Carlo Severi - Xamanismo Kuna

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  • 8/8/2019 Carlo Severi - Xamanismo Kuna

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    O vnculo entre os vrios tipos de narrativa e a construo de memrias

    sociais tornou-se bvio para historiadores, antroplogos e cientistas

    sociais em geral, com os trabalhos de Paul Ricoeur, dentre outros autores.Se, como Ricoeur argumentou brilhantemente, narrar uma histria no

    apenas um modo de record-la, mas tambm um meio para refigurar a

    nossa prpria experincia de tempo (Ricoeur 1983:9), a narratividadedeve ser considerada no somente como um estilo literrio particular,

    mas tambm como uma forma de existncia da prpria memria1

    . Combase nessa perspectiva muitos historiadores, assim como alguns psiclo-

    gos (White 1973; Bruner 1990), tm sido tentados a argumentar quenenhuma memria imaginvel sem um arcabouo narrativo.

    A relao da memria social com as imagens menos clara. Ao lon-

    go de quase toda a sua vida, Aby Warburg (1932) tentou esboar umateoria geral da memria social baseada tanto em imagens quanto em tex-

    tos. A nfase que ele colocou nas relaes complexas entre smbolos

    visuais e significado, na necessidade de considerar uma pintura ou umobjeto esculpido como um mero elemento em uma srie de representa-

    es que devem envolver necessariamente aes rituais, textos, tradies

    orais ou at simples imagens mentais, bem como sua viso a respeito daanlise da memria social como um meio para estudar a vida social dos

    smbolos, certamente so passos decisivos que apontam na direo de

    uma nova abordagem dessa questo.

    Entretanto, as idias de Warburg sobre a memria social foram pou-co exploradas desde a sua morte e, pelo menos no campo da antropolo-

    gia social, ainda h muito por fazer para que seja possvel compreender

    como uma tradio cultural pode basear-se em imagens2.Um terceiro problema envolvido no tema deste artigo refere-se

    representao da experincia traumtica. A anlise do trauma como um

    fenmeno que afeta a percepo e a memria, e como um processo psi-

    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO:

    DA IMAGEM DE HOMENS EMULHERES BRANCOS NA TRADIO

    XAMNICA KUNA

    Carlo Severi

    MANA 6(1):121-155, 2000

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    colgico que gera sintomas dolorosos, foi obviamente um dos primeirospassos para a descoberta do inconsciente por Freud. Todavia, como Freud

    apontou desde logo em sua obra, o trauma no provoca apenas reminis-cncias dolorosas. Ele pode colocar em perigo a prpria memria, enquan-to processo estreitamente relacionado com a construo (e a sobrevivn-

    cia) do Ego. Nesses casos, nenhuma histria sobre a experincia traum-

    tica pode ser contada, uma espcie de lacuna, ou uma imagem enigmti-

    ca, aparece conscincia como um substituto complexo e persistente-mente enganoso da reminiscncia (Freud 1965[1917]:275). Assim, qual-

    quer tentativa de reconstruo de uma representao narrativa do passa-

    do (seja ela fiel ou no) tem que lidar com imagens desse tipo.O ponto crucial aqui precisamente a relao entre imagem e nar-

    rao. De um ponto de vista metapsicolgico, a emergncia dessas ima-

    gens como traos mnmicos parece substituir, se no mesmo evitar, a nar-rao da reminiscncia. Como resultantes de um processo psicolgico,

    elas parecem ser mais efetivas que a linguagem, uma vez que registram

    alguns aspectos da recordao em situaes nas quais nenhuma palavra

    pode ser dita. Entretanto, o fato de elas testemunharem algumas elabo-

    raes psicolgicas da reminiscncia, no significa que revelem mera-mente a verdade dos fatos recordados. Essas imagens impedem justa-

    mente a transformao da experincia subjetiva do tempo em uma nar-rao (rcit) que , segundo Ricoeur, uma das etapas decisivas para a

    formao da memria (Ricoeur 1985:9).

    Que essas representaes devem ser tratadas como traos mnmicose no como representaes precisas, foi uma das primeiras descobertas

    atribudas teoria psicanaltica dos sintomas. Desde ento (a saber, des-

    de a sua famosa refutao da teoria da seduo), como Freud escreveumagistralmente, a realidade psicolgica interna deve ser diferenciada

    dos fatos histricos externos.

    Contudo, a mesma realidade psicolgica que Freud ops aos fatos

    externos, em seus primeiros anos de pesquisa, foi reconhecida por ele,em seus estudos posteriores, como uma das foras mais poderosas atuan-

    do na vida das sociedades. A relao entre a obra de Freud e a pesquisa

    antropolgica deste sculo no foi fcil, com poucas excees3. Nenhuma

    traduo direta das teorias psicanalticas no campo dos fenmenos cultu-

    rais provou ser de fato frutfera, e no poderamos negar que, nesse con-

    texto, muitas questes permanecem sem respostas, e muitos problemas,insolveis. Entretanto, seria igualmente difcil negar que algo muito seme-

    lhante aos traos sociais mnmicos relacionados tambm com a tare-

    fa de representar o trauma e de testemunhar uma complexidade similar

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    encontrado em prticas normalmente associadas memria social. Asprticas rituais, em particular, so situaes nas quais a representao de

    experincias traumticas extremas, por vezes to difceis na vida coti-diana, pode ser efetivamente expressa e, desse modo, inscrita atravsde mecanismos ainda inexplorados na memria de uma sociedade.

    A questo : como a recordao de uma crise coletiva, de um trauma

    social, pode ser inscrita na memria de uma sociedade? Como uma tradi-

    o ritual pode representar o trauma social como uma experincia? Paradiscutir este ponto, vou abordar uma transformao relativamente recen-

    te da tradio xamnica dos ndios Kuna do Panam: a inveno de um

    esprito representando, em termos sobrenaturais, a interferncia do maispoderoso dos inimigos tradicionais da sociedade kuna, o Homem Branco.

    A histria do encontro entre o Homem Branco e os Kuna foi brilhan-

    temente resumida por James Howe (1997): habitando uma regio degrande importncia estratgica, os Kuna viram-se enredados em esque-

    mas e guerras de outros povos, tentando negociar com ou aliar-se a um

    dos lados sem abrir mo de sua independncia. Repetidamente missio-

    narizados e subjugados, a cada vez rebelaram-se e libertaram-se, at

    mesmo no sculo XX (Howe 1997:85). Desde o comeo do sculo XVI,os Kuna resistiram bravamente s diversas tentativas de colonizao.

    Muitas histrias da tradio oral kuna falam dos episdios notveis dessasucesso de agresses externas, tentativas de controle de seus territrios e

    insurreies contra os espanhis, os escoceses e, mais recentemente, a pol-

    cia panamenha. Para dar uma idia da intensidade da tragdia kuna, Howeescreve que durante a ltima metade do sculo XVIII quando, [...] depois

    de aproximadamente trs sculos de guerra, a paz finalmente chegou a

    Darien [...], a guerra e as epidemias tinham reduzido a populao indge-na pela metade, a cinco mil pessoas aproximadamente (Howe 1997:89).

    Devemos mencionar que, depois de um sculo de relativa calma,

    outros Brancos (garimpeiros, comerciantes, missionrios e autoridades do

    novo Estado do Panam) tentaram controlar o territrio kuna. Os Kuna,mais uma vez, resistiram a essa invaso e contra-atacaram, at o Tratado

    que sucedeu o conflito armado de 1925 contra as foras panamenhas.

    Este Tratado garante at hoje aos Kuna sua precria, e arduamente con-quistada, autonomia poltica, e representa para os ndios, dado o contex-

    to histrico, uma notvel conquista. Entretanto, no se deve esquecer que

    os ndios americanos, particularmente os da Amrica Central, tm convi-vido com o Homem Branco h vrios sculos. Mesmo quando, como no

    caso kuna, eles tm sido capazes de rechaar efetivamente um contato

    fsico destrutivo, os ndios ainda sustentam que a presena hoje inevit-

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    vel do Homem Branco dilacerou seu mundo, perturbando o equilbrio deforas que o regula. Sejam quais forem as transformaes no direta-

    mente produzidas pelas repetidas expedies militares, espanholas ououtras, elas esto ligadas agora a essa certeza obsessiva e profundamen-te enraizada de que algo se rompeu. A memria desse passado traumti-

    co, durante o qual a sociedade kuna correu seriamente o risco de desa-

    parecer, permanece viva e pode ser expressa de modo inequvoco e dire-

    to; como no discurso do chefe kuna Leonidas Valds, proferido em 1922,sobre o Descobrimento da Amrica:

    Quando os europeus chegaram aqui disse o chefe eles abusaram dens, como vocs esto vendo. Eles espancaram nossos avs, eles mataram

    nossos avs, eles violaram nossas avs, como vocs esto escutando. Eles

    chegaram aqui e mataram nossos sbios. Agora, ento, eles dizem: celebrem

    esse dia... eles esto vindo para celebrar o dia da morte dos nossos avs e

    avs. Agora, ento, ns estamos sentados aqui... Ns nos sentamos aqui sen-

    tindo nossa dor (Salvador 1997:101).

    Veremos que, na tradio xamnica, a recordao desse passado e osentimento dessa dor podem ser expressos de modo mais indireto, embo-

    ra igualmente tocante, por meio da criao de imagens rituais.O grande antroplogo sueco E. Nordenskild, durante sua expedi-

    o de 1927 entre os Kuna, coletou muitos objetos interessantes, agora

    includos nas preciosas colees do Museu Etnolgico de Gotemburgo.Entre esses objetos existe uma srie de estatuetas, esculpidas em pau-

    de-balsa, que representam os espritos auxiliares. Essas imagens, usa-

    das pelos especialistas kuna na recitao de cantos dedicados terapiade vrias enfermidades, representam freqentemente pssaros, tartaru-

    gas-marinhas e outros animais. s vezes, elas possuem uma vaga forma

    antropomrfica, representando alguns dos seres sobrenaturais da mitolo-gia kuna (Figura 1). Assim como em outras tradies indgenas america-

    nas, essas imagens so evocadas e solicitadas a ajudar durante rituais de

    cura. Entretanto, algumas dessas figuras kuna so mais surpreendentes

    (Figuras 2 e 3), pois representam pessoas usando camisa, cala, chapu eat gravata. Resta pouca dvida de que, mesmo sendo utilizadas pelos

    xams como espritos auxiliares nas suas viagens sobrenaturais, elas

    representam o Homem Branco.Essa representao do Branco como um esprito auxiliar do xam

    kuna (confirmada por vrias fontes recentes4, incluindo meu prprio tra-

    balho de campo) surpreendente, e tem sido analisada de diversos

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    modos. M. Taussig, por exemplo, identificou entusiasticamente nessasestatuetas uma espcie de vingana simblica da sociedade kuna contra

    os invasores Brancos. Essa interpretao, que pode parecer surpreenden-te primeira vista, na verdade muito comum, sendo freqentemente

    aplicada a outras situaes de contato cultural. Manipulando a imagem

    do Branco, argumenta Taussig, o xam kuna torna-se simbolicamentecapaz de capturar o poder dos seus antagonistas, exatamente como o

    sacerdote vodu, ou um possudo Songhay, que captura o poder de um

    padre catlico ou de um administrador francs tomando sua imagem e,assim, tornando-se similar a ele (Mtraux 1958; Stoller 1984; 1989)5.

    Usando a imagem de um Inimigo paradigmtico em um contexto de

    magia simptica, Taussig argumenta que os Kuna encontraram ummodo de assimil-la. Isto, certamente, verdadeiro, e meu prprio traba-

    lho sobre o canto devotado terapia daquilo que os Kuna chamam de

    loucura pode confirmar esse ponto (Severi 1993).Os problemas surgem quando Taussig atribui tradio xamnica a

    inteno de expressar o fato de que o eu no est mais separado do seu

    Outro, pois agora o eu est inscrito no Outro do qual ele necessita para

    definir, por contraste, a si mesmo (Taussig 1993:252). Taussig conclui,reconhecendo nessas estatuetas kuna (e em particular nas imagens que

    eu analisei em um artigo sobre o ritual kuna de representao da dor

    [Severi 1987]) a ilustrao daquilo que tem sido chamado de condio

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    Figura 1. Alguns exemplos de estatuetas representando os ajudantes

    ou espritos auxiliares do xam kuna.

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    Figura 2. Estatuetas representando os espritos auxiliares do xam kuna

    como homens e mulheres brancos.

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    ps-moderna, o reino virtualmente indisputvel da cadeia-imagem nocapitalismo tardio onde a mercantilizao da natureza, tanto quanto a

    reproduo mecnica e uterina, se vincula a uma variedade de modos desimulao e consumo de poder (Taussig 1993:251).

    Taussig apresenta sua interpretao como parte de uma reflexo

    sobre as idias de Benjamin a respeito da mimsis e sobre o que ele cha-

    ma de histria fabulosa dos sentidos (Taussig 1993:252). Sua anlise

    no se prope a ser parte de uma velha antropologia, supostamenteprxima ao fim, como ele alega repetidamente (Taussig 1993:238), e

    que, de qualquer maneira, j teria inevitavelmente perdido o fulcro da

    questo. Entretanto, sua interpretao de que a representao doHomem Branco um simples ato de magia simptica, simplifica dema-

    siadamente os fatos kuna. No contexto nativo, o Homem Branco no

    apenas um smbolo de poder; ele simboliza, igual e simultaneamente,ansiedade, incerteza, sofrimento mental e at mesmo loucura (Severi

    1981; 1993). A tradio kuna representa os Brancos no apenas como

    poderosos videntes vindos de fora para se tornarem auxiliares mgicos

    do xam na sua tentativa de curar vrias doenas, mas tambm como

    demnios terrveis que aparecem apenas nos sonhos (Severi 1993). Comoveremos detalhadamente aqui, a ambivalncia dessas imagens, sua

    representao paradoxal dos valores positivos e negativos atribudos aalguns seres sobrenaturais, constitutiva da sua natureza. A contradio

    o prprio modo de existncia dessas imagens.

    Taussig tem razo ao enfatizar o carter irnico e at mesmo cmicodessas estatuetas. Contudo, est claro que ns no temos aqui um retra-

    to jocoso e cotidiano dos Homens Brancos, do mesmo tipo estudado por

    Keith Basso (1979) entre os Apache ocidentais. Essa representao rituale, portanto, parte constitutiva de um contexto religioso. Essas estatue-

    tas no representam simplesmente o povo Branco, elas retratam os

    Brancos como transformados em seres sobrenaturais kuna.

    bvio que essas representaes esto ligadas, de certo modo, memria dos conflitos histricos entre ndios e Brancos. Entretanto, histo-

    riadores e antroplogos tiveram dificuldade em compreend-las nesses

    termos, devido a duas razes principais: enquanto seu uso ritual comoauxiliares nos rituais teraputicos evidente (e, posteriormente, ire-

    mos descrever detalhadamente seu uso), elas no parecem estar clara-

    mente conectadas a narrativas relacionadas aos conflitos histricos comos Brancos. O ponto crucial, todavia, que essas imagens parecem ser

    definidas em termos contraditrios. Vistos a partir da perspectiva kuna,

    os Brancos so concebidos tanto como videntes (nelekan), que supos-

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    tamente auxiliam a cura xamnica, quanto como espritos animais pato-

    gnicos (nias), que atacam os homens e as mulheres kuna e os deixam

    doentes. Em conseqncia disso, a tentao de considerar essas repre-sentaes como esprias, marginais ou anedticas tem sido forte.

    Na verdade, imagens desse tipo foram com freqncia consideradas sin-

    tomas de uma decadncia das tradies indgenas ou at mesmo signode submisso simblica mudana cultural (ou seja, dominao) pro-

    vocada pelos Brancos. Em outras palavras, considera-se que esse tipo de

    representao aponta na direo da modernizao: um processo queimplica esquecimento social e a perda da identidade tnica indgena.

    Eu gostaria de mostrar que essa interpretao das estatuetas kuna

    profundamente enganosa, do mesmo modo como ilusrio ver nelas

    representantes de um esprito ps-moderno consciente, como Taussigtentou fazer. Uma vez reconstrudo seu contexto, essas imagens parado-

    xais podem ser vistas, inversamente, como um exemplo daquilo que Aby

    Warburg chamou de engramas de memria social: o resultado de umprocesso de lembrana ritual no qual podemos seguir, quase passo a pas-

    so, o modo pelo qual uma tradio xamnica consegue simbolizar uma

    situao de crise.

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    Figuras 3. Estatuetas representando os espritos auxiliares do xam kuna

    como homens e mulheres brancos.

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    O esprito do branco kuna6

    Atualmente, na tradio xamnica kuna, o Esprito do Branco aparececomo um ser perigoso, que ataca as pessoas noite, enquanto elas so-nham, e as transforma em locos (loucos). Os Kuna narram a histria des-

    sa locura (loucura) da seguinte forma: quando os seres humanos, homens

    ou mulheres, so tomados pela loucura, emitem o chamado de caa do

    jaguar, cantam a cano de um pssaro, rolam no cho como cobras, exi-bem seus rgos sexuais como fazem os macacos. Aqueles que so aco-

    metidos pelo primeiro acesso de loucura se despem inesperadamente do

    seu status de seres humanos. De fato, para os Kuna, tanto esse acesso deloucura, quanto o delrio concomitante, so sempre signos da presena

    de um discurso animal em um corpo de ndio.

    Por trs dessa imagem de delrio, incansavelmente repetida, comoum esteretipo, existem duas histrias onricas. Uma se refere a um sonho

    de caa; a outra, a um sonho de copulao. O sonho de caa um sonho

    diurno que sonhado com os olhos abertos. Conta-se que quando umcaador se embrenha na floresta e ouve o som de um pssaro sem ser

    capaz de avist-lo, e imediatamente depois disso se d conta do furiosogrunhido de um porco-do-mato sem v-lo nem rastre-lo, ou do uivo de

    um macaco invisvel, percebe que mesmo que fique astuciosamente espreita ou de tocaia, jamais ser capaz de ficar cara a cara com esses

    animais. Ele sabe que essa sucesso caracterstica de gritos de animais,

    que acompanhada subitamente por um angustiante senso de ausncia,anuncia a vinda do jaguar celeste. Suspenso na extenso mais longnqua

    do cu, o jaguar celeste no pode ser visto quando desce para caar na

    floresta. Sendo um animal mutante e um esprito essencialmente invis-vel, assume provisoriamente a aparncia de outros animais. Mas isso no

    significa que ele vai esconder-se sob o aspecto visual desses animais

    pele do porco-do-mato, chifres de um cervo em movimento rpido, penas

    vermelhas de uma arara. A nica coisa que ele pode fazer ajustar suavoz aos gritos deles, emitir seus chamados de caa ou balanar as folhas

    das rvores como os macacos fazem quando escapam do caador. Ele

    nunca chegar a ser visto.Conseqentemente, o canto de loucura entoado pelos xams envia

    o jaguar celeste para a aldeia da escurido. Em meio s tempestades que

    assolam constantemente esse lugar noturno ele visto saindo em perse-guio sua presa. Mas nem aqui ele totalmente ele mesmo: ora um

    pssaro que soa como um jaguar, ora um jaguar que soa como um ps-

    saro.

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    Porm, esse ser mtico no apenas um caador de animais. Ele tambm, e sobretudo, um caador de seres humanos. E a que entra a

    segunda histria onrica, o sonho de copulao. Invisvel luz do dia, ojaguar aparece em certos sonhos sob a forma de imagem. Ele descarta,ento, a imagem de temvel caador para assumir a aparncia igual-

    mente perigosa de um parceiro sexual intensamente desejvel. Aquele

    (homem ou mulher) que o vir em seu sono vai se apaixonar por essa viso

    para sempre e enlouquecer por causa dela. Analisei em outro trabalho oCanto kuna do Demnio e a concepo complexa de loucura que ele

    envolve (Severi 1993). Vou enfatizar aqui um nico ponto: o Branco , no

    Canto do Demnio, identificado como uma das manifestaes do jaguarceleste, portanto, ele no um ser humano, mas um animal perigoso,

    mesmo que sua aparncia possa ser humana. Entretanto, em vez de

    caracteriz-lo meramente em termos negativos (como uma espcie demonstro de contos de fadas, e uma constante ameaa aos seres huma-

    nos), o texto qualifica esse esprito de modo mais complexo e ambivalen-

    te. O Esprito do Branco chamado, na linguagem cerimonial dos cantos,

    um pilator: habitante da aldeia dos espritos. No vocabulrio do xam

    essa palavra designa uma categoria que associa as pessoas que foramassassinadas (ou suicidaram-se) com aquelas que cometeram assassina-

    tos. O Esprito do Branco, assim, aparece representado simultaneamentecomo um agressor e como uma vtima.

    Essa ambigidade na representao do Branco no anedtica nem

    isolada. Pelo contrrio, ela parece estar ligada representao do mundosobrenatural em muitas cosmologias indgenas americanas. um fato

    recorrente que a representao do Branco se torna ambgua no momento

    em que, na memria social, o Homem Branco deixa de ser percebido etratado como uma pessoa de verdade (um guerreiro, um comerciante etc.)

    e passa a ser representado como um esprito7. Vou, portanto, considerar

    seriamente essa representao kuna do Branco por meio de pares de ter-mos contraditrios, e tentar compreender seu fundamento cultural.

    Vimos que o Esprito do Branco ritualmente definido, nos cantos

    xamnicos kuna, como um habitante de uma aldeia invisvel, situa-da na Terra dos Mortos. De fato, essa transferncia da representao do

    inimigo branco do mundo real para a terra habitada pelos mortos cru-

    cial na cosmologia kuna. Meu ponto de partida ser os dois traos carac-

    tersticos mnimos que parecem definir o Branco (ser habitante de umaaldeia sobrenatural, e estar relacionado aos mortos), e evocam em deta-

    lhes a maneira pela qual a tradio kuna representa esse mundo sobre-

    natural e define a natureza de um esprito.

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    Paisagens kuna: os vivos e os mortos8

    Olhe l: a aldeia de transformaes aparece. Aqui os espritos so trans-formados em seres de todo tipo, aqui eles nascem, aqui eles rejuvene-cem, ... aqui eles podem ficar como ns. Estas palavras, ditas pelo chefe

    dos espritos auxiliares do xam no Canto do Demnio (Gomez e Severi

    1983:158-159, 220-225)9, do uma primeira descrio ntida do mundo

    sobrenatural tal como concebido na tradio xamnica kuna. Espritose seres sobrenaturais, em geral, vivem em aldeias invisveis. Estas

    aldeias uma vez me explicou um famoso especialista kuna so

    lugares na floresta estranhos e difceis de serem vistos, em forma de mon-tculos de pedras. Eles ocultam o cho cheio de fendas e buracos. Atra-

    vs desses buracos os espritos ascendem camada superficial da terra.

    Basta tocar uma aldeia desse tipo para morrer imediatamente10.De fato, muitas dessas aldeias esto enterradas debaixo da terra, na

    floresta. Mas outras esto situadas no cu, ou escondidas nas profunde-

    zas do oceano. Todas elas so lugares muito perigosos. Pessoas comunsno podem perceb-las, pelo menos durante sua vida. Elas podem ape-

    nas tomar uma vaga conscincia da sua presena ameaadora. Somenteos videntes e xams11 podem realmente ver essas aldeias quando, absor-

    vidos em suas vises ou recitando um canto, eles viajam alm do hori-zonte. Na descrio dada pelos cantos xamnicos, essas aldeias esto

    situadas muito longe, geralmente para o leste. A frmula freqente-

    mente usada para mencion-las l onde a canoa do sol surge, comoem outra passagem do Canto do Demnio onde elas aparecem no hori-

    zonte, no mar aberto:

    1. Na distncia, l onde a canoa do sol surge, a aldeia do mar aparece

    2. O Velho Pau-de-Balsa, o vidente12 olha para a aldeia

    3. A aldeia vista flutuando em mar aberto

    4. Na distncia, a aldeia-que-surge afunda ligeiramente no mar

    5. Nas profundezas do mar a aldeia afunda ligeiramente, a aldeia reaparece

    na superfcie

    6. Conquistada pelas ondas, a aldeia surge ligeiramente, a aldeia afunda

    ligeiramente nas guas

    7. O Velho Pau-de-Balsa, o vidente, olha para l distncia, para o topo

    da aldeia

    8. O Velho Pau-de-Balsa, o vidente, olha distncia, l onde a canoa do

    sol surge

    9. Uma grande bruma cobre o lugar, l onde a canoa do sol surge

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    10. O Velho Pau-de-Balsa, o vidente, olha distncia, l onde a canoa do sol

    aparece (Gomez e Severi 1983:29-31).

    Essas aldeias tambm costumam ser descritas como a casa13 deum nmero de seres sobrenaturais, como jaguares voadores, animais sem

    patas ou horrveis tubares. Sem contradio aparente, todavia, diz-se

    que essas aldeias sobrenaturais tambm esto muito prximas s

    aldeias onde vivem homens e mulheres. Os espritos que as habitam,como foi dito na primeira passagem citada do Canto do Demnio, podem

    facilmente assumir uma aparncia humana e ir viver entre os seres huma-

    nos. Um aspecto crucial do seu poder de metamorfose que eles podem,a qualquer momento, tomar uma aparncia humana.

    De fato, a paisagem sobrenatural kuna no descrita apenas como

    um mundo que aguarda todo ser humano depois da morte. Ela conce-bida, tambm, como uma dimenso invisvel sempre imanente (embora

    de difcil percepo) na vida cotidiana. Qualquer manifestao sria de

    dor, qualquer infortnio, qualquer doena, abre suas portas. Um temacentral na tradio kuna que o mundo dos espritos, embora invis-

    vel, nunca pode ser esquecido. Ele est aqui tanto quanto l: to presen-te e prximo aos seres humanos como uma paisagem verdadeira.

    Hoje em dia, muitos Kuna vivem em pequenas ilhas de origem coral,localizadas no arquiplago Kuna Yala ao longo da costa atlntica do

    Panam. Essas ilhas habitadas, ligadas costa por uma longa ponte de

    toras, so freqentemente planas e ridas. O horizonte demarcado deum lado pelo oceano e do outro pela floresta Darien. A agricultura e a

    caa so os principais meios de subsistncia e so realizadas apenas na

    floresta do continente. A pesca comeou a ser praticada recentemente,em geral na rea interna ao recife de corais que protege as ilhas habita-

    das do Atlntico e torna as guas rasas em torno delas particularmente

    calmas e navegveis. Com freqncia densamente povoadas, as aldeias

    so compostas por amplas cabanas de bambu, umas prximas s outras,abrigando a famlia extensa uxorilocal kuna. Como descrevem os pr-

    prios Kuna, essa organizao espacial, tpica de todo o arquiplago,

    dividida rigidamente entre os Vivos, os Mortos, os Animais e as Grandesrvores. Assim, o mundo parece estar distribudo horizontalmente (de

    norte a sul e de leste a oeste) entre esses quatro grupos.

    O continente o lugar da agricultura, da caa e da gua fresca; asilhas, que no possuem normalmente fontes de gua, so os lugares onde

    a vida social e os rituais ocorrem. No continente em frente ilha, na foz

    do rio que fornece gua fresca, existe uma clareira incomum na floresta.

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO 133

    Ali se situa a Aldeia dos Mortos. Assim, os mortos habitam o mesmo ter-ritrio que os espritos animais que so a fonte constante de doena e

    morte. Em alguns casos, as prprias pessoas mortas podem se tornar esp-ritos. De fato, no h lugar na tradio kuna para o conceito de mortenatural. As pessoas morrem porque so atacadas por um esprito hostil;

    elas so sempre vtimas de vingana ou de um erro fatal. A floresta um

    lugar difcil e perigoso; ela esconde (como sabemos) as aldeias habita-

    das por espritos que atacam os homens que se arriscam em suas redon-dezas. Esses espritos matam tais homens, tornam-nos loucos ou doentes.

    Uma aldeia desse tipo pode materializar-se em um rochedo projetado no

    oceano, sob um bosque de espinhos ou em um pntano (Prestan 1975:168).Mas a aldeia espiritual mais familiar (aquela que conhecida por

    todos) o cemitrio, a aldeia construda para celebrar os rituais fune-

    rrios. Permitam-me descrever brevemente dois desses rituais.Na sociedade kuna, quando um adulto ou pessoa idosa morre, o

    cadver vestido com as melhores roupas do morto e colocado em uma

    rede com a cabea voltada para o nascente, o leste. Uma corda de algo-

    do posta nas mos do morto para ajud-lo a atravessar os rios sub-

    terrneos durante sua jornada para o cu. A corda, diz-se, servir comouma ponte. O cadver ento coberto por um pano branco e um longo

    canto funerrio, o Serkan Ikala, cantado14. No dia seguinte, a famlia

    do morto vai para a Aldeia dos Mortos, logo ao amanhecer. Depois que a

    procisso de canoas alcana a foz do rio, o cadver colocado em uma

    cabana sem paredes e enterrado. Algumas oferendas de comida cozida efolhas de bananeira so deixadas sobre o corpo. O cadver ento cober-

    to com terra que batida com ps e cozida com a chama de um brazeiro

    que ser mantido permanentemente aceso pelos parentes at formaruma camada compacta e homognea. Feixes de penas multicoloridas pen-

    dem dos postes de pau-de-balsa que sustentam o teto da cabana, as quais

    acompanham o cadver na sua perigosa viagem para o cu, reino derra-deiro dos mortos. Para facilitar essa viagem, os vivos tambm constroem

    pequenas escadas de bambu e um pequeno barco que contm as armas

    de caa que o homem ou mulher mortos necessitaro para sua defesa.

    Ao modo da aldeia que o representa, o reino dos mortos uma rpli-ca exata do mundo dos vivos, com uma exceo: l, alm da luz ofuscan-

    te do sol, tudo dourado os Kuna dizem que o dourado a cordo rei-

    no dos mortos. O que invisvel aqui, brilha como ouro l.Ao pr-do-sol, os participantes do ritual voltam para a ilha, onde

    todos partilham uma refeio e, ento, tomam um banho coletivo de puri-

    ficao. Dois procedimentos rituais devem ser cumpridos antes que eles

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO134

    deixem a Aldeia dos Mortos. Primeiro, algumas sementes de pimenta ver-melha, misturadas com gua, so colocadas sobre o tmulo. Diz-se que

    quando a gua alcana o corpo sepultado, a pessoa morta abre imediata-mente os olhos, e comea a viagem: primeiro para baixo, atravs das oitocamadas ctnicas da terra, e depois em direo ao cu. Concomitante-

    mente, os participantes do ritual iro esticar uma corda (evocando aquela

    que foi colocada no tmulo) de um lado ao outro do rio mais prximo, e

    depois cort-la. A separao final da pessoa morta, e das perigosas al-deias que ela ter que visitar, realizada e explicitamente simbolizada

    por esse ato de cortar a corda. A jornada da pessoa morta comea, e o

    ritual est terminado15

    .Quando uma criana morre, o ritual muito mais simples. O corpo

    enterrado em terra habitada, no interior da cabana da famlia, debaixo

    da rede na qual a criana dormia. Os Kuna dizem que esse tipo de sepul-tamento ajudar a famlia a ter outra criana. O cadver de uma criana

    ainda traz a semente masculina, que o far germinar como uma planta.

    Assim, enquanto a proximidade a um cadver de adulto fortemente evi-tada, o contato prximo com o de uma criana fertiliza o terreno rido

    (usualmente estril) habitado pelos vivos. Esse sepultamento in loco intro-duz uma segunda diviso no espao kuna a partir de um eixo vertical: do

    topo do cu para as profundezas do mundo subterrneo. Aqui, inespera-damente, o mundo dourado no est mais situado no cu. Tornou-se,

    em vez disso, um lugar subterrneo, e descrito em O Caminho de Mu

    (o canto dedicado terapia do parto difcil16), como a camada da terrapuramente dourada.

    O mundo subterrneo kuna composto por oito camadas. Os quatro

    nveis superiores so o lugar de origem e o esconderijo dos espritosmalignos que trazem as doenas, os nias. No fundo da quarta camada

    est a fonte do rio dourado, que leva s camadas mais profundas da

    terra. atravs dessas regies que a alma de um ndio morto deve viajarpara alcanar a oitava e mais profunda camada, a morada do Velho Pau-

    de-Balsa, o Vidente e, s ento, subir ao cu17. Ao enterrar a criana

    debaixo da rede na qual ela sempre dormiu, os ndios esperam impedirque sua alma tenha que entrar no mundo perigoso dos espritos, pelo

    qual a alma doente do ndio deve sempre viajar aps a morte. Na verda-

    de, embora a primeira camada subterrnea seja potencialmente hostil,

    ela concebida como frtil e povoada, semelhante ao continente do outrolado da ilha. O sepultamento nesse lugar transforma o corpo da criana

    em uma planta que pode frutificar e retornar para o tero de uma mulher

    como um fruto germinante:

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO 135

    Por um longo perodo de tempo os frutos cresceram em voc, seus frutos

    esto todos vermelhos.

    Por um longo perodo de tempo o pssaro vermelho Nalukukule entrou nosseus frutos(apud Holmer e Wassen 1953:164-165),

    diz o xam no canto dedicado ao parto difcil. Em outra passagem

    memorvel do mesmo texto, a me descrita ento como uma mulher-

    rvore bem enraizada:

    Na camada dourada da terra a raiz sustenta seu tronco: to profundamen-

    te como a camada dourada, sua raiz est fincada solidamente [na terra];[...] [sua raiz vai] to distante quanto a camada dourada [da terra], sua raiz

    transforma [tudo] em ouro puro [...].

    Um por um, os animais sobem nos seus galhos manchados, cada um dos seus

    galhos manchados emite sumos, que pingam com sangue [...].

    Quando o vento norte sopra, quando [...] ele sopra atravs de voc,

    Seus galhos curvam-se e inclinam-se com o vento; abatidos pelo vento seus

    ramos emitem um som agudo como os cabos no barco prateado do homem

    branco (apud Holmer e Wassen 1953:183-187)18

    .

    O simbolismo desses dois rituais (e a concepo subjacente de mor-

    te) particularmente complexo, e no podemos examin-lo detalhada-

    mente aqui. Todavia, resta pouca dvida de que, apesar das diferenas,

    ambos os ritos, o dedicado criana e o dedicado ao adulto, so constru-dos a partir da mesma analogia entre o corpo humano e o mundo sobre-

    natural. Por meio do sepultamento embaixo da sua rede, o corpo da crian-

    a transforma-se em fruto, e conseqentemente a me transforma-se emuma rvore csmica que traz em si um fruto germinante.

    O outro ritual, dedicado aos adultos, construdo a partir da mesma

    base simblica. Se ns considerarmos a seqncia crucial de aes quecaracteriza o sepultamento de um adulto (a cobertura do corpo com um

    pano branco, a corda primeiro dada e ento cortada, a oferenda de folhas

    de bananeira depositadas sobre o corpo antes do sepultamento), conclu-

    mos que a terra que vai cobrir (ou talvez envolver) o cadver da pes-soa morta transformada gradualmente no corpo de uma Me origin-

    ria. Uma srie de indicaes aponta nessa direo. Vimos que o cadver

    recebe uma corda de algodo e ento coberto com um pano branco.Na linguagem simblica dos cantos esse pano branco (colocado sobre

    o cadver logo aps sua morte) sempre designa a vagina. Aqui esto dois

    exemplos extrados do Mu Ikala:

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO136

    Do meio do pano branco da mulher um ser humano desce (apud Holmer e

    Wassen 1953:90).

    O pano branco secreto dela desabrocha como uma flor (apud Holmer eWassen 1953:432).

    Deve-se notar que no mesmo texto o sexo feminino pode expandir-

    se e se tornar literalmente o sexo da Terra:

    O corpo doente da mulher repousa enfraquecido

    Quando os espritos iluminam o caminho de Mu19, exudaes jorram, como

    sangueSuas exudaes escorrem para baixo da sua rede, tudo como sangue, tudo

    vermelho

    O pano branco interior estende-se para o seio da terra [...]

    No seio da terra suas exudaes renem-se em gotas, tudo como sangue,

    tudo vermelho (apud Holmer e Wassen 1953:86-92).

    O outro objeto simblico usado no ritual, a corda dada ao morto

    para ser usada como uma ponte para atravessar os rios do mundo ct-nico, sempre comparado nos cantos (e de fato assimilado) a um cordo

    umbilical (Gomez e Severi 1983:145 e 149; ver, tambm, infra)20. O cor-

    te definitivo dessa corda, que no final do ritual marca a separao entre

    a pessoa morta e os vivos, pode ento ser interpretado como um retorno

    ao corpo da me, ou mesmo como o renascimento de uma pessoa depoisda morte. Uma aluso clara a esse renascimento como um filho ou filha

    da Me Terra a folha de bananeira (ou banana) deixada sobre o corpo

    no local do sepultamento. A folha de bananeira (em si mesma uma met-fora para o sexo feminino) , de um ponto de vista mitolgico, precisa-

    mente, o lugar onde os primeiros seres humanos nasceram, e ainda hoje

    usada para colocar o beb depois do nascimento. A ltima parte do

    Caminho de Mu reveladora desse ponto:

    No seio da terra a criana est descendo

    No seio da plida folha de bananeira a criana est descendo

    Ela avermelha toda a folha de bananeira (apud Holmer e Wassen 1953:640-

    642)21.

    Todas essas indicaes so reunidas com clareza em um belo mito

    recolhido por Prestan e dedicado origem dos rios:

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO 137

    Nos tempos antigos, nosso Pai comeou a pensar: o que vou fazer? E ento

    o Pai pensou em fazer a Me menstruar. Ele fez isso abrindo o sexo dela com

    uma faca. Desse modo, quando a Me comeou a menstruar, os rios e ria-chos apareceram sobre a terra. Ento o Pai fez uma folha de bananeira usan-

    do o pbis da Me para o recm-nascido se sentar. Por essa razo, as mulhe-

    res nas ilhas kuna sempre colocam o recm-nascido sobre uma folha de

    bananeira (apud Prestan 1975:230).

    De fato, essa dupla referncia a um corpo cosmolgico e a um uni-

    verso corpreo constitutiva da tradio xamnica kuna: se a Terra pode

    possuir um sexo feminino, pode-se considerar que o corpo de uma mulhercontm oito camadas (Kantule e Nordenskild 1938), como a terra, ou

    mesmo redemoinhos (Velasquez 1992:702 e ss.), como o oceano. Como

    mostra a descrio de Chapin das terapias medicinais, um xam kunapode identificar em um sol interior a garganta de um homem doente,

    ou uma dor vindo da sexta camada subterrnea (Chapin 1983:216-217).

    Em outros estudos dedicados tradio xamnica, tentei mostrar queessa representao do mundo sobrenatural nos cantos kuna est associa-

    da particularmente representao da dor (Severi 1987; 1982). Os cantosdedicados terapia das doenas descrevem sempre a jornada da alma

    atravs do mundo invisvel dos espritos como uma metfora da expe-rincia vivida pela pessoa doente. Portanto, a jornada xamnica descreve

    primariamente aquele estado de perceber sem ver, que o sentimento

    de dor (ver Severi 1987:81-84). Nesse contexto, o sofrimento descritosimultaneamente em termos cosmolgicos e fisiolgicos: sofrer experi-

    mentar uma transformao do universo que envolve uma debilitao dra-

    mtica da balana natural entre o que visto e o que percebido pelosoutros sentidos. A dimenso fisiolgica descrita como um corpo inte-

    rior que nenhuma percepo visual pode alcanar, e a dimenso cosmo-

    lgica como um mundo inacessvel percepo normal. Dessa perspecti-

    va, as propriedades do mundo invisvel (como os rios germinantes domito que citamos) referem-se ao corpo humano, e as propriedades invis-

    veis do corpo (por exemplo, a dor gerada pelo trabalho de parto no Cami-

    nho de Mu) ao mundo exterior.De acordo com esse princpio, e em virtude da sua segunda viso ou

    do seu conhecimento dos cantos, o xam kuna v a presena escondida

    dos espritos no corpo de uma pessoa doente para alm do que visvelno mundo. Ele capaz de interpretar os signos da dor porque est fami-

    liarizado com um tipo particular de paisagem: o teatro interior do corpo

    humano, constitudo por aldeias invisveis onde os espritos vivem. Se

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO138

    nos remetemos ao canto que acompanha a pessoa morta na sua jornada,o Serkan Ikala (Holmer e Wassen 1963), descobrimos que no apenas as

    experincias traumticas, mas a prpria morte so extraordinariamentedescritas nesses termos cosmolgicos/fisiolgicos. Para explicar por queos olhos do homem que est morrendo perdem a cor (Holmer e Was-

    sen 1963:35 e ss.), e para descrever o processo pelo qual o corpo se torna

    progressivamente frio, o texto diz:

    54. O esprito da doena deixa um vento entrar no seu corpo

    55. Os espritos do Crocodilo, o Vidente

    56. Em seu corpo eles deixam um vento entrar (apud Holmer e Wassen 1963:54-56).

    Posteriormente, esse vento se torna um rio que, literalmente, pene-tra no corpo:

    130. Alm do rio, eles chamam os espritos-femininos que trazem o frio

    131. Eles chamam agora os espritos femininos das nuvens negras

    132. E agora o rio est penetrando no seu corpo.

    Podemos ento esboar uma primeira concluso. Do ponto de vista

    da tradio kuna, as coisas invisveis podem estar simultaneamente

    l (na floresta, nas profundezas do oceano, no cu) e aqui (entre ns,

    na aldeia povoada) porque elas esto dentro de ns: essas paisagens invi-sveis se situam dentro do corpo humano.

    Voltemos agora para a paisagem e para o contraste entre o visvel e

    o invisvel. Ns vimos que o universo kuna concebido como um densomosaico de territrios diferenciados e antagnicos, partilhados pelos

    vivos, pelos mortos, pelos espritos dos animais, vegetais e rochas. O

    mapa cosmolgico traado por E. Nordenskild, o pioneiro dos estudoskuna, ilustra claramente essa viso da ordem cosmolgica (Figura 4).

    Nessa imagem, o estado do cosmos kuna aparece claramente des-

    crito: o mundo subterrneo, com suas aldeias habitadas pelos espri-

    tos camadas aps camadas, parece ser uma representao ordenada daorganizao do universo mitolgico. Seres humanos pertencem terra,

    espritos ao mundo ctnico. De modo a alcanar o cu, a alma da pessoa

    morta tem que atravessar, camada aps camada, o mundo subterrneo22.De fato, na mitologia kuna um ser definido pelo territrio ao qual ele

    pertence. Isto se aplica particularmente distino entre seres humanos

    e no-humanos. Enquanto nossa cultura parece estabelecer uma conti-

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO 139

    nuidade entre os reinos humano, animal, vegetal e mineral, em termos

    de uma natureza corprea homognea23, para os ndios a situao fsica

    dos seres parece estar mais marcada por uma irremedivel descontinui-

    dade. No mundo kuna cada ser tem seu territrio, e o padro de organi-zao desses territrios se assemelha antes a um arquiplago composto

    por ilhas separadas do que a uma estrutura nica organizada em linhas

    hierrquicas. Por outro lado, l onde o pensamento ocidental estabeleceuma descontinuidade radical entre o homem e o mundo exterior, ou seja,

    no plano espiritual (ou, nas verses modernas da mesma idia, nos pla-

    nos lingstico e psicolgico), os ndios vem apenas continuidade e tro-ca contnua (realizada, por exemplo, pela realizao de rituais). No pen-

    samento indgena, essa continuidade sempre leva representao do

    reino da natureza como uma cultura24. De acordo com os Kuna, os ani-mais casam entre si segundo seus prprios costumes; eles constroem

    suas aldeias na floresta; e falam sua prpria lngua. Nem a vida social

    organizada nem mesmo o fato de falar uma lngua (e atribuir a isso o sta-

    tus de uma forma de conhecimento) pode dar ao ndio um lugar privile-giado no mundo. O que d a qualquer ser sua prpria especificidade ,

    do ponto de vista kuna, seu territrio: o espao ao qual ele pertence no

    universo.

    Figura 4. A estrutura do universo kuna de acordo com E. Nordenskild (1938).

    A camada superficial (A) est oposta ao mundo ctnico (B). A letra S marca

    a jornada do Sol na abbada celeste.

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO140

    Todavia, uma vez que abandonamos esse ponto de vista externo (que aqui o ponto de vista do antroplogo), e entramos nas paisagens sobre-

    naturais descritas em detalhes pelos cantos e desenhos kuna, distinesprecisas entre categorias de seres tornam-se menos claras, e o que pode-ramos chamar de ambigidades ontolgicas aparecem por toda parte. O

    que surge, ento, a representao de um espao complexo e at mes-

    mo contraditrio, no qual seres sobrenaturais, longe de serem definidos

    exclusivamente pelo territrio que ocupam no universo, podem perten-cer simultaneamente a diferentes nveis ontolgicos. Isto ocorre no sim-

    bolismo dos rituais e cantos funerrios, nos quais posies no mundo e

    no corpo podem ser simultneas. Esse aspecto, entretanto, muito maisdesenvolvido na tradio kuna e vai alm da analogia estabelecida entre

    o corpo e o mundo.

    Vimos que a paisagem sobrenatural kuna organizada de acordocom dois eixos: um eixo vertical (cu/mundo subterrneo) e um eixo

    horizontal que reflete, em termos metafsicos, a oposio entre a ilha e o

    continente. Entretanto, em todas as fontes tradicionais kuna que temos

    estudado, ambos os limites do mundo, horizontal e vertical, designam a

    dimenso na qual os espritos vivem. Os dois eixos terra/cu e ilha/flo-resta parecem ser equivalentes, e at mesmo intercambiveis: em mui-

    tos casos, aquilo que est voltado para o Leste tambm est situadono mundo subterrneo. No Caminho de Mu, assim como em outros can-

    tos xamnicos, considera-se que o esprito vive tanto no interior da ter-

    ra quanto alm do horizonte. No Canto do Demnio, quando os esp-ritos do xam esto se preparando para sua busca da alma perdida, eles

    perscrutam alm dos pontos cardeais, enxergando, por meio disso, o

    mundo subterrneo dos espritos. Os dois eixos do espao cosmolgico,horizontal e vertical, vivem lado a lado e complementam-se nessa repre-

    sentao da paisagem sobrenatural. Aqui encontramos um aspecto da

    concepo indgena de espao que nem o esquema cosmolgico de Nor-

    denskild com suas distines teis mas limitadas, entre diferentespartes do mundo nem a analogia simblica entre mundo e cor-

    po podem ajudar-nos a compreender. Como concebvel que alguns

    aspectos do mundo estejam situados simultaneamente em diferentespontos do universo, alm do horizonte e no mundo subterrneo? Que

    tipo de ser pode habitar essa dimenso ontolgica ambgua? Qual o

    significado, se existe algum, dessa dupla localizao espacial? Antes detentarmos responder a estas questes, vejamos mais alguns exemplos

    dessas duplas localizaes, expressas aparentemente em termos mera-

    mente geogrficos.

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO 141

    Durante uma conversa com o antroplogo venezuelano R. Velas-quez, o chefe e xam kuna Odis Navas ao sublinhar a importncia da

    quinta camada sob a terra, lembrou que

    o cu est debaixo, depois das oito camadas da terra (apud Velasquez

    1992:719-720),

    e de fato a passagem pictogrfica do Canto do Demnio que eu cole-tei confirma e ilustra esse ponto. Vemos aqui uma paisagem acompanha-

    da da sua imagem invertida (Figura 5).

    De maneira anloga, o Serkan Ikala afirma claramente que asnuvens podem ser encontradas no interior da terra:

    1. Vocs... nuvens

    2. Vocs obscureceram novamente o interior da terra

    3. Vocs videntes, eu falo com vocs

    4. Vocs nuvens negras

    5. Vocs cobriram novamente o lado interior da terra25.

    De fato, mesmo que nenhuma correspondncia entre o corpo e o cos-

    mos esteja em jogo nesse contexto, deve-se lembrar que essas indicaesespaciais (de acordo com o princpio de que todo ser definido pelo terri-

    trio ao qual pertence) so sempre remetidas definio da natureza de

    Figura 5. Concepo invertida da Terra tal como ilustrada por uma passagem

    da verso pictogrfica do Canto do Demnio.

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO142

    um esprito. O cu est depois das oito camadas ctnicas da terra nosignifica que o cu est abaixo de ns. Isto quer dizer que o cu est

    tambm abaixo de ns, ou, melhor, que um cu invisvel est sob a terra.No mundo real, nuvens, ventos e rios no esto em todo lugar. Somenteno mundo habitado pelos espritos essas situaes podem ocorrer.

    Nos textos xamnicos, considera-se sempre que os espritos esto

    simultaneamente aqui e l. Vimos que, segundo a tradio kuna, foi

    somente um imperativo mtico proferido no comeo dos tempos, que fezcom que a sociedade humana se separasse e mesmo assim apenas na

    contingncia do tempo e no em sua essncia dos animais, das rvo-

    res e do mundo mineral. Os princpios fundamentais da vida podem pas-sar continuamente de um corpo para o outro, seja ele humano, animal ou

    vegetal. Da o universo estar constantemente sendo ameaado pela pro-

    miscuidade excessiva dos seres e pela desordem que poderia resultar damistura entre eles. Para entender isso, preciso compreender o processo

    de metamorfose que domina esse mundo. Todo ser que mora l dotado

    de uma dupla natureza, e est sempre prestes a sofrer uma transforma-

    o. Veremos que, uma vez que a representao do Esprito do Branco

    est includa nesse universo, ele seguir um destino similar de duplametamorfose.

    Evoquemos, ento, outros exemplos do uso de referncias espaciaiscontraditrias e simultneas em uma nica paisagem e vejamos como a

    descrio de uma paisagem se relaciona com a definio da natureza de

    um esprito.

    Espritos, imagens e vozes

    Vimos que o Esprito do Branco pode ser representado como um esprito

    auxiliar. Referindo-se a uma estatueta que representa Balsa, o Vidente, ochefe de todos os espritos auxiliares de um xam, um especialista disse

    a R. Velasquez: voc v l a imagem do vidente. Ela est aqui. Mas seu

    esprito no est aqui. Ele est longe, nas profundezas da terra (Velas-quez 1992:735). A partir de uma perspectiva ocidental, essa afirmao

    pode parecer bvia: a imagem de um esprito, tenderamos a pensar, sim-

    plesmente no em si o prprio esprito.

    A estatueta representada, por exemplo, na Figura 6 apenas a for-ma visvel de um ser que est localizado alhures. desnecessrio dizer

    que essa interpretao totalmente enganosa. O comentrio xamnico

    kuna est fundamentado em uma perspectiva inteiramente diferente. O

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    COSMOLOGIA, CRISE E PARADOXO 143

    que conta em uma representao como essa, no sua forma (grosseira-

    mente) humana. O aspecto importante dela a matria a partir da qual feita: o prprio pau-de-balsa. De acordo com a perspectiva xamnica,

    essa madeira associa a aparncia visual de uma rvore poderosa

    extraordinria leveza das asas de um pssaro. Veremos que essa conjun-o de elementos contraditrios revela a natureza de Pau-de Balsa, o

    Vidente, de um modo muito mais claro que a sua forma. Assim, a parte

    secreta do Canto do Demnio descreve o nascimento mtico de Pau-de-Balsa, o Vidente:

    Nesse caminho a rvore de Balsa nasceu. Na fonte do rio chamado Mae-

    kanti, no comeo dos tempos, apenas animais existiam. Eles eram como pes-

    soas humanas, e eles viviam no rio. Os porcos, os porcos-do-mato e os outros

    animais eram como seres humanos. O Pai olhava tudo ao redor. Seres malig-

    nos estavam por toda parte.

    Os nias, os espritos animais malignos, j estavam l muito antes do Pai.

    O Pai chegou depois deles. Ele percebeu que o mundo no poderia ficar

    daquela maneira, e enviou o prprio filho, que veio com o objetivo de ajudar

    Figura 6. Uma estatueta representando um Nele kuna (um vidente atuando

    como um esprito auxiliar nos cantos kuna) (Nordenskild 1938).

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    as pessoas. Naquele tempo, os espritos malignos, os nias, estavam em toda

    parte, eles eram cegos ou sem pernas. O Pai ento tocou seu pnis, e o esper-

    ma saiu. Em oito dias, o esperma, reunido em uma taa, solidificou-se, etomou a forma de um ovo de bacurau26. Oito dias depois, o ovo quebrou, pro-

    duzindo um som semelhante ao canto do bacurau: tuu. Um homem saiu, e

    o Pai disse: meu filho chegou, agora eu vejo que meu grande filho chegou.

    E o Pai pensou, e depois ele disse: Mas eu ainda no tenho uma esposa? E

    o Pai ento trabalhou as montanhas27 e viu distncia as grandes aldeias

    invisveis. E foi assim que o Pai orientou seu jovem filho: voc nasceu de

    mim, o grande Pai. Voc vai trabalhar para mim. Essas foram as palavras

    que o Pai dirigiu a Balsa, o Tronco Leve. Ento o Pai abarcou nas suas rou-pas todas as aldeias invisveis, e [o filho?] aprendeu a conhecer todas as coi-

    sas situadas na terra, exatamente como se ele tivesse contribudo para cons-

    tru-las. O Pai disse a Tronco Leve: Voc ser o chefe de todos os nuchu-

    mar28. Posteriormente voc obedecer s ordens dadas pelo xam: voc far

    o que ele lhe disser, e evitar aquilo que ele proibir29.

    O texto acima descreve o nascimento do vidente a partir de uma

    seqncia de extraordinrias metamorfoses. Seu ser parece resultar deuma srie de transgresses do modo normal de gerao de seres. Balsa

    nasceu de uma taa de esperma sem qualquer interveno de uma me,o filho de um pai solitrio. Ento, a taa de esperma tornou-se magica-

    mente um ovo de bacurau. Este pssaro interessante nesse contexto por

    duas razes: ele s se torna visvel durante o pr-do-sol, entre os dom-nios do dia e da noite, e ele possui um canto que os Kuna relacionam

    explicitamente aos gritos de um louco. Do ovo desse pssaro quase huma-

    no, Balsa nasceu como um homem. Imediatamente depois disso, entre-tanto, o texto refere-se a ele como uma rvore. De um ponto de vista cos-

    molgico, ento, o nascimento de Pau-de-Balsa descrito como a pre-

    sena simultnea de um ser que aparece em trs territrios separados ediferentes: os domnios das rvores, dos pssaros e dos humanos. Ele no

    nem um pssaro, nem uma rvore, nem um homem jovem. Ele supos-

    tamente todos os trs simultaneamente. Sua natureza ser mltiplo.

    Encontramos essa mesma configurao desenvolvida explicitamen-te em uma outra parte desse canto, na qual a Aldeia de Metamorfoses

    descrita.

    248. Aqui os espritos so transformados em seres de todo tipo, aqui eles

    nascem

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    diz o canto para anunciar o surgimento dessa aldeia (Gomez e Seve-ri 1983:linha 248), significando que transformao e nascimento, para um

    esprito, so a mesma coisa. Refiro-me frmula verbal pela qual os tex-tos descrevem esse processo de transformao. Nas linhas 250-251, esseprocesso de nascimento e metamorfose diz respeito, por exemplo, aos

    porcos-do-mato:

    250. Aqui os nias so transformados em porcos-do-mato, os porcos-do-mato

    esto l com suas roupas negras, eles gritam ya-ya-ya

    251. Os porcos-do-mato esto agora mudados em nias, eles esto transfor-

    mados em nias, os nias esto transformados

    O texto descreve aqui o nascimento de um nia (o esprito animal

    maligno) por meio de dois movimentos lgicos distintos: primeiro, o esp-rito invisvel transformado em um animal, o que quer dizer que ele toma

    a forma visual de um animal; depois, no verso seguinte, a relao inver-

    tida, e o texto afirma que os animais, em contrapartida, esto agora trans-

    formados em espritos. Esse movimento dual de esprito para animal e de

    animal para esprito s possvel atravs de duas operaes. Quando apresena invisvel do esprito substituda pela aparncia de um animal,

    os porcos-do-mato (como todos os outros animais mencionados na Aldeiade Transformaes: vaga-lumes, borboletas, cobras, cervos etc.) usam

    roupas negras e emitem seu grito de caa. Temos, assim, uma seqn-

    cia do seguinte tipo:

    O nia um animal

    est vestido com roupas negras

    O animal

    { emite seu grito de caaO animal um niaDe fato, por intermdio da exibio de uma aparncia diferente

    do animal (sempre descrito no texto de acordo com essa frmula con-vencional), o texto fornece a prova, do ponto de vista indgena, da

    transformao do esprito em um animal. As roupas negras que ocul-

    tam a pele do porco-do-mato s podem referir-se nesse contexto pre-

    sena noturna, invisvel, do jaguar celeste o maior de todos os esp-ritos malignos, e o nico capaz de se transformar em qualquer tipo de

    criatura. A introduo da idia de que roupas negras envolvem o cor-

    po do animal torna-se, ento, um meio de expressar a um s tempo o

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    carter noturno, invisvel, do esprito e sua encarnao visvel comouma criatura da floresta.

    Quando o esprito do animal deixa de ser reconhecvel pelo seuaspecto visvel, sua presena ser revelada inequivocamente pela refe-rncia ao seu grito de caa no canto xamnico. E essa referncia a uma

    presena oculta revelada pela sua imagem acstica reproduz fielmente o

    modo dual da aparncia do jaguar celeste: seja como uma imagem notur-

    na mergulhada na escurido, ou como uma presena invisvel que ape-nas a alucinao auditiva do grito do animal torna perceptvel para o

    caador na floresta.

    Novamente aqui, a presena simultnea de um esprito invisvel ede uma aparncia animal que se esconde da luz do dia define a natureza

    ontolgica do esprito. Do mesmo modo que Balsa, o Vidente, os nia reve-

    lam sua natureza no prprio ato de transformarem-se. A imagem do esp-rito est situada l (distante no espao cosmolgico), mas outro signo da

    sua presena, sua voz, ser sempre percebido aqui, perto da aldeia huma-

    na. Vimos que, nas cosmologias amerndias, o estabelecimento de distin-

    es entre diferentes territrios do universo (a Terra, o Mar, o Cu, o Mun-

    do Subterrneo) torna-se um meio de delinear diferentes categorias onto-lgicas; um ser definido pelo territrio ao qual pertence. Podemos ver

    agora que um esprito pode ser definido como um ser que possui muitasnaturezas, pertencendo, portanto, a diversos territrios cosmolgicos. A

    estrutura ambgua do espao sobrenatural (no qual certas coisas podem

    estar simultaneamente aqui e l) torna-se ento um meio de caracterizara natureza mltipla dos seres sobrenaturais.

    Na tradio xamnica kuna a definio do sobrenatural est articu-

    lada com a idia da conjuno de traos contraditrios: um animal, umarvore e at mesmo um ser humano s podem se tornar sobrenaturais se

    tambm incorporam a natureza de outros seres. Sua contradio interna

    (e o fluxo de metamorfoses articuladas a ela) expressa em termos espa-

    ciais como a presena simultnea do mesmo ser em diferentes lugares dapaisagem. De acordo com essa perspectiva um rio no apenas pode

    desembocar no corpo de uma mulher que sofre, mas uma rvore Balsa e

    um Porco-do-Mato podem ser considerados nas paisagens sobrenatu-rais, nos sonhos, e depois da morte invisveis aqui e brilhando como

    ouro l. Do mesmo modo, o Esprito do Branco pode ser considerado

    simultaneamente planta e animal, bom e mau, esprito patognico ecurandeiro mgico.

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    Concluses

    Como em muitas outras sociedades amerndias, a tradio xamnica kunaescolheu a dimenso sobrenatural (com a sua relao com a representa-o do sofrimento) para representar crises sociais e traumas coletivos.

    l (naquele mundo que concebido simultaneamente como uma paisa-

    gem invisvel e como um corpo) que os inimigos verdadeiros dos ndios

    tornam-se tambm novos seres invisveis. A recordao ritual do passadoimplica paradoxalmente a renovao do sobrenatural. Entretanto, a

    representao do Esprito do Branco (ou melhor, a metamorfose ritual dos

    Brancos em Espritos), com sua srie de conotaes opostas (assassino/assassinado; humano/animal; amigo/inimigo...), segue exatamente o

    mesmo padro estabelecido para a representao de qualqueresprito. A

    transformao ritual de um inimigo em um esprito, longe de ser redut-vel simples magia simptica (Taussig 1993), marca justamente um

    passo alm na mesma lgica de condensao. Assim, essas representa-

    es, quando encaradas do ponto de vista indgena, no so ambguasou confusas (como aparecem inevitavelmente do ponto de vista oci-

    dental), elas so negativas de uma forma complexa. medida que partilham a mesma complexidade (a conjuno de

    traos contraditrios) que define qualquer ser sobrenatural kuna, essasrepresentaes carregam indicaes realistas no que diz respeito

    verdadeira natureza dos seus inimigos Brancos. Longe de serem sinto-

    mas de uma perda de identidade (ou de uma iminente submisso a valo-res modernos, estrangeiros), essas representaes indicam que a

    memria social desses grupos ainda , a despeito das aparncias, muito

    viva. Ambigidade ou, mais precisamente, a capacidade de representarcrises sociais e individuais atravs do paradoxo um termo por meio

    do qual definimos a coexistncia de aspectos conflitantes e contrrios

    da mesma situao uma fora, no uma fraqueza das imagens

    rituais kuna.De um ponto de vista mais geral, esses fatos sugerem que existem

    pelo menos dois modos de construir memrias sociais: um opera atravs

    da narrao (e renovao contnua) de uma srie de histrias; o outro,sempre vinculado elaborao da memria ritual, tende a criar um nme-

    ro relativamente estvel de imagens cada vez mais complexas, cada vez

    mais carregadas de significados e cada vez mais persistentes ao longodo tempo. Dois aspectos desse ltimo modo de produzir memrias emer-

    giram aqui. Antes de mais nada, essas imagens so sempre construdas

    em um contexto ritual. Elas so vistas, de uma perspectiva warburgiana,

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    como etapas em uma seqncia de representaes rituais: as estatuetasBrancas kuna so impensveis sem os cantos e sem a cosmologia ela-

    borada que os cantos evocam na tradio kuna. Em segundo lugar, deve-mos sublinhar que a representao dos Homens Brancos sempre per-cebida como um dos aspectos e, poder-se-ia at dizer, um aspecto contin-

    gente, do mundo sobrenatural kuna. Os espritos tornam-se Brancos

    entre outras coisas. Ser Branco apenas uma das transformaes poss-

    veis, e os espritos fazem isso mantendo sua essncia fundamental, que estarem continuamente engajados em uma metamorfose orientada ritual-

    mente.

    Resta pouca dvida de que a emergncia dos Espritos do Branconas prticas xamnicas kuna refere-se a uma longa srie de conflitos vio-

    lentos em que se enfrentaram ndios e os agressores vindos do Ocidente.

    Entretanto, uma vez inseridas em uma tradio ritual, as histrias do pas-sado desfazem-se e se condensam em imagens complexas. Dois proces-

    sos parecem operar na elaborao dessas imagens: um tende a obliterar

    o fato externo para inseri-lo em um arcabouo conceitual indgena a

    cosmologia do mundo sobrenatural; o outro segue um caminho simtrico:

    usa as ambigidades da cosmologia para representar aspectos proemi-nentes dos recm-chegados. O resultado um elaborado (e ritualmente

    poderoso) engrama da tradio ritual, e torna-se uma parte significan-te da memria social.

    A maneira pela qual a memria ambgua do Branco se estabelece

    na tradio kuna revela, ento, uma dinmica similar que foi propostapor Freud a respeito da elaborao psicolgica do trauma. Essas ima-

    gens operam como traos mnmicos; elas evocam o passado por meio da

    explorao xamnica do sofrimento, mas elas o tornam presente semrepresent-lo atravs de uma narrativa. M. Roth (1994) mostrou quo fun-

    damental foi, para os primeiros trabalhos de Freud, o estudo dos diver-

    sos modos pelos quais o passado pode causar dor no presente. Nesse

    sentido, o prprio sintoma concebido por Freud como um smbolo dopassado. O estudo de algumas imagens cruciais da tradio kuna mostra

    como um smbolo complexo, enraizado na representao de uma expe-

    rincia traumtica, pode operar como um trao mnmico de um passadoque sempre retorna.

    Uma imagem do passado relembrada ritualmente, que segue estri-

    tamente a definio de trauma: uma reminiscncia que, ao mesmo tempoque se recusa a emergir completamente conscincia, se recusa igual-

    mente a seguir seu caminho e cair no esquecimento. As imagens dos

    homens e mulheres Brancos, com seus grandes chapus, colares, camise-

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    Carlo Severi membro do Laboratoire dAnthropologie Sociale do Collge

    de France. Realizou pesquisa de campo entre os Kuna do Panam e publi-cou La Memoria Rituale (1993), sobre o xamanismo kuna. Com Michael Hou-seman escreveu um estudo terico da ao ritual, Naven, ou le Doneer Voir(1994), cuja segunda edio, em ingls, chama-se Naven, or the Other Self.A Relational Approach to Ritual Action (1998).

    tas pintadas e calas, esculpidas grosseiramente em pau-de-balsa pelosxams kuna, uma vez recolocadas na paisagem sobrenatural que as situa,

    simultaneamente, aqui no corpo e l alm do horizonte, revelam essatenso melhor do que qualquer histria.

    Recebido em 14 de junho de 1999

    Traduo: Ktia Maria Pereira de Almeida

    Notas

    1 Ricoeur, por exemplo, escreve: o tempo no se torna humano seno namedida em que articulado sob um modo narrativo, e o relato no atinge sua sig-nificao primeira, seno quando ele se torna uma condio da existncia tempo-

    ral (1983:105).

    2 Uma das objees mais comuns em relao ao estudo das imagens nessecontexto diz respeito ao que poderia ser denominado de pobreza semitica pecu-liar linguagem icnica. Nunca confunda um desenho com um texto, preveniaapropriadamente Gombrich no seu famoso livro The Sense of Order(1979): omodo de produzir significado de um desenho argumentava o grande historia-dor da arte totalmente diferente daquele do signo. Um desenho deve ser apre-ciado livremente de modo esttico, um signo deve ser decifrado a partir de regrasimplcitas (Gombrich 1979:362). Como conseqncia, a comunicao atravs de

    signos tende a ser mais fcil e precisa, enquanto a comunicao por imagens difcil, sempre arbitrria, inevitavelmente vaga (Severi 1997). Uma das razesinvocadas para essa impreciso a impossibilidade de as imagens expressaremum aspecto essencial da linguagem: a negao. Se nenhuma negatividade podeser expressa em termos icnicos, ento as imagens devem ser consideradas logi-camente muito fracas para sustentarem qualquer memria social.

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    3 Os trabalhos de Georges Devereux e Gregory Bateson so certamente, pordiferentes razes, as tentativas mais competentes e bem-sucedidas de desenvol-ver uma abordagem do estudo dos fatos sociais capaz de enriquecer as idias de

    Freud.

    4 Ver, p. ex., Chapin (1983:93), que trabalhou com especialistas kuna entre1971 e 1976: os nuchucana (figuras ou estatuetas rituais esculpidas em pau-de-balsa) medem normalmente um p de altura e so esculpidos quase invariavel-mente para se assemelharem a no-ndios.

    5 Os estudos de Stoller dedicados ao movimento Hauka (1984; 1989) somemorveis e intelectualmente instigantes. Os membros desse movimento, que

    comeou entre os Songhay na Nigria francesa e em Gana britnica por volta de1925, danavam e ficavam possudos pelos espritos dos administradores colo-niais. A reao das autoridades coloniais consistia em reprimir o movimento eaprisionar tantos membros do Hauka quantos fosse possvel capturar.

    6 Os ndios Kuna vivem hoje no Arquiplago de San Blas, no Panam. Anao kuna conta com cerca de 27 mil a 30 mil pessoas, que falam uma lnguatradicional pertencente famlia chibcha (Holmer 1947; 1951). Um pequeno gru-po kuna, que ainda rejeita qualquer contato com o homem branco, vive na regioChucunaque da Floresta Dorien, prxima fronteira com a Colmbia. Os Kuna

    so basicamente agricultores tropicais. Em seu breve levantamento histrico, Stout(1947) especula que a sociedade kuna, uma das primeiras a entrar em contatocom os homens brancos depois da descoberta do continente americano, era rigi-damente estratificada, e dividida em quatro classes: lderes, nobres, cidados eescravos. Hoje, o poder poltico controlado pela onmakket, uma assembliaque rene todos os homens adultos da aldeia, apoiada por um nmero varivel delderes eleitos (sailakan). O sistema de parentesco kuna bilinear, uxorilocal ebaseado em uma exogamia estrita (Howe 1976; 1986). Um levantamento prelimi-nar da bibliografia sobre os kuna pode ser encontrado em Kramer (1970); Howe,

    Sherzer e Chapin (1980); Sherzer (1983; 1990); Severi (1993).

    7 Um estudo comparativo dessa representao do Branco entre os ndiosamericanos ainda est por ser feito. Os trabalhos de Basso (1966) e Erikson (1996)constituem dois exemplos interessantes.

    8 Uma primeira verso desta seo foi apresentada no congresso sobre Pai-sagens Sobrenaturais, realizado na Universidade de Heidelberg, em novembrode 1995.

    9 A respeito deste canto, dedicado terapia daquilo que os Kuna chamamlocura, ou doena mental, ver Holmer e Wassen (1958); Severi (1982; 1987; 1993).

    10 A respeito desses comentrios, ver Severi (1982:33-34).

    11 A respeito dos videntes e xams na tradio kuna, ver Severi (1987).

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    12 O nome deste esprito em kuna Nele Ukkurwar, que quer dizer literal-mente Tronco Leve, o Vidente. Ele sempre referido no texto pelo termo kilu(tio, literalmente) que se aplica a pessoas adultas e respeitveis. O termo Nele

    (vidente) designa: 1. os heris culturais da mitologia kuna; 2. o adivinho a quem atribuda a tarefa de estabelecer um diagnstico; 3. os espritos auxiliares doxam-cantor, representados pelas estatuetas de madeira durante o ritual de reci-tao dos cantos. A respeito desses tpicos, ver Severi (1987).

    13 O significado literal da palavra kuna kalu, traduzida aqui por aldeia(como si ocorrer na literatura antropolgica dedicada aos Kuna), cercado,cerca. A cerca da cabana tradicional kuna tambm chamada de kalu. A res-peito desses temas, ver, p. ex., Herrera, Cardale e de Schrimpff (1974).

    14 Uma verso deste canto, em kuna e espanhol, foi publicada em Holmer eWassen (1963).

    15 Depois que os pranteadores se vo, o ltimo ato dos coveiros prenderuma corda a uma das estacas da rede e estic-la at o outro lado do rio; a primei-ra pessoa que subir ou descer o rio deve cort-la (Stout 1947:40). Esse rito repe-tido por trs dias consecutivos aps a morte, alm do nono dia do primeiro ms edo trigsimo dia dos prximos seis meses. Prestan (1975:105) acrescenta a essadescrio que um nmero de disparos feito com uma arma, de modo a avisar

    as pessoas que o ritual est terminado. Prestan tambm menciona dois aspectosdesse ritual que eu no estou analisando aqui: a partilha da comida com as pes-soas mortas e a oferenda de sementes de cacau aos espritos (Prestan 1975:106).

    16 Este canto foi publicado originalmente, em uma verso incompleta, emHolmer e Wassen (1947), e ento em uma verso nova e completa em Holmer eWassen (1953).

    17 Sobre os conceitos kuna relativos ao princpio vital (purpa, significando

    duplo, nika, fora fsica, kurkin, fora espiritual ou influncia), ver Severi(1987; 1993).

    18 Aqui eu corrijo a traduo de Holmer e Wassen (o barco do estrangei-ro). A palavra kuna waka tal como usada aqui se aplica apenas aos Brancos.

    19 Outra expresso para designar o sexo feminino.

    20 Esse significado confirmado tambm pelo simbolismo usado nos rituaisde iniciao femininos, nos quais uma corda de algodo designa um cordo

    umbilical (Prestan 1975:52). Em outro canto, aquele narrando as origens de Tron-co Leve, os fios so sempre identificados com a matriz genital da Primeira Me(Velasquez 1992:702 e ss.).

    21 O significado ritual das folhas de banana selvagem bem ilustrado porChapin (1983:401-403).

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    22 Stout escreve, entretanto, que o cu kuna tem tambm oito camadas: OsKuna concebem o mundo como um plano terrestre no qual as pessoas vivem, comum cu de oito camadas invisveis acima e um submundo de oito camadas abaixo

    [...] (Stout 1947:40).

    23 Lovejoy (1936) reconstruiu as origens e a evoluo desse conceito no seuclssicoA Grande Cadeia do Ser. Para um debate contemporneo sobre essa ques-to, ver, p. ex., Premack e Premack (1994). Uma primeira discusso desse assuntopode ser encontrada em Severi (1982).

    24 Se essa cultura vista como a mesma cultura dos humanos, uma espciede imagem refletida projetada nos reinos vegetal e animal pela sociedade (como

    Viveiros de Castro 1996 argumentaria), ou se, ao contrrio, a sociedade concebe omundo natural como uma cultura diferente, , normalmente, uma questo devariao cultural. O caso kuna corresponde mais a esta ltima hiptese.

    25 Contrariando o que Holmer e Wassen escreveram, no existe nenhummodo de traduzir esse texto fazendo referncia a uma doena obscura (Holmere Wassen 1963:27, nota 1). O texto kuna e, a saber, a expresso nekulu ekarkwe-nasatti muchuppi no deixam dvida a respeito do significado dessa passagem.Nekulu sempre significa sob a terra, e a mesma expresso kalu ekarkwenai apa-rece no Canto do Demnio com o mesmo significado: a aldeia est coberta de

    nuvens (Gomez e Severi 1983:152-153).

    26 Toila em kuna; Lurocalis semitorquatus na denominao cientfica [bacu-rau uma designao comum para pssaros caprimulgdeos. A espcie referida conhecida em portugus como tuju. N.T.].

    27 Trabalhar, neste caso, significa manter relaes sexuais com.

    28 Os Nuchumarso os espritos auxiliares do xam kuna, que representam

    geralmente (embora nem sempre) rvores ou espritos vegetais.

    29 Eu coletei este texto, traduzido aqui do kuna, durante minha expediode 1982 aldeia de Mulatupu.

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  • 8/8/2019 Carlo Severi - Xamanismo Kuna

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    Resumo

    Tomando como foco uma anlise da ico-nografia ritual kuna, este artigo procuradelinear uma teoria da memria socialbaseando-se tanto em imagens quantoem narrativas. A emergncia do Espri-to do Branco na iconografia xamnicakuna refere-se longa srie de confli-tos violentos entre ndios e brancos que

    marcam a histria desse povo. Todavia,uma vez inseridas na tradio ritual, es-sas histrias do passado se fundem econdensam em imagens complexas.Dois processos parecem operantes naelaborao dessas imagens: um tende aobliterar o fato externo para inseri-loem um quadro conceitual indgena (acosmologia do mundo sobrenatural); ooutro emprega as ambigidades da cos-

    mologia para representar um aspectosaliente dos recm-chegados. O resul-tado um elaborado (e ritualmente po-deroso) engrama da tradio ritual,que passa a constituir uma parte signi-ficativa da memria social.

    Abstract

    Focussing on an analysis of the Kunaritual iconography, this paper sets outto outline a theory of social memorybased on images as well as on stories.The emergence of White Spirits in kunashamanistic iconography refers to thelong series of violent conflicts that haveopposed Indians and Whites. However,

    once inserted in ritual tradition, storiesof the past collapse, and condense incomplex images. Two processes seemto be at work in the elaboration of theseimages: one tends to obliterate the ex-ternal fact to insert it in an indigenousconceptual frame (the cosmology of thesupernatural world); the other employsthe ambiguities of cosmology to repre-sent a salient aspect of the newcomers.

    The result is an elaborate (and rituallypowerful) engram of ritual tradition,and becomes a significant part of socialmemory.