contrato eletronico

Embed Size (px)

Citation preview

CENTRO UNIVERSITRIO CURITIBA PROGRAMA DE PS-GRADUAO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO EVELYN CAVALI DA COSTA RAITZ

O PRINCPIO DA CONFIANA NOS CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO

CURITIBA 2008

15

CENTRO UNIVERSITRIO CURITIBA PROGRAMA DE PS-GRADUAO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO EVELYN CAVALI DA COSTA RAITZ

O PRINCPIO DA CONFIANA NOS CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO

CURITIBA 2008

16

EVELYN CAVALI DA COSTA RAITZ

O PRINCPIO DA CONFIANA NOS CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO

Dissertao Mestrado

apresentada em Direito

ao

Curso

de e

Empresarial

Cidadania do Centro Universitrio Curitiba, como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Direito.

Orientador: Professor Doutor Carlyle Popp

CURITIBA 2008

17

EVELYN CAVALI DA COSTA RAITZ

O PRINCPIO DA CONFIANA NOS CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO

Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Direito pelo Centro Universitrio Curitiba. Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:

Presidente:

___________________________________ DR. CARLYLE POPP

___________________________________ DR. ANTNIO CARLOS EFING

___________________________________ DR. LUIZ EDUARDO GUNTHER

Curitiba,

de

de 2008.

18

minha amada filha Duda, in memoriam, presente de Deus em minha vida.

Aos meus pais, que sempre afirmaram que o maior patrimnio que o ser humano pode ter o conhecimento intelectual.

19

AGRADECIMENTOS

A Deus, por ser meu refgio, minha fonte de esperana e fora em todo o meu caminho.

Ao meu orientador, Professor Doutor Carlyle Popp, por sua competncia, pelo aprendizado e incentivo nos momentos oportunos.

Aos meus pais, George Paulo e Maria Helena, pelo dom da vida, por meus valores e por minha formao acadmica.

A tia Maria Helena Jri Reston Pinto, pelas leituras, correes, ensinamentos, pacincia e disponibilidade em me auxiliar em mais uma etapa acadmica.

Aos colegas de Mestrado, em especial, Alessandra Mizuta, que com suas palavras e seu incansvel apoio, incentivou-me, em momentos delicados, a concluir os crditos.

A todos os professores e funcionrios do Mestrado em Direito Empresarial da UNICURITIBA, que contriburam para a realizao deste trabalho.

Aos membros das Faculdades Campo Real, de Guarapuava - Paran, por todo o suporte prestado.

20

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiana. Todo o mundo composto de mudana, Tomando sempre novas qualidades. (Lus Vaz de Cames)

21

RESUMO

A dissertao proposta possui vinculao direta com a Linha de Pesquisa Obrigaes e Contratos Empresariais: Responsabilidade Social e Efetividade, do Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitrio Curitiba, uma vez que os contratos consumeristas eletrnicos inserem-se como uma espcie de obrigao empresarial. Ainda, inserem-se no campo da responsabilidade social no que tange a sua funo econmica e relevncia no mercado dos dias atuais. O estudo se destina a verificar alguns aspectos dos contratos eletrnicos de consumo, tendo em vista, que, com o surgimento da Internet, o mundo e o Direito viram nascer um campo inteiramente novo, no que se refere s relaes entre os indivduos. O trabalho procura demonstrar, primeiramente, que a evoluo socioeconmica somada Revoluo Industrial ocasionou uma transformao na sociedade, que teve reflexos no Direito, ocasionando a substituio da teoria contratual clssica pela nova concepo social do contrato, ressaltando o surgimento de uma nova realidade contratual com as contrataes em massa, na qual se incluem as relaes jurdicas de consumo com as suas peculiaridades. Posteriormente, o estudo aborda os contratos eletrnicos de consumo, apontando que com o desenvolvimento da rede mundial de computadores, a possibilidade de celebrao de contratos pelos meios eletrnicos se tornou uma realidade contempornea. Conceitua os contratos eletrnicos, expe a sua classificao e as modalidades de negcios jurdicos que podem ser celebrados por meio da Internet, enfatizando as especificidades dos contratos interativos de adeso celebrados business to consumer, ou seja, entre consumidores e fornecedores. Ressalta, ainda, que essa nova realidade advinda com o desenvolvimento tecnolgico, na qual consumidores celebram contratos de adeso com fornecedores atravs da Internet, deve ser tutelada pelo Direito, por meio da utilizao das regras previstas no Cdigo de Defesa do Consumidor e no Cdigo Civil de 2002. Por fim, a dissertao se destina a tratar da aplicabilidade do princpio da confiana, que deve ser considerado o aspecto fundamental a ser observado nas contrataes eletrnicas em decorrncia da complexidade do meio virtual. Aponta-se que esse princpio e os seus deveres anexos de transparncia, informao e segurana so as ferramentas hbeis a promover um maior desenvolvimento das contrataes eletrnicas de consumo, pois, os consumidores confiaro no meio eletrnico quando tiverem todas as suas legtimas expectativas asseguradas.

Palavras-chave: Empresarial; cidadania; contratos; contratos eletrnicos; direito do consumidor; princpio da confiana.

22

ABSTRACT

The dissertation proposal has direct links with the line of duty and contract research business: social responsibility and effectiveness of master in business Law and citizenship of the University Center Curitiba, since the consumeristas electronic contracts are structured as a kind of obligation business. Still, fall within the field of social responsibility with regard to its economic role and relevance in the market today. The study intend to verify some aspects of the electronic consumption contract, because with the emergence of the Internet, the world and the law saw birth a whole new field, with regard to relations between individuals. The work aims to show, first, that the socioeconomic developments added to the Industrial Revolution caused a transformation in society, which took effect on the law, causing the replacement of the classical theory contract for the new design of the social contract, highlighting the emergence of a new contract with reality the mass hiring, which include the legal relations of consumption with its peculiarities. Subsequently, the study addresses the contracts of consumer electronics, indicating that with the development of the global network of computers, the possibility of concluding contracts by electronic means has become a contemporary reality. Conceptualized the electronic contracts, sets out his classification and arrangements for legal transactions that may be awarded for the Internet, emphasizing the specifics of contracts awarded membership of interactive business to consumer. Emphasized also that this new situation arising with technological development, in which consumers enter into contracts with suppliers for membership the Internet should be governed by law, through the use of the rules in the Code of Consumer Protection and the Civil Code 2002. Finally, the thesis is intended to address the applicability of the principle of trust which should be regarded as the fundamental aspect to be observed in electronic contracts due to the complexity of the virtual environment. It points out that principle of trust and its annexes of transparency, information and security are able to promote further development of electronic contracts consumption, because consumers trust in the electronic media when they have secured their legitimate expectations.

Keywords: Corporate, citizenship, contracts; electronic contracts; consumer's right; principle of trust.

23

SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................................................................... 27 1 A RENOVAO DA TEORIA CONTRATUAL ......................................................................................... 30 1.1 VISO HISTRICA..................................................................................................................................... 30 1.2 A CONCEPO CLSSICA DE CONTRATO ........................................................................................ 32 1.2.1 A DOUTRINA DA AUTONOMIA DA VONTADE................................................................................ 34 1.2.2 A LIBERDADE CONTRATUAL ............................................................................................................. 35 1.2.3 A FORA OBRIGATRIA DO CONTRATO ....................................................................................... 37 1.2.4 O EFEITO RELATIVO DO CONTRATO.............................................................................................. 38 1.3 A CRISE NA TEORIA CONTRATUAL CLSSICA ............................................................................... 38 1.4 A NOVA CONCEPO SOCIAL DO CONTRATO................................................................................ 42 1.4.1 O CONTRATO E A SUA NOVA VISO ................................................................................................ 42 1.4.2 O ESTADO E A SUA NOVA VISO....................................................................................................... 43 1.4.3 PRINCPIOS SOCIAIS DOS CONTRATOS.......................................................................................... 44 1.4.3.1 A AUTONOMIA PRIVADA .................................................................................................................. 45 1.4.3.2 A FUNO SOCIAL DO CONTRATO ............................................................................................... 47 1.4.3.3 A BOA-F ................................................................................................................................................ 48 1.4.3.3.1 AS CONCEPES DA BOA-F........................................................................................................ 49 1.4.3.3.2 O DESENVOLVIMENTO DA NOO DE BOA-F OBJETIVA ................................................ 52 1.4.3.3.3 O PRINCPIO DA BOA-F OBJETIVA NO CDIGO CIVIL DE 2002 ...................................... 53 1.4.3.4 EQUIVALNCIA MATERIAL DO CONTRATO.............................................................................. 54 1.5 A NOVA REALIDADE CONTRATUAL ................................................................................................... 55 1.5.1 RELAO JURDICA DE CONSUMO ................................................................................................. 55 1.5.2 RELAES CONTRATUAIS EM MASSA ........................................................................................... 56 1.5.3 CONTRATOS DE ADESO..................................................................................................................... 57 1.5.3.1 FORMAO DOS CONTRATOS DE ADESO................................................................................ 58 1.5.3.2 CARACTERSTICAS............................................................................................................................. 59 1.5.3.3 CONTRATOS DE ADESO NO CDIGO CIVIL DE 2002 ............................................................. 60 1.6 O CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO FERRAMENTA DA NOVA REALIDADE CONTRATUAL................................................................................................................................................... 60 1.6.1 ELEMENTOS DA RELAO DE CONSUMO ..................................................................................... 62 1.6.1.1 CONSUMIDOR....................................................................................................................................... 63 1.6.1.1.1 CONSUMIDOR PADRO .................................................................................................................. 64 1.6.1.1.1.1 INTERPRETAO FINALISTA ................................................................................................... 65 1.6.1.1.1.2 INTERPRETAO MAXIMALISTA............................................................................................ 66 1.6.1.1.1.3 INTERPRETAO FINALISTA APROFUNDADA.................................................................... 67 1.6.1.1.2 COLETIVIDADE CONSUMIDORA ................................................................................................. 68 1.6.1.1.3 CONSUMIDOR EXPOSTO S PRTICAS COMERCIAIS ......................................................... 69

24

1.6.1.1.4 CONSUMIDOR VTIMA DE ACIDENTE DE CONSUMO ........................................................... 69 1.6.1.2 FORNECEDOR....................................................................................................................................... 70 1.6.2 PRINCPIOS DO CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR........................................................... 70 1.6.2.1 PRINCPIO DA VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR........................................................... 71 1.6.2.2 PRINCPIO DA INFORMAO.......................................................................................................... 74 1.6.2.3 PRINCPIO DA BOA-F ....................................................................................................................... 74 1.6.2.4 PRINCPIO DA CONFIANA.............................................................................................................. 76 1.6.2.5 PRINCPIO DA TRANSPARNCIA.................................................................................................... 76 1.6.3 CONTRATOS DE ADESO NO CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ................................. 77 1.6.3.1 CONTRATOS DE ADESO X CONTRATOS POR ADESO......................................................... 78 2 CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO ........................................................................................ 80 2.1 A INTERNET E O SURGIMENTO DA CONTRATAO ELETRNICA DE CONSUMO............. 80 2.2 CONCEITO DE CONTRATOS ELETRNICOS .................................................................................... 83 2.2.1 DISTINO ENTRE CONTRATOS INFORMTICOS E CONTRATOS ELETRNICOS.......... 84 2.3 PRINCPIOS APLICVEIS AOS CONTRATOS ELETRNICOS....................................................... 85 2.4 CLASSIFICAO DOS CONTRATOS ELETRNICOS....................................................................... 86 2.4.1 CLASSIFICAO QUANTO AO GRAU DE INTERAO ENTRE AS PESSOAS E OS COMPUTADORES............................................................................................................................................. 86 2.4.1.1 CONTRATOS ELETRNICOS INTERSISTMICOS ..................................................................... 87 2.4.1.2 CONTRATOS ELETRNICOS INTERPESSOAIS........................................................................... 88 2.4.1.3 CONTRATOS ELETRNICOS INTERATIVOS............................................................................... 89 2.5 DISTINO ENTRE O CONTRATO ELETRNICO CIVIL E O DE CONSUMO ........................... 90 2.6 MODALIDADES DE NEGCIOS JURDICOS CELEBRADOS NA INTERNET .............................. 91 2.6.1 BUSINESS TO BUSINESS ........................................................................................................................ 91 2.6.2 BUSINESS TO CONSUMER ..................................................................................................................... 92 2.6.3 CONSUMER TO CONSUMER .................................................................................................................. 92 2.6.4 BUSINESS TO GOVERNMENT E CONSUMER TO GOVERNMENT ................................................. 93 2.6.5 GOVERNMENT TO GOVERNMENT....................................................................................................... 93 2.7 CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO E-COMMERCE ...................................................... 93 2.7.1 RELAO JURDICA DE CONSUMO NA INTERNET...................................................................... 95 2.7.2 REQUISITOS DE VALIDADE DOS CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO................... 96 2.7.2.1 REQUISITOS SUBJETIVOS ................................................................................................................ 97 2.7.2.1.1 AGENTE CAPAZ ................................................................................................................................ 98 2.7.2.1.1.1 ASSINATURA DIGITAL ................................................................................................................. 99 2.7.2.1.1.2 TECNOLOGIA BIOMTRICA .................................................................................................... 100 2.7.2.1.2 MANIFESTAO VLIDA DAS PARTES ................................................................................... 100 2.7.2.2 REQUISITOS OBJETIVOS ................................................................................................................ 102 2.7.2.2.1 VALIDADE DO OBJETO................................................................................................................. 102 2.7.2.3 REQUISITOS FORMAIS .................................................................................................................... 102 2.7.2.3.1 FORMA............................................................................................................................................... 102

25

2.7.2.3.2 SEGURANA..................................................................................................................................... 104 2.7.2.3.3 DOCUMENTOS ELETRNICOS................................................................................................... 105 2.7.2.3.3.1 VALIDADE DOS DOCUMENTOS ELETRNICOS................................................................. 106 2.7.2.3.3.2 A FORA PROBATRIA DOS DOCUMENTOS ELETRNICOS ........................................ 107 2.7.3 OS CONTRATOS DE ADESO NO COMRCIO ELETRNICO.................................................. 109 2.7.4 FORMAO DO VNCULO CONTRATUAL NOS CONTRATOS ELETRNICOS DE ADESO ............................................................................................................................................................................. 110 2.7.4.1 FASE PR-CONTRATUAL ................................................................................................................ 110 2.7.4.1.1 OFERTA ............................................................................................................................................. 111 2.7.4.1.1.1 PUBLICIDADE ............................................................................................................................... 113 2.7.4.1.2 ACEITAO...................................................................................................................................... 115 2.7.4.2 FASE CONTRATUAL ......................................................................................................................... 116 2.7.4.3 FASE PS-CONTRATUAL ................................................................................................................ 117 3 A APLICABILIDADE DO PRINCPIO DA CONFIANA NOS CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO ........................................................................................................................................................ 120 3.1 OS CONTRATOS ELETRNICOS E O PARADIGMA DA CONFIANA ....................................... 120 3.2 A AUSNCIA DE CONFIANA POR PARTE DOS CONSUMIDORES NO E-COMMERCE ....... 121 3.2.1 COMPLEXIDADE DO MEIO VIRTUAL............................................................................................. 122 3.2.1.1 DESPERSONALIZAO DO CONTRATO..................................................................................... 123 3.2.1.2 DESUMANIZAO DO CONTRATO .............................................................................................. 125 3.2.1.3 DESMATERIALIZAO ................................................................................................................... 126 3.2.1.4 DESTERRITORIALIZAO E ESPAO VIRTUAL ..................................................................... 127 3.2.1.5 ATEMPORALIDADE .......................................................................................................................... 129 3.3 CRISE DA CONFIANA........................................................................................................................... 130 3.4 PRINCPIO DA CONFIANA.................................................................................................................. 132 3.4.1 ACEPES NORMATIVAS DA CONFIANA.................................................................................. 132 3.4.2 ADOO DO PRINCPIO DA CONFIANA ..................................................................................... 134 3.5 BASES PARA A CONCREO DA CONFIANA NOS CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO ........................................................................................................................................................ 137 3.5.1 TRANSPARNCIA ................................................................................................................................. 137 3.5.1.1 TRANSPARNCIA NA FASE PR-CONTRATUAL ...................................................................... 139 3.5.2 INFORMAO........................................................................................................................................ 141 3.5.2.1 DEVER DE CONFIRMAO ............................................................................................................ 143 3.5.3 SEGURANA........................................................................................................................................... 144 3.6 PROTEO DA CONFIANA NOS CONTRATOS ELETRNICOS DE CONSUMO................... 145 CONCLUSO ................................................................................................................................................... 147 REFERNCIAS ................................................................................................................................................ 150 GLOSSRIO ..................................................................................................................................................... 166

26

QUADRO DE TABELAS

Tabela 1 ....................................................................................................................69 Tabela 2 ..................................................................................................................107

27

INTRODUO

A origem da Internet est relacionada a um projeto militar norte-americano, da dcada de 1960, denominado de Arpanet, que criou um sistema para interligar os centros universitrios de pesquisa e o Pentgono, a fim de que pudessem ser realizadas trocas de informaes seguras. Foram efetivados diversos aprimoramentos nesse sistema inicial, at a criao do world wide web, que permitiu a expanso dessa rede pelo mundo inteiro. Em 1988, o fenmeno chegou ao Brasil, em um primeiro momento, restrito exclusivamente ao meio acadmico. Anos depois, ocorreu a sua popularizao e uma revoluo nas comunicaes, no comrcio e no entretenimento. Atualmente, mais de 41 milhes de brasileiros tm acesso rede mundial de computadores1. Em decorrncia deste fato, observa-se uma revoluo nas relaes jurdicas, uma vez que a Internet proporcionou um novo meio para a celebrao de negcios jurdicos. Diariamente, inmeras pessoas navegam em diversos sites, por todo o mundo, tendo acesso a informaes, bens, produtos e servios, em tempo real. Portanto, havendo, onde quer que seja, um computador conectado rede, poder haver comunicao, troca de informaes, e, tambm, negcios. Na ltima dcada, as contrataes para fins comerciais efetivadas por meio da Internet alcanaram nveis significativos perante a economia mundial, sendo que existe uma tendncia de incremento destas operaes mercantis, inclusive nos pases em desenvolvimento, como o Brasil. Para se constatar a circulao de valores que o e-commerce tem proporcionado, basta que se observe pesquisa realizada, recentemente, onde foi constatado que as lojas virtuais apresentaram um crescimento de 55% no Natal de 2007, em relao s vendas de 2006. De acordo com o acompanhamento do setor realizado pela e-bit, durante o perodo de 15 de novembro a 23 de dezembro de 2007, as compras pela Internet superaram o faturamento estimado em R$ 1 bilho,

Dados obtidos no site www.abril.com.br, publicados no dia 27/06/2008, referentes pesquisa realizada pelo Ibope/NetRatings. Consulta efetuada em 05/07/2008.

1

28

com R$ 1,081 bilho. No ano de 2006, o faturamento, nesse mesmo perodo, foi de R$ 693 milhes.2 Recentemente, a E-Consulting e a Cmara Brasileira de Comrcio Eletrnico apresentaram os resultados do varejo online, no primeiro trimestre de 2008, indicando que as lojas virtuais brasileiras movimentaram 5,74 bilhes de reais nos meses de janeiro, fevereiro e maro de 2008, evidenciando um aumento de 29% em relao ao mesmo perodo do ano passado, que atingiu a marca de 4, 41 bilhes.3 Verifica-se que a celebrao de contratos por meios eletrnicos se tornou uma realidade dos tempos atuais, em que tudo se pode adquirir, de produtos a servios, de vesturio a utenslios domsticos, de um simples sabonete lista inteira de compras em um supermercado, de um ingresso para o teatro a um tour pelo mundo, incluindo passagem de avio, passeios tursticos, hotis, dentre outros. Assim, surge o comrcio eletrnico, uma das modalidades de negcio jurdico realizado atravs da Internet. Ocorre que, ao mesmo tempo em que o crescimento das contrataes por meio da rede mundial de computadores mobiliza novos mercados, gera novos empregos e aumenta a circulao financeira, por outro lado, as relaes virtuais tambm geram discusses, dvidas, incertezas e inmeros outros questionamentos. A nova realidade no pode mais passar despercebida pelo mundo jurdico. Existe a necessidade de que os operadores e estudiosos do Direito dediquem uma especial ateno a essa nova forma de contratao, pois, com o advento da Internet, o mundo viu nascer um campo inteiramente novo, no que se refere s relaes entre os indivduos. Em assim sendo, esta dissertao se destina verificao da aplicabilidade do princpio da confiana nos contratos eletrnicos de consumo realizados atravs da Internet, os quais se tornaram, na sociedade contempornea, um modo usual para a celebrao de negcios jurdicos. A estrutura deste trabalho foi desenvolvida em trs captulos. O primeiro captulo reservado ao estudo da teoria geral dos contratos, no qual sero abordados os seguintes temas: viso histrica do contrato, a concepo clssica do contrato, as transformaes sociais que ocasionaram a crise naDados obtidos no site www.itweb.com.br, publicados no dia 28/12/2007, relacionados pesquisa realizada em novembro de 2007 sobre o crescimento das vendas nas lojas virtuais. Acesso em 09/01/2008. 3 Dados obtidos no site www.tiinside.com.br, em 29/04/2008. Consulta realizada em 03/05/2008.2

29

concepo clssica, a nova concepo social do contrato e o surgimento da nova realidade contratual, onde ocorreu a massificao das relaes contratuais e o surgimento do contrato de adeso. O segundo captulo abordar os contratos eletrnicos de consumo. Em um primeiro momento, sero apresentados a importncia e o conceito de contratos eletrnicos. Posteriormente, sero analisados, especificadamente, os contratos eletrnicos de consumo. Por fim, o terceiro captulo ser dedicado exclusivamente ao estudo da aplicabilidade do princpio da confiana nos contratos eletrnicos de consumo. A dissertao finalizar com as concluses resultantes da pesquisa. Ressalta-se que, esse trabalho possui vinculao direta com a Linha de Pesquisa Obrigaes e Contratos Empresariais: Responsabilidade Social e Efetividade, do Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitrio Curitiba, uma vez que os contratos consumeristas eletrnicos inserem-se como uma espcie de obrigao empresarial. Ainda, inserem-se no campo da responsabilidade social no que tange a sua funo econmica e relevncia no mercado dos dias atuais.

30

1 A RENOVAO DA TEORIA CONTRATUAL

1.1 VISO HISTRICA Na seara do Direito, o contrato deve ser considerado um dos institutos mais antigos e expressivos na histria da sociedade, pois desde o surgimento da humanidade, h indcios de sua existncia e utilizao como instrumento hbil a permitir a circulao de riquezas, adequando-se, sempre que necessrio, s exigncias decorrentes da evoluo social, como relatam diversos doutrinadores. Arnoldo Wald (2000) afirma que pouqussimos institutos tiveram uma vida to longa como o contrato, que existiu na Antigidade, na Idade Mdia, no mundo capitalista e sobrevive na contemporaneidade, sendo que se desenvolveu e adaptou suas estruturas s transformaes das sociedades. Assim, o contrato o instituto que se adapta sociedade na qual se encontra inserido, tendo como fundamento as prticas sociais, a moral e o modelo econmico e poltico, vigentes em determinado momento histrico. Corroborando este entendimento, Enzo Roppo afirma:Uma vez que o contrato reflecte, pela sua natureza, operaes econmicas, evidente que o seu papel no quadro do sistema resulta determinado pelo gnero e pela quantidade das operaes econmicas a que chamado a conferir dignidade legal, para alm do modo como, entre si, se relacionam numa palavra pelo modelo de organizao econmica a cada momento prevalecente. (ROPPO, 1988, p. 24)

Ainda, de acordo com Enzo Roppo (1988) o prprio modo de ser e de se conformar do contrato como instituto jurdico, no deixa de sofrer a influncia do modelo de organizao poltico-social em que se encontra inserido. Tudo isso, se exprime atravs da frmula da relatividade do contrato, ou seja, o contrato muda a sua disciplina, as suas funes, a sua prpria estrutura segundo o contexto econmico-social em que se encontra. Em decorrncia dessa constante vinculao existente entre o contrato e a realidade socioeconmica, torna-se praticamente impossvel determinar a data especfica de surgimento do direito contratual. Contudo, pode-se afirmar que a sistematizao jurdica ocorreu no Direito Romano, que estabeleceu as bases para a teoria contratual, definindo requisitos, garantias e classificaes.

31

Portanto, a idia de contrato vem sendo moldada, gradativamente, desde os romanos. No Direito Romano, em um primeiro momento, o contrato era o vnculo jurdico composto por atos solenes, do qual resultava uma obrigao para as partes. Nesse perodo, a forma era o elemento fundamental do contrato. Posteriormente, na poca de Justiniano, o elemento subjetivo vontade se sobreps ao formalismo e a plena manifestao livre de vontade passou a vincular os indivduos. Surge, assim, o princpio da autonomia da vontade, de acordo com Orlando Gomes (1998). Com a queda do Imprio Romano, ocorre a passagem para a Idade Mdia, poca caracterizada pelo feudalismo, cuja economia se baseava na agricultura e em pequenas trocas de produtos entre os feudos. Nos ltimos sculos do perodo medieval, a partir do Renascimento Comercial, iniciou-se uma fase de transio.(...) no sculo XVII e XVIII as Cruzadas, as novas rotas martimas, os metais preciosos, as feiras, o aperfeioamento dos mtodos bancrios, a expanso dos mercados, tudo transforma a economia feudal na Europa, percebe-se o nascente capitalismo. (TEIZEN JNIOR, 2004, p. 45)

Na Idade Moderna, ocorreu, definitivamente, a substituio do feudalismo pelo capitalismo burgus. A ascenso da burguesia, que se dedicava ao comrcio e prestao de servios, foi um marco importante para a evoluo das relaes jurdicas patrimoniais. A partir desse momento histrico, o contrato passou a ser, efetivamente, o instrumento jurdico capaz de possibilitar a circulao de riquezas em sociedade. Contemporaneamente, devido a diversas transformaes

socioeconmicas, adotou-se a concepo social do contrato.O Direito no tem assistido inclume s mutaes sofridas pela sociedade, quer em seus aspectos sociais, quer nos econmicos, polticos e religiosos, pois se trata de evidente fato histrico. No obstante isso, nem sempre consegue o Direito acompanhar a evoluo social de maneira adequada e clere. Muitas vezes, quando mudanas ocorrem, elas se destinam a manter tudo como est. Destarte, a histria e seus matizes fizeram com que o homem mudasse e esse mudou em face das alteraes sociais. A evoluo do conceito de contrato um grande exemplo disso. (POPP, 2008, p. 36-37)

Verifica-se, portanto, que o instituto jurdico do contrato passou por diversas modificaes para se adaptar, no podendo ser estudado desvinculado de sua historicidade, como ser observado nos prximos tpicos deste trabalho.

32

1.2 A CONCEPO CLSSICA DE CONTRATO O surgimento da concepo clssica de contrato vincula-se aos anseios que surgiram na sociedade ps Revoluo Francesa. No sculo XVIII, na Frana, existia uma sociedade politicamente organizada, regida por um Estado Absolutista, que limitava a atuao da burguesia, classe que fomentava o capitalismo, naquela poca. Ocorre que, essa classe, economicamente mais forte, estava insatisfeita com a falta de liberdade em suas relaes. Clamando por uma maior autonomia, insurgiu-se contra o Estado Absolutista, atravs da Revoluo Francesa, que teve como base o liberalismo econmico, a igualdade e o individualismo e exerceu uma forte presso sobre o Absolutismo, uma vez que tinha como finalidade a tomada do poder poltico e a construo de uma legislao que tutelasse os interesses da classe burguesa. Nesse sentido, Daniel Sica da Cunha (2007) afirma que os ideais libertrios apregoados pelos revolucionrios franco-burgueses pretendiam a reduo da ingerncia do Estado opressor e a criao de uma ordem jurdica privada, afastada das ingerncias do pblico e das foras polticas. Assim, em decorrncia desse cenrio poltico, econmico e social, ocorreu a substituio do Antigo Regime pelo Estado Liberal, hbil a dar sustentao aos ideais da classe burguesa. Foi a transio da Idade Moderna para a Idade Contempornea. A nova organizao estatal tinha como caracterstica a no interveno do Estado na economia, em atendimento aos interesses da burguesia, que possua a prerrogativa de regular a economia em seu favor, expandindo seus domnios. Foi o momento da consagrao do liberalismo econmico. Ainda, como particularidades provenientes da criao do Estado Liberal, pode-se citar: a criao de leis que tutelavam os direitos da burguesia, a consagrao do princpio da igualdade formal, da liberdade econmica e a garantia de direitos individuais fundamentais. Contudo, o mais importante fruto da evoluo social, poltica e econmica, ocorrida aps a Revoluo Francesa, foi a edio do Cdigo de Napoleo, em 1804, o qual apresentou as bases da teoria clssica do contrato.

33

Segundo Bortolozzi (2005), o Cdigo Civil francs refletia as concepes filosficas e econmicas introduzidas aps a Revoluo de 1789 e tinha a autonomia da vontade como base de todo o sistema estabelecido para os contratos. Nesse sentido, Teizen Jnior afirma:Foi no Cdigo de Napoleo, smbolo do iderio liberal-burgus, monumento jurdico da Revoluo Francesa, que o contrato foi definido. Os princpios fundamentais que regem o contrato, como a autonomia da vontade, o consensualismo, a fora obrigatria foram a garantia jurdica para o livre comrcio, princpios estes, fundamentais cristalizao do capitalismo e sua expanso. (TEIZEN JNIOR, 2004, p. 55)

O Code Civil conjugou as influncias individualistas e voluntaristas do final do sculo XVIII; e, a partir delas, estruturou a concepo clssica de contrato, enquanto instrumento da economia liberal, norteada pelos valores da autonomia da vontade, de liberdade e de igualdade formal. A respeito do Cdigo Civil francs, Cludia Lima Marques (2002, p.47) afirma: Marco da histria do direito, esta codificao, que influenciaria grande parte dos ordenamentos jurdicos do mundo, coloca como valor supremo de seu sistema contratual a autonomia da vontade. Este sistema foi adotado, inclusive, pelo Cdigo Civil de 1916, que refletia o pensamento decorrente do liberalismo econmico. Para a teoria clssica, o contrato poderia ser definido como o acordo de vontades livres de duas ou mais pessoas, com a finalidade de produzir efeitos jurdicos, atravs da criao, modificao ou extino de direitos. Segundo Luciana Antonini Ribeiro (2007), a definio clssica de contrato elenca quatro elementos bsicos: o indivduo, a vontade do indivduo, livre isenta de vcios ou defeitos, definindo ou criando direitos e obrigaes. Verifica-se, portanto, que a livre manifestao de vontade das partes o cerne da teoria contratual. Em assim sendo, cabe, neste momento, um estudo pormenorizado da doutrina da autonomia da vontade, uma vez que foi erigida a condio de dogma da teoria clssica.

34

1.2.1 A doutrina da autonomia da vontade Como foi mencionado no tpico anterior, para o modelo de contrato do Estado Liberal, a autonomia da vontade era o fundamento da teoria contratual, pois, na concepo clssica de contrato, a utilizao deste princpio significava que a obrigao contratual tinha como nica fonte a vontade manifestada pelas partes. Augusto Geraldo Teizen Jnior (2004) afirma que, a partir da adoo da concepo clssica de contrato, o voluntarismo jurdico alcanou o seu apogeu, uma vez que o dogma da autonomia da vontade se tornou essencial para a criao, modificao e extino dos direitos e obrigaes. Constata-se que, naquele momento histrico, a autonomia da vontade das partes balizava as relaes jurdicas. Portanto, de fundamental importncia que se investigue o sentido da autonomia da vontade para a teoria contratual clssica. Nesse sentido, os ensinamentos do professor Antnio Carlos Efing esclarecem o significado de tal dogma:O princpio da autonomia da vontade consiste no poder das partes de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontade, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurdica, envolvendo, alm da liberdade de criao do contrato a liberdade de contratar ou no contratar, a liberdade de escolher o outro contratante e a de fixar o contedo do contrato. (EFING, 1999, p. 94)

A adoo deste princpio pela teoria clssica tinha como conseqncia direta que a expresso da vontade das partes era o cerne do contrato. A vontade era considerada a nica fonte competente para criar direitos e obrigaes, sendo que os contraentes eram dotados da livre declarao de vontade. Ou seja, as partes se obrigavam unicamente porque assim o quiseram e na exata medida de seu querer. Logo, o contrato vinculava-se idia individualista, pois as pessoas tinham a capacidade de gerir os seus prprios interesses, com amparo legal. Tudo aquilo quando contratado tornar-se-ia lei entre as partes, sendo justo na medida em que foi pelas partes escolhido. (RIBEIRO, 2007, p. 430). Em decorrncia disto, surgiu o clebre brocardo: o contrato faz lei entre as partes. Ento, a livre declarao de vontade originava a obrigatoriedade do contrato entre as partes, cabendo lei o papel supletivo ou subsidirio de assegurar o pactuado pelos contraentes.

35

Assim, sob a gide do Estado Liberal, a autonomia da vontade dos contraentes era concebida como princpio supremo e, conseqentemente, o que as partes livres e iguais convencionavam era tido como a mais sincera expresso de sua vontade, razo pela qual no podia ser modificada pela Lei ou pelo Juiz. (PASCUTTI, 2002, p. 53)

Ocorre que o emprego da doutrina da autonomia da vontade na teoria contratual no era auto-suficiente e conduziu aplicao de trs princpios: da liberdade contratual, da fora obrigatria do contrato e do efeito relativo do contrato, os quais sero analisados a seguir.

1.2.2 A liberdade contratual No tpico anterior, constatou-se que a autonomia da vontade era o cerne do contrato. Impende-se, portanto, uma anlise sobre o seu fundamento principal, a liberdade contratual, que concedia s partes a liberdade de gerir os seus prprios interesses. No sculo XIX, tal liberalidade era conferida s partes porque existia o pressuposto de que a igualdade formal coexistia com o princpio da liberdade contratual. Partia-se da idia de que as partes, as quais se encontravam em p de igualdade, tinham total liberdade em contratar ou no contratar. (BORTOLOZZI, 2005, p. 58). Em assim sendo, toda relao contratual livremente constituda era justa, porque era celebrada por pessoas livres e iguais. Para Enzo Roppo (1988), a utilizao do princpio da liberdade contratual demonstrava que as partes eram tendencialmente livres para organizar e desenvolver os seus interesses por meio dos contratos, segundo as modalidades e nas condies que melhor correspondessem aos seus interesses. Ocorre que, mencionar que a liberdade contratual era a faculdade de contratar ou no contratar, insuficiente para explicar a relevncia do princpio para a concepo clssica do contrato. Logo, o princpio da liberdade contratual deve ser analisado sob duas ticas: a de fundo e a de forma. Em relao ao fundo, a liberdade contratual se expressava atravs de uma trplice capacidade, descrita por Carlyle Popp (2008) da seguinte maneira: as partes eram livres para contratar ou para no - contratar; em decidindo contratar, eram

36

livres para escolher o seu parceiro contratual; optando por contratar e escolhido o parceiro contratual, as partes poderiam livremente estabelecer o contedo do contrato. A respeito da tica de fundo, Cludia Lima Marques afirma:A liberdade contratual significa, ento, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o contedo e os limites das obrigaes que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteo do direito. (MARQUES, 2002, p. 48)

Corroborando este entendimento, Enzo Roppo menciona:Com base nesta (liberdade de contratar), afirmava-se que a concluso dos contratos, de qualquer contrato, devia ser uma operao absolutamente livre para os contraentes interessados: deviam ser estes, na sua soberania individual de juzo e de escolha, a decidir se estipular ou no estipular um certo contrato, a estabelecer se conclu-lo com esta ou com aquela contraparte, a determinar com plena autonomia o seu contedo, inserindolhe estas ou aquelas clusulas, convencionando este ou aquele preo. (ROPPO, 1988, p.128)

Portanto, as partes, alm da liberdade de escolher se queriam ou no contratar, possuam a faculdade de discutir as condies contratuais, bem como a possibilidade de escolher com quem contratar, o contedo e o tipo do contrato. Como conseqncia dessa ampla liberdade contratual concedida s partes contratantes, o Estado Liberal estava proibido de intervir nas relaes contratuais. A sua nica funo era resguardar a vontade das partes. Por sua vez, a segunda tica da liberdade contratual, referente forma, indicava que a liberdade contratual postulava o consensualismo, ou seja, para a formao do contrato exigia-se apenas o livre acordo de vontade, dispensando qualquer forma especfica. Em resumo, o princpio da liberdade contratual vincula-se autonomia da vontade, uma vez que a vontade legitima o contrato; e, simultaneamente, fonte de obrigaes, sendo a liberdade um pressuposto da vontade criadora, no cabendo ao Estado intervir nas relaes contratuais, uma vez que as partes haviam se obrigado exatamente como desejaram na celebrao do contrato. Ainda, interessante salientar o papel que a liberdade contratual desempenhou para o desenvolvimento do capitalismo e do liberalismo econmico. Segundo

37

Augusto Geraldo Teizen Jnior (2004), a liberdade contratual preencheu trs importantes funes desempenhadas pelo contrato no sculo XIX. Primeiramente, o dogma da liberdade contratual permitiu que as pessoas agissem de forma autnoma e livre no mercado, possibilitando a livre concorrncia. A segunda funo decorreu do consensualismo, pois as partes ficaram apenas adstritas observncia do princpio da pacta sunt servanda. Por fim, coube ao direito assegurar s partes a maior independncia possvel, para se auto-obrigar nos limites que desejassem.

1.2.3 A fora obrigatria do contrato Constatou-se que, para a concepo clssica de contrato, a vontade era o cerne da relao contratual, uma vez que o acordo de vontades tinha a capacidade de criar direitos e obrigaes para as partes, sobrepondo-se prpria lei. Assim, teve origem o princpio da fora obrigatria, tambm denominado de pacta sunt servanda, pois, manifestada a vontade, as partes vinculavam-se ao cumprimento do pactuado no contrato, no podendo dele se desvincular, a no ser por outro acordo de vontades, pelo caso fortuito ou pela fora maior. Sobre a fora obrigatria dos contratos, Orlando Gomes pondera:O princpio da fora obrigatria consubstancia-se na regra de que o contrato lei entre as partes. Celebrado que seja, com observncia de todos os pressupostos e requisitos necessrios sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas clusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente o seu contedo, vale dizer, definidos os direitos e obrigaes de cada parte, as respectivas clusulas tm, para os contratantes, fora obrigatria. (GOMES,1998, p.36)

Neste mesmo sentido, Humberto Theodoro Jnior (1999, p. 21) ensina que o direito reconhece, portanto, que os contratos, desde o momento em que adquirem existncia jurdica, so, quanto ao seu contedo, definitivos, e tm, a respeito desse, a mesma fora obrigatria que uma lei. Em assim sendo, o princpio da obrigatoriedade dos contratos importava no dever das partes em cumprir o contrato e, indiretamente, proporcionava segurana e estabilidade s relaes contratuais.

38

Ressalta-se que a mais relevante conseqncia do princpio da fora obrigatria dos contratos a intangibilidade do contedo pactuado, que significava a impossibilidade de reviso ou alterao do contedo do contrato, salvo quando as clusulas contratuais estivessem contaminadas por nulidades ou por vcios de vontade.

1.2.4 O efeito relativo do contrato O princpio do efeito relativo do contrato surgiu, na teoria clssica, em decorrncia da aplicao da doutrina da autonomia da vontade, da liberdade contratual e do princpio da obrigatoriedade dos contratos. Segundo Roberto Senise Lisboa,Dentre os vrios princpios que regem os contratos, temos o da relatividade dos efeitos, segundo o qual o negcio jurdico em questo res inter alios acta tertio nec nocet nec prodest, isto , os efeitos da avena atingem tosomente aos que a celebraram, sem produo de benefcios ou danos aos estranhos ao vnculo. (LISBOA, 1997b, p. 107)

Em conseqncia da utilizao desse princpio, o contrato obrigava apenas aqueles que efetivamente participaram de sua formao, atravs de uma declarao de vontade. Ou seja, os direitos e obrigaes estabelecidos na celebrao do contrato eram inter partes, afetavam apenas as pessoas que tinham manifestado a sua vontade, no prejudicando e nem aproveitando terceiros, estranhos relao contratual.

1.3 A CRISE NA TEORIA CONTRATUAL CLSSICA A crise na teoria contratual est vinculada a diversas transformaes sociais que influenciaram sobremaneira o mundo jurdico, principalmente a teoria contratual, sendo que deve ser entendida como uma modificao na estrutura do contrato, ou seja, uma alterao nos fundamentos e princpios da teoria geral dos contratos. Bruno Miragem afirma:O instituto do contrato, de alta significao jurdica como fonte de obrigaes, expresso mxima do auto-regramento da vontade pelos

39

particulares, conceito que se encontra em transformao. No que se afaste totalmente de sua finalidade clssica, vinculada liberdade individual de conformar direitos e deveres, em vista dos interesses particulares de cada um dos contratantes, ou na linha do entendimento mencionado por Enzo Roppo, como representao jurdica de uma operao econmica. Contudo, o fundamento tradicional do direito dos contratos, qual seja, da prevalncia da liberdade individual (autonomia da vontade) em um amplo espao de possibilidades na qual a lei apenas intervm de modo subsidirio, para negar validade jurdica a disposies que contrariem (a nulidade do objeto ou das clusulas ilcitos), d lugar a um cenrio em que a interveno do Estado-legislador e, sobretudo, do Estado-juiz, se amplia no sentido de proteger uma nova concepo de contrato. (MIRAGEM, 2007, p. 176-177)

Para analisar as transformaes ocorridas no direito contratual, faz-se necessrio um breve retrospecto dos motivos que as ensejaram. O sculo XIX, apogeu da concepo clssica do contrato, notabilizou-se pelo grande desenvolvimento econmico. Neste perodo, o contrato era a expresso da autonomia da vontade das partes, que tinham a liberdade de estipular o que lhes conviesse. O direito contratual servia apenas para fornecer os meios simples e seguros de dar eficcia jurdica a todas as combinaes de interesse das partes. Portanto, o contrato era o instrumento da expanso capitalista. Ocorre que o direito no acompanhou a evoluo socioeconmica, pois, mesmo aps as transformaes oriundas da Revoluo Industrial, continuava a ter como fundamento o individualismo, marcado pela autonomia da vontade, pela igualdade formal e pela no interveno estatal. O incio da crise da teoria contratual clssica vincula-se Revoluo Industrial, na Idade Moderna, que proporcionou o surgimento da produo em srie, a distribuio indireta e a difuso dos contratos. Sobre a ocorrncia da Revoluo Industrial e os seus reflexos, Srgio Cavalieri Filho afirma:Se antes a produo era manual, artesanal, mecnica, circunscrita ao ncleo familiar ou a um pequeno nmero de pessoas, a partir dessa Revoluo a produo passou a ser em massa, em grande quantidade, at para fazer frente ao aumento da demanda decorrente da exploso demogrfica. Houve tambm modificao no processo de distribuio, causando ciso entre a produo e a comercializao. Se antes era o prprio fabricante que se encarregava da distribuio dos seus produtos, pelo que tinha total domnio do processo produtivo sabia o que fabricava, o que vendia e a quem vendia -, a partir de um determinado momento essa distribuio passou tambm a ser feita em massa, em cadeia, em grande quantidade, pelos mega-atacadistas, de sorte que o comerciante e o consumidor passaram a receber os produtos fechados, lacrados e

40

embalados, sem nenhuma condio de reconhecer o seu real contedo. (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 448)

Como conseqncia direta da massificao da produo, surgiram novos instrumentos jurdicos tais como: os contratos coletivos, os contratos de massa e os contratos de adeso. Segundo Cludia Lima Marques, nesses novos instrumentos jurdicos,(...) o acordo de vontades era mais aparente do que real; os contratos prredigidos tornaram-se a regra, e deixavam claro o desnvel entre os contraentes um autor efetivo das clusulas, outro, simples aderente desmentindo a idia de que assegurando-se a liberdade contratual, estaramos assegurando a justia contratual. Em outros novos contratos a liberdade de escolha do parceiro ou a prpria liberdade de contrair no mais existia (contratos necessrios), sendo por vezes a prpria manifestao de vontade irrelevante, em face do mandamento imperativo da lei (contratos coativos). (MARQUES, 2002, p. 150)

Assim, a ocorrncia de contratos despersonalizados, com clusulas prestabelecidas unilateralmente por uma das partes, afetou a doutrina da autonomia da vontade e seus princpios reflexos: da liberdade contratual, da fora obrigatria do contrato e do efeito relativo do contrato. Neste sentido, Augusto Geraldo Teizen Jnior afirma:Dessa forma o esquema do contrato de massa e da estandardizao em matria contratual rompe o paradigma contratual, em especial no que tange a doutrina contratual clssica. Assim, a vontade individual como elemento essencial do contrato o contrato lei entre as partes cede lugar ao Estado-legislador e ao Estado-juiz, diante da imperiosa reviso da intangvel autonomia contratual. (TEIZEN JNIOR, 2004, p. 78)

Segundo Daniel Sica da Cunha (2007), em decorrncia da massificao e do boom ocorrido nas relaes de consumo do sculo, o conceito clssico de contrato apresentou imperfeies. A partir deste momento, ocorreu, na concepo de Cludia Lima Marques (2007), a primeira crise do contrato, que deu incio ao declnio da teoria contratual clssica, que se mostrava insuficiente para tutelar os interesses das pessoas envolvidas nas contrataes. Ricardo Bortolozzi, citando Renata Mandelbaum, aponta quatro motivos que ensejaram a transformao da concepo clssica do contrato, quais sejam:

41

a) o processo de concentrao na indstria e no comrcio, correspondendo a uma crescente urbanizao e estandardizao; b) a crescente substituio da negociao individual pela coletiva, na sociedade industrial; c) expanso das funes estatais de welfare and social service e; d) alastramento das convulses polticas, econmicas e sociais, que resumem em si no somente as alteraes do sistema contratual, mas de modo geral, as do ordenamento jurdico como um todo. (BORTOLOZZI, 2005, p. 61)

Assim, pode-se dizer que em decorrncia da produo estandardizada e do incremento das negociaes coletivas impostos pela nova realidade social, o Direito no mais conseguia tutelar os conflitos e as relaes advindas desta evoluo socioeconmica e teve que se transformar. Neste sentido, Ricardo Bortolozzi afirma:Com a evoluo social, surge a necessidade do direito de se adaptar a novas realidades sob pena de no mais atingir o seu objetivo. As regras embasadas na teoria acerca das relaes contratuais, sustentada principalmente pelos princpios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade contratual, no mais se encaixavam nas solues dos conflitos surgidos com o fenmeno da contratao em massa. (BORTOLOZZI, 2005, p. 59)

Cludia Lima Marques (2002) pondera que a concepo de contrato, com o intuito de atingir os seus objetivos no mundo moderno, evoluiu da livre e soberana manifestao da vontade das partes e se tornou um instrumento jurdico social, controlado e submetido a uma srie de imposies cogentes. Portanto, a fim de se adequar s exigncias da contemporaneidade, a conformao clssica de contrato, individualista e voluntarista, cedeu lugar a um novo modelo desse instituto jurdico, voltado aos valores e princpios constitucionais de dignidade e livre desenvolvimento da personalidade humana. O contrato deixou de ser apenas instrumento de realizao da autonomia privada, para desempenhar uma funo social. Assim, ocorreu uma renovao na teoria contratual, sendo que o contrato passou a ter uma concepo social, como ser analisado posteriormente.

42

1.4 A NOVA CONCEPO SOCIAL DO CONTRATO

1.4.1 O contrato e a sua nova viso Como se observou, anteriormente, a concepo clssica de contrato, veiculada no Cdigo Civil de 1916, era baseada no liberalismo econmico, no individualismo, na autonomia da vontade e na igualdade formal das partes contraentes. Segundo Novais (2000), essa teoria tradicional de contrato, para a qual a vontade era a nica fonte criadora de direitos e obrigaes, formando lei entre as partes e sobrepondo-se prpria lei, teve os seus pilares contestados e secundados pela nova realidade social que se imps. As evolues socioeconmicas e a Revoluo industrial geraram uma srie de transformaes em toda a sociedade, que refletiram na teoria contratual. Houve a massificao da sociedade e o surgimento de novas formas de contratao, tais como: os contratos de adeso, os contratos padronizados e, recentemente, os contratos eletrnicos. Segundo Cludia Lima Marques, a partir desse momento:O contrato no mais pode ser observado como fundamento autnomo e independente, de interesse e com impactos somente em relao as partes contratantes. Considerando-se haver uma solidariedade orgnica entre os membros da sociedade, compreende-se que a viso de contrato no pode ser individualista, devendo considerar os reflexos de cada contrato na sociedade, na vida econmica da comunidade. (MARQUES, 2007, p. 435)

Neste contexto, a concepo clssica de contrato tornou-se ineficaz e necessitou evoluir, atravs de transformaes em seu contedo, em seus princpios e em suas funes. Assim, surgiu a concepo social do contrato, visando atender s necessidades impostas pela nova realidade socioeconmica. Cludia Lima Marques (2002) assevera que, na nova concepo de contrato, no importa apenas a manifestao de vontade das partes, devendo, tambm, ser considerados os efeitos do contrato na sociedade, bem como a condio econmica e social dos contraentes. Na busca deste novo equilbrio, passam a ser protegidos

43

determinados interesses de cunho social, valorizando a confiana do vnculo de contratao, as expectativas e a boa f.

1.4.2 O Estado e a sua nova viso Paralelamente ao surgimento da concepo social do contrato, a nova realidade, tambm, imps que o Estado Liberal se transformasse em um Estado Social, com um papel intervencionista bastante evidente nas relaes contratuais, a fim de sanar os excessos provenientes do liberalismo jurdico. Segundo Augusto Geraldo Teizen Jnior,Este Estado Social surge como uma forma de corrigir os exageros e as distores provocadas pelo livre-arbtrio das partes. Revisa-se o velho esprito revolucionrio, impondo limites democrticos de justia por meio de uma nova ordem legal, como normas de ordem pblica, impondo limites liberdade contratual (no da liberdade de contratar), impedindo a opresso do fraco pelo forte, do tolo pelo esperto, do pobre pelo rico. O poder pblico comea a proporcionar, pelo ordenamento jurdico, uma apropriao mais efetiva dos princpios de igualdade e liberdade. (TEIZEN JNIOR, 2004, p. 91)

O Estado Social constatou a incongruncia dos fundamentos consagrados no Estado Liberal. Passou, ento, a estabelecer novas regras e a criar limites na teoria contratual. Ana Rispoli dAzevedo (2007, p. 285) afirma que o Estado Social impregnou o direito privado de conotaes prprias, eliminando os resqucios ainda existentes do individualismo e formalismo jurdico, para submeter o Estado a valores atuais de justia e equilbrio entre os diferentes interesses regidos em sociedade No Brasil, como pondera Pascutti (2002), tal fenmeno se verificou a partir da publicao da Constituio Federal de 1988, que se desvinculou do modelo liberal e delineou um Estado com capacidade de interveno nas relaes contratuais e elegeu a dignidade da pessoa humana como princpio norteador de toda ordem jurdica, criando uma verdadeira poltica de proteo contratual ao assegurar como direito fundamental a promoo da defesa dos direitos do consumidor, conforme se observa com a leitura do artigo 170 da Constituio Federal (CF).Art. 170. A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, observados os seguintes princpios:

44

I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - funo social da propriedade; IV - livre concorrncia; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e servios e de seus processos de elaborao e prestao; VII - reduo das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constitudas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administrao no Pas. Pargrafo nico. assegurado a todos o livre exerccio de qualquer atividade econmica, independentemente de autorizao de rgos pblicos, salvo nos casos previstos em lei.

Esta nova realidade, advinda com o dirigismo estatal, relativizou os princpios da teoria clssica e, ainda, incluiu na concepo de contrato os princpios da funo social do contrato, o princpio da boa-f objetiva e o princpio da equivalncia material do contrato, os quais sero analisados posteriormente. Assim, tornou-se evidente, no ordenamento jurdico brasileiro, a presena dos princpios contratuais oriundos do Estado Social.

1.4.3 Princpios sociais dos contratos A nova concepo de contrato, com uma viso mais social e coletiva, a fim de garantir a sua efetividade, inseriu novos princpios teoria contratual clssica. No entanto, Teizen Jnior ressalta:Tais princpios sociais do contrato no eliminam os princpios liberais (ou que predominaram no Estado Liberal), a saber, o princpio da autonomia privada (ou da liberdade contratual em seu trplice aspecto, como liberdade de escolher o tipo contratual, de escolher o outro contratante e de escolher o contedo do contrato), o princpio do pacta sunt servanda (ou da obrigatoriedade gerada por manifestao de vontades livres, reconhecida e atribuda pelo direito) e o princpio da eficcia relativa apenas s partes do contrato (ou da relatividade subjetiva); mas limitaram profundamente, seu alcance e seu contedo. (TEIZEN JNIOR, 2004, p. 129)

No mesmo sentido, Azevedo (1998) menciona que os princpios oriundos da teoria contratual clssica no foram abolidos pela nova concepo. O correto dizer que aos princpios clssicos foram inseridos trs novos princpios, quais sejam: a boa-f objetiva, o equilbrio econmico do contrato e a funo social do contrato.

45

Logo, os princpios informadores do direito contratual oriundos da concepo clssica no foram abandonados, mas sofreram uma nova leitura, com a publicao da Constituio Federal de 1988, do Cdigo Civil de 2002 e do Cdigo de Defesa do Consumidor. Faz-se necessrio, ento, uma anlise dos princpios adotados pela nova concepo social do contrato.

1.4.3.1 A autonomia privada O princpio da autonomia privada no pode e nem deve ser confundido com o princpio da autonomia da vontade, consagrado na concepo clssica de contrato. A respeito do princpio da autonomia da vontade, Sheila do Rocio Cercal Santos Leal afirma:O modelo de contrato do Estado liberal colocava a autonomia da vontade dos contratantes como base fundamental do sistema contratual. Essa liberdade abrangia a deciso de celebrar ou no o contrato, com quem contratar e sobre o que contratar, cabendo s partes definirem, de comum acordo, o objeto do contrato, mediante o estabelecimento de todas as clusulas e condies. (LEAL, 2007, p. 57)

Ocorre que, em decorrncia da ascenso do Estado Social, esse princpio foi superado e substitudo pelo princpio da autonomia privada. Segundo Fernando Noronha (1994), a ocorrncia desta substituio fato notrio, pois, em conseqncia da reviso do liberalismo econmico e da concepo voluntarista de negcio jurdico, passou-se a falar em autonomia privada. Embora seja evidente a distino existente entre os dois princpios (autonomia da vontade e autonomia privada), diversos doutrinadores os tratam como sinnimos. A fim de comprovar a diferena existente, Francisco Amaral assevera:A autonomia privada o poder que os particulares tm de regular, pelo exerccio de sua prpria vontade, as relaes que participam, estabelecendo-lhe o contedo e a respectiva disciplina jurdica. Sinnimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contempornea, com ela no se confunde existindo entre ambas sensvel diferena. A expresso autonomia da vontade tem uma conotao subjetiva, psicolgica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto, real. (AMARAL, 2003, p. 348)

46

Pode-se dizer que a autonomia da vontade, por decorrer do voluntarismo, do individualismo e do subjetivismo, ampla, absoluta e irrestrita, sendo a nica fonte de direitos e obrigaes. Por sua vez, a autonomia privada existe em virtude e nos limites de um ordenamento jurdico estatal. Segundo Orlando Gomes (1998), a partir do momento em que se passou a sustentar que a fora da vontade advm do direito objetivo e no da prpria vontade, tornou-se indiscutvel que todo efeito jurdico se reconduz lei e s se produz na medida em que esta o autoriza. Ocorreu, assim, a efetivao do princpio da autonomia privada. A autonomia privada passou a ser considerada o alicerce que estrutura a dogmtica do contrato, o qual surge como instrumento dessa autonomia e simultaneamente, como meio pelo qual ela se manifesta e se realiza. Emilio Betti (1969) pondera que a autonomia privada deve ser considerada pressuposto e causa das relaes jurdicas, j previstas, em abstrato e em geral, no ordenamento jurdico, devendo ser reconhecida como atividade criadora,

modificadora ou extintora de relaes jurdicas entre particulares. Nesse sentido, Bortolozzi ensina:(...) ao se mencionar a autonomia privada como um dos princpios norteadores do direito contratual, fica mais clara a limitao desse direito de expresso da vontade, pois a liberdade de contratar fica estritamente restrita aos limites da lei e no mais, ao pleno arbtrio da vontade das parte. (BORTOLOZZI, 2005, p. 67)

Para a celebrao dos contratos, passou, ento, a ser necessria a manifestao da vontade pelos contraentes4, com a observncia simultnea das limitaes, em regra, de cunho social, estabelecidas em lei.Na nova concepo, o principal papel na formao do contedo contratual o da lei, pois ela que vai legitimar o justo e til no vinculo contratual e proteg-lo. A vontade continua essencial formao do contrato, mas sua conformao, ou seja, definio de seu contedo vinculante, sua importncia diminuda diante do controle exercido pelo juiz no contedo pactuado. Continua a vontade como fonte do regramento contratual; perdeu a exclusividade, entretanto. (CUNHA, p. 265, 2007)

4

Carlyle Popp (2008) adverte que existe tanto a autonomia privada positiva como a negativa. Ou seja, o querer negativo no sentido de abster-se de firmar um negcio jurdico tambm um ato de liberdade, de autonomia privada.

47

Portanto, na nova concepo social do contrato, a vontade perdeu a condio de elemento central da teoria contratual, que passou a ser a observncia de valores inerentes ao ordenamento jurdico ptrio, tais como: a funo social, a eqidade, a boa-f e a segurana nas relaes jurdicas.

1.4.3.2 A funo social do contrato Na teoria contratual oriunda do Estado Liberal, a autonomia da vontade era absoluta e irrestrita, visando unicamente a satisfao de interesses individuais das partes contratantes. Ocorre que esta situao se alterou com o surgimento do Estado Social, que inseriu o conceito de funo social concepo do contrato, A respeito da adoo deste princpio, Judith Martins-Costa assevera:(...) diferentemente do que ocorria no passado, o contrato, como instrumento por excelncia da relao obrigacional e veculo jurdico de operaes econmicas de circulao da riqueza, no mais perspectivado dentro de uma tica informada unicamente pelo dogma da autonomia da vontade. Justamente porque traduz relao obrigacional relao de cooperao entre as partes, processualmente polarizada por sua finalidade e porque se caracteriza como o principal instrumento jurdico de relaes econmicas, considera-se que o contrato, qualquer que seja, de direito pblico ou privado, informado pela funo social que atribuda pelo ordenamento jurdico. (MARTINS-COSTA, 2000, p. 457)

Ainda, segundo Luciana Antonini Ribeiro:Nesta nova concepo contratual, o contrato deixa de ser analisado como autnomo em relao sociedade, surtindo efeitos apenas e to-somente s partes contratantes. Na concepo social do contrato, os efeitos deste sobre a sociedade passam a ser considerados e ho de ser sopesados. O princpio da solidariedade vem refletido no direito dos contratos pela limitao imposta liberdade contratual a partir da funo social do contrato. O princpio da liberdade contratual, eixo fundamental do modelo de cdigo anterior, passa a conviver, harmonicamente, com a busca pela solidariedade. (RIBEIRO, 2007, p.436)

No ordenamento jurdico brasileiro, o princpio da funo social foi concebido como uma norma de ordem pblica, com previso no artigo 421 do Cdigo Civil, nos seguintes termos: A liberdade de contratar ser exercida em razo e nos limites da funo social dos contratos.

48

A respeito do dispositivo supracitado, Caio Mario da Silva Pereira ensina:(...) o legislador atentou para a acepo mais moderna de funo do contrato, que no a de atender exclusivamente aos interesses da parte contratante, como se ele tivesse existncia autnoma, fora do mundo que o cerca. Hoje o contrato visto como parte de uma realidade maior e como um dos fatores de alterao da realidade social. (PEREIRA, 2004, p. 13)

A partir da adoo desse princpio, o contrato deixou de ser visualizado como uma relao jurdica de interesse exclusivo das partes contraentes e passou a ser um instrumento jurdico dotado de dimenso coletiva, ou seja, a favor da sociedade. O individual cedeu o seu lugar ao coletivo. Ao princpio da funo social foi atribudo relevante papel no mundo contemporneo, pois, ao se voltar pela busca de uma sociedade solidria, tem o condo de limitar a autonomia privada, visando igualar as partes de um contrato, de modo que a liberdade, que a cada um deles compete, seja igual para todos. Neste sentido, Augusto Geraldo Teizen Jnior pondera:O princpio da funo social do contrato tem um papel limitador da vontade dos contratantes, restringindo-lhes a liberdade contratual, impondo-lhes uma limitao sua extenso volitiva, ou seja, pertinente limitao do contedo do contrato, por fora de norma de ordem pblica, que lhe impe este limite. (TEIZEN JNIOR, 2004, p. 164)

Pode-se dizer que, atravs da limitao da liberdade contratual pelo princpio da funo social, o contrato no se limita a to-somente favorecer a circulao de riquezas, mas destina-se, principalmente, a promover os valores da solidariedade, da justia social, da livre iniciativa e o principio da dignidade da pessoa humana, previstos como fundamentos da Repblica Federativa do Brasil na Constituio Federal de 1988.

1.4.3.3 A boa-f Uma das grandes marcas da evoluo da teoria contratual, em consonncia com a evoluo da sociedade e com a conseqente passagem do Estado Liberal para o Estado Social, foi a adoo do princpio da boa-f objetiva.

49

Contudo, antes de analisar a boa-f objetiva, propriamente dita, faz-se necessrio realizar a distino entre a boa-f subjetiva e a boa-f objetiva. 1.4.3.3.1 As concepes da boa-f Cludia Lima Marques (2002) assevera que a expresso "boa-f" possui origem no instituto da "fides" e da bona fides, que, nos tempos romanos, significava honestidade, confiana, lealdade e sinceridade, sendo que sua existncia decorre do primado da pessoa humana. A parte nfima da doutrina, na qual se inclui o doutrinador Antnio Hernandez Gil (1988), afirma que a distino entre boa-f objetiva e subjetiva foi superada, optando pela unidade de conceitos, que se fundamenta no fato de a boa-f atuar sempre como pauta de comportamento ditada pela moral social e, tambm, porque, tanto a boa-f subjetiva como a objetiva, conteriam uma normatividade. Contudo, inspirados nos ensinamentos alemes5, Judith Martins-Costa (2000) juntamente com a doutrina e a jurisprudncia majoritrias nacionais, entendem que a boa-f detm dois sentidos distintos, ora tratado como estado psicolgico do agente, ora como regra de conduta, da resultando em suas concepes subjetiva e objetiva, respectivamente. A boa-f subjetiva corresponde ao estado psicolgico da pessoa, sua inteno, ao seu convencimento de estar agindo de forma a no prejudicar outrem na relao jurdica. Judith Martins-Costa assevera, no seguinte sentido, sobre a boa-f subjetiva:Diz-se subjetiva justamente porque, para a sua aplicao, deve o intrprete considerar a inteno do sujeito da relao jurdica, o seu estado psicolgico ou ntima convico. Antittica boa-f subjetiva est a m-f, tambm vista subjetivamente como a inteno de lesar outrem. (MARTINSCOSTA, 2000, p. 211)

Quando da aplicao dessa boa-f, o juiz emitir pronunciamento a respeito do estado de conscincia ou de ignorncia do sujeito. Com base nos ensinamentos de Antonio Menezes Cordeiro, podem ser corroboradas tais afirmaes:

Flora Margarida Clock Schier (2007) destaca que a noo de boa-f objetiva, distinta da boa-f subjetiva, foi desenvolvida na Alemanha.

5

50

Perante uma boa-f puramente ftica, o juiz, na sua aplicao, ter de se pronunciar sobre o estado de cincia ou de ignorncia do sujeito. Trata-se de uma necessidade delicada, como todas aquelas que impliquem juzos de culpabilidade e, que, como sempre, requer a utilizao de indcios externos. Porm, no binmio boa/m f, o juiz tem, muitas vezes, de abdicar do elemento mais seguro para a determinao da prpria conduta. (...) Na boa-f psicolgica, no h que se ajuizar da conduta: trata-se, apenas de decidir do conhecimento do sujeito. (...) O juiz s pode promanar, como qualquer pessoa, juzos em termos de normalidade. Fora a hiptese de haver um conhecimento direto da m-f do sujeito mxime por confisso os indcios existentes apenas permitem constatar que, nas condies por ele representadas, uma pessoa, com o perfil do agente, se encontra, numa ptica de generalidade, em situao de cincia ou ignorncia. (CORDEIRO, 2001, P. 515-516)

Em assim sendo, a boa-f subjetiva se ope m-f e j estava disciplinada pelo Cdigo Civil de 1916. No entanto, a concepo subjetiva de boa-f, ligada ao voluntarismo e ao individualismo que informaram o nosso Cdigo Civil de 1916, tornaram-se insuficientes perante as novas exigncias criadas pela sociedade moderna. Para alm da anlise da m-f subjetiva no agir, investigao eivada de dificuldades e incertezas, tornou-se necessria a considerao de um patamar geral de atuao, atribuvel ao homem mdio. Segundo Gustavo Tepedino,Esta necessidade, fulcrada em exigncias de segurana e razoabilidade, faz surgir noo de que o comportamento das pessoas deve respeitar um conjunto de deveres, ligado a uma regra de atuao de boa-f. Deve-se frisar, entretanto, que esta boa-f no est mais restrita ao seu sentido subjetivo, interior (e, por isso mesmo, no mais das vezes imperceptvel para os outros sujeitos). Foi crescendo, portanto, uma noo de boa-f como uma regra de conduta, de ordem geral: em cada situao concreta h uma idia, comum e inescusvel ao homo medio, que traa as diretrizes de como ele deve se portar, alm de criar em seu ntimo uma convico de previsibilidade sobre a atuao dos outros em relao quela conjuntura. Pois no seria seguro nem razovel, que, sob o olhar complacente do Direito, pairasse entre as pessoas um eterno ponto de interrogao sobre a conduta dos outros, num hobbesiano cenrio de desconfiana generalizada.(TEPEDINO, 2000, p. 56)

Surge, assim, a boa-f objetiva, ou, simplesmente, a boa-f lealdade, que se relaciona com a honestidade, lealdade e probidade com a qual a pessoa condiciona o seu comportamento. Trata-se de uma regra tica, um dever de guardar fidelidade palavra dada ou ao comportamento praticado, na idia de no fraudar ou abusar da confiana alheia.

51

Sobre a boa-f objetiva, Judith Martins Costa afirma:J por boa-f objetiva se quer significar segundo a conotao que adveio da interpretao conferida ao 242 do Cdigo Civil alemo, de larga fora expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe atribuda nos pases da common law modelo de conduta social, arqutipo ou standard jurdico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar a prpria conduta a esse arqutipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em considerao os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, no se admitindo uma aplicao mecnica do standard, de tipo meramente subsuntivo. (MARTINS-COSTA, 2000, p. 411)

Complementarmente, Cludia Lima Marques ensina:Boa-f objetiva significa, portanto, uma atuao refletida, uma atuao refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legtimos, suas expectativas razoveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstruo, sem causar leso ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigaes: o cumprimento do objetivo contratual e a realizao dos interesses das partes. (MARQUES, 2002, p. 181-182)

Trata-se, portanto, de uma tcnica que permite adaptar uma regra de direito ao comportamento mdio em uso em uma dada sociedade, em um determinado momento. Parte-se de um padro de conduta comum do homem mediano, levando em considerao os aspectos e acontecimentos sociais envolvidos e que traduz o estabelecimento de verdadeiros padres de comportamento no caso concreto. a sinceridade que deve nortear todas as condutas humanas, negociais ou no negociais. Em outras palavras, o sujeito deve ajustar sua prpria conduta ao arqutipo da conduta social reclamada pela idia imperante. Assim, pode-se dizer que a doutrina da boa-f objetiva caracterizada como um dever de agir conforme determinados parmetros, socialmente recomendados, de correo, lisura e honestidade. A margem de discricionariedade da atuao privada reduzida, uma vez que o sujeito, para a consecuo de seus objetivos individuais, tem que agir com lealdade, observando e respeitando no s os direitos, mas tambm os interesses legtimos e as expectativas razoveis de seus parceiros. Fernando Noronha (1994, p. 136), em interessante concluso, anota que, mais do que duas concepes de boa-f, existem duas boas-fs, ambas jurdicas. Logo, podemos identificar uma boa-f subjetiva, ou boa-f crena, e uma boa-f objetiva, ou boa-f lealdade.

52

1.4.3.3.2 O desenvolvimento da noo de boa-f objetiva Gustavo Tepedino (2001) aponta que, no sculo XX, por volta dos anos 30, comeou a proliferar no Brasil uma sucesso de leis extravagantes e especiais, que tinham por escopo disciplinar novos institutos surgidos com a evoluo econmica e com o recrudescimento da problemtica social. Provenientes de um fenmeno conhecido como dirigismo contratual, tais leis extra-cdigos passaram a disciplinar institutos especficos do direito privado (contrato, famlia, propriedade), criando assim os chamados microssistemas jurdicos, que condensavam um direito civil especial, gravitando ao redor do Cdigo Civil, que passou a guarnecer um direito civil comum, pois, segundo aponta Tepedino (2001, p. 212), o Cdigo Civil passou "a ter uma funo meramente residual, aplicvel to-somente em relao s matrias no reguladas pelas leis especiais". A era dos microssistemas deu origem a diversos estatutos, entre os quais se inclui o Cdigo de Defesa do Consumidor, de matriz e inspirao constitucional, uma vez que o legislador constituinte erigiu a defesa do consumidor categoria de direito fundamental (artigo 5 inciso XXXII) e ao princpi o da ordem econmica (artigo 170, , inciso V), ambos da Constituio Federal de 1988. Essa lei, especfica para as relaes de consumo, positivou expressamente a boa-f objetiva pela primeira vez no ordenamento jurdico ptrio, mencionando-a em dois momentos, sendo o primeiro no captulo da poltica nacional de relaes de consumo (artigo 4 inciso III) e o segundo na se o das clusulas abusivas (artigo , 51, inciso IV). Em uma primeira abordagem, a boa-f objetiva aparece como princpio, a saber:Artigo 4 A Poltica Nacional das relaes de Consu mo tem por objetivos o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito sua dignidade, sade e segurana, a proteo de seus interesses econmicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparncia e harmonia das relaes de consumo, atendidos os seguintes princpios: (...) III harmonizao dos interesses dos participantes das relaes de consumo e compatibilizao da proteo do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econmico e tecnolgico, de modo a viabilizar os princpios nos quais se funda a ordem econmica (art. 170 da Constituio Federal), sempre com base na boa-f e equilbrio nas relaes entre consumidores e fornecedores.

53

Em um segundo momento, a boa-f objetiva aparece como clusula geral, ou seja:Art. 51. So nulas de pleno direito, entre outras, as clusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e servios que: (...) IV- estabeleam obrigaes consideradas inquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatveis como a boa-f ou a equidade.

No artigo acima transcrito, em se tratando de clusula geral, caber ao juiz, em primeiro lugar, examinar as circunstncias do caso concreto, a fim de averiguar se foram ou no observados os deveres decorrentes da boa-f; em segundo lugar, ento, criar a norma para o caso concreto. Logo, o princpio da boa-f objetiva traz uma regra de conduta impondo, por conseguinte, o dever de lealdade, transparncia, veracidade e cooperao recproca antes, durante e aps as relaes de consumo, devendo ser utilizado como controle de clusulas abusivas e prticas comerciais desonestas. Ora, o artigo 3. da Carta Constitucional de 1988 tem como um de seus objetivos fundamentais, "a construo de uma sociedade livre, justa e solidria". Quer ento o legislador que, atravs do princpio da boa-f objetiva, os consumidores se sintam protegidos. S assim estar sendo atingida a sociedade livre, justa e solidria proclamada como fundamento da Constituio Federal.

1.4.3.3.3 O princpio da boa-f objetiva no Cdigo Civil de 2002 Com o advento do novo Cdigo Civil de 2002, a boa-f objetiva foi consagrada, de forma clara a expressa, conforme dispe o artigo 422: Os contratantes so obrigados a guardar, assim na concluso do contrato, como em sua execuo, os princpios de probidade e boa-f. Flora Margarida Clock Schier pondera:(...) verifica-se no art. 422, o princpio da boa-f como clusula geral, realando que mais ainda se ter que observar a efetivao desse princpio, por este, permitir uma interpretao comutativa do contrato. Vale dizer: com tal determinao legal possvel exigir prestaes recprocas a que se obrigam os contratantes. Perfeitamente equivalentes. Assim, alm daqueles direitos postos na Constituio, devem ser observados tambm os demais princpios que se encontram espalhados pelo sistema jurdico,

54

haja vista ser este dividido em microssistemas, mas que, ao final, formam um nico sistema. Portanto, pode-se dizer que a boa-f clusula geral com fora de princpio fundamental para as relaes negociais, que tem como fundamento a manuteno da segurana jurdica, uma vez que, por meio da boa-f, seja ela objetiva ou subjetiva, as avenas sero resolvidas, pois a autonomia da vontade, por si s, no permite mais a resoluo equitativa e justa das lides negociais, fazendo com que o princpio do pacta sunt servanda seja relativizado em face da boa-f contratual. (SCHIER, 2007, p. 45-46)

Constata-se que a boa-f objetiva uma clusula geral que diz respeito norma de conduta, definindo como as partes devem agir em uma relao contratual, durante a relao obrigacional, com o intuito de resguardar satisfao dos interesses globais das pessoas que se encontram envolvidas nessa relao. Na teoria contratual, a utilizao da boa-f permite a anlise das condies e da situao na qual o contrato foi firmado, o nvel sociocultural dos contratantes, bem como o momento histrico e econmico da celebrao do contrato. Com isso, interpreta-se a vontade contratual.

1.4.3.4 Equivalncia material do contrato Sobre o princpio da equivalncia material, Paulo Luiz Netto Lbo ensina:O princpio da equivalncia material manifestao da busca da efetiva igualdade entre as partes na relao contratual. Quando a igualdade jurdico-formal caracterstica da concepo liberal mostrou-se insuficiente para garantir o equilbrio das prestaes nos contratos, esse princpio passou a ter grande importncia na teoria geral dos contratos. A equivalncia material busca harmonizar os interesses das partes envolvidas, e realizar o equilbrio real das prestaes em todo o processo obrigacional (LBO, 2002, p. 192).

Este princpio busca preservar a igualdade material entre as partes na relao contratual por meio da harmonizao dos interesses envolvidos, ou seja, busca a isonomia real dos contratantes por meio do equilbrio entre direitos e deveres assumidos pelos contratantes em decorrncia da celebrao de um contrato. A adoo desse princpio pela nova teoria contratual relativizou a fora obrigatria do contrato (pacta sunt servanda), o qual determinava que, aps estabelecido o contrato, esse tinha fora obrigatria e deveria ser cumprido independentemente da realidade ftica. Ocorreu a relativizao do princpio porque, a partir do reconhecimento de que a simples igualdade formal era insuficiente para

55

alcanar a justia contratual, foi preciso verificar as situaes concretas no momento da execuo do contrato. Portanto, com a adoo do princpio da equivalncia material, o contrato continua a ser obrigatrio, mas desde que exista um equilbrio entre as prestaes dos contratantes.

1.5 A NOVA REALIDADE CONTRATUAL

1.5.1 Relao jurdica de consumo Como o mencionado anteriormente, a concepo clssica de contrato teve origem no sculo XIX, poca do liberalismo econmico, onde no havia a interveno estatal nos contratos, pois apenas a vontade das partes era relevante para a celebrao do contrato. Segundo Cludia Lima Marques,Na concepo tradicional de contrato, a relao contratual seria obra de dois parceiros em posio de igualdade perante o direito e a sociedade, os quais discutiriam individual e livremente as clusulas de seu acordo de vontades. (MARQUES, 2002, p. 52)

Ocorre que esta situao no se sustentou por muito tempo, pois a concepo clssica de contrato se tornou insuficiente para atender s demandas de mercado, sofrendo, assim, adaptaes. O sculo XX trouxe modificaes relevantes para a estrutura do contrato e para a sociedade consumerista. O desenvolvimento industrial e tecnolgico, aliados a um mercado apto a consumir, despertou o surgimento de grandes indstrias, as quais criaram as produes em srie, visando atingir um maior nmero de consumidores. Foi o declnio das relaes comerciais individualizadas e a ascenso da massificao das relaes de consumo. No modelo de produo massificada, a figura individualizada dos contratantes desapareceu e, em conseqncia disto, segundo afirma Bortolozzi (2005, p. 74), as partes no mais em conjunto disciplinam a forma e o contedo contratual.

56

Neste sentido, Trcio Sampaio Ferraz Jr. menciona:Na sociedade de massas os indivduos, em suma, deixam de ser sujeitos e comeam a ser objetos. Eis a grande transformao que a massificao provoca em relao aos indivduos, e isso evidentemente tem suas conseqncias nos contratos. (FERRAZ JNIOR, 2003, p. 122)

Conseqentemente,

as

relaes

contratuais

individualizadas

se

transformaram em relaes de consumo, envolvendo um grande nmero de pessoas. O fator determinante passou a ser o lucro obtido pelas vendas realizadas em larga escala, em detrimento da celebrao de contratos individualizados, nos quais, praticamente, no existia o lucro. Evidenciou-se a despersonalizao das relaes contratuais, uma vez que os mtodos de contratao em massa, ou estandardizados, passaram a predominar em quase todas as relaes contratuais. Surgiram os contratos de adeso, com clusulas pr-estabelecidas, que deveriam ser integralmente aceitas ou recusadas pela parte consumidora, da qual foi retirado o direito de discutir as regras do contrato: ou a parte aceitava os moldes prestabelecidos, ou no contratava. Logo, em virtude da evoluo social somada Revoluo Industrial e massificao do consumo, chegou-se a uma nova realidade contratual, na qual a antiga concepo de contrato, onde existiam duas partes em posio de igualdade, discutindo individual e livremente as clusulas do acordo de vontade, passou a existir em escala mnima e geralmente em negcios entre particulares. Portanto, faz-se necessrio um estudo pormenorizado da nova realidade contratual.

1.5.2 Relaes contratuais em massa O avano tecnolgico e industrial introduziu diversas mudanas nas relaes comerciais. O processo de produo e distribuio de produtos e servios pelas indstrias passou a ser em srie, promovendo a massificao das relaes civis e de consumo.

57

Sobre a massificao, Cludia Lima Marques assevera:Como se observa na sociedade de massa atual, a empresa ou mesmo o Estado, pela sua posio econmica e pelas suas atividades de produo ou distribuio de bens ou servios, encontram-se na iminncia de estabelecer uma srie de contratos no mercado. Estes contratos so homogneos em seu contedo (por exemplo, vrios contratos de seguro de vida, de compra e venda a prazo de bem mvel), mas concludos com uma srie ainda indefinida de contratantes. Logo, por uma questo de economia, de racionalizao, de praticidade e mesmo de segurana, a empresa predispe antecipadamente um esquema contratual, oferecido simples adeso dos consumidores, isto , pr-redige um complexo uniforme de clusulas, que sero aplicveis indistintamente a toda esta srie de futuras relaes contratuais. (MARQUES, 2002, p. 53)

Em decorrncia dessa massificao dos contratos, surgiram os contratos de adeso, vinculados idia de impessoalidade, pois no se contratava diretamente com uma pessoa e, sim, com uma empresa. Os contratos, ento, passaram a ser firmados entre um indivduo e um ente despersonalizado, por meio de contratos previamente definidos e impessoais. Neste sentido, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho ponderam:O homem contratante acabou, no final do sculo passado e incio do presente, por se deparar com uma situao inusitada, qual seja a da despersonalizao das relaes contratuais em funo de uma preponderante manifestao voltada ao escoamento em larga escala do que se produzia nas recm-criadas indstrias. (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2005, p. 161)

Ento, a massificao deu ori