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Introdução Este livro traduz uma experiência de quase duas décadas no campo do ensino e da investigação científica, nos cursos de graduação e de pós-graduação das Faculdades de Direito em que tenho tido a honra de lecionar. Ao elaborá-lo, sempre tive em mente produzir um instrumento de trabalho que fosse útil ao estudo, à pesquisa, ao raciocínio e à reflexão jurídica dos estudantes, a quem o dedico e ofereço como reconhecimento ao incentivo que deles sempre recebi. Justifica-se, assim, a minha preocupação em oferecer não só um texto claro e conciso, embora sem concessões à superficialidade, como também atualizada informação jurisprudencial e bibliográfica que permita conhecer os modos de realização prática do direito e o processo de renovação científica por que passa o direito civil contemporâneo. Sendo uma introdução ao estudo do direito civil, tem como objetivos básicos: a) iniciar no estudo e na análise das noções, categorias e princípios estruturais que formam a doutrina do direito civil; b) orientar no conhecimento da técnica jurídica, isto é, na arte de aplicar o direito civil aos problemas da vida real, procurando integrar o conhecimento científico com a prática de nossos tribunais; c) contribuir para a formação jurídica do aluno, por meio de uma perspectiva interdisciplinar que possa facilitar a compreensão do fenômeno jurídico; d) suscitar uma reflexão teórica sobre a necessidade de renovação do direito civil, acompanhando o processo de mudança por que passa atualmente o direito, por força das transformações econômicas e sociais que se processam na sociedade contemporânea. O direito civil é o direito comum, é o direito que se aplica à generalidade das pessoas e das relações jurídicas de natureza privada. Compreende uma parte de direitos pessoais, que protegem a pessoa humana e sua família, uma parte de direitos patrimoniais, pertinentes à atividade econômica, à propriedade dos bens e à prestação de serviços, e ainda uma terceira, de importância crescente na teoria e na prática, que é da responsabilidade civil, cujas normas disciplinam a indenização do dano alheio.

CAPÍTULO I

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Page 1: CAPÍTULO I

Introdução

Este livro traduz uma experiência de quase duas décadas no campo do ensino e da investigação científica, nos cursos de graduação e de pós-graduação das Faculdades de Direito em que tenho tido a honra de lecionar.

Ao elaborá-lo, sempre tive em mente produzir um instrumento de trabalho que fosse útil ao estudo, à pesquisa, ao raciocínio e à reflexão jurídica dos estudantes, a quem o dedico e ofereço como reconhecimento ao incentivo que deles sempre recebi.

Justifica-se, assim, a minha preocupação em oferecer não só um texto claro e conciso, embora sem concessões à superficialidade, como também atualizada informação jurisprudencial e bibliográfica que permita conhecer os modos de realização prática do direito e o processo de renovação científica por que passa o direito civil contemporâneo.

Sendo uma introdução ao estudo do direito civil, tem como objetivos básicos: a) iniciar no estudo e na análise das noções, categorias e princípios estruturais que formam a doutrina do direito civil; b) orientar no conhecimento da técnica jurídica, isto é, na arte de aplicar o direito civil aos problemas da vida real, procurando integrar o conhecimento científico com a prática de nossos tribunais; c) contribuir para a formação jurídica do aluno, por meio de uma perspectiva interdisciplinar que possa facilitar a compreensão do fenômeno jurídico; d) suscitar uma reflexão teórica sobre a necessidade de renovação do direito civil, acompanhando o processo de mudança por que passa atualmente o direito, por força das transformações econômicas e sociais que se processam na sociedade contemporânea.

O direito civil é o direito comum, é o direito que se aplica à generalidade das pessoas e das relações jurídicas de natureza privada. Compreende uma parte de direitos pessoais, que protegem a pessoa humana e sua família, uma parte de direitos patrimoniais, pertinentes à atividade econômica, à propriedade dos bens e à prestação de serviços, e ainda uma terceira, de importância crescente na teoria e na prática, que é da responsabilidade civil, cujas normas disciplinam a indenização do dano alheio.

Configura-se, portanto, como a regulamentação jurídica da sociedade civil, assim entendido o universo social em que se desenvolvem as relações de natureza familiar e econômica, com base na igualdade jurídica e no poder de autodeterminação das pessoas, com as limitações decorrentes da atuação jurídica dos demais componentes sociais. O seu estudo científico, indispensável à atividade dos profissionais de direito, deve levar em conta, porém, as condições políticas, econômicas e sociais que determinaram ou influíram no seu processo de formação histórica e cultural, assim como as funções que pode desempenhar na solução dos problemas típicos de uma sociedade em desenvolvimento, tendo presentes os valores e os princípios que lhe servem de fundamento e lhe conferem legitimidade.

E por isso conveniente, se não necessário, articular a ciência do direito, e, particularmente, o direito civil, com as demais ciências sociais, de modo a compreender melhor o que realmente seja o direito civil. E, nesse processo interdisciplinar, ressalta a importância da história das instituições jurídicas, pois quem não tiver a percepção do sentido histórico do direito só pode ter dele uma visão estática. O direito é uma regulamentação da vida que arranca da realidade, inter-relacionando-se com outros sistemas de valores para a solução dos conflitos de interesses.

O recurso às ciências sociais, por meio de um processo interdisciplinar, permite ainda inserir o direito civil, que é um direito de formação histórica e jurisprudencial, em uma perspectiva global da cultura, superando-se, desse modo, o mito da neutralidade científica tão caro ao positivismo e ao formalismo, tradicionalmente imperantes em

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nossos meios jurídicos. E também se aproxima o direito da realidade concreta, donde provém e à qual se destina, como um dos mais credenciados instrumentos de transformação social de que o homem dispõe.

Essa articulação do direito, enquanto ciência relativamente autônoma, com a história e as demais ciências sociais (sociologia, economia, antropologia), leva também a urna percepção crítica do fenômeno jurídico, no sentido de o jurista considerar as condições políticas, econômicas e sociais que determinam ou condicionam as normas jurídicas, do que resulta poder verificar-se a sua adequação aos modelos da sociedade contemporânea.

Coerentemente com tal concepção, conjugam-se neste livro: a) uma perspectiva científica, segundo a qual o direito civil se estuda por meio dos seus conceitos, categorias e estruturas fundamentais, assim como na realização de suas normas; b) uma perspectiva sociológica, que considera as funções do direito civil na sociedade contemporânea e c) uma perspectiva filosófica, que identifica os valores e os princípios que o fundamentam e legitimam. Tais dimensões permitem ao estudioso aprender de modo abrangente e aprofundado a experiência jurídica no campo do direito civil, entendendo-se como tal o conjunto de manifestações jurídicas com que se têm solucionado, no curso de sua existência, os conflitos de interesses que a vida em sociedade faz nascer. No que, particularmente, diz respeito à vertente científica, preocupa-se o autor em expor a matéria que constitui a chamada teoria geral do direito civil, e que se concretiza nas normas e institutos da Parte Geral do Código Civil, com a jurisprudência que resulta de sua aplicação concreta aos casos da vida real.

No desenvolvimento dessa matéria adotam-se orientações metodológicas consagradas, segundo as quais pode-se estudar o fenômeno jurídico sob a perspectiva da norma jurídica, da relação jurídica e da instituição jurídica, integrando-as, porém, na visão global e mais elevada, que é a da experiência jurídica, expressão nacional do modus vivendi da nossa sociedade, no curso de sua existência.

Para os que adotam a primeira perspectiva, o direito é essencialmente norma, regra de comportamento criada pelo Estado para resolver conflitos de interesses. O direito vale porque imposto pelo Estado, considerado como sua fonte exclusiva. Teoria mais identificada com o direito público, tem conotação essencialmente política, devendo refutar-se no que tem de extremado quando considera o Estado como fonte exclusiva da criação jurídica, concepção monista há muito superada.

Para a teoria da relação jurídica, que preferencialmente se adota, embora consciente de suas limitações críticas, o direito é um sistema de relações juridicamente disciplinadas e ordenadas pelas regras jurídicas. Seu conceito fundamental é a relação intersubjetiva, que tc'in como idéia-chave a autonomia privada, poder dos particulares dr criar relações jurídicas e estabelecer-lhes o respectivo conteúdo (direitos e deveres).

A teoria da instituição é outro endereço metodológico de estudo do fenômeno jurídico, também afim ao direito público. Para seus defensores (Hauriou, Renard, Santi Romano, etc.), o direito é, essencialmente, organização, estrutura, enfim, instituição, que se define como grupo social, dotado de uma ordem jurídica e uma organização específica. A instituição nasce de uma idéia que se realiza através de uma ordem e de uma organização jurídica, tendo uma existência objetiva e concreta, exterior e visível1.

A concepção do direito como experiência jurídica, compreensiva das demais perspectivas, traduz a atividade humana em todos os sentidos e em todas as manifestações que configuram o lado humano da história, e representa o esforço máximo realizado pelo pensamento jurídico mais atual, para reunir e organizar o que se costuma chamar de vida do direito.2

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Pode-se, assim dizer, que nenhuma dessas perspectivas anula as demais, sendo apropriado salientar que elas não se excluem, antes se completam, constituindo-se, porém, a norma de direito em condição necessária e suficiente para o relacionamento jurídico das pessoas e a organização e disciplina da sociedade.

Tratando-se aqui de uma introdução ao direito civil, segue, entretanto, este livro, a perspectiva ainda dominante nessa matéria, que é a da relação jurídica, embora ciente das críticas atuais a tal conceito, que tem como referencial básico a experiência privada, "na qual a vida jurídica se apresenta, principalmente, como um conjunto de relações que a norma jurídica estabelece de modo típico e comum, e das quais a autonomia dos particulares estabelece o conteúdo preceptivo".3

A ordem seguida na explanação da matéria é coerente com a perspectiva adotada. Tomando-se por base a relação jurídica, expõem-se os respectivos aspectos doutrinários e normativos que se

--------1 Santi Romano. L'ordre Juridique (Paris, Dalloz, 1975) p. 26.2 Ricardo Orestano. Inlroduzione alio studio dei diritto romano (Bologna, II Mulino, 1987) p. 360.3 Sergio Costa. Prospective di Filosofia del direito. 2. ed. (Torino, Giappichclli, 1974 n. 50.--------sistematizam em torno dos seus elementos fundamentais, a saber: os sujeitos, o vínculo, o objeto e a sua causa determinante, os fatos jurídicos.

O primeiro capítulo contém noções de sociologia e de filosofia do direito, dedicando-se ao conceito e às funções do direito em geral e, particularmente, às do direito civil, explicitando os seus valores fundamentais. O segundo capítulo dedica-se à teoria geral da norma jurídica de direito privado, expondo as diversas concepções teóricas acerca de sua natureza, estrutura, aplicação e classificação. O terceiro capítulo apresenta verdadeiramente o direito civil, estudando-o na sua gênese, caracterização e processo evolutivo, indicando-se ainda o seu conteúdo, isto é, as instituições fundamentais que sua disciplina contém. O capítulo quarto dedica-se à relação jurídica de direito privado, desenvolvendo-se como o estudo pormenorizado do seu conceito, fundamento doutrinário, importância atual, estrutura, conteúdo e espécies. Os capítulos subseqüentes dizem respeito aos elementos da relação, vale dizer, os sujeitos (as pessoas), o objeto (os bens), assim como os acontecimentos que os determinam (os fatos jurídicos), formulando com os princípios fundamentais que lhes são inerentes, uma teoria da personalidade, uma teoria do patrimônio e uma teoria do negócio jurídico. Com esse material doutrinário, que deve alimentar-se permanentemente com a consulta ao código e à jurisprudência, em um processo de enriquecimento recíproco da teoria com a prática jurídica — pois o direito é expressão inseparável da vida social, a cuja organização e disciplina se destina — acredito poder colocar à disposição dos meus alunos e dos estudiosos em geral um instrumento de trabalho para a pesquisa e a reflexão científica sobre o direito civil, que ainda se constitui na principal esfera de afirmação da personalidade humana e de realização dos seus mais legítimos anseios de liberdade e de igualdade material.

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CAPÍTULO I

O Direito. Estrutura. Funções. Fundamento.

Sumário: 1. O direito. Significados e perspectivas de estudo. 2. O direito. Gênese e estrutura. 3. As funções do direito. 4. O fundamento do direito. Os valores. 5. A justiça. 6. A segurança. 7. O bem comum. 8. A liberdade. 9. A igualdade. 10. A teoria do direito civil. 11. O direito civil como norma jurídica. 12. O direito civil como relação jurídica. 13. O direito civil como instituição. 14. Apreciação crítica. 15. O direito como sistema. O sistema de direito civil. 16. O método adotado. 17. O direito e a justiça. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. 18. A metodologia da realização do direito. A decisão justa do caso concreto.

1. O direito. Significados e perspectivas de estudo.A palavra direito pode ter vários significados. É um termo po-lissêmico, donde a dificuldade de uma definição única1.---------------l Definir o direito não é tarefa do jurista, mas do filósofo. Do primeiro espera-se que declare o que é direito (quid iuris), do segundo, o que é o direito (quid ius). Cfr. Alain Seriaux, in Droits, n2 10, p. 85. E útil, porém, ao civilista, fornecer algumas noções básicas e introdutórias, como é o conceito de direito, pressuposto de sua exposição. Cfr. Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, p. 16, Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito, p. 47. O problema da dc-l inição do direito surge na cultura jurídica moderna, como resultado do processo de posilivação, c ligiulo il idéia de que o direito pode ser estudado e classificado por meio de instrumentos análogos aos que estudam e classificam os fenômenos naturais. Cfr. Giorgio Rebuffa, Dirino, in Digesto delle Discipline Privatistiche, p. l e segs.2 Manuel Atienza, Juridicité, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit, p. 322; Luiz Dicz Picazo, Experiências Jurídicas y Teoria dei Derecho, 1993, p. 6. André — Jcan Arnaud / Maria Josó Farinas Dulce, Sistemas Jurídicos: Elementos para uma análise sociológica, p. 250.---------------

Na acepção mais comum e freqüente, usa-se para designar o conjunto de prescrições com que se disciplina e organiza a vida em sociedade, prescrições essas que encontramos formuladas e cristalizadas em regras dotadas de juridicidade, isto é, de caráter jurídico, o que as diferencia das demais regras de comportamento social e lhes confere eficácia garantida pelo Estado. A juridicidade, conceito novo na ciência do direito, significando o atributo que diferencia a regra do direito das demais regras de comportamento social, serve de fronteira entre o jurídico e o não jurídico, caracterizando as normas que pertencem aos sistemas de direito, conjuntos de princípios e regras dotadas de legitimidade e obrigatoriedade2.

Essas regras ou normas estão nas leis, nos costumes, na jurisprudência, nos princípios gerais do direito, constituindo o chamado direito objetivo, de ob + jectum, exterior ao sujeito, e positivo, no sentido de que é posto na sociedade por uma vontade superior. E o ius in civitate positum. E neste sentido que se utiliza para designar o direito vigente, por exemplo, o direito brasileiro, o direito civil, o direito penal etc. Toma-se aqui o direito corno conjunto de regras jurídicas.

Em outra acepção, ligada à primeira e dela dependente, direito designa um poder que o sujeito tem de agir e de exigir de outrem determinado comportamento. É o chamado direito subjetivo, de sub + jectum, reconhecido e garantido pelo direito

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objetivo, como por exemplo, o direito de propriedade, o direito do consumidor, o direito do inquilino, do credor, do possuidor, etc.

Em perspectiva mais idealista e menos freqüente, traduz um sentimento de justiça. Quem diz "não é direito o que fazem comigo", ou "isso não está direito", refere-se a um comportamento injusto. Neste caso, direito é expressão de justiça.

Em outro sentido, ainda, designa a ciência jurídica, o conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que têm como objeto o próprio direito como ordem social, na sua estrutura e função, nos seus métodos de elaboração e realização e nos seus fundamentos, enfim, na fenomenologia da sua existência, validade e eficácia3.

Essa polissemia, que produz uma certa ambigüidade, dificultando uma definição precisa do direito, revela a complexidade do mundo jurídico, que é plural e diverso, como se pode verificar no curso de sua história, sendo exemplo, no ordenamento medieval, o direito dos feudos e das corporações, e hoje em dia, a multiplicidade de fontes, de sistemas e de meios de solução de conflitos (direito comunitário, direitos especiais etc.).

Notas incontroversas do direito são o seu caráter humano e social4 porque ele existe em razão dos homens que se relacionam entre si. Onde houver sociedade, lá estará o direito (ubi societas, ibi ius] que, reciprocamente, também a pressupõe (ubi ius, ibi societas), sendo inconcebível uma regra jurídica que não a tenha como referência. Regulando os comportamentos humanos e sociais, é também modelo de organização social que se formaliza e estrutura segundo determinados critérios, os chamados valores, dos quais o mais importante é, para nós, a justiça. A par da humanidade e da socialidade, uma outra característica é a sua normatividade, isto é, o direito como regra ou norma5 dotada de juridicidade, própria da concepção normativista que domina a teoria jurídica, e orienta o raciocínio dos juristas que buscam soluções para os conflitos de-------------------3 Reale, op. cit., p. 61/64, Simone Goyard — Fabre, Lês grandes questions de Ia phílosophie du droit, p. 9. Maria Helena Diniz, A ciência jurídica, p. l e segs.4 Digesto, 1.5.2. "... hominum causa omne ius constitutum sit, ..."5 Ângelo Falzea, Introduzione alie scienze giuridiche, p. 16. A opinião amplamente dominante na doutrina é a da norma como sinônimo de regra. Cf. Reale, op. cit., p. 65/67; Mario Jori, Norme, e Jerzy Wroblewski, Règle, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit, p. 399 e 520; Ricardo Guastini, Norma giuridica, in Digesto delle Discipline Privatistiche, XII, p. 155. Norberto Bobbio, Norma giuridica, in Novíssimo digesto italiano, XI, p. 330 e segs.; Franco Modugno, Norma giuridica. Teoria generale, in Enciclopédia dei diritto, XXVIII, p. 238; Jacques Guestin et Giles Goubeaux, Traité de Droit Civil. Introduction Generale, p. 5, nota 7, onde se reafirma que norma e regra usam-se como sinônimos, embora possa reconhecer-se na regra um caráter mais geral e abstrato, e na norma uma dimensão mais individual e concreta. Cfr. ainda, Jean François Perrin, Règle, in Archives de Philosophie du Droit, tome 35, p.245, e Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1991, p.297 e segs. (há tradução portuguesa de José Lamego, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991), o Álvaro D'Ors. Una inlroducción ai estúdio dei de.recho, p. 24.-------------------interesses, e constróem, com o seu trabalho, a chamada experiência jurídica de um povo.6 O direito apresenta-se, então, como um ordenamento jurídico, um conjunto de normas que rege uma comunidade7 impondo ou oferecendo modelos de comportamento.

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Se a polissemia do termo torna difícil uma definição única do direito, pode-se, todavia, tentar compreendê-lo no processo de sua formação histórica.

O direito, particularmente o direito civil, vem se formando ao longo dos séculos como inerente à vida e à cultura dos povos, tendo como sentido e razão de ser a solução de conflitos, do que resulta o caráter de sua problematicidade, vale dizer, a sua função de pensamento chamado a resolver questões jurídicas concretas.8 É um produto histórico, que se forma ao longo dos tempos, corno cultura e como processo de solução de controvérsias, que vai da previsão dos conflitos, pela tipicidade estabelecida nas regras, até chegar a uma institucionalização dos órgãos e dos critérios de decisão, critérios esses ditados pela ética da comunidade a que se destina. Como cultura, exprime valores espirituais da sociedade humana, sendo por isso, também, fenômeno cultural. Como processo de solução de conflitos, é uma técnica a serviço de uma ética.

Para a concepção normativista (o direito essencialmente como norma), surgem várias perspectivas de estudo. Tem-se, em primeiro lugar, a perspectiva científica, a da ciência do direito, "conjunto de conhecimentos ordenados segundo princípios" e com método próprio. Ocupa-se da estrutura do direito, vale dizer, de suas normas, institutos, conceitos e categorias, material com que trabalha a doutrina jurídica no processo de análise, interpretação e aplicação das regras. Estuda o direito que é, o direito positivo. Em segundo lugar,-------------6 Reale. O Direito como Experiência, p. XXXII, e segs; Diez-Picazo, op. cit. p. 10; Ricardo Orestano, Introduzione alio studio dei diritto romano, p.357.7 A crítica que se faz hoje a essa concepção, o direito como norma, é no sentido de que nos revela algo já pré-estabelecido, as regras jurídicas, e posto como ponto de partida para a técnica de aplicação do direito. A essa concepção contrapõe-se a idéia de que o direito é mais do que normas, é uma prática social, um processo permanente de construção, sob a influência de considerações ético-jurídicas. Cfr. Ronald Dworkin, Talking Rights Seriously London, 1977; Francisco Viola, // diritto come pratica sociale, 1990, p. 159.8 Antônio Castanheira Neves, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, p. 71.-------------a perspectiva sociológica, da sociologia do direito, que estuda a relação direito-sociedade, preocupando-se com a eficácia e as funções das normas jurídicas, mais propriamente, com a análise sociológica dos sistemas jurídicos, o que lhe permite apreciar o sistema em sua totalidade e em relação com o seu contexto.9 Interessa-se pelo que o direito deve ser. Em terceiro lugar, a perspectiva filosófica, que se ocupa dos fundamentos da ordem jurídica, vale dizer, dos valores que lhe dão sustentação e legitimidade, e dos quais, os mais importantes são a justiça, a segurança e o bem comum. Estuda o fundamento do direito, dando ênfase à justiça como especial valor a realizar. E ainda a perspectiva histórica, que permite conhecer a gênese e evolução das instituições jurídicas, matéria objeto da história do direito. Estuda como o direito se formou, ao longo dos séculos.

Temos ainda, diretamente relacionada com a ciência e a filosofia do direito, a perspectiva metodológica, com importância crescente no estudo dos processos de aplicação e de realização do direito. A metodologia jurídica, não como disciplina autônoma,10 mas como proposta de reflexão filosófica sobre o processo de realização do direito, não procura somente definir técnicas ou estabelecer regras instrumentais para aplicá-lo, mas também refletir sobre ele de modo crítico, vendo-o mais como prática social e prudência! do que como conjunto de regras vigentes em determinada sociedade. Para seus cultores, o direito é um pensamento que se destina a resolver problemas

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práticos, configurando-se mais como "ciência de decisão" do que como "ciência do conhecimento". Estuda como o direito se realiza.

De tudo isso conclui-se que o direito, na ambigüidade e na polissemia do seu termo, e na sua própria natureza histórico-cultural revela, mais do que uma configuração técnico-científica, uma natureza problemática e uma função prática que exigem do jurista não só o conhecimento mas, principalmente, a compreensão do seu sentido e significado, e da sua importância como instrumento de organização e disciplina social e como expressão da cultura e da experiência jurídica de um povo. O direito não é, assim, um dado, mas um processo que permite reunir as suas diversas perspectivas----------------9 André — Jean Arnaud / Maria José Farinas Dulce, op. cit., p. 26. Elias Diaz, Sociologia y Filosofia dei Der acho, p. 60.10 Nelson Saldanha, Dt.i teologia à metodologia, p. 104.----------------em uma construção permanente, in fieri, das normas jurídicas, superando-se a distinção entre o ser e o dever ser.São essas as perspectivas que hoje mais interessam e que, neste livro, se pretende observar, como introdução ao estudo do direito civil, na sua formulação mais teórica e geral, na compreensão de seus princípios e valores, no conhecimento das suas estruturas e de suas funções, e no processo de sua realização prática.2. O direito. Gênese e estrutura.Ao longo do seu processo de evolução histórica, o direito vem se apresentando como um conjunto de normas que têm por objetivo a disciplina e a organização da vida em sociedade, resolvendo os conflitos de interesses e promovendo a justiça. Justifica-se, assim, o predomínio da concepção normativa do direito.A compreensão do que realmente seja o fenômeno jurídico não deve partir da visão do direito como simples conjunto de normas ou como determinado procedimento de solução de conflitos de interesses, mas da certeza de ser ele produto de uma realidade complexa e dinâmica, que é a vida em sociedade, com seus problemas e controvérsias. Disso lhe advém a já referida natureza problemática e o reconhecimento de sua função prática.Como produto histórico e, conseqüentemente, cultural, o direito resulta de um processo de institucionalização de práticas e de comportamentos típicos, de órgãos e de critérios de decisão, que a sociedade e o Estado estabelecem, para o fim de dirimirem conflitos de interesses, previsíveis e tipificados. Como diz Reale11, "o direito surge quando os jurisconsultos romanos, com sabedoria empírica, quase intuitiva, vislumbraram na sociedade "tipos de conduta" e criaram, como visão antecipada dos comportamentos prováveis, os estupendos modelos jurídicos do direito romano".Esses modelos jurídicos, que funcionam como "diretivas para a ação", fins ou valores a realizar, formalizam-se em estruturas jurídicas, compreendendo as normas, os institutos, as instituições, os conceitos, a.s categorias, enfim, todos os elementos que, de natureza essencialmente técnica e formal, ajudam a construir o sistema de direito.--------------11 Reale, Liçõfis Preliminares de. Diniito, p. 185.--------------As normas jurídicas são públicas (quando contidas nas leis, sentenças, atos administrativos) e privadas (quando nos contratos). Os institutos são conjuntos de normas que disciplinam uma determinada relação jurídica (exemplo, o casamento, a propriedade, a filiação, o contrato etc.). As instituições, termo de natureza sociológica, são grupos sociais dotados de uma determinada ordem e uma organização interna, que

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se criam e se justificam por um fim comum, como a família, a empresa, o Estado. Instituto é uma construção técnico-jurídica, enquanto instituição é um grupo social, dotado de ordem e organização.Conceitos e categorias são instrumentos que o jurista utiliza no seu trabalho de elaboração jurídica, isto é, na sua atividade de criação de normas e de elaboração dos sistemas e da própria terminologia da ciência do direito. Os conceitos são representações mentais de objetos, indivíduos ou fenômenos. Sua função é a de descrever, classificar ou organizar os dados da experiência concreta, no caso, a jurídica, permitindo estabelecer conexões de natureza lógica, e facilitando o raciocínio jurídico. Produto de uma atividade de abstração, o que, por vezes, os leva a desligarem-se demasiadamente da realidade, são elementos fundamentais do sistema e da ciência do direito. Sua utilidade está, no fato de permitir, não só o conhecimento teórico, indispensável à reflexão crítica, como também a subsunção de todos "os objetos que apresentam as mesmas notas compreendidas no conceito", com a formulação de regras para tudo o que se compreender no seu âmbito de aplicação. É o que se verifica, por exemplo, com os conceitos fundamentais de domicílio (C.C. art. 70), de empresário (C.C. art. 966), de pessoa, bem, relação jurídica, capacidade, contrato, direito real, direito de crédito etc., que, inseridos no sistema jurídico (na teoria ou na parte geral do Código Civil), permitem estabelecer a disciplina básica que irá reger todos os casos que venham a subsumir-se nas hipóteses conceitualmente estabelecidas, evitando repetições supérfluas12.Distinguem-se, nos conceitos, a compreensão e a extensão. Compreensão é o conjunto de notas ou características que o conceito encerra. Por exemplo, o conceito de cidadão brasileiro, compreende as características de homem, de nacionalidade brasileira, e titular de direitos de cidadania. Extensão é o conjunto de objetos ou--------------12 Laurenz, op. dl. p. 536.--------------indivíduos que o conceito abarca. Por exemplo, no Código Civil, art. l2, o conceito de pessoa abrange todos os indivíduos da espéciehumana.Entre os conceitos estabelecem-se relações de coordenação e de subordinação. Nestas, submetem-se os conceitos que se põem sob outros mais amplos (os subordinantes). Na subordinação há que distinguir o gênero, da espécie e do indivíduo. Gênero é conceito subordinante que compreende conceitos subordinados. Indica um conjunto de espécies de características comuns. Espécie é conceito subordinado de menor extensão que o gênero. Significa um conjunto de indivíduos, da mesma natureza. Indivíduo é o ente singular que pertence, como unidade, a uma espécie. Estas noções têm utilidade nas classificações jurídicas. Nos bens jurídicos, por exemplo, bem é gênero, móvel é espécie, e livro é indivíduo. Nos contratos, a compra e venda é um ato que se subordina às regras da espécie contrato (C.C. art. 488) que, por sua vez, se subordina às do gênero negóciojurídico.Os gêneros supremos, isto é, os conceitos mais universais, chamam-se categorias, "quadros em que se agrupam, por afinidade, os elementos da vida jurídica"13 e fora dos quais não se reconhece eficácia jurídica. São conceitos universais, por exemplo, os de direito subjetivo, de direito pessoal, de direito real, de dever, de relação jurídica, de sanção, de pessoa etc. Aplicação prática disso está por exemplo no fato de que, tendo os direitos do consumidor uma disciplina específica, basta qualificar um direito como tal, para que lhe seja aplicado o respectivo regime.

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Sistematizando-se tais modelos ou estruturas, chega-se na matéria civil, à construção do Código Civil, conjunto unitário e logicamente ordenado das relações jurídicas de direito privado. O Código Civil Brasileiro é uma lei que disciplina as relações entre os particulares, contendo 2.046 preceitos que se aglutinam em cinco institutos fundamentais: a pessoa ou sujeito de direito, a família, a propriedade, o contrato e a sucessão. Por influência de Teixeira de Freitas, primeiro, e depois do direito alemão, o Código divide-se em uma Parte Geral, que reúne os princípios e regras aplicáveis à generalidade das pessoas, bens e fatos jurídicos, e uma Parte Especial, que compreende o direito de obrigações, o direito de empresa, o direito das coisas, o direito de família e o direito das sucessões.---------------13 Orlando Cioiws, Introduçtlo no tlin-ito civil, p.9.---------------É, assim o Código Civil, um conjunto formado de subconjuntos, ou se quisermos, um sistema composto de sub-sistemas, cada qual dedicado a uma das matérias ou institutos tradicionais do direito civil. As regras têm lugar próprio nesse sistema. Encontrá-las é determinar-lhe a natureza jurídica, tarefa preliminar da técnica de realização do direito.3. As funções do direito.Uma outra perspectiva de estudo do fenômeno jurídico, de particular interesse para o civilista atento às transformações da ordem jurídica privada, é o das funções que o direito pode ter na sociedade contemporânea, problema teórico da sociologia do direito. Nesta perspectiva enfatiza-se a dimensão social do direito, que focaliza a relação entre ele e a sociedade, suas recíprocas influências e modificações.Considera-se, aqui, função, a tarefa, ou conjunto de tarefas que o direito desempenha, ou pode desempenhar, na sociedade humana14.-----------14 André-Jean Arnaud/Maria José Farinas Dulce, Sistemas Jurídicos: Elementos para un análisis sociológico, p. 133 e segs. A idéia de função exprime o conjunto de tarefas que se espera realizar com o direito, de acordo com os objetivos e propósitos de ação dos sujeitos jurídicos, que formulam, aplicam ou se utilizam do direito na sua experiência de vida em sociedade. Nesse sentido, as principais funções do direito seriam as de resolver conflitos, as de regulamentar e orientar a vida em sociedade e as de legitimar o poder político e jurídico. Quanto à primeira, o direito atua para solucionar o conflito de interesses ou restaurar o estado anterior. O direito seria, então, um instrumento de integração e de equilíbrio, oferecendo ou impondo regras de comportamento para a decisão que o caso sugere. O exercício dessa função não levaria, porém, ao desaparecimento dos conflitos, que são inerentes à sociedade. O direito não é uma ordem de paz, mas de conflitos. Desaparecidos estes, desnecessário seria o direito (cf. no direito brasileiro a lei 9.307, de 23.9.96, lei da arbitragem). O direito serve também para orientar o comportamento social, visando evitar os conflitos. O caráter persuasivo das normas jurídicas leva-nos a agir no sentido dos esquemas ou modelos normativos do sistema jurídico. O direito visto desse modo surge como organizador da vida social e como instrumento de prevenção de conflitos. O direito tem ainda a função de organizar o poder da autoridade que decide os conflitos, legitimando os órgãos e as pessoas i. um poder de decisão o estabelecendo normas de competência e de procedimento. Por exemplo, o juiz, o árbitro, os pais, os diretores de pessoas jurídicas são legitimados a agir na forma de ordem jurídica. Outras FunçOes que se atribuem ao direito como a distributiva e a promocional, são tipos que surgiram com o advento do Estado social. Função distributiva é aquela por meio da qual se atribuem os recursos econômicos e não econômicos aos membros do grupo social. Função promocional é

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aquela que visa encorajar determinados comportamentos socialmente desejados. Realiza-se por meio de técnicas de incentivo, e é própria do Estado pós-liberal, assistencial. Cfr. Bobbio. Dalla strutura alia funzione. P. 103 e p. 26. Superado o Estado Social, reduziu-se a importância da função promocional.15 Miguel Reale, O Direito como Experiência, p. 25 e segs., Antonio-Enrique Pérez Luno, Teoria dei Derecho. Una concepción de Ia experiência jurídica, p. 42; Tércio Sampaio Ferraz Jr, Introdução ao Estudo do Direito, p. 88; Castanheira Neves, Fontes do direito, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, II, p. 1.546; Luiz Diez Picazo, Experiências Jurídicas y Teoria dei Derecho, Barcelona, p. 6 e segs. Eurico Opocher, Esperienza giuridica, in Enciclopédia dei diritto, XV, p. 735 e segs.; Giusepe Capograssi, II problema delia scienza dei diritto, p. 25 c segs. Simone Goyard-l-abrc i-t Reno Sève, Lês grandes questions de Ia philosophie du droit, p. 23 i% sc^s.; Micliel Miaillc, Urna Introdução Crítica <4o Direito, p. 21.-----------Dentre as várias funções que se podem atribuir ao direito, destaque-se, pela importância no direito civil, a de resolução de conflitos de natureza privada, quer pelos meios formais de procedimento judicial, quer por meio de mecanismos alternativos e informais, como a mediação e a arbitragem. Dá-se a mediação quando as partes aceitam ou solicitam a intervenção de terceiro neutro, não se obrigando a acatar sua opinião, e a arbitragem quando as partes elegem um árbitro, obrigando-se, previamente, a aceitar a sua decisão. (Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996).A vivência social que interessa ao direito, a chamada experiência jurídica, é uma concreta experiência de conflitos de interesses que o direito é chamado a disciplinar no exercício de uma das suas mais importantes funções, a de resolver tais problemas, visando garantir a realização dos ideais humanos de ordem, justiça e bem comum. Considera-se assim experiência jurídica, a concepção do direito como experiência da vida social e histórica, que se conhece e explica a partir da vivência, não de categorias lógicas, formais e abstratas. Conhecemos o direito porque o experimentamos, porque o utilizamos para garantir nossos bens e realizar nossos fins, umas vezes; porque o sofremos ao ter que adaptar novos atos a seus preceitos, outras; e porque o vivemos sempre."1"Como se realiza essa função? A vida em sociedade desenvolve-se sob a disciplina e a orientação de regras da mais variada espécie.São regras morais, religiosas, sociais, costumeiras, jurídicas, que constituem, em conjunto, vasto sistema de controle social.16Regras, ou normas, procuram estabelecer uma determinada ordem para o comportamento dos indivíduos e dos grupos, fixando critérios de solução para as questões que se apresentam, inevitavelmente, no curso da convivência social.Surgem tais conflitos quando duas ou mais pessoas revelam pretensões antagônicas sobre o mesmo bem17, disputando a sua posse ou propriedade. A reiteração desses conflitos e a necessidade de sua solução fazem com que se estabeleçam normas definidoras do que é lícito ou ilícito, tipificando os fatos que interessam ao direito e institucionalizando os órgãos e os critérios de decisão respectiva. O conjunto dessas normas, que se dirigem ao comportamento humano e que têm no Estado a garantia de sua existência e eficácia, vem a constituir o direito, o mais institucionalizado sistema de organização e controle social, e como um dos seus mais importantes ramos, se não o mais importante, pelo menos o mais antigo, profundo e tradicional, o direito civil, conjunto de normas que protegem os interesses individuais, de natureza econômica e familiar.

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O direito surge, assim, ao longo de um processo histórico, dialético e cultural, como uma prática social que utiliza uma técnica, um procedimento de solução de conflitos de interesses e, simultaneamente, como um conjunto sistematizado de normas de aplicação mais ou menos contínua aos problemas da vida social, fundamentado e legitimado por determinados valores sociais. É, assim, a expressão ile um modo de vida de um povo e de sua cultura.--------------16 Controle Social é o conjunto da influências interiorizadas e ou restrições c-x ternas que a sociedade faz pesar sobre os comportamentos individuais e que justificam a ordem social; Franco Garelli, Controle social, in Dicionário de Política, p. 238 e segs., Elias Diaz, Sociologia y Filosofia dei Derecho, 1984, p. 14; Jean-Guy Ih-lley, Controle social, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie dii droit, pp. 112-116.17 l,ui/. Diez Picazo, op. cit, p. 12. A perspectiva dos conflitos de interesse < nino ponto de partida para o estudo do fenômeno jurídico é de natureza socio-Ittyjc a, enquanto que a perspectiva da norma jurídica é o enfoque tradicionalmente l*uoiit;írio. Conforme a primeira, Jean Carbonnier Flexible droit. Textes pour une sociologia du droit sans rigueur, p. 58 e segs.; Konstantin Stoyanovitch, Lapensée nnti\.i\l<i et lê droil, p. 12; Francisco Carnelutti, Teoria generale dei diritto, p. 85 c- MT.S.; Rudoir von IluTing, La lutle pour lê droit, p. 2 e segs.; Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 53 c segs.--------------Não se limitam a isso, todavia, as funções do direito na sociedade contemporânea. As mudanças sociais decorrentes da revolução industrial e do avanço tecnológico têm exigido do Estado uma intervenção crescente em favor do bem-estar e da justiça social, acentuando-se a importância do direito como instrumento de planejamento econômico, multiplicando-se as normas jurídicas de programação social e estabelecendo-se novos critérios de distribuição de bens e serviços. O direito evolui de suas funções tradicionalmente repressivas para outras de natureza organizatória e promocional, estabelecendo novos padrões de conduta e promovendo a cooperação dos indivíduos na realização dos objetivos da sociedade contemporânea, caracterizando o chamado Estado Social.O ordenamento jurídico não pode ser visto, porém, como uma coisa em si, uma estrutura desvinculada da realidade social em que se situa e à qual se destina na sua criação e funcionamento. Dentro do vasto sistema criado pelas relações sociais, integram-se em um processo de interdependência crescente e interativa, vários subsis-temas, o jurídico, o político e o econômico, de tal modo que o direito, conjunto de normas disciplinadoras do comportamento social, passa a ter também, como efeito inexorável das exigências sociais, a função de organizar a economia e a de institucionalizar os modos de criação e exercício dos poderes públicos. Pode considerar-se, portanto, tríplice o papel do direito: resolver os conflitos de interesses, reprimindo e penalizando os comportamentos socialmente perigosos, organizar a produção e uma justa distribuição de bens e serviços, e institucionalizar os poderes do Estado e da administração pública18; tendo sempre em vista, como causa final e superior, a realização da justiça19. Por sua íntima conexão com o sistema político, é também instrumento do poder dominante20 que, complexo e---------------18 Carlos Maria Carcova, Los funciones dei derecho, in Revista de Direito Público, n2 85, p. 140 e segs.; Giovanni Tarello La nozione de diritto: un approccio prudente, in La teoria generale dei diritto. Problemi e tendenze attuali, p. 344; Norberto Bobbio, Dalla strutura alia funzione, p. 110; Luis Recasens Siches, Tratado General de

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Filosofia dei Derecho, pp. 220/23: Werner Krawietz, Das positive Recht una seine Funktion, p. 15; Tércio Sampaio Ferraz, Função Social da Dogmática Jurídica, Paulo Dourado de Gusmão, Introdução ao Estudo do Direito, p. 109; Vicenzo Ferrari, Fonctions du droit, in Dictionnaire encyclopédique, p. 266.19 Sérgio Cotta, Prospettive ai filosofia dei diritto, p. 135; Mário Bigotte Chorão, Justiça, in Polis Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 3, p. 919.20 Bobbio, Direito, in Dicionário de Política, p. 349.---------------intitucionalizado (poderes públicos e privados), estabelece regras de comportamento e de organização social.Tais funções correspondem, se bem que de modo imperfeito, aos setores em que tradicionalmente se divide o direito: à função de institucionalizar o poder e organizar o seu exercício, o direito constitucional, o direito administrativo e, em parte, o processual; à função repressiva, o direito penal e seus ramos específicos; à função organizadora da produção e circulação de bens e serviços, o direito civil e o comercial, tendo como ponto básico de referência a pessoa humana, com sua família, seu patrimônio, e sua atividade jurídica.Considerando-se tanto a estrutura quanto as funções do direito civil, pode-se então defini-lo como o conjunto de normas que disciplinam a atividade e a realização dos objetivos fundamentais da pessoa na sociedade, protegendo os indivíduos nas suas relações pessoais e patrimoniais, assim como sua família, o grupo social básico em que a pessoa nasce e se desenvolve.De modo geral poder-se-ia dizer que todas essa funções giram em torno de fins básicos do direito contemporâneo que são a realização da justiça e o respeito aos direitos humanos.A dimensão ou perspectiva funcional do direito deve levar em conta, principalmente no que se refere à época moderna (sécs. XVIII e XIX), a correlação estreita entre direito e poder, entre direito e Estado. O direito sem poder é vazio. O poder sem direito é cego21.4. O fundamento do direito. Os valores.As normas jurídicas não são proposições neutras, desvinculadas das razões, motivos ou finalidades que lhes justificam a criação. Toda a técnica jurídica, como conjunto de processos de realização do direito, modela-se em um projeto político-filosófico a serviço do qual se coloca.22 A finalidade desse projeto é a realização de objetivos que a sociedade considera fundamentais e que, por traduzirem uma escolha entre diversas opções, exprimem-se por meio de valores, que constituem a ética da comunidade.-------------21 Gregorio Peces-Barba Martinez, Derecho e derechos fundamentales, p. 17. Javier de Lucas (Coord.). Introducción a Ia teoria dei derecho, p. 120.22 François Rigaux. Introducion à Ia science du droit, p. 382.-------------Fundamento da norma jurídica ou do sistema de direito são, portanto, valores, idéias básicas que se apresentam como qualidades ideais dos bens e que, por isso mesmo, determinam os modos de comportamento individual e social23 "subordinando-os a um sistema de normas cujo cumprimento permite ou destina-se à realização de tais valores". O direito é, portanto, um instrumento de controle social constituído de normas que representam a escolha que o legislador faz entre diversos valores, como resposta à necessidade de solução dos conflitos ou de organização social. Justifica-se, portanto, o direito na sua existência e nos seus efeitos, pela realização dos valores que a sociedade estabelece como finalidade básica do ordenamento jurídico e que, por isso mesmo, lhe servem de fundamento. O direito é, assim, uma realidade cultural e histórica que

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somente se compreende com a referência e o conhecimento dos valores que constituem a sua finalidade e a razão de ser.Como diz Bobbio, o jurista que não ultrapassar o direito positivo é capaz de estabelecer o que é juridicamente válido (problema de validade), mas não é capaz de reconhecer o que vale como direito (problema do valor do direito). A única via para compreender o direito como idéia de justiça é a de abandonar o terreno empírico, ascendendo ao fundamento do direito, os valores.24Os valores jurídicos podem classificar-se, de acordo com o seu grau de relevância, em valores jurídicos fundamentais, valores jurídicos consecutivos e valores jurídicos instrumentais.25-----------23 Miguel Reale, Filosofia do Direito, p. 195 e segs. Paul Orianne, p. 49 e segs.; José Barata Moura. Para uma Crítica da Filosofia dos Valores, pp. 9/50; Michel Virally. La pensée juridique, p. 24; Werner Goldschmidt. Introducción Filosófica ai Derecho, n2 195; Luis Recaséns Siches. Tratado General de Filosofia dei Derecho, p. 58 e segs.; A. Machado Paupério. Introdução Axiológica ao Direito, p. 8 e segs.; Fritz Joachim V. Rintelen. Die Philosophie in XX lahrhundert, pp. 422/431; Eduardo Garcia Maynez. Filosofia dei Derecho, p. 413 e segs.; Christophe Grze-gorczyk. La théorie générale dês valeurs et lê droit, p. 271; Luis Cabral Moncada. Filosofia do Direito e do Estado, p. 263 e segs.; Mário Bigotte Chorão, Direito, in Polis-Enciclopedia Verbo da Sociedade e do Estado, II p. 306; Wilson de Souza Campos Batalha. Introdução ao Estudo do Direito, p. 116 e segs.; Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito, n2 199.24 Bobbio. Diritto e stato nel pensiero di Emmanuel Kant, p. 111.25 Maynez, op. cit., p. 439. A Constituição da República Federativa do Brasil enuncia, no seu preâmbulo, os valores que presidiram à sua elaboração: "(...) a libi-rdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça (••O."-----------Valores jurídicos fundamentais são aqueles de que depende todo o sistema jurídico. Compreendem a segurança jurídica, a justiça e o bem comum.Valores jurídicos consecutivos são os que se configuram como efeito imediato da realização dos valores fundamentais. Os mais importantes são a liberdade, a igualdade e a paz social, de especial importância para o direito civil.Valores jurídicos instrumentais são os que se traduzem em meios ou processos de realização dos anteriores. Seu objetivo é possibilitar que se concretizem os valores fundamentais e os consecutivos. Consistem nas chamadas garantias constitucionais e nos procedimentos judiciais à disposição dos cidadãos.Embora os valores sejam matéria de reflexão jurídico-filosófica, interessam ao direito civil como fundamento dos principais institutos de direito privado e da prática jurídica diária. O direito é um fenômeno complexo e multidimensional.5. A justiça.Valor fundamental é a justiça.Sua conceituação unitária é difícil. Desde os filósofos gregos, passando por Platão, Aristóteles, pelos juristas romanos, pelos mestres do direito natural e pelas modernas teorias jurídicas, uma definição precisa nunca foi possível estabelecer. De qualquer modo, como valor cultural, como standard, é produto histórico e relativo, de acordo com as épocas e os povos que estabelecem.Na cultura grega, a idéia de justiça pressupunha conformidade e igualdade; na cultura hebraico-cristã, obediência à lei de Deus; na cultura romana, uma ordem de paz através

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de contínuo confronto com a idéia de autoridade. Tais aspectos apresentam-se hoje, em conjunto, na problemática da justiça, o que lhe dificulta a definição.Ulpiano dizia que justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi26 (a justiça é a vontade constante e perpétua-------------26 Digesto, I, l, 10. Cf. Manfred Rehbinder-Salvatore Patti. Introduziam alia scienza giuridica, Padova, p.116 e segs.; Aristóteles. Ética a Nicômaco, in Os Pensadores, p.121 e segs.; Miguel Reale, Filosofia do Direito, n- 113; Nelson Saldanha, Justiça, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 47, p. 306; Machado Paupério, op. cit., p. 175 e segs.; Mário Bigotte Chorão. Justiça, in Polis-Enciclopedia Verbo da Sociedade e do Estado, IV, p. 906 e segs.; Piere Pescatore. op. cit. pp. 436 a 443; Maynez, ob. cit., pp. 439 a 477; Eurico Opocher, Giustizia (filosofia dei diritto), in Enciclopédia giuridica, XIX, p. 557 e segs.; Felix E. Oppenheim, Justiça, in Dicionário de Política, p. 661 e segs.; Enrique R. Aftálion ft alii op. cit., p. 167 e segs.; Luiz Legaz y Lacambra, Filosofia dei Derecho, p. 341 c segs.; Luiz Recaséns Siches, ob. cit., p. 479 e segs.; Michel Villey, Philosophie Jii droit, définitions et fins du droit, pp. 55 a 70; Dennis Lloyd, La Idea dei Dfmcho, p. 130; John Rawls, A theory of justice.27 Pescatore, Introduction à Ia science du droit, 1960, p. 439; Machado Paupério, op. dt., pp. 176 e 177-------------de dar a cada um o que é seu). É uma virtude, uma atitude dos homens no seu relacionamento social.A justiça representa, antes de tudo, uma preocupação com a igualdade, o que pressupõe a correta aplicação das regras de direito, evitando-se o arbítrio, e com a proporcionalidade, isto é, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, mas na proporção de sua desigualdade e de acordo com seus méritos. A cada um de acordo com suas necessidades e exigindo-se de cada um conforme suas possibilidades. O problema central consiste, todavia, em determinar o "devido", o justo meio, dando-se a cada um de acordo com seu trabalho e a utilidade social do que produz.A idéia de justiça traduz, enfim, um princípio de distribuição de bens e de ônus, que oferece três perspectivas: a justiça como virtude, realizando-se nas relações intersubjetivas; o seu objeto, o que é devido nessas relações, e a igualdade proporcional, a idéia de equivalência e de proporção.Podem-se visualizar duas espécies de justiça, uma geral, que é a conformidade do comportamento da pessoa com a lei moral, e uma particular, que se manifesta nas relações da pessoa com os demais membros da sociedade.Aristóteles distinguia a justiça particular em três espécies: a comutativa, a distributiva e a legal. A primeira visa a igualdade entre os sujeitos, a equivalência das prestações, o equilíbrio patrimonial entre as partes da relação jurídica. É a justiça dos contratos, da vida particular. A justiça distributiva "consiste em repartir proporcionalmente entre os membros da comunidade as vantagens sociais e os encargos comuns".27 Adota o princípio da proporcionalidade, o que significa dizer, a cada um conforme sua necessidade. A justiça legal (ou geral) é a justiça nas relações dos sujeitos com autoridade, que se traduz na submissão à ordem vigente. A justiça comutativa representa o ideal do cidadão; a distributiva, o ideal do governante; a legal, o ideal do cidadão-pessoa.28A complexidade das relações e do processo de desenvolvimento econômico e social, a exigir um direito eficaz, no sentido de harmonizar os interesses dos indivíduos e dos grupos, fez surgir uma outra modalidade, a da justiça social. Revelada pela doutrina da Igreja, visa estabelecer uma conexão entre a consciência moral e a consciência social da

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coletividade, exigindo que a ordem jurídica se mantenha ligada à ordem moral. Defende a luta contra os privilégios e exalta a dignidade humana, no sentido de fazer com que cada um contribua para o desenvolvimento, em todos os seus aspectos, da comunidade. O direito, fundamentado nos valores da justiça social, exerce, assim, uma função corretora do individualismo, equilibrando a atividade e os interesses dos vários setores sociais.A justiça social surge não mais como virtude mas como tomada de consciência da noção de bem comum, em uma perspectiva do direito como instrumento de controle e de mudança social.No âmbito do direito civil a justiça é um dos princípios fundamentais que se manifesta, principalmente, nos contratos onerosos, como justiça comutativa, nos contratos gratuitos, como defesa da parte que pratica a liberalidade contra seus próprios excessos, e nos contratos bilaterais, em geral, como proteção da parte economica-----------------28 Gianni Baget-Bozzo, Pensamento social cristão, in Dicionário de Política, pp. 918a 923. A distinção ou dicotomia — justiça comutativa — justiça distributiva, corresponde à que existe entre o direito privado e o direito público, Bobbio. Estado, Governo e Sociedade, p. 19. Na reflexão atual sobre a justiça, suscitam especial interesse, na Alemanha, Yurgen Habermas, Theorie dês Kommunikativen Handelns, Frankfurt, Suhrkamp, 1981, vol. 2 e nos EUA John Rawls, A Theory of Justice, Oxford, 1972. O primeiro tenta repropor a ética de Kant em bases mais amplas. Enquanto este considerava a ética do ponto de vista do dever, Habermas propõe que se leve em conta as necessidades e os interesses dos homens, que devem ser determinados mediante uma comunicação livre e igualitária, própria de um consenso racional e não apenas fático. Por sua vez Rawls tem a pretensão de dar ao Estado social de direito uma base filosófica, face ao utilitarismo economista, construindo uma teoria da justiça em torno da noção de eqüidade. Para esse filósofo, a eqüidade tem duas dimensões, uma formal, que inclui as idéias de liberdade, igualdade e respeito mútuo, e outra, num sentido próximo de Kant, material, que defende a distribuição dos bens sociais levando-se em conta os menos favorecidos (Cfr. De Lucas, Introduccion a Ia teoria dei derecho, p. 332.----------------mente mais fraca.29 Procura realizar a equivalência das prestações, segundo a qual cada parte deve receber o equivalente ao que entrega, legitimando-se o poder do credor de exigir do devedor a prestação devida. E temos ainda, com base no mesmo princípio, as limitações à autonomia da vontade, como medida de proteção à parte contratual mais fraca, que se concretiza, por exemplo, na legislação especial de defesa do consumidor (Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990), da locação dos imóveis urbanos (Lei n- 8.245, de 18 de outubro de 1991), e de reforma agrária e política agrícola (Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964 e Lei n° 4.947, de 6 de abril de 1966).6. A segurança.A segurança jurídica significa a paz, a ordem e a estabilidade e consiste na certeza de realização do direito. Os sistemas jurídicos devem permitir que cada pessoa possa prever o resultado de seu comportamento, o que ressalta a importância do aspecto formal das normas jurídicas, a sua forma de expressão. O direito tem, por isso, como um dos seus valores fundamentais, para muitos o primeiro na sua escala, a segurança30, que consiste, precisamente, na certeza da ordem jurídica e na confiança de sua realização, isto é, no conhecimento dos direitos e deveres estabelecidos e na certeza de seu exercício e cumprimento, e ainda na previsibilidade dos efeitos do comportamento pessoal.

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A segurança jurídica, significando a estabilidade nas relações e a garantia de sua permanência, justifica o formalismo no direito e encontra no positivismo o seu principal fundamento teórico. Apresenta-se tanto como uma segurança de orientação, que se refere ao----------------29 Karl Larenz / Manfred Wolf. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts, par. 42, segundo o qual, em matéria de contratos, o princípio da autonomia da vontade deve conjugar-se com o da boa-fé e com o da justiça contratual compensatória, significando este que, nos contratos bilaterais, sinalagmáticos, cada parte deve obter por sua prestação uma contraprestação adequada, correspondente ao valor daquela (princípio objetivo da equivalência).'M Enrique R. Aftalion, Fernando Garcia Olavo, José Vilanova. Introducción ai Derecho, p. 166; Pierre Pescatore. Introduction à Ia science du droit, p. 414; Mário Migotte Chorão. Segurança jurídica, in Polis-Enciclopedia Verbo da Sociedade e do Estado, V, pp. 642/654.----------------conhecimento que os destinatários têm das respectivas normas de direito, como também uma segurança de realização, ou confiança na ordem, que é a certeza do exercício dos direitos e do cumprimento dos deveres. Significa, portanto, a possibilidade de cada um compreender o que é e o que não é lícito, podendo, conseqüentemente, regular seus atos e seu comportamento. Constitui-se, por isso, no mais antigo valor, na premissa de todas as civilizações.O valor da segurança está presente e realiza-se em muitos institutos jurídicos. Quando, por exemplo, o Código de Processo Civil, no seu art. 126, dispõe que o juiz não pode deixar de dar sentença, julgando o litígio que lhe é submetido, concretiza o ideal da segurança jurídica, pois todas as pessoas têm direito à prestação jurisdicional, à decisão de uma controvérsia, sem o que a vida social se transformaria em permanente conflito.Um dos objetivos da realização do direito é, assim, a exigência de ordem e de segurança. Como outros exemplos de realização do ideal de segurança jurídica temos: a) as formalidades essenciais dos atos jurídicos. Os mais importantes atos da vida de uma pessoa, o casamento, divórcio, adoção, emancipação, testamento, escritura de compra e venda etc., devem obedecer a formalidades que a lei especificamente estabelece, para que os interessados tenham deles um conhecimento perfeito e melhor possam provar a sua existência; b) a fixação de prazos para o exercício de direitos, sob pena de extinção, como ocorre com os institutos da prescrição e da decadência; c) as normas sobre a capacidade e o estado das pessoas, a idade para emancipação e para a maioridade; d) o sistema de registros públicos, destinados a garantir a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos; e) a consagração do princípio da não-retroatividade da lei e do respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada; f) o instituto da coisa julgada, isto é, a decisão judicial de que não cabe recurso e que, por isso mesmo, é imutável e indiscutível, presumindo-se verdadeira e justa a sentença, mesmo não o sendo (rés judicata pró veritate accipitur).Hoje em dia nota-se uma perda crescente da importância da segurança jurídica, em prol da realização da justiça e do bem comum.7. O bem comum.O bem comum é o bem da comunidade, é o bem que as pessoas promovem enquanto associadas em uma ação conjunta no seu meio.Compreende o conjunto das condições sociais que permitem o desenvolvimento integral da personalidade humana, e o bem-estar material, espiritual e cultural da comunidade, pelo que se constitui em um dos objetivos fundamentais do Estado e do direito.31

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O bem comum não se pode considerar nem sob uma perspectiva individualista, na qual seria apenas a soma dos bens individuais, nem sob uma coletivista, que subordina os valores da personalidade aos coletivos. Traduz um equilíbrio entre o interesse geral e os interesses privados, assim como a cooperação dos indivíduos para a obtenção dos fins comuns a todos.O bem comum é, portanto, o conjunto de condições necessárias ao bem particular dos membros da comunidade, e é também um valor social que se realiza com a participação de todos na criação das condições necessárias à existência de paz e estabilidade, presidindo ao desenvolvimento do direito em geral.Enquanto os indivíduos procuram a realização do seu bem, o fim da sociedade e da ordem social é o bem de todos. Existe, assim, um bem público individual e um bem público coletivo, social, comunitário. É preciso, por isso, um tertius que se relacione diretamente com o bem comum individual e com o coletivo, que podemos chamar de solidariedade, para exprimir a idéia de valor comum, de interesse tanto do grupo quanto dos seus membros. O valor da solidariedade é, assim, um valor de integração, como já previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 29), justificando as limitações da lei ao exercício dos direitos e ao gozo das liberdades individuais para assegurar o reconhecimento dos direitos e liberdades de outrem e para satisfazer as exigências da moral e da ordem pública.------------31 Eberhard Welty. Manual de Ética Social, p. 136; Hans Heckel. Recht und Gerechtigkeit, p. 25, apud. Maynez, op. cit, p. 479. Donde poder dizer-se que o sistema de direito privado fundamenta-se em dois princípios básicos: o do individual e o do social. O primeiro concebendo o sujeito jurídico, a pessoa, como eixo central em torno do qual gira o sistema de direito privado, com sua atividade limitada apenas pela ordem pública e os bons costumes. O segundo, a idéia do social, considerando a pessoa como participante de uma comunidade, com a qual U'ni poderes mas também deveres, não apenas o sujeito jurídico como indivíduo mas também, e principalmente, como pessoa. Cf Manuel Garcia Amigo. Institu-ciones de Derecho Civil, p. 27. O fim do indivíduo é a realização de seu bem. (lorrelativamente, o fim da sociedade e da ordem social é o bem comum, Pesca-lorc, op. cit., p. 424.------------O que se verifica em todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos é a conjugação harmônica do bem comum, ou da solidariedade social, com os valores da liberdade e da igualdade, "centrando-se sobre a pessoa humana, sujeito de direito, sobre a qual encontram seu ponto de reencontro e reajustamento". A liberdade não é mais possível sem igualdade e sem solidariedade. Por sua vez, a igualdade resulta do valor básico que é o bem comum.No que respeita ao direito civil, realiza-se o bem comum nos preceitos de ordem pública que limitam a autonomia da vontade e impedem os abusos no exercício dos direitos subjetivos, como ocorre, por exemplo, com as limitações no campo da locação, em favor do inquilino, e em matéria de prescrição, de direitos reais (numerus clausus), de direito de família, com a proteção da família em si e de seus membros, e em matéria sucessória, com as normas da sucessão legítima e da sucessão testamentária.8. A liberdade.Um dos valores mais importantes para o direito em geral e para o direito civil em particular é a liberdade.Sob o ponto de vista filosófico, a liberdade significa possibilidade de opção, manifestando-se como liberdade de fazer, ou livre arbítrio. É o estado do ser que não

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sofre constrangimento, que age conforme sua vontade e sua natureza.32 Sob o ponto de vista sociológico, é a ausência de condicionamentos materiais e sociais.A liberdade jurídica é a que reconhece no indivíduo o poder de produzir efeitos no campo do direito. É portanto, o poder de atuar com eficácia jurídica. Consiste no poder de praticar todos os atos não-ordenados, tampouco proibidos em lei, optando entre o exercício e o não-exercício de seus direitos subjetivos.A liberdade jurídica compreende, assim, um conjunto de garantias que protegem a pessoa na sua atividade privada e social. A Constituição delimita o campo dessa liberdade, definindo o âmbito material que compete ao Estado e o que compete ao indivíduo como pessoa e como cidadão. O setor que o Estado reconhece como externo ao---------32 Frederich August von Hayek. A Constituição da Liberdade, p. 4; Felix E. Oppenheim. Liberdade, in Dicionário de Política, p. 708 e segs.---------seu domínio de atuação é o do direito privado, onde o indivíduo pode exercitar sua liberdade de modo subjetivo e de modo objetivo. Esse âmbito de atuação do particular é como que uma esfera de imunidade, relativamente isenta da presença estatal. O direito privado surge, assim, como um espaço livre deixado ao particular pelo direito público.A liberdade serviu de fundamento ideológico ao liberalismo, doutrina política, econômica e social segundo a qual a liberdade deveria presidir à organização do todo social e, no plano do direito, orientar o juízo de todas as coisas.33 Confere à pessoa humana o primado em relação à sociedade em que se insere.No aspecto subjetivo, a liberdade manifesta-se, no campo do direito privado, no poder da pessoa estabelecer, pelo exercício de sua vontade, o nascimento, a modificação e a extinção de suas relações jurídicas. No aspecto objetivo, significa o poder de criar juridicamente essas relações, estabelecendo-lhes o respectivo conteúdo e disciplina. No aspecto subjetivo, autonomia da vontade, e no aspecto objetivo, como poder jurídico normativo, denomina-se autonomia privada. Instrumento de sua atuação e realização é o negócio jurídico.34A autonomia privada manifesta-se particularmente no campo das relações jurídicas de natureza patrimonial de ordem particular, realizando-se em temas de contrato e de testamento. Não no campo do direito de família nem nos dos direitos reais, onde, não havendo campo para a sua atuação, as normas são cogentes, imperativas. Suas conseqüências mais evidentes, no campo da normatividade jurídica, são a liberdade contratual, em suas várias espécies, a natureza dispositiva da grande maioria das normas do direito das obrigações, a teoria dos vícios do consentimento (erro, dolo, coação), a indiferença quanto aos motivos do contrato, a força obrigatória do contrato e a eficácia jurídica do simples acordo de vontade, que caracteriza o consensualismo em matéria contratual.35 Princípio de grande importância no direito privado, a autonomia da vontade, como expressão de liberdade e como poder jurídico, encontra limitações crescentes na matéria de ordem pública e dos bons costumes (defesa do consumidor, contratos agrários, locação de imóveis urbanos, contratos de trabalho etc.).No campo econômico, a liberdade consubstancia-se no princípio da liberdade de iniciativa, um dos princípios básicos da ordem econômica e social prevista na Constituição brasileira.36 É a liberdade dos particulares de atuarem no domínio econômico, organizando os meios de produção e promovendo a aquisição e a circulação de bens e serviços, o que pressupõe outros direitos, a propriedade e a liberdade de contratar.

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Outras manifestações do mesmo princípio no âmbito do direito privado são a liberdade de associação, a atuação profissional, as liberdades consubstanciadas nos direitos da personalidade (integridade física, moral e intelectual) e, ainda, a liberdade matrimonial e a liberdade testamentária e ainda a possibilidade de se estabelecerem meios alternativos de solução de conflitos, como a arbitragem e a mediação.9. A igualdade.A realização da justiça implica igualdade. Dizia Aristóteles que a justiça consiste em tratar de modo igual os iguais e desigualmente os desiguais, proporcionalmente à sua desigualdade. A igualdade configura-se, portanto, como um valor jurídico consecutivo, o que significa dizer que a igualdade está corretamente ligada à realização da justiça, da segurança e do bem comum.A idéia ou valor da igualdade compreende a idéia de igual dignidade de todos, combinada com a desigualdade de suas aptidões e funções. Ora, a questão da desigualdade pressupõe outra, que é a da diversidade de poderes em uma sociedade igualitária, pois as relações de subordinação são relações de poder, como as que existem--------33 Henrique Barrilaro Ruas, Liberalismo, in Polis, II, p. l .090. "O constitucional ismo liberal colocou a liberdade como centro da parte mais delicada das Constituições: a dos direitos e garantias. Simultaneamente, o direito privado liberal lomou a liberdade como base para o contrato e para os atos jurídicos em geral"; Nrlson Saldanha, Liberdade, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 49, p. 357.34 Cf do Autor, Negócio jurídico, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 54, pp. 170/178. Cf. Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil, p. 76 e segs.; Jacques Ghestin. Traité de droit civil. La formation du contraí, p.3535 Boris Stark. Droit civil. Obligations, p. 342.36 Constituição Federal art. 1£, item IV.--------entre pais e filhos, tutores e tutelados, curadores e curatelados. A igualdade traduz-se não na igualdade formal das pessoas mas na sua igualdade material em face das oportunidades da vida, pois "uma declaração formal de igualdade resulta ilusória quando os sujeitos legalmente iguais carecem de meios para exercitarem os direitos ligados a essa declaração de igualdade".37Várias contribuições se reúnem, ao longo do processo histórico, para caracterizar o que hoje se identifica como o princípio da igualdade no direito. O cristianismo introduz a noção de pessoa, a "unidade do gênero humano". A filosofia patrística e a escolástica levam à concepção individualista do Renascimento, que se consagra na Revolução Francesa com a teoria do primado do indivíduo, liberto dos privilégios do feudalismo, proclamando a liberdade, a igualdade e a fraternidade como direitos fundamentais do homem e do cidadão.Com o constitucionalismo liberal firma-se o princípio da igualdade de todos perante a lei (geral e abstrata), que o princípio democrático estende aos direitos políticos da cidadania. E com o Estado social advoga-se a igualdade de "condições efetivas de exercício dos direitos, pois não basta a todos atribuir idênticos direitos quando divergem as situações concretas em que se encontram e que a esse exercício podem constituir obstáculo".38Desse processo resulta que a igualdade jurídica apresenta-se sob dois aspectos: formal, que é a igualdade de todos perante a lei, e que corresponde à concepção legalista do direito39 e a igualdade material ou substancial, que é a igualdade "imposta como exigência à própria lei", a igualdade na lei, e que consiste no reconhecimento das desigualdades sociais de modo a justificar a interferência do poder público para proteger

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os interesses dos mais fracos, como ocorre com a legislação especial do inquilinato e do trabalho.No princípio da igualdade formal baseia-se a tendência à codificação que se verificou nos séculos XVIII e XIX no continente europeu. "Os cidadãos, para serem iguais entre si, devem sujeitar-se todos à mesma lei, para ser igual para todos, deve formular-se nos termos mais gerais e abstratos."40 Ao mesmo tempo em que o processo de codificação consagrava a estatalidade do direito (o direito como produto do Estado), afirmava também a igualdade de todos na cidadania. Não mais as diversas condições de classe, mas as diversas funções econômicas do indivíduo eram as notas distintivas da legislação que passava a considerar o indivíduo como proprietário (Código Civil), ou como comerciante (Código Comercial), ou como delinqüente (Código Penal), ou como parte em juízo (Código de Processo). E, ao contrário do que antes ocorria com a aristocracia, detentora de privilégios, a nova classe ascendente, a burguesia, que acreditava nos princípios do liberalismo econômico, acreditava também no livre jogo das forças do mercado. Ora, uma lei, igual para todos, um Código, ao mesmo tempo que extinguia os privilégios de classe, próprios da aristocracia, permitia também a criação de condições necessárias para a instauração de uma economia de mercado. "A igualdade jurídica aparecia, assim, como a condição necessária para que se constituíssem relações econômicas de mercado." Mas disto nasceriam depois outras desigualdades, não mais jurídicas, mas econômicas, não mais formais, mas, substanciais, nascendo, outros-sim, a exigência de um novo princípio de igualdade, o da igualdade substancial.A Constituição brasileira dispõe no seu art. 5- que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas", sendo punido o preconceito de raça. Trata-se aqui da igualdade perante a lei, o chamado princípio da isonomia, que se impõe ao legislador, ao poder judiciário e à administração pública, e ern virtude do qual em matéria de hermenêutica deve preferir-se, sempre, a interpretação que iguale, não a que diferencie.41--------37 Maynez. op. cit., p. 492.38 Jorge Miranda, Princípio de igualdade, in Polis, III, p. 403. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, encontra-se, pela primeira vez, a proclamação do princípio de igualdade perante a lei, nestes termos: "Art. ls: Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direito. Art. 6S: A lei é a expressão da vontade geral. (...) Ela deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer puna. Todos os cidadãos, sendo iguais perante ela, têm o direito a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, de acordo com sua capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e suas qualidades.39 Castanheira Neves. O Instituto dos Assentos e a função Jurídica dos Supremos Tribunais, p. 120, nota 251. Cfr. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5°, exemplo de igualdade formal. E nos arts. 7°, XXX, a igualdade dos direitos dos trabalhadores, 226, par. 5°, a igualdade dos direitos e deveres conjugais, e 227, par. 6°, a igualdade de direitos dos filhos, como exemplo de igualdade material.40 Francesco Galgano. Diritto privato, p. 36.41 Mota Pinto, op. cit., p. 42.--------Expressão direta do valor da igualdade no direito civil é o postulado de que todas as pessoas, significando esta expressão "como todos os seres da espécie humana", são iguais na sua capacidade jurídica, vale dizer, na sua aptidão para titulares de direitos e deveres na ordem jurídica civil (CC, art. 1°) como sujeitos ativos ou passivos de relações jurídicas. Também a lei não distingue, em princípio, os estrangeiros dos

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nacionais, quanto à aquisição e gozo dos direitos civis (C.F., art. 52), embora existam, na própria Constituição e em leis ordinárias, exceções a tal princípio.No corpo do Código Civil encontramos ainda alguns casos de igualdade especial, como a que existe entre credores do mesmo devedor (CC, art. 957), salvo as exceções legais que tomam o nome de privilégios (CC, art. 958), a que existe entre os herdeiros da mesma classe chamada à sucessão, salvo o direito de representação (CC, art. 1.851), entre os cônjuges, quanto aos seus direitos e deveres (CC, art. 1.566).Em princípio, a igualdade está presente em todas as relações jurídicas. Inúmeras situações de fato, porém, em que se configura flagrante desequilíbrio entre os poderes das respectivas partes, justificam o surgimento de leis especificamente destinadas a proteger a parte mais fraca, como se verifica, por exemplo, em matéria de locação, onde a falta de imóveis disponíveis exigia a intervenção do Estado para proteger os inquilinos contra as pretensões abusivas dos locadores. E também a proteção ao consumidor nos contratos de adesão; do empregado no contrato de trabalho; da companheira no reconhecimento da sociedade de fato mantida com o companheiro; do menor nas suas relações jurídicas de família; no campo das obrigações, a obrigação de contratar imposta a quem celebrar contrato preliminar (CC. art. 463), como a promessa de compra e venda (CPC, art. 639).10. A teoria do direito civil.O direito civil é o direito comum.42 Regula as relações entre os indivíduos nos seus conflitos de interesses e nos problemas de organização de sua vida diária, disciplinando os direitos referentes ao indivíduo e à sua família, e os direitos patrimoniais, pertinentes à atividade econômica, à propriedade dos bens e à responsabilidade civil.Este livro é uma introdução ao direito civil. Como tal, visa a iniciar no estudo da doutrina e do processo de realização do nosso direito civil, contribuindo para a formação jurídica do aluno por meio dos vários ângulos de apreciação científica, que permitem conhecer o fenômeno jurídico em sua múltipla dimensão, assim como os fatores que influenciam sua gênese e determinam suas modificações. É uma obra de teoria na medida em que elabora um conjunto de conceitos, elementos e estruturas comuns aos diferentes setoresdo direito civil.À semelhança das obras de teoria geral do direito, exposição sistemática do que os ordenamentos jurídicos têm em comum43, reúnem-se aqui os conceitos e os princípios fundamentais do direito civil, de modo descritivo, explicando as noções elementares, e de modo normativo, pela referência que se faz às normas que integram e constituem a chamada Parte Geral do Código Civil, indispensáveis à realização dos institutos da chamada Parte Especial.A Parte Geral do Código Civil reúne princípios, conceitos e regras de caráter pretensamente comum aos diversos ramos da Parte Especial (Direito das Obrigações, Direito das Coisas, Direito de Família, Direito de Empresa e Direito das Sucessões). Fiel ao princípio de que o geral precede o particular e de que o gênero (genus) compreende as espécies (species), a Parte Geral é uma construção científica do direito alemão de séc. XIX, a chamada Pandectística, tendo por base o direito romano justiniâneo. A Pandectística, ou ciência das Pandectas, é uma construção abstrata, conceituai e sistemática do direito privado alemão, tendo por base o direito romano justiniâneo, feita pelos juristas alemães do séc. XIX, que possibilitaram, assim, o chamado usus modernum pandectarum por meio de------------42 Francesco Santoro-Passarelli, Dottrine generali dei diritto civile, p. 19.43 Hans Nawiasky, Algemeine Rechtslehre ais system der Rechtslichen Grundbe-griffe, p. 12; Klaus Adomeit, Introducción a Ia Teoria dei Derecho, p. 26; Tércio Sampaio

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Ferraz Jr., pp. 40 e 84. Javier de Lucas, p. 406. Vitorio Frosini. Teoria generale dei diritto in Novíssimo Digesto Italiano, XIX, ps. 5/7.------------perfeita e completa realização do método sistemático.44 Desde a sua criação, a Parte Geral tem sido objeto da crítica doutrinária, por não aplicar-se a todas as disposições da parte Especial, sendo considerada dispensável a até prejudicial45.Sendo uma obra de doutrina, adota as orientações metodológicas mais recentes, focalizando o fenômeno jurídico de direito civil sob a perspectiva da norma jurídica, da relação jurídica e da instituição, sem deixar de considerar a perspectiva sistêmica, o direito civil como um todo unitário, harmônico e coerente, subordinado a princípios e valores fundamentais, aberto porém aos problemas que a realidade da vida constantemente produz e submete ao direito. E no estudo dessa matéria tem sempre em vista a necessidade de uma perspectiva histórica, para considerar o direito como produto de um vasto processo dialético, histórico e cultural, ao longo do qual vem forjando seus princípios, noções e categorias fundamentais, e de uma perspectiva crítica, no sentido de manter presente uma atitude de busca e reflexão sobre o fundamento ideológico de suas normas e institutos, enfrentando os problemas que historicamente se têm posto quanto à origem e evolução desse ramo jurídico.A perspectiva fundamental e orientadora desta introdução ao direito civil é a da relação jurídica, vínculo intersubjetivo que contém direitos e deveres das pessoas entre as quais se desenvolve, tendo por objeto os bens sobre que tal conteúdo se exerce, e que nasce dos fatos, atos ou negócios jurídicos, acontecimentos a que o direito atribui eficácia jurídica, integrada porém numa visão mais ampla, que é a da experiência jurídica brasileira.Depois de um estudo preliminar da teoria da norma jurídica de direito privado e da técnica de sua realização, entra-se no estudo propriamente dito da gênese e da evolução do direito civil brasileiro e, em seguida, no dos conjuntos normativos, modelos ou institutos formados em torno dos elementos fundamentais da relação jurídica, isto é, as pessoas, os bens e os fatos jurídicos, pressupostos, respectivamente, de uma teoria da personalidade, de uma teoria do patrimônio e de uma teoria do ato jurídico.A compreensão dessa matéria exige, porém, a consulta permanente ao código e à legislação especial citada. Como advertência de método, sugere-se o estudo paralelo do texto e da lei, enriquecendo-se esta com o texto, e, com este esclarecendo-se os dispositivos legais, além da pesquisa constante dos repertórios de jurisprudência que demonstram o correspondente processo jurisprudencial.Os artigos do Código Civil correspondentes à matéria exposta citam-se ao longo do texto, entre parênteses, sem outra referência; os da legislação especial ou de outros códigos ou diplomas legais, assim como as indicações bibliográficas, citam-se em notas de rodapé.11. O direito civil como norma jurídica.O direito civil consubstancia-se no Código Civil e nas leis com-plementares, encontrando-se, porém, alguns de seus princípios fundamentais na Constituição, referentes à proteção da pessoa, da família e do patrimônio.Seu estudo pode realizar-se, como referido no item anterior, sob diversas perspectivas, das quais se destacam as que visualizam o direito como norma jurídica, como relação jurídica, e como instituição, correspondentes a diversas concepções ideológicas e metodológicas que tomam o nome às categorias fundamentais da experiência jurídica que os teóricos do direito utilizam no seu trabalho de sistematização científica, categorias essas, a norma, a instituição e a relação jurídica.

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Surgem, desse modo, as teorias normativa, institucional e relacionai, cada uma delas com significado ideológico próprio, expresso na afirmação de certos valores, e tendo como objetivo científico determinado a compreensão e explicação da realidade social e jurídica46 em que o homem vive.A teoria normativa faz da norma jurídica o elemento fundamental e característico da experiência jurídica. Considera que o direito é, essencialmente, um conjunto de normas de comportamento ou de organização impostas ou de observância obrigatória.Tal posicionamento decorre da constatação de que a vida em sociedade pressupõe a existência de normas de comportamento e----------44 Cfr. Giovanni Orrú, Pandectistica, Digesto, XIII, p. 25145 "A construção de uma Parte Geral pertence às tarefas irrenunciáveis de uma ciência do direito, desde que esta se entenda como sistemática, como aconteceu i om a alemã, a partir do começo do século passado". Franz Wieacker, História ilo Direito Privado Moderno, p. 560.46 Cotta, op. cit, p. 41; Tércio Sampaio Ferraz Jr. A Ciência do Direito, p. 50 e segs.----------de organização pelo que a experiência jurídica seria uma experiência normativa.47 Da concepção à morte, submetem-se as pessoas, permanentemente, a todo tipo de normas que lhes determinam o comportamento ou organizam a existência. São normas de educação familiar ou escolar, de prática religiosa, de atividade produtiva ou laborai, enfim, um mundo de normas a dirigir ou a condicionar a nossa existência. A norma de comportamento é, assim, onipresente em nossa vida, e a espécie mais freqüente, objeto do nosso interesse, é a norma jurídica, cuja idéia-chave e seu fundamento é o poder de que provém.O direito civil leva em excepcional consideração o estudo do fenômeno jurídico a partir da norma, porque, sob o ponto de vista histórico, foram as normas de direito privado que, servindo de modelo para os outros ramos do direito, constituíram o direito por excelência, fixando os princípios da propriedade privada, da circulação dos bens, da sucessão por morte e da obrigatoriedade do contrato.48 O direito civil ou privado tem prioridade histórica em relação aos demais direitos,49 o que explica a inserção, nos Códigos e nos manuais de direito civil, de uma parte introdutória contendo normas gerais sobre aplicação das leis e todos os ramos do direito. Distinguem-se as suas normas das demais por sua diferença específica, a saber: os institutos próprios e a matéria que disciplinam a personalidade, a família, a propriedade, o contrato e a sucessão, que se encontram originalmente no Código Civil e na legislação que lhe é complementar.Pode-se assim dizer que o direito constitui a parte mais destacada da nossa experiência normativa.50 Sua função é evitar ou dirimir conflitos de interesses, realizando objetivos considerados fundamentais, como a segurança, individual e social, a justiça, o bem comum. A norma jurídica é, assim, a realidade fundamental e onipresente da disciplina legal da existência humana. É ela que dá o caráter de juridicidade aos fatos da vida real, e é a partir dela que se pode estudar o direito na sua estrutura, nas suas funções e no seu fundamento.12. O direito civil como relação jurídica.Para a teoria relacionai, ou teoria da relação jurídica, o fenômeno jurídico deve apreciar-se sob o ponto de vista da relação entre pessoas. Não era outro o sentido do art. 1° do Código Civil de 1916 ao dispor: "Este Código regula os direitos e obrigações de ordem privada concernente às pessoas, aos bens e às suas relações."

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Essa perspectiva é bastante antiga, mas é com Kant que alcança sua maior expressão na filosofia, e com Savigny no campo da técnica jurídica. O filósofo de Kóenisberg via na relação entre pessoas, com direitos e deveres, "o momento central da experiência jurídica", tese posteriormente desenvolvida pela escola histórica alemã, que recusava o primado do legislador, representado pela norma, e via o direito como expressão da vida social e das relações que a constituem.51 E sua marca, a intersubjetividade, concretiza-se na reciprocidade de poderes e deveres.Representa, assim, uma concepção personalista do fenômeno jurídico.Essa teoria baseia-se no princípio da autonomia da vontade, segundo a qual os sujeitos podem criar e modificar relações jurídicas, no exercício de um poder que lhe é reconhecido pelo Estado. Manifestação prática de sua importância está no reconhecimento constitucional dos direitos humanos, dos direitos subjetivos públicos, das garantias individuais, enfim, da proteção que o Estado deve ao cidadão na sua vida social e jurídica e que pressupõe relações criadas pela autonomia dos indivíduos. A relação jurídica apresenta-se, então, como categoria capaz de explicar toda a atividade jurídica do indivíduo.O conceito de relação jurídica é fundamental no direito, podendo dizer-se que é uma categoria básica do direito privado. Representa um nexo jurídico entre pessoas, contendo poderes e deveres. Tem como fundamentos axiológicos a moral Kantiana e a doutrina liberal democrática,52 e seu principal campo de atuação particular é a experiência jurídica na qual "a vida jurídica se apresenta como-------------47 Bobbio. Teoria delia norma giuridica, p. 3.48 Natalino Irti, Introduzione alio studio dei dirítto privato, p. 21.49 Pietro Rescigno. Manuale dei dirítto privato italiano, p. 3 e segs.50 Emmanuel Kant. Metafísica dos Costumes, p. 407; Cotta, op. cit., p. 44.51 Savigny. Sistema dei Derecho Atual, vol. I, p. 52.52 Cotta, op. cit., p. 50. Para uma visão crítica da relação jurídica, Orlando de Carvalho. A Teoria Geral da Relação Jurídica. Seu Sentido e Limites, Coimbra, Centelha, 1981; Antônio Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil — Relatório, p. 237 e segs. e também Tratado de Direito Civil, l, p. 227 e segs.-------------conjunto de relações, que a norma estatal fixa de modo típico", e na qual a autonomia privada estabelece o conteúdo preceptivo. Substancialmente, a relação jurídica está na origem, "mediante a manifestação de vontade ou o encontro consensual das vontades", da norma que regula o comportamento concreto das partes.Não obstante a relação jurídica seja categoria própria do direito privado, também no direito público tem acolhida, não como decorrente de prévias relações sociais, mas como vínculo que a lei estabelece entre os particulares e o Estado, como decorrência de fatos jurídicos típicos, como, por exemplo, a obrigação de pagar impostos.13. O direito civil como instituição.Perspectiva oposta à tese da estatalidade do direito, para a qual a regra jurídica é comando imposto pelo Estado, é a do pluralismo jurídico, que defende a multiplicidade de ordens jurídicas, ao lado do "direito do Estado". Este não teria o monopólio da produção jurídica. A seu lado existiriam outros centros jurígenos, de que a instituição seria o melhor exemplo. É a tese de Hauriou e Santi Romano desenvolvida a partir dos trabalhos de Otto von Gierke segundo o qual "toda comunidade orgânica é capaz de produzir direito". O direito surge com toda a forma de organização, seja ela o Estado ou uma corporação.33

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Esses juristas têm como idéia-chave a instituição grupo social dotado de uma ordem e de uma organização próprias, com o "poder de criar seu próprio direito, naturalmente de caráter derivado e secundário" em relação ao Estado, que é a instituição fundamental. Esse não teria o monopólio da produção jurídica, sendo de admitir-se uma pluralidade de fontes e de meios de solução de controvérsias jurídicas.A teoria institucional vê, assim, como elemento fundamental e característico do direito, a instituição, não a norma nem a relação jurídica.54Essa teoria encontra origem na tradição jurídica da igreja católica, que se constituía em um sistema independente do Estado, e que reconhecia um novo tipo de pessoa jurídica, diverso da fundação e da corporação, tipo esse marcado pela auctoritas superiori, a vontade do fundador, de que são exemplo as ordens monásticas. A nova espécie era a institutio ou instituição, conjunto de elementos materiais destinados à realização de uma vontade externa e superior, sob a forma de uma entidade ou corpo social. Com Otto von Gierke, por efeito de suas pesquisas sobre as comunidades e corporações medievais, essa teoria adquire nova substância, desenvolvendo-se a concepção pluralística e societária dos ordenamentos jurídicos. De acordo com esse entendimento, o direito pode ser produzido pelo Estado, assim como pelas demais comunidades que formam a sociedade. Existe entre o direito e as comunidades (entre as quais o Estado) um vínculo de interação pelo qual se determinam reciprocamente.Com a doutrina da instituição defende-se a pluralidade dos ordenamentos jurídicos chegando Cesarini-Sforza a advogar a tese do "direito dos particulares", que é a esfera de liberdade de atuação das pessoas, o campo de atuação da chamada autonomia privada, poder de criar um ordenamento jurídico diverso do ordenamento estatal. O "direito dos particulares é aquele que eles mesmos criam para regular determinadas relações de interesse coletivo na falta ou insuficiência da lei estatal".55 Não é sinônimo de direito privado, é direito que não emana do Estado, nem mediata nem imediatamente.A superioridade do Estado deve consistir não na negação de outras possíveis fontes de direito, mas no fato dele ser o ente que aplica a maior parte do direito, garantindo a sanção. E o problema da autonomia privada é, por isso mesmo, não um problema de existência ou de validade, mas sim um problema de limites.Aplicações concretas da teoria da instituição no direito civil são os casos de personalização ou personificação jurídica como as associações, sociedades, fundações, conjunto de pessoas e de bens que seSanti Romano. Frammenti di un dizionario giuridico, p. 82; Widar Cesarini Sforza. // diritto dei privati, p. 3.-----------------53 Miguel Reale. Teoria do Direito e do Estado, p. 249; Otto von Gierke. Lês théories politiques du moyen age, Paris, 1914, apud Reale, op. cit., p. 252; Maurice Hauriou. Teoria dell'istituzione e delia fondazione, Santi Romano. L'ordre juridi-que, Georges Renard. La théorie de Vinstitution, Antônio Carlos Wolkmer, Pluralismo jurídico.54 Vittorio Frosini, Istituzione, in Novíssimo digesto italiano, vol. IX, p. 267;55 Sforza, op. cit., p. 3; Luigi Ferri. L 'autonomia privata. Milano, Giuffrè, 1959, p. 5; Miguel Reale. Lições Preliminares de Direito, p. 191; Alberto Trabucchi. Istituzioni di diritto civile, Padova, Cedam, décima nona edizione, 1973, p. 6.-----------------organizam sob determinada ordem para realizarem determinados fins, ou, ainda, a ordenação lógica de normas jurídicas em torno de uma determinada relação, para discipliná-la na sua origem, validade e eficácia, como ocorre com o casamento, a propriedade, título de crédito, as garantias creditícias etc., quando então se costuma denominar de institutos. O que caracteriza, portanto, o instituto, é o fato de ele se

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constituir em um conjunto unitário de normas com a função de disciplinar relações jurídicas típicas. Já o termo instituição tem o significado mais amplo de organização social, consistindo não só em uma estrutura jurídica como também em uma realidade econômica, ética, profissional. Neste caso, são instituições fundamentais do direito privado a personalidade, a família, a propriedade, a empresa. No direito público temos as mais importantes: o Estado, as autarquias, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as associações culturais ou de assistência. No ensino do direito utiliza-se também a palavra "instituições" para indicar "uma breve, sucinta exposição não aprofundada de matérias jurídicas", como ocorre com os "manuais", as "noções", os "comentários", as "introduções".5614. Apreciação crítica.Cada uma dessas teorias, embora com a pretensão de explicar o fenômeno jurídico do seu ângulo de apreciação, não exclui as demais, todas se completam.A teoria normativa tem como idéia-chave o poder jurígeno do Estado e como categoria fundamental a norma de direito. A teoria relacionai baseia-se na autonomia individual, tendo na relação jurídica a sua principal categoria, que nasce da experiência jurídica privada. A teoria institucional baseia-se na ordem social organizada e tem como categoria básica a instituição. Nasce no terreno publicístico, embora também tenha sido utilizada no âmbito privado, como atestam as concepções de Cesarini-Sforza e de Santi Romano sobre o direito dos particulares.Exame superficial demonstra, todavia, que a dimensão normativa é comum a todas as teorias. A existência da instituição pressupõe a da norma, pois, sem esta, a matéria social a institucionalizar-se não se ordena e não se organiza. E para que se configure a relação jurídica, necessária é a incidência da norma sobre a relação social específica, pois a relação jurídica distingue-se de quaisquer outras espécies de relação, exatamente por ser regulada por uma norma jurídica.Podemos assim dizer que as três teorias, correspondentes a três diversos modos de enfocar o fenômeno jurídico, não se excluem, antes se integram e se completam, cada uma delas pondo em evidência um aspecto da experiência jurídica: a da relação, o aspecto da intersubjetividade; a da instituição, o da organização social, e a da norma, o aspecto da regularidade ou juridicidade. A autonomia individual faz nascer as relações entre sujeitos, que se organizam em grupos e em sociedades mediante o uso de regras de comportamento e de organização. "Enquanto que a intersubjetividade e a organização são condições necessárias, o aspecto normativo é condição necessária e suficiente".57Deve-se, portanto, recusar o predomínio de qualquer concepção monista, unilateral, que reduza experiência jurídica a fenômeno de uma só justificação. O direito não é só relação jurídica, nem só instituição, nem só norma, mas as três, cada uma a seu modo e com sua importância, conforme se enfatize a liberdade que está na base da teoria relacionai e da institucional, ou o poder, a autoridade sobre que se fundamente a normativa. Conforme os momentos da evolução jurídica dos povos, ora se enfatiza a liberdade, ora a autoridade.58 Qualquer que seja, todavia, o ângulo de apreciação da experiência jurídica, não se pode negar o caráter instrumental da norma de--------------56 No direito romano, Institutiones (em português instituições] de instituere = instruir, iniciar em determinada disciplina, eram uma breve e sucinta exposição do ius civile, sobretudo no direito privado. Cfr. Sebastião Cruz, Direito Romano, 4" edição, Coimbra, 1984, p. 363.57 Bobbio, op. cit., 34.58 Reale. Teoria do Direito e do Estado, p. 282. "O direito é, simultaneamente, norma, relação e instituição jurídica. A norma é o dado primeiro, a estrutura fundamental. O

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jurista encontra-se em um mundo de normas que tem de analisar e compreender. A relação é o vínculo jurídico que se estabelece entre as pessoas, por efeito da norma, criando-se direitos e deveres reciprocamente. O conjunto das normas em torno de relações fundamentais constitui os institutos e as instituições jurídicas, corpos jurídicos que nascem, vivem, se desenvolvem e morrem no mundo do direito. Cfr. Ramon Soriano, Compêndio de Teoria General dei Derecho, p. 18.--------------direito no sentido de ser o meio da realização dos princípios cardiais da convivência social, os valores. São estes o objetivo final do direito. Surgem, assim, o Estado e a ordem jurídica como instrumentos de realização dos valores fundamentais da sociedade, o que significa dizer, meio de realização dos fins sociais e individuais.15. O direito como sistema. O sistema de direito civil.Não obstante a reserva atual à idéia de sistema, é freqüente encontrar-se nas obras de teoria geral do direito, particularmente nas de cunho sociológico, a consideração da sociedade como "um conjunto unitário e integrado por elementos em relação", e do direito como um sub-sistema social, relacionado com os demais subsistemas, o econômico, o político, o cultural, o que facilitaria a compreensão da crise do direito.Aspecto marcante do pensamento jurídico contemporâneo é o reconhecimento geral de que o direito está em crise. A inflação legislativa que vem acompanhando o evolver do direito no pós-guerra, gerando insegurança nas relações jurídicas, a desarmonia entre a teoria e a prática jurídica, entre o direito e a justiça, e a redução crescente do campo do direito pelo desenvolvimento das demais ciências sociais, chegando-se ao ponto de se reconhecer a existência de um domínio do "não-direito",59 tudo isso vem causando uma série de críticas ao direito como ciência, acentuando-se o seu estado atual de anormalidade e afirmando-se, até, o seu declínio.60As críticas que se fazem, demonstrando o descompasso entre o discurso teórico e a prática judicial e administrativa, ou entre a ideologia jurídica, isto é, a justificação das regras jurídicas, e os verdadeiros valores econômicos que elas exprimem, demonstram a necessidade de uma nova direção no estudo do fenômeno jurídico, superando as tradicionais concepções já referidas, por unilaterais.O endereço metodológico logo se impôs e desenvolveu foi o da análise sistêmica do direito, tentando-se compreender a experiência jurídica por meio de uma perspectiva global que, levando em conta as normas, relações e instituições, a relacionasse com o meio de que provém, e permitisse superar a "contestação recíproca do direito e da sociedade".A análise sistêmica, mais propriamente análise sociológica dos sistemas jurídicos, é um processo que tem como objetivo estudar o direito em sua totalidade e complexidade, para melhor compreender os seus problemas estruturais e o seu funcionamento interno, desenvolvendo-se, por isso, a partir de uma concepção sistêmica, in-terdisciplinar, pluralista e construtivista. Sistêmica no sentido de considerar o direito como um conjunto unitário e organizado de elementos (normas, conceitos, institutos, princípios e valores), coerentes e solidários entre si, o que permite estudá-lo na sua totalidade, nos seus problemas estruturais, no seu funcionamento interno e na sua conexão com outros sistemas da sociedade. Interdisciplinar, como articulação do direito com outras ciências sociais (sociologia, antropologia, psicologia social, criminologia, economia, política...), no desenvolvimento de um projeto comum que é o "estudo e investigação empírica das relações entre o direito e a sociedade". Pluralista, no reconhecer várias fontes de produção jurídica e vários meios de solução de conflitos, contestando a opinião tradicional que identifica o jurídico com o direito estatal. Construtivista no sentido de ver o direito, não como um conjunto e regras preestabelecidas, nem como objeto do

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conhecimento dado de antemão, que se observa e descreve, mas como um processo in fieri, de elaboração contínua e realização permanente, que não separa o ser do dever ser, nem o---------------59 Paul Orianne. Introduction au système juridique, p. 13; Castanheira Neves. Questão de Fato, Questão de Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade, I, p. 62; Josef Esser. Zur metodenlehre dês Zivilrechts, Studium generale, p. 97. Jean Carbonnier, Flexible droit, p. II, define o não-direito como "a ausência de direito em um certo número de relações humanas onde o direito teria tido vocação teórica para estar presente".60 René Savatier. Lês métamorphoses economiques et sociales du droit civil d'aujourd'hui, p. 24; Georges Ripert. Lê déclin du droit, p. 12 e segs.; Georges Burdeau. "Lê déclin de Ia loi"; Konstantin Stoyanovitch La théorie marxiste du dépérissemente de 1'État e du droit; René David, Lê dépassement du droit et lês systèmes de droit contemporains; Henri Battifol. Lê déclin du droit. Exame critique, in Archives de philosophie du droit, n2 8, pp. 40, 133, 4, 43. Cf., ainda Bruno Oppetit. Lhypothèse du déclin du droit; Christian Atias. Une crise de legitimité seconde; Simone Goyard-Fabre. Lê droit est il de cê mondei; Alain Viandier. La crise de Ia technique législative; Jean Carbonnier. Sociologie juridique et crise du droit; Hervé Croze. Lê droit malade de son information; Patrick Wachsmann, Lê ktílsénisme est-il en crise?, in Droits. Revue française de théorie juridique n£ 4 pp 9, 21, 35, 75, 65, 81 e 53.----------------sujeito cognoscente do objeto de conhecimento, típico da lógica positivista61.Essas perspectivas favorecem também o desenvolvimento de uma visão crítica do direito, no sentido anti-dogmático do termo, permitindo compreender "o jogo concreto dos mecanismos jurídicos" no interior dos sistemas, e a sua relação com as exigências sociais.A consideração do sistema, se não é nova, não tem sido objeto de grande atenção por parte dos civilistas donde a conveniência de sua abordagem num livro de teoria do direito civil.Impõe-se, preliminarmente, precisar o significado do termo sistema, sendo conhecida a variedade de sentidos que pode oferecer em filosofia, em lógica e na própria ciência do direito.62Antes de mais, diga-se que a idéia de sistema e o ideal de sistematização caracterizam o direito ocidental moderno, e representam um paradigma cientifico.63Sistema é um conjunto unitário e coerente de elementos har-monicamente conjugados, com relações de subordinação e coordenação entre si. Poderia também definir-se como "um conjunto único e ordenado, cujos componentes são coerentes e solidários entre si".64 Sistema não é sinônimo de ordenamento, embora alguns juristas defendam a sinonímia.65Uma visão histórica oferece alguns exemplos dessa concepção unitária do fenômeno jurídico. Os romanos, desde o último século da República, já relacionavam entre si as construções jurídicas que faziam, estabelecendo uma relação (de dedução) lógica entre os princípios gerais e as soluções que davam aos casos concretos que se lhes submetiam a exame e julgamento. Fala-se, assim, em sistema muciano, de Quinto Mucio Scaevola, em sistema sabiniano, de Mazurio Sabino66, encontrando-se a primeira visão de sistema "inspirada em princípios sociológicos e acomodada às exigências didáticas, nas Instituições de Gaio, com sua distribuição em personae, rés e actiones"'.Os juristas medievais já se teriam preocupado com a sistemati-cidade do fenômeno jurídico, como se pode ver na obra dos comen-tadores, embora apenas no seu aspecto

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extrínseco, isto é, como processo de exposição do material jurídico. Noutra perspectiva, a do direito como sistema intrínseco, no sentido de um todo unitário, formado por um conjunto de preposições jurídicas conexas entre si, dotado de finalidade específica, é a obra de Ihering, que afirma não se poder compreender o direito sem conhecer a sua conexão sistemática.67O sistema caracteriza-se pela unidade, plenitude e coerência de suas normas, e pela dedutibilidade, subordinação e coordenação de seus elementos. Unidade no sentido de um conjunto ordenado segundo um ponto de vista unitário que, para Kelsen, seria uma norma básica. Coerência como inexistência de incompatibilidade----------------61 Cfr. André-Jean Arnaud/Maria José Farinas Dulce, op. cit., p. 23.62 Cfr. André-Jean Arnaud / Maria José Farinas Dulce, op. cit., p. 242, Michel van de Kerchove e François Ost, Lê système juridique entre ordre et desordre, p. 19 e segs. Nelson Saldanha. Velha e Nova Ciência do Direito, p. 155; Tércio Sampaio Ferraz Jr. Conceito de Sistema no Direito, p. l e segs.; Niklas Luhman. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica, pp. 17, 102 e segs.; Carlos Santiago Nino. Introducción a Análisis dei Derecho, p. 101 e segs.; Alain Renaut. Lê système du droit, p. 136 e segs.; Jean Gaudemet. Tentatives de systématisation du droit à Rome; Stéphane Riais, Supraconstitutionnalité et systematicité du droit; René Sève, Système et code; Nikas Luhman, L'unité du système juridique; Christophe Grie-gorzczyk, "Evaluation critique du paradigme systémique dans Ia science du droit", in Archives de philosophie du droit, vol. 31, Lê système juridique, Paris, PUF, 1986, pp. 11, 57, 77, 163 e 281; Castanheira Neves, A unidade do sistema jurídico", in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, Coimbra, p. 95 e segs.; Giorgio Lazzaro, Sistema giuridico, in Novíssimo digesto italiano, vol. XVII, 1957, p. 459 e segs.; Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito, p. 178 e segs.; 506 e segs.; Eurico Paresce, Dogmática giuridica, in Enciclopédia dei diritto, vol. XIII, 1964, p. 699 e segs.; Franz Wieacker. Priva-trechtsgechichte der Neuzeit, 1967, pp. 425, 460, 494 e segs.; Claude du Pasquier. Introduction à Ia théorie génerale et à Ia philosophie du droit, p. 141; Pierre Pescatore. Introduction à Ia science du droit, p. 225 e segs.; Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, p. 9 e segs.63 Michel van de Kerchove e François Ost, Lê système juridique entre ordre et desordre, p. 19. Jaime M. Mans Puigarnau. Lógica para Juristas, p. 154.64 Jaime M. Mans Puigarnau. Lógica para juristas, p. 154.65 Kelsen, Teoria pura do direito, p. 57; Santi Romano, L'ordre juridique, p. 7. Ramon Soriano, Compêndio de teoria general dei derecho, p. 79.66 Lazzaro, op. cit., p. 460. Cf. Max Kaser. Das Rõmische Privatrecht, pp. 23 e 24, para quem "a estruturação da matéria jurídica privada e sua ordenação em um sistema inspirado em determinados princípios jurídicos era desconhecida em Roma".67 Rudolf von Ihering. L'esprit du droit romain, p. 37.----------------entre suas normas. A existência de normas incompatíveis ou em conflito denomina-se antinomia (do grego anta, contra, e nomos, norma); dedutibilidade pelo raciocínio que estabelece a partir das causas para os efeitos; subordinação, pela dependência a um princípio superior, e coordenação no sentido de disposição segundo certa ordem. Plenitude, ou completude, é a qualidade de um sistema que possui normas para quaisquer casos. Como a falta de norma adequada constitui uma lacuna, plenitude significa ausência de lacunas. A plenitude é ideal inatingível, pelo que os sistemas jurídicos possuem meios de preenchimento de suas lacunas, denominados de integração.

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Conseqüência direta da concepção do direito como sistema é o processo de integração da norma jurídica e a possibilidade de sua aplicação por analogia.O direito como sistema intrínseco ou como sistema dedutivo foi a grande contribuição do jusracionalismo que, libertando "a ciência jurídica privatística de sua submissão às fontes romanas e às antigas autoridades, abre caminho, com sua visão de conjunto, para a construção sistemática e autônoma."68 A idéia do direito como sistema representa, assim, a mais importante contribuição do jusracionalismo ao direito privado europeu, a que se seguiu o advento das construções conceituais, da utilização dos conceitos, que eram princípios jusna-turalistas transformados em princípios de caráter técnico-jurídico e do que a jurisprudência dos conceitos, do século XIX, é a maior herdeira.Os códigos são, assim, a representação mais tangível da sistema-ticidade do direito.69Elementos de um sistema jurídico são as normas, os institutos, as categorias, os conceitos, os princípios gerais e os valores, ou, para usar a linguagem de Friedman,70 as estruturas e as normas jurídicas, em permanente interação.Considerar-se o direito sob o prisma de sistema oferece vantagens. Facilita o conhecimento e a realização, pela aplicação dos conceitos, das regras gerais; permite superar a tradicional distinção entre o aspecto morfológico das coisas e sua própria dinâmica, e permite uma análise interdisciplinar do fenômeno social, considerando as relações existentes entre os diversos sistemas sociais, o político, o econômico, o jurídico, o cultural etc., e confere ainda uma certa segurança pela previsibilidade dos efeitos jurídicos decorrentes das hipóteses de fato contidas nas disposições normativas, nos artigos de lei.71 E ainda, a validade da norma jurídica significa a pertinência da norma a determinado sistema.Concluindo, devemos dizer que, para a concepção sistêmica do direito, o fenômeno jurídico não se deve estudar apenas, como norma, relação ou instituição, aspectos que lhe são fundamentais, mas cujo estudo unilateral apenas lhe fragmenta o entendimento. Deve apreciar-se o direito com uma visão global e compreensiva da totalidade que se forma com as normas, as relações, as instituições, integradas em um conjunto unitário, coerente e dinâmico, que se processa sob a égide de valores e princípios fundamentais.O sistema jurídico, embora apresentando características de unidade, plenitude e coerência, não pode ser considerado, todavia, como produto de puras conexões lógicas, deduzidas de princípios fundamentais harmonicamente dispostos, de modo estático e fechado. Deve ser concebido como uma totalidade social e dinâmica, suficientemente aberta para acolher os problemas que se renovam, sem prejuízo da sua ordenação sistemática.72------------68 Wieacker, op. cit, p. 309.69 Kerchove e Ost, op. cit. p. 11.70 W. Friedman. Théorie génerale du droit, p. 55.71 Orianne, op. cit., p. 25.72 Menezes Cordeiro. Da Boa-Fé no Direito Civil, p. 1.260. A concepção do direito como sistema, ou pensamento sistemático, opõe-se a do direito como problema, ou pensamento problemático. De um lado, a "sistematicidade axiomá-tico-dedutiva"; de outro, a tópica, a concepção do direito como um conjunto de topai, juízos normativos elaborados para atender a problemas concretos, sem concessões à unidade sistemática, ponto de vista teorizado e divulgado por Theodor Viehweg na sua conhecida obra Topik una Jurisprudenz, München, 1953, em que "não só condena a dogmática jurídica de natureza lógico-dedutiva, correspondente à chamada jurisprudência conceituai, como nega cientificidade à jurisprudência em geral, por considerá-la carecedora de unidade sistemática". Em crítica à concepção de Viehweg cf. Reale. O Direito como

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Experiência, pp. 135-139. A concepção hoje dominante, entre esses dois extremos, é a que vê o direito como uma unidade sistemática formada não por normas jurídicas apenas mas, e principalmente, por normas, valores e princípios jurídicos fundamentais e constituintes, como produto da relação dialética "entre a intenção sistemática, exigida pelo postulado da ordem, e a experiência problemática, imposta pela realidade social". "O sistema jurídico será assim uma entidade aberta e dinâmica que continuamente se enriquece e se reconstitui". Cf. Castanheira Neves. Os Institutos dos Assentos e a função Jurídica dos Supremos Tribunais, pp. 248/257; Karl Engisch, Einfüh-rung in das juristische Denken, 3. p. 223 e segs.------------A idéia de sistema é, assim, objeto de crítica e de contestação, havendo filósofos até que a consideram "inteiramente superada" e, no campo do direito contestada73. Para a corrente culturalista, que vê o saber, filosófico e jurídico, gravitando em torno de problemas e não de sistemas, o pensamento sistemático, particularmente o do sistema fechado, axiomático-dedutivo, estaria sendo superado pelo pensamento problemático, para o qual o direito é e permanece uma técnica a serviço de uma ética na solução de problemas.16. O método adotado.Quanto ao método adotado na exposição da matéria, seguem-se, neste livro, as perspectivas da relação jurídica, que se analisa sob os pontos de vista estrutural, funcional, axiológico e histórico. Na sua estrutura, estudam-se os seus elementos, a saber: os sujeitos, o vínculo ou conteúdo, o objeto, e a sua causa, os fatos jurídicos. Corresponde essa matéria às regras da Parte Geral do Código Civil, exemplificando-se com a aplicação dos seus princípios, quando cabível, aos diversos ramos da Parte Especial (o direito das obrigações, os direitos reais, o direito da família e o direito das sucessões). Preocupação constante é explicar o fundamento ideológico das normas e dos institutos, relacionando o direito civil com os sistemas político, econômico e social. A perspectiva adotada é, portanto, a de visualizar o direito civil como uma experiência global sistemática, pela coerência lógica de suas normas, agrupadas em institutos, e estes em ramos codificados, formando um todo unitário, porém dinâmico e aberto aos problemas diários da vida em sociedade e em permanente interação com os demais sistemas, o político, o econômico e o social.17. O direito e a justiça. Jusnaturalismo e positivismo jurídico.Tema de relevante interesse para o jurista é o do fundamento e justificação do direito, isto é, a sua fonte primeira e razão de ser da sua obrigatoriedade. A esse respeito confrontam-se duas concepções filosóficas: o Jusnaturalismo e o positivismo jurídico, cujo conhecimento é útil para a compreensão do fenômeno jurídico, na sua gênese, estrutura e realização. Seu ponto de partida é a distinção histórica entre o direito natural e o direito positivo.O direito natural é o conjunto de princípios essenciais e permanentes atribuídos à Natureza (na antigüidade greco-romana), a Deus (na Idade Média), ou à razão humana (na época moderna) que serviriam de fundamento e legitimação ao direito positivo, o direito criado por uma vontade humana.74 Reconhece a existência desses dois direitos, e defende a sua superioridade quanto ao positivo.Na época moderna, o direito natural desenvolve-se sob o nome de Jusnaturalismo (Grotius e Pufendorf), sendo visto como "expressão de princípios superiores ligados à natureza racional e social do homem"75, dos quais pode-se deduzir um sistema de regras jurídicas. No século XVIII, por influência do iluminismo76, torna-se a expressão--------------

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73 Antônio Paim, Problemática do Culturalismo, p. 11. Albert Calsamiglia, Introducción a Ia, ciência jurídica, p. 115.74 A primeira referência à idéia do direito natural encontramo-la na invocação das leis não escritas que Sófocles põe na boca de Antígona. O tema da peça é a resistência consciente do cidadão às leis iníquas do Estado, tema esse desenvolvido pelos pensadores gregos, principalmente os estóicos, cujo pensamento foi divulgado em Roma, passando ao Cristianismo, à filosofia e à teologia moral da Idade Média e moderna. O direito natural foi assim cultivado por filósofos gregos (Platão e Aristóteles), jurisconsultos e políticos romanos (Paulo, Ulpiano, Cícero), teólogos católicos (São Tomás de Aquino), os membros da Escola do direito natural e do direito das gentes, nos séc. XVI e XVII (Grotius, Pufendorf, Thomasius), filósofos do séc. XVIII (Voltaire, Montesquieu), os homens da Revolução Francesa (Declaração dos Direitos do Homem) e, no século XX, entre outras manifestações, o catolicismo social e o socialismo humanista. Cfr. Gérard Cornu, Droit Civil. Introduction, p. 93; Guido Fassò, // diritto naturais, 1972.75 C. Massimo Bianca, Diritto civile, \, p. 19.76 Iluminismo, ou Ilustração, ou Filosofia das luzes, foi a filosofia política, o estilo de pensamento que, no séc. XVIII, defendeu a liberdade de pensamento e a reforma social e política, contestando a tradição e a autoridade. Lutava pelo progresso e pelo primado da razão em todos os campos da experiência humana. Cfr. Francisco José Calazans Falcon, Iluminismo, p. 8 e segs; Ernest Cassirer, A filosofia do iluminismo, onde se afirma que "A filosofia do Iluminismo vinculou-se, primeiro, à idéia de que devem existir normas jurídicas absolutas e universalmente obrigatórias e imutáveis", p. 327. Franz Wieacker, História do Direito Privado Moderno, p. 353 e segs.--------------do racionalismo no direito, denominando-se, por isso mesmo, ius-racionalismo.11A questão principal que o direito natural suscita é o da sua possível superioridade em relação ao direito positivo, que o deve respeitar, sob pena da desobediência dos cidadãos. Sua função seria a de legitimar o poder do legislador, a ele se recorrendo, também, no processo de aplicação das normas.Contrapondo-se ao jusnaturalismo, o positivismo jurídico afirma não existir outro direito que não seja o positivo. Defende, portanto, a sua exclusividade.O positivismo jurídico nasceu da intenção de converter-se o direito em autêntica ciência, com as mesmas características das ciências da natureza: permanência, certeza, universalidade, donde a questão central do método, resolvida com a adoção do modelo lógico-dedutivo, herdado do jusracionalismo, e do modelo empírico das ciências sociais, como a sociologia.78O positivismo jurídico oferece, historicamente, três perspectivas de compreensão e conhecimento: como aproximação ao estudo do direito, como teoria do direito e como ideologia.19 Distinguindo, quanto à primeira, o direito real do direito ideal, o direito como fato do direito como valor, o direito que é do direito que deveria ser (devendo o jurista, na concepção positivista, preocupar-se apenas com o primeiro), o positivismo defende uma ciência positiva do direito à semelhança das ciências naturais, tendo como objeto o próprio direito positivo.Como teoria, o positivismo jurídico vê o direito como um conjunto de ordens ou comandos, emanados do Estado e providos de sanção. Desse vínculo com o Estado (concepção estatal do direito) decorreriam algumas características: a) a coercitividade do direito, pela possibilidade de recurso à coação física; b) a imperatividade das normas jurídicas no sentido de estabelecerem ordens, comandos; c) a supremacia da lei sobre as outras fontes do direito (costume, jurisprudência, princípios gerais); d) a consideração

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do direito como sistema de normas, pleno, coerente, sem lacunas; e) a consideração da atividade do juiz como essencialmente lógica, e a ciência jurídica como uma dogmática80 ou uma exegese.81Como ideologia, o positivismo jurídico considera que o direito em vigor é justo e deve ser obedecido,82 prescindindo-se de qualquer consideração sobre sua correspondência com o direito ideal.O positivismo jurídico, muito desenvolvido nos séculos XIX e XX, apresenta hoje limitações e insuficiências que atestam a sua crise, embora seja ainda a doutrina dominante. Essa crise refletiria------------------77 Jusracionalismo é o nome que se dá, na história do pensamento jurídico, ao direito natural dos sécs. XVII e XVIII que, sob a influência da razão científica, e reunindo grandes juristas e pensadores (Hugo Grocio, Samuel Pufendorf, Thomas Hobbes, Baruch Espinosa, Christian Thomasius, Cristian Wolff), superaram a ciência da exegese e do comentário de textos, próprios do pensamento escolástico, e libertaram o direito de sua submissão às fontes romanas, abrindo-lhe o caminho para a construção sistemática. De sua ligação com o Iluminismo surgiram os códigos modernos que, nos países europeus, foram verdadeiros "atos de transformação revolucionária". Cfr. Wieacker, op. cit., p. 309.78 Bobbio, apud De Lucas, op. cit., p. 30.79 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico, pp. 133/134. Entende-se aqui ideologia como "um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos", Mario Stoppino, Ideologia in Dicionário de Política, p. 585. No campo específico do direito, seria o conjunto de valores e de regras que dirigem, ou justificam, a criação e ;i realização do direito.80 Dogmática é termo que se utiliza em duas acepções principais: a) como sinônimo de ciência jurídica, que estuda o direito vigente, na sua aplicação e legitimação, e também no seu processo de sistematização e reconstrução; b) como particular método ou estilo, o estilo sistemático. Cf. Ricardo Guastini, Dogmática giuridica, Digesto delle Discipline Privatistiche, VII, p. 27; Miguel Reale, Filosofia do Direito, ns 68: Enrique Zuleta Pereira, Paradigma dogmático y ciência dei derecho, p. 11 e segs.81 Bobbio // problema dei positivismo giuridico, p. 45. Dá-se o nome de Exegese a um movimento (Escola da Exegese] ou modelo de interpretação desenvolvido pelo direito francês, nos sécs. XIX e XX, "cuja tese fundamental é a de que o direito contem-se inteiramente na lei escrita, bastando ao jurista descobrir a vontade do legislador". É o postulado da plenitude da lei escrita. Caracteriza-se, também, por uma concepção rígida da separação dos poderes e da soberania do legislador. Este não deve ser juiz, e o juiz não deve ser legislador. "O ministério dos juizes é de julgar de acordo com a lei e não de julgar a lei", Toullier, apud François Ost et Michel Van der Kerchove, Interprétation, Archives de Philosophie du Droit, Tome 35, p. 182. Cfr. p. 109, nota 7.82 Cristophe Grzegorczyk, Lê positivisme juridique, p. 27.------------------a "quebra do modelo de ciência que o sustentava", com a perda da certeza e da universalidade do direito. Além da permanência da corrente jusracionalista, como direito superior e como critério de valoração do direito positivo, o positivismo enfrenta ainda os desafios do realismo jurídico, uma outra corrente filosófico-jurídica que defende a existência de "um direito nascido espontaneamente da sociedade, pela atividade de seus membros, do que decorreria a "revalorização do papel do juiz e a crescente admissão de sua função criadora do direito".83

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Outro fator de enfraquecimento ou superação do positivismo seria a importância crescente dos princípios jurídicos. Segundo Dwor-kin, o ordenamento compõe-se não só de normas, como defende o positivismo, mas também de princípios e diretrizes, valores de natureza moral ou prática que orientam comportamentos e a própria realização do direito.84 Este jurista considera o modelo positivista estritamente normativo e também falsa a tese da separação entre direito e moral, pois a prática demonstra ser o raciocínio jurídico dependente, em muitos casos, do raciocínio moral. Também se afirma ser o positivismo insuficiente e perigoso. Insuficiente porque identifica o direito com a lei do Estado, o que justifica a sua coatividade mas não explica o conteúdo da norma jurídica. Além disso, ver todo o direito nas regras postas pelo Estado leva ao culto da lei e ao método estreito da exegese. O positivismo seria também perigoso porque, em nome do Estado podem justificar-se as leis mais desumanas.85Numa síntese conclusiva e diferenciadora das duas correntes doutrinárias, poder-se-ia dizer que: a) quanto ao conceito de direito, o jusnaturalismo é dualista, admitindo a existência e o primado do direito natural sobre o positivo, pelo que este, para existir e ser válido, deve ser justo, sob pena de poder ser desobedecido; o jusnaturalismo defende, conseqüentemente, uma concepção valora-tiva, ontológica e ética do direito, enquanto o positivismo tem desse uma concepção avalorativa, empírica e técnica; b) quanto às fontes do direito, o jusnaturalismo defende o recurso a fontes suprapositivas, como os princípios, o costume, a eqüidade, enquanto o positivismo limita as fontes ao direito positivo; c) quanto ao método, o jusnaturalismo defende um critério teleológico e prudencial na realização do direito, visando o justo concreto, isto é, a decisão justa do caso específico, enquanto o positivismo segue a orientação empirista, considerando o juiz mero aplicador das normas ao caso concreto, segundo procedimentos lógico-dedutivos de subsunção86.São manifestações da influência do jusracionalismo no direito moderno, o processo de racionalização e sistematização do direito, de que resultaram os códigos e as constituições dos séculos XVIII e XIX, e ainda, a preocupação com a justiça e a igualdade material, o reconhecimento de princípios supra-positivos, o conceito e defesa dos direitos fundamentais, o desenvolvimento da responsabilidade civil, a fundamentação de um direito geral da personalidade, a elaboração de categorias de natureza técnico jurídica, como a de sujeito de direito, de declaração de vontade, de negócio jurídico, etc.87O positivismo jurídico, por sua vez, influiu na concepção normativa do direito, na separação radical entre o ser e o dever ser, isto é, entre o direito e a moral; na compreensão do direito como o ordenamento jurídico de um Estado, recusando a existência do direito natural como legitimador desse ordenamento; na consideração da validade e eficácia das normas jurídicas independentemente do seu conteúdo, etc. Do positivismo decorre ainda o raciocínio lógico dedutivo na aplicação do direito, deduzindo-se as normas jurídicas dos conceitos e dos princípios da ciência jurídica, sem recurso a valores extra-jurídicos, considerando-se que a aplicação do direito leva, necessariamente, a uma decisão justa.88 A norma seria justa só-------------83 De Lucas, op. cit. p. 33.84 Ronald Dworkin, Talking Rights Seriously, Londres, 1977, p. 72. As teorias de Kelsen e Hart reduzem os elementos do sistema jurídico às regras ou normas. Outros juristas incluem, além das normas, os institutos, os conceitos, os princípios, os valores. Cfr. Kerchove, op. cit. p. 49.85 Giles Goubeaux, op. cit. p. 23.

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86 Mário Bigotte Chorão, Positivismo Jurídico, in Polis Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 4, p. 1422.87 Wieacker, op. cit. p. 707.88 Wieacker, op. cit. p. 496.-------------pelo fato de ser válida.89 Além disso, considerando o direito um sistema fechado e pleno, nega a existência de lacunas do sistema. É o dogma da plenitude da ordem jurídica, hoje superado. Decorre ainda da concepção positivista, a formação técnica do jurista, vinculado à teoria científica, que leva a um ensino sistemático-concei-tual, independente e anterior à formação prática do estudante.18. A metodologia da realização do direito. A decisão justa do caso concreto.Método, do latim, methodus, e do grego meta + odos, significa o modo e o caminho que se segue para atingir determinada coisa. No campo da pesquisa científica é um "procedimento de investigação ordenado, que garanta a obtenção de resultados válidos".Methodicus é adjetivo latino indicativo do que procede com método.Metodologia é não só o "conjunto de procedimentos metódicos de uma ciência" mas também a "análise filosófica de tais procedimentos .No campo do direito, a metodologia estuda as diversas atividades de: 1) elaboração de regras e textos jurídicos (metodologia da arte de legislar); 2) construção científica do direito, que compreende a elaboração de princípios, conceitos e sistemas (metodologia da ciência do direito) e 3) realização do direito, determinando o que é justo em cada caso concreto. Entende-se aqui a realização do direito como a decisão judicial concreta, distinguindo-se da aplicação, mero procedimento de conexão silogística dos fatos com as regras jurídicas. A metodologia da realização ou determinação do direito estudaria, portanto, os procedimentos com que se decidem os casos jurídicos, questões jurídicas concretas91, determinando-se o que é justo.Leva-se aqui prioritariamente em conta que o pensamento jurídico é um pensamento prático, seu objeto é a decisão concreta, cabendo à teoria do direito civil a tarefa, também prática, de propor diretivas ou modelos jurídicos que proporcionem e justifiquem a resolução correta de problemas.92O problema metodológico da realização do direito assume, portanto, dimensão relevante no pensamento jurídico, porque este pensamento está em crise, superado que foi o modelo sistemático, conceituai e positivista da época moderna (séc XIX), ainda hoje dominante, em alguns setores.Disso decorre uma necessária reflexão sobre os procedimentos adequados à determinação do direito que, partindo da fundamental diferença entre a aplicação e a realização do direito, proceda a uma renovação metodológica que estabeleça novos procedimentos para a obtenção do direito correto.Nas últimas décadas a teoria jurídica, principalmente de origem alemã, defende a renovação da metodologia jurídica moderna93, visando superar os limites do jusnaturalismo e do positivismo, ambos referentes a um direito que nos é previamente dado, formado e cristalizado em normas, e cuja aplicação se mostra insatisfatória em face da crescente complexidade das relações sociais.Essa revisão metodológica começou com o livro de Theodor Viehweg, em 1953, Tópica e jurisprudência, com o qual o autor demonstra ser a ciência do direito marcada por um estilo de pensamento, o pensamento problemático, "uma técnica de raciocínio que se orienta a partir de e em direção a problemas", o que exigiria um método jurídico diverso do até então usado pelo positivismo jurídico, adequado a um outro tipo de pensamento, o pensamento sistemático. O então chamado pensamento tópico levou à compreensão de que o instrumento decisivo do método jurídico não é a subsunção mas sim a retórica e o

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argumento. A par disso, o direito natural, como referência legitimadora do direito positivo, teria sido substituído pelos valores e princípios das Constituições, como, por exemplo, os chamados direitos fundamentais, sendo notória a in-----------------89 Bobbio, Teoria delia norma giuridica, p. 48, com observações críticas a essaconcepção, a p. 55 e segs.90 Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia, p. 640/641.91 Antônio Castanheira Neves. Metodologia do Direito. Problemas Fundamentais, p. 18 e 26.92 Idem, Digesta, vol. 2, p. 260; Antônio Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil Português, I, p. 23; Franz Wieacker. História do Direito Privado Moderno, p. 729.93 Luigi Mengoni, in // método delia ricerca civilistica, in Rivista critica dei diritto privato, p. 11.----------------Iluência do texto constitucional no direito civil. Isso teria levado à abertura da ciência jurídica a outras ciências do espírito, como a hermenêutica94, a teoria da linguagem95 e a teoria sociológica dos sistemas.96 Dessas contribuições surge uma ciência jurídica marcada pelo pluralismo temático e metodológico, ciência jurídica simultaneamente hermenêutica e analítico-sistemática.97 Hermenêutica no sentido de buscar a compreensão do mundo histórico-cultural em que se desenvolve o direito, compreensão que só é possível por meio da comunicação e, por isso, uma teoria compreensiva é o mesmo que uma teoria comunicativa.98 Objetivo da hermenêutica jurídica é demonstrar que a investigação do direito não é uma subsunção, de acordo com regras lógico-formais fixadas em lei, mas sim um processo criativo, construtivo e concretizador da norma aplicável ao caso, que parte da compreensão de que a lei não é unívoca e completa, que sua aplicação não é mera reprodução mecânica. Para a moderna hermenêutica jurídica, "as normas positivas são estruturas lingüísticas abertas, cujo significado não se deixa colher completamente senão em relação ao caso a decidir, e, portanto, por meio de um processo de transformação da norma em regra concreta de decisão".99 A compreensão da norma está condicionada à específica relação com a situação de fato a que a norma deve ser aplicada. Além disso, reconhece-se o papel criador da interpretação jurídica, e considera-se o pensamento jurídico como um "pensamento orientado ao problema". A par da hermenêutica, e como contribuição do pensamento anglo-saxão, desenvolve-se a teoria analítica que se debruça sobre a linguagem do direito para investigar sua estrutura formal. Essas duas correntes doutrinárias, hermenêutica e analítica, que sempre se opuseram, hoje aproximam-se em produtiva colaboração. O objetivo da analítica é "produzir enunciados evidentes sobre o direito, por meio de análises lógico-lingüísticas, com estrita separação entre moral e direito".100 A lógica analítica, que trabalha com a idéia de sistema axiomático, fechado, idéia comum ao jusracionalismo e ao positivismo jurídico, é contrabalançada pela jurisprudência tópica101 ou retórica,102 que trabalha com o modelo de sistema aberto,103 ao qual é subjacente a idéia de que os critérios, para se alcançar a decisão justa, são ilimitados em número. Aqui se encontram, também, as raízes da moderna teoria da argumentação.104----------------94 Hermenêutica é o estudo dos princípios metodológicos de interpretação e explicação, Webster Third New International Dictionary, apudRichard E. Palmer, Hermeneutics — Interpretation Theory in Schleiermacher, Dilthey. Heidegger and Gadamer, 1969, p. 16. No que diz respeito ao direito, a hermenêutica jurídica apresenta-se como uma teoria de compreensão histórica do direito e como uma filosofia prática,

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no sentido de que o direito não é recondutível na sua integralidade a uma autoridade legiferante, mas é conformado pela vida, pela prática de sua aplicação". A interpretação jurídica tem um reconhecido papel criador, e o pensamento jurídico é um pensamento orientado por problemas, não por normas propriamente estabelecidas. Miguel Reale, Fontes e Modelos do Direito. Para um novo paradigma hermenêutico, ps. 108 e segs. Cfr. José Lamego. Hermenêutica e Jurisprudência, p. 227 e segs. Nelson Saldanha, Filosofia do Direito, p. 191 e segs.95 A teoria da linguagem é uma concepção jusfilosófica segundo a qual a teoria do direito é a análise da linguagem dos juristas. É uma teoria dos textos jurídicos, em sentido amplo. Também denominada de semiótica jurídica, seria o caminho para a superação da clássica dicotomia direito natural/direito positivo. Aproveitando os estudos de semiótica, poderia dividir-se essa teoria em três níveis, a pragmática, correspondente à criação do texto e, no direito, a uma teoria da decisão jurídica; a semântica, dedicada ao significado da linguagem e, no direito, correspondente a uma teoria da dogmática ou da ciência jurídica; e a sintaxe, que estuda as estruturas formais da linguagem, correspondente no direito, a uma teoria da estrutura formal do direito. Cfr, Gregorio Robles. Introduccion a Ia teoria dei derecho, p. 155 e segs.96 Mengoni, op. cit. p. 18.97 Gregorio Robles, in "El pensamiento jurídico contemporâneo", p. 17.98 Idem, ibidem.99 Mengoni, op. cit. p. 20.100 Arthur Kaufmann, El pensamiento jurídico contemporâneo, p. 127.101 Tópica é, no âmbito da metodologia jurídica, uma técnica ou estilo de pensamento que se orienta a partir de problemas, donde também chamar-se de pensamento problemático, e se desenvolve por meio de uma argumentação jurídica não sistematizada. Cfr. Tércio Sampaio Ferraz, Direito, Retórica e Comunicação, S. Paulo, 1973 e, principalmente, Theodor Viehweg, Topik una Jurisprudenz, tradução de Tércio Sampaio Ferraz, Brasília, Departamento de Imprensa Nacional, 1979.102 Retórica é, também no campo da metodologia jurídica, um estilo, uma técnica de argumentação em que o raciocínio jurídico é essencialmente um raciocínio prático, destinado a convencer o interlocutor ou um auditório.103 Kaufmann, op. cit. p. 128.104 A teoria da argumentação jurídica teve, nos últimos anos, notável desenvolvimento, sobretudo por obra de teóricos e filósofos do direito de diversos países europeus, cujo objetivo comum seria o de construir modelos de racionalidade que sirvam de orientação para as decisões jurídicas. No âmbito da cultura alemã, a teoria da argumentação jurídica mais representativa é a de Robert Alexy, na sua Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie dês rationales Diskurses ais Theorie der juristischen Begründung. Frankfurt, Shurkamp, 1978, reimpressão em l 983. Alexy parte concretamente da teoria do discurso racional, como elaborada basicamente por Jürgen Habermas, desenvolvendo a partir dela a tese de que a argumentação jurídica é um caso particular do discurso prático geral, que precede e fundamenta as decisões judiciais concretas (Extrato da nota dos tradutores Manuel Atienza e Isabel Espejo, à edição espanhola Teoria de Ia argumentación jurídica, Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales, 1989). Cfr. No direito brasileiro, Tércio Ferraz Sampaio. Direito. Retórica. Comunicação.----------------Enfim, o direito existente não depende, na sua integralidade, de um poder legiferante, mas é conformado pela vida, pela prática de sua aplicação.105 Não deve considerar-se

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como objeto previamente dado e construído, mas um processo de construção permanente.Como efeito desse movimento pós-positivista, passa a ocupar um lugar central na teoria do direito o tema da decisão judicial que, tido como "fenômeno central e paradigmático do pensamento jurídico, é analisado à luz da sua motivação e de sua justificação racional". Passa a considerar-se que a aplicação do direito é muito mais do que um simples silogismo, e que o juiz também cria direito, não é só a boca que pronuncia as palavras da lei.O direito, de ciência normativa, passa a ciência da ação.106Do exposto, pode concluir-se que o pensamento jurídico atual, acompanhando o elevado grau de complexidade e diversificação da sociedade contemporânea, caracteriza-se por uma grande variedade temática e um pluralismo epistemológico, o que, se atesta a crise e a superação do positivismo, não faz pressupor a volta do direito natural, pelo menos no sentido estrito. Ambas as concepções estariam superadas, entre outras razões, pela circunstância de se referirem a um direito previamente estabelecido, que o jurista, o realizador do direito, já encontra formulado à sua disposição, anterior à realidade que deve ordenar. Aproximam-se e integram-se, todavia, na criação e reconhecimento de princípios jurídicos estabelecidos nos textos constitucionais, assim como no respeito à justiça, como valor, e a pessoa como titular dos direitos humanos, idéia até então de matriz jusnaturalista.Quanto ao direito brasileiro, pode afirmar-se que, desde os primórdios até 1940, foi dominante a corrente positivista, comdestaque para as figuras eminentes do Clóvis Beviláqua, Pedro Lessa e Pontes de Miranda. A partir dessa data (superado o positivismo sem retorno ao direito natural), desenvolve-se o culturalismo jurídico que, remontando a Tobias Barreto, da Escola do Recife, desenvolve-se em várias perspectivas, sendo francamente dominante a que enfoca o direito como experiência jurídica, e que tem no Prof. Miguel Reale a sua mais excelsa figura.No campo do direito civil desenvolve-se um processo de reflexão sobre a pessoa e o conceito de pessoa e de sujeito de direito, e suas implicações no campo dos principais institutos jurídicos, como o da família, da propriedade e do contrato, cujos princípios fundamentais emigraram para a Constituição. No que diz respeito à sistematização do direito, idéia tão cara ao jusnaturalismo, assiste-se à fragmentação dos sistemas e ao surgimento dos microssistemas jurídicos com todas as suas implicações no campo das fontes do direito, e à superação do pensamento sistemático pelo pensamento problemático, embora ambos reciprocamente se exijam----------------105 Latnego, p. 282.106 Kaufman 360.107 Miguel Reale, O Direito como Experiência, p. 138.----------------