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Caso Aimée - Jacques Lacan

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Caso Aimée - Exame Clínico - História e quadro de psicose - Análise - Diagnóstico - Catamnésia - Paris – França - 1931

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Caso Aimée – Exame clínico

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Caso Aimée

Exame Clínico

História e quadro de psicose

Análise - Diagnóstico - Catamnésia

Paris – França - 1931

Compilação de Felix J Lescinskiene 2014

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O caso Aimée é a história de uma funcionária da fer-rovia, Margueritte Anzieu, que é presa e logo interna-da no hospital Saint-Anne após atacar uma importante atriz da época, Huguette Duflos, em 1932. Margueritte fracassa no ataque, ferindo apenas a mão da atriz. Aos cuidados do jovem psiquiatra, Marguerite vai con-tar sua história em sucessivas entrevistas e confiando a Lacan suas cartas e escritos. No estudo do caso Lacan cria um novo conceito diag-nóstico, o de “paranóia de autopunição”, a partir do fato de sua paciente ter se curado após cometer o ato de agressão contra a atriz. Na “paranóia de autopunição” Lacan mostra que ao atacar a atriz, na verdade, Aimée estava atacando a si mesma, ao seu Ideal de Eu. A tese de Lacan marca uma passagem da Psiquiatria à Psicanálise, pois nela vemos que Lacan vai buscar a explicação para explicar o caso, não na Psiquiatria e sim nos conceitos Freudianos.

“Minha paciente, chamei-a Aimée, era realmente muito tocante”

Lacan, 1970

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Caso Aimee - Exame Clinico

Historia e quadro de psicose - Análise - Diagnóstico - Catamnésia

Época - 1932 Local Paris - França

Paciente: Marguerite Anzieu Codinome Aimee 38 anos. Pais camponeses Tem duas irmãs e três irmãos. Começou a trabalhar com 18 anos Funcionaria da Fer-rovia. Casada e separada Tem um filho que vive com o marido Mora sozinha.

Marguerite Anzieu – 32 anos (1924)

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Ocorrência: A atriz Huguette Duflos é atacada na entrada do teatro Saint-Georges por uma funcionaria da ferrovia. Alegações: Falava coisas incoeren-tes. Há muitos anos a atriz vem zombando dela, fazendo escânda-los e a ameaçando.

Ficou dois meses presa e foi internada no Asilo de Sa-inte-Anne. Antes de se mudar para Paris, Aimée havia sido inter-nada na casa de saúde Épinay-sur-Seine, em 1924, a pedido de seu marido René Anzieu, lá permanecendo por seis meses.

Huguette Duflos

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Informações de laudos de internação anterior:

Distúrbios mentais que evoluem a mais de um ano;

As pessoas na rua lhe dirigem insultos grossei-ros;

Acusam-na de vícios extraordinários

As pessoas de seu meio falam mal dela;

Toda cidade de Melun está a par de sua conduta depravada;

O laudo ainda diz:

Fundo de debilidade mental;

Idéias delirantes de perseguição e ciúme;

Alucinações mórbidas;

Exaltação;

Incoerência na fala. Fatos anteriores: Saiu da clinica anterior "não curada" a pedido da famí-lia. Em seu dossiê constam dois registros policiais de cinco anos antes.

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Consta que um ano antes da primeira internação a-grediu um jornalista comunista ao qual assediou varias vezes para publicar artigos seus de queixas delirantes contra uma celebre escritora. Cinco meses antes do atentado, agrediu uma funcio-naria de uma editora a qual havia enviado um manus-crito que foi recusado apos vários meses de espera. Temas de seu delírio

Reduzidos em sua explanação;

Nunca apareceu perturbação do curso do pen-samento;

A lembrança dos temas delirantes provoca-lhe vergonha;

Sentimento de ridículo;

Sentimentos de remorso; Há ainda um terceiro plano analítico

Evocação emocional das crenças antigas;

"Eu fiz isto porque queriam matar meu filho";

Emprega uma forma gramatical direta e conti-da;

Em publico, atitude corporal sóbria e reservada com expressão patética;

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Preocupação com o divorcio e conseqüentemente a separação do filho que aparenta ser o único objeto de sua preocupação. Em anamneses anteriores foram observados maior confiança e jovialidade e em outras vezes desamino porem o humor sempre se mantém dentro dos pa-drões. Historia do delírio Resumidamente, aos 28 anos fica grávida. Reconhece em sua chegada a paris ter visto pelo me-nos duas vezes a atriz, sua vitima em teatro e cinema, porem não recorda com precisão os temas da peça e filme assistidos. Percepção de traços de amnésia em seus relatos Nesta época observava seus colegas de trabalho fala-rem mal dela. Pesadelos atormentavam seu sono, sonhava com cai-xões e mistura a perseguições diurnas.

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Um dia rasgou a facadas os pneus da bicicleta de um colega de trabalho e em outra vez jogou um ferro de passar em seu marido. Ficou grávida pela primeira vez e o bebe nasceu nati-morto por asfixia do cordão umbilical. Atribuiu a des-graça a seus inimigos. Comentou que durante seu período de gravidez ficava muito triste e melancólica. Em uma segunda gravidez volta seu estado depressi-vo, de ansiedade e interpretações análogas. Uma criança nasceu em junho do ano seguinte (a pa-ciente esta com 30 anos). Ela se dedica com extremo fervor aos cuidados da criança, que amamenta até os 14 meses. Neste período causa diversos escândalos com visinhos e outros. Decidiu mudar para os Estados Unidos e falsifica do-cumentos de aprovação do marido, manda pedido de demissão de ambos para a empresa que trabalhava e seu marido é informado por amigos da trama.

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A família intercede e interna a doente que escreve a um jornalista desconhecido para interceder em sua liberação da clinica, alegando que fizeram um complô contra ela. Seu delírio interpretativo continua incessantemente, aludindo todos os principais movimentos da atriz a fatalidades e desgraça, como a intenção da atriz de matar seu filho entre outras atrocidades. "Eu temia muito pela vida de meu filho"... "Poderia me tornar uma mãe criminosa". Outros personagens perseguidores surgem com a a-triz, mulher célebre, adulada pelo publico, bem suce-dida, vivendo no luxo, que é considerada por Aimee como uma Puta. Um escritor declarado também como seu perseguidor em seu delírio (primeiro perseguidor masculino) surge na historia depois de sua chegada a Paris. Chamado de P.B. a doente afirma não ter certeza de quando este começou a apoiar a atriz em persegui-la e difamar. (novos traços de amnésia). Contumaz leitora de romances contemporâneos asso-ciava personagens a si própria chegando a obrigar

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uma amiga a ler um livro que acreditava que contava sua historia, a qual a amiga afirmou não ter nada a ver com a doente. Em seu juízo, todos esses personagens, atores, artis-tas, poetas, escritores jornalista, são odiados coleti-vamente como grande infortúnio para a sociedade. "Trata-se de uma ralé, uma raça imprestável". Manifestações de megalomanias A doente se considerava capaz de contribuir para eli-minar todos os males da sociedade. Ela invectiva então a crueldade dos adultos, a falta de cuidado das mães frívolas. Ela fica alarmada, como dissemos, com a sorte futura dos povos. As idéias da guerra, do bolchevismo a freqüentam, e se misturam com suas responsabilidades para com o filho. Ela se crê destinada a salvar o mundo. A importância de seu papel em tudo isso é imensa, na medida mes-ma de sua imprecisão. Seus sonhos, de resto, não são puramente altruístas. Uma carreira de "mulher de letras e de ciências" lhe está reservada. As mais diversas vias lhe estão aber-

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tas: romancista já, ela conta também em "se especiali-zar em química". A medida que nos aproximamos da data fatal, um te-ma surge, o de uma Erotomania que tem por objeto o príncipe de Gales. Ela disse ao médico perito que, um pouco antes do atentado, havia em Paris grandes cartazes que infor-mavam ao Sr. P.B. que, se ele continuasse, seria puni-do. Ela tem, portanto protetores poderosos, mas pa-rece que os conhece mal. Com respeito ao príncipe de Gales, a relação delirante É bem mais precisa. Verificado em um caderno seu onde ela anota cada dia, com data e hora, uma pequena alusão poética e apaixonada dirigida ao príncipe de Gales. O quarto de hotel em que morava estava recoberto de retratos do príncipe; Assim constituído, e apesar dos surtos ansiosos agu-dos, o delírio, fato a destacar, não se traduziu em ne-nhuma reação delituosa durante mais de cinco anos.

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Novas situações Nos últimos oito meses antes do atentado, a ansieda-de está crescendo. Ela sente então cada vez mais a necessidade de uma ação direta. Ela pede a seu se-nhorio que lhe empreste um revólver e, diante de sua recusa, pelo menos uma bengala "para amedrontar essas pessoas", quer dizer, aos editores que zomba-ram dela. Ela depositava suas últimas esperanças nos romances enviados à livraria G. Daí sua imensa decepção, sua reação violenta quando eles lhe são devolvidos com uma recusa. É lamentável que não a tenham internado então. Ela se volta ainda para um derradeiro recurso, o príncipe de Gales. Somente nesses últimos meses é que ela lhe envia cartas assinadas. Ao mesmo tempo, envia-lhe seus dois romances, es-tenografados, e cobertos com uma encadernação de couro de um luxo comovente. Eles lhe foram devolvi-dos, acompanhados da seguinte fórmula protocolar.

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Buckingham Palace

The Private Secretary is returning the typed manuscripts which Madame A. has been good enough to send, as it is

contrary to Their Majesties' rule to accept presents trom those with whom they are not personally acquainted.

April. 193...

Este documento data da véspera do atentado. A doen-te estava presa, quando ele chegou. As atitudes Ela toma a resolução de se divorciar e de deixar a França com a criança. No mês de janeiro que precede ao atentado, ela manifesta suas intenções à irmã nu-ma cena em que demonstra uma agitação interior e uma violência de termos, dos quais sua irmã ainda conserva uma recordação de assombro. "É preciso, diz-lhe, que você esteja pronta para teste-munhar que André (seu marido) me bate e bate na criança. Eu quero me divorciar e ficar com a criança. Estou pronta para tudo, senão eu o matarei". Desde então, a doente está cada vez mais desvairada.

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Um mês antes do atentado, ela vai "à fábrica de armas de Saint-Étienne, praça Coquíllêre" e escolhe um "fa-cão de caça que tinha visto na vitrina, com uma bai-nha". Uma noite, um sábado às sete horas, ela se prepara para ir ter, como toda semana, com sua família: "Uma hora ainda antes deste infeliz acontecimento, eu não sabia ainda onde iria, e se não iria visitar, como de hábito, o meu garotinho." Uma hora depois, compelida por sua obsessão deliran-te, ela está na porta do teatro e ataca sua vítima. "No estado em que me encontrava então, disse mui-tas vezes a doente, eu teria atacado qualquer um dos meus perseguidores, se eu os pudesse atingir ou me encontrasse com eles por acaso". Com freqüência, estremecendo até, ela insistirá, dian-te de nós, na idéia de que teria sido capaz de atentar contra a vida de qualquer um desses inocentes. Nenhum alívio se segue ao ato. Ela fica agressiva, es-tênica, exprime seu ódio contra sua vítima.

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Sustenta integralmente sem arrependimentos. No presídio de Saint-Lazare Escreve ela ainda num bilhete de tom extremamente correto ao delegado no décimo quinto dia de sua re-clusão: "...gostaria de pedir-lhe para que fizesse retificar o juí-zo dos jornalistas a meu respeito, chamaram-me de neurastênica, o que pode vir a prejudicar minha futura carreira de mulher de letras e de ciências". "Oito dias após meu ingresso - escreveu-nos em se-guida, na prisão de Saint-Lazare, escrevi ao gerente de meu hotel para comunicar-lhe que estava muito infeliz porque ninguém quis me escutar nem acreditar no que eu dizia, escrevi também ao Príncipe de Gales pa-ra dizer-lhe que as atrizes e escritores me causavam graves danos." Confia longamente a suas companheiras de cárcere, as perseguições que havia sofrido. Suas companheiras aquiescem, encorajam-na e aprovam-na. "Vinte dias depois, escreve a doente, quando todos já estavam deitados, por volta das sete horas da noite,

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comecei a soluçar e a dizer que esta atriz não tinha nada contra mim, que não deveria tê-Ia assustado; as que estavam ao meu lado ficaram de tal modo surpre-sas que não queriam acreditar no que eu dizia, e me fizeram repetir: mas ainda ontem você falava mal de-la! - e elas ficaram estupefatas com isso.” Todo o delírio caiu ao mesmo tempo, "o bom como o ruim", diz-nos ela. Toda a fragilidade de suas ilusões megalomaníacas surge para ela ao mesmo tempo que a insanidade de seus temores.

Aimée entra no asilo vinte e cinco dias depois.

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Exames e antecedentes físicos

A estatura da doente está acima da média.

Esqueleto amplo e bem constituído.

Ossatura torácica bem desenvolvida, acima da média nas mulheres de sua classe.

Nem gorda nem magra.

Crânio regular. As proporções crânío-tacíaís são harmoniosas e puras.

Tipo étnico bastante bonito.

Ligeira dissimetria facial, que fica dentro dos li-mites habitualmente observados.

Nenhum sinal de degenerescência.

Nem sinais somáticos de insuficiência endócri-na.

Taquicardia branda quando de sua entrada, número de pulsações: 100.

A palpação revela um pequeno bócio, de natu-reza endêmica, pelo qual a mãe e a irmã mais velha são igualmente afetadas.

No período que precede a primeira internação, recebe tratamento para esse bócio (extrato ti-reoidiano).

Ela tomava essa medicação "sem seguir as pres-crições e em quantidades maciças".

Um mês depois de sua entrada, o pulso voltou a 80.

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A pressão dos glóbulos oculares, exercida du-rante um minuto, dá, no segundo quarto de mi-nuto, uma diminuição da freqüência a 64.

Durante vários meses conserva um estado sub-febril leve, criptogenético, de três ou quatro dé-cimos acima da média matinal e vespertina.

Contraiu, pouco antes de seu casamento, uma congestão pulmonar (de origem gripal - 1917) e suspeitou-se de bacilose.

Exames radioscópicos e bacteriológicos repeti-dos deram um resultado negativo.

A radiografia nos mostrou uma opacidade hilar à esquerda. Outros exames negativos.

Perdeu quatro quilos durante os primeiros me-ses de sua permanência, recuperou-os nova-mente, depois voltou a perdê-los.

Seu peso estabilizou-se há vários meses em 61 quilos.

Diagnóstico de sífilis do marido negativa.

Durante os primeiros seis meses de internação, interrupção das regras que eram normais até então.

Metabolismo basal medido repetidas vezes: normal.

Dois partos cujas datas anotamos.

Uma criança natimorto asfixiada por circular do cordão.

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Não se constatou anomalia fetal nem placentá-ria.

Diversas cáries dentárias por ocasião dos esta-dos de gravidez.

A doente tem uma dentadura postiça no maxi-lar superior.

Segundo filho, menino bem desenvolvido, boa saúde.

Atualmente com oito anos. Normal na escola. Assinalemos, quanto aos antecedentes somáticos, que a vida levada pela doente desde a sua estada em Paris:

Trabalhava no escritório das 7 às 13 horas.

Depois do expediente, estudava, percorrendo bibliotecas e lendo desmedidamente.

Caracteriza-se por um surmenage intelectual e físico evidente.

Ela se alimentava de maneira muito precária, escassa e insuficiente para não perder tempo, e em horas irregulares.

Durante anos, mas só depois de sua permanên-cia em Paris, bebeu cotidianamente cinco ou seis xícaras de café preparado por ela mesma e muito forte.

O pai e a mãe, camponeses, ainda vivem.

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A mãe é considerada na família como tomada por "loucura de perseguição".

Uma tia rompeu com todos e deixou uma repu-tação de revolta e desordem em sua conduta.

A mãe ficou grávida oito vezes: três filhas antes de nossa doente, um aborto espontâneo depois dela, e por fim três meninos, seus irmãos mais novos.

Destas oito gravidezes, seis filhos ainda estão vivos.

A família insiste muito quanto à emoção violen-ta sofrida pela mãe durante a gestação de nossa doente: a morte da filha mais velha se deveu, com efeito, a um acidente trágico. Ela caiu na frente de sua mãe, na boca de um forno aceso e rapidamente morreu em decorrência de quei-maduras graves.

Antecedentes de capacidade e fundo mental

Inteligência normal, acima das provas de testes utilizadas no serviço asilar.

Estudos primários bons. Obtém seu certificado.

Não é aprovada num exame destinado a enca-minhá-la para o ensino superior.

Não persevera.

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É admitida aos 18 anos, depois de um exame de admissão, na administração onde permaneceu;

Aos 21 anos alcança um ótimo lugar no exame público, o que assegura sua titulação e seus di-reitos.

Durante sua permanência em Paris é reprovada num exame de nível mais elevado;

Ao mesmo tempo preparava (aos 35 anos) seu exame de grau superior.

É reprovada três vezes.

Consideram-na em seu serviço como muito tra-balhadora, "pau para toda obra", e atribuem a isso seus distúrbios de humor e de caráter.

Dão-lhe uma ocupação que a isola em parte.

Uma sondagem junto a seus chefes não revela nenhuma falha profissional até seus últimos di-as em liberdade.

Muito pelo contrário, na manhã seguinte ao a-tentado, chega ao escritório sua nomeação para um cargo acima do que ocupava.

Descrevemos acima a redução atual de seu delí-rio.

Em suas respostas às entrevistas, ela se exprime com oportunidade e precisão.

A indeterminação e o maneirismo só se introdu-zem em sua linguagem quando a fazemos evo-car certas experiências delirantes, elas mesmas

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constituídas por intuições imprecisas e indizíveis logicamente.

Comportamento no asilo

Nenhuma perturbação na boa ordem do serviço hospitalar.

Diminui o tempo que poderia dedicar a seus trabalhos literários favoritos para executar inú-meros trabalhos de costura com que presenteia o pessoal do serviço.

Estes trabalhos são de feitura delicada, de exe-cução cuidadosa, porém de gosto pouco sensa-to.

Recentemente a designamos para o serviço da biblioteca o qual executou a contento.

Nas relações com as outras doentes, demons-trou tato e discernimento.

As anomalias do comportamento são raras.

Risos solitários aparentemente imotivados

Bruscas excursões pelos corredores. Estes fe-nômenos não são freqüentes e só foram obser-vados pelas enfermeiras.

Produções literárias

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Já evocamos ou citamos alguns escritos da doente. Vamos estudar agora as produções propriamente lite-rárias que ela destinava à publicação. Estes escritos nos informam sobre o estado mental da doente na época de sua composição; Permitem que possamos apreender ao vivo certos tra-ços de sua personalidade, de seu caráter, dos comple-xos afetivos e das imagens mentais que a habitam. Os romances (dois) foram escritos pela doente nos oito meses que antecederam o atentado, e sabemos em qual relação com o sentimento de sua missão e com o da ameaça iminente contra seu filho. O primeiro data de agosto-setembro de 193.. e foi es-crito, segundo a doente, de um só fôlego em onze se-manas. O segundo foi composto em dezembro do mesmo a-no, em um mês aproximadamente, "numa atmosfera febril".

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Os rascunhos e manuscritos que temos em nosso po-der se opõem à apresentação habitual dos escritos dos paranóicos interpretantes:

Maiúsculas iniciais nos substantivos comuns,

Sublinhas,

Palavras destacadas,

Vários tipos de tinta,

Todos os traços simbólicos das estereotipias mentais.

Em análise grafológica, destacou-se:

Cultura. Personalidade. Sentido artístico ins-tintivo. Generosidade. Desdém pelas coisas insignificantes e pelas intriguinhas. Nenhuma vulgaridade.

Fundo de candura, de virgindade de alma, com traços de infantilismo. Reações, sonhos, medos de criança.

Ímpeto interior, capaz de exercer influência. Agitação, com certo aspecto simpático. Am-bos, no entanto, Com uma qualidade mais Intelectual que afetiva.

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Grande sinceridade para consigo mesma. In-decisão. Voluntária apesar de tudo

Ternura. Muito pouca sensualidade. Acessos de angústia, que suscitam nela um certo es-pírito de maquinação, de possibilidades de maldade.

Fora dos acessos persiste na doente não uma hostilidade, nem uma desconfiança verda-deiras, e sim, antes, uma inquietude conti-nua, fundamental, sobre si mesma e sua si-tuação.

As duas obras têm valor desigual. A segunda traduz, sem dúvida, uma baixa de nível, tanto no encadeamento das imagens quanto na quali-dade do pensamento. Entretanto, o traço comum é que ambas apresentam uma grande unidade de tom e que um ritmo interior constante lhes garante uma composição. Lacan faz uma exaustiva releitura das obras buscando entender e obter fatos que possam esclarecer o com-portamento da doente.

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O Diagnostico Que diagnóstico fazer sobre uma doente como esta, no atual estado da nosografia? O que domina com muita evidência o quadro é o delí-rio sistematizado. Afastamos, desde o primeiro momento, os diagnósti-cos de demência orgânica, de confusão mental. Tampouco levaremos em conta o de demência para-nóide. Não se trata, é claro, de delírio crônico alucinatório. Devem-se deixar de lado igualmente as diversas varie-dades de parafrenías kraepelinianas. A paratrenia expansiva apresenta alucinações, um es-tado de hipertonia afetiva, essencialmente eufórica, uma luxúria do delírio, que são estranhos ao nosso caso. A parafrenia fantástica só apresenta mitos cósmicos, místico-filosóficos, pseudocientíficos, metafísicos, tramas de forças divinas ou demoníacas, que ultrapas-

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sam de muito em riqueza, complexidade e estranheza o que vemos em nosso delírio. Não se trata tampouco, em nosso caso, de parairenia confabulante, delírio de imaginação rico em inumerá-veis e complexas aventuras, em histórias de raptos, falsos matrimônios, trocas de crianças, enterros simu-lados, de que conhecemos exemplos muito belos. A psicose paranóide esquizofrênica, de Claude, deve ser deixada de lado pelas mesmas razões. Nossa paciente conservou nos limites normais a noção de sua personalidade; seu contato com o real manteve uma eficácia suficiente; a atividade profissional pros-seguiu até a véspera do atentado. Estes sinais elimi-nam tal diagnóstico. A partir daí, somos levados ao amplo quadro definido por Claude com o nome de psicoses paranóicas. Nosso caso, por sua sistematização, seu egocentrismo, seu desenvolvimento lógico a partir de premissas fal-sas, pela elaboração tardia dos meios de defesa, se enquadra perfeitamente dentro destes limites gerais.

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Transcrevamos, para terminar este capítulo, o laudo quinzenal que nós mesmos redigimos por ocasião da entrada da doente:

Psicose paranóica.

Delírio recente tendo chegado a uma tentativa de homicídio.

Temas aparentemente resolvidos depois do ato.

Estado oniróide.

Interpretações significativas, extensivas e concên-tricas, agrupadas em torno de uma idéia prevalen-te: ameaças a seu filho.

Sistema passional: dever a cumprir para com este.

Impulsões polimorfas ditadas pela angústia: dili-gências junto a um escritor, junto à sua futura víti-ma.

Execução urgente de escritos.

Remessa destes à Corte da Inglaterra.

Escritos panfletários e bucólicos.

Cafeinismo.

Desvios de regime.

Duas exteriorizações interpretativas anteriores, determinadas por incidentes genitais e comple-mento tóxico (tireoidina).

Atitude vital tardiamente centrada por um apego materno exclusivo, mas onde dominam anterior-mente valores interiorizados, permitindo uma a-

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daptação prolongada a uma situação familiar a-normal, a uma economia provisória.

Bócio mediano.

Taquicardia.

Adaptação à sua situação legal e maternal presen-te. Reticência.

Esperança. Esta síntese refere-se ao Capitulo II – Parte 1 do livro “Da psicose paranóica em suas relações com a perso-

nalidade” de Jacques Lacan.

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Lacan O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) foi um grande estudioso da mente humana. Interessado nos sintomas apresentados por paranóicos, obsessi-

vos, castrados ou psi-cóticos, no começo da carreira entrou em contato com pessoas perturbadas e que co-metiam crimes sem consciência dos acon-tecimentos.

Lacan graduou-se em medicina, especializou-se em psiquiatria e logo depois trabalhou na enfermaria es-pecial de alienados da Chefatura de Polícia, sob a dire-ção de Clérambault, um dos mestres da psiquiatria francesa da época, criador do conceito de "automa-tismo mental", de muita importância para o pensa-mento de Lacan. Na enfermaria onde Lacan trabalhou eram levadas pessoas que haviam cometido algum crime, mas que não poderiam ser responsabilizadas caso apresentas-sem um distúrbio mental. Foi nesse lugar que Lacan elaborou sua tese de psiquiatria "Da psicose paranóica

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e suas relações com a personalidade". Nela Lacan rela-ta o fato de alguns pacientes se curarem após comete-rem um crime. A partir dessa observação, Lacan pro-pôs um novo diagnóstico, denominado "paranóia de autopunição". A característica principal da paranóia de autopunição é o efeito de cura que um ato criminoso produz num sujeito que o comete em decorrência de um delírio. Apesar de ter recolhido muitos casos dessa manifesta-ção, Lacan escreveu sua tese fundamentando-se no Caso Aimeé, que se tornou o paradigma da paranóia de autopunição. Aimeé era uma mulher que pertencia à burguesia, uma funcionária pública fascinada por uma atriz famo-sa. Ela foi à saída do tetro onde a atriz trabalhava e atacou-a com uma navalha. A atriz teve os tendões das mãos cortados, e Aimeé foi então presa e levada para a clínica de Clérambault. A conclusão a que Lacan chegou foi que o que estava em jogo naquele caso era uma idealização patológica, a princípio pela irmã, depois pela atriz. Porém, as úni-cas noções que poderiam explicar a razão da conduta da paciente não estavam na psiquiatria: eram concei-

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tos que só existiam na psicanálise. No caso, o concei-to de Superego. Logo em seguida, em 1933, Lacan publicou dois tex-tos: "O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência" e "Motivações do crime paranóico: o crime das irmãs Papin", sendo este o relato do caso de duas irmãs, empregadas do-mésticas em Paris, que em certo dia, por um motivo fútil - a falta de luz em casa - mataram e esquarteja-ram suas patroas. Ao publicar esse texto, propondo as razões do crime paranóico, Lacan avançou em relação à sua tese ante-rior: a concepção de que o outro é o que o criminoso quer ser, então, ele tem de anular o outro para que possa existir - caso contrário, se perde nesse outro. Segundo Lacan, o que provocou o crime foi a realiza-ção de fantasias de estripação, fantasias que Lacan chamou de "corpo despedaçado". Assim como Freud descobriu as fantasias neuróticas, Lacan evidenciou as "fantasias paranóicas", porém di-rá que todos têm essas fantasias, e o paranóico seria o sujeito que as coloca em prática.

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Quem foi de fato Marguerite Anzieu Breve Biografia

A história do caso Aimée, narrada por Jacques Lacan em sua tese de medicina de 1932, “Da psicose para-nóica em suas relações com a personalidade”, ocupa na gênese do lacanismo um lugar quase idêntico ao do caso Anna O. (Bertha Pappenheim) na construção da saga freudiana. Foi Élisabeth Roudinesco quem revelou pela primeira vez, em 1986, a verdadeira identidade dessa mulher, e depois reconstruiu, em 1993, a quase totalidade de sua biografia, a partir do testemunho de Didier Anzieu e dos membros de sua família. Sob esse aspecto, a história desse grande caso prin-ceps ilustra esplendidamente o quanto os “doentes”, do mesmo modo que os médicos que os tratam, são atores de uma aventura sempre dramática, na qual se tecem laços genealógicos de natureza inconsciente. Marguerite Pantaine provinha de uma família católica e interiorana do centro da França. Criada por uma mãe que sofria de sintomas persecutórios, sonhou desde muito cedo, à maneira de Emma Bovary, sair de sua situação e se tornar uma intelectual.

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Em 1910, ingressou na administração dos correios e, sete anos depois, casou-se com René Anzieu, também funcionário público. Em 1921, quando grávida de seu filho Didier, começou a ter um comportamento estranho: mania de perse-guição, estados depressivos. Após o nascimento do filho, instalou-se numa vida dupla: de um lado, o uni-verso cotidiano das atividades de funcionária dos cor-reios, de outro, uma vida imaginária, feita de delírios. Em 1930, redigiu de uma só vez dois romances que quis mandar publicar, e logo se convenceu de estar sendo vítima de uma tentativa de perseguição por parte de Hughette Duflos, uma célebre atriz do teatro parisiense dos anos 30. Em abril de 1931, tentou matá-la com uma facada, mas a atriz se esquivou do golpe e Marguerite foi in-ternada no Hospital Sainte-Anne, onde foi confiada a Jacques Lacan, que fez dela um caso de erotomania e de paranóia de autopunição. Didier Anzieu filho de Marguerite Anzieu foi um céle-bre psicanalista francês. Nasceu em Melun, França, em 8 de Julho de 1923 (viveu ate 1999 sendo que des-

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de 1990, sofria de Parkinson). Em função da irmã na-timorta teve grande atenção dos. Perturbações pela imago paterna e depressão da mãe teve que ser criado pela tia materna. Chegou à psico-logia depois de cursar filosofia, na Sorbonne. Defen-deu tese de doutorado abordando a auto-análise de Freud e seu papel na criação da psicanálise. A continuação da história de Marguerite Anzieu é um verdadeiro romance. Em 1949, seu filho Didier, havendo concluído seus es-tudos de filosofia, resolveu tornar-se analista. Fez sua formação didática no divã de Lacan, enquanto prepa-rava uma tese sobre a auto-análise de Freud sob a ori-entação de Daniel Lagache, sem saber que sua mãe tinha sido o famoso caso Aimée. Lacan não reconheceu nesse homem o filho de sua ex-paciente, e Anzieu soube da verdade pela boca da mãe, quando esta, por um acaso extraordinário, em-pregou-se como governanta na casa de Alfred Lacan (1873-1960), pai de Jacques. Os conflitos entre Didier Anzieu e seu analista foram tão violentos quanto os que opuseram Marguerite a

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seu psiquiatra. De fato, ela acusava Lacan de havê-la tratado como um “caso”, e não como um ser humano, mas censurava-o, sobretudo por nunca lhe ter devol-vido os manuscritos que ela lhe confiara no passado, quando de sua internação no Hospital Sainte-Anne. Marguerite passou 12 anos consecutivos hospitalizada sem nenhum outro ato de violência ou conduta que pudessem ser considerados socialmente inaceitáveis. Documentos recém-descobertos descrevem-na duran-te o período de internação como “calma”, uma “boa trabalhadora” que solicitava com freqüência sua alta. Ela foi transferida do Sainte-Anne para o Ville-Évrard em 1938 e liberada de lá em 1943, havendo assumido uma série de empregos como doméstica e faxineira, sem nunca mais chamar a atenção da psiquiatria ou da lei. Morreu em 1981 com 89 anos. Didier Anzieu deixou uma obra psicanalítica importan-te, desenvolvendo o conceito de ego-pele e estudou muito os grupos, apoiando-se especialmente nos tra-balhos de Wilfred Ruprecht Bion.

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