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1 2º Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades Brasília, 7 a 9 de Maio de 2014 Os Sentidos da Soberania e a Comunidade Democrática Mariah Casséte 1  Resumo: A teoria democrática contemporânea vem apresentando vigor renovado nos debates a respeito de temáticas como representação, justiça, deliberação e participação. No entanto, a centralidade das referidas discussões continua ignorando de forma frequente a importância fundamental da ideia de constituição do demos. A concepção de inovação da democracia precisa estar associada a um esforço de reflexão sobre as configurações de soberania e os fundamentos que conferem legitimidade ao corpo democrático. Pensar a soberania é entender as origens mais fundamentais de processos de inclusão e exclusão social, bem como as demandas por reconhecimen to e visibilidade. No presente trabalho, propomos explorar o tema no interior da teoria  política recente. Partimos da crítica à concepçã o de soberania presente no paradigma liberal e apresentamo s a perspectiva de Claude Lefort como virada importante para pensarmos esse conceito na contemporaneidade. Concluímos o paper apresentando uma introdução às duas importantes reflexões sobre soberania e comunidade democrática na teoria democrática atual: os pensamentos de Jacques Rancière e Pierre Rosanvallon. Palavras Chaves: Soberania;  Comunidade democrática; teoria política. Abstract: Contemporary democratic theory has been presenting a renewed debate about some themes as representation, justice, deliberation and participation. Despite of the importance of these discussions, what is still often ignored is the relevance of the constitution of the demos. The conception of democratic innovation needs to be associated with a reflection about the settings of sovereignty and the foundations that give legitimacy to the democratic body. To think about sovereignty involves the understanding of the origins of inclusion and exclusion processes, just as the demands for recognition and visibility. We propose to explore this theme inside recent political theory field. We initiate by exposing a critic about the liberal conception of sovereignty and it is  presented Claude Lefort’s perspective as an important turning point to think about this concept in contemporary theory. At the end of this paper we introduce two contemporary reflections about sovereignty and democratic community: the thoughts of Jacques Rancière and Pierre Rosanvallon. Key Words: Sovereignty ; Democratic Community; Political Theory.  Introdução O autor Pierre de Rosanvallon afirma em seu livro  Democratic Legitimacy que o vocabulário político utilizado para compreender e conceituar a democracia permaneceu inalterado ao longo do século XX (até a década de 1980) em algumas questões fundamentais como a 1  Doutoranda em Ciência Política na UFMG, bolsista CAPES/REUNI.

Casséte_Os Sentidos Da Soberania e a Comunidade Democrática

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    2 Simpsio Nacional sobre Democracia e Desigualdades

    Braslia, 7 a 9 de Maio de 2014

    Os Sentidos da Soberania e a Comunidade Democrtica

    Mariah Casste1

    Resumo: A teoria democrtica contempornea vem apresentando vigor renovado nos debates a

    respeito de temticas como representao, justia, deliberao e participao. No entanto, a

    centralidade das referidas discusses continua ignorando de forma frequente a importncia

    fundamental da ideia de constituio do demos. A concepo de inovao da democracia precisa

    estar associada a um esforo de reflexo sobre as configuraes de soberania e os fundamentos que

    conferem legitimidade ao corpo democrtico. Pensar a soberania entender as origens mais

    fundamentais de processos de incluso e excluso social, bem como as demandas por

    reconhecimento e visibilidade. No presente trabalho, propomos explorar o tema no interior da teoria

    poltica recente. Partimos da crtica concepo de soberania presente no paradigma liberal e

    apresentamos a perspectiva de Claude Lefort como virada importante para pensarmos esse conceito

    na contemporaneidade. Conclumos o paper apresentando uma introduo s duas importantes

    reflexes sobre soberania e comunidade democrtica na teoria democrtica atual: os pensamentos

    de Jacques Rancire e Pierre Rosanvallon.

    Palavras Chaves: Soberania; Comunidade democrtica; teoria poltica.

    Abstract: Contemporary democratic theory has been presenting a renewed debate about some

    themes as representation, justice, deliberation and participation. Despite of the importance of these

    discussions, what is still often ignored is the relevance of the constitution of the demos. The

    conception of democratic innovation needs to be associated with a reflection about the settings of

    sovereignty and the foundations that give legitimacy to the democratic body. To think about

    sovereignty involves the understanding of the origins of inclusion and exclusion processes, just as

    the demands for recognition and visibility. We propose to explore this theme inside recent political

    theory field. We initiate by exposing a critic about the liberal conception of sovereignty and it is

    presented Claude Leforts perspective as an important turning point to think about this concept in contemporary theory. At the end of this paper we introduce two contemporary reflections about

    sovereignty and democratic community: the thoughts of Jacques Rancire and Pierre Rosanvallon.

    Key Words: Sovereignty; Democratic Community; Political Theory.

    Introduo

    O autor Pierre de Rosanvallon afirma em seu livro Democratic Legitimacy que o

    vocabulrio poltico utilizado para compreender e conceituar a democracia permaneceu inalterado

    ao longo do sculo XX (at a dcada de 1980) em algumas questes fundamentais como a

    1 Doutoranda em Cincia Poltica na UFMG, bolsista CAPES/REUNI.

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    representao, as eleies, as instituies, a burocracia. Poucas inovaes tericas foram produzidas

    no sentido de aprofundamento na compreenso dos princpios que sustentam o sentido do

    democrtico em nossas sociedades atuais. Para o autor, o problema de tal estabilidade no campo da

    teoria democrtica, seria o do distanciamento que acaba sendo produzido entre o que

    compreendemos como democracia e as transformaes que esse paradigma poltico vem

    experimentando na prtica social. A democracia no um modelo fixo ou inaltervel ao longo do

    tempo. Ao contrrio, ela se mostra como um tipo de regime que incessantemente resiste a

    demarcaes definitivas. Assim, analis-la apropriadamente demanda um trabalho de investigao

    tanto terica como prtica, ou seja, a democracia indissocivel de um trabalho de explorao e de

    experimentao, de compreenso e de elaborao de si prpria.

    Nesse sentido, importante reconhecer que alguns pontos essenciais que sempre foram

    considerados inquestionveis na teoria clssica da democracia liberal passam a ser problematizados

    medida que se reconhecem suas incongruncias com os atuais cenrios de experincias conjuntas.

    Alguns autores e escolas tericas vm questionando fundamentos centrais que ao longo do tempo

    sustentaram o prprio sentido do democrtico: o monoplio da representao (Dryzek, 2000;

    Leydet, 2004), o monoplio do Estado (David Held, 1995; Schnapper 1998) e o prprio arranjo

    majoritrio (Young, 1989) so, alguns desses aspectos que passam a ser problematizados no

    contexto de construo e aprofundamento da democracia atual. interessante notar que nesse

    cenrio de transformao do democrtico o que est em questo no so tanto os desenhos

    institucionais ou leis e representantes, mas a prpria concepo fundamental do poltico, isto , os

    marcos que caracterizam e conformam a convivncia coletiva. Isso ocorre porque a narrativa

    democrtica moderna gradativamente consolidou uma ideia de associao naturalizada entre

    representao e Estado, cidadania e nacionalidade, demarcando assim uma concepo de soberania

    indivisvel, que precisa ser problematizada em um contexto no qual a pluralidade e a diferena

    adquirem centralidade cada vez mais significativa. Nesse contexto, h um questionamento da

    prpria ideia e mesmo da possibilidade de pensarmos o povo:

    Today, there is no simple identity between the people and the greater number, a definite, palpable mass of individuals. The boundaries of the people shift constantly [] the term people no longer refers to a distinct body of individuals, but rather to a sort of invisible generality, a virtual image defined by the manifold

    negativities of the social. (ROSANVALLON, 2011, p.70)

    A questo em evidncia nesse contexto a de que o povo, o demos cada vez mais

    deixam de ser um construto numrico dotado de caractersticas e materialidade especfica e passam

    a ser compreendidos como uma gama de histrias, situaes e posies fluidas, mltiplas e

    dinmicas que precisam ser trazidas tona e incorporadas na construo do poltico. Coloca-se ao

    pensamento democrtico, nesse sentido, um profcuo paradoxo: como pensar a questo da unidade

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    uma ideia possvel de coletividade em um contexto contemporneo no qual a prpria concepo

    de soberania democrtica parece repousar na tenso e fragmentao dessa unidade?

    Nesse trabalho, o objetivo analisar de que forma a ideia de soberania pode ser pensada em

    um contexto de aprofundamento e inovaes democrticas. O que gostaramos de apontar que um

    dos aspectos pouco debatidos da chamada crise da representao atual passa pela dificuldade em

    resignificarmos o sentido da soberania popular e as consequncias dessa categoria na prpria

    possibilidade de participao e incluso democrticas. Graham Smith (2010) refere-se a esse

    problema como a necessidade de reflexo sobre quem possui o direito de participar, isto , quem

    pode ser contado como cidado, como parte integrante do demos. O autor argumenta que

    impossvel pensarmos o tema das inovaes institucionais na teoria democrtica contempornea

    sem antes desenvolvermos uma discusso sobre a questo fundamental dos limites da comunidade

    poltica. Compreender a definio da soberania em sociedades democrticas , por um lado,

    considerar a natureza e a legitimidade da prpria participao, mas principalmente reconhecer que

    nos limites dessa soberania se institui e reproduzem-se contextos de excluso e opresso.

    necessrio considerar que sociedades democrticas no esto isentas de produzir e

    disseminar a desigualdade. De fato, o recorte poltico mais fundamental, ou seja, a delimitao da

    prpria ideia de associao e comunidade d origem a situaes mltiplas e concretas de excluso,

    nas quais grupos, indivduos e minorias no so nem mesmo reconhecidos como sujeitos polticos,

    pessoas que no apenas perderam disputas no interior do sistema, mas que nem, ao menos, podem

    fazer parte do mesmo (Norval, 2009, p.298). O desafio da teoria democrtica atual configura-se,

    portanto, no apenas em pensar maneiras efetivas de aprimorar a qualidade da democracia, nem

    somente em analisar processos de participao de certos grupos e perspectivas, mas tambm

    promover a problematizao da ideia de soberania, ou seja, colocar em debate uma concepo

    possvel de povo e de unidade poltica em contextos de pluralizao intensa da vida social.

    Andrew Arato (2002) aponta que a histria da democracia representativa a histria da

    incluso, que caracterizada por ele como o processo de reduo da distncia entre o povo como

    soberania e povo como construto legal. Cabe, assim, nos remetermos a essa problemtica com

    maior ateno, j que analisar o tema da soberania no pensamento democrtico evoca o princpio da

    liberdade como autonomia poltica, por meio da qual os membros da coletividade constituem

    deliberadamente as formas polticas da autoridade de maneira a organizar e institucionalizar suas

    vidas comuns. Os destinatrios da lei tornam-se seus autores. Por isso, formular a soberania popular

    como poder constituinte afirmar o valor democrtico bsico de autogoverno (Kalyvas, 2013).

    interessante ressaltar que a concepo de soberania construda no imaginrio ocidental pautada na

    ideia de controle e poder unitrio do Estado legado da conhecida definio desse conceito nos

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    escritos de Jean Bodin2. O fato dessa perspectiva unitria e absoluta de soberania ter se tornado

    aquela mais difundida no pensamento poltico moderno fez com que as discusses sobre soberania

    se tornassem extremamente raras no campo da teoria democrtica contempornea. Por essa razo

    torna-se relevante uma anlise ainda que introdutria a respeito das possibilidades de

    constituio de uma soberania democrtica.

    Na primeira parte do trabalho ser apresentada a concepo de soberania liberal. O que

    pretendemos apontar que embora esse paradigma busque fugir da ideia de uma soberania

    cristalizada e totalizante perspectiva em claro antagonismo aos excessos do Estado republicano - o

    que acaba se consolidando a privatizao dessa soberania, por meio da garantia e proteo dos

    direitos individuais (especialmente o direito propriedade), o estabelecimento de um Estado

    formalmente neutro e imparcial e a proteo contra as imprevisibilidades da vontade popular. Tal

    concepo liberal acaba por naturalizar e esconder as desigualdades para privilegiar a imagem de

    uma sociedade pacificada e livre de conflitos.

    Uma possibilidade alternativa soberania liberal aquela desenvolvida por Claude Lefort ao

    longo de sua obra. Esse autor se contrape ao paradigma liberal para pensar os parmetros da

    democracia, j que em sua perspectiva inconcebvel analisar qualquer aspecto do poltico sem

    considerar a dimenso mais fundamental da experincia coletiva: os sentidos simblicos e

    institucionais atribudos pela prpria populao vida em comunidade. Isso significa que o poltico

    no pode ser destitudo de sua dimenso pblica, dos conflitos e da multiplicidade que movem a

    constituio desse espao. Ao mesmo tempo, Lefort aponta que necessrio se afastar da

    concepo republicana de soberania popular. O modelo da Revoluo Francesa de consolidao do

    povo no lugar do soberano pode gerar um contexto no qual a vontade do povo passa a ser concebida

    como instncia absoluta, criando a possibilidade de um poder totalizante e incontrolvel. O sentido

    do democrtico, portanto, seria concretizado na busca por um modo de sociedade na qual o espao

    simblico do poder no seja extinto ou despolitizado, mas esvaziado. O problema dessa perspectiva

    o de que mesmo delimitando uma concepo negativa de soberania, Lefort no se aprofunda em

    uma questo fundamental para uma concepo do democrtico na atualidade, que se define como o

    tema da excluso.

    Por essa razo, analisaremos as perspectivas mais recentes na teoria democrtica a respeito

    da soberania e constituio do demos. O principal objetivo compreender que o contexto

    profundamente pluralizado das democracias contemporneas atualiza o sentido da soberania, de

    modo a considerar e reconhecer o problema da excluso. Nesse sentido, por mais que as instituies

    2 O soberano de Bodin um comandante no comandado. A relao poltica essencial vertical entre ele que comanda e ele que deve obedincia, ou seja, entre monarcas e sditos, governantes e governados (Bodin, 1992, p. 49; Arendt, 2007, p. 234-5).

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    e espaos deliberativos busquem estar abertos a todos ou mesmo que os processos de deciso

    poltica prezem pela transparncia e efetividade, ainda assim, h uma srie de grupos que

    estruturalmente no compartilham da linguagem que configura o espao pblico sendo, portanto,

    impedidos de se inserirem na lgica de constituio da prpria comunidade democrtica. Torna-se

    necessrio, assim, que o campo do pensamento democrtico atual seja capaz de repensar as

    estruturas vida poltica, considerando uma concepo de soberania capaz de conciliar o aspecto

    associativo e constitutivo do poltico, ao mesmo tempo em que d a centralidade devida ao fato

    marcante do movimento de incluso e excluso de grupos e minorias sociais. Uma anlise mais

    cuidadosa dos argumentos de autores como Jacques Rancire e Pierre Rosanvallon, revela que a

    soberania possvel em democracias marcadas pela pluralidade uma soberania inacabada,

    concebida como processo em constante desenvolvimento.

    I - A soberania liberal e as desigualdades naturalizadas

    O contexto poltico contemporneo das mais diversas naes ocidentais tem sido marcado

    por alguns processos comuns, mas nenhum deles mais aceito ou compartilhado que a ideia de que

    a democracia a melhor forma de governo. A ausncia da mesma algo reconhecido por todos

    como um grave problema, o que em consequncias mais extremas j foi, inclusive, justificativa para

    conflitos entre pases. preciso salientar, no entanto, que essa democracia to aceita como a melhor

    opo para se organizar a vida pblica de nossas sociedades apresenta princpios, caractersticas e

    expresso institucional que se conforma a uma identidade bem definida: o liberalismo. Sendo assim,

    as prticas, as leis e as instituies democrticas so configuradas por meio dos ideais bsicos

    liberais, como a prevalncia do indivduo perante o Estado, a existncia de direitos humanos

    naturais e inalienveis, o constitucionalismo, a existncia de eleies livres e peridicas, o sufrgio

    universal e a representao poltica. Esse conjunto de premissas responsvel por delinear a forma

    como os sistemas polticos democrticos se substanciam na realidade institucional. Sendo assim,

    possvel dizer que a poltica sob o paradigma liberal concebida como um meio para que os

    indivduos tenham as garantias e liberdades necessrias para organizar e gerenciar suas vidas

    privadas da forma que melhor lhes convm. Na vida em sociedade, portanto, a democracia liberal

    caracteriza-se por sua funo marcante: a de proteo do bem-estar individual por meio da garantia

    de uma dinmica coletiva adequada para a manuteno dos direitos e interesses dos indivduos

    (Bobbio, 1996).

    Isaiah Berlin no clssico Dois conceitos de Liberdade (1958) explicita com clareza a

    referida concepo liberal: nesse contexto, as liberdades negativas representam o grande valor para

    a coexistncia dos indivduos uns com os outros e com a prpria esfera poltica. Por liberdade

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    negativa entende-se que ser livre estar liberado das possveis imposies da esfera pblica,

    ressalvando um espao no pblico, insuscetvel de interferncia dos poderes polticos

    governamentais. Se as liberdades positivas indicam a vontade do indivduo em agir, em buscar

    ativamente sua autonomia, o domnio das liberdades negativas pressupe um espao de no

    interferncia por parte do Estado no que diz respeito s aes e desejos individuais3. Por meio dessa

    distino conceitual na ideia de liberdade, o autor realiza tambm uma clara separao simblica

    entre o paradigma democrtico e liberal - o democrata rejeita que o soberano no seja o povo; o

    liberal rejeita que o soberano seja absoluto. Compreende-se, portanto, que a associao moderna

    entre liberalismo e democracia para Berlin no uma aproximao naturalmente dada e para que as

    democracias possam efetivamente limitar o poder do soberano torna-se essencial a garantia

    imprescindvel na produo dos direitos individuais.

    Nesse sentido fica clara a concepo possvel do paradigma democrtico-liberal em relao

    prpria ideia de coletividade. O espao pblico aquele no qual impera a igualdade de direitos,

    oportunidades e condies, enquanto desloca-se para a vida privada a teia mltipla de ao e

    competio individual, em um contexto pluralista que liberado de interferncias e imposies

    estatais. Em oposio a uma ideia de soberania popular unificada, totalizante e transcendente

    como acabou se caracterizando o republicanismo da revoluo francesa (Bignotto, 2010) - a

    democracia liberal prope a instituio de um poder do povo, que efetivamente tenha seus

    fundamentos na soberania popular, mas que no se traduza na busca por uma identidade fixa ou

    nica.

    A igualdade, nesse contexto, uma igualdade de cidadania que se concretiza no espao pblico

    por meio da conquista constitucional de direitos e participao nos processos de escolha dos

    representantes. Edificaram-se os expedientes modernos de constituio e vinculao a uma

    comunidade poltica regida por princpios universais e por mecanismos pblicos de produo de

    legitimidade. A cidadania liberal constitui, assim, a cristalizao institucional desses novos sentidos

    de solidariedade abstrata e generalizada.

    John Rawls enfatiza que o liberalismo poltico deve ser justamente o regime de governo

    democrtico capaz de estabelecer fundamentos de estabilidade e justia em uma sociedade plural e

    diversificada. No liberalismo poltico as inmeras concepes culturais, religiosas e filosficas de

    indivduos livres e iguais podem conviver em um contexto democrtico pacfico. Para que isso

    3 Embora o autor realize uma separao entre as duas concepes de liberdade importante ressaltar que entre os dois

    conceitos coexiste uma ideia de distino, mas no necessariamente de contrariedade. Com efeito, a liberdade negativa

    poderia ser pensada como um limite liberdade positiva, de certo modo regulando o alcance desta, mas de forma

    alguma suprimindo-a. J a liberdade positiva poderia ser pensada como princpio de ao, por assim dizer, que visasse o

    incremento quer de maiores espaos de liberdade negativa quer, pura e simplesmente, da sua salvaguarda.

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    ocorra preciso reconhecer que nenhuma doutrina abrangente sozinha apropriada enquanto

    concepo poltica para um regime. Dessa forma, o nico critrio adequado para direcionar o

    exerccio do poder poltico e ordenar nossas sociedades repousaria na existncia de "uma

    constituio, cujos elementos essenciais se pode razoavelmente esperar que todos os cidados, em

    sua condio de livres e iguais, endossem luz dos princpios e ideais aceitveis para sua razo

    humana comum" (Rawls, 2000, p.182).

    Para Rawls, os princpios fundamentais expressos na constituio de uma sociedade poltica so

    os elementos primordiais capazes de garantir um bom ordenamento da diversidade e pluralidade das

    nossas naes contemporneas. por meio da centralidade e prevalncia de tais princpios em um

    consenso sobreposto, que um governo poltico assegura mais que a simples legitimidade

    procedimental democrtica, mas uma legitimidade que se fundamenta na garantia da justia aos

    cidados no contexto de prpria estrutura bsica da vida social. Nota-se, portanto, que de acordo

    com Rawls a legitimidade do liberalismo poltico constitucional - repousa na universalidade da

    Constituio e no no poder de Estado. Ela est ancorada aos elementos fundamentais que

    propiciam um contexto de equidade e justia entre os indivduos e preserva suas diferenas e o

    direito a terem costumes, crenas e concepes distintas entre si no plano da existncia privada.

    A expanso desse status universal de pertena a uma comunidade poltica forneceu os

    expedientes predominantes para equacionar, no plano simblico e poltico, as problemticas da

    subordinao poltica e da integrao social ao longo dos processos de alastramento da economia de

    mercado e de consolidao do Estado nacional. Mesmo em sociedades marcadas por diferenas

    socioeconmicas abissais, pela desigual efetivao do direito, pela vulnerabilidade dos direitos civis

    e por outras injustias simblicas, as tarefas da ordenao poltica e da incorporao social

    passaram pela edificao de tal cidadania homognea e privatizante (Lavalle, 2003). nesse sentido

    que se pode perceber um grave problema da perspectiva liberal. A tentativa de se evitar o conflito

    atravs da excluso das diferenas como constitutivas da esfera poltica perpassa os esforos de

    organizao em todas as esferas da vida social. A presuno de um espao pblico equitativo

    atravs das leis, do direito e das normas desconhece o fato de que ainda que ignoradas, as diferenas

    no desaparecem das relaes e prticas empreendidas no mbito poltico. A insistncia na

    neutralidade mascara as hierarquias, desigualdades e opresses que se reproduzem no espao

    pblico.

    A teoria feminista ao longo do sculo XX, nesse sentido, buscou romper com a neutralidade

    liberal, apontando exatamente o fato de que a naturalizao das prticas de opresso privada de

    homens sobre mulheres foram constantemente reproduzidas nas relaes polticas e de poder, o que

    durante muito tempo excluiu completamente a prpria considerao da mulher como digna do

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    status de efetiva igualdade e cidadania, alm de impossibilitar a prpria contestao e condenao

    dessas prticas de violncia e dominao na esfera privada (Pateman, 1989). A neutralidade liberal,

    nesse sentido, no ignora o fato da pluralidade no interior social, mas a exclui como parte integrante

    da possibilidade de constituio da esfera pblica. A dinmica entre pluralidade e unidade, nesse

    sentido torna-se compartimentalizada, ignorada, em detrimento de uma fico de harmonia e de

    coexistncia pacfica e igualitria dos indivduos no contexto poltico.

    O filsofo francs Jacques Rancire tambm realiza uma crtica importante a essa concepo

    de soberania consolidada nas experincias liberais modernas. Para o autor, a implantao de uma

    cidadania universal no contexto do liberalismo , de fato, o estabelecimento de uma poltica que

    subtrai a si mesma. Esse termo frequentemente utilizado na obra do filsofo indica que todo o

    aparato e estrutura de instituies, distribuio de direitos e concesso de benefcios sociais

    apresenta um objetivo especfico: a garantia de pacificao das tenses e contradies da vida em

    sociedade. A pacificao artificial da multiplicidade presente na experincia conjunta seria, para o

    autor, a realizao da utopia liberal de um possvel auto-ordenamento racional da esfera social, que

    se expressa no exerccio concreto de anulao de suas prprias divises e conflitos:

    The pacification of the political depends on a new sociality, described as an equality of conditions, which offers a truly providential solution to the regulation of

    the political-social relation. What the cleverest politician could never achieve [] is accomplished by the providential tendency for conditions to be equalized. (Rancire,

    2007, p.20).

    A igualdade de condies liberal, nesse sentido, teria como principal funo retirar as

    contradies do espao pblico (que acabam sendo concebidas como patologia social), por meio da

    prpria ordenao e normatizao das desigualdades. O controle e disciplina da multiplicidade

    caracteriza um contexto de vinculao coletiva no qual no h espao para o livre fluxo do dissenso.

    O deslocamento dos confrontos de ideias, modos de vida e experincias para o espao privado o

    movimento primordial realizado em sociedades liberais, que visam garantir assim, o predomnio da

    normalidade, da generalizao de um tipo de indivduo que vive em um permanente universo de

    liberdade individual, escolhas e consenso consigo prprio. Rancire denomina esse cenrio de

    controle e conteno como o domnio da polcia em contraposio prpria realizao da poltica.

  • 9

    A polcia, nesse sentido, seria uma constituio simblica do social que parte de uma

    premissa forjada de harmonia da vida em comunidade. O domnio policial se fundamenta na

    distribuio e produo de papis e funes, com atores exclusivos responsveis por colaborarem

    para a manuteno do ordenamento. A polcia no deixa espao para a tenso, j que nem mesmo

    reconhece as dinmicas e processos cuja origem encontra-se fora dessa ordem reconhecida e

    disseminada. Nesse contexto, a sociedade constituda por grupos dedicados a modos de ao

    determinados, em lugares especficos, com funes delimitadas. Nessa adequao de funes,

    lugares e modos de ser, no h espao para a contradio, para o paradoxo. na excluso daquilo

    que no aparece que se encontra o princpio fundamental da lgica da polcia e que marca as

    prticas estatais no contexto do liberalismo (Rancire, 2001).

    A democracia liberal, portanto, caracteriza-se por constituir seu princpio de soberania sobre

    a ideia de uma comunidade de indivduos agregados atravs de regras e instituies, que retiram e

    limitam constantemente o carter conflitivo e indeterminado da vida conjunta, buscando instituir

    um contexto racionalizado e aparentemente harmnico nas diversas esferas das relaes sociais. De

    fato, possvel identificar nas premissas liberais uma ideia de imanncia, ou seja, a concepo de

    que a sociedade, atravs de regras universais bem compreendidas, torna-se capaz de auto-organizar-

    se, garantindo assim uma valorizada estabilidade social4. Essa repulsa indeterminao e ao

    conflito, tal como expressa o modelo liberal de organizao social, o ponto de partida para

    entendermos a crtica de Claude Lefort tal perspectiva, bem como para analisarmos a concepo

    possvel de soberania desenvolvida pelo autor ao longo de sua obra.

    II - A soberania negativa de Claude Lefort

    Claude Lefort fundamenta-se na perspectiva fenomenolgica de Merleau-Ponty para

    desenvolver sua concepo do poltico e de sua viso a respeito da construo da soberania

    democrtica. Para ele, o poltico o processo pelo qual a sociedade representa e compreende a si

    mesma, de modo que a dimenso institucional que organiza e coordena as relaes sociais no pode

    ser a nica considerada e valorizada na dinmica de delimitao do demos. Isso significa que a

    dimenso simblica da representao poltica torna-se aspecto primordial para Lefort na construo

    do sentido de comunidade democrtica:

    4 Carl Schmitt (1927) um ator que aprofunda a crtica ao liberalismo principalmente a partir da ideia de imanncia.

    Para esse autor as sociedades liberais modernas esto destitudas de qualquer fundamento normativo claro; a lgica de

    sua organizao assenta-se sobre uma srie de tcnicas e processos que no proporcionam a existncia de qualquer tipo

    de identidade compartilhada, mas que promovem a mais intensa neutralizao. A lgica da neutralidade liberal,

    portanto, tornar-se-ia incapaz de qualquer justificao normativa da existncia emprica e se fecharia para a realidade

    concreta, apoiando-se na fico de que seria possvel abranger a totalidade das situaes concretas no interior dessa

    dinmica discursiva

  • 10

    A constituio do espao social, a forma da sociedade, a essncia do que era

    outrora nomeado por Cidade que est em causa com esse acontecimento. O poltico

    revela-se, assim, no no que se nomeia por atividade poltica, mas nesse movimento de

    apario e ocultao do modo de instituio da sociedade. (LEFORT, 1991, p.26)

    Se para o autor a categoria do poltico se expressa nos princpios que fundamentam a

    sociedade, assim como no que eles representam para a prpria comunidade, ento a construo da

    soberania democrtica , antes de tudo, fundada no esforo capaz de instituir a um modo de

    coexistncia especfico para essa forma de sociedade. A crtica de Lefort ao liberalismo ,

    portanto, pautada no argumento de que o espao poltico um espao dotado de sentido constitudo

    pelo prprio fato da associao coletiva e, por essa razo, no pode ser compreendido e organizado

    de modo a retirar esse elemento imprevisvel da experincia conjunta. A soberania democrtica

    precisa ser capaz de incorporar a dinmica conflitiva e agonstica presente na indeterminao do

    espao pblico. De acordo com Lefort, a tentativa de eliminao desses elementos, atravs da

    instaurao de uma sociedade absolutamente normatizada e harmonizada pelas instituies e

    direitos, gera uma supresso do poltico e, consequentemente, retira a possibilidade de instituio da

    democracia. O modo como as chamadas democracias liberais acomodam a questo da diversidade

    e das diferenas caracterizado por um processo constante de privatizao das mesmas. Desse

    modo, os indivduos so concebidos como unidades contbeis e a lgica agregativa de formao

    da vontade conforma uma ideia da soberania popular fragmentada, que de acordo com Lefort, no

    se preocupa com a delimitao do vnculo poltico propriamente dito e, por conseguinte, impede o

    estabelecimento de um processo de construo de uma soberania efetivamente democrtica, que

    possa abranger o confronto, promover a incluso e, principalmente, ser caracterizada pela

    indeterminao.

    Embora a crtica ao liberalismo tenha espao importante nas reflexes de Lefort, ela no a

    nica realizada pelo autor quanto concepo possvel de soberania no pensamento democrtico.

    Se por um lado, o autor critica a fragmentao e despolitizao promovidas pelo liberalismo, por

    outro, ele preocupa-se enormemente com a possibilidade republicana de materializao concreta da

    ideia abstrata de povo. Nesse sentido, embora seja necessria para a soberania democrtica a

    incorporao da imprevisibilidade fundante da diversidade, ela precisa tambm se afastar

    constantemente da busca por uma identidade fixa e totalizante da vontade popular. preciso nos

    determos nessa questo.

    Pensar a democracia na modernidade passa invariavelmente para Lefort, pela anlise da

    Revoluo Francesa, que para ele constitui o grande marco da prpria poltica moderna. De acordo

    com nosso autor, tal revoluo estabelece uma nova concepo de comunidade poltica. Baseada na

    gramtica republicana de Rousseau, os franceses lanam fora a concepo de soberania do rei e

    colocam em seu lugar a chamada soberania do povo. O corpo poltico, nesse sentido, deixa de ser

  • 11

    unido por uma fora transcendente e externa e passa a fundar sua unidade em sua prpria existncia

    enquanto povo. A premissa a de que um pacto de submisso no funda um governo legtimo, s

    legtimo o corpo poltico que institui a si prprio (Bignotto, 2010). Se na monarquia o rei era capaz

    de encarnar a identidade da coletividade, no moderno modelo republicano tal identidade torna-se

    desencarnada, ou seja, no h figura transcendente alguma capaz de constituir a unidade coletiva.

    Desse modo, a repblica emerge como um novo paradigma de compreenso da poltica,

    extinguindo de seu interior a possibilidade de fundar a unidade coletiva por qualquer instncia que

    se encontre fora da prpria comunidade.

    O problema nessa dinmica ocorre quando essa soberania popular torna-se consolidada como

    vontade absoluta do Estado: poder concreto e inquestionvel exatamente por ser considerado como

    uma representao substantiva da ideia de povo. Lefort delimita exemplarmente esse contexto

    atravs da anlise do terror revolucionrio ps-Revoluo Francesa. A anlise do discurso de

    Robespierre revela o tom primordial que norteia o processo revolucionrio francs - a imagem

    recorrente a de que a partir daquele momento funda-se a ptria, constitui-se o povo, de modo que

    so exatamente a ptria e o povo as instituies soberanas da nova constituio social. A fala desse

    revolucionrio - reproduzida por Lefort - desvela a lgica de que a vontade popular da ptria

    superior de qualquer indivduo: no, no queremos privilgios; no, absolutamente no queremos

    dolos (Lefort, 1991, p.82).

    O princpio da igualdade, nesse sentido, concretizado no fato de que no h indivduo algum

    capaz de se sobrepor vontade da nao. De fato, nas palavras de Robespierre h uma identidade

    profunda entre as instituies nacionais e o prprio povo, pois se h a instituio de uma unidade

    coletiva homognea, a ao dos lderes nada mais seria que um reflexo da vontade popular. Sendo

    assim, possvel entender o perodo do terror na Revoluo francesa como a tentativa de construo

    do fundamento simblico da nova repblica, fundamento esse estruturado na ideia de que a ptria,

    em sua igualdade profunda, que ocuparia o lugar do poder.

    notrio para Lefort que a associao concreta entre a soberania popular e o Estado cria um

    perigoso contexto no qual a pluralidade e liberdade democrticas so profundamente suprimidas e

    um fenmeno como o totalitarismo torna-se possvel. A soberania homognea, conformada pela

    vontade popular que se materializa no Estado, impede qualquer expresso divergente e autnoma

    por parte do indivduo, configurando um contexto de unidade implacvel. A questo que se coloca,

    portanto, a de como evitar tanto a privatizao liberal da vida poltica e ao mesmo tempo impedir

    a criao de um absoluto popular soberano? Como possvel, na perspectiva de Lefort, pensar a

  • 12

    lgica democrtica, se essa no apresenta nem uma definio fixa e unificadora, mas ao mesmo

    tempo no pode ser concebida fora da dinmica coletiva do poltico5?

    Para ele, a resposta para esse paradoxo passa pela compreenso do lugar do poder. De acordo

    com Lefort, a democracia baseia-se no fato de que o poder no apenas um espao ou funo

    institucional, mas antes de tudo uma categoria simblica. Esse seria o lugar da soberania popular e

    sua ocupao s poderia ser provisria e instvel.

    Reconhecemos a revoluo democrtica moderna, no melhor dos casos, por esta

    mutao: no h poder ligado a um corpo. O poder aparece como um lugar vazio e

    aqueles que o exercem como simples mortais que s o ocupam temporariamente ou que

    no poderiam nele se instalar a no ser pela fora ou pela astcia; [...] A democracia

    inaugura a experincia da sociedade inapreensvel, indomesticvel, na qual o povo ser

    dito soberano, certamente, mas onde no cessar de questionar sua identidade, onde

    esta permanecer latente. (LEFORT, 1987, p. 118)

    A soberania democrtica, a partir da perspectiva lefortiana, pode ser interpretada menos como

    um fundamento unvoco que sustenta o poltico e mais como uma constante vigilncia para que esse

    espao no seja simbolicamente ocupado de forma permanente por nenhum indivduo, grupo ou

    ideologia especfica. Para o autor, mais relevante do que buscar a representao ampliada dos

    diversos grupos e setores sociais no interior da vida pblica a garantia de que a vida coletiva ter

    preservada constantemente a dinmica do embate, do choque de opinies e de perspectivas diversas.

    Isso significa que a multiplicidade pulsante da vida social no pode ser limitada pela instituio de

    um modo de governo ou de um espao permanente de poder. Nas palavras do autor, a dinmica

    social em contextos democrticos dependeria da irrupo de um poder que, por mais dividido que

    esteja o povo, no se petrifique distncia, figure um alm da diviso de classe, deixe-a jogar,

    explore seus efeitos (Lefort, 1979, p.153). Longe de significar um desalento em relao

    democracia, o que essa concepo parece propor uma espcie de advertncia contra os perigos de

    tentar realiz-la num regime sem fissuras que superaria as divises e os conflitos sociais, que o

    autor v como constitutivos da prpria democracia (Oliveira, 2010).

    De fato, a democracia na perspectiva de Lefort se realizaria na indeterminao da poltica e da

    histria, isso porque o povo seria uma figura indecisa, mas pronta a se atualizar, avalista sempre

    latente da soberania, mas portando a ameaa de uma incontida afirmao de sua identidade. A

    permanncia do sentido da pluralidade democrtica nas sociedades modernas dependeria, portanto,

    5 O autor, inclusive, aponta que a perspectiva do poltico presente em Hannah Arendt, na qual a pluralidade o

    fundamento na constituio de um mundo em comum entre os indivduos, ignoraria uma compreenso mais profunda a respeito dos perigos da busca pela unidade coletiva. Embora o mundo em comum seja pensado pela autora como

    espao poltico de liberdade e novos comeos, Lefort aponta que importante no perdermos de vista os riscos que esse

    espao de poder poderia apresentar no processo de sua consolidao como espao institucional. A ideia a ser evitada

    para o autor do Povo-Uno, que de acordo com ele, representa o germe da prpria possibilidade totalitria.

  • 13

    do cuidado coletivo quanto preservao de um vazio simblico do lugar do poder, da criao de

    uma soberania negativa.

    Isso significa que o princpio de soberania popular no seria suficiente para a garantia de

    permanncia da democracia e seu horizonte de incluso e liberdade. Juntamente com a compreenso

    da democracia como poder de todos torna-se necessrio conceb-la como o poder de ningum. O

    que est em jogo nessa concepo o fato de que a tnue linha que separa o poder de todos de

    tornar-se um poder desptico s pode ser equilibrada quando o lugar do poder se mantm vazio:

    A democracia alia estes dois princpios aparentemente contraditrios: um de que o poder

    emana do povo; outro de que esse poder de ningum. Ora, ela vive dessa contradio. Por

    pouco que esta se arrisque a ser resolvida ou o seja, eis a democracia prestes a se desfazer ou j

    destruda. (LEFORT, 1987, p.76)

    necessrio, ento, que a prpria soberania popular no seja interpretada como uma fonte de

    poder unvoca. O poder do povo s efetivado porque o lugar simblico do poder coletivo nunca

    definitivamente ocupado. Isso significa que se em uma democracia a fonte de legitimidade o

    povo, a definio de quem esse povo se torna uma questo que nunca deve ser resolvida (Flynn,

    2005). Um corpo poltico democrtico uma comunidade em constante construo, nunca

    finalizada e sempre em movimento. A partir do momento em que define sua identidade, em que fixa

    sua unidade, perde seu carter aberto, plural e inclusivo, ou seja, perde sua identidade democrtica.

    Negar o conflito, extinguir a possibilidade da pluralidade representa para o autor o fim da prpria

    experincia conjunta como liberdade e autonomia. A nica soberania democrtica possvel, ento,

    seria aquela construda atravs da vigilncia por um lugar vazio do poder.

    interessante notar que essa perspectiva lefortiana apresenta uma inovao conceitual relevante

    em relao clssica dicotomia entre Liberalismo e Republicanismo. A soberania negativa torna-se

    categoria importante para pensarmos a delimitao de uma comunidade democrtica capaz de

    acolher a pluralidade e o confronto constante das diferenas. Porm, preciso ressaltar que embora

    a concepo do autor seja capaz de problematizar as principais categorias no interior da teoria

    democrtica moderna, ainda assim, ao nos aproximarmos de uma anlise mais crtica das

    democracias contemporneas possvel concluir que Lefort deixa em aberto uma questo das mais

    fundamentais e marcantes: o problema da excluso. O que pretendo defender no prximo tpico o

    fato de que a soberania negativa de Lefort no se remete ao fato da reproduo da invisibilidade de

    uma srie de grupos e minorias em nossas sociedades democrticas.

    A desconstruo da soberania popular absoluta no se mostra suficiente para lidar com as

    clivagens e opresses geradas na prpria delimitao da coletividade. Assim, mesmo que essa seja

    capaz de permanecer ativa e vigilante contra os abusos de uma vontade popular unificada, ainda

    assim, o aspecto negativo dessa soberania ignora a necessidade ativa da constituio de um

    processo de incluso constante. Nesse aspecto, cabe nos aproximarmos de algumas concepes

  • 14

    desenvolvidas no campo da teoria democrtica contempornea e, principalmente, da filosofia

    poltica de Jacques Rancire.

    III - A democracia contempornea e a soberania inacabada

    A produo em teoria democrtica nas ltimas dcadas vem adquirindo uma diversidade

    evidente de temas e autores que desenvolvem projetos pautados em concepes como a de

    radicalizao democrtica (Mouffe, 1992; Bohman, 1996), o papel da deliberao (Avritzer, 2012),

    bem como novas formas de participao e representao (Urbinati, 2006; Dryzek & Niemayer,

    2008). Em um contexto sociopoltico radicalmente distinto daquele que caracterizou grande parte

    do sculo XX, o debate estabelecido no interior do campo terico e prtico do pensamento

    democrtico passa a girar em torno das possibilidades inclusivas das democracias contemporneas,

    o que representa um ganho qualitativo e inovador para as reflexes e prticas no campo

    democrtico.

    No entanto, a centralidade das referidas discusses acaba por ignorar de forma frequente a

    importncia daquilo que Robert Goodin (2007) denomina de constituio do demos. Isso significa

    que antes de se pensar sobre formas de tornar a democracia mais abrangente, mais eficiente ou com

    maior qualidade de deliberao e participao, cabe ao pensamento democrtico atual um esforo

    mais aprofundado de reflexo a respeito dos parmetros e limites da prpria comunidade

    democrtica. A mxima que aponta que o povo no pode decidir at que seja decidido quem o

    povo (Jennings 1956, p. 56), implica no fato de que a democracia est invariavelmente relacionada

    a uma delimitao de suas prprias fronteiras. A prpria ideia de inovao da democracia, seus

    processos e instituies, precisa estar associada a um esforo de reflexo sobre as configuraes de

    soberania e os fundamentos que conferem legitimidade ao corpo democrtico:

    The legitimacy of the demos lies at the heart of democratic theory for two main

    reasons. First, the legitimacy of claims made in the name of the people depends not only

    on the decision-making process, but also on the subject making the decision. So if the

    legitimacy of the demos is questionable, the legitimacy of democratic decision-making is

    also undermined. Second, the legitimacy of the demos affects its right to exclude others.

    If the composition of the demos is arbitrary, its right to the self-determination of its

    members might not be valid. (Scherz, 2013, p. 01)

    A constituio do demos torna-se aspecto dos mais importantes para a teoria democrtica

    porque refere-se ao tema da legitimidade poltica e capaz de trazer em sua prpria definio a

    problemtica da excluso. Nesse sentido, por mais que as instituies e espaos deliberativos

    busquem estar abertos a todos ou mesmo que os processos de deciso poltica prezem pela

    transparncia e efetividade, ainda assim, h uma srie de grupos que estruturalmente no

    compartilham da linguagem que configura o espao pblico sendo, portanto, impedidos de se

    inserirem na lgica de constituio da prpria comunidade democrtica (Smith, 2010). As

  • 15

    possibilidades de participao no so as mesmas para todos e os modelos de ao e convivncia

    poltica so capazes de reproduzir e naturalizar desigualdades profundas que tendem a se

    intensificar na medida em que os critrios de cidadania impossibilitam a efetiva insero de todos

    na experincia poltica. possvel entender, portanto, que os parmetros de legitimidade esto

    diretamente associados ao fato da excluso, j que so eles que respondem questo de quem deve

    ser includo no demos e, consequentemente, que tipo de excluso pode ser aceita. Esse argumento

    talvez o ponto principal analisado por Jacques Rancire ao longo de sua obra.

    A soberania tal como pensada pelo autor tem como ponto de partida a noo de que os

    fundamentos do poltico encontram-se no choque das interpretaes possveis a respeito dos

    princpios a partir dos quais a comunidade delimitada. Cada indivduo apresenta uma perspectiva

    singular, interpretaes especficas, bem como uma vivncia nica dessa realidade conjunta. A

    poltica, portanto, marcada por uma partilha do sensvel, isto , a distribuio e disputa a

    respeito do posicionamento nico de cada sujeito perante essa realidade. A delimitao do sensvel

    encontra-se no nvel da compreenso da experincia - daquilo que comum a uma comunidade,

    suas formas de visibilidade e de organizao. Uma partilha do sensvel fixa, portanto, ao mesmo

    tempo, um comum partilhado e as suas partes exclusivas (Rancire, 2010). Na perspectiva de

    Rancire, as clivagens e desigualdades da esfera social e econmica no so passveis de serem

    apaziguadas, de modo que ainda que possamos delimitar uma realidade que seja comum a todos, tal

    realidade sempre marcada por um conflito profundo e existencial intransponvel. Como se v, a

    partilha do sensvel na perspectiva do autor implica tanto um comum quanto um lugar de

    disputas profundas por esse comum (Freitas, 2005).

    Nesse sentido, a poltica democrtica representa para Rancire exatamente o processo de

    reconhecimento e acolhimento do conflito e das contradies. O que o autor enfatiza que embora

    as desigualdades e hierarquias no deixem de se reproduzir e se naturalizar nas prprias bases da

    vida social (no h ordem alguma possvel capaz de impedir a produo constante de opresso e

    dominao, especialmente em um cenrio de aprofundamento do capitalismo), tais desigualdades

    no podero ser consolidadas ou fixadas na lgica democrtica: preciso no se cair na tentao

    do consenso6. Cria-se, portanto, um contexto de intensa luta e dissenso: a disputa por voz e

    visibilidade passa a ser um processo contnuo e ininterrupto. Para Rancire, essa ruptura inicial de

    natureza violenta, porm no uma violncia que imprime opresso, mas uma violncia transgressora

    que concede visibilidade aos invisveis, que d nome aos annimos, e que torna audvel o que

    antes era apenas percebido como mero barulho (Rancinre, 2007, p.85). importante ressaltar

    nesse ponto que, para o filsofo, a concesso de voz e visibilidade e o encontro da pluralidade na

    6 The political wrong does not get righted. It is addressed as something irreconcilable within a community that is always unstable and heterogeneous (Rancire, 2007, p.103).

  • 16

    esfera poltica nada tm a ver por um lado, com o compromisso racional entre interesses negociados

    e nem, por outro, diz respeito ao estabelecimento de uma vontade geral ou bem comum. O tipo de

    linguagem possvel ao movimento democrtico a do confronto agonstico, heterognio e instvel

    das expresses mltiplas e, por muitas vezes, irreconciliveis que compem esse domnio fluido e

    dinmico que conforma a concepo de povo.

    A soberania democrtica s poderia se referir realizao de um movimento contnuo e

    ininterrupto, com o intuito de trazer a pluralidade dos que esto de fora para a lgica da distribuio

    democrtica do sensvel, a qual o fim a igualdade. A democracia concebida como tipo possvel

    de partilha do sensvel capaz de desafiar critrios pr-estabelecidos em termos de papis e espaos

    sociais. De acordo com o autor, o povo o sujeito na democracia, porm esse povo no pode ser

    uma categoria delimitada a posteriori, por grupos especficos, que detm o monoplio da palavra e

    da ao. O povo o conjunto daqueles que so constantemente invisibilizados e que geralmente so

    desconsiderados. Para Rancire, povo refere-se ao suplemento que desconecta a populao de si

    mesma, que busca tornar visveis aqueles que esto invisveis, que toma como partes ativas da vida

    conjunta aqueles que no tm parte alguma.

    O que o autor aponta que a democracia a lgica poltica que traz tona as contradies e

    o conflito. O democrtico aparece na medida em que esse vazio - que desconecta parte do povo de

    si prprio, que torna invisvel as opresses e que cala os grupos marginalizados - tornado visvel,

    fazendo com que aqueles que antes estavam excludos, possam tornar-se sujeitos ativos na dinmica

    coletiva. Se para Claude Lefort, como analisamos anteriormente, o lugar do poder na democracia

    um lugar simbolicamente esvaziado, na concepo de Rancire, necessrio compreendermos que

    o sentido deste vazio s apresenta eficcia se constantemente trazido tona. Isso significa que

    um cenrio de soberania democrtica aquele que concede voz aos que so constantemente

    privados da mesma; que traz visibilidade pblica aqueles que esto excludos dessa esfera; que

    reconhece e aceita o confronto e as clivagens como a prpria matria prima que permite o

    desenvolvimento de uma experincia conjunta justa e emancipada.

    The art of politics is the art of putting the democratic contradiction to positive

    use: the demos is the union of a centripetal force and a centrifugal force, the living

    paradox of a political collectivity formed from apolitical individuals. (RANCIRE,

    2007, p.15)

    Percebe-se, portanto, que as categorias de igualdade e de emancipao surgem na obra de

    Rancire como elementos centrais da poltica e da democracia. A emancipao deve ser entendida

    aqui como uma prtica processual de afirmao da igualdade e ruptura com o funcionamento da

    desigualdade. O autor revela que a institucionalizao da desigualdade em nossas sociedades cria

    contextos nos quais grupos so silenciados e excludos permanentemente da prpria possibilidade

    de dizerem e aparecerem, enquanto, por outro lado, consolida-se a permanncia de critrios

  • 17

    exclusivos sobre quem so aqueles que podem povoar o espao pblico e ter papel ativo na partilha

    do sensvel.

    A democracia, portanto, pode ser concebida no pensamento do autor, como o processo de

    desvelamento daquilo que estava invisvel; o processo de alargamento constante e inacabado da

    esfera pblica e da prpria soberania. Expandir a soberania significa resistir contra uma repartio

    desigual do pblico e privado, que garante a dupla dominao da oligarquia no Estado e na

    sociedade. Enfim, a contribuio de Rancire concepo de comunidade democrtica a de que

    os limites da mesma, suas caractersticas, lutas e configuraes tm como ponto de partida

    exatamente a multiplicidade daqueles que ainda esto estruturalmente excludos dela7.

    Outro pensador francs, Pierre Rosanvallon, tambm vem nos ltimos anos analisando a

    questo da legitimidade democrtica e constituio do demos a partir do questionamento dos

    princpios que tradicionalmente ampararam os sentidos da soberania liberal e fundamentaram os

    limites excludentes da comunidade poltica no pensamento e experincias democrticas no sculo

    XX. E possvel identificar uma caracterstica em comum com a perspectiva de Rancire que de

    certa forma parece perpassar as concepes sobre a reconstruo da soberania e da legitimidade no

    pensamento de alguns autores em teoria democrtica recente. Tal caracterstica pode ser

    compreendida como a concepo de democracia e da comunidade democrtica como processo

    contnuo e inacabado.

    Para Rosanvallon, compreender as dinmicas e contornos do democrtico passa

    invariavelmente pela identificao da prpria noo de povo que fundamenta a lgica da

    experincia conjunta. Em sua obra Le peuple introuvable O Povo Inencontrvel, o autor ainda

    permanece prximo das ideias de Claude Lefort e realiza uma anlise de desconstruo dos sentidos

    que envolvem a ideia de povo. O argumento aqui o de que esse povo em que a soberania popular

    se baseia e para o qual todas as alternativas de institucionalizao da democracia devem dar voz,

    no pode ser encontrado. Seguindo os argumentos lefortianos, ele aponta que a soberania

    democrtica concebida de forma negativa, atravs do princpio de inacessibilidade da mesma.

    No entanto, Rosanvallon no se detm nesse argumento. O que ocorre que o processo de

    desconstruo do sentido da soberania, embora relevante para trazer tona a questo da

    constituio do demos, no capaz de explorar as alternativas possveis de configurao da

    7 interessante notar que essa concepo de Rancire pode ser localizada no interior dos debates atuais da teoria do reconhecimento. A nfase estrutura desigual e excludente o primeiro passo para a compreenso das injustias e desrespeitos que perpassam a convivncia e as prprias instituies no espao pblico. Dominao, nesse contexto,

    percebida como a depravao da voz. O que Nancy Fraser (2003) chama de paridade de participao seria o principal

    objetivo de um processo de reconhecimento pautado na busca pela independncia dos indivduos no espao pblico. A

    busca pela justia social dependeria de uma estrutura social capaz de impedir objetivamente que condies de excluso

    e privao fossem reproduzidas no mbito coletivo, de forma a negar meios e oportunidades s pessoas agirem como iguais diante de seus pares (Fraser, 2003, p.36).

  • 18

    soberania no contexto da teoria e das prticas democrticas contemporneas (Ingram, 2011). Por

    essa razo, Rosanvallon prope em obras posteriores uma anlise de reconstruo da legitimidade

    democrtica, que se afaste tanto da ideia de uma soberania popular unificada e unnime, como

    tambm do princpio majoritrio e agregativo do liberalismo, mas que ainda assim, possa se remeter

    a tal impasse a partir de uma perspectiva produtiva. Para o autor, a dinmica entre o povo como

    abstrao e as delimitaes concretas da comunidade poltica configuram uma tenso que no pode

    ser apaziguada pelo conceito de representao ou unidade, ao contrrio, um paradoxo capaz de

    por em movimento a sociedade democrtica atualizando as experincias de igualdade e incluso.

    Em Democratic Legitimacy, Rosanvallon aponta que parte da chamada crise de

    representao da democracia atual , de fato, uma crise de compreenso do democrtico, ou da

    dificuldade em se abrir mo de uma concepo unvoca e estabilizada dessa categoria. Nesse

    sentido, importante que a teoria saiba identificar o processo de diversificao da concepo de

    legitimidade democrtica em sociedades contemporneas. O ponto crucial levantado por ele diz

    respeito ao fato de que a premissa de democracia pautada na autoridade da maioria no faz o menor

    sentido em sociedades em constante pluralizao social. Isso porque a prpria concepo de maioria

    vista pelo autor como princpio frgil, provisrio e, por vezes at mesmo perverso. Alm disso, o

    autor identifica um movimento incessante de incluso e excluso poltica, de modo que as minorias

    parecem ser mais adequadas ao papel do sujeito democrtico na contemporaneidade:

    A ideia majoritria deixou de ser to inquestionvel tal como era quando se referia a

    um nmero crescente de indivduos aderindo busca pela expanso de direitos [...]

    Conceder uma autoridade ilimitada maioria significa deixar os indivduos

    particulares nas mos de um verdadeiro holocausto dos indivduos concebidos como

    massa. (Rosanvallon, 2011, p.71, traduo prpria)

    Para o autor, no possvel que as instituies bem como o prprio pensamento poltico

    permaneam alheios a essa transformao. Partindo desse contexto, o autor desenvolve uma anlise

    de trs alternativas complementares para pensarmos a configurao da legitimidade democrtica. O

    objetivo desse esforo propiciar uma concepo de soberania mais compatvel com a tenso e

    paradoxos que permeiam a experincia democrtica pluralizada e fragmentada da vida

    contempornea. O primeiro tipo seria o da legitimidade da imparcialidade, baseada em uma

    concepo de generalidade negativa. A legitimao imparcial aquela que materializa o ideal do

    poder de ningum lefortiano. Assim, a vigilncia, a transparncia e a responsabilidade quanto ao

    poder poltico seriam institucionalizadas atravs de autoridades e rgos pblicos independentes,

    que concretizariam um contexto imparcial de construo da vontade poltica que, exatamente por

    no adquirir contedo substantivo, propiciaria a constituio de um demos mais autnomo, tolerante

    e justo para lidar com as minorias.

  • 19

    No entanto, Rosanvallon afirma que a imparcialidade no substitui a poltica, de modo que

    dois outros tipos de legitimidade se fazem necessrias para uma adequada fundamentao da

    comunidade democrtica contempornea. Assim, o autor aproxima-se definitivamente da

    perspectiva de Jacques Rancire e prope a compreenso de uma legitimidade reflexiva e da

    legitimidade por proximidade. O primeiro termo refere-se superao da ideia majoritria como

    nica alternativa de produo de soberania popular, enquanto o segundo aponta uma generalidade

    construda via multiplicidade social. Ambas as categorias preocupam-se em desconstruir o princpio

    majoritrio como fonte nica de autoridade no exerccio da democracia. Nesse contexto, a ateno e

    reconhecimento s minorias e suas particularidades, adquire centralidade renovada na construo da

    comunidade poltica.

    O que Rosanvallon argumenta que o processo de reconstruo da soberania exige uma

    concepo atualizada de incluso poltica. Ao mesmo tempo em que se produz um contexto de

    esvaziamento definitivo do lugar simblico do poder, o autor defende a ideia de construo de um

    espao poltico de visibilidade e presena. Estar presente no indica aqui uma afirmao de

    identidades, mas representa o exerccio de trazer tona narrativas, opinies, formas de vida que so

    constantemente invisibilizadas pela prpria constituio da soberania. Ao invs de afirmao, as

    minorias precisam sair de uma condio de opresso para que possam ter a oportunidade mesma de

    se inserirem nesse espao pblico de palavra e ao (Arendt, 2007). Nesse sentido, o significado do

    povo redefinido. Ele no mais designa um grupo especfico, mas se refere a uma comunidade

    invisvel, cujo sofrimento ignorado, cuja histria no levada em considerao. O processo de

    emancipao s tem incio quando h um sentimento de ser ouvido e levado a srio perante a

    sociedade (Rosanvallon, 2011).

    Percebe-se aqui a concepo de que no h possibilidade de uma soberania definitiva no

    contexto da democracia. Mais do que buscar princpios de delimitao do poltico, busca-se um

    alargamento constante de seus limites, de modo a propiciar um espao pblico inclusivo, porm

    provisrio e inacabado, no qual as caractersticas e fundamentos da convivncia coletiva estejam

    sempre em aberto. A prpria noo de representao pode ser encarada a partir dessa perspectiva.

    Nadia Urbinati (2006) nos ltimos anos vem apontando para o fato de que o fundamento majoritrio

    de soberania popular precisa tambm ser superado na compreenso do exerccio da representao

    democrtica. Para a autora impossvel pensarmos em termos de consenso geral ao nos referirmos

    categoria de representao. As clivagens, desigualdades e hierarquias que se reproduzem na esfera

    das relaes humanas impedem a existncia de uma representao harmnica e unvoca do povo

    no espao poltico. S possvel pensar em representao quando essa concebida como categoria

    de expresso e promoo de um contexto constante de disputas e confrontos pblicos. A relao

    entre Estado e Sociedade concebida por Urbinati como um processo circular que continuamente

  • 20

    atualizado via representao permanente e criativa de ideias, perspectivas e opinies de uma

    soberania em disputa. A legitimidade democrtica , portanto, inacabada, est em construo e

    integra um processo ininterrupto de autorizao poltica, resgatando a centralidade da cidadania e

    suas mltiplas vozes:

    I call it a revision of popular sovereignty rather than a demolition [] it amplifies the meaning of presence itself because it makes voice its most active and consonant

    manifestation and judgment about just and unjust. One might say that political

    representation provokes the dissemination of the sovereigns presence by making it an ongoing and regulated job of reconstructing legitimacy. (Urbinati, 2006, p.25)

    Concluso

    A soberania democrtica s pode ser uma soberania inacabada. Qualquer tentativa de

    estabiliza-la j traz em si o potencial concreto de produo da excluso e invisibilidade, tal como

    nos revela perspectiva liberal hegemonicamente experimentada em nossas sociedades. No entanto,

    isso no quer dizer que o paradigma democrtico na contemporaneidade se esvazia de objetivo. De

    fato, o exerccio de construo e reconstruo da soberania pode ser rica fonte de inovaes e

    aprofundamento democrtico. Isso porque a multiplicao de sujeitos como parte ativa dos conflitos

    constitutivos do demos do experincia democrtica uma amplitude abrangente, capaz de atualizar

    os princpios de igualdade e autonomia.

    Isso no significa que a soberania seja incapaz de errar (para nos referirmos a Rousseau),

    nem que o processo sempre inacabado de constituio do demos imune reproduo de excluso

    e desigualdades: certo que nada garante tais resultados que estaro sempre submetidos ao fato da

    imprevisibilidade da poltica. O importante nesse contexto entender o povo como capaz de

    reconhecer suas opresses e, dessa forma, se esforar continuamente para super-las. A soberania

    vista como processo busca incorporar teoria poltica contempornea o princpio de que a

    comunidade em qualquer democracia sempre estar pautada em um fundamento de legitimidade

    que no e nem pode ser absoluto. Alcana-se, assim, uma compreenso de autodeterminao

    popular que no se estabelece a priori e nem unilateralmente, ao contrrio, disputada, tensa e

    muitas vezes contraditria, mas reconhece a diversidade, d voz s minorias e no cala os conflitos.

    Nessa perspectiva da soberania inacabada, mais importante do que qualquer tipo de

    afirmao identitria e mais importante do que a prpria mobilizao dos movimentos e lutas a

    maneira como o confronto entre as diferenas e a multiplicidade social configurado. A afirmao

    de indivduos sobre outros indivduos e de grupos sobre outros grupos inevitavelmente acarreta

    condies propcias para a disseminao de novos padres sociais de injustia e dominao. De

    acordo com James Tully (2004), necessrio que haja uma mudana de perspectiva ao pensarmos

    na construo da comunidade democrtica: sua finalidade a de propiciar um contexto no qual seja

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    continuamente possvel rearranjar as estruturas da gramtica coletiva. Esse rearranjo, no entanto,

    deve sempre estar pautado na troca multifacetada de ideias e perspectivas e deve sempre evitar

    concluses definitivas a respeito dos parmetros que regem a experincia conjunta. Assim, os

    limites do prprio demos precisam estar abertos e disponveis para o questionamento pblico, para

    que sempre as razes, argumentos, demandas e reivindicaes possam ser escutadas e consideradas

    por todos e, eventualmente, questionadas e novamente transformadas.

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