe que se dissolveu
em 15/03/85, com o término do período governamental do Presidente
Figueiredo, costumo dizer que não fui o mais culto e capaz, mas, sem
dúvida, reivindico o qualificativo de mais leal ou fiel integrante de sua
homogênea turma, iniciada com os Delfim Boys, em 1966, na
Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, quando passei a
presidir a Comissão Central do Orçamento. O apêndice boys nunca se
aplicou a mim, claro, porque sempre fui o mais idoso da equipe,
embora, para meu consolo pessoal, todos eles estejam hoje, como eu,
exibindo seus cabelos encanecidos.
A confiança recíproca produz milagres. E resultados
bons. Nossos colaboradores diretos, por exemplo, sempre foram
escolhidos sem a interferência de corretores (que acabariam sendo
seus chefes de fato), mas à custa de seus próprios méritos.
Pertenci, nos anos 1959/1963, à equipe técnica do
digno Governador do Estado de São Paulo, Professor Carlos Alberto
Alves de Carvalho Pinto, que me foi buscar, quando Secretário da
Fazenda, nos quadros da própria pasta. O Prof. Carvalho Pinto
representou uma das mais belas e soberbas páginas que já se
escreveram a respeito de sua devoção ao serviço público. Ao lado do
não menos ilustre Governador Lucas Nogueira Garcez, formou a díade
que cristalizou o respeito de todos os paulistas. Era aclamado, nas
raras vezes em que comparecia, em feiras, exposições e praças
públicas. Não dispunha de tempo para o Lazer e muito menos se
comprazia em viagens de turismo rotuladas como necessárias à
assinatura de pactos ou tratados. Trabalhava aos sábados, domingos,
feriados e dias santificados. E nós, de sua equipe, também o
fazíamos. Afinal, dezenas ou centenas de processos ou expedientes
diários a examinar aguardavam decisão a respeito de dotações
151
orçamentárias em benefício de secretarias de Estado, autarquias,
prefeituras municipais e, também, de entidades merecedoras de
auxílios e subvenções. O Prof. Carvalho Pinto somente passou a
confiar em nós quase dois anos depois. Nada assinava ou despachava
sem perguntar o motivo e a finalidade do dispêndio e sua
conformidade às leis e regulamentos. Com o tempo assinava ‘de cruz’,
depois de lida superficial, porque percebeu que fazíamos a triagem de
tudo e desse modo evitando que sua eventual decisão viesse a
comprometê-lo. Paradoxalmente, acho que foi mais fácil trabalhar
com o Prof. Carvalho Pinto, que tudo perguntava e examinava antes
de assinar, assim assumindo toda a responsabilidade. Já o Prof.
Delfim Netto, ao contrário, nos conferia o obséquio de sua confiança.
Costumava assinar os despachos que lhe submetíamos à assinatura
sem prolixas indagações. Era direto. Acreditava em sua equipe. Essa a
razão pela qual suponho ser mais difícil trabalhar com quem confia
em nós, porque poderíamos maldosamente ou não preparar um
‘despacho-armadilha’ e comprometer quem o subscreve. Já o
desconfiado ou o receoso nunca poderia nos acusar de algo errado,
porque simplesmente argumentaríamos com o fato de ele nunca
haver assinado qualquer coisa de boa-fé ao fazer questão de checar e
confrontar o fulcro da matéria. Já se faz longa essa exposição. E
percebo não poder ultimá-la sem a adição de certos ingredientes que
se me afiguram imprescindíveis ao conjunto.
À GUISA DE ENCERRAMENTO
Muitas coisas mais poderiam ser aditadas, mesmo com
o alongamento já notado. Creio, no entanto, meu caro e bom amigo
Daniel, haver percutido alguns pontos cruciais objeto das justas
preocupações inscritas em sua obra ‘Bandeira Contra a Corrupção &
Suas Irmãs Siamesas’. O livro é, antes de tudo, um bom repositório
da legislação atinente aos controles interno e externo. E é visível
fonte de receio relativamente aos predadores do Erário, que fingem
ou não acreditar nas algemas que os atiraria na masmorra dos
demolidores de recursos financeiros e morais. Sempre existiram e
continuarão proliferando os dilapidadores, aqueles que exercitam seu
mister lobrigando proveito pessoal e não o da coletividade a que
deveriam servir. Para esses, entre os quais as ‘jorginas’ e os ‘lalaus’
da vida, tanto faz que haja controle ou não, inclusive de foro íntimo. A
152
ânsia de se locupletarem é bem maior do que a educação recebida de
seus pais e cuja permanência no íntimo se revela incapaz de resistir
ao apelo das pessoas de bem, daquelas cujo rosto se ruboriza quando
sentem vergonha. Faz-se por igual aconselhável que as prestações de
contas revestidas de boa apresentação sejam submetidas a exame
profundo quanto ao mérito, quanto à legalidade e quanto à obtenção
física daquilo a que se propunham. Muitas vezes uma pessoa
simplória presta contas sem o estardalhaço das molduras bonitas, que
muitas vezes só servem para a distração do observador na realidade
interessado na tela. A regra dos procedimentos de auditoria é clássica
e definitiva: é forçoso desconfiar, em especial quanto ao conteúdo. E
nada custa fazer o teste de verificação de notas fiscais anexadas,
buscando na fonte emissora a certeza ou não da credibilidade. Não é
preciso ensinar que muitas notas fiscais são impressas em ‘gráficas-
de-fundo-de-quintal’, com endereço forjado. E é necessário
precipuamente observar se os valores lançados na primeira via são os
mesmos que constam da cópia. Mais ainda: verifique-se se as
mercadorias ou os serviços ali descritos foram realmente fornecidos.
São pequenas verificações, as quais, contudo, devem ser objeto de
fiscalização.
SUGESTÕES FINAIS
Não desejo concluir minha apreciação sem oferecer
algumas sugestões visando ao bom desempenho da máquina pública:
a) aceite-se nossa tese de que o controle é um só,
sem adjetivação. A integração dos campos interno e
externo somente seria factível se a vaidade não
permeasse os momentos de execução dos trabalhos
das equipes técnicas libertas, antes de tudo, de
indicações políticas ou de amizade e que atuassem
em conjunto. Ao falar em equipes técnicas, estamos
nos referindo àquelas cujo propósito é operar seus
deveres com independência e sem o receio de
agradar ou melindrar seus padrinhos ou superiores
hierárquicos;
b) reconheça-se haver gritante descompasso entre a
vontade de trabalhar seriamente e a recepção que
153
os mal-intencionados dedicam aos procedimentos
assim gerados. Há uma lei, não escrita, que
prescreve: ‘toda idéia, ainda que excelente, deve
ser ferozmente combatida, se não for derivada de
nossa iniciativa pessoal’;
c) observe-se quão necessária e prejudicial é a
proliferação de leis, decretos, portarias e, muito
especialmente, medidas-provisórias para reafirmar
coisas existentes. Na maior parte das vezes,
bastaria um aperto ou ajustamento aqui ou ali, de
sorte a preservar a unidade do conjunto, e sem
necessidade de editar o supérfluo. Basta cumprir e
fazer cumprir o que já existe. A propósito, vale
transcrever, ainda que parcialmente, o pensamento
do Senador Fernando Henrique Cardoso (‘apud’
Clóvis Rossi, in Folha de S. Paulo, 09/02/01) que,
em memorável discurso no Congresso Nacional,
transcrito pela mesma Folha em 07/06/90, assim
protestava: ‘O Executivo abusa da paciência e da
inteligência do país quando insiste em editar
medidas provisórias sob o pretexto de que, sem sua
vigência imediata, o Plano Collor vai por água
abaixo e, com ele, o combate à inflação... Ou o
Congresso põe ponto final no reiterado desrespeito
a si próprio e à Constituição, ou então é melhor
reconhecer que no país só existe um ‘poder de
verdade’, o do presidente. E daí por diante
esqueçamos também de falar em democracia’. Pois
é;
d) as chamadas leis de licitações e contratos,
conquanto paulatinamente aperfeiçoadas, timbram
em manter exceções ao processo normal da
universalidade de interessados (ou concorrentes).
Uma delas, quiçá a mais escandalosa, é a que
permite dispensa de licitação quando estiver
configurada a ‘notória especialização’. Essa é a
brecha por onde caminham os fornecedores
154
‘especializados’ de bens e serviços supostamente
mancomunados com os responsáveis pelo processo
decisório. Embora a lei se esforce por explicar os
critérios a observar na adjudicação em favor de
pretensos ‘especialistas únicos’, pensamos ser
imoral tal procedimento. Ninguém está no mundo
sozinho. Por mais notória que se afigure a
capacidade do ‘vencedor por antecipação’, sempre
haverá quem domine a arte de produzir coisas ou
realizar serviços elencados como de ‘notória
especialização’. É preciso banir tais negociatas.
Urge do mesmo modo fulminar as precondições
disfarçadas sob ‘critérios técnicos’ excluindo, por
exemplo, os concorrentes que não consigam
comprovar a feitura de uma obra ou serviço do
mesmo porte do objeto da licitação. Um engenheiro
tanto sabe executar 20 metros de piso quanto 200
ou 20.000. Não pode ser eliminado a priori se
nunca teve a sorte ou a chance de realizar obras
tão grandes quanto as encaixadas no modelo sob
competição. A regra é bastante simples. Quem sabe
construir uma estrada com 5 quilômetros de
comprimento saberá construí-la com 100 ou 1.000.
Não há necessidade de se impor aos concorrentes
as esdrúxulas cláusulas restritivas que os afastem
do pleito. São imposições sub-reptícias, maldosas,
para dizer o mínimo;
e) concordo, em parte, com a sugestão colocada às
páginas 182 e 183, a propósito da concepção de um
órgão de controle interno mais robusto. O primeiro
passo será colocar um comptroller técnico, sem
filiação política, ao lado do presidente da República,
pelo prazo de 10 anos. Seu mandato, a exemplo da
administração norte-americana, deveria extrapolar o
do chefe do Executivo. Deveria ser escolhido,
preferentemente, por quem disputasse o cargo
mediante concurso público e não se submetesse a
qualquer forma de injunção. Deveria pôr no ‘olho-
155
da-rua’, sem contemplação, e apenas com o ad
referendum do Executivo, o mau administrador, o
negocista, o trampolineiro, o arrivista, o
malversador de recursos, o freqüentador do turismo
disfarçado de simpósio e tantos outros mais cuja
preocupação única é sorver o leite generoso que
jorra das glândulas mamárias do Tesouro Nacional,
intumescidas pelos impostos e taxas cobrados do
povo. Talvez uma drenagem nas torneiras dos
gastos ensejaria a possibilidade de proporcionar
algum aumento de vencimentos aos funcionários
públicos, há quase sete anos sem atualização, nem
mesmo correspondente aos índices inflacionários;
f) nosso Decreto nº 84.362/79 ensejou um melhor
figurino em prol do controle interno e teve como
um de seus pontos culminantes a centralização da
auditoria no organograma do órgão central, a
SECIN/SEPLAN/PR. Foi um começo de
independência. Os auditores, retirados dos
Ministérios em que atuavam e colocados sob
comando único, já podiam, como puderam, se livrar
das peias que os atavam à hierarquia anterior.
Conseqüentemente, sem o receio da represália, já
podiam elaborar seus relatórios. Foi um tempo feliz,
testemunhado pelo meu prezado Dr. José Daniel de
Alencar, que os dirigia sob essa égide e os
estimulava à prática da independência, ingrediente
fundamental da auditoria em qualquer parte do
mundo. A idéia do Projeto Verama fica assim
resgatada, ao menos em parte, porquanto se
tornou inatingível, logo ao primeiro impacto, o
propósito de colocá-la sob o direto comando do
presidente da República. Mas, enquanto esteve
conosco ― e éramos parte da Presidência da
República ―, mereceu a dignidade a que fazia jus.
Tudo isso está hoje destruído. Os auditores
voltaram ao jugo dos próprios Ministérios, em nome
de uma descentralização fadada ao fracasso,
156
porque inoperante, sem independência e com o
temor de relatar os fatos desabonadores dos
‘manda-chuvas’ de plantão. A auditoria precisa
voltar ao processo centralizador;
g) seria esse o verdadeiro controle interno, com o
poder de vetar, inclusive, a distribuição de novos
recursos a dirigentes, administradores e
ordenadores de despesa cujo comportamento já
houvesse ultrapassado os limites da decência. Claro
está que deveria haver, em cada Ministério, uma
espécie de autoridade incumbida do poder de sustar
a realização da despesa, ou seja, um ‘controlador
interno’. Seria uma figura quase equivalente à do
Secretário de Controle Interno ― CISET, mas
estreitamente voltada ao binômio custo/benefício.
Aplicaria poderosa ênfase aos aspectos de realidade
física, medida, pesada, fotografada, para que
nenhuma dúvida subsistisse quanto à efetiva
entrega da coisa contratada. Registre-se, por
oportuna, a advertência outrora feita pelo Ministro
José Pereira Lira, ex-presidente do TCU, em que
divulgava o conjunto de uma convincente prestação
de contas revestida de todos os requisitos
indispensáveis a seu acolhimento, tais como
documentos, notas fiscais, recibos e outros papéis
ligados à construção de uma obra... inexistente.
Para nós, contudo, a obra tinha existência física,
sim, embora erguida em terreno estranho à União.
Esses delegados setoriais, como dissemos,
investidos do poder de veto, inclusive, seriam assim
como ‘preparadores de expedientes’, para fugir à
cediça e desgastada figura de Secretário de
Controle e escolhidos pela moralizadora porta do
concurso público. E permaneceriam no cargo
enquanto durasse o mandato do ‘controlador geral’
(comptroller), supostamente de dez anos. Quem, no
entanto, assimilaria a idéia? e
157
h) a tese enunciada no inciso anterior é aplicável, em
igual e rigorosa medida de equivalência, ao Tribunal
de Contas da União. Não há necessidade de manter
o cenário aparatoso de ministros travestidos de
julgadores e não escolhidos, como no respeitável
Poder Judiciário, por concurso ou através de
promoção na carreira. Será pelo menos útil acabar
com o ‘julgamento político’, não técnico, destruidor
do ânimo com que a equipe incumbida do controle
externo se volta para as tarefas de instrução dos
processos levados a julgamento, por sinal, em
harmonia com o manancial fornecido pelo controle
interno. Essa equipe poderá ser dirigida, ao mesmo
passo, por um ‘controlador externo’, escolhido via
concurso aberto pela União e com todas as
prerrogativas do modelo ianque, inclusive no
tocante a prazo de mandato. Ora, se é no
Congresso Nacional que se dá aprovação do
Orçamento Público, nada mais natural e
consentâneo seja a fiscalização praticada lá com o
auxilio do corpo técnico a ser alijado da influência
de pessoas nada afeitas às lides do controle, porque
geradas por bancadas políticas afeitas a discursos
de mútua confraternização, do tipo ‘depois das
palavras de V.Exa. o sol nunca mais brilhará’... Não
há como justificar a presença de um Tribunal de
Contas eivado de protegidos abandonados por seus
antigos eleitores ou em fim de mandato. Juízes e
ministros integrantes do Judiciário não são
recrutados desse modo. A coerência precisa
prevalecer.
Imaginem-se as futuras equipes de controle interno e
externo irmanadas no propósito de produzir coisas úteis e sabê-las
aproveitadas e respeitadas. Pense-se nos benefícios se as coisas
fluíssem sem a presença dos que tudo fazem, não para salvar nosso
Brasil, senão para salvar amigos eventualmente encastelados ou
refestelados no Poder. De resto, a opinião pública está saturada
quanto à inutilidade dos tribunais de contas, cuja presença no cenário
158
do controle vem sendo progressivamente contestada. Se o grande
Ruy Barbosa, mentor da figura do Tribunal de Contas, estivesse vivo
hoje, sofreria ataques de decepção ante o desvirtuamento de sua
criatura com o perpassar dos tempos e mais afeita aos bônus da
celebridade do que aos espinhos da austeridade. O TCU não pode
nem deve continuar a ser uma espécie de filial do INSS ao acolher
parlamentares em final de carreira para lhes proporcionar a sonhada
aposentadoria. A menos que os recursos caiam do céu, como o maná
no deserto, o povo é quem, na estação final do trem-da-alegria,
suportará tais ônus, no ombro e no bolso.
Poder-se-á objetar que tal medida ofenderia a
Constituição. Ora, se a Lei Maior pode ser amoldada aos interesses
meramente pessoais e momentâneos da conveniência,
casuisticamente, pois, poderá sê-lo, do mesmo modo e agora
certamente sob os aplausos do povo, mais retumbantes do que
qualquer outra emenda, mesmo que se destinasse a reeleger, por
única e exclusiva vontade dos governados, e contra a própria
vontade, eventual ocupante do Poder. Pelo menos nesse lance se
faria sensível economia de recursos orçamentário-financeiros por via
do banimento de um organismo não desejado nem respeitado pela
sociedade que o considera oneroso inútil e, pior, mau exemplo de
cabide de emprego. O Tribunal de Contas da União não deve subsistir.
ALOCUÇÃO DERRADEIRA
Meu respeitável Autor e Auditor Dr. José Daniel de
Alencar:
Após minha extensa dissertação, parece-me ter ficado
clara a simples adoção das seguintes propostas:
1) coloque-se um Auditor Externo diretamente
subordinado ao Poder Legislativo;
2) coloque-se um Auditor Interno diretamente
subordinado ao presidente da República e
3) escoime-se a superfluidade de organismos cuja
missão não se amolde ao indeclinável respeito a
dinheiros, valores e outros bens públicos.
159
Peço desculpas por haver transposto o limite suportável
ao tentar resumir a caminhada do controle interno, desde seu
nascedouro, em 1967, até o triste massacre a que foi submetida a
Secretaria Central de Controle Interno ― SECIN, em 15 de março de
1985. Alguém, entretanto, deveria um dia contar um pouquinho da
história iniciada com a Reforma Administrativa (DL nº 200/67). Peço
dar a este depoimento o destino julgado útil, seja transcrevendo-o em
seu próximo (e já esperado!) livro, se o merecer, seja desprezando
minhas opiniões. Desejo pedir, todavia, a unanimidade num caso e
noutro, porque não quero ver minhas idéias fragmentadas ou
apartadas do conjunto em que as situei. As remissões parciais, como
sabemos, costumam desfigurar a inteireza do conjunto. Tive a
coragem de fazê-lo, em primeiro lugar, porque o Destino me tornou o
modesto desbravador do cipoal da mensagem reformista e, em
segundo plano, porque me entreguei de corpo e alma à
implementação de algo refletindo a vontade, a ordem, o respeito e,
muito mais, a disciplina dos ideais da Revolução de 1964.
Penitencio-me da prolixidade. Mas a culpa não é minha.
Minhas redes estavam a secar, depois da faina de
tantas pescarias. Devo ao livro ‘Bandeira Contra a Corrupção & Suas
Irmãs Siamesas’ o entusiasmo ou o desafio desta nova travessia pelos
mares revoltos do Controle, não por certo para fisgar outros peixes,
senão, tão-somente para recordar os bons tempos em que o
fazíamos, sob a bonança ou a borrasca. Releve-se-me alguma
eventual e compreensível falha, porque abordei praticamente de
memória a história do Controle Interno. E todo o nosso trabalho
haverá de ser eternamente a lembrança da lealdade e operosidade de
nossas equipes, credoras únicas dos aleatórios sucessos de nossas
colheitas. Aos que estejam ainda pescando ou secando suas redes,
nossa comovida homenagem. E àqueles que hoje residem no Além, e
já são tantos!, remeto a saudade do antigo chefe e companheiro, com
esta mensagem:
‘As pessoas queridas, quando partem, sempre deixam
um pouco de si, mas, também, sempre levam um pouco de nós’.
Os dados por mim revelados foram buscados no
coração, e em maior dose que na memória.
160
Gostaria que nossa Constituição fosse emendada mais
uma só vez e se reduzisse àquele modelo sugerido pelo grande
historiador Capistrano de Abreu, assim compilado:
‘Artigo 1º - Todo brasileiro é obrigado a ter vergonha.
Artigo 2º - Revogam-se as disposições em contrário.‘
Peço aceitar, com meus cumprimentos pela produção
da obra ora comentada, minha adesão à mensagem ali dirigida à
consciência dos homens de bem. Acredito que nossos colegas e bons
amigos responsáveis pela semente do Projeto Verama ficariam felizes
se recebessem o abraço que por seu intermédio lhes envio, apertado
e saudoso.
Um abraço muito especial com o renovado
agradecimento de seu amigo,
Fernando de Oliveira
FERNANDO DE OLIVEIRA ALAMEDA TIETÊ, 191 AP. 81 01417 ― 020 ― SÃO PAULO / SP’
É de se constatar que a carta do Dr. Fernando de Oliveira ― fiel
escudeiro do ex-ministro Delfim Netto na área de fiscalização do emprego de
recursos públicos ― é um tesouro que merece ser conhecido e explorado. Não
só a ele mas também às autoridades citadas em sua mensagem, o Brasil fica a
dever o trabalho dignificante por eles prestado à nação.
Da carta, é destacado um dos valiosos trechos para que fique
gravado na memória do leitor, a respeito da significativa diferença existente
entre os vocábulos competência e capacidade:
‘[...] ‘Competência’ é poder hierárquico, é ser investido
em comando ou chefia, como sinônimo de determinar o que deva ser
feito ou o que não deva ser feito. ‘Compete ao chefe distribuir tarefas
aos subordinados. [...]
161
[...] ‘Capacidade’ é o conjunto de atributos pessoais
obtidos pelo estudo ou pela prática, conducentes à boa realização de
algo. [...]’
Em que o Dr. Fernando afirma:
‘[...] Não se confundam, portanto, os significados das
palavras ‘competência’ e ‘capacidade’. Um chefe analfabeto é sempre
competente. Já um indivíduo capaz é aquele que conhece, dá conta
do recado e domina seu mister, ainda que não seja chefe. [...]’
Eis uma bela lição a ser transmitida pelos que lidam com as
massas e, em especial, com os adolescentes e os jovens. É comum ouvir a
confusão que se faz entre o significado de competência e capacidade, o que
resulta, muitas vezes, em incompreensão dos valores que tais palavras
carregam.
7.1 Os Tribunais de Contas
E, passados alguns anos depois da carta do Dr. Fernando de
Oliveira, datada de 28 de fevereiro de 2001, a Folha de S. Paulo e o Correio
Braziliense também demonstraram a inutilidade dos Tribunais de Contas.
Leia, então, o comentário da Folha de S. Paulo, em sua edição de
13 de novembro de 2007, p. A2, em Opinião, na coluna Editoriais, sob o título
Abrigo para os sem-voto:
‘Uma das mais dispendiosas e inúteis sinecuras da
República é o cargo de conselheiro de tribunal de contas. O emprego
é vitalício, dá direito a generosa aposentadoria e oferece salários que
estão entre os mais altos do funcionalismo. No âmbito federal, cada
um dos nove ministros do Tribunal de Contas da União ganha R$ 23,2
mil mensais, o mesmo que ministros do Superior Tribunal de Justiça.
Nos Tribunais de Contas dos Estados, o salário do conselheiro
costuma emparelhar com o de desembargador.
162
O trabalho é reduzido, dado que os relatórios e
pareceres são elaborados pelo pessoal técnico dessas instituições,
contratados por concurso. Praticamente tudo o que ministros e
conselheiros fazem é rejeitá-los ou aprová-los acompanhados de
recomendações anódinas, tarefa, aliás, supérflua, uma vez que essa
etapa precisa ser repetida no Congresso Nacional ou na respectiva
Assembléia Legislativa, órgãos que têm a palavra final.
Diante de tantas vantagens e benefícios, não
surpreende que tais cargos, preenchidos por indicações dos
Executivos e dos Legislativos, tenham se tornado abrigo de
correligionários com prestígio entre seus padrinhos políticos, mas não
entre os eleitores. Dos 189 conselheiros de TCEs, apenas 19 têm
perfil técnico. O restante divide-se entre ex-deputados, estaduais e
federais, ex-prefeitos, ex-secretários de Estado e ex-vereadores, entre
outras ex-autoridades.
É preciso pôr um fim a essas casas de misericórdia para
políticos sem voto. Há várias propostas de reforma dos tribunais de
contas tramitando no Congresso, mas o ideal seria transformá-los em
órgãos puramente técnicos de auditoria, enxutos, e dar cabo dos
cargos de ministro e conselheiro. Cabe, afinal, aos tribunais de contas
combater o desperdício e o mau uso do dinheiro público ― não
fomentá-los.’
E o Correio Braziliense, de 27 de maio de 2010, em artigo do
jornalista Lúcio Vaz, publicado na coluna Opinião, p. 24, intitulado Depósitos de
políticos, assim manifesta sua posição:
‘Os tribunais de contas dos estados e municípios são
hoje o que era o Tribunal de Contas da União há 20 ou 30 anos:
depósitos de políticos aposentados. Estão repletos de ex-deputados,
ex-prefeitos, ex-secretários estaduais e apadrinhados em geral de
governadores. Na busca de espaços para afilhados, deputados
estaduais e governadores ocupam até mesmo a vaga reservada para
auditores e procuradores de carreira. A Constituição Federal diz que,
das sete vagas de conselheiros em cada tribunal, uma deve ser
ocupada por procurador e outra por auditor substituto. Metade dos
tribunais não cumpre essa exigência constitucional.
163
A presença de conselheiros com formação técnica
resultaria no aprofundamento dos debates, embora eles não tivessem
peso maior nas decisões. A maioria dos conselheiros continuaria
sendo fruto de indicações políticas. Há casos de governadores que
propõem a nomeação até mesmo de irmãos. Quatro das sete vagas
são indicadas e aprovadas pelos próprios deputados estaduais. O
cargo de conselheiro tem o atraente salário de R$ 24 mil, sem contar
os inúmeros assessores disponíveis. Em vários estados existem o
tribunal de contas do estado e o tribunal dos municípios, cada um
com sete conselheiros e mais algumas centenas de funcionários.
Em Alagoas, os deputados chegaram a emendar a
Constituição estadual para poder indicar um apadrinhado na vaga de
auditor existente no Tribunal de Contas do Estado. O Tribunal de
Justiça do Estado considerou inconstitucional a mudança, mas até
hoje a vaga de auditor não foi preenchida. Os dirigentes de tribunais
de contas inventam exigências não previstas na Constituição, como
estágio probatório, para deixar a vaga de auditor aberta. Na verdade,
a cadeira não fica vazia, porque acaba preenchida por um
apaniguado.
O TCU também já foi depósito de políticos em fim de
carreira. Nos últimos anos, as vagas indicadas pela Câmara e pelo
Senado têm sido disputadas em plenário por cinco ou seis candidatos.
Há até candidatos apoiados pelo governo. Políticos no auge da
carreira acabam sendo nomeados ministros do tribunal. Pode ser
coincidência, mas o fato é que a qualidade dos serviços do TCU
evoluiu nos últimos anos, apesar das falhas históricas, como a
excessiva demora no julgamento dos processos. Espera-se que os
novos tempos cheguem aos estados.’
7.2 Fiscalização para fiscal
Tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal duas
propostas de emenda à Constituição (PECs), referentes à criação de um órgão
colegiado ― o Conselho Nacional dos Tribunais de Contas.
164
O Jornal de Brasília, de 19 de junho de 2010, p. 7, com o título
Fiscalização para fiscal, publicou reportagem sobre o assunto, dando a
conhecer o objetivo das citadas PECs:
‘DINHEIRO PÚBLICO
Fiscalização para fiscal
Congresso votará criação do Conselho dos Tribunais de
Contas do País
Avança no Congresso Nacional, por meio de duas
Propostas de Emenda à Constituição (PECs), a criação do Conselho
Nacional dos Tribunais de Contas (CNTC), colegiado que terá a missão
de fiscalizar conselheiros e ministros de contas de todo o País.
A exemplo e nos moldes de outros dois conselhos
instalados por força da emenda 45, de 2004 ― o Conselho Nacional
de Justiça e o do Ministério Público ―, o novo órgão controlará a
atuação administrativa e financeira dos tribunais de contas e o
cumprimento dos deveres funcionais de ministros, conselheiros e
auditores. A fiscalização do conselho também deverá alcançar os
membros dos Ministérios Públicos de Contas, que funcionam junto aos
tribunais de contas. São duas PECs similares, ambas de 2007. Uma
tramita na Câmara, outra no Senado. Elas têm a mesma meta e
ostentam apenas algumas divergências, como em relação ao número
de integrantes que o conselho deve ter ― a Câmara quer nove, o
Senado, 17.
TEXTO DA CÂMARA
Na Câmara, a PEC 28/07, de autoria do deputado Vital
do Rêgo Filho (PMDB―PB), recebeu substitutivo do deputado Júlio
Delgado (PSB―MG), o relator. O texto, admitido na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ), foi aprovado por comissão especial.
Depende agora de acordo de lideranças para ir a plenário.
Delgado destaca que ao conselho caberá ‘apreciar, de
ofício ou mediante provocação, a validade de atos administrativos
praticados por membros dos tribunais de contas, podendo
desconstituí- los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as
providências necessárias ao cumprimento da lei’.
165
Além disso, segundo a proposta de Delgado, o conselho
deverá ‘receber e conhecer as reclamações contra ministros,
conselheiros, auditores e membros do Ministério Público junto aos
Tribunais de Contas, inclusive contra seus serviços auxiliares e demais
órgãos que atuem por delegação ou oficializados, sem prejuízo da
competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar
processos disciplinares em curso e determinar atos que importem em
sanções administrativas, assegurada a ampla defesa’.
TEXTO DO SENADO
No Senado, a PEC 30/07 está sob crivo da CCJ, que já
promoveu audiência pública para debater melhor a questão. Ao
colegiado caberá ainda a apuração de denúncias sobre nepotismo,
enriquecimento ilícito e desvios. Há casos graves no País. Em São
Paulo, dois dos sete conselheiros estão sob suspeita do Ministério
Público por corrupção e remessa ilegal de valores para paraíso fiscal.
De autoria do senador Renato Casagrande (PSB―ES), e
relatoria a cargo do senador Romero Jucá (PMDB―RR), a PEC 30/07
prevê que o conselho será presidido pelo ministro do Tribunal de
Contas da União (TCU) indicado que for mais antigo em exercício no
cargo. Os membros do conselho serão nomeados pelo presidente da
República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do
Senado.
O quadro completo terá 17 integrantes com mandato
de dois anos, admitida uma recondução. Nove representam os
colegiados de contas ― dois ministros do TCU; dois conselheiros
estaduais e municipais; dois membros do Ministério Público de Contas
da União, dos estados e municípios; um ministro substituto do TCU;
um conselheiro substituto estadual e um municipal.’
‘SAIBA +
No texto que tramita no Senado, há a previsão de outros sete
integrantes do conselho, que são estranhos ao universo dos tribunais,
sendo cinco indicados pelos conselhos federais da Ordem dos
Advogados do Brasil, de Engenharia, Economia, Administração e
Contabilidade. A última vaga será de um auditor escolhido pela
Federação dos Servidores. Para Romero Jucá, o argumento de ofensa
ao princípio da separação dos Poderes ou ao princípio federativo não
deve prosperar. Em seu relatório, ele destaca que, quando da criação
do CNJ e do CNMP, as mesmas questões foram levantadas.’
166
Na avaliação de Daniel, a criação desse órgão resultaria em maior
prejuízo para o contribuinte. É de se questionar qual a necessidade da
instituição de um colegiado para fiscalizar ministros, conselheiros e auditores de
contas de todo o país, uma vez que eles deveriam ser o exemplo de conduta
ilibada, conforme preceitua a Constituição Federal, seguida pelas Constituições
estaduais, em seu art. 73:
‘Art. 73
[...]
§ 1º Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão nomeados
dentre brasileiros que satisfaçam os seguintes requisitos:
I ― mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de
idade;
II ― idoneidade e reputação ilibada;
III ― notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e
financeiros ou de administração pública;
IV ― mais de dez anos de exercício de função ou de efetividade
profissional que exija os conhecimentos mencionados no inciso
anterior. [...]’
A discrepância aumenta quando se trata da composição dos
integrantes do novo órgão ― na proposta da Câmara, nove, e na do Senado, o
total de dezessete, sendo nove representantes dos órgãos encarregados da
fiscalização. E chega ao ápice quando prevê que o Conselho será presidido pelo
ministro do Tribunal de Contas da União mais antigo em exercício no cargo.
Então, recapitulemos: será criado um novo órgão fiscalizador para
fiscalizar o fiscal, e presidido justamente por um dos fiscais, ou seja, pelo
ministro do TCU mais antigo no cargo?
7.3 Propostas do autor
O Dr. Fernando de Oliveira, em sua carta, sugere a nomeação de
auditor externo e auditor interno, respectivamente, nos Poderes Legislativo e
167
Executivo federais, preferencialmente aprovados em concurso público, sem
filiação partidária, pelo prazo de dez anos, devendo, desse modo, seus
mandatos extrapolarem os de seus chefes. Para tanto, serviu-se do exemplo
que trouxe dos Estados Unidos, que utilizam esse esquema somente para
fiscalizar o emprego de recursos da área federal.
Como você pôde perceber, leitor, no Brasil, a fiscalização do
emprego de recursos públicos tornou-se uma verdadeira mixórdia. Para corrigir
essa anomalia, Daniel ousa sugerir a implantação das seguintes propostas, as
duas primeiras em extensão às do Dr. Fernando:
1. nomear auditor externo em cada um dos Poderes Legislativos
federal, estaduais, do Distrito Federal e municipais;
2. nomear auditor interno em cada um dos Poderes Executivos
federal, estaduais, do Distrito Federal e municipais;
3. exercer o controle, em consonância com a lição deixada, há
mais de 100 anos, por Henri Fayol, o grande mestre da
Administração:
‘Controle é o exame de resultados. Controlar é ter a
certeza de que todas as operações a toda hora estão sendo realizadas
de acordo com o plano adotado, com as ordens dadas e com os
princípios estabelecidos. Controle ampara, discute e critica. Ele tende
a estimular o planejamento, a simplificar e fortalecer a organização,
aumentar a eficiência do comando e facilitar a coordenação’ (MAUTZ,
K. R. Princípios de Auditoria 1: Ed. Atlas, 1975);
4. respeitar o que estabelece a Lei nº 4.320, de 17/3/1964,
especialmente em seu art.77:
‘Art. 77 ― A verificação da legalidade dos atos de
execução orçamentária será prévia, concomitante e subseqüente.’
168
Os servidores a serem subordinados aos auditores externo e
interno, dos órgãos mencionados nos itens 1 e 2, seriam colocados à disposição
apenas de seus novos chefes, fato que geraria uma centralização e evitaria
novos gastos.
Daniel acredita que, se tais propostas forem implementadas neste
país, resultarão em benefícios para a sociedade. Os Tribunais de Contas não
servirão mais de Abrigo para os sem-voto, nem serão Depósitos de políticos,
como visto antes nos artigos da Folha de S. Paulo e do Correio Braziliense.
Some-se a todos esses benefícios o mais importante: haverá total
independência para o fiscal, dando-se, em consequência, um freio brusco na
corrupção, doença transmissora de tantas infelicidades. E, conjugando-se as
cominações estabelecidas na Lei da Ficha Limpa com as propostas
apresentadas, assim, só assim, corruptos e corruptores serão banidos do
cenário nacional.
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO I
1. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Daniel narrou sua vida com o intuito de demonstrar como, pouco
a pouco, foi engajando-se na luta contra a corrupção e, assim, tomando como
ideologia o compromisso pessoal de colaborar para o seu combate.
Hoje, com 76 anos, Daniel fixa seu pensamento no passado e se
vê, há cerca de quarenta anos, plantando uma semente, cuja árvore espera
que dê bons frutos. Ainda não para de pensar em seguir contribuindo, de
alguma forma, para a redução do grande mal que assola o país. Como possível
solução, atreve-se a sugerir a implantação, com o apoio de instituições
respeitáveis, das propostas transcritas no item 7.3 do Capítulo VII ― BASTA DE
CORRUPÇÃO!
169
Infelizmente, é difícil extinguir a corrupção, mas é possível
diminuí-la de forma considerável, pois haverá sempre soldados do bem a
engrossar as fileiras dos que lutam para contê-la: a Câmara dos Deputados com
a Frente Parlamentar de Combate à Corrupção, a Justiça agindo de modo
imediato, a Polícia Federal trabalhando ininterruptamente para coibi-la,
estudantes lutando para a moralização das atividades políticas, instituições e
cidadãos unindo-se para que sejam castigados os aproveitadores de plantão e a
mídia relatando os passos indecorosos dos participantes no desvio de recursos
públicos para fins inconfessáveis.
Se cada brasileiro contribuir com uma pequena parcela, por menor
que seja, para colocar um freio nessa insidiosa moléstia que impede o
progresso do país, em um amanhã não muito distante, o Brasil estará no topo
das nações do chamado primeiro mundo.
E Daniel apela para aqueles que desejam transmitir às crianças,
aos adolescentes, aos pobres e aos miseráveis uma pátria digna que continuem
batalhando, sem esmorecer.
ANEXO
1. TRABALHOS PARALELOS
Procurando contribuir com fiscais e fiscalizados no que diz respeito
ao emprego de recursos públicos, Daniel aprofundou-se nos trabalhos de
pesquisa da legislação. Igualmente, ministrou cursos e escreveu livros ―
edições esgotadas ― com o mesmo objetivo. Uns, como escritor autônomo;
outros, em parceria com o ex-Ministério da Agricultura, Secretaria-Geral.
170
1.1 Cursos ministrados
Convidado pelo então governador do Território Federal do Amapá,
comandante Arthur Azevedo Henning, Daniel deu aulas sobre auditoria a
servidores do Território em julho e agosto de 1977.
Em agosto de 1979, em Brasília, sob os auspícios da ex-OAIB
(Organização dos Auditores Independentes do Brasil), Daniel ministrou a
auditores o Curso de Auditoria. E, na mesma cidade, em janeiro de 1980, foi
instrutor do Curso de Treinamento sobre Fundamentos e Procedimentos de
Auditoria na Escola de Administração Fazendária (Esaf).
1.2 Livros publicados
1. Manual de Auditoria. Brasília, DF: Gutenberg Gráfica e Papéis, autônomo,
1977.
2. Quem está sujeito à jurisdição do TCU? Brasília, DF: Gutenberg Gráfica e
Papéis, autônomo, 1977.
3. Coleção de Auditoria: Legislação Básica. Brasília, DF: Gráfica da CFP (v.I a
IV e VI), Gráfica Brasiliana (v.V e VII), parceria Min. da Agricultura, Secretaria-
Geral, 1983, 7 v.
Volume I: A Lei nº 4.320, de 1964, e Legislação Complementar
Volume II: Licitações e Alienações. Concorrência, Tomada de Preços,
Convite, Leilão, Venda, Permuta, Cessão e Doação
Volume III: Transporte, Diárias e Ajuda de Custo
Volume IV: O Controle Interno
Volume V: O Controle Externo
Volume VI: Convênios, Contratos, Acordos, Ajustes, Auxílios Financeiros e
Subvenções Sociais
Volume VII: Auditoria Contábil, de Programas e de Tomadas e Prestações
de Contas
171
Obs.: nas páginas finais de cada um dos volumes, há um índice dos assuntos
neles tratados.
4. Coleção de Auditoria: Legislação Básica ― Atualização. Brasília, DF: Gráfica
Valci Editora Ltda, autônomo, 1984.
Obs.: nas páginas finais, há um índice dos assuntos nele tratados.
5. Dicionário de Auditoria. Brasília, DF: Gráfica da CFP, parceria Min. da
Agricultura, Secretaria-Geral, 1985.
6. Coletânea de Auditoria Governamental. Brasília, DF: Gráfica e
Encadernadora Calazans, autônomo, 1989, 5v.
Volume I: Legislação
Volume II: Legislação
Volume III: Legislação
Volume IV: Legislação
Volume V: Sumário e Índice Alfabético Remissivo dos volumes anteriores.
7. Conjunto de Termos Oficiais ― Conceituação. Brasília, DF: L.G.E. Editora,
autônomo, 1990.
8. Os Sistemas de Controle Interno Federal, Estadual e Municipal. Brasília, DF:
Escopo Editora, autônomo, 1990.
9. Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas. Brasília, DF: L.G.E.
Editora, autônomo, 2000-01.
2. ELOGIOS RECEBIDOS
É com satisfação que Daniel registra os elogios recebidos de
renomadas autoridades sobre o livro de sua autoria, o Bandeira Contra a
Corrupção & Suas Irmãs Siamesas, prefaciado pelo jornalista Ari Cunha.
Destaca, ainda, o do vice-presidente da República, José Alencar, sobre o
Dicionário de Auditoria.
Em 11/6/2001, cartão:
172
‘Recebi o livro de sua autoria, intitulado ‘Bandeira
Contra a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas’.
Agradeço a gentileza do seu gesto e parabenizo-o pelo
excelente trabalho.
Com os cumprimentos do
PLAUTO RIBEIRO
Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região’
Em 11/7/2001, Ata da 2ª (segunda) Reunião Plenária
Extraordinária dos membros do Conselho Regional de Administração do Distrito
Federal (CRA/DF) de 2001:
Foi a reunião aberta pelo presidente em exercício, Adm. Carlos
Alberto Pio, a pedido do presidente, Adm. José Ataíde Miranda Barreto, que iria
chegar atrasado, por motivo de trabalho.
Da dita reunião, participaram o “[...] Adm. Júlio Modesto Severino,
Adm. Thiago Mendes Vieira, Admª Maria do Rosário de Moraes e também o
Adm. José Daniel de Alencar (concorrente ao Prêmio ‘Belmiro Siqueira’ de
Administração), na modalidade Livro, e do Senhor Gerardo Antônio Monteiro de
Paiva Gama, Ex–Presidente do CRC/DF e CRC/BA. [...]”
Passada a presidência dos trabalhos para o Adm. José Ataíde, os
conselheiros presentes aprovaram, por unanimidade, a indicação do livro
Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas, de autoria do Adm. José
Daniel de Alencar, para concorrer ao referido prêmio. Infelizmente, não venceu.
Em 16/7/2001, expediente:
‘Ofício nº 531/2001/PRES/CRA/DF
Brasília, 16 de julho de 2001
Senhor Administrador,
173
É com imensa satisfação que nos dirigimos a Vossa
Senhoria para informar que seu nome foi indicado por este CRA para
concorrer, no Conselho Federal de Administração, ao Prêmio ‘Belmiro
Siqueira’ de Administração de 2001, na modalidade LIVRO ― Obra:
BANDEIRA CONTRA A CORRUPÇÃO & SUAS IRMÃS SIAMESAS.
A indicação por si só já se configura como fator de
reconhecimento deste Conselho ao papel que Vossa Senhoria
representa, com suas pesquisas e denodado grau de desenvolvimento
cultural, para o gáudio de todos aqueles que o estimam e admiram.
O certame é Nacional, mas este CRA/DF não medirá
esforços, para que tão valiosa premiação venha a ser conferida ao
insigne representante da categoria Profissional que abraçamos, no
Distrito Federal.
Sem mais, colocamo-nos à disposição para qualquer
esclarecimento, renovando nossos protestos de estima e
consideração.
Atenciosamente,
Adm. JOSÉ ATAÍDE MIRANDA BARRETTO
Presidente
CRA/DF nº 6177’
Em 18/7/2001, prêmio:
Recebeu Daniel, no auditório do Conselho Regional de
Administração do Distrito Federal (CRA/DF), de seu presidente, José Ataíde
Miranda Barretto, o Prêmio de Mérito Administrativo do Distrito Federal ―
CRA/DF/2001, na condição de autor do livro Bandeira Contra a Corrupção &
Suas Irmãs Siamesas.
Em 26/8/2001, DIÁRIO DO POVO, de Teresina ― PI:
‘Escritor parnaibano concorre a prêmio nacional
José Daniel de Alencar foi indicado para concorrer ao prêmio ‘Belmiro
Siqueira’ de Administração 2001
174
O livro ‘Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs
Siamesas’, do parnaibano José Daniel de Alencar, foi indicado para
concorrer no Conselho Federal de Administração, ao prêmio ‘Belmiro
Siqueira’ de Administração 2001, na modalidade Livro. A indicação,
por si só, já representa o conhecimento do Conselho. A obra elucida o
mistério do desvio de recursos, do desperdício e da má aplicação do
dinheiro público. O leitor é conduzido pelo labirinto dos procedimentos
burocráticos tão emperrados da administração pública.
O autor prova, neste livro, que há mais de 24 anos,
previu e iniciou sua luta para se colocar um freio na corrupção.
Acompanhada de suas nefastas irmãs siamesas ― o desperdício e a
má aplicação de recursos públicos ― impede o natural crescimento do
país, vitimando, principalmente as classes menos favorecidas.
Iniciando pelo desvario financeiro no Brasil e no
exterior, passa pela América Latina e se concentra apenas no que
ocorreu e está ocorrendo no Brasil. O autor expõe sua visão histórica
dos sistemas de controle interno e externo e sua luta contra as
nocividades da corrupção.
O enredo trata diretamente da participação de milhares
de brasileiros vivendo em condições de miséria. A trama conta com as
intervenções de jornalistas e personalidades brasileiras, como Gilberto
Amaral, Cristovam Buarque, Pelé, Ari Cunha, Fernando Tourinho Neto
e Fernando Henrique Cardoso, entre outros.
‘Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas’
sinaliza que todos podem participar da construção da Nação e
acompanhar o processo com boa presença de espírito para não
desanimar, tal é o estado que o conceito corrupção provoca. O autor
apresenta novas sugestões com a intenção de contribuir para se
colocar um freio neste mal. O autor José Daniel de Alencar nasceu em
Parnaíba e chegou ao Rio de Janeiro em 1950. É formado nos cursos
de Administração e Ciências Contábeis e já ocupou diversos cargos
importantes no serviço público federal. É autor de mais de dez obras
e já ministrou cursos de auditoria em Brasília e no Amapá.’
Em 6/11/2001, cartão:
175
‘Ilmo Sr.
Dr. José Daniel de Alencar Acuso, com satisfação, o recebimento do exemplar de
sua obra intitulada ‘Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs
Siamesas’, que teve a gentileza de me enviar.
Agradeço a remessa e apresento-lhe meus
cumprimentos pela realização.
Cordialmente,
MILTON DE MOURA FRANÇA
Ministro do TST’
Em 19/11/2001, telegrama:
‘COM CORDIAL VISITA AGRADEÇO A REMESSA DO SEU BANDEIRA
CONTRA A CORRUPÇÃO & SUAS IRMÃS SIAMESAS QUE LEIO COM
ESPECIAL INTERESSE. CORDIAL ABRAÇO, MINISTRO CARLOS
VELLOSO, STF’
Em 26/11/2001, cartão do ministro do Superior Tribunal Militar,
almirante de esquadra Domingos Alfredo Silva, escrito à mão:
‘Prezado Senhor,
Agradeço a gentileza da oferta do livro ‘Bandeira Contra
a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas’ e transmito os cumprimentos
pela oportunidade da obra.
Cordialmente
Domingos A. Silva’
Em 26/11/2001, cartão do ministro do Superior Tribunal Militar,
gab min gen Ex José Luiz Lopes da Silva, escrito à mão:
‘Prezado Sr. José Daniel de Alencar
Já li este excelente trabalho e receba meus
cumprimentos calorosos.
176
À sua disposição
José Luiz’
Em 29/11/2001, cartão do ministro do Superior Tribunal Militar,
ten-brig-do-ar Sérgio Xavier Ferolla, escrito à mão:
‘Prezado José Daniel de Alencar
Com muita satisfação recebi um exemplar do seu livro
‘Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas’,
abordando um tema sempre de interesse, particularmente, nessa fase
que o país vem enfrentando os maiores desafios.
Pretendo analisá-lo minuciosamente mas, desde já,
cumprimento-o pelo trabalho realizado.
Atenciosamente
TB do Ar Sérgio Xavier Ferolla’
Em 30/12/2002, carta do Prof. de Ciências Políticas da
Universidade de Brasília (UnB) e historiador, Octaciano Nogueira:
‘Caro patrício
Dr. José Daniel de Alencar
Lamentavelmente, só o ócio desses últimos dias do ano me
permitiu concluir a leitura da esclarecedora obra de sua autoria
‘Bandeira contra a corrupção & suas irmãs siamesas’.
Devo esclarecer que para mim, leigo e jejuno na matéria, foi
extremamente útil e proveitoso tomar conhecimento desse complexo
tema de tanta atualidade em nosso país e em todo o mundo, para o
qual a sociedade e suponho que a maioria dos cidadãos estão
completamente despreparados para enfrentar e superar.
Embora não tenha autoridade para tanto, suponho que seu
trabalho de pesquisa, compilação e sistematização das informações
seja fruto não só de sua vasta experiência profissional, mas também
de seu devotamento à que deve ter sido a causa de toda uma vida.
Ao agradecer a gentileza de seu gesto, remetendo-me um
exemplar de sua obra, quero aproveitar a oportunidade para desejar-
177
lhe novos sucessos, ânimo e alento em sua cruzada, pela qual tanto
lhe fica a dever o Brasil.
Do patrício e leitor atento e mais uma vez agradecido.
Octaciano Nogueira’
Em 19/5/2004, carta do vice-presidente José Alencar, escrita à
mão, falando dos livros Dicionário de Auditoria e Bandeira Contra a Corrupção
& Suas Irmãs Siamesas:
‘Estimado parente,
Seu excelente Dicionário de Auditoria mostra que, de José de Alencar,
você só tem o nome, porque não faz romance, mas oferece um
trabalho de grande valor para todos os que militam em áreas
econômicas, empresariais ou públicas.
Meus parabéns e um forte abraço do
José Alencar
E olha que nem falei do ‘Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs
Siamesas’. Novamente, parabéns.
José Alencar’
Cartão sem data:
‘Caro José Daniel, Agradeço a gentil remessa do exemplar do livro
Bandeira Contra a Corrupção & Suas Irmãs Siamesas e parabenizo-o
pelo trabalho publicado.
Atenciosamente,
Terezinha Célia Kineipp Oliveira
Juíza Presidente do TRT/10ª Região’
Cartão sem data:
178
‘Sr. José Daniel,
Acuso recebimento vosso livro e aproveito a
oportunidade para parabenizá-lo pela iniciativa.
Charles Renaud Frazão de Moraes
Juiz Federal Substituto da 14ª Vara’
Cartão sem data:
‘Caro Dr. José Daniel Agradeço-lhe o livro ‘Bandeira Contra a Corrupção
& Suas Irmãs Siamesas’, parabenizando-lhe pela autoria desta
valiosa obra.
Ao ensejo, apresentando-lhe protestos de estima e
consideração, colocando-me à disposição de Vossa Senhoria.
AMARÍLIO TADEU FREESZ ALMEIDA
Corregedor–Geral
e-mail: [email protected]
HTTP://www.mpdft.gpv.br’
179
‘Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!’
(Mário Quintana)
CORRUPÇÃO
Ah, se nós pudéssemos
Eliminar a corrupção,
O Brasil seria mais respeitado
Como uma grande nação.
As crianças sorririam
E os jovens iriam além,
Os pobres se orgulhariam
E os miseráveis diriam amém.
As oportunidades seriam iguais,
Dar-se-ia fim à distinção,
Nem todos andariam sorrindo,
Mas não haveria coação,
Pois, para corruptos e corruptores,
Acabaria a mordomia,
E o país, feliz da vida,
Extinguiria a epidemia.
Viva, então,
O fim da vida
Da corrupção!
José Daniel de Alencar
“Tive a oportunidade de ler previamente este livro CORRUPÇÃO ―
Memórias de um cabra da peste. Confesso que fiquei emocionado com o que li. Se
antes respeitava o Daniel, agora o admiro. É uma rica história sobre uma alma que
dedicou sua vida buscando contribuir para a falência da corrupção, apesar dos
percalços no caminho. Não vai ser fácil suprimi-la, pois o Brasil levou mais de 500 anos
para construir essa parafernália, e não vai ser em pouco tempo que o terreno será
totalmente limpo. Há de haver sempre uma grande mobilização, mesmo de poucos,
para amenizar esse mal. Considero hoje o Daniel um ícone nessa luta, um homem de
caráter, e por tal deve ser respeitado. O livro fala da realidade dos fatos e apresenta
propostas, além de mostrar a trajetória da vida de um cidadão na luta por um ideal e
como nasceram, no seu íntimo, os valores e princípios fundamentais para a gestão
pública. A dobradinha Daniel X Fernando de Oliveira vai dar o que falar.”
Fernando Estevez Gadelha
Administrador de empresas pela Faculdade de Ciências Políticas
e Econômicas do Rio de Janeiro e especialista em Políticas
Públicas para Micro e Pequenas Empresas pela Universidade de
Campinas (Unicamp). Atua hoje como gerente da Unidade de
Políticas Públicas do Sebrae do Espírito Santo e foi diretor da
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos do Espírito Santo ―
1988 a 2001.