Cerqueira, Fabio Vergara - Iveha

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Imagens das mulheres na Grécia Antiga.

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    EVIDNCIAS ICONOGRFICAS DA PARTICIPAO DE MULHERES NO MUNDO DO TRABALHO E NA VIDA INTELECTUAL E ARTSTICA NA GRCIA ANTIGA Fbio Vergara Cerqueira Universidade Federal de Pelotas Para iniciar a conversa

    Falar em evidncias iconogrficas significa apostar na capacidade que os registros imagticos remanescentes da Grcia antiga possuem para testemunhar aspectos da vida social e cultural de ento. Implica, portanto, uma tomada de partido terico e metodolgico. Implica assumir um pressuposto: a validade epistemolgica das imagens, no caso a pintura dos vasos ticos dos sculos VI a IV A.E.C., como fonte para o conhecimento da histria-acontecimento da Grcia Antiga. Significa, portanto, acreditar que os contedos imagticos desta pintura de vasos, produzidos h vinte e cinco sculos, tenham relao com aspectos da vida cotidiana e das representaes culturais da poca.

    No caso do tema proposto a participao de mulheres no mundo do trabalho e na vida intelectual e artstica implica, mais ainda, considerar a possibilidade de que estes registros iconogrficos nos levem a reconsiderar, reformular, nossos conceitos sobre o lugar da mulher na Grcia antiga, sustentados sobre uma tradio historiogrfica embasada, sobretudo, nos testemunhos literrios.

    Discorrer sobre o tema proposto, portanto, acarreta estabelecer um conjunto de reflexes conceituais sobre o uso da iconografia em constante dilogo com os registros escritos e sobre a condio da mulher na sociedade grega antiga. Reflexes sobre o sentido e a interpretao das narrativas iconogrficas dos vasos ticos

    No que se refere aos estudos iconogrficos, no esprito da temtica desta mesa-redonda, trata-se de colocar em relao as dimenses do Artstico e do Arqueolgico, que, na concepo de Philippe Brunneau1, significa, o primeiro, o processo de criao, recepo e interpretao das imagens na prpria Antigidade, e, o segundo, o processo contemporneo de interpretao e anlise do sentido destas imagens. Estabelecendo um paralelo entre as 1 BRUNNEAU, Philippe. De limage, RAMAGE, 4, 1986, p. 249-295.

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    terminologias da Arqueologia da Imagem e da Histria Cultural, o Artstico estaria no nvel da Histria-acontecimento, o Arqueolgico, no nvel da Histria-conhecimento.

    Interpretar os repertrios iconogrficos deixados pela imensa produo imagtica da cermica grega antiga impe, inelutavelmente, um conjunto de perguntas. As imagens pintadas sobre os vasos ticos documentariam a vida diria? Podemos falar de um tratamento realista de cenas cotidianas? As cenas no estariam ligadas a contextos mitolgicos ou a criaes artstico-literrias de fundo ficcional? No estariam os pintores idealizando prticas sociais? Descreveriam estas pinturas o cotidiano, entendido como somatrio das prticas e rotinas sociais, ou registrariam significaes e simbolismos culturais?

    No se pode fugir, assim, a um complexo problema terico, que se expressa sob a forma de um paradoxo trplice; ou seja, trs paradoxos imbricados entre si, constituindo um s. Ao lidarmos com a interpretao das imagens, tratamos com trs aparentes dicotomias interligadas: 1) realismo e idealismo; 2) temtica humana | cotidiana e temtica mitolgica; 3) sentido denotativo e sentido conotativo. Sua separao se d somente no Arqueolgico, pois, no Artstico, o pintor, e muito provavelmente o pblico consumidor, no percebiam fronteiras claras entre esses nveis. Mesmo no Arqueolgico, analiticamente bastante arriscado separar os plos opostos dos trs nveis, pois na oscilao entre eles que deve ser encontrada a significao da iconografia.

    bastante difcil se definir quando um pintor queria conferir um contedo lendrio, mitolgico, a uma cena da vida cotidiana. Geraes de estudiosos tiveram o hbito de buscar um modelo mitolgico para uma cena de vida diria retratada sobre um vaso. Era uma forma de valorizar seu objeto de estudo, face o predomnio que exerciam a Filologia e a Histria da Arte sobre os estudos clssicos, relegando a pintura de vasos categoria de arte menor, motivo pelo qual os iconografistas preferiam relacionar a cena com uma narrativa mitolgica conhecida pela tradio literria ou com uma reproduo de um modelo das artes maiores, como a estaturia e a pintura mural, essa ltima irremediavelmente perdida. Quando faltavam referncias literrias conhecidas para comparao, buscavam abusivamente textos perdidos, de grandes poetas ou pinturas e esculturas perdidas, de artistas, cuja existncia nos relatada por textos antigos como Pausnias ou Plnio, o Velho.

    Entendemos como falaciosos esses modelos interpretativos: no precisamos, obrigatoriamente, nem recorrer imediatamente mitologia, nem a uma eventual cpia de inspirao literria, quando o sentido escapa.

    Em muitos vasos, inclusive naqueles que retratam o feminino, no temos condies de traduzir a inteno do pintor. Queria registrar uma cena

    IV ENCONTRO DE HISTRIA DA ARTE IFCH / UNICAMP 2008

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    EVIDNCIAS ICONOGRFICAS DA PARTICIPAO DE MULHERES NO MUNDO DO TRABALHO E NA VIDA INTELECTUAL E ARTSTICA NA GRCIA ANTIGA Fbio Vergara Cerqueira Universidade Federal de Pelotas Para iniciar a conversa

    Falar em evidncias iconogrficas significa apostar na capacidade que os registros imagticos remanescentes da Grcia antiga possuem para testemunhar aspectos da vida social e cultural de ento. Implica, portanto, uma tomada de partido terico e metodolgico. Implica assumir um pressuposto: a validade epistemolgica das imagens, no caso a pintura dos vasos ticos dos sculos VI a IV A.E.C., como fonte para o conhecimento da histria-acontecimento da Grcia Antiga. Significa, portanto, acreditar que os contedos imagticos desta pintura de vasos, produzidos h vinte e cinco sculos, tenham relao com aspectos da vida cotidiana e das representaes culturais da poca.

    No caso do tema proposto a participao de mulheres no mundo do trabalho e na vida intelectual e artstica implica, mais ainda, considerar a possibilidade de que estes registros iconogrficos nos levem a reconsiderar, reformular, nossos conceitos sobre o lugar da mulher na Grcia antiga, sustentados sobre uma tradio historiogrfica embasada, sobretudo, nos testemunhos literrios.

    Discorrer sobre o tema proposto, portanto, acarreta estabelecer um conjunto de reflexes conceituais sobre o uso da iconografia em constante dilogo com os registros escritos e sobre a condio da mulher na sociedade grega antiga. Reflexes sobre o sentido e a interpretao das narrativas iconogrficas dos vasos ticos

    No que se refere aos estudos iconogrficos, no esprito da temtica desta mesa-redonda, trata-se de colocar em relao as dimenses do Artstico e do Arqueolgico, que, na concepo de Philippe Brunneau1, significa, o primeiro, o processo de criao, recepo e interpretao das imagens na prpria Antigidade, e, o segundo, o processo contemporneo de interpretao e anlise do sentido destas imagens. Estabelecendo um paralelo entre as 1 BRUNNEAU, Philippe. De limage, RAMAGE, 4, 1986, p. 249-295.

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    terminologias da Arqueologia da Imagem e da Histria Cultural, o Artstico estaria no nvel da Histria-acontecimento, o Arqueolgico, no nvel da Histria-conhecimento.

    Interpretar os repertrios iconogrficos deixados pela imensa produo imagtica da cermica grega antiga impe, inelutavelmente, um conjunto de perguntas. As imagens pintadas sobre os vasos ticos documentariam a vida diria? Podemos falar de um tratamento realista de cenas cotidianas? As cenas no estariam ligadas a contextos mitolgicos ou a criaes artstico-literrias de fundo ficcional? No estariam os pintores idealizando prticas sociais? Descreveriam estas pinturas o cotidiano, entendido como somatrio das prticas e rotinas sociais, ou registrariam significaes e simbolismos culturais?

    No se pode fugir, assim, a um complexo problema terico, que se expressa sob a forma de um paradoxo trplice; ou seja, trs paradoxos imbricados entre si, constituindo um s. Ao lidarmos com a interpretao das imagens, tratamos com trs aparentes dicotomias interligadas: 1) realismo e idealismo; 2) temtica humana | cotidiana e temtica mitolgica; 3) sentido denotativo e sentido conotativo. Sua separao se d somente no Arqueolgico, pois, no Artstico, o pintor, e muito provavelmente o pblico consumidor, no percebiam fronteiras claras entre esses nveis. Mesmo no Arqueolgico, analiticamente bastante arriscado separar os plos opostos dos trs nveis, pois na oscilao entre eles que deve ser encontrada a significao da iconografia.

    bastante difcil se definir quando um pintor queria conferir um contedo lendrio, mitolgico, a uma cena da vida cotidiana. Geraes de estudiosos tiveram o hbito de buscar um modelo mitolgico para uma cena de vida diria retratada sobre um vaso. Era uma forma de valorizar seu objeto de estudo, face o predomnio que exerciam a Filologia e a Histria da Arte sobre os estudos clssicos, relegando a pintura de vasos categoria de arte menor, motivo pelo qual os iconografistas preferiam relacionar a cena com uma narrativa mitolgica conhecida pela tradio literria ou com uma reproduo de um modelo das artes maiores, como a estaturia e a pintura mural, essa ltima irremediavelmente perdida. Quando faltavam referncias literrias conhecidas para comparao, buscavam abusivamente textos perdidos, de grandes poetas ou pinturas e esculturas perdidas, de artistas, cuja existncia nos relatada por textos antigos como Pausnias ou Plnio, o Velho.

    Entendemos como falaciosos esses modelos interpretativos: no precisamos, obrigatoriamente, nem recorrer imediatamente mitologia, nem a uma eventual cpia de inspirao literria, quando o sentido escapa.

    Em muitos vasos, inclusive naqueles que retratam o feminino, no temos condies de traduzir a inteno do pintor. Queria registrar uma cena

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    diria ou representar uma narrativa mtica? Queria representar uma mulher comum ou uma Musa? Um Musa ou a poetisa Safo? Esse um dos pontos nos quais percebemos uma necessria mudana de modelos de interpretao iconolgica. Em grande parte das publicaes mais antigas e at mesmo em muitas atuais, publicaes especializadas tais como catlogos de museus ou exposies, os autores tendiam e tendem a identificar estas cenas que se multiplicam a perder de vista pelas colees espalhadas mundo afora com modelos mitolgicos. Muitos iconografistas, como Henri Metzger, diante de uma pintura com padro esttico bastante elaborado, no hesitavam em encontrar uma identificao mitolgica, pois julgavam improvvel que um pintor fosse dedicar tanta ateno a uma cena para registrar sobre o vaso algo comum, corriqueiro, humano, cotidiano. Essa perspectiva, denominada por Andr Chevitarese como associao valorativa2, orientou os estudos iconogrficos de algumas geraes de arquelogos do final do sc. XIX e de muitas dcadas do sc. XX: explicar a pea baseando-se em uma suposta inspirao ou cpia de um modelo de uma arte mais nobre, da grande tradio literria ou da grande tradio da pintura mural ou escultura, atribuindo-lhe um contedo de ordem mitolgica. Nas primeiras geraes de iconografistas, tratava-se de um procedimento estrategicamente acertado, pois auxiliava a conquistar o espao dos estudos ceramolgicos numa academia dominada pela tradio filolgica (les Belles Lettres) e pela tradio da Histria da Arte (les Beaux Arts).

    Com freqncia, diante de cenas de cortejo nupcial, nas descries mais correntes do vaso, lemos casamento de Ttis e Peleu. No entendemos porque esses personagens precisam ser descritos como figuras mitolgicas e no como simples figuras humanas, mortais, referncias para ns de hbitos da vida diria ateniense.

    Para o uso historiogrfico e arqueolgico destas fontes imagticas, essa interpretao acarreta srios prejuzos, pois invalida o uso dessa documentao como registro histrico de situaes da vida diria. A. L. Chevitarese prope que busquemos outro modelo de anlise, partindo da possibilidade de que essas cenas, na quais o pintor no demonstrou a inteno de indicar o mito, se refiram na verdade a cenas do dia-a-dia.3 Em nosso estudo das cenas de

    2 CHEVITARESE, Andr Leonardo. Uma Nova Proposta de Interpretao do Prato tico de Figuras Negras do Santurio de Hera, Revista de Histria (Departamento de Histria de Universidade Federal do Esprito Santo), 10, 2000. 3 CHEVITARESE, Andr Leonardo. Uma Nova Proposta de Interpretao do Prato tico de Figuras Negras do Santurio de Hera, Revista de Histria (Departamento de Histria de Universidade Federal do Esprito Santo), 10, 2000.

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    mulheres tocando instrumentos musicais no gineceu, partilhamos da mesma preocupao desse autor: na ausncia de atributos divinos, parece-nos mais acertado evitarmos um paralelo com as Musas e preferirmos identificar uma cena humana de divertimento musical.

    Alm disso, no entanto, at mesmo nas cenas mitolgicas, buscamos referncias da realidade concreta e no simples ilustraes de tradies literrias. Por esse motivo, no nosso entendimento, a perspectiva terica de Chevitarese deve ser combinada com a proposta de Ingrid Krauskopf, segundo a qual uma significativa poro desses vasos mistura elementos humanos com divinos, com o intuito de valorizar o momento retratado, transpondo o casamento ou a colheita de frutos de uma esfera humana para uma esfera mais elevada, a esfera mtica. Os elementos mitolgicos inseridos numa cena humana equivaleriam s citaes mticas freqentes na tradio literria.4

    Nesses casos, quando o pintor fundia tipos humanos e tipos mitolgicos, o mito estava a servio da imagem, e no o contrrio, pois os pintores de vaso costumavam manipular os mitos e as tradies literrias, no se preocupando em se manter fiis s verses dos poetas.5 Desse modo, os elementos divinos no devem levar a uma interpretao mitolgica; sua presena num contexto predominantemente humano era uma forma de valorizar o vaso, aumentando o interesse por ele. Assim, esses elementos mitolgicos no se opem a uma interpretao histrica e cotidiana dessa iconografia, fornecendo referncias sobre as prticas da vida diria.

    Quanto ao aspecto mitolgico, os pintores, em praticamente todos os perodos da pintura de vasos, tinham o hbito de acrescentar nomes mitolgicos s figuras, com o objetivo de aumentar o interesse pelo seu desenho6, como j o observara, no sc. XIX, Cecil Smith. Quando o pintor queria marcar que se tratava de uma cena pica ou mtica, acrescentava inscries com os nomes ao lado dos personagens.7 com bastante prazer que os pintores transformavam uma cena real em mitolgica, aumentando o poder de seduo das imagens.

    Um forte argumento em favor da mitologizao das cenas para atrair o pblico quando personagens mitolgicos so misturados com personagens 4 KRAUSKOPF, Ingrid. Eine attische schwarzfigurige Hydria in Heidelberg., AA, 1977, p. 27-8. 5 MORET, J. M. AntK 21, 1978, p. 80. SABETAI, Viktoria. Aspects of nuptial and genre imagery in fifth-century Athens. Issues of interpretation and methodology., in: OAKLEY, John; COULSEN, William D. E. & PALAGIA, Olga. Athenian Potters and Painters. The Conference Proceedings, Oxford, 1997, p. 320 e 330. 6 SMITH, Cecil. Deme legends on attic Vases, JHS 23, 1893, p. 115. 7 LACROIX, Lon. Pausanias et lxgse mythologique, RA, 1988, p. 260.

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    diria ou representar uma narrativa mtica? Queria representar uma mulher comum ou uma Musa? Um Musa ou a poetisa Safo? Esse um dos pontos nos quais percebemos uma necessria mudana de modelos de interpretao iconolgica. Em grande parte das publicaes mais antigas e at mesmo em muitas atuais, publicaes especializadas tais como catlogos de museus ou exposies, os autores tendiam e tendem a identificar estas cenas que se multiplicam a perder de vista pelas colees espalhadas mundo afora com modelos mitolgicos. Muitos iconografistas, como Henri Metzger, diante de uma pintura com padro esttico bastante elaborado, no hesitavam em encontrar uma identificao mitolgica, pois julgavam improvvel que um pintor fosse dedicar tanta ateno a uma cena para registrar sobre o vaso algo comum, corriqueiro, humano, cotidiano. Essa perspectiva, denominada por Andr Chevitarese como associao valorativa2, orientou os estudos iconogrficos de algumas geraes de arquelogos do final do sc. XIX e de muitas dcadas do sc. XX: explicar a pea baseando-se em uma suposta inspirao ou cpia de um modelo de uma arte mais nobre, da grande tradio literria ou da grande tradio da pintura mural ou escultura, atribuindo-lhe um contedo de ordem mitolgica. Nas primeiras geraes de iconografistas, tratava-se de um procedimento estrategicamente acertado, pois auxiliava a conquistar o espao dos estudos ceramolgicos numa academia dominada pela tradio filolgica (les Belles Lettres) e pela tradio da Histria da Arte (les Beaux Arts).

    Com freqncia, diante de cenas de cortejo nupcial, nas descries mais correntes do vaso, lemos casamento de Ttis e Peleu. No entendemos porque esses personagens precisam ser descritos como figuras mitolgicas e no como simples figuras humanas, mortais, referncias para ns de hbitos da vida diria ateniense.

    Para o uso historiogrfico e arqueolgico destas fontes imagticas, essa interpretao acarreta srios prejuzos, pois invalida o uso dessa documentao como registro histrico de situaes da vida diria. A. L. Chevitarese prope que busquemos outro modelo de anlise, partindo da possibilidade de que essas cenas, na quais o pintor no demonstrou a inteno de indicar o mito, se refiram na verdade a cenas do dia-a-dia.3 Em nosso estudo das cenas de

    2 CHEVITARESE, Andr Leonardo. Uma Nova Proposta de Interpretao do Prato tico de Figuras Negras do Santurio de Hera, Revista de Histria (Departamento de Histria de Universidade Federal do Esprito Santo), 10, 2000. 3 CHEVITARESE, Andr Leonardo. Uma Nova Proposta de Interpretao do Prato tico de Figuras Negras do Santurio de Hera, Revista de Histria (Departamento de Histria de Universidade Federal do Esprito Santo), 10, 2000.

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    mulheres tocando instrumentos musicais no gineceu, partilhamos da mesma preocupao desse autor: na ausncia de atributos divinos, parece-nos mais acertado evitarmos um paralelo com as Musas e preferirmos identificar uma cena humana de divertimento musical.

    Alm disso, no entanto, at mesmo nas cenas mitolgicas, buscamos referncias da realidade concreta e no simples ilustraes de tradies literrias. Por esse motivo, no nosso entendimento, a perspectiva terica de Chevitarese deve ser combinada com a proposta de Ingrid Krauskopf, segundo a qual uma significativa poro desses vasos mistura elementos humanos com divinos, com o intuito de valorizar o momento retratado, transpondo o casamento ou a colheita de frutos de uma esfera humana para uma esfera mais elevada, a esfera mtica. Os elementos mitolgicos inseridos numa cena humana equivaleriam s citaes mticas freqentes na tradio literria.4

    Nesses casos, quando o pintor fundia tipos humanos e tipos mitolgicos, o mito estava a servio da imagem, e no o contrrio, pois os pintores de vaso costumavam manipular os mitos e as tradies literrias, no se preocupando em se manter fiis s verses dos poetas.5 Desse modo, os elementos divinos no devem levar a uma interpretao mitolgica; sua presena num contexto predominantemente humano era uma forma de valorizar o vaso, aumentando o interesse por ele. Assim, esses elementos mitolgicos no se opem a uma interpretao histrica e cotidiana dessa iconografia, fornecendo referncias sobre as prticas da vida diria.

    Quanto ao aspecto mitolgico, os pintores, em praticamente todos os perodos da pintura de vasos, tinham o hbito de acrescentar nomes mitolgicos s figuras, com o objetivo de aumentar o interesse pelo seu desenho6, como j o observara, no sc. XIX, Cecil Smith. Quando o pintor queria marcar que se tratava de uma cena pica ou mtica, acrescentava inscries com os nomes ao lado dos personagens.7 com bastante prazer que os pintores transformavam uma cena real em mitolgica, aumentando o poder de seduo das imagens.

    Um forte argumento em favor da mitologizao das cenas para atrair o pblico quando personagens mitolgicos so misturados com personagens 4 KRAUSKOPF, Ingrid. Eine attische schwarzfigurige Hydria in Heidelberg., AA, 1977, p. 27-8. 5 MORET, J. M. AntK 21, 1978, p. 80. SABETAI, Viktoria. Aspects of nuptial and genre imagery in fifth-century Athens. Issues of interpretation and methodology., in: OAKLEY, John; COULSEN, William D. E. & PALAGIA, Olga. Athenian Potters and Painters. The Conference Proceedings, Oxford, 1997, p. 320 e 330. 6 SMITH, Cecil. Deme legends on attic Vases, JHS 23, 1893, p. 115. 7 LACROIX, Lon. Pausanias et lxgse mythologique, RA, 1988, p. 260.

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    humanos, em cenas evidentemente cotidianas, ou, mais ainda, quando so atribudos aos personagens nomes mitolgicos variados, que num contexto mitolgico genuno no estariam participando juntos da mesma cena.

    No primeiro caso, tomemos um exemplo fcil para se compreender este raciocnio. Pensemos nas Nikes | Vitrias que se aproximam de jovens citaredos ou atletas, com o fito de coro-los como vencedores, cena muito comum na pintura dos vasos ticos. A presena da Nike em nada desconfigura a dimenso social real de uma cena de premiao pela vitria em um concurso.

    O segundo caso de mitologizao intencional de cena de carter cotidiano pode ser verificado na pyxis Museu Britnico E 769, em que um grupo de mulheres, reunidas numa cena comum de gineceu, recebem cada uma delas, por meio de inscrio, a identidade de heronas: Iphigeneia, Danae, Helene, Klythaimnestra e Kassandra. Ora, nenhum mito conhecido ou imaginvel poderia coloc-las todas num mesmo gineceu, por serem personagens de contextos mitolgicos de regies e geraes diferenciadas. O pintor, porm, dessa forma, enaltece a cena banal, inclusive pelo efeito inesperado ao pblico, o qual saberia seguramente no se tratar propriamente de um mito, mas de uma surpreendente liberdade do artista. Sobretudo o pblico feminino culto acolheria com simpatia um vaso que retratasse sua rotina diria exercida por heronas homricas.

    Para Alain Schnapp, no existe para os pintores esta dicotomia entre real e imaginrio, havendo sim uma intencionalidade, por parte do artista que produz as imagens, na confuso entre o humano e o mitolgico, o que caracteriza a linguagem pela qual ele se comunica com seu pblico consumidor dessas imagens: Ao contrrio, na sua confuso sbia que nasce a potncia das imagens cermicas.8

    Existe, portanto, um constante percurso semntico entre a abordagem realista e idealista, que nos coloca a seguinte questo: as cenas de gnero, objeto deste estudo, so representaes com sentido denotativo ou conotativo? Elas descrevem prticas cotidianas ou abordam questes simblicas?

    Entendemos que no se pode estabelecer uma regra. um pouco as duas coisas ao mesmo tempo; s vezes mais um sentido denotativo; outras vezes mais o contrrio. A lyra nas mos de um jovem a caminho da escola pode ser um simples atributo etrio e social que o identifica como menino de boa extrao social com condies de freqentar a escola e receber uma educao ideal; quer dizer, ento, um menino no caminho da escola, indo para a aula de

    8 SCHNAPP, Alain. Des vases, des images et de quelques uns des leurs usages sociaux, Dialoghi di Archeologia. 1985, 1, p. 74-75.

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    msica. Em muitos casos, porm, a lyra aparece, nesse mesmo contexto, como um presente de um pederasta para seduzir um efebo, conotando o homoerotismo. J nas mos de um morto, sentado ao p da estela funerria, idealizado na sua forma juvenil, a lyra ao mesmo tempo nos remete ao contedo funerrio da msica e sua condio de atributo de jovem em idade escolar. A lyra pintada numa cena de sala de aula, porm, est a a servio de uma descrio, narrao, de uma prtica cotidiana: o ensino musical.

    H ainda outro recorte terico a ser considerado: o pintor, ao representar uma dimenso da vida cotidiana, seja por meio de figuraes de ordem humana ou mitolgica, o faz a partir de uma seleo de elementos. Este processo de seleo acarreta a escolha de aspectos da realidade cotidiana a serem retratados. Todavia, implica ainda um processo fundamental para a compreenso, no plano do Arqueolgico, da produo de sentido, ocorrida no plano do Artstico: o silncio, a ausncia.

    Conforme Ida Baldassare, em seu estudo Tomba e stelle nelle lekythoi a fondo bianco, a escolha e a valorizao de alguns (...) momentos (no caso de seu estudo, o velrio, cortejo, enterro e jogos fnebres), revelam-nos que esses registros so regulados por um cdigo que d acesso e expresso somente a alguns comportamentos, atravs de uma seleo cultural e formal (...).9 No caso do estudo da iconografia da morte, I. Baldassare explica que essas selees culturais e formais correspondem integrao social da morte. Pensamos que essa mesma explicao se aplica a outros temas, como casamento, educao musical, rituais religiosos, festas domsticas, entre outros em nosso estudo, as escolhas e silncios referentes ao universo feminino. As escolhas e silncios, pelos quais o pintor opta por lembrar alguns temas e esquecer de outros, ou ainda, pelos quais ele decide mostrar um determinado aspecto da experincia cotidiana e ocultar, ou simplesmente no enfatizar outro, bem, essas escolhas correspondem tambm a como essas esferas da vida diria so integradas socialmente.

    Concluindo, a iconografia dos vasos ticos serve sim para o estudo do uso cotidiano dos instrumentos musicais, por meio de abordagens cotidianas ou mesmo mitolgicas, uma vez que o contexto de execuo da cena mtica passa, com muita freqncia, por uma encenao de prticas cotidianas. preciso considerar que essas prticas sociais so abordadas de forma ambgua, pois ao mesmo tempo em que tratam de modo realista elementos do cotidiano, idealizam-no, dele selecionando alguns aspectos e censurando outros. Ou, ao inverso, quando abordam temas por meio de contextos mitolgicos seguramente identificados, com freqncia referem-se, pois, por alotropia, a

    9 BALDASSARE, Ida. Tomba e stelle nelle lekythos a fondo bianco, AION 10, 1988, p. 107-115.

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    humanos, em cenas evidentemente cotidianas, ou, mais ainda, quando so atribudos aos personagens nomes mitolgicos variados, que num contexto mitolgico genuno no estariam participando juntos da mesma cena.

    No primeiro caso, tomemos um exemplo fcil para se compreender este raciocnio. Pensemos nas Nikes | Vitrias que se aproximam de jovens citaredos ou atletas, com o fito de coro-los como vencedores, cena muito comum na pintura dos vasos ticos. A presena da Nike em nada desconfigura a dimenso social real de uma cena de premiao pela vitria em um concurso.

    O segundo caso de mitologizao intencional de cena de carter cotidiano pode ser verificado na pyxis Museu Britnico E 769, em que um grupo de mulheres, reunidas numa cena comum de gineceu, recebem cada uma delas, por meio de inscrio, a identidade de heronas: Iphigeneia, Danae, Helene, Klythaimnestra e Kassandra. Ora, nenhum mito conhecido ou imaginvel poderia coloc-las todas num mesmo gineceu, por serem personagens de contextos mitolgicos de regies e geraes diferenciadas. O pintor, porm, dessa forma, enaltece a cena banal, inclusive pelo efeito inesperado ao pblico, o qual saberia seguramente no se tratar propriamente de um mito, mas de uma surpreendente liberdade do artista. Sobretudo o pblico feminino culto acolheria com simpatia um vaso que retratasse sua rotina diria exercida por heronas homricas.

    Para Alain Schnapp, no existe para os pintores esta dicotomia entre real e imaginrio, havendo sim uma intencionalidade, por parte do artista que produz as imagens, na confuso entre o humano e o mitolgico, o que caracteriza a linguagem pela qual ele se comunica com seu pblico consumidor dessas imagens: Ao contrrio, na sua confuso sbia que nasce a potncia das imagens cermicas.8

    Existe, portanto, um constante percurso semntico entre a abordagem realista e idealista, que nos coloca a seguinte questo: as cenas de gnero, objeto deste estudo, so representaes com sentido denotativo ou conotativo? Elas descrevem prticas cotidianas ou abordam questes simblicas?

    Entendemos que no se pode estabelecer uma regra. um pouco as duas coisas ao mesmo tempo; s vezes mais um sentido denotativo; outras vezes mais o contrrio. A lyra nas mos de um jovem a caminho da escola pode ser um simples atributo etrio e social que o identifica como menino de boa extrao social com condies de freqentar a escola e receber uma educao ideal; quer dizer, ento, um menino no caminho da escola, indo para a aula de

    8 SCHNAPP, Alain. Des vases, des images et de quelques uns des leurs usages sociaux, Dialoghi di Archeologia. 1985, 1, p. 74-75.

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    msica. Em muitos casos, porm, a lyra aparece, nesse mesmo contexto, como um presente de um pederasta para seduzir um efebo, conotando o homoerotismo. J nas mos de um morto, sentado ao p da estela funerria, idealizado na sua forma juvenil, a lyra ao mesmo tempo nos remete ao contedo funerrio da msica e sua condio de atributo de jovem em idade escolar. A lyra pintada numa cena de sala de aula, porm, est a a servio de uma descrio, narrao, de uma prtica cotidiana: o ensino musical.

    H ainda outro recorte terico a ser considerado: o pintor, ao representar uma dimenso da vida cotidiana, seja por meio de figuraes de ordem humana ou mitolgica, o faz a partir de uma seleo de elementos. Este processo de seleo acarreta a escolha de aspectos da realidade cotidiana a serem retratados. Todavia, implica ainda um processo fundamental para a compreenso, no plano do Arqueolgico, da produo de sentido, ocorrida no plano do Artstico: o silncio, a ausncia.

    Conforme Ida Baldassare, em seu estudo Tomba e stelle nelle lekythoi a fondo bianco, a escolha e a valorizao de alguns (...) momentos (no caso de seu estudo, o velrio, cortejo, enterro e jogos fnebres), revelam-nos que esses registros so regulados por um cdigo que d acesso e expresso somente a alguns comportamentos, atravs de uma seleo cultural e formal (...).9 No caso do estudo da iconografia da morte, I. Baldassare explica que essas selees culturais e formais correspondem integrao social da morte. Pensamos que essa mesma explicao se aplica a outros temas, como casamento, educao musical, rituais religiosos, festas domsticas, entre outros em nosso estudo, as escolhas e silncios referentes ao universo feminino. As escolhas e silncios, pelos quais o pintor opta por lembrar alguns temas e esquecer de outros, ou ainda, pelos quais ele decide mostrar um determinado aspecto da experincia cotidiana e ocultar, ou simplesmente no enfatizar outro, bem, essas escolhas correspondem tambm a como essas esferas da vida diria so integradas socialmente.

    Concluindo, a iconografia dos vasos ticos serve sim para o estudo do uso cotidiano dos instrumentos musicais, por meio de abordagens cotidianas ou mesmo mitolgicas, uma vez que o contexto de execuo da cena mtica passa, com muita freqncia, por uma encenao de prticas cotidianas. preciso considerar que essas prticas sociais so abordadas de forma ambgua, pois ao mesmo tempo em que tratam de modo realista elementos do cotidiano, idealizam-no, dele selecionando alguns aspectos e censurando outros. Ou, ao inverso, quando abordam temas por meio de contextos mitolgicos seguramente identificados, com freqncia referem-se, pois, por alotropia, a

    9 BALDASSARE, Ida. Tomba e stelle nelle lekythos a fondo bianco, AION 10, 1988, p. 107-115.

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    eventos da vida real (a Amazonomaquia refere-se s guerras prsicas; silenos praticando vindima, atividade humana da viticultura; Nike voando com kithara e phiale, vitria nos concursos musicais e aos sacrifcios que devem ser efetuados pelo vencedor).

    Com base no exposto acima, cabe ressaltar, no estudo iconogrfico da mulher em situaes ligadas ao trabalho e vida intelectual e artstica, que a abordagem do tema, mesmo quando idealizada, remete-nos, ao mesmo tempo, a aspectos denotativos | realistas e conotativos | imaginrios, vinculados a contextos reais de insero social do gnero feminino. Mesmo quando a iconografia refere-se a dimenses simblicas da vivncia de gnero, devemos considerar que estas dimenses so uma contrapartida inextrincvel da experincia pragmtica da vida social. Reflexes sobre a condio da mulher na sociedade grega antiga

    A historiografia da segunda metade do sculo XX, buscando uma viso crtica que apontasse as contradies da sociedade, props-se superar a viso idealizada da historiografia positivista, que no problematizava a condio feminina de inferioridade na sociedade grega antiga, no valorizando temas de pesquisa como os estudos de gnero. A segunda metade do sculo passado, com o avano de movimentos sociais e particularmente do feminismo, interessou-se em aprofundar o assunto, procurando apontar a condio subalterna da mulher, dentro de uma sociedade regida por uma ideologia masculina hegemnica.

    A periodizao desta viso historiogrfica feminista situa-se sobretudo entre o ps-guerra e o advento da reflexo ps-moderna nos anos 1980. Desenvolve-se ento um modelo de interpretao segundo o qual a mulher teria participao irrisria na vida comunitria, salvo algumas tarefas religiosas, estando por total ausente da vida pblica e poltica. Como sustentao cotidiana desta ideologia, a mulher seria por total analfabeta, passaria seus dias na recluso do gineceu, ausente do mundo do trabalho e das atividades intelectuais e artsticas que notabilizaram a Antigidade grega aos olhos de seus contemporneos e da posteridade. Este modelo pressupunha uma equivalncia entre os discursos misginos, presentes na literatura ficcional e cientfica antiga, e as prticas sociais, entendendo que, na realidade social, a vida da mulher reproduziria alguns axiomas filosficos e morais que determinavam a excluso feminina. O lugar da mulher seria a casa, sendo a rua e o espao pblico prerrogativas masculinas. O resultado foi uma historiografia sexista, que, para denunciar a dominao masculina na Antigidade encontrando a legimitao histrica para prticas de militncia ao fim e ao cabo nada mais fez do que

    8

    confirmar os valores da ideologia masculina, ao pressupor que as mulheres na sua vida social se assujeitassem a estas regras.

    A partir dos anos 1980, sob a influncia de novos paradigmas para a interpretao dos fenmenos humanos, nomeadamente os conceitos de complexidade e diversidade, um novo olhar foi lanado sobre a documentao. Encontrou-se na iconografia testemunhos provocadores, que, no mnimo, cobravam do pesquisador uma releitura de testemunhos escritos. Seguindo um olhar mais atento fragmentao do social, existncia de mltiplos discursos e possibilidade de prticas sociais que faam frente a ideologias normatizadoras, os temas da iconografia vascular do concerto musical no gineceu, bem como das cenas vinculadas educao e ao trabalho, podem fornecer elementos muito valiosos para se refletir sobre o tema, podendo trazer grandes contribuies para os estudos de gnero na situao atual de reflexo sobre o assunto.

    Para avanar no estudo relacionado representao iconogrfica da mulher, no seu ambiente domstico, ocupando-se com a msica, ou em ambientes laboriais, algumas consideraes gerais sobre a mulher ateniense precisam ser feitas.

    Em primeiro lugar, tanto as cenas nupciais como as cenas de gineceu retratam mulheres atenienses de classe elevada (Bundrick, 1989:1 e 17). A iconografia, quando representou a mulher livre, sempre privilegiou a mulher de elite, seja nas cenas religiosas, nas quais as mulheres tm participao bastante ativa, sobretudo nas representaes das festividades das Lenias, seja nas cenas de intimidade. Alguns vasos, porm, que mereceriam maior ateno dos estudiosos, representam mulheres livres, de extrao mais popular, em situaes de trabalho.

    As fontes literrias evidenciam a enorme diferena entre uma mulher cidad pobre ou rica. O espao ideal da mulher ateniense abastada era o recato do lar em que se ocupava com a fiao e tecelagem10, saindo rua apenas para buscar gua nas fontes e poos (Lessa 2001:85-106. Olmos 1986:130-132.

    10 Alguns vasos retratam essas atividades domsticas. Um bom nmero deles apresenta o envolvimento com as tarefas de fiao e tecelagem. Cf. Lkythos. Figuras negras. Pintor de Amasis. (ABV 154/57) Nova Iorque, Metropolitan Museum of Art, 31.11.10 (Fletcher Fund 1931). Ca. 540. Bib.: JONES 1997: 171, 4:8. Klix. Figuras vermelhas. Berlim, Staatliche Antikesammlungen, F 2289. Ca. 490. Bib: ARV 435/95. LISSARRAGUE 1993: 253, fig. 47. Alguns poucos exemplares apresentam-na ocupada com a maternidade. Cf. (me sentada sobre dphros brinca com criana sentada numa cadiera alta de beb). Klix. Figuras vermelhas. Maneira do Pintor de Sotades. Bruxelas, Muses Royaux, A 890. Bib.: JONES, P. Op. cit.,p. 170, 4:7.

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    eventos da vida real (a Amazonomaquia refere-se s guerras prsicas; silenos praticando vindima, atividade humana da viticultura; Nike voando com kithara e phiale, vitria nos concursos musicais e aos sacrifcios que devem ser efetuados pelo vencedor).

    Com base no exposto acima, cabe ressaltar, no estudo iconogrfico da mulher em situaes ligadas ao trabalho e vida intelectual e artstica, que a abordagem do tema, mesmo quando idealizada, remete-nos, ao mesmo tempo, a aspectos denotativos | realistas e conotativos | imaginrios, vinculados a contextos reais de insero social do gnero feminino. Mesmo quando a iconografia refere-se a dimenses simblicas da vivncia de gnero, devemos considerar que estas dimenses so uma contrapartida inextrincvel da experincia pragmtica da vida social. Reflexes sobre a condio da mulher na sociedade grega antiga

    A historiografia da segunda metade do sculo XX, buscando uma viso crtica que apontasse as contradies da sociedade, props-se superar a viso idealizada da historiografia positivista, que no problematizava a condio feminina de inferioridade na sociedade grega antiga, no valorizando temas de pesquisa como os estudos de gnero. A segunda metade do sculo passado, com o avano de movimentos sociais e particularmente do feminismo, interessou-se em aprofundar o assunto, procurando apontar a condio subalterna da mulher, dentro de uma sociedade regida por uma ideologia masculina hegemnica.

    A periodizao desta viso historiogrfica feminista situa-se sobretudo entre o ps-guerra e o advento da reflexo ps-moderna nos anos 1980. Desenvolve-se ento um modelo de interpretao segundo o qual a mulher teria participao irrisria na vida comunitria, salvo algumas tarefas religiosas, estando por total ausente da vida pblica e poltica. Como sustentao cotidiana desta ideologia, a mulher seria por total analfabeta, passaria seus dias na recluso do gineceu, ausente do mundo do trabalho e das atividades intelectuais e artsticas que notabilizaram a Antigidade grega aos olhos de seus contemporneos e da posteridade. Este modelo pressupunha uma equivalncia entre os discursos misginos, presentes na literatura ficcional e cientfica antiga, e as prticas sociais, entendendo que, na realidade social, a vida da mulher reproduziria alguns axiomas filosficos e morais que determinavam a excluso feminina. O lugar da mulher seria a casa, sendo a rua e o espao pblico prerrogativas masculinas. O resultado foi uma historiografia sexista, que, para denunciar a dominao masculina na Antigidade encontrando a legimitao histrica para prticas de militncia ao fim e ao cabo nada mais fez do que

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    confirmar os valores da ideologia masculina, ao pressupor que as mulheres na sua vida social se assujeitassem a estas regras.

    A partir dos anos 1980, sob a influncia de novos paradigmas para a interpretao dos fenmenos humanos, nomeadamente os conceitos de complexidade e diversidade, um novo olhar foi lanado sobre a documentao. Encontrou-se na iconografia testemunhos provocadores, que, no mnimo, cobravam do pesquisador uma releitura de testemunhos escritos. Seguindo um olhar mais atento fragmentao do social, existncia de mltiplos discursos e possibilidade de prticas sociais que faam frente a ideologias normatizadoras, os temas da iconografia vascular do concerto musical no gineceu, bem como das cenas vinculadas educao e ao trabalho, podem fornecer elementos muito valiosos para se refletir sobre o tema, podendo trazer grandes contribuies para os estudos de gnero na situao atual de reflexo sobre o assunto.

    Para avanar no estudo relacionado representao iconogrfica da mulher, no seu ambiente domstico, ocupando-se com a msica, ou em ambientes laboriais, algumas consideraes gerais sobre a mulher ateniense precisam ser feitas.

    Em primeiro lugar, tanto as cenas nupciais como as cenas de gineceu retratam mulheres atenienses de classe elevada (Bundrick, 1989:1 e 17). A iconografia, quando representou a mulher livre, sempre privilegiou a mulher de elite, seja nas cenas religiosas, nas quais as mulheres tm participao bastante ativa, sobretudo nas representaes das festividades das Lenias, seja nas cenas de intimidade. Alguns vasos, porm, que mereceriam maior ateno dos estudiosos, representam mulheres livres, de extrao mais popular, em situaes de trabalho.

    As fontes literrias evidenciam a enorme diferena entre uma mulher cidad pobre ou rica. O espao ideal da mulher ateniense abastada era o recato do lar em que se ocupava com a fiao e tecelagem10, saindo rua apenas para buscar gua nas fontes e poos (Lessa 2001:85-106. Olmos 1986:130-132.

    10 Alguns vasos retratam essas atividades domsticas. Um bom nmero deles apresenta o envolvimento com as tarefas de fiao e tecelagem. Cf. Lkythos. Figuras negras. Pintor de Amasis. (ABV 154/57) Nova Iorque, Metropolitan Museum of Art, 31.11.10 (Fletcher Fund 1931). Ca. 540. Bib.: JONES 1997: 171, 4:8. Klix. Figuras vermelhas. Berlim, Staatliche Antikesammlungen, F 2289. Ca. 490. Bib: ARV 435/95. LISSARRAGUE 1993: 253, fig. 47. Alguns poucos exemplares apresentam-na ocupada com a maternidade. Cf. (me sentada sobre dphros brinca com criana sentada numa cadiera alta de beb). Klix. Figuras vermelhas. Maneira do Pintor de Sotades. Bruxelas, Muses Royaux, A 890. Bib.: JONES, P. Op. cit.,p. 170, 4:7.

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    Lissarrague 1993:211-2, 243-6)11, cultuar os mortos ou participar dos rituais religiosos. A mulher ateniense de baixa extrao social, por sua vez, precisava colaborar economicamente no sustento da casa, trabalhando fora. Assim, os mercados estavam cheios de vendedoras de perfumes, de leo e de quinquilharias em geral (Moss 1989: 59. Olmos 1986:139-40).12 As mulheres de famlias campesinas humildes tambm deviam cooperar, fazendo a coleta dos frutos. Talvez cooperassem tambm no artesanato ou indstria urbana, na tecelagem, ou mesmo na olaria. Enquanto as cidads pobres, em suas raras aparies iconogrficas, esto em contexto de trabalho, as cidads da elite aristocrtica so representadas no cio do gineceu. A diferena entre a rua e casa, para as mulheres livres, possua tambm um sentido de classe social. As evidencias iconogrficas, contrariamente ao discurso historiogrfico predominante, apontariam que, em determinadas situaes, mulheres ocupariam espaos no mundo do trabalho, inclusive em atividades de cunho masculino, como em ofcios artesanais especializados. Para prosseguirmos no estudo da iconografia de gnero no repertrio da cermica pintada tica, cabem duas ordens de observao, concernentes terminologia e cronologia.

    Freqentemente, usamos o termo mulher cidad. preciso esclarecer que empregamos esse termo por um conforto, na medida em que explicita a questo bsica: ser filha ou esposa de cidado ateniense. O termo cidad, poltis, teve apario bastante tardia na democracia grega, surgindo, com um sentido muito limitado, de carter jurdico, a partir de meados do sc. IV, em Aristteles, Demstenes e autores da comdia nova. A verdadeira qualidade da cidadania estava nas funes polticas de participao nas assemblias, tribunais e ordens militares, prerrogativa exclusivamente masculina. (Moss 1989:51. Calame 1996:123. Florenzano 1996:41) Apesar de sua excluso da esfera poltica, entendia-se que a mulher cidad integrava efetiva e ativamente a comunidade polade, a koin, pois a ela cabiam importantes funes cvicas no mbito religioso, consideradas vitais para o bem-estar comum. (Brul 1987. Calame 1996:141 e 193). Assim, para diferenciar das mulheres pertencentes a outras categorias, como as hetairas, 11 Segundo Olmos (1986:130-2), difcil definir se as moas representadas juntos s fontes so mulheres livres pertencentes elite cidad ou hetairas. Num constante jogo entre o mito e a realidade, tomando as referncias mitolgicas, supomos que as fontes fossem local de encontros amorosos. Cf. Pxis. Figuras vermelhas. Londres, Museu Britnico, E 772. Em torno de 460. Hydra. Figuras negras. Wrzburg, Martin von Wagner Museum. ltimo quartel do sc. VI. Klix. Figuras vermelhas. Pintor de Brygos. Florena, Museo Archeologico, 76103. 480-75. . 12 Cf. Pelik. Figuras vermelhas. Pintor de P. Madri, Museu Arqueologico.

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    metecas ou escravas, usamos os termos mulher cidad, mulher ateniense ou mulher bem-nascida, no caso da mulher cidad da elite aristocrtica.

    Para situarmos os vasos que sero analisados, estabelecemos uma cronologia da representao da mulher cidad na cermica tica. Desde o sc. VI, a mulher cidad representada em suas incumbncias religiosas13, atuando como sacerdotisa, kanphros ou peplophros. Do mesmo modo, aparecia em cenas funerrias de velrio e cortejo, sobretudo como carpideira14, e em cenas do ritual de casamento, nos cortejos nupciais, na condio de noiva, nymphetria ou parente de um dos noivos15 ou nas danas nupciais16. No sc. VI vigia, porm, certa interdio sobre a representao do espao feminino do lar. No entanto, mulheres buscando gua nas fontes ou trabalhando no tear so cenas presentes j no sculo VI, sobre os vasos de figuras negras; estas representaes persistem ao longo do sculo V, nos vasos de figuras vermelhas. Sobre estas cenas no recaa qualquer interdio, pois eram consideradas atividades paradigmticas para a vida da mulher cidad, so atividades laboriais inerentes sua condio domstica.

    A partir do segundo quartel do sculo V, aumenta, proporcionalmente, entre os pintores, o interesse pelas cenas representando o mundo da mulher cidad. A partir de aproximadamente 480-70 a.C., inicia a srie iconogrfica denominada de Lenenvasen, retratando as mulheres atenienses envolvidas em cultos dionisacos; essa srie expande-se ao longo do segundo quartel do sculo e continua at o terceiro. (Frickenhaus 1917. Durand e Frontisi-Ducroux 1982:81-108. Genire 1987:43-61) Poucos anos depois da popularizao das cenas de Lenias, em torno de 470-60 a.C., surgem os primeiros vasos com

    13 Pnax. Figuras negras. Sem atribuio.Atenas. Museu Nacional, Coleo da Acrpole, 2574-5. Terceiro quartel do sculo VI. Ver: Cerqueira 2001: cat. 342. Loutrophros (fragmento do p). Figuras negras. Sem atribuio. Atenas, Museu Nacional, Coleo da Acrpole, 1208. Final do sculo VI. Ver: Cerqueira 2001: cat. 343. Klix. Figuras negras (imitao becia?) Early attic work, known as Vaurna. (CVA) Alguns autores identificam pea como produto de indstria becia. Londres, Museu Britnico. B 80. Primeiro quartel do sculo VI. (CVA) Ver: Cerqueira 2001: cat. 347. nfora. Figuras negras. Affekter. (ABV 243) Munique, Staatliche Museen, Antikensammlung, 1441. 540-30. Ver: Cerqueira 2001: cat. 358. 14 Loutrophros (fragmento). Figuras negras. Sem atribuio. Atenas, Museu Nacional, Coleo de Acrpole, 2203. 575-525. Ver: Cerqueira 2001: cat. 500. 15 Hydra. Figuras negras. Pintor de Lysppides. Grupo de Londres B 339. Potter probably Andokides. (ABV 264/1, abaixo) Londres, Museu Britnico, B 339. 530-20. Ver: Cerqueira 2001: cat. 290 (nome dos noivos identificados por inscrio). 16 Lkythos. Figuras negras. Pintor de Amasis. (Bothmer) Nova Iorque, Metropolitan Museum of Art, 56.11.1. Em torno de 540. Ver: Cerqueira 2001: cat. 301.

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    Lissarrague 1993:211-2, 243-6)11, cultuar os mortos ou participar dos rituais religiosos. A mulher ateniense de baixa extrao social, por sua vez, precisava colaborar economicamente no sustento da casa, trabalhando fora. Assim, os mercados estavam cheios de vendedoras de perfumes, de leo e de quinquilharias em geral (Moss 1989: 59. Olmos 1986:139-40).12 As mulheres de famlias campesinas humildes tambm deviam cooperar, fazendo a coleta dos frutos. Talvez cooperassem tambm no artesanato ou indstria urbana, na tecelagem, ou mesmo na olaria. Enquanto as cidads pobres, em suas raras aparies iconogrficas, esto em contexto de trabalho, as cidads da elite aristocrtica so representadas no cio do gineceu. A diferena entre a rua e casa, para as mulheres livres, possua tambm um sentido de classe social. As evidencias iconogrficas, contrariamente ao discurso historiogrfico predominante, apontariam que, em determinadas situaes, mulheres ocupariam espaos no mundo do trabalho, inclusive em atividades de cunho masculino, como em ofcios artesanais especializados. Para prosseguirmos no estudo da iconografia de gnero no repertrio da cermica pintada tica, cabem duas ordens de observao, concernentes terminologia e cronologia.

    Freqentemente, usamos o termo mulher cidad. preciso esclarecer que empregamos esse termo por um conforto, na medida em que explicita a questo bsica: ser filha ou esposa de cidado ateniense. O termo cidad, poltis, teve apario bastante tardia na democracia grega, surgindo, com um sentido muito limitado, de carter jurdico, a partir de meados do sc. IV, em Aristteles, Demstenes e autores da comdia nova. A verdadeira qualidade da cidadania estava nas funes polticas de participao nas assemblias, tribunais e ordens militares, prerrogativa exclusivamente masculina. (Moss 1989:51. Calame 1996:123. Florenzano 1996:41) Apesar de sua excluso da esfera poltica, entendia-se que a mulher cidad integrava efetiva e ativamente a comunidade polade, a koin, pois a ela cabiam importantes funes cvicas no mbito religioso, consideradas vitais para o bem-estar comum. (Brul 1987. Calame 1996:141 e 193). Assim, para diferenciar das mulheres pertencentes a outras categorias, como as hetairas, 11 Segundo Olmos (1986:130-2), difcil definir se as moas representadas juntos s fontes so mulheres livres pertencentes elite cidad ou hetairas. Num constante jogo entre o mito e a realidade, tomando as referncias mitolgicas, supomos que as fontes fossem local de encontros amorosos. Cf. Pxis. Figuras vermelhas. Londres, Museu Britnico, E 772. Em torno de 460. Hydra. Figuras negras. Wrzburg, Martin von Wagner Museum. ltimo quartel do sc. VI. Klix. Figuras vermelhas. Pintor de Brygos. Florena, Museo Archeologico, 76103. 480-75. . 12 Cf. Pelik. Figuras vermelhas. Pintor de P. Madri, Museu Arqueologico.

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    metecas ou escravas, usamos os termos mulher cidad, mulher ateniense ou mulher bem-nascida, no caso da mulher cidad da elite aristocrtica.

    Para situarmos os vasos que sero analisados, estabelecemos uma cronologia da representao da mulher cidad na cermica tica. Desde o sc. VI, a mulher cidad representada em suas incumbncias religiosas13, atuando como sacerdotisa, kanphros ou peplophros. Do mesmo modo, aparecia em cenas funerrias de velrio e cortejo, sobretudo como carpideira14, e em cenas do ritual de casamento, nos cortejos nupciais, na condio de noiva, nymphetria ou parente de um dos noivos15 ou nas danas nupciais16. No sc. VI vigia, porm, certa interdio sobre a representao do espao feminino do lar. No entanto, mulheres buscando gua nas fontes ou trabalhando no tear so cenas presentes j no sculo VI, sobre os vasos de figuras negras; estas representaes persistem ao longo do sculo V, nos vasos de figuras vermelhas. Sobre estas cenas no recaa qualquer interdio, pois eram consideradas atividades paradigmticas para a vida da mulher cidad, so atividades laboriais inerentes sua condio domstica.

    A partir do segundo quartel do sculo V, aumenta, proporcionalmente, entre os pintores, o interesse pelas cenas representando o mundo da mulher cidad. A partir de aproximadamente 480-70 a.C., inicia a srie iconogrfica denominada de Lenenvasen, retratando as mulheres atenienses envolvidas em cultos dionisacos; essa srie expande-se ao longo do segundo quartel do sculo e continua at o terceiro. (Frickenhaus 1917. Durand e Frontisi-Ducroux 1982:81-108. Genire 1987:43-61) Poucos anos depois da popularizao das cenas de Lenias, em torno de 470-60 a.C., surgem os primeiros vasos com

    13 Pnax. Figuras negras. Sem atribuio.Atenas. Museu Nacional, Coleo da Acrpole, 2574-5. Terceiro quartel do sculo VI. Ver: Cerqueira 2001: cat. 342. Loutrophros (fragmento do p). Figuras negras. Sem atribuio. Atenas, Museu Nacional, Coleo da Acrpole, 1208. Final do sculo VI. Ver: Cerqueira 2001: cat. 343. Klix. Figuras negras (imitao becia?) Early attic work, known as Vaurna. (CVA) Alguns autores identificam pea como produto de indstria becia. Londres, Museu Britnico. B 80. Primeiro quartel do sculo VI. (CVA) Ver: Cerqueira 2001: cat. 347. nfora. Figuras negras. Affekter. (ABV 243) Munique, Staatliche Museen, Antikensammlung, 1441. 540-30. Ver: Cerqueira 2001: cat. 358. 14 Loutrophros (fragmento). Figuras negras. Sem atribuio. Atenas, Museu Nacional, Coleo de Acrpole, 2203. 575-525. Ver: Cerqueira 2001: cat. 500. 15 Hydra. Figuras negras. Pintor de Lysppides. Grupo de Londres B 339. Potter probably Andokides. (ABV 264/1, abaixo) Londres, Museu Britnico, B 339. 530-20. Ver: Cerqueira 2001: cat. 290 (nome dos noivos identificados por inscrio). 16 Lkythos. Figuras negras. Pintor de Amasis. (Bothmer) Nova Iorque, Metropolitan Museum of Art, 56.11.1. Em torno de 540. Ver: Cerqueira 2001: cat. 301.

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    cenas de gineceu, nos quais os pintores tinham um interesse particular em representar as mulheres tocando instrumentos musicais, em momento de entretenimento artstico. Essa temtica torna-se extremamente popular na segunda metade do sculo V, sendo um dos temas preferidos do Grupo de Polygnotos e de seus sequazes, como o Pintor de Kleophon e, na gerao seguinte, o Pintor do Banho. Estes pintores tm predileo pelos temas femininos, fortemente marcados pela representao de cenas do gineceu e de momentos domsticos da festa de casamento. No final do sculo quinto, enquanto outras temticas concernentes ao universo masculino apresentavam uma reduo relativa (considerando o total da produo dos vasos decorados ticos), o que ocorria, por exemplo, com as cenas de educao juvenil, de banquete e de kmos, a srie iconogrfica representando o gineceu apresenta uma sensvel expanso. (Bundrick 2000:17. Bazant 1990:93-112)17

    Nossa perspectiva de anlise do significado do material iconogrfico, alusivo intimidade e entretenimento femininos no gineceu, bem como referente a cenas de mulher em contexto de trabalho, se associa corrente que busca estabelecer uma nova interpretao do lugar da mulher na sociedade ateniense. Aproxima-se assim das interpretaes que enfocam sua atuao no universo religioso (Brul 1987), amoroso (Calame 1996) e mesmo em outras esferas (Lessa 2000).

    Propomos, assim, que as evidncias iconogrficas apontam a participao de mulheres livres, cidads, em atividades educativas, intelectuais, artsticas e de trabalho. Para sustentar esta interpretao, necessrio analisar os procedimentos de identificao das cenas e figuras femininas representadas nas pinturas de vaso ocupando-se de atividades desta natureza. Analisaremos, a seguir, dois contextos iconogrficos distintos, avaliando, quando necessrio, os procedimentos de identificao de atributos: o trabalho feminino e a prtica musical no gineceu. Evidncias iconogrficas da participao mulher no mundo do trabalho

    Interessa-nos aqui ressaltar, porm, que, diferentemente do que apregoa o modelo tradicional, as fontes indicam sim que a mulher ocupava espaos no mundo do trabalho, inclusive em atividades artesanais, presumivelmente masculinas, segundo a viso hegemnica.

    17 Bazant (1990:93-112) apresenta estatsticas comparando a evoluo da iconografia representando o universo masculino e feminino, pela qual comprova que proporcionalmente h um sensvel crescimento das temticas ligadas mulher, apesar de numericamente ainda predominar as cenas retratando universo masculino.

    12

    O assunto mais estudado at o momento a coleta de frutos por mulheres. Por se tratar do ambiente rural, e por ser uma atividade reconhecidamente feminina na grande maioria das sociedades humanas, conforme indicam os relatos etnogrficos produzidos ao longo do sculo XX sobre sociedades paleolticas e neolticas modernas, o reconhecimento do trabalho feminino nesta instncia no causou constrangimentos historiografia. Todavia, em muitas publicaes de vasos representando esta temtica, houve tendncia pronunciada em negar o carter corriqueiro desta cena humana de trabalho feminino, atribuindo-lhe contedo mitolgico. Afinal, reconhecer o carter humano de uma cena desta natureza seria presumir que o pintor valorizasse esta atividade feminina de carter laborial, algo que contrastava com os grandes ideais associados ao Milagre Grego, que motivaram grande parte do classicismo do final do sculo XIX e primeira metade do sculo XX. Dois helenistas brasileiros, Andr Leonardo Chevitarese e Fbio de Souza Lessa apontaram a existncia de uma srie iconogrfica, sobretudo em figuras negras, retratando as mulheres em cenas de coleta de frutos, destacando o exemplar do Museu Histrico Nacional, cuja anlise leva Chevitarese seguinte proposta de anlise: dada a ausncia de atributos divinos, no h razes para identificar as mulheres que colhem frutos como divindades ou heronas; deve-se, outrossim, assumir a suposta banalidade da cena de vida cotidiana, sem precisar recorrer a alguma verso literria conhecida ou perdida aceitando-se assim que o pintor quis valorizar o vaso como uma pea que representa um trabalho feminino tratado, na iconografia, com respeito e dignidade.18

    O interesse dos pintores de vaso por cenas de trabalho feminino no se encerra na atividade rural da colheita de frutos. Alguns vasos registram a mulher atuando na gora, no mercado, na atividade de venda de produtos, talvez produtos provindos da pequena propriedade de sua famlia, como era o caso da me de Eurpides, que, sabemos, vinha a Atenas para vender

    18 Prato tico de figuras negras. Delos, Museu Arqueolgico. Inventrio: B. 6094. Provenincia: santurio de Hera, Delos. 520-500 (?). Bib.: Dugas 1928:166, 185, n 632, pr. LI, B. Chevitares 2000. Ch. Dugas, porm, identifica duas divindades, como era comum em sua gerao, buscando valorizar a pea por meio de uma mitologizao de seu contedo. A. Chevitarese critica de forma consistente esse procedimento, denominando-o de associao valorativa, ver: Chevitarese 2001. Cf. Skphos. Figuras vermelhas. Pintor P.S. Coleo privada. 480-70. Bib.: Lessa 2001: 94. Skphos. Pintor de Von Brssel. Mainz, Universidade, 112. Em torno de 450. Ver mais recentemente: LESSA 2001: 85-106. Lkythos. Figuras negras. Rio de Janeiro, Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, s/inv. Em torno de 480. Bib.: Sarian 1987: 80, fig. 6.

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    cenas de gineceu, nos quais os pintores tinham um interesse particular em representar as mulheres tocando instrumentos musicais, em momento de entretenimento artstico. Essa temtica torna-se extremamente popular na segunda metade do sculo V, sendo um dos temas preferidos do Grupo de Polygnotos e de seus sequazes, como o Pintor de Kleophon e, na gerao seguinte, o Pintor do Banho. Estes pintores tm predileo pelos temas femininos, fortemente marcados pela representao de cenas do gineceu e de momentos domsticos da festa de casamento. No final do sculo quinto, enquanto outras temticas concernentes ao universo masculino apresentavam uma reduo relativa (considerando o total da produo dos vasos decorados ticos), o que ocorria, por exemplo, com as cenas de educao juvenil, de banquete e de kmos, a srie iconogrfica representando o gineceu apresenta uma sensvel expanso. (Bundrick 2000:17. Bazant 1990:93-112)17

    Nossa perspectiva de anlise do significado do material iconogrfico, alusivo intimidade e entretenimento femininos no gineceu, bem como referente a cenas de mulher em contexto de trabalho, se associa corrente que busca estabelecer uma nova interpretao do lugar da mulher na sociedade ateniense. Aproxima-se assim das interpretaes que enfocam sua atuao no universo religioso (Brul 1987), amoroso (Calame 1996) e mesmo em outras esferas (Lessa 2000).

    Propomos, assim, que as evidncias iconogrficas apontam a participao de mulheres livres, cidads, em atividades educativas, intelectuais, artsticas e de trabalho. Para sustentar esta interpretao, necessrio analisar os procedimentos de identificao das cenas e figuras femininas representadas nas pinturas de vaso ocupando-se de atividades desta natureza. Analisaremos, a seguir, dois contextos iconogrficos distintos, avaliando, quando necessrio, os procedimentos de identificao de atributos: o trabalho feminino e a prtica musical no gineceu. Evidncias iconogrficas da participao mulher no mundo do trabalho

    Interessa-nos aqui ressaltar, porm, que, diferentemente do que apregoa o modelo tradicional, as fontes indicam sim que a mulher ocupava espaos no mundo do trabalho, inclusive em atividades artesanais, presumivelmente masculinas, segundo a viso hegemnica.

    17 Bazant (1990:93-112) apresenta estatsticas comparando a evoluo da iconografia representando o universo masculino e feminino, pela qual comprova que proporcionalmente h um sensvel crescimento das temticas ligadas mulher, apesar de numericamente ainda predominar as cenas retratando universo masculino.

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    O assunto mais estudado at o momento a coleta de frutos por mulheres. Por se tratar do ambiente rural, e por ser uma atividade reconhecidamente feminina na grande maioria das sociedades humanas, conforme indicam os relatos etnogrficos produzidos ao longo do sculo XX sobre sociedades paleolticas e neolticas modernas, o reconhecimento do trabalho feminino nesta instncia no causou constrangimentos historiografia. Todavia, em muitas publicaes de vasos representando esta temtica, houve tendncia pronunciada em negar o carter corriqueiro desta cena humana de trabalho feminino, atribuindo-lhe contedo mitolgico. Afinal, reconhecer o carter humano de uma cena desta natureza seria presumir que o pintor valorizasse esta atividade feminina de carter laborial, algo que contrastava com os grandes ideais associados ao Milagre Grego, que motivaram grande parte do classicismo do final do sculo XIX e primeira metade do sculo XX. Dois helenistas brasileiros, Andr Leonardo Chevitarese e Fbio de Souza Lessa apontaram a existncia de uma srie iconogrfica, sobretudo em figuras negras, retratando as mulheres em cenas de coleta de frutos, destacando o exemplar do Museu Histrico Nacional, cuja anlise leva Chevitarese seguinte proposta de anlise: dada a ausncia de atributos divinos, no h razes para identificar as mulheres que colhem frutos como divindades ou heronas; deve-se, outrossim, assumir a suposta banalidade da cena de vida cotidiana, sem precisar recorrer a alguma verso literria conhecida ou perdida aceitando-se assim que o pintor quis valorizar o vaso como uma pea que representa um trabalho feminino tratado, na iconografia, com respeito e dignidade.18

    O interesse dos pintores de vaso por cenas de trabalho feminino no se encerra na atividade rural da colheita de frutos. Alguns vasos registram a mulher atuando na gora, no mercado, na atividade de venda de produtos, talvez produtos provindos da pequena propriedade de sua famlia, como era o caso da me de Eurpides, que, sabemos, vinha a Atenas para vender

    18 Prato tico de figuras negras. Delos, Museu Arqueolgico. Inventrio: B. 6094. Provenincia: santurio de Hera, Delos. 520-500 (?). Bib.: Dugas 1928:166, 185, n 632, pr. LI, B. Chevitares 2000. Ch. Dugas, porm, identifica duas divindades, como era comum em sua gerao, buscando valorizar a pea por meio de uma mitologizao de seu contedo. A. Chevitarese critica de forma consistente esse procedimento, denominando-o de associao valorativa, ver: Chevitarese 2001. Cf. Skphos. Figuras vermelhas. Pintor P.S. Coleo privada. 480-70. Bib.: Lessa 2001: 94. Skphos. Pintor de Von Brssel. Mainz, Universidade, 112. Em torno de 450. Ver mais recentemente: LESSA 2001: 85-106. Lkythos. Figuras negras. Rio de Janeiro, Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, s/inv. Em torno de 480. Bib.: Sarian 1987: 80, fig. 6.

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    alimentos.19 Uma cena retratada em alguns vasos a venda de leo, como podemos constatar em uma pelik do Museu do Vaticano20, do final do sculo VI, atribuda ao Grupo de Leagros, e em uma nfora do Museu de Mconos, proveniente da necrpole de Renia (Fig. 1).

    Todavia, a observao atenta e sistemtica de alguns vestgios arqueolgicos e iconogrficos indicam a possibilidade de atuao de mulheres em oficinas artesanais, territrio considerado exclusividade masculina, pelo esforo fsico demandado. Sobre este assunto, queremos destacar o recente estudo da arqueloga Ulla Kreilinger, referente iconografia de nudez da mulher cidad, publicado em 2007 na Alemanha. A autora elenca uma srie de argumentos convincentes que evidenciam a participao de mulheres na atividade oleira. Conforme surpreendente registro iconogrfico, possvel que algumas mulheres de famlias pobres participassem de atividades artesanais em conjunto com operrios e artesos do sexo masculino: numa excepcional hydria de Milo, atribuda ao Pintor de Leningrado (Fig. 2), retratando a oficina do oleiro, o pintor representou uma artes trabalhando com um estilete sobre a ala em voluta de uma grande cratera, compartilhando do calor da oficina com outros trs jovens artesos, ela recatadamente vestida com khiton e himation, eles mais ou menos vontade, um deles inclusive nu para suportar as altas temperaturas desses ambientes fechados. (Sarian 1993:113, fig.7. Lissarrague 1993:250, fig. 44).21

    Alm da famosa cratera de Milo, do Pintor de Leningrado, a iconografia de um skyphos e de uma terracota becios representam mulheres 19 Autores cmicos, com o objetivo de insultar Eurpides e atacar o seu trabalho, afirmavam que sua me viria a Atenas vender hortalias. Alguns explicam que isto teria se dado em decorrncia de dificuldades econmicas de sua famlia, aps a morte de seu pai, apesar de se tratar de uma famlia de posses oriunda de Salamina. Para nossa anlise, pouco importa a veracidade histrica da atividade atribuda me do poeta trgico. Interessa sim o fato de se referirem existncia desta figura social: a vendedora de hortalias na gora. 20 Cf. Pelik tica de figuras negras. Grupo de Leagros. Vaticano, Museo Gregoriano Etrusco, inv. 413. Bib.: Boardman, ABFV fig. 212. Agradeo ao Dr. Andr Leonardo Chevitarese pela referncia ao vaso do Vaticano, permitindo-me citar esse exemplo que integra o catlogo iconogrfico de sua pesquisa de ps-doutorado, Arqueologia e Histria Rural da tica no Perodo Arcaico. 21 Hydria. Figuras vermelhas. Milo, Coleo Torno, C 278. Em torno de 460. Bib.: ARV 571/73. SARIAN, Haiganuch. Poien grphein: o estatuto social do arteso-artista de vasos ticos., Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia (USP). So Paulo, 3, 1993, p. 113, fig. 7. LISSARRAGUE, Fr. Op. cit., p. 250, fig. 44. Ver: VENIT, Marjorie. The Caputi hydria and the working women in classical Athens., CW, 814, 1988, p. 265-72.

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    participando da atividade oleira, sendo que, no skyphos, ela est pintando um vaso. Soma-se a isso o testemunho da epigrafia vascular: temos a assinatura de oleiras em vasos ticos e becios. A assinatura da oleira Timagora pode ser reconhecida em dois vasos ticos, onde se l TIMAGORA EPOIESEN. Na lista das taas pintadas pelo grupo dos Pequenos Mestres (Kleinmeister-Schalen), encontra-se a ceramista chamada Telesaia. Finalmente, a autora encontra indcios de que esta participao de mulheres no ofcio de oleiro remonte ao perodo micnico, como indica a ocorrncia em Linear B dos termos oleiro (ke-ra-me-we) e oleira (ke-ra-me-ja). (KREILINGER, 2007: 33-36) Evidncias da participao de mulheres na vida intelectual e artstica

    Uma das cenas mais caractersticas da iconografia do Estilo Clssico, do terceiro quartel do sc. V, a representao de mulheres no espao domstico do gineceu, que constitui a srie denominada a partir de Erika Kunze-Gtte como Frauengemachbilder. No interior dessa srie, destaca-se um grupo de vasos que as retrata segurando ou tocando instrumentos musicais (Fig. 3). Em nosso inventrio, elencamos 46 exemplos. No estudo iconogrfico mais recente e mais completo a respeito do assunto, a obra de Sheramy D. Bundrick, Expression of Harmony: representatios of female musicians in fifth-century athenian vase painting, so inventariados 101 vasos com mulheres tocando instrumentos em contexto domstico.22

    A forma dos vasos sobre os quais essas cenas esto representadas justificam a preferncia por temticas ligadas ao universo das mulheres bem-nascidas: so vasos empregados no uso domstico, utenslios que integram o dia-a-dia da mulher cidad ateniense. No inventrio estabelecido por Bundrick, destaca-se o predomnio das hydriai (25%), seguida em segundo lugar pelos lkythoi; num terceiro plano, destacam-se pelikai, oinokhoai e pyxides.23 Os lebetes gamikoi trazem com freqncia cenas de mulheres em espao domstico tocando instrumentos nupciais no gineceu, num ambiente de preparativos ou festejos nupciais, com destaque aos vasos do Pintor do Banho, acrescidos 22 BUNDRICK, Sheramy Deanna. Expression of harmony: Representation of female musicians in fifth-century athenian vase painting. (disserao) Michigan: UMI Dissertation Service, 2000 (1998), p. 18. 23 Em nosso inventrio, mais reduzido que o de Bundrick, as hydriai respondem por 41% do total, devendo-se considerar a diferena de abordagem de que em nosso catlogo as cenas domsticas/funerrias sobre lkythoi com fundo branco, como aquelas do Pintor de Aquiles, foram includas no item referente esfera funerria, o que diminui relativamente a particpao dos lkythoi em nossa quantificao.

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    alimentos.19 Uma cena retratada em alguns vasos a venda de leo, como podemos constatar em uma pelik do Museu do Vaticano20, do final do sculo VI, atribuda ao Grupo de Leagros, e em uma nfora do Museu de Mconos, proveniente da necrpole de Renia (Fig. 1).

    Todavia, a observao atenta e sistemtica de alguns vestgios arqueolgicos e iconogrficos indicam a possibilidade de atuao de mulheres em oficinas artesanais, territrio considerado exclusividade masculina, pelo esforo fsico demandado. Sobre este assunto, queremos destacar o recente estudo da arqueloga Ulla Kreilinger, referente iconografia de nudez da mulher cidad, publicado em 2007 na Alemanha. A autora elenca uma srie de argumentos convincentes que evidenciam a participao de mulheres na atividade oleira. Conforme surpreendente registro iconogrfico, possvel que algumas mulheres de famlias pobres participassem de atividades artesanais em conjunto com operrios e artesos do sexo masculino: numa excepcional hydria de Milo, atribuda ao Pintor de Leningrado (Fig. 2), retratando a oficina do oleiro, o pintor representou uma artes trabalhando com um estilete sobre a ala em voluta de uma grande cratera, compartilhando do calor da oficina com outros trs jovens artesos, ela recatadamente vestida com khiton e himation, eles mais ou menos vontade, um deles inclusive nu para suportar as altas temperaturas desses ambientes fechados. (Sarian 1993:113, fig.7. Lissarrague 1993:250, fig. 44).21

    Alm da famosa cratera de Milo, do Pintor de Leningrado, a iconografia de um skyphos e de uma terracota becios representam mulheres 19 Autores cmicos, com o objetivo de insultar Eurpides e atacar o seu trabalho, afirmavam que sua me viria a Atenas vender hortalias. Alguns explicam que isto teria se dado em decorrncia de dificuldades econmicas de sua famlia, aps a morte de seu pai, apesar de se tratar de uma famlia de posses oriunda de Salamina. Para nossa anlise, pouco importa a veracidade histrica da atividade atribuda me do poeta trgico. Interessa sim o fato de se referirem existncia desta figura social: a vendedora de hortalias na gora. 20 Cf. Pelik tica de figuras negras. Grupo de Leagros. Vaticano, Museo Gregoriano Etrusco, inv. 413. Bib.: Boardman, ABFV fig. 212. Agradeo ao Dr. Andr Leonardo Chevitarese pela referncia ao vaso do Vaticano, permitindo-me citar esse exemplo que integra o catlogo iconogrfico de sua pesquisa de ps-doutorado, Arqueologia e Histria Rural da tica no Perodo Arcaico. 21 Hydria. Figuras vermelhas. Milo, Coleo Torno, C 278. Em torno de 460. Bib.: ARV 571/73. SARIAN, Haiganuch. Poien grphein: o estatuto social do arteso-artista de vasos ticos., Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia (USP). So Paulo, 3, 1993, p. 113, fig. 7. LISSARRAGUE, Fr. Op. cit., p. 250, fig. 44. Ver: VENIT, Marjorie. The Caputi hydria and the working women in classical Athens., CW, 814, 1988, p. 265-72.

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    participando da atividade oleira, sendo que, no skyphos, ela est pintando um vaso. Soma-se a isso o testemunho da epigrafia vascular: temos a assinatura de oleiras em vasos ticos e becios. A assinatura da oleira Timagora pode ser reconhecida em dois vasos ticos, onde se l TIMAGORA EPOIESEN. Na lista das taas pintadas pelo grupo dos Pequenos Mestres (Kleinmeister-Schalen), encontra-se a ceramista chamada Telesaia. Finalmente, a autora encontra indcios de que esta participao de mulheres no ofcio de oleiro remonte ao perodo micnico, como indica a ocorrncia em Linear B dos termos oleiro (ke-ra-me-we) e oleira (ke-ra-me-ja). (KREILINGER, 2007: 33-36) Evidncias da participao de mulheres na vida intelectual e artstica

    Uma das cenas mais caractersticas da iconografia do Estilo Clssico, do terceiro quartel do sc. V, a representao de mulheres no espao domstico do gineceu, que constitui a srie denominada a partir de Erika Kunze-Gtte como Frauengemachbilder. No interior dessa srie, destaca-se um grupo de vasos que as retrata segurando ou tocando instrumentos musicais (Fig. 3). Em nosso inventrio, elencamos 46 exemplos. No estudo iconogrfico mais recente e mais completo a respeito do assunto, a obra de Sheramy D. Bundrick, Expression of Harmony: representatios of female musicians in fifth-century athenian vase painting, so inventariados 101 vasos com mulheres tocando instrumentos em contexto domstico.22

    A forma dos vasos sobre os quais essas cenas esto representadas justificam a preferncia por temticas ligadas ao universo das mulheres bem-nascidas: so vasos empregados no uso domstico, utenslios que integram o dia-a-dia da mulher cidad ateniense. No inventrio estabelecido por Bundrick, destaca-se o predomnio das hydriai (25%), seguida em segundo lugar pelos lkythoi; num terceiro plano, destacam-se pelikai, oinokhoai e pyxides.23 Os lebetes gamikoi trazem com freqncia cenas de mulheres em espao domstico tocando instrumentos nupciais no gineceu, num ambiente de preparativos ou festejos nupciais, com destaque aos vasos do Pintor do Banho, acrescidos 22 BUNDRICK, Sheramy Deanna. Expression of harmony: Representation of female musicians in fifth-century athenian vase painting. (disserao) Michigan: UMI Dissertation Service, 2000 (1998), p. 18. 23 Em nosso inventrio, mais reduzido que o de Bundrick, as hydriai respondem por 41% do total, devendo-se considerar a diferena de abordagem de que em nosso catlogo as cenas domsticas/funerrias sobre lkythoi com fundo branco, como aquelas do Pintor de Aquiles, foram includas no item referente esfera funerria, o que diminui relativamente a particpao dos lkythoi em nossa quantificao.

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    recentemente dos exemplares encontrados no santurio da Ninfa nas escarpas da Acrpole de Atenas.

    Assim, a srie das Frauengemachbilder apresenta uma coerncia no tocante ambincia domstica e aos tipos de vaso em que so representadas. Os primeiros estudos dedicados temtica e a maioria deles inclusive foram coincidentemente feitos por arquelogas. Em 1938, Elena Zevi publicou Scene di gineceo e di idillio nei vasi greci della seconda met del secolo quinto, procurando diferenciar as cenas reais, simblicas e mitolgicas, mas, de um modo geral, considerando a iconografia como referncia para costumes reais.24 Em 1957, Erika Kunza-Gtte publicou sua dissertao Frauengemachbilder in der Vasenmalerei des fnften Jahrhunderts, destacando, no tocante s mulheres musicistas, de um lado, o intercmbio entre os esquemas iconogrficos das mulheres e das Musas, e, de outro, a conotao nupcial das cenas de gineceu sobre as hydriai.

    O estudo de Erika Kunze-Gtte absolutamente atual do ponto de vista de sua reflexo terica sobre a relao e justaposio entre a iconografia das mulheres e das Musas. Conforme essa autora, a atmosfera das imagens das Musas corresponderia ao esprito apolneo, de modo que o som dos instrumentos expressaria a calma e harmonia da ambincia, visvel na expresso e ao tanto das Musas como das mulheres que tocam instrumentos. O recente estudo de Bundrick, do final de dcada de 1990, retoma em grande parte o modelo de Kunze-Gtte, segundo a qual a aproximao entre as Musas e as mulheres bem-nascidas instrumentistas funcionaria como uma representao de um modo de vida calmo e harmonioso na verdade, conforme Kunze-Gtte, uma fantasia, uma idealizao da sociedade domstica das mulheres. Apesar de mais antigo, o estudo de Kunze-Gtte vai alm da interpretao de Bundrick: sugere um contedo quase mstico, uma vez que as mulheres tocando instrumento nos vasos corporificariam a representao de que as Musas se faziam presentes ao soar dos instrumentos musicais, e que todos os envolvidos nessa atividade partilhariam do ser harmonioso e calmo das Musas. Essa parece-nos uma explicao antropologicamente sustentvel da simbiose entre as Musas e as mulheres bem-nascidas nessa srie de vasos de mulheres musicistas em ambiente domstico.25

    Dos anos 70 aos 80, dois estudos, baseados estritamente na documentao literria, se destacaram no estudo das mulheres musicistas, de

    24 ZEVI, Elena. Scene di gineceo e di idillio nei vasi greci della seconda met del secolo quinto. (Memorie della R. Accademia Nazionale dei Linci, serie VI, volume VI, fascicolo IV), Roma, Tipografo della Accademia Nazionale dei Lincei, 1938, 16, p. 341-69, pr. 1. 25 KUNZE-GTTE, E. Op. cit., p. 49-55.

    16

    autoria de Chester G. Starr, publicado em 1978, e de Annemarie Neubecker, de 1990, dedicando-se, a primeira, s cortess especializadas no ofcio de auletrs, e a segunda, s figuras mitolgicas. Somente na dcada de 1990 houve uma retomada do interesse pelo estudo das mulheres musicistas dos vasos de Estilo Clssico de meados e segunda metade do sculo quinto.26

    Muitos destes estudos passaram a ver a questo no mais do ponto de vista ilusionista da representao de prticas sociais reais, mas de uma perspectiva predominantemente simblica, buscando deeper cultural meanings or potential symbolism27.

    Nesse contexto, destacaram-se quatro autoras nos ltimos anos: Alexandra Voutira, Eva Rystedt, Alike Kaufmann-Samaras e Sheramy Deanna Bundrick. Em seu artigo sobre as cenas de msica no contexto domstico, Alexandra Voutira, com o objetivo de contextualizar as cenas domsticas de mulheres musicistas, concentra-se em conceitos relativos educao, tentando explicar como as cenas, de forma realista, refletem a educao dada s meninas bem-nascidas na segunda metade do sc. V.28 Eva Rystedt, num estudo sobre as mulheres musicistas sobre lkythoi de fundo branco, enfatiza o carter metafrico das imagens: partindo de um vaso de Estocolmo do Pintor de Aquiles, analisa o sentido funerrio e as implicaes relativamente educao feminina.29 O estudo que mais se aproxima em seus objetivos de nossa perspectiva o artigo de Alike Kaufmann-Samaras. A autora chama ateno s relaes existentes entre as cenas de mulheres bem-nascidas musicistas, de Musas e representaes de Safo, vendo nessas relaes uma aluso educao feminina e ao papel das poetisas gregas no sc. V.30

    26 NEUBECKER, Annemarie Jeanette. Frauen im altgriechischen Musikleben. Musik und Dichtiung: Neue Forschungsbeitrage, Viktor Poschl zum 80. Geburtstag gewidmet. Quellen und Studien zur Musikgeschichte von der Antike bis in die Gegenwart. 23. Frankfurt, 1990. 27 BUNDRICK, Sh. Op. cit., p. 5. 28 VOUTIRA, Alexandra. Observations on domestic music making in vase paintings of the fifth century b.C., Imago Musicae, 8, 1991, p. 73-94. 29 Rystedt, Eva. Women, Music, and White Ground Lekythos in the Medelhausmuseet, Opus mixtum. Essays in ancient art and society., 1994, p. 73-94. 30 KAUFMANN-SAMARAS, Aliki. Women musiciasn in attic pottery fo the fifth century b.C. (em grego), in: Athenian Potters and Painters. Nova Iorque, 1997, p. 285-95. SEBATAI, Viktoria. Op. cit., p. 330-1. Seu artigo de 1996, Paroles et musiques de mariage en Grce antique. Sources crites et images peintes. (in: OLIVIER, Odile. Silence et fureur. La femme et le mariage en Grce. Les antiquits grecques du Muse du Calvet. Avignon: Fondation du Musum Calvet, 1996, p. 434-448.) no traz grandes contribuies analticas ao sentido das cenas de mulheres musicistas; constitui, no

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    recentemente dos exemplares encontrados no santurio da Ninfa nas escarpas da Acrpole de Atenas.

    Assim, a srie das Frauengemachbilder apresenta uma coerncia no tocante ambincia domstica e aos tipos de vaso em que so representadas. Os primeiros estudos dedicados temtica e a maioria deles inclusive foram coincidentemente feitos por arquelogas. Em 1938, Elena Zevi publicou Scene di gineceo e di idillio nei vasi greci della seconda met del secolo quinto, procurando diferenciar as cenas reais, simblicas e mitolgicas, mas, de um modo geral, considerando a iconografia como referncia para costumes reais.24 Em 1957, Erika Kunza-Gtte publicou sua dissertao Frauengemachbilder in der Vasenmalerei des fnften Jahrhunderts, destacando, no tocante s mulheres musicistas, de um lado, o intercmbio entre os esquemas iconogrficos das mulheres e das Musas, e, de outro, a conotao nupcial das cenas de gineceu sobre as hydriai.

    O estudo de Erika Kunze-Gtte absolutamente atual do ponto de vista de sua reflexo terica sobre a relao e justaposio entre a iconografia das mulheres e das Musas. Conforme essa autora, a atmosfera das imagens das Musas corresponderia ao esprito apolneo, de modo que o som dos instrumentos expressaria a calma e harmonia da ambincia, visvel na expresso e ao tanto das Musas como das mulheres que tocam instrumentos. O recente estudo de Bundrick, do final de dcada de 1990, retoma em grande parte o modelo de Kunze-Gtte, segundo a qual a aproximao entre as Musas e as mulheres bem-nascidas instrumentistas funcionaria como uma representao de um modo de vida calmo e harmonioso na verdade, conforme Kunze-Gtte, uma fantasia, uma idealizao da sociedade domstica das mulheres. Apesar de mais antigo, o estudo de Kunze-Gtte vai alm da interpretao de Bundrick: sugere um contedo quase mstico, uma vez que as mulheres tocando instrumento nos vasos corporificariam a representao de que as Musas se faziam presentes ao soar dos instrumentos musicais, e que todos os envolvidos nessa atividade partilhariam do ser harmonioso e calmo das Musas. Essa parece-nos uma explicao antropologicamente sustentvel da simbiose entre as Musas e as mulheres bem-nascidas nessa srie de vasos de mulheres musicistas em ambiente domstico.25

    Dos anos 70 aos 80, dois estudos, baseados estritamente na documentao literria, se destacaram no estudo das mulheres musicistas, de

    24 ZEVI, Elena. Scene di gineceo e di idillio nei vasi greci della seconda met del secolo quinto. (Memorie della R. Accademia Nazionale dei Linci, serie VI, volume VI, fascicolo IV), Roma, Tipografo della Accademia Nazionale dei Lincei, 1938, 16, p. 341-69, pr. 1. 25 KUNZE-GTTE, E. Op. cit., p. 49-55.

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    autoria de Chester G. Starr, publicado em 1978, e de Annemarie Neubecker, de 1990, dedicando-se, a primeira, s cortess especializadas no ofcio de auletrs, e a segunda, s figuras mitolgicas. Somente na dcada de 1990 houve uma retomada do interesse pelo estudo das mulheres musicistas dos vasos de Estilo Clssico de meados e segunda metade do sculo quinto.26

    Muitos destes estudos passaram a ver a questo no mais do ponto de vista ilusionista da representao de prticas sociais reais, mas de uma perspectiva predominantemente simblica, buscando deeper cultural meanings or potential symbolism27.

    Nesse contexto, destacaram-se quatro autoras nos ltimos anos: Alexandra Voutira, Eva Rystedt, Alike Kaufmann-Samaras e Sheramy Deanna Bundrick. Em seu artigo sobre as cenas de msica no contexto domstico, Alexandra Voutira, com o objetivo de contextualizar as cenas domsticas de mulheres musicistas, concentra-se em conceitos relativos educao, tentando explicar como as cenas, de forma realista, refletem a educao dada s meninas bem-nascidas na segunda metade do sc. V.28 Eva Rystedt, num estudo sobre as mulheres musicistas sobre lkythoi de fundo branco, enfatiza o carter metafrico das imagens: partindo de um vaso de Estocolmo do Pintor de Aquiles, analisa o sentido funerrio e as implicaes relativamente educao feminina.29 O estudo que mais se aproxima em seus objetivos de nossa perspectiva o artigo de Alike Kaufmann-Samaras. A autora chama ateno s relaes existentes entre as cenas de mulheres bem-nascidas musicistas, de Musas e representaes de Safo, vendo nessas relaes uma aluso educao feminina e ao papel das poetisas gregas no sc. V.30

    26 NEUBECKER, Annemarie Jeanette. Frauen im altgriechischen Musikleben. Musik und Dichtiung: Neue Forschungsbeitrage, Viktor Poschl zum 80. Geburtstag gewidmet. Quellen und Studien zur Musikgeschichte von der Antike bis in die Gegenwart. 23. Frankfurt, 1990. 27 BUNDRICK, Sh. Op. cit., p. 5. 28 VOUTIRA, Alexandra. Observations on domestic music making in vase paintings of the fifth century b.C., Imago Musicae, 8, 1991, p. 73-94. 29 Rystedt, Eva. Women, Music, and White Ground Lekythos in the Medelhausmuseet, Opus mixtum. Essays in ancient art and society., 1994, p. 73-94. 30 KAUFMANN-SAMARAS, Aliki. Women musiciasn in attic pottery fo the fifth century b.C. (em grego), in: Athenian Potters and Painters. Nova Iorque, 1997, p. 285-95. SEBATAI, Viktoria. Op. cit., p. 330-1. Seu artigo de 1996, Paroles et musiques de mariage en Grce antique. Sources crites et images peintes. (in: OLIVIER, Odile. Silence et fureur