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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE LUDMILA JONES ARRUDA CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL: “O POVO É QUEM MAIS ORDENA” São Paulo 2016

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

LUDMILA JONES ARRUDA

CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL:

“O POVO É QUEM MAIS ORDENA”

São Paulo

2016

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LUDMILA JONES ARRUDA

CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL:

“O POVO É QUEM MAIS ORDENA”

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como exigência

parcial para obtenção do título de Doutor

em Letras.

Orientadora: Prof. Dra. Regina Helena Pires de Brito (UPM)

Co-orientador: Prof. Dr. José Eduardo Franco (Universidade de Lisboa)

São Paulo

2016

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A778c Arruda, Ludmila Jones.

Canto de intervenção em Portugal: "o povo é quem mais ordena” /

Ludmila Jones Arruda – São Paulo, 2016.

204 f. : il. ; 30 cm.

Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie,

2016.

Orientador: Profª. Drª. Regina Helena Pires de Brito

Referência bibliográfica: p. 185-190

1. Lusofonia. 2. Canto de intervenção. 3. Revolução dos Cravos. I. Título.

CDD 869.93

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LUDMILA JONES ARRUDA

CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL:

“O POVO É QUEM MAIS ORDENA”

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como exigência

parcial para obtenção do título de Doutor

em Letras.

Aprovada em 12 de agosto de 2016

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dra. Regina Helena Pires de Brito

Universidade Presbiteriana Mackenzie

____________________________________________________________

Prof. Dr. José Eduardo Franco

Universidade Aberta e Universidade de Lisboa

Prof. Dra. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dra. Marlise Vaz Bridi

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dra. Vima Lia de Rossi Martin

Universidade de São Paulo

Prof. Dr. Alexandre Marcelo Bueno

Pontifícia Universidade Católica

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Para os meus pais,

que tanto me incentivaram.

Para os que viveram as ditaduras e

que foram silenciados.

Para os cantores que, com suas vozes,

nos libertam.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, pela oportunidade concedida e por ter dirigido os meus

passos até aqui; a Ele toda a honra e a glória!

Aos meus pais, Arody e Zoraide, pelo apoio incondicional e por todo o suporte prestado

durante a minha caminhada; aos meus irmãos, cunhada e família pelo constante incentivo;

À minha querida orientadora, Prof. Dra. Regina Pires de Brito, por me inspirar, me

corrigir e me orientar em todos os momentos desde o mestrado até a conclusão do

doutorado;

Ao meu co-orientador, Prof. Dr. José Eduardo Franco, por todo o apoio e pelas sugestões

ao longo dos meus estudos e ainda, pela indicação de materiais e professores que

certamente trouxeram valiosas contribuições para a presente pesquisa;

A todos os membros da minha banca, Prof. Dra. Vima Lia de Rossi Martin; Prof. Dra.

Neusa Maria Barbosa Bastos; Prof. Dra. Marlise Vaz Bridi e Prof. Dr. Alexandre Marcelo

Bueno, por todas as propostas, comentários e correções acerca da minha pesquisa, que

foram e serão indispensáveis para o meu crescimento acadêmico, e ainda, à Prof. Dra.

Vera Lúcia Harabagi Hanna também pelas sugestões dadas durante a qualificação;

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana

Mackenzie, por toda a competência, pelo profissionalismo e pela motivação;

À Universidade de Lisboa, especialmente a equipe do Centro de Literaturas e Culturas

Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa (CLEPUL), por ter me acolhido, me

auxiliado e por toda a orientação prestada no decurso dos meus estudos em Lisboa;

A todos os entrevistados desta pesquisa, o jornalista e escritor José Jorge Letria; aos

cantores Sérgio Godinho e Francisco Fanhais e ao Prof. Dr. António Borges Coelho, Prof.

Dr. Fernando Rosas e Prof. Dr. Pedro Calafate: a todos o meu profundo agradecimento

pela disposição, atenção e cuidado ao me conceder as entrevistas e as devidas correções;

e também ao Prof. Dr. António Nóvoa pela indicação de nomes que foram fundamentais

para a entrevista;

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À Associação José Afonso (AJA) e à Torre do Tombo, pela atenção, pela recepção e pela

disponibilização de materiais e documentos que foram indispensáveis para a realização

da minha pesquisa;

À Biblioteca Casa de Portugal, que mais uma vez contribuiu com empréstimos de

materiais, documentos e obras que foram importantes para a realização do meu trabalho;

Aos meus amigos que me acompanharam e me deram apoio em algumas questões acerca

da tese, em especial Priscilla Barbosa Ribeiro, Vanessa Maria da Silva, Jade, Márcio e

Sabrina Bettini; e aos que me auxiliaram durante a estadia em Lisboa;

Aos colegas do curso de Pós-Graduação em Letras pelo incentivo e companheirismo;

À Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelo apoio e recursos para o desenvolvimento

da pesquisa;

À Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Nível Superior (CAPES), agência

financiadora deste projeto, pelo incentivo e financiamento dos estudos no Brasil e no

exterior;

Finalmente, a todos aqueles que me acompanharam nesses quatro anos e me motivaram

a concluir mais uma etapa em minha vida. Todos os conselhos, orações e palavras de

apoio foram fundamentais ao longo desses anos.

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Foi bonita a festa, pá

Fiquei contente.

E ainda aguardo, renitente

Um velho cravo para mim.

Já murcharam a tua festa, pá

Mas certamente

Esqueceram uma semente em algum

Canto de jardim.

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei também quanto é preciso, pá

Navegar, navegar.

Canta a primavera pá

Cá estou carente

Manda novamente algum cheirinho

De alecrim!

(Chico Buarque, 1978)

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ARRUDA, Ludmila Jones. Canto de Intervenção em Portugal: “O Povo é Quem Mais

Ordena”. São Paulo, 2016. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana

Mackenzie (UPM)

RESUMO

Entre 1933 e 1974, o Estado Novo, regime opressor e autoritário iniciado com António

de Oliveira Salazar, trouxe consequências desastrosas para Portugal, agravadas com o

início da Guerra Colonial em 1961. Essa situação acarretou inúmeros protestos, desde

reuniões, encontros acadêmicos, grupos ativistas, produções literárias até canções de

intervenção que denunciavam a política e revelavam a luta, a insatisfação e o

descontentamento popular – aspectos de destaque na presente pesquisa. Inserido no

âmbito dos Estudos Lusófonos, o presente estudo propõe investigar elementos linguístico

e poéticos presentes em canções de intervenção portuguesa compostas no período pré e

pós Revolução dos Cravos. Recorre-se, para tratar dos aspectos históricos do Estado

Novo, em especial sobre a atuação do governo e as ações da polícia que reprimiram a

circulação de obras e a difusão de canções contrárias ao ideário salazarista, aos estudos

de Meneses (2011), Rosas (2013) e Pimentel (2007, 2011). Para a seleção das canções

que compõem o corpus analisado, procedeu-se a uma série de entrevistas com ativistas

que reagiram às imposições da censura naquela época: os cantores José Letria – hoje

escritor e jornalista – Sérgio Godinho e Francisco Fanhais e os acadêmicos Fernando

Rosas, António Borges Coelho e Pedro Calafate, que contribuíram com informações e

indicações de canções que significativas no período final do Estado Novo. Neste aspecto,

lidando com a questão da memória, foi importante o aporte teórico de Halbwachs (2013),

Le Goff (1996), Traverso (2009). Para a escolha das sete canções - Grândola Vila

Morena, Menina dos Olhos Tristes, Vampiros, O Menino do Bairro Negro, de Zeca

Afonso, e Cantar da Emigração e Trova do Vento que Passa, de Adriano Correia de

Oliveira, e por fim, Liberdade, de Sérgio Godinho - considerou-se, também, o sucesso da

canção, mensurado pela ação da censura e pela popularidade alcançada por cantores como

Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. No esteio de alguns pesquisadores como

Raposo (2000) e Letria (1999, 2013) para a parte analítica, foi possível traçar elementos

reveladores da importância das canções resgatadas para a (re)construção identitária dos

portugueses. Além disso, possibilitou perceber como as mensagens permanecem latentes

na sociedade portuguesa nos dias atuais – como se pôde verificar com as manifestações

da recente crise econômica europeia, quando algumas dessas canções voltaram a ser

entoadas, revestidas de novo valor simbólico, mas resgatando o tom de denúncia e

protesto, tendo seu conteúdo ressemantizado e atualizado.

Palavras-chave: Lusofonia, Canto de Intervenção, Revolução dos Cravos.

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ARRUDA, Ludmila Jones. Canto de Intervenção em Portugal: “O Povo é Quem Mais

Ordena”. São Paulo, 2016. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana

Mackenzie (UPM)

ABSTRACT

Between 1933-1974, Estado Novo (New Estate), na authoritarian and opressive regime

ocurred in Portugal under the government of António de Oliveira Salazar, brought huge

impacts in Portugal, worsened by the beginning of the Colonial War in 1961. This

situation led to a number of protests, gatherings, academic groups, ativists, literary

productions and revolutionary songs which denounced the politics and revealed the fight,

the dissatisfaction and the popular discontentment – being the core of this research. Inside

Lusophone studies, the present paper aims to investigate the poetic and linguistic

discursive elements present in Portuguese intervention songs composed before and after

the Carnation Revolution (1974). The historic aspects of the Estado Novo is – mainly –

based on the studies of Meneses (2011), Rosas (2013) and Pimentel (2007, 2011)

specially on how the government used to act through censorship, which stopped the

spread of protest songs and the diffusion of ideas which were against Salazar’s ideology.

In order to select the songs for the analysis, six people were interviewed, amongst ativists

and singers who imposed against the censorship: the singers are José Jorge Letria,

Francisco Fanhais and Sérgio Godinho; along with academics Fernando Rosas, Pedro

Calafate and António Borges Coelho – who contributed by giving important information

and pointing songs which were significant in that period. In this aspect, in order to deal

with memory, the theories of Halbwachs (2013), Le Goff (1996) and Traverso (2009)

were relevant. The seven songs, Grândola Vila Morena, Menina dos Olhos Tristes,

Vampiros, O Menino do Bairro Negro, sung by Zeca Afonso, Cantar da Emigração and

Trova do Vento que Passa, by Adriano Correia de Oliveira, and finally Liberdade, by

Sérgio Godinho - were also chosen considering the popularity the songs gained during

the period, due to the action of the censorship. Based on Raposo (2000) and Letria (1999,

2013) to help the analysis, it was possible to outline elements which proved that those

songs were important for the identity re(construction). Also, it is important to mention

that such songs remain latent in the present, specially after the last European crisis when

several of those songs were chanted again, covered by a new symbolic value, but

rescueing the revolutionary characteristics present in their contents.

Keywords: Lusophone, Protest Songs, Carnation Revolution.

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ARRUDA, Ludmila Jones. Canto de Intervenção em Portugal: “O Povo é Quem Mais

Ordena”. São Paulo, 2016. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana

Mackenzie (UPM)

RESUMEN

Entre 1933-1974, en Portugal rigió el Estado Novo (Nuevo Estado), un régimen

autoritario y represivo bajo el gobierno de António de Oliveira Salazar, el cual trajo

grandes consecuencias en dicho país, aseverado por el comienzo de la Guerra Colonial

en 1961. Esta situación propició la formación de protestas, reuniones, grupos académicos,

grupos activistas, producciones literarias y canciones revolucionarias que denunciaban la

política y revelaban la lucha, la insatisfacción y el descontento popular – lo cual es el

objetivo central de esta investigación. Dentro de los estudios Lusofonia, el presente paper

apunta a investigar los elementos poéticos y lingüístico-discursivos presentes en estas

canciones de protesta compuestas antes y después de la Revolución de los Claveles en

1974. Los aspectos históricos del Estado Novo están, principalmente, basados en los

estudios de Meneses (2011), Rosas (2013) y Pimentel (2007, 2011), específicamente en

cómo el gobierno actuaba mediante la censura para frenar la difusión de las canciones de

protesta y así como de las ideas que estuviesen en contra de ideología de Salazar. Para el

criterio de selección del corpus de canciones que se analizaron, se entrevistaron seis

personas, entre los que se encontraban activistas y cantantes que se impusieron a la

censura: los cantantes son: José Jorge Letria, Francisco Fanhais y Sérgio Godinho, junto

con los académicos Fernando Rosas, Pedro Calafate y Antonio Borges Coelho, quienes

contribuyeron dando importante información así como también indicando qué canciones

fueron significativas en ese período. En ese aspecto, para trabajar con el concepto de

memoria, las teorías de Halbwachs (2013), Le Goff (1996) y Traverso (2009) fueron

relevantes en este estudio. Las siete canciones elegidas son Grândola Vila Morena,

Menina dos Olhos Tristes, Vampiros, O Menino do Bairro Negro, cantadas por Zeca

Afonso, Cantar da Emigração y Trova do Vento que Passa, por Adriano Correia de

Oliveira, y por último Liberdade, de Sérgio Godinho. Fueron también seleccionadas

considerando la popularidad que las canciones adquirieron durante ese período dada la

censura. Basado en conceptos de Raposo (2000) y Letria (1999; 2013) en el análisis, fue

posible evidenciar elementos que dan prueba de la importancia de esas canciones para la

(re)construcción identitaria. Es también importante mencionar que estas canciones

permanecen de manera latente en el presente, en especial luego de la crisis europea,

momento en el que muchas de estas canciones fueron entonadas nuevamente, rescatando

las características revolucionarias presentes en su contenido pero con un nuevo valor

simbólico.

Palabras clave: Lusofonia, Canciones de Protesta, Revolución de los Claveles

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 – Mapa Portugal Primeira Classe........................................................................................... 30

FIGURA 2 – Mapa: Portugal não é um País Pequeno - SPN................................................................... 40

FIGURA 3 – A Lição de Salazar.............................................................................................................. 47

FIGURA 4 – Contracapas dos Livros.......................................................................................................47

FIGURA 5 – A Dona de Casa................................................................................................................... 48

FIGURA 6 – Alfabetizando ............................................................................................... ...................... 49

FIGURA 7 – Respeitai as Autoridades .................................................................................................... 49

FIGURA 8 – Texto: Portugal é Grande.....................................................................................................50

FIGURA 9 – Boletim de Existência de Presos (1936) ............................................................................ 57

FIGURA 10 – Boletim de Existência de Presos e Deportados (1945) .....................................................58

FIGURA 11 – Vote com Salazar por Portugal..........................................................................................67

FIGURA 12 – Comemoração do Aeroporto de Lisboa............................................................................ 77

FIGURA 13 – José Jorge Letria................................................................................................................ 88

FIGURA 14 – Disco: Até ao Pescoço....................................................................................................... 92

FIGURA 15 – Capa do Livro: A Arte de Armar...................................................................................... 93

FIGURA 16 – Francisco Fanhais.............................................................................................................. 98

FIGURA 17 – Sérgio Godinho............................................................................................................... 104

FIGURA 18 – António Borges Coelho................................................................................................... 107

FIGURA 19 – Biografia Prisional de António Borges Coelho.............................................................. 110

FIGURA 20 – Pedro Calafate................................................................................................................. 114

FIGURA 21 – Fernando Rosas.............................................................................................................. 117

FIGURA 22 – Fachada da Associação José Afonso .............................................................................. 120

FIGURA 23 – CD Cantigas do Maio..................................................................................................... 123

FIGURA 24 – Mandado de Captura de Zeca Afonso............................................................................ 125

FIGURA 25 – Apresentação no Coliseu de Lisboa................................................................................ 130

FIGURA 26 – Coliseu: 40 anos depois.................................................................................................... 131

FIGURA 27 – Folheto: Cantar Grândola................................................................................................ 131

FIGURA 28 – Capas dos Álbuns de Zeca Afonso................................................................................. 133

FIGURA 29 – Manuscrito de ‘Os Vampiros’......................................................................................... 142

FIGURA 30 – Muros.............................................................................................................................. 143

FIGURA 31 – Muros.............................................................................................................................. 143

FIGURA 32 – Muro Liberdade............................................................................................................... 174

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 – Taxa de Analfabetismo em Portugal...................................................... 52

TABELA 2 – Emigração para a França........................................................................ 66

TABELA 3 – Governos Provisórios PREC.................................................................. 75

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LISTA DE ABREVIATURAS

AJA – Associação José Afonso

ARMCPF – Associação dos Reformados e dos Ex-Militares/ Ex-Combatentes

Portugueses de França

CEE – Comunidade Econômica Europeia

CLSTP – Comitê de Libertação de São Tomé e Príncipe

DGS – Direção Geral de Segurança

FNAT – Federação Nacional para a Alegria no Trabalho

FNLA – Frente Nacional de Libertação de Angola

FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique

GNR – Guarda Nacional Republicana

INE – Instituto Nacional de Estatística

INTP – Instituto Nacional do Trabalho e Previdência

MC – Movimento dos Capitães

MEN – Ministério da Educação Nacional

MP – Mocidade Portuguesa

MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola

MUD – Movimento da Unidade Democrática

MVSN – Milizia Volontaria per La Sicurezza Nationale (Itália)

NATO (Sigla utilizada em Portugal para OTAN) – Organização do Tratado do Atlântico

Norte

OMEN – Organização das Mães pela Educação Nacional

ONU – Organização das Nações Unidas

OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte

PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde

PALOP – Países Africanos de Língua Portuguesa

PCP – Partido Comunista Português

PCTP/MRPP – Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses / Movimento

Reorganizativo do Partido do Proletariado

PI – Polícia de Informações

PIB – Produto Interno Bruto

PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado

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PIMI – Polícia de Informações do Ministério Interior

PIP – Polícia Internacional Portuguesa

PREC – Processo Revolucionário em Curso

PVDE – Política de Vigilância e Defesa do Estado

RFA – República Federal da Alemanha

RTP – Rádio de Televisão Portuguesa

SEIT – Secretaria de Estado da Informação e Turismo

SMFOG – Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense

SNI – Secretariado Nacional de Informação

SPN – Secretariado de Propaganda Nacional

UDP – União Democrática Popular

UNITA – União Nacional para a Independência Total de Angola

UPA – União das Populações de Angola

URAP – União de Resistentes Antifascistas Portugueses

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS..................................................................... 17

1. ASPECTOS HISTÓRICOS DE PORTUGAL NO SÉCULO XX:

NOTÍCIAS DO MEU PAÍS...................................................................... 30

1.1 I REPÚBLICA (1910-1926) ....................................................................... 32

1.2 DITADURA NACIONAL (1926-1932) ..................................................... 33

1.3 O ESTADO NOVO (1932-1974) ................................................................ 38

1.3.1 O Ensino na Ditadura e a Mocidade Portuguesa .............................. 44

1.3.2 A Censura ............................................................................................. 53

1.3.3 Desdobramentos das Guerras ............................................................. 62

1.3.4 Anos Cruciais para Salazar (1958-1962) ............................................ 66

1.3.4.1 A Abrilada e a Guerra Colonial ............................................................. 68

1.3.5 Primavera Marcelista e a Revolução dos Cravos .............................. 70

1.4 PROCESSO REVOLUCIONÁRIO EM CURSO ....................................... 74

2. PERSPECTIVAS DA MEMÓRIA DO 25 DE ABRIL:

A HISTÓRIA NA VOZ DE QUEM A VIVEU.......................................... 77

2.1 MEMÓRIA................................................................................................... 78

2.1.1 Memória Individual e memória coletiva............................................. 79

2.1.2 História versus Memória...................................................................... 83

2.2 PERSONALIDADES ENTREVISTADAS ................................................ 85

2.2.1 José Jorge Letria .................................................................................. 88

2.2.2 Francisco Fanhais ................................................................................ 98

2.2.3 Sérgio Godinho ................................................................................... 104

2.2.4 António Borges Coelho .......................................................................107

2.2.5 Pedro Calafate .................................................................................... 114

2.2.6 Fernando Rosas .................................................................................. 117

2.3 SOBRE JOSÉ “ZECA” AFONSO............................................................. 120

2.4 REUNIÃO DOS CANTORES: 29 DE MARÇO DE 1974 ...................... 129

3. ESCUTANDO AS VOZES DE QUEM RESISTE:

HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE DIZ NÃO .............................................. 133

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3.1 TROVA DO VENTO QUE PASSA ......................................................... 137

3.2 OS VAMPIROS ........................................................................................ 140

3.3 MENINO DO BAIRRO NEGRO ............................................................. 148

3.4 GRÂNDOLA VILA MORENA ................................................................ 153

3.5 MENINA DOS OLHOS TRISTES............................................................ 161

3.6 CANTAR DA EMIGRAÇÃO ................................................................... 165

3.7 LIBERDADE ............................................................................................. 169

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................. 175

REFERÊNCIAS ....................................................................................... 185

ANEXOS ................................................................................................... 191

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O término da dissertação de mestrado, defendida sob orientação da Professora

Dra. Regina Pires de Brito, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da

Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2012, sob o título Aspectos da Questão

Identitária em Músicas de Intervenção Cabo-Verdiana, motivou-me a prosseguir os

estudos na área de Lusofonia, centrando-me na história e análise das composições

artístico-musicais, que procuram revelar como questões sócio-político-econômicas se

misturam e interferem no cotidiano dos indivíduos.

Verificando a importância que o estudo dessa temática desempenha no mundo

acadêmico, devido não somente ao papel significativo que as canções têm na vida do ser

humano, mas também por incluírem letras que dialogam com o momento em que está se

vivendo, decidiu-se esta pesquisadora a dedicar-se, nesta tese, às composições surgidas

com o Estado Novo em Portugal.

O gênero musical, pelo seu caráter interdisciplinar, consegue abarcar questões que

vão além da canção (letra) e dos elementos formais da música (ritmo, melodia, harmonia)

– sendo também possível, a partir da letra, trabalhar questões linguísticas e históricas,

mostrando como a escolha da palavra pode ser eficaz nas várias maneiras de interpretação

existentes em uma composição – nosso foco nesse estudo. Por isso, optou-se por utilizar

o termo “Canção” ou “Canto”, ambos também utilizados por estudiosos da área

(RAPOSO, 2014; LETRIA, 1999) e tais termos dão ênfase à composição da letra e não à

questão musical em si. Sabendo que os elementos formais da música também conferem

sentido às interpretações das canções aqui utilizadas, estas também serão referidas como

auxiliares à interpretação. O Canto de Intervenção foi utilizado como um meio de

informação e de conscientização dos problemas políticos advindos de governos

anteriores, tendo o poder de informar, por meio da letra, os prejuízos causados, apelando,

principalmente para o lado emocional do ouvinte.

Canções desse gênero são vistas por toda a parte e em épocas distintas –

acentuando o interesse interdisciplinar desta pesquisa para o leitor que esteja envolvido

em áreas diversas, como música, história, política, linguística. O sucesso dessas canções

não se limita a um período curto de tempo ou a um espaço restrito. Podemos citar como

exemplo as canções de protesto brasileiras surgidas na Ditadura Militar, entre 1964 e

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1985, com as canções de Chico Buarque, Caetano Veloso ou Geraldo Vandré, que

continuam atualizáveis e motivando diversos estudos acadêmicos.

Deslocando-nos de Cabo Verde, a fim de expandir os estudos para outro espaço

lusófono, Portugal foi escolhido por apresentar uma vasta discografia nessa temática,

iniciada com as canções de Adriano Correria de Oliveira em torno de 1960 e imortalizada

com as canções de Zeca Afonso durante a ditadura militar salazarista, entre 1933 e 1974.

As canções desempenharam grande função no contexto português, não somente pela

conscientização que ela trouxe ao povo, mas também pelo fato de uma das canções mais

populares – Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso – ter sido utilizada como a senha

para o Golpe Militar, ao ser tocada na Rádio Renascença na noite do dia 24 de abril de

1974, confirmando o início da Revolução.

Dessa forma, a pesquisa tem como objetivo geral analisar, em composições

portuguesas, vinculadas à categoria “canto de protesto ou de intervenção”, elementos

linguísticos e poéticos que mostrem a contribuição dessas para uma conscientização

política durante o regime salazarista, e que permanece latente e se constitui como

elemento significativo no construto identitário dos portugueses. Para tanto, dentre os

objetivos específicos estão:

apontar eventuais impactos que a fase ditatorial teve sobre a construção da

identidade do povo português e seus reflexos no Portugal contemporâneo;

levantar as principais canções de intervenção compostas nos períodos pré

e pós Revolução dos Cravos, dentre as quais foram selecionadas para

comporem o corpus para análise;

entrevistar intelectuais, jornalistas e artistas que vivenciaram o período em

estudo, num resgate pela memória, focalizando a importância da denúncia

e do protesto por via artística;

analisar, nas canções selecionadas, elementos linguístico-discursivos e

poéticos reveladores de marcas da opressão do regime ditatorial,

observando como contribuem para a formação identitária e,

verificar e destacar a importância da música como forma de protesto e o

impacto que ela teve na história de Portugal e a sua repercussão nos dias

atuais recorrendo a pesquisas e entrevistas feitas com jornalistas,

intelectuais professores que viveram na época.

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Para que pudessem ser cumpridos os objetivos da pesquisa, a pesquisadora fez

parte de um programa de doutorado-sanduíche da CAPES junto à Universidade de

Lisboa, sob a co-orientação do professor doutor José Eduardo Franco, então diretor do

Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa

(CLEPUL). A oportunidade permitiu a realização das entrevistas com as personalidades

que integram esta pesquisa: o jornalista e escritor José Jorge Letria, os cantores Francisco

Fanhais e Sérgio Godinho, e os professores Pedro Calafate, Fernando Rosas e António

Borges Coelho.

Inserido no escopo dos Estudos Lusófonos, o presente trabalho adota a concepção

de lusofonia proposta por Brito (2010):

A lusofonia deve, na nossa perspectiva, ser compreendida como um

espaço simbólico linguístico e, sobretudo, cultural no âmbito da língua

portuguesa e das suas variedades lingüísticas, que, no plano

geosociopolítico, abarca os países que adotam o português como língua

materna e oficial (Portugal e Brasil) e língua oficial (Angola, Cabo

Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau – que

constituem os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)

– e Timor-Leste. Entretanto, não se pode restringir a lusofonia ao que

as fronteiras nacionais delimitam. Nesse modo de conceber a lusofonia,

há que se considerar as muitas comunidades espalhadas pelo mundo e

que constituem a chamada “diáspora lusa” e as localidades em que, se

bem que nomeiem o português como língua de “uso”, na verdade, ela

seja minimamente (se tanto) utilizada: Macau, Goa, Ceilão, Cochim,

Diu, Damão e Málaca. Além disso, a lusofonia é inconcebível sem a

inclusão da Galiza (LOURENÇO, 2001). Somam-se a isso outras

regiões de presença portuguesa no passado e/ou onde, relativamente, se

fala português ainda hoje: na África – Annobón (Guiné Equatorial),

Ziguinchor, Mombaça, Zamzibar; na Europa – Almedilha, Cedilho, A

Codosera, Ferreira de Alcântara, Galiza, Olivença, Vale de Xalma

(Espanha). (p. 177)

O termo “Lusofonia” é, assim, utilizado neste estudo para designar os espaços que

têm a língua Portuguesa como língua oficial de comunicação, mas ressalta-se, que dentre

os espaços citados, mesmo onde a língua portuguesa é a oficial, nem sempre é a principal

língua de comunicação entre a população, que se utiliza de outras línguas nacionais –

ainda nas palavras de Brito (2013a):

Uma síntese do universo lusófono – que se procura reunir numa noção

(ainda que mítica) de lusofonia – pretende conciliar diversidades

linguísticas e culturais com a unidade que estrutura o sistema linguístico

do português. Deste modo, como referimos, uma descrição possível

apresenta uma dimensão geográfica da língua portuguesa distribuída

por espaços múltiplos, numa área extensa e descontínua e, que, como

qualquer língua viva, se apresenta internamente caracterizada pela

coexistência de várias normas e subnormas. Estas, naturalmente,

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divergem de maneira mais ou menos acentuada num aspecto ou noutro,

numa diferenciação que, embora não comprometa a unidade do sistema,

possibilita-nos reconhecer diferentes usos dentro de cada comunidade.

(2013a, p. 12)

O fato de a língua portuguesa não ser a língua materna de países como Angola,

Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe - países multilíngues - e

o histórico de independência ainda recente nesses países causam divergências quanto ao

uso do termo, pois, como explica Namburete (2006):

Grande parte dos escritos sobre a lusofonia coloca maior ênfase na

língua portuguesa, englobando apenas os que falam português e

excluindo, naturalmente, aqueles que, mesmo vivendo em países ou

comunidades que decretaram o português como a sua língua oficial, não

falam, não lêem e muito menos escrevem na língua de Camões. (p.63)

Assim, o termo não se limita a uma “exclusão”; pelo contrário, a língua, como

parte de uma identidade, precisa estar composta por diferentes características formadoras

dessa identidade múltipla, como defende Fiorin (2010):

Essa identidade está apoiada na diversidade, que agrega, e no fundo

comum da cultura e da língua. Essa identidade não é a assimilação de

umas identidades a outras, não é a exclusão de identidades, não é a

segregação de patrimônios identitários. (p. 27).

Ainda como o linguista propõe, “para que a lusofonia seja um espaço simbólico

significativo para seus habitantes, é preciso que seja um espaço em que todas as variantes

linguísticas sejam, respeitosamente, tratadas em pé de igualdade” (2006, p. 46), sem a

atribuição de uma “autoridade paterna”, visto que não há um proprietário da língua

(LOURENÇO, 2001). Brito (2013b) assevera que as línguas não são utilizadas de maneira

homogênea pelos seus falantes, podendo variar não somente em termos de espaços, mas

também entre tempo, faixa etária e classe social.

Neste estudo o termo “lusofonia” baseia-se em definições que vão além da

acepção etimológica. Levando em consideração que a língua é uma importante

manifestação cultural, vem carregada de valores culturais e históricos, fazendo com que

cada nação a utilize de forma diferente uma da outra, pois nela estão inseridos seus

valores, características culturais e históricas, destacando as diferenças existentes na

utilização da língua portuguesa. A ideia é simplesmente ressaltar e valorizar as diferenças

linguísticas e culturais existentes em cada espaço lusófono, e não “apagar” os valores

neles contidos, já que a “ideia de lusofonia só faz sentido se a concebermos acima das

nacionalidades, muito além de qualquer percepção mítica de uma nação, ou de

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responsabilidade de preservação por parte de outra. ” (BRITO e BASTOS, 2006, p. 74).

No mesmo sentido, o imaginário lusófono, como já apontava Lourenço (2001), é o

Da pluralidade e da diferença e é através dessa evidência que nos cabe,

ou nos cumpre, descobrir a comunidade e a confraternidade inerentes a

um espaço cultural fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido da

partilha em comum, só pode existir pelo conhecimento cada vez mais

sério e profundo, assumido como tal, dessa pluralidade e da diferença.

(p. 111)

A partir dessa diferença existente nesses espaços é que nos cabe afirmar que a

Lusofonia só faz sentido se destacarmos as variedades existentes dentro de cada local e

se separarmos como o português europeu, o português angolano, o português

moçambicano, o brasileiro, etc (conforme Brito, 2013b). Cada espaço, convivendo com

diferentes línguas faz com que a língua portuguesa também se transforme e agregue

características pertencentes a tal espaço, diferenciando-se de outras variedades do

português no mundo, já que cada país tem a sua realidade histórica e valores diferentes

um do outro. Assim como também ressalta Franco (2015) uma vez que não existe

nenhuma língua pura em razão de influências históricas anteriores, a Língua Portuguesa

foi construída por todos os que dela se apropriam, pois, mesmo tendo sido afirmada como

“língua de império, língua de dominação ou língua colonial”, ela não apenas colonizou,

mas também “foi colonizada”.

Importante lembrar que a língua é um importante fator identitário de um país, pois

é nela que carrega as características e pela qual se podem traçar as maneiras de pensar e

de agir de um determinado povo. Equivale à afirmação de Lourenço (2001) quanto à não

existência de um “dono” da língua:

Com efeito, uma nação não é dona de sua língua, pois é nela que

encontra as suas imateriais mas não menos resistentes fronteiras, mas

tudo se passa como se fosse. Dizemos que levamos nossa língua ao

Oriente, ao Brasil, às antigas colônias, como se levássemos não só uma

espécie particular de mercadoria, mas a mais preciosa de todas. (p. 189).

Assim, pode-se afirmar que a língua pertence àquele que dela de apropria, pois

não há um “proprietário” da língua (LOURENÇO, 2001). Aquele que utiliza uma

determinada língua, carrega-a de marcas culturais, históricas e valores nacionais, de

afetividade, emoção, intencionalidade, vontade (MARTINS, 2002, apud BRITO, 2013b),

pois “a língua que é a expressão mais visível de uma cultura, resulta da interação dos

membros de uma comunidade, povo ou nação” (MARTINS, 2002, apud BRITO, 2013b,

p. 21). Cabe lembrar, ainda, que a língua, segundo Hull (2001) é o mais importante

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símbolo nacional, e a escolha de uma língua oficial faz parte da identidade nacional.

Quando falamos de identidade nacional, ela pode ser “definida por memórias e mitos

compartilhados, e símbolos e valores em comum” (SMITH, 1991, p. 21 – tradução nossa),

e um desses valores em comum, que é uma das marcas identitárias de uma nação, é a

língua falada e utilizada pela população, pois faz parte de uma característica pela qual um

povo se identifica, se assemelha, visto que faz parte de toda uma história nacional vivida

e compartilhada e uma pessoa se sente pertencente a um determinado grupo, assim como

destaca Brito (2013b):

A identidade de um grupo – qualquer que seja sua amplitude – é uma

realidade que se destaca na sua representação das demais percepções

de mundo, porque se distingue e assim se reconhece pelos outros. O

sentimento de pertença parece resultar de um movimento de mão dupla:

da exclusão, de diferença diante de uns; de inclusão, de afinidade junto

a outros, considerados pares. (BRITO, 2013b, p. 22)

Quando um país atravessa momentos históricos conturbados que exigem a

participação e a mobilização popular para enfrentar as dificuldades em conjunto,

compartilham memórias que permanecem parte de todo o grupo e o ajudam na construção

da história e da identidade de uma nação, como é o caso dos problemas a serem destacados

no presente trabalho, decorridos em Portugal durante a fase da ditadura salazarista.

Após a instabilidade política e econômica vivida nas duas primeiras décadas do

século XX, e ainda após a Primeira Guerra Mundial, o início de uma nova era política foi

recebida com otimismo pelo povo português. Foi a partir de 1926 que Portugal começou

a viver uma das mais duradouras ditaduras da história, finalizada somente em 1974 –

tendo como governos Ditadura Nacional (1926 – 1933) e Estado Novo (1933-1974). A

convite, o professor universitário António Salazar entrou na carreira política como

Ministro das Finanças. Com sua postura arrojada e autoritária, as alterações que fez no

governo trouxeram melhorias para a população, e aos poucos, com a confiança

conquistada, chegou a Primeiro Ministro, tendo o apoio e o controle sobre toda a equipe.

A postura adotada como Primeiro Ministro era descrita como “anticomunista, antiliberal

e antidemocrática” (AUGUSTO, 2011, p. 21) e assim se manteve durante todo o tempo

em que ficou no poder, até 1968, quando, por motivos de saúde, foi sucedido por Marcello

Caetano. No início, com a entrada de um novo regime, houve uma aceitação por parte dos

portugueses, acreditando que isso poderia ser benéfico para o país, mas juntamente com

a melhoria econômica, vieram também a perda da liberdade de expressão, a censura nos

meios de comunicação, a unificação dos partidos políticos, o nacionalismo exacerbado, a

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reformulação do ensino de acordo com os interesses de Salazar e a queda da figura

“Presidente”, cabendo ao Primeiro Ministro o poder de todas as decisões. Com essa

atitude dominante, e com o desejo grandioso de “controle extremo na vida dos cidadãos

portugueses” (AUGUSTO, 2011, p. 24), a insatisfação aumentou nos vários estratos da

sociedade e os jovens passaram a demonstrar o descontentamento de múltiplas formas:

música, jornalismo, literatura... veiculadas de maneira camuflada, a fim de escapar da

censura.

Durante esse período do Estado Novo (1933-1974), a população presenciava

mudanças drásticas na política, na educação, na economia, e sofria com a censura imposta

pelo Salazarismo1, sentindo-se aprisionada e impotente para lutar contra as medidas

determinadas pelo regime ditatorial. Essa opressão causou, posteriormente, inúmeros

protestos pelo país e pelas províncias de ultramar, tendo sido uma das formas de protesto

o recurso às canções de protesto, normalmente censuradas pela PIDE (Polícia

Internacional e de Defesa do Estado). Para burlar a censura, os compositores, muitas

vezes, procuravam camuflar o conteúdo das suas produções para que pudessem cantá-las

e divulgar seus ideais, sem a interferência da polícia, ou, ainda, cantavam-nas às

escondidas para que não fossem presos. A análise das letras de composições desse período

possibilita não só relacionar pontos impostos por um governo opressor, mas também

demarcar aspectos da construção identitária do povo português.

Com a repressão exagerada, e a indignação da população ao viver sob tais

circunstâncias, a canção foi uma das saídas para expor os pensamentos, utilizada com a

finalidade de mostrar sua posição, como afirma José Barata Moura, conhecido intérprete

de músicas de intervenção, também perseguido pela censura da época:

uma canção é eficaz desde que, colocando-nos face à realidade, nos leve a

assumir uma posição pessoal perante ela (realidade)[...] a canção deve

acordar-nos para a urgência de darmos respostas verdadeiramente nossas. E

este caminho é sempre o mais custoso: as tentações de demissão são

constantes e, infelizmente, muitas vezes convidativas e/ou opressivas. (apud

MOUTINHO, 1999, p. 28).

José Letria, outro importante cantor de intervenção português, e um dos

entrevistados para a presente pesquisa, afirma que a “canção pode ser um complemento

activo da luta de massas, devido à sua mobilidade e à sua capacidade de denúncia das

contradições sociais” (1981, p. 19)

1 Convém assinalar que, dos 41 anos do regime do Estado Novo em Portugal, 35 anos estiveram sob a

liderança de António Salazar, fazendo com que, muitas vezes, Estado Novo seja chamado de Salazarismo.

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A canção “símbolo” da Revolução dos Cravos, que marca o início de uma nova

era para o país, foi “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, e o fato de ter sido “a senha

final do golpe militar libertador constitui a confirmação dessa importância cultural e

política” (LETRIA, 1999, p. 5). Mais uma vez, neste caso, o canto de intervenção, como

lembra Letria, se torna “instrumento de mobilização e de consciencialização de largas

camadas da população no combate à ditadura” (LETRIA, 1999, p. 5).

Com o término do Estado Novo, Portugal passa por nova fase de reconstituição e

reformulação governamental para se adaptar às exigências do momento para que o país

não ficasse muito ultrapassado em relação aos demais países da Europa. A partir de 25 de

Abril de 1974, com a Revolução dos Cravos e o início de outro governo, realizaram-se

eleições, fazendo surgir no país a esperança de um futuro promissor, com a adoção de

novas medidas governamentais e uma fase democrática. No entanto, o que se viu a partir

de 1974 foram períodos de grande instabilidade política no país, dificuldades financeiras,

com a permanência dos militares no governo até 1986. A partir de então, a entrada de

Portugal na Comunidade Econômica Europeia (CEE) trouxe novas perspectivas ao país.

Essa integração foi de extrema importância para a economia portuguesa, dando aos

portugueses melhoria de suas condições de vida, diante de um quadro (ilusório) de baixa

dívida pública, com elevado crescimento econômico e queda dos juros (ABREU et al,

2013). Porém, a partir de 1999, após a adesão de Portugal à moeda única, o Euro, o país

é obrigado a viver “acima de suas possibilidades” para poder acompanhar a economia

europeia. As causas apontadas para a crise que se instalou definitivamente no país após

2005 são inúmeras, dentre elas: a elevada dívida externa, as privatizações e as

desregulamentações do setor financeiro, a liberalização dos movimentos de capitais e a

forte instabilidade financeira (ABREU et al, 2013). Além disso, o governo culpabilizou

a população e a má gestão do governo anterior:

segundo o novo discurso oficial, a profunda crise em que Portugal se

encontrava devia-se não apenas aos erros das governações anteriores,

mas também ao comportamento irresponsável dos portugueses, que

andaram – garantem-nos – a viver acima de suas possibilidades (p. 9)

Como veremos adiante, se é verdade que não faltam exemplos de má

governação no passado recente, as condições que conduziram a crise

começaram a avolumar-se há duas décadas, fruto da conjugação de uma

integração europeia disfuncional, de alterações significativas no

contexto global e de fragilidades estruturais da economia e da sociedade

portuguesa. Tais condições foram agudizadas pela crise financeira

internacional de 2008-2009, cujos efeitos se fizeram sentir em

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diferentes países do mundo, mas que afetaram de modo mais acentuado

economias que apresentavam à partida maiores fragilidades. Assim

sendo, é difícil sustentar que foram essencialmente os erros das

governações anteriores – que existiram e não devem deixar de ser

apontados – que nos conduziram à crise e ao recurso à assistência

financeira externa. (ABREU et al, 2013, p.10)

Com a implantação do Euro, Portugal vê o início de uma década com grandes

mudanças para a economia portuguesa. As condições que geraram a crise começaram a

ampliar, na verdade, há duas décadas, devido às alterações significativas no contexto

global e à vulnerabilidade da estrutura da economia portuguesa (ABREU et al, 2013). Foi

após a virada do século que as taxas da dívida pública portuguesa começaram a disparar,

piorando a partir de 2008, por conta da crise econômica internacional e suas implicações,

como a forte quebra do PIB, os seus efeitos sobre as finanças públicas (como a diminuição

das receitas fiscais) e a adoção de medidas pontuais de estímulo à atividade econômica.

Com o desemprego, a elevada dívida externa, as taxas de emigração e a crescente

desigualdade social, os portugueses manifestam-se contra as medidas adotadas pelo

governo, relembrando situações semelhantes vivenciadas durante a ditadura, voltando às

ruas a fim de mostrar a indignação e de criticar a postura dos governantes. O espaço

público foi tomado por vozes que relembram, em certa medida, o período marcado pela

repressão, repetindo o tom de insatisfação em relação à situação do país, e esperando que,

com as manifestações, novas medidas sejam tomadas na expectativa de melhores dias.

Os problemas já apontados, somados à necessidade de ajuda externa e à solicitação

de intervenção da Tróika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e a

Comissão Europeia), geraram manifestações por todo o país, como a “Que se lixe a

Tróika” (CAMARGO, 2013). Assim, Portugal, com cortes na despesa pública, atravessou

uma crise com inúmeras consequências desastrosas para o país, dentre as quais:

desemprego, instabilidade profissional e pessoal, o alastramento da privação material, a

emigração forçada, o aumento das desigualdades, as falências no setor empresarial,

configurando uma das piores crises da história portuguesa.

Entre 2012 e 2013, com a insatisfação diante da crise aumentando, os portugueses

vão às ruas e recuperam canções de intervenção marcantes nos anos 70, como a

composição de Zeca Afonso, “Grândola Vila Morena”. Essa canção fez novamente

presença em algumas das manifestações decorridas atualmente, não somente em Portugal,

como também na Espanha e na Bélgica.

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Tendo esse cenário como pano de fundo, levantou-se o conjunto de canções de

protesto memoráveis naquele contexto, a partir de depoimentos (colhidos especificamente

para este trabalho) de jornalistas, intelectuais e compositores dos quais foram retirados

elementos para a seleção das composições que fazem parte do corpus de análise.

Diante do exposto, a tese está estruturada em três grandes capítulos, com subitens

que auxiliam na divisão e organização da pesquisa. No primeiro capítulo, intitulado

“Aspectos Históricos de Portugal do Século XX: Notícias do Meu País”, faz-se breve

exposição sobre a história de Portugal, mostrando a trajetória de Salazar no governo, na

implementação da Ditadura Nacional e do Estado Novo e algumas das mudanças

significativas que fez ao assumir o poder, dentre os quais a reforma do ensino escolar e a

criação e reorganização da polícia política. Nesse capítulo, também se apresentam

eventos que contribuíram para a permanência de Salazar no poder e outros que

prejudicaram o seu governo, fazendo com que a população começasse a desconfiar da sua

política, como as eleições de 1958, o ‘terremoto delgadista’, a abrilada e a Guerra

Colonial. Também será abordada a Primavera Marcelista, de Marcello Caetano, governo

que deu continuidade ao Salazarismo, abrindo, a partir de então, as portas para a

Revolução dos Cravos, em 1974. O capítulo finaliza com o período revolucionário e as

mudanças ocorridas com a queda do Estado Novo.

O capítulo seguinte, denominado “Perspectivas da Memória do 25 de Abril: a

História na Voz de quem a Viveu”, traz trechos selecionados e comentados das entrevistas

realizadas com as personalidades citadas. Desse modo, uma vez que os depoimentos

contemplam aspectos da memória individual e coletiva, visto que muitas das declarações

não estão documentadas pela História ou registradas em documentos, recorreu-se ao

aporte teórico dos conceitos de memória e história, fundamentados principalmente em

Halbwachs (2006, 2013), Le Goff (1996) e Traverso (2009). Estando a memória em

processo de constante construção (TRAVERSO, 2009), ela é filtrada por conhecimentos

adquiridos posteriormente podendo modificar as recordações. Por ser uma pesquisa que

recorre a informações relatadas a partir de lembranças de um regime finalizado há mais

de quarenta anos, muitos pormenores podem ter sido omitidos ou distorcidos pela própria

memória do depoente, como levantado numa autobiografia de José Letria (1999),

utilizada para elucidar alguns detalhes das entrevistas realizadas.

Ainda neste segundo capítulo, apontam-se detalhes da história dos entrevistados,

especialmente no que diz respeito à luta durante o regime salazarista. Com o suporte das

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literaturas disponíveis (LETRIA, 1999, 2013; RAPOSO, 2014; GUERREIRO e

LAMAÎTRE, 2014), e a transcrição de alguns trechos, procurou-se resgatar a imagem que

tinham do Estado Novo. Foram entrevistados:

a) o escritor e jornalista José Jorge Letria – que à época do regime ditatorial

também integrava o grupo dos “cantores de intervenção”;

b) o cantor Francisco Fanhais – também padre e professor;

c) o cantor Sérgio Godinho - exilado no exterior, regressando após o 25 de Abril;

d) o professor catedrático da Universidade de Lisboa, António Borges Coelho -

historiador e ativista durante o regime;

e) o professor da Universidade de Lisboa, Pedro Calafate que, ainda muito jovem

durante a ditadura, viu na música uma forma eficaz de mostrar o seu

descontentamento;

f) o professor da Universidade Nova de Lisboa, Fernando Rosas - historiador

durante o regime e ativista político.

Nas entrevistas, os depoentes mencionaram a importância da música,

especialmente as de Zeca Afonso, considerado o precursor das canções como forma de

protesto, e como a música atua como elemento de conscientização. Também foi dedicado

um item para falar da importância da carreira de Zeca Afonso e seu impacto nas

entrevistas e na vida das pessoas até hoje, e suas canções de grande importância fazem

parte da análise que compõe o último capítulo do presente trabalho.

No capítulo 3, “Escutando as Vozes de quem Resiste: Há sempre alguém que Diz

Não”, dedicado inteiramente à análise das canções selecionadas principalmente a partir

das entrevistas, a saber: Os Vampiros, Menina dos Olhos Tristes, Grândola Vila Morena,

Menino do Bairro Negro (todos de Zeca Afonso), Cantar da Emigração, Trova do Vento

que Passa (de Adriano Correia de Oliveira) e Liberdade (de Sérgio Godinho), esta última,

sendo lançada logo após o 25 de Abril. Para a análise, foram levados em consideração os

aspectos: estrutura da composição, seleção lexical e aspectos simbólicos de alguns

termos. Além disso, procurou-se, na medida do possível, descortinar a pluralidade de

sentidos das canções. Convém assinalar que, embora não seja objeto deste estudo tratar

dos ritmos, melodia e instrumentos musicais utilizados nas diversas canções, algumas

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considerações foram feitas na medida em que colaboraram para melhor compreensão das

composições.

Em todos os capítulos, além de referências incluem-se documentos de difícil

acesso, alguns reproduzidos diretamente de arquivos históricos e outros recuperados de

websites oficiais destes órgãos – mediante autorização para publicação (ver ANEXO A)

– contribuindo para confirmar algumas das informações tratadas no estudo. Outros

métodos utilizados para enriquecer este trabalho foram os registros por meio de imagens

e fotografias que reforçam a recuperação das canções analisadas, assim como a

importância que os cantores ainda têm na sociedade atual.

Seguindo-se às Considerações Finais e às Referências, incluem-se os Anexos,

contendo fotos de autoria da pesquisadora e documentos históricos, a fim de comprovar

a relevância dos eventos ocorridos durante o regime do Estado Novo mencionados no

decorrer da tese. A última página contém um DVD com a gravação das entrevistas feitas

em Portugal e um CD com a reprodução das canções analisadas.

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Figura 1 - Fonte: Livro da Primeira Classe, p. 39

A ignorância é que nos pacifica, a paz está metida na ignorância,

pronta para levar as pessoas à felicidade.

e isto era a receita do regime.

(Valter Hugo Mãe, em A Máquina de fazer Espanhóis)

CAPÍTULO 1

ASPECTOS HISTÓRICOS DE PORTUGAL DO SÉCULO XX:

“NOTÍCIAS DO MEU PAÍS”

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1. ASPECTOS HISTÓRICOS DE PORTUGAL DO SÉCULO XX:

“NOTÍCIAS DO MEU PAÍS”2

O Estado Novo, instituído por António de Oliveira Salazar, pretendia resgatar os

valores portugueses do período dos grandes descobrimentos, quando Portugal desfrutava

de um enorme prestígio entre as nações europeias. Na visão de Salazar, a recuperação

desse “orgulho” poderia ser obtida, dentre outras formas, por meio de propagandas,

panfletos e discursos, nos quais Salazar detinha o controle necessário para propagar essa

ideologia. Nesse governo, surge o lema “Deus, Pátria e Família”, introduzido pelo regime

para colaborar com a mudança de postura que se esperava da população, enfatizando a

importância de se respeitar, incontestavelmente, e a amar, incondicionalmente, a Deus e

à Pátria acima de tudo. Convém destacar que, no período, a Igreja também passou para o

controle total do Estado, sendo mais um fator favorável para a disseminação do ideário

salazarista.

Com essa tentativa de reconstrução de valores, uma imagem nova e, de certa

forma, esperançosa, foi-se criando no país, procurando fazer com que cada indivíduo se

sentisse parte essencial da “grande” nação portuguesa. Assim, as pessoas foram,

paulatinamente, absorvendo os novos ideais que culminariam numa estabilidade

socioeconômica do país e passaram a demonstrar confiança no regime, que tudo sabia e

a quem se devia obediência e respeito. Com isso, o salazarismo recupera a imagem de

um “Portugal Heróico”, por meio, por exemplo, das propagandas noticiadas pelo

Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), mostrando o desenvolvimento de Portugal

e o crescimento econômico das colônias. A exposição do Mundo Português, ocorrida em

Lisboa, em 1940 foi outro evento de importância para a afirmação dos ideais do Estado

Novo, que procurava mostrar os benefícios e a grandiosidade da nação ao se expandir

para os espaços colonizados da África e Ásia.

Não seria tarefa fácil para Salazar incutir nos cidadãos esse novo ideário e fazer

com que acreditassem no sucesso do seu governo. António Salazar assumiu como

ministro para exercer o papel de “Salvador da Pátria”, de “herói”, e com essa imagem e

com seus feitos, ganharia a população e se tornaria indispensável para o país, porém, para

alcançar esse objetivo, seria necessário que Salazar, antes, destituísse as pessoas de seus

2 Um dos versos da Canção “Trova do Vento que Passa”, de Adriano Correia de Oliveira, analisada no

terceiro capítulo.

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valores para que fosse possível assimilar novas ideias. A ideia do “Homem Novo”

(ROSAS, 2001) estaria assim formada, auxiliando a prolongar o regime totalitário,

“atingindo através da intervenção de órgãos do Estado ou do partido especializados nessa

‘moldagem’, intervenção autoritária, unívoca e inculcatória a todos os níveis de

sociabilidade – desde a família à escola. Passando pelos lazeres e o trabalho” (ROSAS,

2013, p. 318)

A escola foi fator importante para a proliferação do pensamento salazarista, pois

por meio dela se ensinava o amor inconteste à pátria [e ao seu líder] desde o primeiro

ciclo obrigatório, além da reestruturação para se adequarem ao novo método. As crianças

tinham uma rígida disciplina e aprendiam por meio de uma apostila que ressaltava esses

ensinamentos nacionalistas e os professores – e também regentes escolares – também

eram escolhidos e treinados por ministros de Salazar, para saber se eles lecionavam

conforme o que pregava o Estado, e se iriam incutir na mente das crianças os reais valores

preconizados pelo regime.

Ressalta-se, ainda, a criação de um grupo juvenil, denominado “Mocidade

Portuguesa”, que abrangia crianças e jovens dos sete aos catorze anos, a fim de estimular

o desenvolvimento integral da sua capacidade física, a formação do caráter e a devoção à

Pátria – modelo que Salazar buscou na “Juventude Hitlerista” alemã. Enquanto os

meninos aprendiam a importância da observância dos deveres morais, cívicos e militares,

as meninas deviam compreender o valor dos afazeres domésticos e o papel da mulher na

família.

Nos tópicos a seguir, detalha-se sobre a entrada de Salazar no governo e

perpetuação do regime, conseguindo encobrir e reprimir inúmeras manifestações

contrárias, não somente as que ocorreram internamente no seu governo, mas também as

que vieram de fora, especialmente de grupos de jovens com o início da Guerra Colonial.

1.1 I REPÚBLICA (1910-1926)

Entre 1910 e 1926 Portugal viveu sob o regime republicano, conquistado após

uma revolução que destronou a monarquia constitucional. Este período foi marcado por

inúmeras mudanças e eventos conturbados, como a I Guerra Mundial, que trouxe

instabilidades políticas e econômicas que culminaram no atraso do país em relação a

outros países da Europa, gerando insatisfação popular. As eleições presidenciais ocorridas

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frequentemente (1919, 1921, 1922 e 1925) mostram a grande fragilidade do governo e a

necessidade de uma mudança que pudesse fortalecer o país e restabelecer a confiança da

população. Com a desvalorização da moeda, o aumento da inflação, da dívida externa, e

a perda dos lucros, o Estado foi incapaz de converter essa situação, gerando confrontos e

descontentamento popular, e, após algumas tentativas de golpe falhadas, o Exército

finalmente tomou o poder em 28 de maio de 1926, dando início a uma das mais

duradouras ditaduras do século XX.

1.2 DITADURA NACIONAL (1926-1932)

Com o fim da I República, após o golpe militar do dia 28 de maio de 1926, inicia-

se em Portugal um período inicialmente conturbado denominado por Ditadura Militar, o

qual o general Óscar Carmona, um dos militares que apoiou o golpe, tornou-se o primeiro

ministro do país, e fez parte do governo até 19513, ano de sua morte.

Uma das maiores dificuldades de início do governo, assim como ocorre em todas

as transições, foi unir as forças dos participantes do golpe para um mesmo ideal. Com

ideias, projetos e pensamentos diferentes após a queda da República, os anos iniciais da

ditadura foram conturbados, trazendo dificuldades ao país, não somente de controlar a

situação, mas de gerar uma política estável e de engrenar um novo projeto duradouro que

fosse bem-sucedido ao governo (GÓMEZ, 2011).

Foi ainda nesse ano que o presidente convidou o renomado professor da

Universidade de Coimbra, António de Oliveira Salazar para integrar o ministério das

Finanças, por ser bem-conceituado e ser um dos principais nomes da área para voltar a

fazer o país prosperar. Como foi algo feito de uma maneira sigilosa, poucos sabem o que

sucedeu no pouco tempo em que Salazar ocupou tal cargo, parecendo querer esquivar-se

da política: “ao contrário de seus colegas que rapidamente tomaram posse, Salazar não

gostou do que viu e regressou prontamente a Coimbra, escudando-se atrás de alegados

problemas de saúde” (MENESES, 2011, p. 67). Outras fontes dizem que ele teria

problemas ao trabalhar com uma equipe, pois ele

não era um homem para estar à volta de uma mesa a suportar o convívio

da governação, ouvindo opiniões de uns e de outros, aquiescendo

numas, repudiando outras, discutindo até ao ponto de se alcançar um

3 O general Óscar Carmona foi o primeiro-ministro de Portugal de 1926 até 1932, quando Salazar assumiu

o seu lugar. A partir daí ele cumpriu a função de presidente, cargo que ocupou até a data de sua morte, em

18 de abril de 1951.

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consenso geral. Era homem para mandar e ser obedecido, sem

condescendências, nem hesitações. (CARVALHO, 2001, p. 721)

Mas, dias depois, voltou forçado à Lisboa para tomar posse. Salazar era alguém que podia

transformar Portugal ao ajudar a equilibrar as finanças, e isso era visto pelas pessoas que

ocupavam o governo como uma das únicas saídas, pois ele tinha o poder de provocar

profundas mudanças no ramo político, econômico e social e trabalharia com um “duplo

objetivo: desenvolver o país e modernizá-lo” (idem, p. 68). Como um católico praticante

que era, Salazar também queria recuperar os valores que foram perdidos nos governos

anteriores, entre eles a religião, além de patriotismo e família (os três pilares do ensino

que implantou anos mais tarde). Após alguns problemas no governo, Salazar se afastou

temporariamente da política e alguns percalços na sua vida pessoal – sua mãe faleceu

após uma longa enfermidade – Salazar voltou informalmente para ajudar Óscar Carmona,

e trabalhou mostrando suas alternativas para solucionar a crise financeira, mas sem título

de Ministro das Finanças, ocupado por outra pessoa.

Ganhando espaço na política e a confiança de todos, ele se mostrava uma pessoa

sábia, eficiente e sabia criticar quando algumas medidas errôneas eram tomadas por parte

do governo. Era normal naquela época que algum professor de nome enveredasse na

política, pois numa sociedade predominantemente rural, não havia muitos homens com

uma ótima educação capazes de controlar um país, e o fim que poderia ser reservado a

ele, e que ele bem sabia era a permanência na política e sua ascensão como o primeiro-

ministro.

Com uma nova eleição presidencial em 1928, em que Óscar Carmona era o único

candidato, venceu as eleições e seu primeiro-ministro, mandou novamente recrutar

Salazar como ministro das Finanças, pois considerava que ele era “alguém da mais alta

competência e que o país inteiro considera como um dos seus maiores valores intelectuais

e técnicos em assuntos financeiros” (FREITAS apud MENESES, 2011 p. 81). Assim,

com a insistência do governo, e pouco tempo para pensar na proposta, Salazar aceita um

novo convite, mas não sem algumas condições: todos os ministérios deveriam ser

subordinados a ele e todas as suas ordens no âmbito econômico e financeiro deveriam ser

obedecidas. Salazar pensou muito na proposta pelo fato de ter de abandonar o seu cargo

de professor na Universidade, função que o fazia com o maior prazer. Além disso,

pensava que poderia ser vergonhoso para ele perante os seus alunos caso não conseguisse

controlar as finanças do estado (MENESES, 2011), visto que toda a carga e a esperança

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de dias melhores caíam sobre ele. A partir das exigências propostas – prontamente aceitas

– foi empossado em 27 de abril de 1928, um dia antes de completar 39 anos, começando

a partir daí a sua longa trajetória no comando do país.

Ressalta-se que, diferentemente dos demais ditadores da época, como Franco, na

Espanha; Hitler, na Alemanha e Mussolini, na Itália, Salazar não alcançou o poder à força

– pois o seu cargo foi praticamente “insistido” para que o ocupasse, e, após uma rejeição,

só o aceitou mediante tais exigências – podendo o governo acatá-las ou não.

O seu conhecimento sobre muitos assuntos, não somente na área das finanças, em

conjunto com a sua personalidade, fez dele praticamente um chefe da nação, ganhando

espaço na política e mostrando serviço que deram rápidos resultados. Em pouco tempo,

mostrou sua postura e competência e, ao lidar com as Forças Armadas, já o fazia com sua

postura altamente autoritária e controladora:

O homem que falava às Forças Armadas nos termos referidos, doze dias

apenas após a sua entrada no governo, não era, evidentemente o

ministro das Finanças, de uma pasta entre outras. Era já o chefe, o

portador de uma mensagem, o executor de uma doutrina, cujo dedo

indicador da mão direita, tenso e convincente com o cano de uma arma,

apontava o caminho a seguir, inexoravelmente. (CARVALHO, 2001,

p. 723)

Os cortes no orçamento e o seu plano de governo conseguiram superar os grandes

desafios iniciais, que era equilibrar as finanças e terminar o ano com superávit. Todo esse

controle seria feito a partir de uma “política de sacrifícios”, à qual as pessoas e o governo

teriam de se adequar para equilibrar as finanças do estado e acabar com a dívida externa.

Em discurso proferido em 1929, Salazar explica as suas medidas, adotando sua política

de verdade, política de sacrifícios e política nacional:

Num sistema de administração, em que predominava a falta de

sinceridade e de luz, afirmei, desde a primeira hora, que se impunha

uma política de verdade. Num sistema de vida social em que só direitos

competiam, sem contrapartida de deveres, em que comodismos e

facilidades se apresentavam como a melhor regra de vida, anunciei

como condição necessária de salvamento, uma política de sacrifício.

(SALAZAR, 1935, p. 23)4

Salazar, em alguns de seus discursos, insiste que muitos dos problemas nacionais

deviam-se à má administração dos governos anteriores. Ele pedia calma e paciência à

população para que tais erros pudessem ser corrigidos passo a passo e para que Portugal

4 Discurso proferido na Sala do Conselho de Estado, em 21 de outubro de 1929.

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voltasse a ter o controle financeiro necessário para o desenvolvimento do país. Adiante,

na continuação do discurso anterior, ele exemplifica alguns desses erros:

Quando se observa a sucessão dos acontecimentos, sobretudo nos

últimos dez anos, verifica-se que o Estado teve a política, consciente ou

não, de poupar ao imposto o produtor português; mas como

simultaneamente não houve a preocupação de reduzir as despesas, e

estas mesmo não poderiam baixar além de certos limites, arranjou-se

maneira de confiscar os capitais para substituir o que não vinha nem do

imposto nem do empréstimo. São dezenas de milhões de libras os

capitais que em títulos da dívida pública, em créditos particulares, em

acções e obrigações de empresas, em prestações de dinheiro, em

remunerações de serviços, em mobilizações afectas a serviços

particulares e públicos se sumiram pela desvalorização da moeda,

foram transferidos de uns possuidores a outros e gastos em desperdícios

de vida larga, com a ilusão de serem rendimentos o que de facto era

uma fracção importante do capital nacional. (SALAZAR, 1935, p. 31-

32)

Um dos deveres que Salazar impunha focalizava a política nacional, e a

importância de valorizar e de dar preferência ao que era português, além de resgatar os

valores do nacionalismo e patriotismo, mostrando, também, a extensão do país e suas

colônias, um dos pilares de seu governo:

A primeira exigência da política nacional, como o primeiro dever dos

governantes, é o reconhecimento, é o sentimento profundo da realidade

objectiva na Nação Portuguesa em toda a extensão territorial de sua

Metrópole, das suas ilhas e das suas Colónias, em todo o conjunto da

sua população – uma realidade histórica e uma realidade social. [...]

Nada contra a Nação, tudo pela Nação. [...] Impõe-se aos governos

uma política nacional; e em face dela aos governados impõe-se também

uma atitude, um sentimento nacional – com a disposição de trabalhar

pela Nação, o apreço, o amor do que é português. Às inteligências, ao

trabalho, à economia, à finança impõe-se, com os olhos abertos sobre o

mundo, ter o coração voltado para Portugal, e assim se evitará o

desconhecimento das nossas coisas e o menosprêzo dos nossos maiores

interesses. (SALAZAR, 1935, p. 34-35, grifo do autor)

Já em outro discurso, um ano depois, Salazar, insatisfeito com algumas

considerações da população em relação aos problemas acarretados com a ditadura

nacional, (fazendo já quatro anos do golpe de 1926), o então ministro afirma:

Dizem que os reis não têm memória; parece que os povos têm muito

menos ainda. A dar crédito a coisas que por aí se escrevem, e a muitas

mais que por aí se dizem, quatro anos decorridos de Ditadura seriam

como se não existissem na história de Portugal: na ânsia de melhorias e

de maiores progressos esqueceram-se já os males de que vínhamos

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sofrendo, e não se aprecia devidamente o bem que temos agora.

Avivemos nós o passado, para fazermos justiça ao presente. Antes de

haver entrado no trabalho de reorganização, uma palavra só – desordem

– definia em todos os domínios a situação portuguesa. (SALAZAR,

1935, p. 46, 47 – grifo do autor) 5

Sua trajetória como ministro das finanças não foi de tranquilidade para com a

equipe do governo, pois o seu temperamento e suas ações podem ter causado desafios

para aqueles que trabalhavam com ele. Especialmente em 1928, duas pessoas se

rebelaram e deixaram o cargo, sendo uma delas o primeiro-ministro coronel Vicente de

Freitas, e outro colaborador, Mário de Figueiredo, que também deixou o governo por

desavenças com Salazar. Encontrar uma pessoa para trabalhar diretamente com ele não

era tarefa fácil para o presidente Óscar Carmona.

Salazar criou em 1930 a União Nacional, movimento que visava integrar todos

aqueles que apoiavam seu governo e a ditadura militar - o que foi benéfico para o seu

governo e também daria um rumo ao seu poder que se iniciaria dois anos depois.

Sendo suas medidas bem-sucedidas, o povo pôde perceber alguns benefícios de

seu governo, visto que Portugal conseguiu passar sem grandes problemas pela Grande

Depressão. Após a Crise Econômica de 1929, Salazar ganhou espaço na política e, em

1932, tornou-se o primeiro-ministro do país, começando, a partir daí, a “sua verdadeira

obra”6. Além de salvar o país economicamente, ele mudou a forma como o restante da

Europa via Portugal, pois o país era visto como inferior em relação aos demais, mas que

com o tempo e com as mudanças de Salazar, o país começou a ser mais respeitado

(MENESES, 2011).

Rosas (2013) ressalta que há mitos que rodeiam a fase inicial da Ditadura

Nacional, pois a ideia gerada é a de que a população aceitou passivamente toda a mudança

da I República para a Ditadura. O Golpe Militar de 1926 também não foi facilmente

reconhecido e muitos grupos desde então tentavam se rebelar contra a política instaurada,

mas todas elas foram frustradas. Novos problemas foram gerados e até 1930 o governo

precisou acalmar as forças contrárias para conseguir seguir adiante. Ainda segundo Rosas

(2013, p.70), “a transição da Ditadura Militar para o Estado Novo, para além do combate

5 Discurso proferido na Sala do Risco, em 28 de maio de 1930, onde oficiais do Exército e da Armada se

reuniram com o governo para comemorar o quarto aniversário da Ditadura Nacional. 6 Frase bastante utilizada por Henrique Galvão (1895-1970), um dos ministros do governo que se revoltou

contra os atos praticados por Salazar e lançou a Carta Aberta a Salazar (2010), para mostrar a todos a

“verdadeira obra” do primeiro ministro, visto que mascarava os problemas e divulgava apenas as boas ações

que sua gestão desenvolvia.

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[...] externo dos ditadores contra o ‘reviralhismo’7 foi um período de dura luta interna

pela hegemonia entre as várias direitas que nela se reuniam.”. Ainda assim, após a entrada

de um novo regime chefiado por Salazar, ele só conseguiu ter o controle geral por causa

dos acordos estabelecidos com o Exército – com os seus comandos liberais

conservadores.

1.3 O ESTADO NOVO (1932 – 1974)

Salazar tomou posse como primeiro ministro no dia 5 de julho de 1932, e fundou

o “Estado Novo”, praticamente uma continuação da “Ditadura Nacional”, mas com

“outros homens”: “A razão é que os homens que constituem o Ministério são outros, mas

o governo é o mesmo – o Govêrno da Ditadura Nacional, que tem as suas ideias assentes

e as principais directrizes traçadas” (SALAZAR, 1935, p. 153)8.

Uma de suas primeiras medidas para “unificar” o país foi a dissolução de partidos

políticos, ficando apenas um partido único, a União Nacional. Nela só estariam aqueles

que concordassem com todos os princípios da ditadura, para que a integração das ideias

e das medidas fosse feita de maneira mais fácil. Para Salazar, a Nação correria perigo

caso não houvesse essa medida:

Chegou, entretanto o momento de se preparar a promulgação do novo

estatuto constitucional e de se dar à União Nacional o seu corpo

superior de direcção. [...] [Sobre a união dos portugueses:] a sua

necessidade baseia-se sempre nas dificuldades internas ou externas, nos

perigos que corre a Nação, na transcendente delicadeza do momento

histórico que se atravessa e não permite alterações,nem mudanças, nem

reformas. Assim costumam os governos aquietar aos seus inimigos,

reforçar transitòriamente as suas posições e alongar um pouco a sua

vida. Esta consideração faz-me algum tanto receoso da interpretação

que se dê ao que intento dizer; anima-me o facto de serem bem visíveis

os males e perigos presentes e de apelo ser feito não para salvar homens,

grupos ou partidos, mas a Nação e os seus interesses vitais, na ordem

material, na ordem política e na ordem moral. (SALAZAR, 1935, p.

161-2)

7 Reviralhismo, provavelmente derivado do verbo “Revirar” foi o termo utilizado pelo governo para

designar qualquer movimento revolucionário que ia contra a ditadura. Esses movimentos eram no geral

encabeçados por republicanos que planejavam revoltas para enfraquecer o regime ditatorial. 8 Ato de posse de Salazar no dia 5 de julho de 1932, na sala do conselho do Estado.

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Salazar afirmava que a “Ditadura Nacional [...] declarou dissolvidos os partidos”,

mas os partidos também foram perdendo força e muitos se dissiparam por si só. Algumas

pessoas perceberam o poder do Estado Novo e outras se rebelaram contra o regime e a

dissolução de partidos, com pensamentos que iam contra os de Salazar. Desse modo,

Salazar apela aos monárquicos e aos católicos para que desistam das

suas pretensões políticas particulares e das suas organizações políticas

próprias, quando existissem, e se juntem na plataforma de todas as

direitas apoiantes do regime que se pretendia que fosse a União

Nacional. (ROSAS, 2013, p. 30)

Antes de tudo, o primeiro-ministro pregava também que não era de política que o país ia

sobreviver, mas de “trabalho árduo e de uma vida regrada e equilibrada” (MENESES,

2011, p. 122), portanto não adiantava toda mobilização da população, pois a política

precisava assumir o seu lugar próprio. A proibição de se ter outros partidos também era

uma questão de ir contra ao que era pregado pelo regime, pois se ele queria uma

unificação nacional, os partidos não teriam vez na ditadura:

No regime de verdade salazarista os partidos políticos são recusados

por não reproduzirem a ação na sua verdadeira natureza. São

importações do liberalismo e, por isso, fazem-na entrar em decadência,

provocando a sua degenerescência. Mas este discurso sobre a memória

histórica não é tudo. Os partidos políticos são recusados, também,

porque fragmentam o espaço nacional, que se quer uno. São a figura de

um país não conforme ao bom senso de uma reta razão, ou seja, são

uma irracionalidade. (MARTINS, 2014, p. 189 – grifo do autor)

Pensando apenas na sobrevivência do seu governo, mais medidas foram criadas

para fortalecer o Estado Novo, e uma nova Constituição foi promulgada em 1933.

Também nesse ano a censura foi finalmente regulamentada, e a Política de Vigilância e

Defesa do Estado (PVDE) passou a funcionar como forma de repressão contra tudo o que

fosse oposição ao regime (mais detalhes no subitem 1.3.2). Foi criado também em 1933,

por António Ferro9, o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) – mudando de nome

em mais duas ocasiões durante o Estado Novo: Secretariado Nacional de Informação

(SNI) em 1945, e Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT) de 1968 a 1974.

Esse órgão era responsável pelas propagandas e meios de comunicação que visava

promover as obras e os benefícios que estariam sendo feitos no governo. Tais divulgações,

na verdade, apresentavam um país não como ele realmente era, mas como ele deveria ser.

9 António Ferro foi o grande idealizador do SPN, ao sugerir a Salazar a importância de uma secretaria que

fosse responsável por promover eventos a favor do regime, e divulgar, por meio de propagandas panfletárias

as obras de Portugal. António Ferro permaneceu como o diretor desse órgão por 17 anos, desde a sua criação

em 1933 até 1950 (já sob o novo nome – SNI)

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No entanto, o mito que Salazar passou a incutir na mente da população era o de que

Portugal estaria se desenvolvendo graças a sua nova política e de que seu governo seria o

único capaz de proporcionar tais mudanças positivas para o país. O SPN começou a ser

veiculado em 1934 na Exposição Colonial realizada no Porto, idealizada por Henrique

Galvão10, na época um dos ministros do Ultramar, e tanto o SPN como a Exposição

enfocavam as ações praticadas nas terras ultramarinas, tratadas pelo governo como terras

portuguesas localizadas além mar. Com essa abordagem sobre as colônias, a imagem de

um Portugal gigante era veiculada não somente nessas amostras, como também passou a

integrar livros de história que estampavam essa ilustração como uma verdade a ser

exposta para que todos pudessem ter a noção do real tamanho do país situado na periferia

da Europa.

Figura 2 – SPN “Portugal Não é um País Pequeno”11

As figuras acima procuram ilustrar o tamanho dos países colonizados por Portugal

em dois diferentes mapas. A primeira, com a inscrição em português “Portugal não é um

país pequeno” e com os mapas das províncias ultramarinas colocadas sobre alguns países

da Europa, mostrando assim, a grandiosidade do Império Português. A segunda figura

traz a mesma inscrição, escrita em inglês, para atingir os estrangeiros – especialmente

americanos – colocando a imagem do império português preenchendo o mapa dos Estados

Unidos da América, também com o intuito de revelar a dimensão de Portugal e de seus

domínios. Essas imagens serviam para expressar o orgulho de pertencer a uma pátria

10 Henrique Galvão foi um fervoroso salazarista, capitão do Exército, que trabalhou nas Exposições do

Mundo Português e foi Inspetor da Administração Colonial até meados de 1950, quando começou a se

desiludir com Salazar. Ao tentar levar outros militares a seu favor, foi expulso e preso, e, ao fugir, refugiou-

se na Argentina e Venezuela. Tornou-se famoso ao organizar um assalto, desviando o paquete português

Santa Maria, conseguindo, com a façanha, chamar a atenção do mundo para o que ocorria em Portugal.

Depois da operação, vendo o resultado desfavorável, pediu asilo político às autoridades brasileiras, onde

permaneceu até a sua morte, em 1970. 11 Retirado do website: http://durrutilog.blogspot.com.br/2010/08/nostalgia.html

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poderosa e composta por uma diversidade de etnias e culturas. Vale assinalar que a

primeira dessas figuras foi amplamente veiculada em livros de História durante todo o

regime, mostrando-se uma das mais emblemáticas e memoráveis formas de representação

da nação durante o Estado Novo.

O modelo de regime idealizado por Salazar em muito tem a ver com os regimes

totalitários que ocorreram na Alemanha, chefiada por Hitler e na Itália, por Mussolini.

Tais modelos pregavam uma total autoridade por parte dos governos, uma ditadura que

contava com um partido único e com uma censura que dava conta de proibir tudo o que

pudesse prejudicar o regime. Muitos futuramente delatavam o seu modelo totalmente

reproduzido do nazismo e fascismo, embora Salazar nunca o tivesse realmente confessado

de que suas ideias de fato vinham dessas políticas – até porque após a queda delas, o

modelo dele, enfraquecido, teve de tomar outros rumos. Um dos delatores mais danosos

para o governo foi o general Henrique Galvão, um antigo ministro das Colônias, que

percebeu as atrocidades e se desvencilhou do governo, tentando divulgar ao mundo as

“verdadeiras obras” de Salazar. Em sua Carta Aberta a Salazar (2010)12, ele anuncia:

Seria então muito grato aos teus desígnios e espírito (como se verificaria

durante a guerra), alinhar o país com a Alemanha de Hitler e a Itália de

Mussolini – as tuas escolas e os teus mestres – contra o comunismo.

Mas faltavam-te forças, povo e situação geográfica para te levantares

abertamente contra as democracias ocidentais que detestavas e das

quais te sentias espiritualmente muito mais distante do que do

comunismo. (GALVÃO, 2010, p. 44)

Galvão (2010) compara o modelo escolhido por Salazar com os modelos de outros

ditadores do mundo, como a existência da União Nacional, também existente na

Alemanha e na Rússia; a Mocidade Portuguesa, cópia da “Juventude Hitleriana”

(Alemanha) e dos “Balilas” (Itália); e também quanto à questão da existência da polícia

política, modelo da Gestapo (Alemanha) e da Milizia Volontaria per la Sicurezza

Nationale (MVSN), da Itália (PIMENTEL, 2007; GALVÃO, 2010).

Com um partido único, a censura, a SPN, e o controle do exército a seu favor,

Salazar tinha em mãos tudo o que era necessário para mascarar os problemas e fazer a

população acreditar em si e o seu governo “prosperar”. As estratégias utilizadas por ele

12 Obra escrita por Henrique Galvão e lançada em Lisboa pela primeira vez em 1960. Entretanto, devido à

censura, foi apreendida, assim como a segunda e a terceira edições. Henrique Galvão faleceu antes do

término da ditadura, tendo sido sua obra finalmente lançada, sem apreensões, em 2010.

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no seu governo eram justamente as propagandas, as exposições, tanto a Exposição

Colonial do Porto de 1934 como a exposição do Mundo Português em 1940, e esses

eventos serviram para apresentar uma mensagem fictícia de um Portugal idealizado por

Salazar, e não o país que realmente era, formando um dos vários mitos do Salazarismo

(MARTINS, 2014; ROSAS, 2013).

As exposições foram forma de divulgação do Estado Novo para o mundo, e

também para a população nacional voltar a sentir o patriotismo há muito tempo

enfraquecido no país.

A Exposição “O Mundo Português” ocorreu em Lisboa, na Praça do Império,

próximo ao Mosteiro dos Jerônimos e à Torre de Belém, no ano de 1940, ano também de

comemoração dos 800 anos de independência do país (1140) e 300 anos de independência

reconquistada (1640). Essa exposição tinha um caráter histórico, e as apresentações

perpassavam as conquistas desde a época medieval até aquela presente data, mostrando

as realizações e os valores marcantes do Estado Novo, e por meios de fotos e postais

retratavam “uma nação grande, diversa, imperial e imponente” (MARTINS; OLIVEIRA;

BANDEIRA, 2012, p. 266). Sendo uma grande oportunidade para exibir um Portugal

além das fronteiras conhecidas, criou-se uma identidade de um “país uno, multi-racial e

pluri-continental”, características pregadas pelo salazarismo para se criar uma nova

identidade nacional.

Da mesma forma como ocorria com as colônias, todas as precariedades existentes

não chegavam às notícias em Portugal, e assim as pessoas não tinham o menor

conhecimento do que realmente acontecia em cada um dos espaços. As terras ultramarinas

ganharam maior destaque no governo do Estado Novo, pois elas eram “vistas como uma

parte essencial da criação de um novo espírito português” (MENESES, 2011, p. 139),

podendo, assim, recuperar a imagem de um Portugal grandioso e heroico, corroborando

a ideia de um Império iniciado com as Grandes Navegações. Mas esse destaque era apenas

uma ficção quando se tratava dos verdadeiros benefícios, e os problemas que ocorriam

nas terras muitas vezes não conseguiam ser solucionados, sendo então arquivados pelo

governo. O primeiro chefe de Estado Português a pisar em uma das colônias foi o

presidente Óscar Carmona, em julho de 1938, quando visitou Angola e São Tomé (sendo

inclusive muito bem recepcionado na sua volta ao país, mais de um mês depois), e após

um ano partiu novamente, dessa vez com destino a Moçambique. Vale a pena ressaltar

que Salazar jamais visitou uma colônia portuguesa. Mesmo com alguns rumores que

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surgiram quanto ao interesse de outros colonizadores pelas terras de portuguesas, Salazar

sempre se mostrou irredutível quanto à venda ou aluguel delas – e assim se manteve até

o fim do seu poder: “[...] não vendemos, não cedemos, não arrendamos, não partilhamos

nossas colónias.” (MENESES, 2011, p. 140).

As colônias portuguesas assim se chamaram até 1951, quando, por pressão externa

da ONU, passaram a ser chamadas de “Províncias Ultramarinas”. Com a mudança, tal

nome evitaria a relação opressor versus oprimido, colonizador versus colonizado; e com

a nova nomenclatura, daria a ideia de que as terras eram realmente partes de terras

portuguesas sendo apenas extensões de Portugal. Entretanto, Galvão (2010) delata a

rejeição que o primeiro-ministro teve com essa mudança que na verdade já tinha sido

proposta inicialmente no Ato Colonial, em 1930: “quando os territórios ultramarinos se

constituíam de fato, estruturalmente, como províncias ultramarinas, tu, autor do Acto

Colonial, quiseste contra tudo e contra todos, como bom racista, que se chamassem

colônias.” (GALVÃO, 2010, p. 81). Esse trecho pode ser visto a seguir, no Ato Colonial:

“[Artigo 3º]: Os domínios ultramarinos de Portugal denominam-se colónias e constituem

o Império Colonial Português [...]”13

E mesmo com a mudança forçada de nome, a ideia e a relação entre Portugal e as

colônias não tiveram nenhuma diferença significativa. As obras realizadas nas colônias

mostram o grande retrocesso que essas terras viveram, pois não havia fiscalização, e o

dinheiro era mal-empregado, assim como ocorria também na própria Metrópole: “[...]

enriqueceste mais uma minoria de muitos ricos e deste que fazer a muitos empreiteiros.

Mas como na metrópole, e ao mesmo ritmo das obras públicas, deixaste agravar ainda

mais os problemas humanos da população e por vezes catastroficamente, os dos

indígenas” (GALVÃO, 2010, p. 82).

O Ato Colonial previa que as colônias fossem totalmente administradas por

Portugal, e que a nação tinha total influência para exercer as funções que lhe eram

devidas, como a de civilizar e proteger as colônias e os ‘indígenas’ – as pessoas que nelas

viviam:

Título I – Das Garantias gerais:

Artigo 2º: E da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a

função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de

civilizar as populações indígenas que neles se compreendem, exercendo

também a influência total que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente.

13 Decreto-Lei, de 8 de julho de 1930, grifo nosso.

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[...]

Título II – Dos Indígenas:

Artigo 15º: O Estado garante protecção e defesa dos indígenas das

colónias conforme os princípios de humanidade e soberania, as

disposições deste título e as convenções internacionais que actualmente

vigoram ou venham a vigorar. [...] (ATO COLONIAL, 1930)

De acordo com o Ato Colonial, o Estado também tinha obrigação de zelar pelo

tipo de trabalho a que os indígenas estavam sujeitos, sendo proibido aqueles que o

explorassem economicamente, devendo sempre receber salário justo e toda assistência.

Artigo 19º: São proibidos: Todos os regimes pelos quais o Estado se

obrigue a fornecer trabalhadores indígenas a quaisquer empresas de

exploração económica [...] Art. 21º: O regime do contrato de trabalho

dos indígenas assenta na liberdade individual e no direito à justo salário

e assistência, intervindo a autoridade pública somente para fiscalização.

(ATO COLONIAL, 1930)

1.3.1 O Ensino na Ditadura e a Mocidade Portuguesa

O conhecimento de Salazar, como dito anteriormente, ia além da área das

finanças. Logo ao assumir a posição de ministro das Finanças, ele já se dedicou a pensar

numa reforma no ensino primário e secundário, com o intuito de agilizar a disseminação

do pensamento “salazarista”, especialmente entre as crianças. Com a ideia do comunismo

que se difundia no mundo todo, ele não gostaria de ser confrontado em relação à sua

prática governista e de sofrer possíveis ataques e questionamento por parte dos jovens, de

modo que uma mudança no ensino se fazia uma urgência para tentar evitar tais problemas

no futuro. Já em 1927, houve uma reforma que consistia no ensino obrigatório elementar

dos 7-11 anos (e não mais dos 7 aos 12 como na I República), e no ensino superior

complementar de 11 aos 13 (também reduzindo um ano em relação à política anterior).

Já nessa programação, deram importância ao ensino da política nacionalista, mostrando

a história de Portugal e das suas províncias ultramarinas, para apresentar aos alunos desde

cedo a noção do valor do império português. (CARVALHO, 2001). No entanto, em 1929

a reforma sofre outra mudança com a redução de mais um ano em relação ao ano primário

obrigatório. Em vez de quatro anos no ensino elementar, seriam agora três anos,

considerando o quarto apenas uma complementaridade.

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Sendo assim, em seu discurso proferido em 1934, após sua entrada como primeiro

ministro, explica o motivo de sua decisão:

Nós não compreenderíamos – nós não poderíamos consentir – que a

escola portuguesa fosse neutra neste pleito e ultrapassaria todos os

limites que velada ou claramente, por actos positivos ou por omissão

dos seus deveres, ela trabalhasse contra Portugal e ajudasse os inimigos

da nossa civilização. Por mais longe que vá a nossa tolerância perante

as divergências doutrinais que em muitos pontos dividem os homens,

nós somos obrigados a dizer que não reconhecemos liberdade contra a

Nação, contra o bem comum, contra a família, contra a moral.

Queremos, pelo contrário, que a família e a escola imprimam nas almas

em formação, de modo que não mais se apaguem, aqueles altos e nobres

sentimentos que distinguem a nossa civilização e profundo amor à sua

Pátria, como o dos que a fizeram e pelos séculos fora a engrandeceram.

(SALAZAR, 1935, p. 309)14

Neste discurso, Salazar impõe a necessidade de a escola mostrar uma posição

política e ideológica que fosse condizente com as praticadas pela nação, para que

futuramente não aparecessem “inimigos”, que trairiam a pátria com a deturpação dos

valores morais, familiares e religiosos e de alguma forma acarretariam em problemas para

o regime. Ele rejeitava qualquer tipo de ensino que fosse liberal, democrático e positivista,

preferindo métodos tradicionais – sem inovação pedagógica – e que fossem contrárias às

práticas de discussões em que os alunos pudessem de alguma forma manifestar sua

opinião. Com o ensino voltado para a prática dos valores centrais do Estado Novo – Deus,

Pátria e Família – as crianças aprenderiam tais padrões sem jamais esquecê-los, e com

profundo amor à pátria, mostrariam orgulho por pertencer a essa nação sem a necessidade

de se expressar contrariamente ao que aprendia.

Salazar tinha um plano de impor na escola portuguesa as regras de pensamento e

de comportamento da sua “doutrina” e a principal exigência era a de que as crianças

aprendessem a ler, a escrever e a contar, de forma que houve até uma aprovação de lei

que diminuísse o tempo obrigatório de estudo de cinco para três anos. Para eles, três anos

era o tempo suficiente para uma criança rural aprender e com isso não seria necessário o

professor ter grande preparação científica e pedagógica para transmitir conhecimentos tão

limitados. Seria uma forma de eles economizarem dinheiro com os professores, com o

treinamento deles e com a diminuição do tempo obrigatório de estudo – e diminuiria a

taxa de analfabetismo nacional, que era alta – em torno de 70% em 1930. Ao mesmo

14 Discurso proferido no teatro S. Carlos, em 28 de janeiro de 1933, à academia nacionalista do país, que

acabara de lançar a organização da Associação Escolar Vanguarda.

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tempo em que se discutia para diminuir essa taxa, muitas pessoas que defendiam o estado

autoritário não viam a necessidade dessa medida, pois a ignorância trazia submissão,

modéstia, paciência e conformismo. Sem essa medida, o Estado teria mais facilidade em

dialogar e impor suas vontades. O governo sabia dos problemas que teria com um povo

mais alfabetizado, consciente e mais crítico: “o inconveniente de o povo saber ler não

estava propriamente no facto em si mesmo de ler, mas no uso perigoso que dele poderia

resultar” (CARVALHO, 2001, p. 728). Enquanto o governo discutia questões sobre a

ameaça que um povo consciente poderia trazer ao país, outros mais tradicionais, como

relatou Mónica (1977) em seu ensaio, não viam necessidade de se ensinar a ler e escrever

por não serem tarefas mais importantes que o trabalho no campo, e seria algo “inútil” para

a vida deles no país.

De qualquer forma, o ensino obrigatório reformulado por Salazar envolvia livros

apenas aceitos pelo governo, para não dar margem a leituras de diferentes obras que

poderiam “mudar” a cabeça do aluno e incutir ideias ameaçadoras para o regime. A

melhor maneira de evitar problemas para o país seria deixar as crianças e adolescentes

lerem apenas o que o Estado propusesse, e que houvesse também estrita vigilância em

todas as obras que circulassem pelo país, para que nem mesmo os adultos tivessem acesso

a elas. Essa vigilância teve êxito durante o regime, pois Salazar conseguiu mobilizar toda

a polícia exatamente como ele queria a seu favor, além de proibir o funcionamento de

bibliotecas e associações culturais. A ideia do regime era a obediência, a sujeição e

submissão, para então incutir o conformismo da população (MARTINS, 1992).

Com toda essa forma, eles passavam uma ideia de que apenas eles sabiam o que

era realmente bom e importante para o povo: “a ideologia neles contida e transmitida

partiu de pessoas concretas, na maioria das vezes, privilegiados, que determinavam o que

era bom e o que era mau. Para os outros.”15 Desse modo, não haveria tanto perigo com

relação a ideias contrárias aparecerem a ponto de desestruturar o regime e os grupos que

porventura fossem criados na contramão do que era imposto, poderiam ser (seriam)

facilmente reprimidos com a ação da polícia e da censura.

A imagem seguinte, presente em muitas escolas salazaristas – era um dos cartazes

que estampavam a ‘Lição de Salazar’ – ilustra a concepção salazarista da família,

mostrando o lugar e o papel de cada um: o homem trabalhador rural, a mulher cuidando

das lides domésticas e dos filhos, num cenário simples, que destaca a família cristã

15 Retirado do Jornal Letras, Educação – Ensaio. Ed. 8 de setembro de 1999, p. 6.

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(representada pelo altar onde se vê o crucifixo e uma vela, mostrando a devoção e a

religiosidade católica, e a mesa posta esperando pelo pai, figura central dessa família

ideal.

Figura 3 – “A Lição de Salazar”16

Conforme aparece no quadro à esquerda, essa era a trilogia pregada pelo regime:

“Deus, Pátria e Família” e a educação se desenrolava em torno desse pensamento,

mostrando que o importante para cada aluno era saber “ler, escrever e contar”, e os valores

pregados pelo regime.

A escola funcionava era um espaço propício para o regime ‘moldar’ as crianças

de acordo com os valores desejados – e por isso, as cartilhas escolares eram repletas de

frases que engrandeciam o país, a religião católica, o papel da família e o trabalho no

campo, veiculando a ideologia do Estado. Também as gravuras que ilustravam os livros

mostravam às crianças, por exemplo, como devia ser a vida em família, como nas imagens

a seguir, na contracapa dos livros da primeira e segunda-classes:

Figura 4 – “Contracapas dos Livros Escolares”

Fonte: Contracapas dos livros de Primeira e Segunda Classes, respectivamente

16 Fonte: Disponível online em: https://noseahistoria.wordpress.com/2011/12/12/a-licao-de-salazar/

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Elas traziam a imagem de tarefas destinadas aos meninos, que deveriam ser

executadas para ajudar a família, numa preparação para o trabalho na vida adulta.

Enquanto isso, às meninas eram ensinadas tarefas como cuidar da casa, ajudar a mãe com

os afazeres domésticos ou até mesmo cuidar do irmão menor. Como esperavam que as

meninas se casassem e cuidassem das lides do lar, o ideal seria que fossem esposas e mães

dedicadas e que educassem os seus filhos para seguirem o mesmo caminho.

Em algumas páginas, o texto também já incutia exatamente como as meninas

deveriam ser e os benefícios de se aprender desde pequena a realizar as tarefas a elas

destinadas: “hás de ser uma boa dona de casa”:

Figura 5 – “A Dona de Casa”

Fonte: O Livro da Segunda Classe – Ministério da Educação Nacional (p. 55)

Para o ensino da leitura e da escrita, os livros já estampavam algumas palavras e

frases que fariam parte do cotidiano deles, como “Lusitos17”, “Salazar”, “lusa”, “heroína”,

“Portugal”, para introduzir algumas letras e sílabas que estariam aprendendo – como

veremos nos exemplos a seguir:

17 Referência às crianças de 7 a 9 anos que faziam parte da Mocidade Portuguesa.

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Figura 6 – “Viva Salazar”

Fonte: O Livro da Primeira Classe – Ministério da Educação Nacional

(p. 48, 34, respectivamente)

Observe-se que o uniforme usado pelas meninas na primeira gravura representa

os utilizados pela Mocidade Portuguesa Feminina, de uso obrigatório até os 17 anos. A

ideia da grandiosidade do país também aparecia em todos os livros escolares, assim como

a importância do respeito às autoridades, seja ela na família (o pai), na escola (o

professor), ou na nação, pois, de acordo com a Igreja e com a Bíblia, isso foi instituído

por Deus:

Figura 7 - “Respeitai as Autoridades”

Fonte: O Livro da Primeira Classe. (p. 75)

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Figura 8 - Texto “Portugal é Grande”

Fonte: O Livro da Terceira Classe (p. 17, 18)

Acima vemos um texto retirado do livro da Terceira Classe, que expõe Portugal

como um país pluricontinental e multirracial, detentor de terras além-mar: “Também são

Portugal [...]”, mostrando o poder e grandeza do Império Português. Além da imagem da

grandiosidade, também evocavam a “coragem dos antepassados” ao enfrentar perigos nos

mares, e o sofrimento devido às condições insalubres encontradas nos locais extremos em

que aportaram nos séculos passados.

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O livro de leitura para a quarta classe, por exemplo, exibia o texto “Ser Português”,

que incutia nos pequenos o orgulho nacionalista que deveriam sentir ao afirmar pertencer

à nação portuguesa:

Quando alguém me perguntar a minha nacionalidade, devo sentir um

orgulho santo e nobre e responder: ‘SOU PORTUGUÊS’. Ser

português é pertencer àquela nação que, através do Mar Tenebroso,

arrostando os maiores perigos, vencendo o terror do ministério,

descobriu o caminho marítimo para a Índia e o Brasil. [...]

Esse mesmo texto citava personalidades ilustres da História de Portugal que

lutaram pelo país, no intento de induzir às crianças a importância de ajudar e defender a

nação sempre que se fizesse necessário – assim como seus antepassados, também

portugueses.

Essa ideologia, veiculada de diversas formas na escola, proporcionou ao país,

como era a expectativa do regime, maior submissão da população em relação ao governo,

desenvolvendo nas pessoas esse orgulho e admiração por tudo o que se propusessem a

fazer, seja no trabalho ou no lar, além do respeito pelo regime salazarista. Os adultos

aprendiam os valores por meio de seus filhos, e desta forma, podiam trabalhar tais

princípios também em seus lares, reforçando toda a instrução que a criança recebia em

sua escola.18

Mas não era somente na escola ou em casa que se instruíam os valores da pátria:

em 1936 Salazar criou uma organização nacional obrigatória para todas as crianças e

jovens portugueses do sexo masculino, dos sete aos quatorze anos, a Mocidade

Portuguesa. Uma das propostas desse grupo, de acordo com a lei, era cultivar nos seus

filiados a educação cristã tradicional do País e em nenhuma hipótese admitiria nas suas

fileiras um indivíduo sem religião. Um ano mais tarde, foi criada a versão feminina desse

grupo, a “Mocidade Portuguesa Feminina”, com as mesmas ideias, mas com algumas

diferenças: por serem meninas, ficariam excluídas as atividades físicas e os esportes que

poderiam “ser prejudiciais à missão natural da mulher e tudo o que possa ofender a

delicadeza do pudor feminino”19. Incutiria também a importância do trabalho doméstico

e mostrando o papel da mulher na família. O uniforme era padronizado, com algumas

diferenças de acordo com o sexo e com a faixa etária de cada grupo, e em alguns modelos

trazia um “S” de Salazar na fivela do cinto.

18 Retirado do Jornal de Letras: Educação – Ensaio. Data: 8 de setembro de 1999, p. 6 19 Regulamento da Mocidade Portuguesa Feminina, art. 4º, citado por Carvalho, 2001, p. 757.

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Com a intenção de “insistir” nos valores do Estado Novo para os jovens da

Mocidade Portuguesa, cartilhas instrucionais foram criadas. Segundo eles, a Mocidade

Portuguesa estaria “preparando [os jovens] para a vida”, ao difundir as ideias já “sólidas”

na mente de cada um deles. No livreto de propaganda da Mocidade Portuguesa, o então

Comissário Nacional, doutor Marcello Caetano (sucessor de Salazar a partir de 1968),

definiu como: “Um movimento de formação integral da juventude que procura dar à gente

moça vigor físico, saúde moral e uma consciência cívica inspirada no mais alto ideal

patriótico e traduzida em sentido prático” (EDIÇÕES SNI, 1945). A pergunta necessária

que todos deviam responder era “Como deve ser o perfeito português” (Idem).

Em 1956 o tempo de escolaridade obrigatória foi alterada para cinco anos para os

meninos e a partir de 1960 essa mudança ocorreu também com as meninas. Quatro anos

depois, uma nova lei alterou para seis anos, o dobro se comparado com o início do Estado

Novo. Em relação ao “analfabetismo”, segue uma tabela sobre a quantidade de pessoas

que não sabiam ler baseada nos Censos feitos em Portugal desde 1930 a 1960, nas idades

a partir de 10 anos20, a efeito de comparação:

Tabela 1: Taxa de Analfabetismo em Portugal

1930 1940 1950

1960

69.6 % 57.4% 41,77

36%

Na tabela acima, nota-se a redução de praticamente pela metade da taxa de

analfabetismo em trinta anos após a reforma no ensino, sendo um dos pilares do

Salazarismo a ideia de “saber ler, escrever e contar”.

O número de estudantes na época salazarista só aumentou, em qualquer ciclo

(ensino primário, técnico ou ainda superior), tendo apenas tido problemas no rendimento

dos alunos, ainda considerado baixo.

Outro aspecto relevante para a educação foi como se dava a escolha de

“professores” para a função; não havia muitos profissionais formados, assim, incentivava-

20 Os dados de 1930 a 1950 referem-se a crianças a partir de dez anos, ao passo que a coluna de 1960 inclui

também crianças a partir dos 7 anos. Se nos quadros de 1930 e 40, contássemos a partir dos 7 anos, como

divulgado Censo, teríamos 70,9% (como amplamente veiculado) e 58,8%, respectivamente. Nas colunas

de 1930, 40 e 50 foram retirados do Instituto Nacional de Estatística, disponível em: www.ine.pt. Já a

estatística referente a 1960, foi retirada de Fernandes, 1973, p. 23.

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se a figura dos “regentes escolares”. A princípio, para essa função, bastava apresentar

idoneidade moral e intelectual, sem quaisquer treinamentos e testes – e por vezes, por não

haver necessidade de alguém mais capacitado, tais regentes tinham apenas o ensino

primário. Porém, após alguns problemas com regentes que não tinham postura condizente

com os interesses do regime, quatro anos depois da implementação do novo sistema de

ensino, passou a ser obrigatória uma prova de aptidão para o cargo e os testes de admissão,

que englobariam perguntas de português, aritmética e algumas outras exigidas no

primário, além de uma prova oral de dez minutos. O candidato tinha meia hora para

responder às questões de cada matéria. A escolha dos regentes era tarefa importante, para

não causar problemas, e os escolhidos também tinham que cumprir certas regras para não

serem demitidos do trabalho. Além de não poderem se envolver em escândalos, tinham

que analisar com quem se casariam, o que só ocorreria mediante autorização do

Ministério da Educação Nacional. (CARVALHO, 2001). Os regentes também não

poderiam ser muito “doutos”: “fazer o ensino primário por meio de agentes altamente

intelectualizados tem inconvenientes gravíssimo [...] preferível seria que fosse bom e

simples; mas, quando não se possa ser bom, ao menos que não seja muito douto.”

(CARVALHO, 2001, p. 765)

1.3.2 A Censura

Uma das bases para que o governo ditatorial salazarista perdurasse e conseguisse

levar a população a seguir à risca todas as orientações do governo foi a existência de um

órgão que fosse responsável pela segurança do país. Por algumas vezes durante o regime,

esse órgão foi reformulado para atender às principais demandas e para que o controle de

tudo o que ocorresse fosse eficaz.

Com o fim da I República, muitos foram os órgãos criados para aumentar a

segurança do país após a extinção da Polícia de Segurança. Inicialmente, a Polícia de

Informações (PI) foi chefiada por um diretor contratado pelo Ministro do Interior, que

agia em Lisboa e Porto como forma de controle de todos os veículos de informação que

fossem publicados. Após dois anos, a PI passou a ser Polícia Internacional Portuguesa

(PIP) agindo nas duas cidades separadamente por alguns anos até se unificarem em 17

de março de 1928 e passarem a ser Polícia de Informações do Ministério Interior

(PIMI), que tinha como função principal de “reprimir os crimes sociais”.

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Depois de muitas dissoluções, instabilidade político-militar e alguns protestos

contra a violência da PIMI, foi criada em 1933 a Política de Vigilância e Defesa do

Estado (PVDE), pelo Decreto-Lei nº 22.99221, de 29 de agosto. A PVDE era constituída

por duas seções, uma que se encarregava da prevenção e repressão contra os crimes de

natureza política e social e outra que era responsável por verificar as entradas,

permanências e saídas de estrangeiros do território nacional, a sua detenção, caso se

tratassem de elementos indesejáveis, a luta contra a espionagem e a colaboração com as

polícias de outros países. Em 1934 foram-lhe atribuídas novas funções, com a criação da

seção de Presos Políticos e Sociais, responsável por prover ao sustento, manutenção,

guarda e transporte dos presos por delitos políticos e sociais, tanto como formas de

prevenção, quanto aos já condenados. As atividades passaram a ser vigiadas e controladas

pela polícia, e o direito de reunião era bem regulado: “reuniões destinadas a fins de

propaganda política ou social só podem ter lugar depois de obtida autorização do

governador civil do respectivo distrito” (Legislação Repressiva, p.140-141 apud

MENESES, 2011, p. 187). A censura, segundo o decreto 22.469,

Terá somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua

função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de

todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral,

a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os

princípios fundamentais da organização da sociedade” (IDEM)

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a derrota nazi-fascista levou Salazar a

fazer algumas modificações nas instituições do Estado Novo, com o intuito de divergir –

pelo menos aparentemente – o máximo da política criada pelos Aliados e assim a PVDE

passou a ser PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado (de acordo com o

decreto-Lei nº 35.046), e, similarmente à PVDE, a ela competiam quaisquer tipos de

serviços destinados à proteção e segurança do país; à sugestão de aplicação de medidas

de segurança e à prisão ou liberdade dos acusados. Tudo o que se referia à emigração, à

passagem e fiscalização das fronteiras terrestres e marítimas, ao regime de permanência

e trânsito de estrangeiros em Portugal e à repressão criminal cabia à PIDE, e aqueles que

não seguissem as leis seriam presos e julgados – a lista completa sobre a criação da PIDE

datada de 1945 encontra-se nos anexos (ANEXO C). O julgamento – quando ocorria –

acontecia muito tempo depois da prisão e após o cumprimento da pena a PIDE podia

21 Documento retirado do website criado para fins de investigação sobre o primeiro ministro António de

Oliveira Salazar. Disponível em http//oliveirasalazar.org. Acesso em 02/10/2014

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prorrogá-la, caso achasse necessário ou percebesse que o preso representava uma ameaça

para o regime:

A maioria dos presos políticos não ia a julgamento (73 por cento entre

1933 a 1945) [...] em 1944, dos 226 presos políticos do campo de

concentração do Tarrafal, 172 estavam presos sem julgamento, nem

pena, ou permaneciam presos após já a terem cumprido. (ROSAS,

2013, p. 205);

A PIDE durou até 1969, quando assumiu a Direcção-Geral de Segurança (DGS),

criada pelo Decreto-Lei nº: 49.401, de 24 de novembro, e tinha praticamente as mesmas

obrigações da PIDE, como, por exemplo, o de zelar pela segurança do Estado, vigiar as

fronteiras terrestres e marítimas, punir infrações cometidas pela população e também

manter relações com organizações policiais nacionais e estrangeiras. Em 25 de Abril de

1974, a DGS foi extinta, juntamente com o regime opressor.

Para o historiador Fernando Rosas (2013), o regime utilizou duas formas de

repressão para conseguir os seus objetivos: a violência preventiva e a violência punitiva.

Segundo ele, a violência preventiva era a mais constante e “a que era apontada à

dissuasão, à intimidação, privilegiando a contenção e a vigilância permanente dos

comportamentos.” (p. 196).

O país era constantemente vigiado por diversos órgãos que funcionavam para

indicar o limite de cada atividade, como, por exemplo, o Ministério da Educação Nacional

(MEN), a Mocidade Portuguesa (MP) e a Organização das Mães para a Educação

Nacional (OMEN). Qualquer atividade só podia ser realizada com a estrita autorização

da polícia, que, por fim, era rigorosamente controlada pelo governo, e tinham a

incumbência de “vigiar o quotidiano e inculcar unívoca e autoritariamente os valores do

‘homem novo’ salazarista e da mulher a renascer como fada do lar e repouso do guerreiro,

vinculada à missão de o servir e à família como esteio da nova ordem.” (ROSAS, 2013,

p. 199). No âmbito educacional, por meio dos inspetores da MEN, os professores eram

devidamente selecionados pelo regime, os livros eram únicos e exaltavam o ensino da

religião católica, a pátria e a família, mostrando o papel que cada um dos integrantes devia

exercer no lar, conforme o trecho seguinte:

O ensino primário fora largamente entregue a regentes escolares cujo

critério de admissão eram os da fidelidade ao regime. Os professores

foram obrigados a dar aulas glosando cartazes de propaganda do Estado

Novo e a apresentar, depois, relatórios sobre o que tinham feito.

(ROSAS, 2013, p. 201)

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Havia outras organizações como a organização corporativa, formada pelo Instituto

Nacional do Trabalho e Previdência (INTP) e a Federação Nacional para a Alegria no

Trabalho (FNAT):

Toda esta imensa panóplia burocrática (do Estado e da organização

corporativa), com a sua ação intimidatória no dia-a-dia, com o clima de

intimidação e de abstenção cívica que alimentava, visava instalar,

através de uma surda socialização do medo, um clima geral de

acatamento e submissão. (ROSAS, 2013, p. 200)

Foi esse clima geral de submissão, dessa interiorização da obediência e de

desmobilização que resultou num prolongado regime ditatorial (ROSAS, 2013), dando

uma falsa ideia de que o país caminhava bem, quando, na realidade, o medo e o

conformismo tomavam conta da população portuguesa.

Ainda se entendia como violência preventiva, todas as atividades que fossem

realizadas, sejam elas no âmbito escolar ou não, que não podiam acontecer sem a

autorização prévia do ministro do Interior, assim como a população também não tinha o

direito de fazer greves ou reuniões. Na prática, o rigor era ainda maior: “não se podia

organizar um torneio de xadrez numa escola, ou uma excursão num local de trabalho, fora

do monopólio da iniciativa ou da autorização da MP ou FNAT.” (ROSAS, 2013, p. 201).

A violência punitiva, como o nome diz, é a repressão por métodos coercitivos

daqueles que de alguma forma praticaram atividades que fossem além do permitido pela

polícia. Atividades de risco como seguir ou apoiar organizações clandestinas de luta

contra o regime, conspirando ou participando em atividades revolucionárias, aderindo a

uma greve ou comparecendo numa manifestação, podiam trazer grandes problemas aos

envolvidos, como torturas e penas de prisão. (ROSAS, 2013).

Para Salazar, a censura era uma importante ferramenta para controlar a paz, já que

era medida aceitável enquanto o mundo se encontrava em guerra. Adotou uma postura

ofensiva e sempre eliminava qualquer atitude de ameaça em seu governo. A partir de

1934 algumas cadeias foram projetadas como forma de punição para aqueles que não

seguissem as leis do regime, sendo um total de 6 cadeias: Cadeia do Aljube, duas cadeias

do Forte de Caxias, Cadeia do Forte de Peniche, Estabelecimento Prisonal Angra do

Heroísmo, sendo fechado em 1936 para abrir o último e o pior deles, o “Campo de

Concentração de Tarrafal”, em Cabo Verde. Alguns documentos mostram a quantidade

de presos existentes em cada uma das cadeias, como o seguinte, datado de 25 de setembro

de 1936, apenas dois anos após o início das prisões:

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Figura 9 – Boletim da Existência de Presos (1936)22

Relação das cadeias e da quantidade de presos existentes em cada uma delas. Nesse quadro, ainda

existia uma prisão em Angra do Heroísmo, enquanto a do Tarrafal ainda seria ocupada no fim de

outubro.

O Campo do Tarrafal seria, inicialmente, construído em Angola, mas alteraram

para Cabo Verde por proporcionar alguns fatores mais atraentes para o governo. Dentre

eles, Angola era considerado um espaço indispensável para Portugal e, além do mais,

Cabo Verde, por sua posição distante do continente africano, era um fator relevante para

manterem os prisioneiros afastados de sua origem e numa situação de difícil

deslocamento – “Houve algumas tentativas de fuga, mas os fugitivos descobriam que não

tinham para onde ir”. (MENESES, 2011, p. 195). A ideia original era criar um espaço

para a recuperação das pessoas e um campo de trabalho agrícola e o Tarrafal, na cidade

de Santiago, parecia um local apropriado por ter uma fonte de água próxima. Com o

decreto pronto no dia 23 de abril de 1936, os prisioneiros começaram a ser levados para

o Tarrafal em outubro do mesmo ano, e as primeiras 15123 pessoas tiveram que construir

praticamente tudo, pois no local só havia tendas. Além disso, as condições insalubres do

lugar e o tratamento cruel transformaram o Tarrafal em um “campo da morte lenta”, como

apontam relatos de pesquisadores e de prisioneiros que lá estiveram:

22 Documento disponível para consulta online nos arquivos da Torre do Tombo. Código de Referência:

PT/TT/AOS/D-G/8/4/1 (m.0003). http://digitarq.arquivos.pt/details?id=3889735 23 Nos anexos (ANEXO B) constam mais detalhes sobre os prisioneiros do Tarrafal.

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Uma forma especial de castigo era a frigideira, uma cela, a certa

distância do campo principal, quase sem ventilação, atingindo assim

altas temperaturas no seu interior durante o dia. Entre os mosquitos,

trabalhos forçados, má alimentação e cuidados médicos praticamente

inexistentes, o Tarrafal era um desastre à vista. [...] Seis deles [dos

prisioneiros] morreram em quatro dias em Setembro de 1937. Mais

quatro morreram dias depois. [...] (MENESES, 2011, p. 195)

A prisão do Tarrafal era considerada a mais cruel e sinistra de todas e, durante seu

funcionamento, vários presos tentaram fugir, mas sem sucesso. Muitos protestos se

seguiram para o fechamento dessa prisão, mas Salazar a manteve aberta por quase dezoito

anos, sendo fechada em 1954 e reaberta após o início da Guerra Colonial, em 1961. Em

outro “Boletim de Existência de presos”, datado de 1945, consta a quantidade de presos

no campo de Tarrafal, além de outras prisões em Portugal:

Figura 10 – Boletim Da Existência de Presos e Deportados (1945)24

Relação das cadeias e da quantidade de presos existentes em cada uma delas. Nesse quadro, já

consta a Colônia Penal de Cabo Verde (Tarrafal)

Além dos prisioneiros em cadeias, do documento constam indivíduos que estavam

sob a guarda da PIDE por emigração clandestina e que ainda seriam interrogados.25

24 Documento disponível para consulta online nos arquivos da Torre do Tombo. Código de Referência:

PT/TT/AOS/D-G/8/4/1 (m.0005). http://digitarq.arquivos.pt/details?id=3889735 25 Nos anexos (ANEXO B) desta tese consta a lista de todos os presos no Tarrafal entre 1936 a 1939. Nesse

período, passaram pela Colônia Penal de Cabo Verde 200 presos, dos quais treze deles teriam sido

“eliminados” até fim de 1938, sendo dez por morte “natural”. Pela lista também, é possível confirmar a

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No total, trinta e seis pessoas morreram no Tarrafal26 – trinta e dois portugueses,

dois angolanos e dois guineenses – enquanto estiveram confinados, mas há outros que

perderam a vida logo após a libertação, por conta das péssimas condições em que

viveram. Vale ressaltar que no primeiro período de funcionamento do Tarrafal, entre 1936

e 1954, os prisioneiros eram em sua maioria portugueses, e depois de um ciclo fechado,

a prisão voltou a ser reaberta por ocasião da Guerra Colonial, em 1961, e a partir daí os

prisioneiros levados eram em sua maioria africanos. Passaram por lá 107 angolanos, 100

guineenses e 20 cabo-verdianos27. Em 1º de maio de 1974, uma semana após a Revolução

dos Cravos, as portas do Tarrafal se abriram e todos foram libertados.

Outras prisões em Portugal (Aljube, Peniche e Caxias), funcionaram entre 1934 e

1974, com exceção do Aljube, encerrado em 1965. A Prisão do Forte de Peniche (de 1934

– 1974) foi considerada a de mais alta segurança, embora tenha sido palco de uma das

mais espetaculares fugas durante o Estado Novo, em janeiro de 1960. A fuga contou com

um planejamento minucioso, e um envolvimento de muitos presos e alguns agentes, para

ser bem-sucedida. Os historiadores entrevistados no presente trabalho, Fernando Rosas e

António Borges Coelho, estiveram presos por mais de uma vez por atividades irregulares

durante o Estado Novo, Fernando Rosas em Caxias e Peniche, enquanto Borges Coelho

ficou em Aljube, além de Peniche. Tratar-se-á um pouco dos relatos pessoais desses

historiadores no capítulo dedicado a eles, especialmente António Borges Coelho, que

durante a entrevista compartilhou algumas experiências de quando esteve preso. Durante

todo o regime ditatorial, muitos passaram pelas prisões, e saber a quantidade exata de

presos é uma tarefa praticamente impossível:

Não sendo fácil estabelecer, com precisão, o número total de presos pela

PVDE/PIDE/DGS por razões políticas, os diferentes estudos efectuados

permitem estabelecer com razoável probabilidade que, entre 1933,

quando se cria a PVDE e se institucionaliza o Estado Novo, e o 25 de

Abril de 1974, a polícia política efectuou não menos de 30 mil prisões

por motivos políticos. (ROSAS, 2013, p. 204)

Outros métodos de punição do regime podiam ser as torturas do sono e da estátua,

utilizados pela polícia para conseguir mais informações de outros militantes. Mais

entrada de 151 presos no dia 29 de outubro de 1936, o primeiro grupo dos presos que foi obrigado a construir

praticamente todo o local. 26 Fernando Rosas em um vídeo na RTP (2014) fala em 40 mortes durante a existência do Tarrafal.

http://ensina.rtp.pt/artigo/fuga-prisoes-politicas-estado-novo/ 27 Idem

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utilizada em Aljube no início dos anos 60, a “estátua” era um método no qual o preso

deveria ficar de pé o máximo de tempo possível; caso não suportasse, podia sentar-se

alguns instantes e voltar a se levantar –quanto mais cansado e esgotado, melhor para a

PIDE. Dependendo da situação, caso o preso tentasse dormir, haveria pancadas. Quando

não aguentavam mais, forçavam-no a falar. No caso da tortura do sono, o caso era impedir

que o preso dormisse - método que foi mais utilizado, sendo mais cansativo e prolongado

para o preso. Havia presos que ficaram sem dormir por sete dias consecutivos, e outros

chegaram até onze dias. Após serem submetidos a essas torturas, podiam sofrer também

com o isolamento, outro método utilizado pela PIDE:

Muitos detidos pela PIDE/DGS, referiram que, após um período de

serem sujeitos a violências e à tortura do “sono”, sentiram uma quase

felicidade, com o retorno à cela e ao isolamento. Mas, depois,

consideraram o isolamento mais difícil de suportar do que a própria

tortura, pois provoca, no indivíduo, um sentimento permanente de

ameaça sem objecto e uma vivência de despersonalização.

(PIMENTEL, 2007, p. 109)

Fernando Rosas (2013), que foi submetido a algumas torturas, explica que a

polícia política usava todos os recursos necessários para atingir os objetivos do regime:

“incluindo o recurso ao assassinato pela tortura nas cadeias ou por liquidação física dos

resistentes em emboscadas ou operações policiais de rua” (p. 203), mas que esses casos

de assassinato apenas ocorriam em situações extremas em Portugal, diferentemente do

que ocorria nas províncias ultramarinas durante a Guerra Colonial. Outras torturas já eram

bastante utilizadas:

A tortura do sono, a “estátua”, os espancamentos com vários tipos de

instrumentos de agressão, o isolamento prolongado, a chantagem e a

humilhação dos presos, a prisão arbitrária sem culpa formada nem

condenação judicial, foram os métodos constantemente usados pela

polícia política a que o regime procurará dar uma fachada de legalidade,

sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. (ROSAS, 2013, p. 203)

Segundo Pimentel (2011), a combinação de fatores levou à durabilidade do

regime, e não apenas a ação da PVDE/PIDE/DGS com seus “métodos eficazes” de

tortura. O auxílio da PIDE/DGS e também dos grandes pilares, a Igreja e as Forças

Armadas, foi fundamental durante o “terremoto delgadista” (assunto a ser tratado

posteriormente, ainda neste capítulo), e o período da Guerra Colonial, quando muitos

jovens começaram a lutar incessantemente contra o regime. O regime ditatorial também

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durou porque conseguiu uma ‘organização de consenso’, através de aparelhos de

desmobilização cívica e de inculcação ideológica, bem como diversos instrumentos,

como os sindicatos nacionais e grêmios, e outras organizações como FNAT, MP e MPF.

(PIMENTEL, 2011). Os poucos que lutavam contra o governo não conseguiam passar

pela polícia, que intimidava e causava o medo na população, com seus meios de

repressão:

Em suma, pode-se dizer que a durabilidade do regime se deveu a uma

combinação de dois fatores decisivos: por um lado, o sucesso da

prevenção/desmobilização/intimidação cívica/repressão, por meio de

vários instrumentos, entre os quais a importante PIDE/DGS e, por outro

lado, o fato de o regime ditatorial, nos momentos de crise – 1945 e 1958

– 1961 – ter conseguido manter a coesão das Forças Armadas em seu

redor. O estertor do regime foi acompanhado por uma maior repressão

e um aumento da violência policial, que coincidiram com a

multiplicação dos problemas enfrentados pelo regime. (PIMENTEL,

2011, p. 148)

Rosas (2013) defende que a durabilidade do regime também se deveu à

combinação desses fatores apontados por Pimentel (2011), mas há ainda outro fator

importante, que foi a passividade de algumas pessoas perante os desafios, pois

o que largamente predominava não era o consenso, a aceitação livre, ou

sequer o sucesso de uma doutrinação massiva. Era a sujeição, a

obediência, a passividade, obtidas pela combinação eficaz do

enquadramento preventivo com a resposta punitiva. Não se pretende

dizer que o regime não tivesse tido apoios fiéis e entusiásticos, em

certos sectores sociais, ou em certas conjunturas históricas, sobretudo

até a Segunda Guerra Mundial. Mas não era, nunca foi, a mobilização

dessa gente que principalmente o susteve. Foi, quase sempre, a bem

sucedida desmobilização dos demais. (p. 202)

Rosas também ressalta (2013) que a ação das Forças Armadas foi igualmente

fundamental para a permanência de Salazar no poder. Elas eram inteiramente controladas

pelo regime, e tinham que obedecer rigorosamente aos comandos do poder, sob pena de

trocar toda a equipe, como ocorreu entre 1938-1940. Foi a ação desse grupo que segurou

Salazar após a Segunda Guerra Mundial e a fraude das eleições de 1958 (a ser visto

adiante).

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1.3.3 Desdobramentos das Guerras

A guerra civil que eclodiu na Espanha em 1936 foi o acontecimento mais

traumático anterior à Segunda Guerra Mundial, que funcionou como “um teste” para os

países que nela se envolveram, trazendo consequências imediatas para Portugal, pela sua

proximidade geográfica. Como a Guerra Espanhola foi o combate de dois grupos que

divergiam politicamente, republicanos contra nacionalistas, Salazar percebeu a

importância de manter a Mocidade Portuguesa como forma de proteger a juventude das

ideias revolucionárias que tramitavam pela Espanha, além de criar um grupo “milícia

armada” para vigiar as fronteiras do país. Com algumas medidas sendo reformuladas

devido às questões internacionais, Salazar precisava, ao menos, manter-se em paz e não

se envolver com problemas externos – como conseguira durante a Grande Depressão. Se,

mais uma vez, saísse ileso da Guerra Civil Espanhola, seria, talvez, seu maior triunfo no

governo.

No entanto, não houve como Portugal manter-se à margem dos acontecimentos

no país vizinho. O grupo dos republicanos espanhóis, com ideias anarquistas e socialistas

– grupo de esquerda – ganhou apoio da União Soviética, ao passo que o grupo mais

conservador ganhou apoio do nazi-fascismo, do general Francisco Franco, da Igreja e

também de Portugal. Portugal demonstrou seu apoio a Franco fornecendo combatentes

voluntários28, facilitando a aquisição de equipamento militar, com abastecimento de

alimentos, entrega de refugiados e emissões propagandistas (GÓMEZ, 2011; MENESES,

2011). O funcionamento do Estado Novo se viu alterado com o início da guerra: Salazar

tornou-se responsável também pela pasta dos Negócios Estrangeiros, por perceber a

importância de “travar a extrema-direita”, fortalecida pela guerra na Espanha.

A posição de neutralidade adotada por Salazar durante a Segunda Guerra Mundial

foi uma estratégia para evitar grandes problemas em seu governo: sabia da fragilidade

militar portuguesa e da vulnerabilidade de seu império colonial (MENESES, 2011).

Salazar também contribuiu para que a Espanha, assim como Portugal, tomasse a decisão

da neutralidade, visto a grande proximidade com o território português e o quanto a

entrada da Espanha poderia ser prejudicial ao país. Notícias sobre a guerra também eram

28 O número de combatentes estimados de acordo com a pesquisa de Gómez (2011) foi entre 2.500 e 8.000).

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divulgadas com cautela por Salazar, para que não pensassem que ele estivesse

favorecendo algum grupo específico.

O fim da Segunda Guerra Mundial parecia ser o momento favorável para a queda

do regime autoritário em Portugal, visto a derrota do nazi-fascismo e o enfraquecimento

desse tipo de governo. Os grupos de oposição solicitavam à Grã-Bretanha que exercesse

pressão diplomática sobre Salazar para que houvesse uma reforma política e uma

democratização do país. Esse momento teria sido uma oportunidade para o ditador rever

sua política e restaurar a confiança da população, uma vez que muitos grupos de oposição

passaram a se formar com o intuito de abalar a política salazarista. Tais grupos

promoveram algumas tentativas de golpe, todas falhadas e os integrantes das Forças

Armadas pareciam estar convictos e favoráveis a uma operação de queda do regime, o

que não ocorreu, assim como o (ou a falta de) apoio do Presidente Carmona. A última

tentativa da oposição ocorreu com as eleições presidenciais de 1949, em que o general

Norton de Matos seria o candidato da oposição, reivindicando a liberdade da imprensa e

maior fiscalização nos votos – mas, pela falta de condições de intervenção democrática,

desistiu de disputar as eleições, frustrando assim, os grupos de oposição.

Já Salazar, aproveitou o fim da guerra para continuar a sua política que sustentava

desde a sua entrada no poder: a liberdade não seria possível visto o perigo que ela

representava à nação, especialmente com a vitória soviética na Segunda Guerra Mundial.

Combateu veemente a formação do MUD29 (Movimento de Unidade Democrática) por

acreditar que o grupo influenciaria negativamente a nação e ameaçaria os valores cristãos

pregados em seu governo:

Em face dos aliados, o ditador procurava na ‘guerra fria’ a justificação

para o seu mando, alegando a necessidade de combater o PCP, como

aliado estreito da URSS, e exaltando os perigos que ambos

representavam para a civilização ocidental e cristã. Internamente

tentava justificar a sua autoridade pela necessidade de defender, contra

a subversão comunista, os bons valores tradicionais consubstanciados

na trindade ‘Deus, Pátria e Família’. (TENGARRINHA, 1994, p. 392)

Assim, Salazar diminui a capacidade de intervenção e influência da oposição,

controlando repressivamente a situação interna. Da mesma forma, não abriria mão das

29 MUD foi um grupo formado após o término da Segunda Guerra Mundial, em outubro de 1945 e tinha

como objetivo de reorganizar a oposição e se preparar para as eleições. Com uma grande adesão popular e

com o grupo se fortalecendo, Salazar decidiu ilegalizar, pois ia contra o seu regime.

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províncias ultramarinas, muitas vezes questionadas no pós-guerra, com o argumento de

que estaria defendendo os valores da civilização cristã e ocidental que estariam sendo

ameaçados pelo maximalismo30:

Para Salazar, a “liberdade”, era ter a independência política e econômica, e para

isso seria importante que houvesse ainda “uma autoridade necessária e a liberdade

possível” (SALAZAR, 1951, p. 205), especialmente com a ameaça pós-guerra e de novas

ideias surgindo a partir dela:

Um grande estado – a Rússia -, tendo saído da última guerra vitorioso

e engrandecido, constitui potencialmente, por força da sua ambição

hegemónica e da tendência expansionista do comunismo de que é o

centro e fautor, um risco grave, não só para a independência e a

liberdade, mas também para a civilização de numerosos países.

(SALAZAR, 1951, p. 503)31

Deste modo, considerava o comunismo como o “grande inimigo do momento” (p.

508), sendo necessárias intervenções que pudessem repreender as atividades

oposicionistas atraídas por essa tendência.

Outro fato importante que sucedeu logo após a Segunda Guerra Mundial, foi a

regulamentação assinada pela França em 1945 que impedia a imigração clandestina,

exigindo, no caso, um contrato formal de trabalho de todos os estrangeiros que

resolvessem ir à França. Foram, então, assinados acordos com alguns governos que

exportavam mão-de-obra para a França, porém, Portugal manteve-se irredutível quanto a

essa decisão, acreditando que isso incentivaria a emigração dos jovens portugueses para

a França, enquanto o interesse de Salazar seria o envio desses jovens para as províncias

ultramarinas da África, em especial. Apenas em 1960, após muita insistência do governo

Francês, Portugal aceitou o acordo com algumas ressalvas para não especularem de que

Portugal estivesse motivando à emigração. Ainda assim, na imprensa francesa circulava

que Portugal estaria perdendo sua população para a ditadura, que fugia do governo

autoritário. A partir de 1963, Salazar assinou toda a documentação e só iriam para a

França aqueles que tivessem um contrato de trabalho regulamentado, mas, na altura, já

havia muitos portugueses vivendo na clandestinidade, e a PIDE atuava de maneira secreta

na França, procurando esses portugueses para serem deportados e presos.

30 Maximalismo: adeptos ao Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), também denominados

de bolchevistas ou, ainda, comunistas. 31 Discurso proferido no dia 12 de dezembro de 1950, dirigido à comissão da União Nacional, numa sala

da Biblioteca da Assembleia Nacional.

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A emigração sempre ocorreu de forma controlada até 1960, notadamente em

direção ao continente americano, mas a partir de 1961, houve um aumento muito

significativo em relação às pessoas que emigraram:

Na década de sessenta, verificou-se o apogeu dos valores da emigração

oficial desde que houve conhecimento do facto. Nunca antes (ou até

mesmo depois), e em tão pouco tempo, emigraram tantos portugueses

(famílias inteiras), essencialmente para a Europa das melhores

condições de vida e do melhor cumprimento dos direitos, das liberdades

e garantias dos cidadãos.

[...]

Em 1964, verifica-se o ponto de inflexão, a mudança no sentido da

Europa, e os emigrantes portugueses passam a optar maioritariamente

pelos países europeus mais desenvolvidos: a França em primeiro lugar,

mas também a Alemanha (RFA), a Suíça, o Reino Unido,

inclusivamente, o pequeno Luxemburgo, mas com uma comunidade

portuguesa muito numerosa. (INE, 2006, p. 52)

As causas para esse surto de emigração devem-se, sobretudo, ao início da Guerra

Colonial, quando muitas famílias assumem o risco de partir para o desconhecido no lugar

de permanecer em Portugal e ver o filho ser forçado a seguir para os campos de guerra.

Outras opções foram mandar o filho só com o objetivo de conseguir melhores

oportunidades de estudo e trabalho no exterior – como ocorreu com Sérgio Godinho, um

dos entrevistados – que seguiu para a Suíça para estudar e, ao mesmo tempo, evitar uma

guerra. Aos que saíram de Portugal, embora houvesse uma expectativa em relação a uma

mudança de vida, havia um desconforto pela situação política do país:

Não foi com alegria e por vontade própria que emigrámos nos anos

1960 e 1970. A emigração é sempre um drama, uma expulsão, um

afastamento. Mas é também e sobretudo, um falhanço político dos

governos de antes e depois de 1974, [...] (MACHADO; CERQUEIRA,

2005, p.30)

Na mesma linha, Spínola32 (1974) também reprova o governo perante o aumento

da emigração ao expressar que esse fenômeno migratório é reflexo da crise atual, pois ao

tomar uma decisão de partir para o estrangeiro, por questão de sobrevivência, o cidadão

aceita “trocar as leis do seu país pela sujeição à lei estrangeira, prescindindo dos seus

direitos de cidadania em favor do seu bem-estar” (p. 21), uma vez que não se encontram

dentro do país oportunidades de trabalho e nem perspectiva de melhora.

32 O general António Spínola foi um dos militares que aderiu ao Movimento Capitães, e após a Revolução

dos Cravos, tomou o poder durante o Governo Provisório.

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A tabela abaixo, baseada em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE)

comprova a dimensão da evasão que Portugal sofreu nesse período, especialmente para a

França, totalizando quase um milhão de portugueses:

Tabela 2 – Emigração para a França (1960-1974)

Emigração Oficial 410.095

Emigração Não-Controlada 538.957

Total 949.052

Fonte: INE, 200633

1.3.4 Anos Cruciais Para Salazar (1958-1962)

Entre os anos de 1958 e 1962 Salazar atravessou um período de crise em seu

governo começando pouco antes das eleições presidenciais de 1958 e perdurando com o

início da Guerra Colonial em 1961. A falta de crescimento econômico e a instabilidade

política geraram dúvidas acerca de sua sobrevivência no governo e muitos políticos se

uniram para tentar um golpe militar, mas sempre fracassaram. Sua permanência no

governo foi devido à falta de entendimento entre seus adversários e críticos do regime,

dando margem a justificativas e defesas por parte de Salazar.

Para as eleições presidenciais de 1958, Portugal contou com um forte candidato

independente, Humberto Delgado, que tinha sido representante de Portugal na OTAN,

adido militar em Washington, e foi um dos apoiantes do regime antes de ser influenciado

pela política norte-americana e pela amizade com o antigo inspetor da Administração

Colonial, Henrique Galvão:

A fazer fé nas palavras de Marcelo Caetano, foi a experiência de vida nos

Estados Unidos que despertou em Humberto Delgado a convicção de que era

necessário agitar o Estado Novo, um objetivo já referido por Delgado no início

da década de 1950, faltando apenas esperar pela sua promoção a general (que

ocorreu em 1953) para começar a agir. Delgado planejava mudar o regime a

partir de dentro e não opor-se completamente a ele. (MENESES, 2011, p. 467)

33 Tabela feita com base no Instituto Nacional de Estatística, 2006. Disponível em:

http://censos.ine.pt/xportal/xmain?xpid=CENSOS&xpgid=ine_censos_estudos

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Em sua candidatura, Humberto Delgado afirmou que exoneraria o ministro, caso

ganhasse as eleições e sua postura causou desconforto no ditador:

Finalmente o seu estilo: o desassombro, a coragem física e moral como que a

resgatar as décadas de medo, de silêncio, de opressão, de temor, reverencial

face a um poder distante e autocrático – tudo resumido nesse santo-e-senha da

explosão popular e da esperança que foi o Obviamente demito-o! lançado sobre

Salazar. (ROSAS, 2013, p. 241 – grifo do autor)

Salazar viu-se fortemente pressionado com a atitude audaciosa de Delgado e além

de causar tumulto internamente, mexeu também com a população que começava a segui-

lo e a acreditar em alguma mudança. Anteriormente, as eleições presidenciais durante o

Estado Novo não houve candidatos de oposição, de maneira que Salazar nunca fora

realmente ameaçado, e pela primeira vez, um candidato independente concorreria as urnas

sem desistir da disputa antecipadamente.

Delgado levantaria o país de norte a sul, faria descer à rua, espontaneamente,

sem que ninguém soubesse como, surpreendendo tudo e todos no regime e nas

oposições, centenas de milhares de pessoas que o aclamavam em delírio, que

o levantavam em ombros, que vinham a pé, de longe, descalços, filhos no colo,

ver passar e saudar o “senhor general”. (ROSAS, 2013, p. 242)

Todos os esforços de Humberto Delgado foram em vão, pois no fim, o candidato

escolhido pela União Nacional, Américo Tomás, “venceu” as eleições por 75% dos votos,

resultados “sem dúvida manipulados” (GÓMEZ, 2011, p.74), sendo que o eleito foi “uma

personagem sem relevo cujo mérito principal era a sua ortodoxa fidelidade a Salazar”

(GÓMEZ, 2011, p. 74), conforme vemos propagandas

veiculadas como na imagem ao lado34, que mostra o candidato

sendo apoiado por António Salazar.

Alvo de ameaças por parte da polícia política,

Humberto Delgado pediu asilo político na embaixada do

Brasil, mas ainda assim planejava outras estratégias para um

golpe militar, sendo novamente frustrado.

Um ano após a fraude das eleições, Salazar aprovou

uma constituição que afirmava que o presidente seria eleito não mais por sufrágio, e sim

por um colégio eleitoral, formado apenas por membros da União Nacional, evitando

assim a possibilidade de ‘nova’ tentativa de golpe. O presidente eleito Américo Tomás

34 FIGURA 11: “Vote com Salazar Por Portugal”: Fonte: Imagem retirada dos Arquivos da Torre do Tombo,

sob número: PT-TT-AOS-D-M-18-1-14-647_m0001. Disponível para consulta online em:

http://digitarq.arquivos.pt/details?id=3893358

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permaneceu no poder por mais dois mandatos, saindo apenas em 1974, com a queda do

regime. Henrique Galvão (2010) também relatou em sua carta o episódio das eleições

fraudadas:

Ainda te foi fácil roubares escandalosamente as eleições e alcandorares o

candidato vencido à chefia do Estado. A máquina estava perfeitamente

montada para estas manigâncias. Mas já não te foi possível manter no país a

dúvida quando ao verdadeiro resultado das eleições. O Humberto Delgado

ganhou-as por maioria esmagadora. O país viu-te, alucinado e de cabeça

perdida como nunca, decomposto, knock down, no teu desvairo, a organizares

ridículas manifestações de desagravo, a atacares a Igreja, que também havias

mistificado fazendo-o passar como filho fiel, só porque ela, pela voz claríssima

e puramente religiosa do Bispo do Porto e de muitos sacerdotes, se recusou a

colaborar na tua farsa eleitoral e te chamou a atenção para a miséria deste povo

[...]. (GALVÃO, 2010, p. 57)

As eleições de 1958 trouxeram a Portugal inúmeras consequências para o governo,

e o país passou por períodos de intensa agitação social e política, greves, manifestações e

protestos estudantis. Além disso, o bispo do Porto, António Ferreira Gomes, redigiu uma

longa carta ao primeiro-ministro, discordando do “Estado Novo” em muitos aspectos,

dizendo que tal regime estaria em discordância com os Ensinamentos da Igreja

(MENESES, 2011). A coragem do bispo e os itens demonstrados na carta fez com que

sua demissão fosse exigida por Salazar, e além disso, sua carta foi copiada e inicialmente

distribuída entre os párocos da diocese, tornando-a logo conhecida entre o restante da

população. Para Salazar, ver a Igreja contra o seu regime, foi mais um golpe em seu

governo, e tentou logo recorrer ao Episcopado Português já que seria impossível reprimir

o bispo publicamente. O bispo foi afastado de seu cargo por um tempo, mas a Igreja não

o substituiu por outro como pedia o ministro; ele saiu do país, mas não pôde regressar

enquanto Salazar estivesse no poder.

Tais episódios revelam claramente como o ministro esteve sob ameaças internas

e externas, especialmente no fim do seu governo, mas que, com seu poder e autoridade

sobre os outros, conseguia sempre contornar a situação a seu favor. Mas as adversidades

ainda estariam longe de acabar, com o início da Guerra Colonial.

1.3.4.1 A Abrilada e a Guerra Colonial

A Guerra Colonial teve início em 1961 e foi o ponto chave para o desgaste da

ditadura. Pouco antes, Salazar ainda teve de enfrentar um período conturbado também

internamente. Logo no início do ano, Henrique Galvão, um de seus ex-ministros que se

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revoltou duramente contra o governo, comandou o assalto ao paquete Santa Maria

chamando a atenção do mundo e especialmente da mídia americana, que já se mostrava

contrária as medidas adotadas por Salazar e o pressionava pela posse [ilegal] das terras

na África: o navio, que saiu da Argentina com direção aos Estados Unidos foi desviado

pelo grupo de militares com o objetivo de ir a Angola e liderar um golpe de estado. Mesmo

tendo falhado, o evento marcou a política salazarista e o enfraquecimento de seu governo

era evidente. Ainda, a ONU passou a pressionar Portugal após a descolonização de outros

países da África e o governo americano também questionou o andamento da

descolonização. Cabe aqui ressaltar que o general Humberto Delgado35 – exilado no

Brasil após represálias por parte do governo ocorridas por ocasião das eleições – enviou

carta ao Secretário Geral da ONU relatando a Política Colonial Salazarista e solicitando

uma posição em relação ao caso (ANEXO D). O posicionamento intransigente de Salazar

em relação à descolonização dos territórios ultramarinos forçou o Ministro de Defesa

Nacional Botelho Moniz a se rebelar contra o ditador e a tentar um Golpe de Estado que

ficou conhecido como Abrilada ou Golpe Botelho Moniz. Já seria a segunda tentativa em

menos três anos, iniciada com as eleições presidenciais de 1958, e ambas foram

fracassadas. De todos os obstáculos obtidos nos últimos anos e todos os adversários que

Salazar poderia enfrentar, Botelho Moniz teria sido talvez o mais arriscado para o

ministro, causando certa inquietação e foi o que realmente poderia causar a sua saída do

poder, por ter todas as evidências necessárias para o fim de seu comando: Adriano

Moreira (ministro do Ultramar em 1961) “ouviu Salazar desabafar que nunca se sentira

tão perplexo em toda a sua vida política, e admitir que o General Moniz tinha na mão

todos os comandos” (MOREIRA, 2004 apud ROSAS, 2013, p. 246).

Com a descolonização de grande parte dos países da África, na década de

cinquenta, restando praticamente a presença de Portugal em alguns territórios, a ONU

voltou a pressionar o país por posse ilegal de terras, mas Portugal continuou afirmando

que tais terras não seriam colônias36, e sim, parte do território português. Ainda na década

de 50, foram surgindo líderes de movimentos nacionalistas que passaram a reivindicar a

libertação das colônias, como por exemplo: Amílcar Cabral em 1956 fundou o partido

Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC); Em Angola houve a

35 Humberto Delgado continuou suas tentativas de golpe de Estado após as eleições, sendo perseguido por

agentes da PIDE, até que em 1965, após um tempo exilado, foi assassinado pela polícia política na fronteira

com a Espanha, ao pensar que se encontraria com opositores ao regime. 36 A partir de 1951, por pressão da ONU, as colônias passaram ser chamadas de ‘províncias ultramarinas’.

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rivalidade entre três grupos na luta contra o colonizador, a União das Populações de

Angola (UPA) em 1955, mais tarde conhecido como Frente Nacional de Libertação de

Angola (FNLA); o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), criado por

Agostinho Neto em 1956; e, por último, a União Nacional para a Independência Total de

Angola (UNITA) criada em 1966.Em Moçambique, a Frente de Libertação de

Moçambique (FRELIMO) foi constituída em 1962 por Eduardo Mondlane. Em São Tomé

e Príncipe também foi organizado um movimento que pleiteava a independência das ilhas,

o Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP).

Salazar mostrava-se irredutível quanto à ideia de negociar uma saída dessas terras,

porque causaria um “efeito dominó”, e caso alguma delas viesse a ser independente, as

outras conseguiriam o mesmo feito com mais facilidade, uma vez que o governo estaria

fragilizado. Dessa forma, a solução foi combater e emendar uma guerra a “todo custo”

para manter as províncias ultramarinas em sua posse. A partir dessa época, com uma

Guerra Colonial, o governo português teve de se comprometer com 40% do orçamento

do Estado para a guerra, o que causava muitas revoltas pelo país, causando um forte

impacto não somente na economia, mas também para muitas famílias que tiveram entes

queridos lutando em uma guerra que não traria benefícios para o futuro da nação.

1.3.5 Primavera Marcelista e a Revolução dos Cravos

Os eventos ocorridos até então dão um panorama não muito favorável para o

regime português, especialmente por causa dos efeitos da Guerra Colonial que continuava

ceifando vidas nas províncias ultramarinas. Os problemas internos também forçavam

Salazar a repensar na sua política para resgatar confiança não somente da população, mas

principalmente das pessoas que o rodeavam, que trabalhavam juntamente com ele.

Porém, em agosto de 1968, o Presidente do Concelho começou uma longa batalha

contra os seus problemas de saúde advindos de uma lesão sofrida com uma queda em seu

escritório. Com idade avançada, os dias que sucederam a queda foram marcados por

constantes dores de cabeça e idas ao médico, apesar de o Presidente alegar que estaria

tudo bem. Com o agravamento do quadro, após uma cirurgia e duas hemorragias

intracranianas, e independentemente do desfecho, enquanto o ministro ainda se

encontrava hospitalizado, começaram a busca de um sucessor que conseguisse substituir

Salazar, governar sem a presença dele e, ainda, ter a aprovação das Forças Armadas.

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Assim, no dia 27 de setembro de 1968, Marcello Caetano37 assumiu a posição de primeiro

ministro – o segundo ministro de Portugal desde 1932. Surpreendentemente, Salazar foi

melhorando de maneira gradual, mas ainda muito debilitado, não lhe contaram sobre a

sucessão de seu cargo, segredo que mantiveram até o dia da sua morte, quase dois anos

após o incidente. Retornou à sua residência sob cuidados médicos, mas sua equipe nunca

encontrou palavras para explicar-lhe o ocorrido, uma vez que Salazar ainda mantinha

esperanças de voltar ao poder quando terminasse o seu repouso e sua saúde se restaurasse.

Os acontecimentos políticos eram mantidos em sigilo: “Liam-lhe o jornal, o que queria

dizer que tinham de exercer censura sobre a informação transmitida, a fim de manter

secreta a nomeação de Caetano” (MENESES, 2011, p. 649). Mesmo percebendo já em

1970, um mês antes de sua morte, que os assuntos políticos foram mantidos em sigilo,

nunca soube de fato o que teria ocorrido. Uma infecção renal agravou sua saúde, e Salazar

veio a falecer no dia 27 de julho de 1970.

Caetano, em seu discurso logo após a morte de Salazar, diz que

Salazar recebeu um país arruinado, dividido, convulso, desorientado,

descrente nos seus destinos, intoxicado por uma política estéril. Deixou

um país ordenado, unido, consciente, seguro dos seus objetivos e com

capacidade para os atingir” (Caetano apud Meneses, 2011, p. 653)

Embora houvesse mérito por parte Salazar relativamente a alguns avanços do país,

era inquestionável que áreas como a agricultura e a indústria sofreram com os retrocessos,

levando os jovens ao desemprego e forçando-os a emigrarem.

A entrada efetiva de Marcello Caetano trazia à população grande expectativa de

mudança, especialmente porque o posicionamento político dele divergia do seu

antecessor. Porém, não seria possível nenhuma transformação decisiva que não

envolvesse o fim da Guerra Colonial e a independência das províncias ultramarinas, ações

descartadas pelo Presidente pela possibilidade de militares tomarem o poder:

As Forças Armadas, através dos seus chefes, punham, pois, ao

Presidente da República, como condição para aceitarem o novo Chefe

de Governo, que não só se mantivesse a política de defesa do Ultramar

como se evitasse qualquer veleidade de experimentar uma solução

federativa. O Chefe de Estado transmitiu-me estas únicas condições.

37 Marcello Caetano já havia sido um dos destaques do Estado Novo, ao ser um dos redatores da

Constituição em 1933, comissário nacional da Mocidade Portuguesa, e ainda o presidente do Conselho

entre 1954 a 1958. Durante dez anos, ficou fora da política – trabalhou como professor – retornando em

1968, quando foi o mais votado entre a equipe para ocupar o lugar de Salazar – mesmo tendo ideias

divergentes. Após a Revolução dos Cravos, Marcello Caetano ficou exilado no Brasil, onde foi bem

recebido e convidado para dar inúmeras conferências e aulas na área de Direito (ressalta-se que o Brasil

ainda estava sob o regime ditatorial). Lançou muitos livros sobre sua vida política e acadêmica e faleceu

em 1980, no Rio de Janeiro.

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Ficou bem claro que, - se fosse mal sucedido no meu propósito de obter

em 1969 um voto eleitorado favorável ‘a defesa do Ultramar, eu cederia

o Poder às Forças Armadas. (CAETANO, 1976, s /p)38

Caetano aparentemente mostrava uma tendência inicial para uma política de

mudanças e reformas políticas, o que levou a denominarem esse período de Primavera

Marcelista. Segundo um depoimento dele, nunca se preocupou em fazer uma política de

esquerda ou direita, e sim, em ser fiel ao seu mandato e em averiguar as necessidades do

povo e fazê-la da maneira mais eficaz possível. (CAETANO, 1976). Ainda, “lutei contra

os partidos totalitários, [...] as actividades clandestinas, os perturbadores do sossego

público pelo terror, e como era meu dever, reprimi a desordem, a imoralidade, a

subversão. Fui vencido neste combate, hoje em dia apelidado de “fascista”. (s,p)

Mas questões de todos os lados ameaçaram o poder de Marcello Caetano:

oposições de governo, frentes democratas e socialistas; greves dos trabalhadores,

contestação estudantil (que ganharam força após o Maio de 6839), fatos que atenuaram a

fragilidade do governo e culminaram no fortalecimento dos militares, já em fins de 73 e

início de 74.

O ano de 1973 foi bastante conturbado para Marcello Caetano, com a

intensificação dos protestos por parte das Forças Armadas, com a Guerra Colonial (e

independência da Guiné-Bissau) e novamente a pressão da ONU contra a Política

Colonial portuguesa – agravada especialmente com a denúncia feita pelo TIMES que

repercutiu pelos jornais europeus, somando-se ao Massacre de Wiryamu40 ocorrido em

Moçambique em dezembro do ano anterior. Ainda nesse ano, ocorreram eleições gerais

de 1973 em que não houve candidatos de oposição por falta de transparência do governo

e mudanças na lei eleitoral.

Mas o momento mais relevante do ano ocorreu com o início das manifestações

contrárias por parte das Forças Armadas, iniciando-se no Porto, em junho de 1973, com

38 Texto integral disponível em: http://leccart2006.tripod.com/prof_mc.pdf 39 Maio de 68 foi um movimento ocorrido na França iniciado por estudantes com o objetivo de reivindicar

reformas no setor educacional, provocando muitos confrontos e uma grande repercussão midiática. A

tentativa do presidente francês Charles de Gaulle de inibir tal revolução gerou mais descontentamento

levando o restante da população (trabalhadores, camponeses) a aderir aos protestos e à greve que contou

com quase dez milhões de adeptos. O fato de ter sido um movimento que abrangeu os aspectos

universitários, sociais e políticos, a sociedade francesa ficou bastante desestruturada inicialmente e após

um mês de muitas revoltas, o presidente convocou novas eleições, vencidas por aliados de Gaulle. O

movimento refletiu internacionalmente impulsionando outros jovens a lutarem mais pelos seus direitos – o

que ocorreu em Portugal poucos anos depois. 40 O Massacre de Wiryamu ocorreu em Moçambique em dezembro de 1972, quando uma tropa portuguesa

matou em torno de quatrocentas pessoas de algumas aldeias, inclusive mulheres e crianças. O governo

português nunca confirmou os fatos.

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um evento em que combatentes e ex-combatentes se reuniram em favor da defesa do

espaço Ultramarino – expondo que jamais trairiam a pátria. No Congresso dos

Combatentes do Ultramar pouco mais de quatrocentos oficiais reagiram às medidas e

promoveram um abaixo-assinado contra o evento e a guerra, iniciando a partir daí a

grande derrocada do governo: no mês seguinte, devido ao escasso número de capitães

para combater na guerra do Ultramar (muitos se eximiam dos deveres, talvez por serem

mais politizados e informados, levando a uma defasagem no número de combatentes), o

governo se viu obrigado a tomar medidas controversas que geraram discordância por

parte das Forças Armadas: para lutar na frente de batalha, não seria mais necessário um

curso de quatro anos como de costume, e sim, um curso intensivo de apenas seis meses,

para acelerar a chegada de mais combatentes. Com protestos e reações contrárias a essa

medida, o governo foi obrigado a revogar a lei, mas os oficiais continuaram com suas

manifestações contrárias ao regime, iniciando, assim, o Movimento Capitães (MC) –

conhecido posteriormente por Movimento Capitães de Abril. Muitos desses capitães já

estariam insatisfeitos com o governo de Marcello Caetano, e tais medidas foram o ápice

para aumentar o desequilíbrio entre as Forças Armadas e o governo. Foi esse movimento

que alterou a história portuguesa, sendo algo particular: “A grande singularidade no caso

português foi precisamente a intervenção democratizante do Movimento dos Capitães,

rara senão única neste século, e que estava longe de ser previsível, [...]” (PINTO, 1999,

p.20241)

A partir desses episódios, os capitães passaram a se reunir eventualmente para

discutir possíveis negociações para tomada de poder e com o tempo, o general António

Spínola – que já havia trabalhado nas províncias ultramarinas – também se uniu ao

movimento como um dos chefes das Forças Armadas, juntamente com o general Costa

Gomes, que era o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas.

Em fevereiro de 1974, Spínola lança o livro “Portugal e o Futuro”, obra em que

discute a fase de Portugal e o que deveria ser feito para salvá-lo dos problemas políticos

ocorridos, gerando uma grande repercussão, aumentando a confiança entre o Movimento

dos Capitães e o general Spínola, visto que suas ideias eram convergentes. Nesse livro,

ele explica o retrocesso do país com a continuação da guerra:

Reduzir a questão ultramarina a posições extremas, e apresentar ao País

o dilema da eternização da guerra ou da traição do passado, é atitude

que não conduz com o futuro de grandeza e unidade que legitimamente

41 Disponível online em: http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/biblioteca-digital-camoes/revistas-e-

periodicos/revista-camoes/revista-no05-25-de-abril-a-revolucao-dos-cravos.html

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aspiramos. [...] Quanta divisão estéril, quanta energia despendida,

quanta ameaça velada envolvem esses dois extremos, qualquer deles

em risco de resvalar para consequências incontroláveis! E ainda quanto

sangue ingloriamente derramado, quanta angústia e quanta perniciosa

demora na tomada do verdadeiro caminho resultam da irredutabilidade

das duas teses! (SPINOLA, 1974, p. 12, 13)

O movimento dos Capitães cresceu e seus planos foram minuciosa e secretamente

programados. Em março de 1974, surge uma data prevista para o Golpe Militar, para o

fim de abril. Assim, na manhã do dia 24, os militares foram avisados pelo capitão

Salgueiro Maia (um dos integrantes do MC) sobre o golpe que sucederia naquela noite,

logo após duas canções que seriam tocadas na rádio Renascença: Ao som da primeira

canção-senha, “E depois do Adeus” de Paulo Carvalho, em torno das 23h, os militares se

dirigiram ao quartel para se organizarem.

Apenas após a segunda canção, “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso que foi

tocada à 0h20 no programa Limite (com vinte minutos de atraso, para o desespero dos

militares), é que iniciaria a marcha em direção ao Largo do Carmo. Sanches Osório, um

dos seis oficiais que planejaram o Golpe Militar, explica a escolha dessa canção por Otelo

Saraiva de Carvalho: “A frase da canção ‘o povo é quem mais ordena’ era interpretada

pelos oficiais democráticos como uma palavra de ordem para uma democracia em que a

vontade do Povo fosse respeitada” (SANCHES OSÓRIO, 1975, p. 37, 38). Com as

operações militares em curso, deu-se a Revolução de 25 de Abril, também conhecida por

Revolução dos Cravos42. Com o povo nas ruas – logo após o discurso nas rádios e pela

TV, Marcello Caetano e sua equipe foram depostos do governo, dando início, assim, ao

período democrático na política portuguesa.

1.4 PROCESSO REVOLUCIONÁRIO EM CURSO (PREC)

Após a Revolução dos Cravos, iniciou-se uma fase de muita instabilidade no país

em relação à natureza do governo que sucederia o longo período ditatorial, conhecida

como Processo Revolucionário em Curso (PREC). Os primeiros dias democráticos foram

marcados por movimentação dos trabalhadores, formação de sindicatos e comícios, e

também greves de trabalhadores e estudantes, uma vez que manifestações não eram mais

proibidas (MATTOSO, 1994). Essa fase foi de incertezas por parte do cidadão português,

42 A revolução também ficou conhecida como Revolução dos Cravos devido a uma mobilização

populacional ao colocar os cravos nos canos das armas dos capitães. Tal gesto simbolizaria uma maneira

pacífica de resolver as coisas – como de fato o foi.

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que passou a reivindicar direitos e salários mais dignos, empregos, melhores condições

de vida, enfim, todas as exigências que a população não tinha recursos para fazer

anteriormente. Em 17 de maio de 1974, António Spínola, escolhido pelos oficiais logo

após a Revolução, assumiu a presidência provisoriamente, instaurando o I Governo

Provisório após a queda da ditadura militar. O Ministro da Coordenação Interterritorial,

o dr. António de Almeida Santos, prevendo uma fase de difícil controle por parte do

governo, procura acalmar a população, especialmente os portugueses do Ultramar, que

esperavam uma solução para a guerra que, segundo ele foi “teimosamente mantida, contra

as constantes reivindicações do povo português” (ALMEIDA, 1974, p. 8), e ainda

afirmou a expectativa de que a solução e a liberdade total das colônias acontecessem

rapidamente.

A insatisfação e a incerteza populares eram amplamente vistas nas pessoas no

decorrer do PREC:

[...] mas passadas quatro semanas sobre o 25 de Abril, começo a

perguntar e não obtenho resposta, se isto será a Liberdade que o povo

português sonhava. Isto de libertarem-se terroristas sem pátria e

transformá-los em Heróis Nacionais. [...] Poderá o país aguentar a crise

económica que dia a dia se vai desenhando diante de todos, com a

paralisação da Indústria e do Comércio, com o aumento de desemprego,

[...]?. Que Deus guarde Portugal!43

Com a possibilidade de se formar partidos, muitas foram as tendências existentes

nessas fases, ocasionando diversos pequenos governos provisórios:

Tabela 3 – Governos Provisórios PREC

Governo

Provisório

Primeiro-Ministro Presidente Início do

Governo

I Palma Carlos António de Spínola 15/05/1974

II Vasco Gonçalves António de Spínola 18/07/1974

III Vasco Gonçalves Francisco da Costa Gomes 01/10/1974

IV Vasco Gonçalves Francisco da Costa Gomes 12/03/1975

43 Discurso proferido por Galvão de Melo na RTP no dia 27 de maio de 1974. Disponível em:

http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=mfa8

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V Vasco Gonçalves Francisco da Costa Gomes 08/08/1975

VI Pinheiro de Azevedo Francisco da Costa Gomes 15/08/1975

Com exceção da Guiné (que se tornou independente ainda em 1973), essa fase

também foi marcada pela independência tardia dos países africanos, na ordem em que

segue: Moçambique (junho de 1975), Cabo Verde (julho de 1975), São Tomé e Príncipe

(julho de 1975), Angola (novembro de 1975) e ainda, na Ásia, com Timor-Leste

(novembro de 1975).

Apenas dois anos após a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1976, uma

Nova Constituição foi aprovada e em junho desse mesmo ano, Ramalho Eanes foi o

primeiro Presidente da República democraticamente eleito, recomeçando assim, um

período de maior estabilidade na política portuguesa.

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Figura 12 - Comemoração no Aeroporto de Lisboa em abril de 1974 (LETRIA, 2013)

“Há sempre alguém que semeia

Canções no Vento que passa”

(Manuel Alegre /Adriano Correia de Oliveira)

CAPÍTULO 2

PERSPECTIVAS DA MEMÓRIA DO 25 DE ABRIL:

A HISTÓRIA NA VOZ DE QUEM A VIVEU

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2. PERSPECTIVAS DA MEMÓRIA DO 25 DE ABRIL:

A HISTÓRIA NA VOZ DE QUEM A VIVEU

2.1 MEMÓRIA

De uma maneira ampla, classifica-se a memória como lembranças do passado, que

continuam vivas no pensamento de cada um, e a capacidade de armazenar dados

pertencentes às histórias vividas ou impressões sentidas de cada uma delas. A memória,

como função psíquica, “nasce” da história e da antropologia, e tem o papel de conservar

informações e atualizar impressões passadas do indivíduo de acordo com suas

experiências posteriores (LE GOFF, 1984). Os estudos de memória abrangem diversas

outras áreas, como a psicologia, a neurofisiologia, a biologia e também a psiquiatria,

sendo, por isso, classificada como pluridisciplinar.

Le Goff (1984), em seu amplo estudo acerca da memória, também aponta para a

questão da recordação e do esquecimento, podendo a memória estar reprimida ou

conservada, dependendo do tempo, da história, dos interesses pessoais e da manipulação

exercida, ressaltada por psicólogos e psicanalistas, que

[...] quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento

[...], nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a

afectividade, o desejo, a inibição, a censura, exercem sobre a memória

individual. Do mesmo modo, a memória colectiva foi posta em jogo de

forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se

senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes

preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e

dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da

história são reveladores desses mecanismos de manipulação da

memória colectiva. O estudo da memória social é um dos meios

fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história,

relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em

transbordamento” (p 13).

Nesta pesquisa, a memória é entendida pelo viés da história, e discutindo, em

especial, a memória coletiva. Como a presente pesquisa se apoia nas entrevistas

individuais cujas memórias de cada um são sempre relatadas por meio de grupos e fazem

parte de um momento histórico de todo um país, estas memórias e lembranças narradas

são sempre coletivas. Desta forma, baseamo-nos nos conceitos de memória individual e

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coletiva descritas especialmente por Le Goff (1996), Ricoeur (2008) e, principalmente

por Halbwachs (2006).

2.1.1 Memória Individual e Coletiva

Para falar de memória, Ricoeur (2008) recapitula os sentidos de memória vistos

em Santo Agostinho, John Locke, Husserl e Halbwachs. Dos três primeiros recupera com

um olhar interior sobre a memória e a lembrança contidas em nós mesmos, e de

Halbwachs destaca a memória com um olhar mais exterior, por meio da sociedade e do

grupo em que o indivíduo vive. Conforme Santo Agostinho, Ricoeur (2008) diz que “a

memória é passado, e esse passado é o de minhas impressões; nesse sentido, esse passado

é meu passado”. (p. 107). A memória tem um caráter mais individual, não podendo ser

compartilhada com outros: “Minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir

as lembranças de um para a memória do outro. Enquanto minha, a memória é um modelo

de minhadade, de possessão privada, para todas as experiências vivenciadas pelo sujeito”

(p. 107). Segundo Locke, nos estudos de identidade pessoal e consciência, a memória, é

a condição necessária para a identidade pessoal, sendo esta construída por meio da

memória, que não é diferente de ‘lembranças’. Em Husserl, há uma aproximação com

Santo Agostinho quanto às questões da interioridade, memória e tempo.

Em contrapartida, assinala Ricoeur (2008), com um olhar quase totalmente

exterior, Halbwachs destaca a memória como sendo predominantemente um ato coletivo,

algo que o indivíduo depende de outros para que seja realmente ‘concretizado’. Segundo

ele, todo indivíduo nasce de um grupo social, cresce e aprende com base no contato com

os outros, e, por esta razão, todas as suas memórias e lembranças derivam da convivência

com o próximo e, assim, todas as suas experiências coletivas são acrescentadas à sua

vivência individual. Portanto, para Halbwachs, as experiências coletivas têm uma ligação

mais forte nas lembranças de cada um, sendo elas as que mais predominam na memória

do indivíduo. Não há lembranças individuais que não sejam de alguma forma

compartilhada com o outro, ou originado do convívio com o outro. Ao mesmo tempo, há

memórias que, ao serem compartilhadas com o outro, elas se diferenciam umas das outras,

porque cada um tem sua maneira de pensar, sua individualidade e personalidade. Assim,

as impressões de um indivíduo podem coincidir ou não com o outro, podendo ser

completados com as suas próprias ideias, e às vezes até confundi-las. Como diz

Halbwachs (2006),

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admitamos, contudo que as lembranças pudessem se organizar de duas

maneiras: tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que

as vê de seu ponto de vista, como se distribuindo dentro de uma

sociedade grande ou pequena, da qual são imagens parciais. Portanto,

existiriam memórias individuais e por assim dizer, memórias coletivas.

Em outras palavras o indivíduo participaria de dois tipos de memórias.

(p. 71)

Quando uma pessoa precisa relembrar o seu passado, geralmente ela recorre às

lembranças de outras pessoas, transferindo as ideias de outros para o seu contexto. Mas

ele ressalta que, dessa maneira, as memórias dos outros não costumam se confundir com

a memória individual, visto que é normal que nos lembremos de nossas próprias

sensações e ideias quando presenciamos certos momentos, mas com pontos de vista

diferentes dos demais.

Nossas impressões e lembranças acerca de um evento ocorrido no passado, ou

local em que estivemos, podem ser formadas por diferentes testemunhos (além do ‘eu’)

ou apenas por nós mesmos. O primeiro testemunho será sempre o “nosso” e à medida que

crescemos, envelhecemos e passamos por diversas experiências, as nossas próprias

percepções acerca de algo antigo podem sofrer modificações, e nossas lembranças de

adaptam ao presente, como se tivessem vários observadores. A relação entre o primeiro

testemunho, o “eu” e o outro testemunho deverá ser sempre “harmonioso”, visto que

foram parte de um mesmo acontecimento, e pertencem ao mesmo grupo, e entende-se que

as ideias e as recordações devam ser comuns. Mesmo que haja memórias únicas de um

indivíduo, nossas lembranças nunca são individuais pelo fato de estarmos inseridos em

um grupo, em uma sociedade, pois de acordo com Halbwachs, “Nossas lembranças

permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em

que somente nós estivemos envolvidos, e objetos que somente nós vimos”

(HALBWACHS, 2006, p. 30). Isso ocorre porque, segundo ele, mesmo que os outros não

estejam fisicamente presentes, eles estão em nossa memória e fazem parte de nós e de

nosso convívio. Assim há uma relação entre a memória individual e a coletiva, pois não

é possível o indivíduo se recordar de lembranças de um grupo se tais lembranças não se

identificam. Halbwachs afirma:

Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não

basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que

ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que

existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a

lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma

base comum. (HALBWACHS, 2006, p. 39)

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Como mencionando por Halbwachs (2006), o indivíduo participa dos dois tipos

de memória, pois a memória é uma combinação das recordações de diferentes grupos dos

quais o indivíduo faz parte, seja da família, do trabalho, da escola, etc., pois o

“funcionamento da memória individual não é possível sem esses dois instrumentos que

são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas que toma emprestado de

seu ambiente.” (HALBWACHS, 2006, p. 72).

Ao mesmo tempo em que as memórias individual e coletiva estão sempre

partilhadas, há sempre características individuais e peculiares nas lembranças de cada um,

que permite que o indivíduo não se descaracterize perante um grupo, trazendo

informações e particularidades que só pertencem a ele.

A memória escrita nasceu da necessidade de se registrarem fatos orais e de se

compartilharem histórias ocorridas com um grupo ou em comunidades com o objetivo de

não se perder com o passar dos anos. Para Pierre Nora, retomado por Le Goff, a memória

coletiva é o “que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do

passado” (LE GOFF, 1996, p. 472).

A memória coletiva desempenha um papel profundamente importante na evolução

das sociedades na questão histórica, quanto ao aparecimento de arquivos, de documentos,

monumentos, e em todo o trabalho histórico que resulta dessa memória (LE GOFF, 1996).

Histórias de poder, de lutas pela vida, de sobrevivência são vistas e relembradas a partir

do trabalho da sociedade. “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar

identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos

indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 1996, p. 476).

Halbwachs (2006) destaca a memória em indivíduos inseridos em “grupos de

referência”, ou seja, tipos de grupos os quais os indivíduos faziam parte em determinada

época de suas vidas. Tais grupos podem ser divididos por afinidade, identificação,

trabalho, etc. Com a inserção em tais grupos, as memórias foram construídas em conjunto,

sendo um trabalho tanto do sujeito como coletivo. Dessa forma, esses pensamentos

podem ser compartilhados, construídos em conjunto, embora, como sujeitos individuais,

muitos pontos de vistas podem ser diferentes. Como nas palavras de Halbwachs (2006):

“se a nossa impressão pode se basear não apenas na nossa lembrança, mas também na de

outros, nossa confiança na exatidão de nossa recordação será maior, como se uma mesma

experiência fosse recomeçada, não apenas pela mesma pessoa, mas por muitas” (p. 30).

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Partindo da perspectiva das entrevistas realizadas, pode-se notar o quanto a

memória foi utilizada: as entrevistas se passaram mais de quarenta anos após a Revolução

de Abril, mas vale ressaltar que, para nenhum deles, os assuntos comentados durante as

arguições foram ditos pela primeira vez após tanto tempo. São assuntos que podem ser

corriqueiros para alguns e há outros que fizeram vários registros escritos acerca da

memória sobre o 25 de Abril. Ainda assim, não se pode confiar com precisão em registros

totalmente baseados na memória, pois ela pode ser falha, subjetiva e imprecisa. Como

acentua José Jorge Letria, um dos entrevistados, em uma de suas obras escritas

recentemente:

A memória, nesse exercício de expurgo e preservação, tornou-se

seletiva, o que não significa que o tempo a tenha mantido absolutamente

fiel. Mas a memória, não sendo um cão, não tem o dever de ser fiel.

Basta-lhe ser coerente e limpa, sem vocação para adulterar ou fantasiar.

(LETRIA, 2013, p. 15)

E ainda,

Não são memórias literárias, musicais ou jornalísticas. São, ao mesmo

tempo, muito mais e muito menos do que isso, por paradoxal que

pareça, pois quem tão intensamente viveu tantas coisas ao mesmo

tempo acaba sempre por omitir muito mais do que poderia revelar.

(LETRIA, 2013, p. 18)

A memória, para cada um deles, é a imagem que têm do passado, cada um à sua

maneira, sendo diferentes os pontos de vista e as perspectivas da realidade que enfrentam.

É na memória que guardam suas verdades, suas percepções e as histórias vividas de uma

forma diferente da que é contada pelos historiadores. Contudo, é preciso identificar em que

medida a memória pode ter sido afetada pelas ocorrências posteriores da vida de cada um,

ou, ainda, se o tempo pode ter apagado alguns detalhes sobre o passado. Traverso (2009)

assinala que “a memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos adquiridos

posteriormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, por experiências que se

sobrepõem à primeira e modificam a recordação.” (p. 23). A memória, ainda segundo

Traverso (2009), se caracteriza como algo que está em constante modificação, não sendo

nunca cristalizada. Ela pode ser definida como “visão do passado que é sempre filtrada

pelo presente”. Dessa forma, conclui-se que qualquer material, documento ou uma

autobiografia que se utilize apenas resquícios da memória para reconstruir um evento, uma

fase acontecida num passado distante ou recente, será afetado pelas ocorrências posteriores,

e estarão sujeitos a uma representação não totalmente fiel do que realmente aconteceu.

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O que ficou na memória, após tantos anos, ficou conservado por ser parte

importante de um acontecimento, e o que não está documentado por causa do

esquecimento, são detalhes, que, talvez, não tenham tanta importância de serem lembrados.

A memória, sendo seletiva, filtrou apenas as partes que, de alguma forma, foram

expressivas para a testemunha.

2.1.2 História e Memória

Se a memória perdura enquanto há existência, a história, para Halbwachs, é algo

que a memória é incapaz de alcançar, enquanto não há existência. Somos capazes de

guardar lembranças sobre o passado a partir do momento em que viemos à existência, e

faz parte da memória tudo o que pôde ser registrado e armazenado em nossas mentes pelo

fato de termos passado por aquelas situações. Tudo o que ocorreu anteriormente a este

período, faz parte da história:

se a condição necessária para que exista a memória é que o sujeito que

lembra, indivíduo ou grupo, tenha a sensação de que ela remonta a

lembranças de um movimento contínuo, como poderia a história ser

uma memória, se há uma interrupção entre a sociedade que lê essa

história e os grupos de testemunhas ou atores, outrora, de

acontecimentos que nela são relatados? (HALBWACHS, 2006, p.

101)

A história só existe da necessidade de se registrarem fatos ocorridos anteriormente à nossa

existência, ou seja, eventos que aconteceram durante um período em que a memória do

indivíduo já não é capaz de registrar, documentando fatos para que não se apaguem com

o passar dos anos e com o desaparecimento das gerações que viveram durante aquele

período. Ao mesmo tempo, Halbwachs aponta para a maneira como a história é escrita

pelos historiadores: a divisão de períodos como se uma era tivesse um começo, meio e

fim, deixando seus estudos fragmentados e dando a ideia de que cada período fosse

independente um do outro.

Assim como Halbwachs, Nora (1993) também distingue a ruptura entre memória

da história: ele reforça em suas obras que a memória é um fenômeno sempre atual,

absoluta, uma ligação vivida sempre no presente; enquanto a história é uma representação

do passado, uma delimitação do passado vivido e tem caráter relativo. A história trazia a

ideia de “rememoração”, “memorização”, e pode nascer da memória coletiva e a partir

dela, cria-se a história científica, sendo chamada de “revolução da memória”. A história

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vai se formando a partir dos inúmeros lugares de memória (podendo ser lugares

topográficos, monumentais, simbólicos ou funcionais), como arquivos, bibliotecas,

museus, arquitetura, comemorações e também a partir das experiências históricas.

Ao mesmo tempo, outras distinções claras sobre memória e história estão baseadas

na maneira como se reproduz algum acontecimento. Os historiadores, ao escrever a

história, baseiam-se em informações documentadas, encontradas em arquivos, em

museus, na ciência. Enquanto lê-se registros de José Jorge Letria (2013), por exemplo,

baseado numa história pessoal vivida, em que são relatadas as emoções sentidas em uma

época, há uma clara distinção ao ler o historiador Fernando Rosas, que se apropria de

pesquisas históricas e acadêmicas sobre a época, distanciando-se do que de fato foi vivido

por ele. Como explica Letria:

Não tive a intenção de escrever História, tarefa que cabe, por direito,

aos historiadores, e sim de produzir, com a inevitável componente de

afecto e com a subjetividade que o processo selectivo da memória

implica, um relato sobre aquilo que vi e que vivi sobre os sentimentos,

as emoções, as esperanças e os sonhos que marcaram, nessas horas, as

vidas de milhões de portugueses [...]. Espero que a memória me não

tenha traído naquilo que é verdadeiramente essencial [...].” (2013, p. 17,

18).

Nessa passagem, Letria faz a distinção entre escrever História e escrever relatos

sobre o que foi vivido na História. A história e a memória são uma elaboração do passado,

e ao escrever a história, os historiadores utilizam provas, evidências, relatos científicos e

documentos, com datas, nomes e desdobramentos da história para escrever,

cientificamente, sobre o que ocorreu em uma determinada época sobre certo assunto.

Nestes relatos, não se expressam emoções, sonhos, sentimentos de nenhuma figura

política ou alguém que tenha sido parte do acontecimento, por estarem foram do alcance

de um historiador, e ainda, fora do tempo do historiador, e precisam manter o

distanciamento e a imparcialidade requerida por ele para que, de certa forma, possa

mostrar credibilidade no seu trabalho. Quando os relatos são feitos por pessoas que foram

vítimas ou testemunhas de um importante acontecimento, são feitos por meio da memória,

e todas as emoções, as experiências e os sentimentos estão sendo mostrados, dando uma

ideia de proximidade com o leitor. Além disso, são relatos subjetivos, visto por uma

pessoa, mostrando apenas um lado da história, que talvez possa ser diferente de outros

que também participaram do referido acontecimento, trazendo, dessa forma, diferentes

emoções, experiências, pontos de vista referentes a um único assunto. É importante que

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o historiador leve em consideração os relatos de uma vítima ou testemunha, mas não deve

transformá-los numa perspectiva da escrita da História (TRAVERSO, 2009).

Ainda é muito difícil para um Historiador separar esses dois aspectos na hora de

escrever: “É normalmente muito difícil, para os historiadores que trabalham sobre fontes

orais, encontrar o equilíbrio justo entre empatia e distanciação e entre o reconhecimento

das singularidades e a perspectiva em geral” (p. 28). Para Catroga (2009), a memória tem

o objetivo de atestar a veracidade de que é narrado, enquanto a história é movida por uma

finalidade veritativa que precisa de comprovação para confirmar suas interpretações.

Nora (1993) atesta que a memória “é a vida”, é singular, subjetiva, e a história é objetiva

– pode ser ainda uma representação incompleta do passado; tem uma visão secular.

Traverso (2009), para ilustrar, mostra como uma pessoa, vítima de um campo de

concentração durante a Segunda Guerra Mundial, poderia descrever uma fotografia do

campo de Auschwitz. Nesta descrição, ela se lembrará do momento, da emoção, da

sensação, do medo, do cheiro, da fadiga, etc., e esses sentimentos estão fora do alcance

do historiador. Histórias que são contadas por vítimas e testemunhas tendem a ser

preenchidas por emoções e mostram o lado visto de acordo com a personagem da

narração. São essas emoções e sensações não vistas pela História que se podem perceber

nas entrevistas orais e nos relatos que José Jorge Letria, Sérgio Godinho, Francisco

Fanhais, Borges Coelho, Pedro Calafate e Fernando Rosas, que fazem parte desta

pesquisa.

2.2 PERSONALIDADES ENTREVISTADAS

Este item apresenta posições críticas e políticas de escritores, pesquisadores e

músicos entrevistados especificamente para esta pesquisa. No entanto, o material que se

comenta adiante também traz elementos extraídos de publicações (deles e de outrem)

produzidas com o intuito de divulgar seus olhares e opiniões diante daquele cenário

político vivenciado em Portugal na segunda metade do século XX.

Ao trabalhar apenas com a questão da memória, compreende-se a sua diferença

com a relação aos textos históricos, pois estes privilegiam informações documentadas e

baseadas predominantemente em pesquisas registradas em acervos e museus e seus textos

e procuram manter a imparcialidade e certo distanciamento, pois tem caráter unicamente

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informativo. Já os textos baseados na memória de personalidades que viveram um evento

histórico têm um caráter não somente informativo, mas também procuram mostrar um

lado que a história talvez não seja capaz de enxergar, carregado de emoções e

subjetividade. A leitura de autobiografias, diários, retratos de juventude, por exemplo,

permite ao leitor coletar informações mais palpáveis, cenários que ocorreram por detrás

dos acontecimentos e sentimentos que normalmente não são elencados pela História, pois

não cabe a ela a fazê-lo. Foram essas informações que levaram esta pesquisadora a buscar

informações que a História “oficial” não registrara.

Frente ao objetivo de selecionar canções que agitaram Portugal na década de 60 e

70, optou-se por entrevistar algumas personalidades conhecidas nesse ramo para não

cometer o equívoco de selecionar canções apenas por meio de levantamento daquelas

mais citadas pelo público em geral ou mais conhecidas por serem mais envolventes e

empolgantes.

As entrevistas mostraram-se adequadas não somente para a seleção das canções,

mas também para possibilitar o entendimento do universo vivido por eles durante aquela

fase, os momentos de tensão, de expectativa e de esperança que eles, talvez mais do que

outros que viveram nessa fase como espectador puderam experienciar. Vale ressaltar que

a ideia do vocábulo “personalidade”, contido no título, em muito tem a ver com a história

da revolução portuguesa. A palavra, derivada do vocábulo latino “persōna”, que tem

como definições máscara de teatro, personagem, função e carácter de uma pessoa,

poderia ser utilizada aqui nas palavras “personagem” ou “personalidade”. Como

“personagem” traz a forte ideia de um ator de teatro, e uma pessoa que desempenha um

papel que não é o da vida real, optou-se por utilizar “personalidade”, que além de também

ser um sinônimo de personagem, o dicionário da Academia Brasileira de Letras traz uma

definição que abrange perfeitamente o contexto do capítulo: “conjunto de caracteres de

cada pessoa que a distinguem dos outros; pessoa que se destaca na sociedade. Os músicos

revolucionários não foram meros personagens ou “coadjuvantes” da revolução ocorrida

em 1974, porque se pode dizer que devido a eles, o golpe militar ocorreu da maneira que

foi. A música foi o estopim, a protagonista, e, além disso, muitos “despertaram” para as

questões políticas por meio dela. Talvez não somente isto, pois mesmo que algumas

pessoas já tivessem uma noção da política ditatorial salazarista, faltava-lhes coragem para

denunciar ou se opor ao governo opressor, de modo que a existência desses cantores foi

fundamental para suprir essa necessidade que sentiam de ser representados por alguém.

O leitor encontra, a seguir, dados concretos, vivos e carregados de emoções dos

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entrevistados acerca de sua vivência do 25 de Abril. Encontram-se reunidas fotos e

documentação retiradas de memoriais e de acervos particulares, assim como informações

encontradas em obras várias, além das informações contidas nas entrevistas realizadas.

As entrevistas foram realizadas entre novembro de 2014 e fevereiro de 2015.

Foram gravadas (câmera digital, com suporte de um tablet) pessoalmente, garantindo um

contato mais natural e próximo com o entrevistado. As personalidades entrevistadas

foram: os cantores José Jorge Letria, Francisco Fanhais, Sérgio Godinho, e os professores

António Borges Coelho, Pedro Calafate e Fernando Rosas. Realizaram-se todas em

Lisboa: nos escritórios de trabalho, em suas residências, em associações ou escolas. A

duração variou conforme a disponibilidade de cada um, entre 20 e 45 minutos. Todas

transcorreram com normalidade, com exceção da última, quando ocorreram problemas

técnicos durante a gravação, sendo gravados apenas trechos com poucos minutos, e dessa

forma, apresenta alguns cortes no DVD que está disponível nos anexos do trabalho. Vale

destacar, também, que relativamente à gravação da entrevista com Francisco Fanhais, há

informações ou perguntas que não transcorreram na mesma ordem das demais, pelo fato

de, informalmente, suas argumentações terem começado antes do início da entrevista

formal, logo na entrada da Associação José Afonso, onde fomos apresentados. No

entanto, destaca-se que, de nenhuma forma, tais percalços reduzem a qualidade do

trabalho e das informações recebidas e aqui prescritas.

A escolha dos entrevistados deveu-se primeiramente ao papel desempenhado por

cada um deles naquela época, sendo todos (com exceção do professor Pedro Calafate),

procurados pela PIDE, e às vezes, presos devido à alguma atividade irregular que ia contra

as imposições do governo ditatorial. Dentre os entrevistados, quatro deles (José Jorge

Letria, Francisco Fanhais, Sérgio Godinho e Pedro Calafate) eram cantores que se

valeram de canções como forma de expressar o seu descontentamento face às dificuldades

e situações vividas naquele momento. Desse modo, esperavam que, por meio do canto,

pudessem levar o restante da população a compreender e a apoiá-los nessa trajetória

arriscada que viviam. Outros dois que concederam a entrevista são atualmente

historiadores e professores universitários bem reconhecidos em Portugal, com livros e

inúmeras pesquisas sobre a história do país, mas que durante a fase ditatorial foram presos

pela PIDE por atividades irregulares.

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2.2.1 José Jorge Letria

Figura 13 - José Jorge Letria

À esquerda, foto retirada da contracapa de sua obra lançada em 2013; à direita,

imagem da entrevista concedida à pesquisadora em seu escritório na Sociedade

Portuguesa de Autores, em Lisboa.

José Jorge Letria foi o primeiro dos entrevistados. Atualmente, exerce as funções

de jornalista, escritor e ocupa a presidência da Sociedade Portuguesa de Autores. Nasceu

em Cascais, em 1951 e foi na adolescência que começou a mostrar o seu gosto pela

música, ao tocar sua guitarra elétrica e a cantar canções prestigiadas de grupos como os

Beatles, Bee Gees, Birds, etc. Após entrar na universidade, em 1968 – fez primeiramente

o curso de direito e depois mudou-se para Letras – e com as influências do meio

acadêmico, passou a cantar canções que relatassem sua insatisfação popular em relação

ao governo. Influenciado principalmente por amigos, que também mostravam seu

descontentamento perante o cenário político, rapidamente entrou para o grupo dos

cantores de intervenção, criando amizades com outros músicos, entre eles Zeca Afonso,

o mais prestigiado cantor revolucionário português, autor de “Grândola, Vila Morena”,

morto em 1987. Gravou o seu primeiro disco em 1969, e uma das músicas gravadas,

“História de José sem Esperança”, reflete um pouco da sua história pessoal da época,

contando as dificuldades que enfrentou após a perda do pai, aos dezesseis anos; a entrada

da universidade; a necessidade de sustentar a casa sendo filho único, e também sobre a

possibilidade de entrar na guerra e deixar sua mãe para trás. Segundo uma entrevista

realizada por Eduardo Raposo (2014), em uma de suas obras, Letria diz que essa sua

canção era a fase inicial de sua jornada como militante e de sua posição contra a guerra.

Essa consciência política que ele adquiriu de uma maneira tão forte deveu-se ao fato de

sentir a necessidade de intervir com os colegas da universidade, sendo a maioria mais

velha que ele, e que já estava engajado nas lutas políticas há mais tempo (RAPOSO,

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2014). Ele, como aluno, tinha grande interesse pelas artes, literatura, e já gostava de

escrever poemas. No Ensino Secundário (Ensino Médio), percebeu que a liberdade de

expressão era bem restrita:

Portanto a minha percepção individual como estudante e sobretudo

como estudante, que vocacionalmente estava muito virado para as artes,

tinha uma predileção muito grande pela literatura, pela reflexão ligada

a história, essas coisas mais ligadas à criatividade e à afetividade e

criação e, portanto, fui me apercebendo que não havia condições de

liberdade de livre expansão e expressão. [...] (LETRIA, 201444)

Fica claro que aqueles que queriam denunciar a situação política do país por meio

da escrita, tinham de fazê-lo de uma maneira muito sutil e criativa:

Pois bem, senti isso claramente, e no liceu, no ensino secundário, eu já

escrevia poemas na altura, e senti que as pessoas embora num caso ou

no outro estimulassem a criação, tinha muito medo em assumir, este

incentivo, este respeito, essa admiração que tinham pelo ato criador

porque o ato criador é que te dava a própria liberdade ou a falta de

liberdade, o ato criador era em si mesmo, uma denúncia da falta da

liberdade e portanto eles no fundo iam continuar a escrever, mas de

forma discreta, serena, não te expunhas muito. (Idem)

A partir de uma visão mais politizada, utilizou seu talento musical, poético e

literário para denunciar o cenário político em questão, especialmente os elementos que se

agravaram com a permanência da ditadura no poder, entre os quais podemos destacar “a

guerra, a falta de liberdade e os fluxos migratórios” (entrevista). A falta de informação

no campo da literatura que chegava ao seu país foi bem lembrada por ele, além também

das notícias que, muitas vezes não chegavam às pessoas:

fui-me deixando enquadrar através da privação de liberdade, e da

privação da informação, eu queria saber mais coisas e não tinha quem

me dissesse, queria, fazer perguntas e não tinha a quem as fazer, eu

queria ter acesso a mais livros, e não os podia comprar [...] (idem)

Com essa restrição, ele descreve que se tornou um “jovem revoltado”, e essa fase

coincide com a morte de seu pai, o que fez com que ele amadurecesse mais rapidamente

e trabalhasse desde cedo, para suprir as necessidades da casa. Influenciado por seus

amigos, utilizou a música para expor seu posicionamento político. Mesmo sabendo dos

riscos que corria, preferiu arriscar-se a ter uma vida amordaçada pela política:

E um dia, o meu avô paterno [...] advertiu-me:‘Tem cuidado com a

política, filho, nunca te metas nisso, porque ainda te podes desgraçar e

à tua família’. [...] Era a mentalidade de ‘a nossa política é o trabalho’,

44 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 27 de novembro de 2014 e o áudio encontra-se disponível em

um DVD ao final deste trabalho.

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do ‘comer e calar’, do ‘atravessar a rua de chapéu na mão’ para

cumprimentar o superior hierárquico ou o tipo importante da Legião

Portuguesa. Tudo isso me revoltava e enojava, e sempre considerei a

passividade cúmplice uma coisa mais repugnante que o próprio

activismo de direita para perpetuar o regime. Ao menos esses mexiam-

se, tomavam posição, faziam alguma coisa, enquanto os outros se

calavam e agachavam, fazendo-se de mortos, à espera que ninguém

reparasse neles e os deixassem ir às suas vidinhas, tão caricaturadas, tão

sacudidas pela ironia cáustica do grande Alexandre O’Neill. (LETRIA,

2013, p. 32)

Havia outras pessoas que elogiavam o trabalho desses cantores, mas também

advertiam, lembrando os perigos que enfrentavam: “é bom ouvi-los e saber que vocês

existem, mas nem sabem o risco que estão a correr”. (LETRIA, 2013, p. 52)

Letria, como também outros entrevistados (e muitos jovens militantes da época),

teve como grande impulso para uma tomada de consciência política o início da Guerra

Colonial. Com a ida dos jovens à guerra, muitos deles mostravam-se contra as medidas

do governo e para que pudessem evitar a ida à guerra, resolveram sair de Portugal ou

tentar encontrar saídas para escapar da convocação para a guerra. Letria (2013) trata desse

episódio tanto em suas publicações, quanto na entrevista:

A partida de alguns amigos mais velhos para a guerra era sempre um

motivo de apreensão e angústia para namoradas, famílias e colegas do

liceu. Alguns não regressaram, ou regressaram com marcas

indisfarçáveis do horror vivido e as ocultas do horror testemunhado, a

que depois começou a chamar-se “stress pós-traumático de guerra” (p.

38)

[...]eu tinha 15 e alguns amigos tinham 17, 18 anos, foram fazer o

serviço militar, e em dois ou três casos, eu tive um conhecimento

prático, direto da morte de um e ferimentos de outros dois, o que é

complicado [...]. (LETRIA, 2014)

Ele, como não concordava, tampouco apoiava a Guerra Colonial, dizendo ser uma

“guerra sem futuro” e que não tinha “razões para permanecer”, faria de tudo para não ter

de lutar:

E ai de quem se atrevesse a dizer perto de mim que era a integridade da

pátria que estava em causa e que era em África que devia ser defendida,

se preciso fosse com o sacrifício da própria vida. Nunca o medo me fez

virar a cara ao perigo, mas naquela guerra não haviam de me apanhar,

porque não era minha, porque a minha pátria não estava ali e não me

revia, sem tradições coloniais na família, nos interesses, em muitos

casos humanos e respeitáveis, de quem lá vivia. (2013, p. 38)

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Mostrava-se bastante comovido com os seus amigos que partiam para guerra e

voltavam com marcas ou sequelas que jamais cicatrizariam: “Perdi amigos e vi outros

regressarem estropiados, fingindo não me conhecer para não terem de assumir a dor do

que haviam perdido, olhos, braços, pernas, a virilidade, o direito ao sonho” (2013, p. 38).

Frente ao horizonte ameaçador e onipresente que ameaçava os jovens da época,

Letria tinha duas soluções para evitar ser convocado para a guerra: o adiamento escolar e

o requerimento invocando o amparo da mãe, já que era filho único de uma mãe viúva e

doméstica, ou ainda, a emigração, caminho tomado por muitos jovens da época, como

veremos nos casos do Padre Francisco Fanhais e Sérgio Godinho, por exemplo.

O grande impulso na sua carreira de músico, não somente para Letria, mas

também para outros jovens cantores como Francisco Fanhais, José Barata-Moura e

Manuel Freire, foi a participação deles no programa de televisão Zip-Zip, em 1969, dando

a eles oportunidade de ampliar seu público além do meio acadêmico, espaço em que já

eram conhecidos. O programa foi um sucesso absoluto, batendo os recordes de audiência,

e tornou conhecidos muitos dos cantores e autores que ainda não existiam para o público

em geral.

Letria também começou a trabalhar na área de jornalismo, começando pelo Diário

de Lisboa (1970) e mais tarde, como redator do República (1972), e foi a partir dessa fase

que começou a ter problemas com a PIDE, mas não se incomodava com o que podia

acontecer:

Fui vivendo. E vivendo e fazendo tudo aquilo que eu no dia a dia o

momento me empunhou. E, portanto, se eu achava que devia pegar

minha viola e ir cantar com Zeca Afonso, ia; se eu achava que cantar

[...] e dizer coisas de revoltados e revoltantes para os outros sobre as

condições políticas, sociais e econômicas do país, eu dizia, e como era

muito jovem e bastante irresponsável eu não ponderava os riscos que

corria. (LETRIA, 2014)

Quando em Paris pela primeira vez, em 1971, para gravar um disco com José

Mário Branco, pôde experimentar o que seria viver sem censura e ter acesso aos mais

variados títulos de livros e filmes que não eram circulados em Portugal:

A minha primeira visita a Paris, ido de uma Lisboa onde a oferta cultural

era parca e muito limitada pela Censura e onde o medo nos invadia o

quotidiano e nos fazia desconfiar de cada rosto desconhecido no café

de todos os dias, foi arrebatadora por tudo o que me proporcionou e

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revelou. Senti uma verdadeira volúpia ao percorrer as livrarias do

Quartier-Latin, o mesmo por onde andara e escrevera António Nobre,

proclamando a independência da sua Lusitânia em pleno Bairro Latino.

Livrarias como a Joie de Lire, ou salas de cinema onde vi um tocante

filme húngaro a preto e branco de Károly Makk, intitulado L’Amour, e

outros que seria fastidioso enumerar, deixaram-me nos olhos e nos

ouvidos a poderosa sensação de poder saborear a liberdade, sem

receios, sem apreensões, sem ter de olhar duas vezes antes de falar. [...]

Paris para mim era uma festa, uma festa de luz, de cor e de sonho

cumprido para quem deixara para trás uma pátria silenciada e

estrangulada pelas tenazes de um medo de décadas. Ali senti-me livre

e em contacto com uma vida cultural que nunca antes experimentara.

(LETRIA, 2013, p, 95)

Figura 14 – Disco: Até ao Pescoço

Foto do disco gravado na França, com José Mário Branco.

Fonte: Letria, 2013

Essa visita a Paris deixou o jornalista com um desejo de poder viver isso em

Portugal, sentindo uma felicidade jamais vivenciada em seu país. Decidiu que, caso fosse

chamado para a guerra, fugiria para Paris, pois sabia que lá poderia viver com mais

tranquilidade, mesmo sabendo da possibilidade de não poder voltar ao seu país enquanto

durasse a ditadura.

A partir de 1971, os dias que antecediam o 1º de maio eram sempre marcados por

prisões da PIDE e, por isso, muitos cantores evitavam estar em casa por volta dessa data

e com isso, desviava dos possíveis agentes policiais:

Sobretudo a partir de 1971, quando o 1º de maio se aproximava, eu

tentava rumar a outros portos mais seguros, para evitar que me

apanhassem em casa, no sossego do sono solto, ou então em estado

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vigil, por temer uma penosa surpresa. O medo existia, era real, quase

palpável, tinha rosto, forma e cheiro e continuo a sentir-me indignado

quando leio análises historiográficas desse tempo que apontam para um

totalitarismo brando, para uma ditadura suave, para um fascismo que

nem fascismo terá sido, mas que era cruel e violento, ao ponto de

assassinar José Dias Coelho, Catarina Eufémia ou José Ribeiro dos

Santos, cujo funeral, num final de manhã chuvoso, no cemitério da

Ajuda, em 1972, constituiu uma intensa e contida manifestação de pesar

e revolta dos colectivos. (2013, p. 52)

O primeiro livro de Letria, A Arte de Armar, publicado em 1973, enquanto

trabalhava no jornal República¸ recebeu ótimas críticas vindas, inclusive, de Zeca Afonso,

que a considerou como “poesia a sério”, deixando-o bastante orgulhoso de seu primeiro

trabalho como autor de livro.

Figura 15 - Capa do Livro “A Arte de Armar”

Capa de seu primeiro livro, retirado da obra “E tudo era Possível” (2013)

Logo após o espetáculo no Coliseu no fim de março de 1974 (há um subitem com

mais informações detalhadas sobre esse evento, devido à sua grande importância para os

músicos), começam os sigilosos preparativos para o 25 de Abril, e Letria, era um dos

poucos que tomaram conhecimento desse dia, em torno de duas semanas antes, quando

um amigo, Álvaro Guerra, lhe contaste os detalhes: “Está tudo em marcha. Tenho a

incumbência de criar um grupo de civis que possam ajudar os militares nas estações de

rádio, a escolher a canção adequada ou mesmo a escrever textos. Conto contigo”. (2013,

p.155). Para Letria, foi uma honra e também um peso guardar esse segredo, pois como

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ele mesmo registrou, “estar por dentro do que vai acontecer, pelo menos nos seus aspectos

mais genéricos, é algo que todos desejam, mas poucos suportam a tensão da verdade que

não se pode partilhar nem confessar”. (1999, p. 64). Para ele, saber o que estava prestes

a acontecer, nesse caso seria algo como saber antecipadamente o dia e a hora de um

terremoto, atentado, ou acidente ferroviário (1999). Para a noite de 24 de abril, uma das

canções escolhidas como senha fazia parte do disco Cantigas do Maio, de Zeca Afonso,

e esse disco na rádio estava inacessível, já com os cortes da censura e trancado em um

armário. Dessa forma, José Letria emprestou o dele para que pudesse ser tocado naquela

noite.

Letria relembra a importância da música para o golpe militar: “É de uma

importância fundamental, aliás acho que a revolução portuguesa é historicamente aquela

que mais vai ser influenciada pela música. Todo o processo revolucionário tem uma

influência muito forte da música” (2014). Ele destaca que a música foi importante

principalmente para criar uma consciência coletiva que fortaleceu a união do povo, “tudo

o que nós queríamos estava escrito nas canções” (2014). Ele acredita que até o número

de militares que se conscientizaram foi graças à música (idem). Para o escritor, as canções

mais marcantes foram A Menina dos Olhos Tristes (pois “mexia diretamente com todos

eles”), e Vampiros. Ele também mencionou Trova do Vento Que Passa, por ter sido muito

relevante entre os universitários, e ainda, havia canções políticas da França, Espanha e

Brasil que tiveram uma boa repercussão entre eles; e a referência brasileira foi a canção

Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. Segundo ele, esta canção

era “bonita, simples, e com uma capacidade de mobilização extraordinária” (LETRIA,

2014).

Na manhã do dia 24, Letria ainda recorda temer o toque da campainha, como

podia acontecer sempre nos fins de abril, para prender os militantes que se indignavam

publicamente contra o governo, mas o toque não ocorreu, e ele continuou o dia como se

nada estivesse para ocorrer. Em outros de seus registros, ele revela:

Onde eu estava nessa noite? Estava em todas as esquinas à espera de

uma canção, à espera de uma voz que fosse o rastilho da indignação de

outras vozes. Estava apenas à espera, com a paciência dos gatos

seguindo com os olhos a trajectória diurna do voo dos pássaros. Medo?

Não, não tinha medo. Não tinha idade para ter medo. (1999, p. 21)

Letria se recorda desse dia tão sonhado por todos os jovens e o descreve

detalhadamente em suas obras e entrevistas, não se esquecendo de suas emoções,

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angústias e expectativas em relação ao futuro português. Ele se recorda de pormenores,

como ter ido ao cinema com sua esposa e um casal de amigos, mas confessa que só se

lembra do enredo e detalhes do filme por ter assistido recentemente, já que, naquela noite,

a tensão e a ansiedade do que estaria por vir impediam toda a concentração em um filme.

A primeira canção-senha E Depois do Adeus tocara enquanto eles ainda estavam no

cinema, mas a segunda, Grândola Vila-Morena, foi ouvida por todos enquanto já estavam

no carro, por volta de meia-noite do dia 25. Os momentos posteriores às canções, ele se

recorda que foram tomados por dúvidas e talvez um pouco de frustração por pensar que

as tropas haviam abortado o plano. Ele registra esse evento em duas obras diferentes

lançadas num espaço de quatorze anos:

Teriam abortado o Movimento? Como haveríamos de encontrar

resposta para essa pergunta angustiante? As emissões de rádio

decorriam na mais absoluta normalidade, com a linguagem arrastada e

cúmplice dos locutores da madrugada. Os noticiários não davam

qualquer sinal que permitisse imaginar a mudança iminente. Era noite

calma e aparentemente sem história, num país onde a rotina e a

normalidade eram exasperantes (1999, p. 70)

à porta da Sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso, e à do quartel

da GNR no Carmo não havia indícios de que tivesse sido desencadeado

um plano de prevenção. Tudo parecia angustiantemente normal. O que

estaria a acontecer? O que estaria a passar dentro dos quarteis? Por fim,

cerca das 3h10, vimos abrirem-se os portões do Batalhão de Caçadores

5, na rua Marques de Fronteira, e duas colunas fortemente armadas

avançarem em direcções distintas. [...] As horas seguintes seriam

decisivas para o êxito ou para o fracasso do levantamento militar.

(2013, pp. 157 e 158)

Vale comentar como Letria descreve detalhadamente sobre essa noite e sobre

todas as suas dúvidas e sensações vividas neste momento. Ele e um amigo procuravam

por mais pistas ou indícios de que tudo estaria caminhando para o bem, mas ainda mostra

suas ansiedades: “continuamos a circular pela cidade ainda adormecida, numa noite fria

e de luz escassa, à espera de outros sinais” (2013, p.158). Esses sinais só apareceram por

volta das seis da manhã, e às sete e meia Letria já estava a caminho da redação. “O resto

está escrito e documentado com imagens em fotografias, relatos e filmes, mas continua

presente na minha memória, levando-me a dizer, sem hesitar, que esse foi o dia mais feliz

da minha vida. ” (2013, p. 161, grifo nosso). Letria lembra que exatamente naquele ano,

dia 4 de junho, ele seria incorporado nas Forças Armadas, e poderia participar da Guerra

Colonial: “Devo ao 25 de Abril essa alegria ainda hoje difícil de descrever, não que me

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faltasse coragem para combater, mas nunca numa guerra em que me recusava a

participar”. (2013, p. 163).

Letria (2013) relembra o clima após a Revolução dos Cravos: euforia, expectativa

e de trabalho intenso: houve a libertação dos presos pela PIDE, presenciada por ele,

quando pôde abraçar alguns de seus amigos. Muitos poemas e mensagens de escritores

se seguiram, como ele definiu: “era a nossa voz sem mordaça ou tutela. Era Portugal

inteiro a encontrar-se consigo mesmo, no imenso júbilo de ter orgulho de ser livre.” (2013,

p. 164). Nos 25 anos de queda do regime ditatorial, Letria fez um poema dedicado ao seu

filho (que na época da revolução era ainda bem pequeno), e relatou o que esse dia

representava para ele. Como destaque, é reproduzido aqui uma das partes em que ele

relembra o silêncio vivido em Portugal na época da ditadura:

Eu estava aquartelado no meu silêncio

de pétalas, sílabas e marés, num dédalo

de vozes embriagadas pelo vento,

na coragem errante das pelejas da infância

e pouco ou nada sabia do mistério desse mês

capaz de transformar em assombro as nossas vidas45

(Letria, 2013, p.167)

Os tempos que se seguiram após a Revolução dos Cravos foram tomados de

expectativa, liberdade e motivação por terem conseguido tirar do poder uma ditadura que

já durava mais de quarenta anos. Os cantores, como menciona Letria, continuavam se

reunindo uma vez por semana para a gravação do Canto Livre, um programa no qual eles

apresentariam canções inspiradas neste novo momento que vivenciavam. A reunião entre

os amigos cantores continuou após a revolução, mas o país, enquanto desfrutava uma

nova fase de liberdade, atravessava também um período de instabilidade política. Era

inevitável o aparecimento de novas tendências políticas e, cada um deles, embora tivesse

sido alimentado por um mesmo ideal anterior ao golpe – o de acabar com o Governo

“Marcelista” e a Guerra Colonial – não compartilhava de uma mesma postura política

após a queda da ditadura.

Os cantores de resistência, como esse grupo era popularmente chamado, tentaram

definir qual seria a posição a ser tomada visto que era importante para os partidos políticos

contarem com o apoio deles. Reuniram-se no dia 30 de abril de 1974 e, a partir das

45 O poema na íntegra encontra-se nos anexos (ANEXO E).

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exposições das ideias e do que acreditaram ser o melhor para Portugal, perceberam, na

verdade, que os artistas se divergiam um do outro.

Foi nessa noite que informalmente se separaram as águas e os

caminhos. De um lado ficariam os cantores e músicos afectos ao PCP,

atuando em centenas de “cantos livres”, e de outro, os artistas afectos

ao que viria a ser a UDP, intervindo nos “cantos populares”. Aquilo que

a luta contra a ditadura unira, acabou por ser clarificado e separado pelo

triunfo da liberdade e da democracia. Não eram divergências pessoais,

mas sim políticas, e eram inevitáveis, pois por trás de cada um de nós,

existia um percurso, uma lógica, uma coerência ideológica. (LETRIA,

2013, p.188)

Essas reuniões que aconteciam com frequência entre esses cantores serviam para

espalhar a alegria que tinham por terem conseguido atingir os seus objetivos, por meio da

canção. Ao mesmo tempo em que as canções continuavam a ser cantadas, outras

começaram a ser escritas com outros propósitos, visando atingir a política do momento,

sem a necessidade de uma letra mais elaborada, já que não passaria pelo crivo da PIDE.

Letria e Zeca Afonso atentaram para esse empobrecimento estético de suas canções, pelo

fato de serem mais diretas, mais panfletárias, menos elaboradas e escritas às pressas. A

perda dessa qualidade possivelmente se deve também à falta de interesse, ou tempo de se

reunirem da mesma maneira como faziam antes da revolução, pois queixavam-se de falta

de tempo, de serenidade e de distância para construírem canções mais elaboradas. Mesmo

consciente disso, Zeca Afonso dizia que o tempo era de combate, de ligação às massas de

organização da democracia de base (LETRIA, 2013).

Após o 25 de Abril, Letria continuou gravando discos de sucesso, contendo

canções com teor político como “A vitória é difícil, mas é nossa”, “Só de punho erguido

a canção terá sentido” e “Quem tem medo dos comunistas”. Com o tempo, Letria foi se

afastando dos palcos e do ramo da música, lançando o seu último LP em 1982.

Quando fala do futuro que esperavam para Portugal, enquanto muitos ainda se

queixavam dos problemas políticos que sucederam a revolução, Letria menciona alguns

itens que só foram possíveis de se concretizar com o término da ditadura. Ele relembra

que apenas após esses acontecimentos é que o povo pôde perceber a força e o poder que

tem e “em primeiro lugar, por fim a guerra” (2014), pois foi a partir daí que ele se deu

conta de que é possível viver sem fazer guerra. “O 25 de Abril representa para mim e para

todos que participaram e para a população portuguesa em geral a concretização de um

sonho mais profundo das nossas vidas” (LETRIA, 2014).

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Ainda assim, há inúmeros problemas que Portugal teve de enfrentar, logo após o

25 de Abril, inclusive com a possibilidade de uma revolução civil, visto os problemas

políticos que sucederam com o governo provisório. “Ainda tive a sorte de ver de perto,

por dentro e por fora, o Portugal futuro, imperfeito, com tantas promessas esquecidas, ou

para sempre adiadas [...]” (LETRIA, 2013, p. 33). Relembra a morte prematura de seus

amigos Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira “também eles já não veriam o Portugal

futuro e, em certa medida, podem ter sido afortunados por não terem chegado a esse cais

de desembarque e não sofrerem com o fel do mais sentido desencanto que hoje nos

mortifica” (2013, p. 33). Ele acredita que as canções deveriam voltar a ser uma arma do

povo, já que é um meio que une a todos para um mesmo ideal: “É importante que as

canções voltem a ser um estandarte de luta, de combate, que possam ser usados em

processos que possam transformar o país de uma forma diferente” (LETRIA, 2014).

Letria gravou nove discos entre 1972 e 1981, e após muitos shows e sucesso,

encerrou a carreira de cantor em 1984. Atualmente trabalha como jornalista e escritor, e

possui uma vasta obra publicada, sendo romance, poesia e também livros infanto-juvenis.

2.2.2 Francisco Fanhais

Figura 16 – Entrevista Francisco Fanhais

Francisco Fanhais durante entrevista à pesquisadora na sede do núcleo da Associação José

Afonso, em Lisboa, em 4 de dezembro de 2014.

Francisco Júlio Amorim Fanhais, conhecido também como Padre Fanhais, nasceu

a 17 de maio de 1941, na Praia do Ribatejo. Seu pai era médico e apoiava o regime

salazarista. A partir dos dez anos, começou a frequentar os seminários de Santarém,

Almada, Lisboa e Olivais. Em 1964 concluiu o Curso Teológico, sendo ordenado padre

em seguida, começando a exercer também a função de professor no Colégio Diocesano

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de Torres Novas e no Seminário Liceal de Penafirme. No fim da década de cinquenta, por

influência de amigos, sobretudo após a fraude das eleições de 1958, Fanhais começou a

se conscientizar e a perceber os absurdos do governo salazarista. O início da Guerra

Colonial e as canções de Zeca Afonso despertaram-no para a realidade da política e suas

amizades que cultivava eram mantidas pelo fato de o grupo seguir um mesmo ideal, o que

fortalecia o companheirismo e o contato entre eles. Para ele, não importava de onde cada

um vinha, mas sim, para onde queriam ir e qual o caminho que seria seguido (FANHAIS,

2014). Em 1969, Fanhais foi encorajado por Zeca Afonso a participar no programa de

televisão chamado Zip-Zip e a partir desse momento, passou a ser conhecido e a integrar

o grupo dos cantores de intervenção, ao lado de nomes já famosos na época como Zeca

Afonso, José Letria, Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira e José Barata-Moura.

Foi assim que Fanhais começou, então, a utilizar a música e o seu ofício de professor para

relatar o seu descontentamento com o governo, passando a ser um dos alvos da PIDE.

Fanhais, assim como Letria, também refletia sobre os riscos que corria ao utilizar

a canção como arma contra o governo, mas considerava importante sua divulgação acerca

dos problemas políticos que Portugal enfrentava. Além disso, não via razão para se

recolher:

Eu sabia que estava a entrar num caminho arriscado, mas pensei

comigo: eles [seus amigos cantores] têm família, mulher e filhos e se

arriscam, não se recolhem; eu não tenho nada a perder, não tenho

mulher, nem filhos, então porque eu não ia andar com eles, porque que

eu não ia para o mesmo caminho, porque que eu não ia trabalhar através

da música, daquilo que eu gosto de cantar, com os poemas que eu canto?

(FANHAIS, 201446)

Francisco Fanhais esclarece que sua fé no Evangelho foi uma das causas para que

delatasse o governo, por ser coerente com a mensagem de Jesus Cristo:

Eu tinha [...] outra razão muito forte para denunciar a Guerra Colonial,

porque eu fui padre durante seis anos, então eu entendia que, como

cristão, [...] que para ser fiel ao evangelho em que acredito, eu tinha que

denunciar a Guerra Colonial, [..], ao fazer isso, entrei em conflito com

a hierarquia eclesiástica, porque era impossível nós não denunciarmos

a Guerra Colonial sem entrar em conflito com o governo, e era

impossível, como cristão, silenciar o problema da Guerra Colonial.

(FANHAIS, 2014)

Suas canções continham teor político, ocasionando proibições por parte da PIDE

de se apresentar em público e de cantar certas canções. Todas as vezes que Fanhais subia

46 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 04 de dezembro de 2014 e o áudio completo encontra-se no

CD ao final deste trabalho.

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ao palco, ele precisava informar as canções a serem cantadas, pois algumas poderiam ser

censuradas. Em uma de suas apresentações, Francisco Fanhais se recorda como um

homem da PIDE o interrogou durante o intervalo de uma de suas apresentações, e como

ele resolvia as questões, reconhecendo o seu erro e mostrando respeito pelos guardas:

Eu estava a cantar no Porto, [...] não me lembro da música exata que

estava a cantar, talvez fosse a Cantata da Paz, uma música que eu canto

que é “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, enfim, [...] e

no intervalo deste espetáculo, isto, é, antes do 25 de Abril, claro, veio o

homem da censura ter comigo e dizer que eu estava a cantar coisas que

ele não tinha autorizado. E eu disse “não lembro, não sei de nada, não

estou lembrado, [...], eu cantei aquela, estava autorizada, cantei não sei

o que...” “mas cantou uma que não tava - ...” [estala o dedo] “tem toda

a razão, tu tens toda a razão, eu não tinha intencionado cantá-la, mas as

pessoas começaram a pedir, não é, e entre o pedido das pessoas, e sua

proibição, eu optei por satisfazer o pedido das pessoas, furei sua

ordem”. (Idem)

Em um dos relatórios dos arquivos da PIDE encontrados na Torre do Tombo, em

Lisboa, sob o número PIDE DGS Del Beja PI Nº 3556 nt 51, a polícia registrou uma

conferência com a presença de padres para falar sobre as festividades religiosas e relatou

que o Padre Francisco Fanhais aproveitou a situação para cantar algumas de suas canções

que denunciavam o governo – sem especificar quais canções seriam estas. No arquivo

encontra-se documentado o seguinte registro:

O Aludido padre (Alipio Tavares Gaspar) pensou organizar uma série

de conferência a fim de elucidar os seus paroquianos sobre o significado

das festividades e da quadra do Natal que brevemente se celebra. Para

o efeito, convidou os indivíduos [...] que falaram somente segundo

informações colhidas sobre religião e especialmente relacionado ao

nascimento de Cristo, não se tendo aproveitado nenhum dos oradores

da ocasião para falar de política, excepto o Padre Fanhais na

apresentação dos temas que cantou.

(PIDE DGS Del Beja PI Nº 3556 nt 51 – grifo nosso)

Já outro documento arquivado pela PIDE contém uma entrevista do Padre

Francisco Fanhais concedida ao Jornal Reconquista, no dia 13 de dezembro de 1969,

comentando sobre a importância do uso da música como uma maneira de comunicar ao

povo sobre os acontecimentos políticos em Portugal:

[jornal] É muito importante cantar?

[Francisco Fanhais] Cantar para mim será uma fora de manter os

espíritos acordados, não deixá-los cair no ‘ramerame’ quotidiano. É

preciso pensar um bocado mais além, além dos problemas vulgares ou

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de todos os dias. Ninguém pode ficar indiferente às guerras ou outras

coisas mais diretamente ligadas.

Os acontecimentos, por mais longe ou mais perto atingem cada pessoa

em cada ponto do globo. Além disso integro a minha missão de padre

também numa linha de certo modo equivalente. Acredito nos

evangelhos, e na sua subtil mensagem – a autêntica liberdade.

(PIDE DGS Del C PI 42277 NT 4925)

Em outras entrevistas, registradas em obras como a de Raposo (2014), Fanhais

reafirma a importância de cantar, pois para ele, a canção une, e é importante que “morda”

nas pessoas.

Fanhais sentia a resistência do governo e revela como era a grande dificuldade de

se viver em Portugal sob esse regime: “era muito duro lutar contra uma parede de cimento,

tentar destruí-la a cabeçada, nós ficamos com a testa ferida e a parede não mexe um

milímetro” (FANHAIS, 2014). Com essa resistência e enfrentando vários processos da

PIDE, Fanhais foi proibido de atuar nas três áreas que trabalhava em sua vida: de atuar

como padre, como professor e evidentemente, de cantar. Com essas proibições, sem

perspectivas do que fazer em Portugal e com riscos de ser preso, emigrou para a França,

em abril de 1971, e lá viveu até após o 25 de Abril, voltando a Portugal apenas algumas

vezes entre essas datas. Sofreu algumas críticas por ter saído de Portugal, por estar atrás

de “uma boa vida” (FANHAIS, 2014), enquanto na verdade procurava outros meios para

se sustentar, sendo a música a sua principal escolha.

Sendo assim, a primeira coisa que fez ao chegar em território francês foi procurar

o diretor musical José Mário Branco, para mostrar que estaria à disposição dele no que

precisasse, para continuar a ser útil através da música (idem). Fez participações em rádios,

shows e programas, não somente na França, mas também na Alemanha, Bélgica,

Inglaterra e Holanda. Gravou canções, fez teatro e participou da gravação do disco

Cantigas do Maio, e entre as canções estava a Grândola Vila Morena, canção-senha da

Revolução dos Cravos. José Mário Branco reuniu Francisco Fanhais e Carlos Correia

(Bóris) para gravarem com Zeca Afonso esse disco na França, em outubro e novembro

de 1971, e reservaram o famoso estúdio no Chateau d’Hérouville, a trinta quilômetros de

Paris, o mesmo estúdio pelo qual passaram, por exemplo, Elton John e Pink Floyd.

Quanto à gravação do disco, e especialmente da Grândola Vila Morena, Fanhais durante

a entrevista compartilhou algumas curiosidades, também encontradas no CD Cantigas do

Maio (1971/2012).

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A canção, que segue um pouco o estilo das modas Alentejanas47, foi gravada em

duas fases, e a primeira delas às 3 da manhã, para conseguir o mais absoluto silêncio e

não atrapalhar a gravação dos passos feitos pelos cantores em cima da pedra britada da

rua fora do estúdio; a segunda parte da canção foi gravada no estúdio, no fim da tarde do

mesmo dia, e sobre o som dos passos gravados durante a madrugada, com os fones nos

ouvidos, Zeca Afonso começou a gravar a sua voz na primeira estrofe. Na segunda

estrofe, no verso “O povo é quem mais ordena” os quatro cantores entoaram a uma só voz

(idem).

No encarte do disco, encontra-se a descrição do mesmo cenário:

Assim, em volta da casa acastelada, com o estúdio instalado no sótão,

fixam-se num espaço perto das dependências e das cavalariças, os pés

na gravilha. Sallé [o engenheiro do som] desencanta uns enormes cabos

de microfone e extensões igualmente longas para os auscultadores que

emitiriam um metrónomo eletrônico. Depois, foi esperar pelas três da

manhã, “porque podia passar uma motorizada numa estrada ou um

carro, podia mugir uma vaca num campo ali ao lado”. Abraçados como

os camponeses [alentejanos], Zeca, José Mário, Bóris e Fanhais gravam

três ou quatro minutos dos seus passos na gravilha, num movimento

circular. No dia seguinte, os mesmos quatro gravam as vozes que

ficariam para história da música portuguesa e da Revolução de Abril.

(CD CANTIGAS DO MAIO, 1971/2012)

Fanhais admite na entrevista que jamais imaginaria que essa canção gravada

juntamente com o Zeca Afonso seria tão famosa e uma das escolhidas como senha para o

Golpe Militar no dia 25 de Abril. Fanhais soube da revolução já durante o dia 25 por meio

de amigos, e inicialmente não tinha ideia do tipo de revolução a que eles se referiam, se

era de esquerda ou de direita. Ele sabia da resistência de muitas pessoas ao admitir o

governo do Marcello Caetano, mesmo dentre aquelas que apoiaram Salazar. Muitos

generais fascistas iam contra o seu governo e perceberam o enfraquecimento do regime

após a morte de Salazar e podiam tentar derrubar o Marcelismo. Mas ao ligar o rádio,

Fanhais ouviu canções dos seus amigos e a partir daí viu que era o regime fascista que

havia caído.

Para ele, a emoção foi ainda maior quando soube que “Grândola” foi a “senha”

utilizada para o início das operações militares. Sentiu uma “dupla alegria”: a primeira

com o fim da ditadura e a segunda, por ter participado de toda a história e da gravação da

canção, marcando o seu nome para sempre na revolução do 25 de Abril. Dia 30 de abril,

47Música Alentejana: música com ritmos lentos, coro e estrofes inversas. Mais detalhes no capítulo de

análise.

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retornou a Lisboa e participou das celebrações do fim do regime e do 1º de maio com os

amigos e com a população portuguesa.

Atualmente, com a intensificação de alguns problemas de Portugal, especialmente

na área da saúde, serviços públicos e segurança social, houve um descontentamento geral

da população, especialmente dentre aqueles que sonharam com o fim da Ditadura, pois,

para Fanhais (2014), “quem tanto sonhou com o 25 de Abril não se pode contentar com

tão pouco” e isto fez com que as pessoas voltassem a se manifestar e a mostrar a sua voz.

A música, para ele, tem esse papel de união, de ligação, justamente porque as

pessoas, tanto na época da ditadura, como na crise europeia em meados de 2000, se

mostravam descontentes, e se manifestavam de maneira conjunta através da música, que

é um instrumento que tem o poder de unir as pessoas. Com o descontentamento geral, a

música voltou a ter de novo esse papel de juntar as pessoas com os seus esforços e

entusiasmo, e a canção era o impulso necessário que alavancaria os protestos populares.

Atualmente, Francisco Fanhais é o presidente da Associação José Afonso48,

instituição criada em 1987 em homenagem ao maior cantor revolucionário português,

como forma de manter viva a memória, não somente do ponto de vista de sua arte, mas

também de sua cidadania, sua posição na vida e a maneira como ele procurava agir,

sempre em favor dos mais fracos (2014).

48 A Associação José Afonso foi criada em 18 de novembro de 1987, mesmo ano da morte do cantor, com

o objetivo principal de promover e difundir sua obra musical. Além disso, outras ideias da associação são:

ampliar e divulgar o Centro de Documentação sobre a vida e obra de José Afonso; organizar e apoiar

iniciativas válidas de ordem cultural, artística e recreativa; apoiar o desenvolvimento da música popular

portuguesa; estimular a participação crítica dos jovens além de instituir um espaço material, moral e cultural

de convívio, em torno das vivências e dos ideais comuns. A Associação dispõe de um acervo para consultas,

pesquisas e compras de materiais, livros e CDs que tem alguma relação com o cantor ou com a música

portuguesa. O local dispõe também de um espaço para a realização de eventos e filmes que de alguma forma

relembrem o período ditatorial e possam trazer às pessoas um debate acerca do que foi exposto. Os eventos

ocorrem com grande frequência em qualquer um de seus catorze núcleos espalhados no país. Informações

disponíveis no website oficial da associação: www.aja.pt. Acesso em outubro de 2014.

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2.2.3 Sérgio Godinho

Figura 17 – Entrevista Sérgio Godinho

Sérgio Godinho em sua residência durante entrevista concedida à pesquisadora (Lisboa, 9 de

dezembro de 2014).

Sérgio de Barros Godinho é, dos três cantores entrevistados, o único que continua

a exercer a música como sua principal atividade, fazendo, ainda, muitos shows em

Portugal. Nasceu no Porto, em 1945, em uma família que lhe facultou, desde pequeno,

acesso à cultura e no seio da qual cresceu com ideias contrárias ao governo salazarista.

Sérgio Godinho começou a tocar e a cantar ainda na adolescência. Apreciava a

música francesa e, já na década de sessenta, na mesma época em que ouvia Rolling Stones

e Beatles, ouvia também Zeca Afonso, que começava a despontar na música portuguesa,

o que, para a vida de Godinho, foi um acontecimento marcante. Ao mesmo tempo,

relembrou, durante a entrevista, que a música brasileira também fazia muito sucesso com

canções de Chico Buarque e Ary Barroso, por exemplo. Em 1965, com a possibilidade de

ser recrutado para a o exército e ser convocado para a Guerra Colonial, saiu do país com

o pretexto de continuar os seus estudos no estrangeiro. Para ele, essa saída foi mais pelo

fato de poder criar novas experiências, morar sozinho e poder construir uma vida

diferente. Seu primeiro destino foi Genebra, na Suíça, onde cursou dois anos de

psicologia, sendo, inclusive, aluno de Piaget; mas abandonou os estudos por falta de

vocação para a área, percebendo que seu caminho voltava-se, realmente, para as artes.

Mudou-se para a França e lá começou sua carreira artística e musical, integrando o elenco

francês do musical Hair, participando de shows e fazendo parcerias com José Mário

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Branco, produtor de discos. Passou pelo Maio de 1968 na França, vivendo a euforia da

população e sentindo que finalmente ocorreriam algumas mudanças, mas se decepcionou

pois “embora tenham deixado marcas culturais, tudo voltou como era antes” (GODINHO,

2014).

Cientes de que Sérgio Godinho estava no exterior, agentes da PIDE o localizaram,

como revelam processos encontrados na Torre do Tombo. Um deles, sob o número

46595/SR – NT 4157, segue transcrito obedecendo ao original:

Averiguar o paradeiro de Godinho

Reportando-me ao ofício confidencial em referência, tenho a honra de

informar V. Exª de que o nacional Sérgio de Barros Godinho se

encontra, presente em França, onde tem o seguinte endereço:

C/o Patrick Bforelli

17 – Rue Paul Albert

Paris, XVIII éme

Segundo o que foi possível averiguar-se, aquele indivíduo ausentou-se

do País para se eximir ao cumprimento dos deveres militares.

Porto, 17 de dezembro de 1968

Mesmo tendo descoberto o paradeiro de Godinho, esse fato não trouxe

consequências para ele, nem tendo sido obrigado a voltar a Portugal. Enquanto esteve no

exterior, relata que pouco contato teve com a música portuguesa, e as poucas composições

a que teve acesso não eram necessariamente produzidas e divulgadas em Portugal. Os

seus dois primeiros discos, Sobreviventes de 1971 e Pré-Histórias de 1972, foram

gravados na França e editados em Portugal, tendo sido o primeiro imediatamente

censurado, para, em seguida, ser liberado e, novamente, voltar a ser proibido. Para ele, a

polícia estava desnorteada: “a censura já estava sem saber o que fazer com os valores

internos [...], ora permitiam umas coisas, ora proibiam, depois tornavam a permitir”

(GODINHO, 2014).

Godinho participou do álbum de estreia de José Mário Branco (Mudam-se os

tempos mudam-se as vontades) como cantor e compositor de algumas das canções. Em

1973, casou, mudou-se para o Canadá e lá viveu até a queda do regime ditatorial em

Portugal.

Seu estilo de música é diversificado, sem representar um estilo específico. Não se

considera um cantor de intervenção, pois, para ele, sendo bem eclético, não gosta de se

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rotular como um cantor de um gênero só. Compõe temas variados, mas, durante o período

ditatorial, suas canções voltaram-se para aquele momento político, o que permite incluí-

lo no grupo de cantores de intervenção. Quando perguntado sobre o título que atribuiria

à “canção de intervenção”, define-a como “música engajada socialmente”, de “cunho

social”, ou, simplesmente, “música popular portuguesa” (2014).

Para Godinho, tais canções de cunho social despontadas nos finais dos anos

sessenta e no início dos anos setenta foram extremamente importantes, pois mobilizavam

as pessoas para o que estava acontecendo no ramo da política do país. Ele menciona, por

exemplo, o fato de os oficiais levados para a Guerra Colonial ouvirem essas canções e,

com isso, aumentar o senso crítico e se comover com a situação vivida no país.

Godinho estava no Canadá quando se deu a Revolução dos Cravos, sabendo a

posteriori o que sucedeu em Portugal. Voltou ainda no mesmo ano, quando lançou o seu

disco “À queima-roupa”, o terceiro de sua carreira, muito bem recebido pelo público,

especialmente a canção Liberdade, retratando o drama vivido em Portugal após o 25 de

Abril. A letra da canção é ainda hoje utilizada em grandes manifestações que ocorrem no

país (como ele destaca em sua entrevista), e, mesmo não estando presente fisicamente,

sente-se representado por meio dos versos estampados em cartazes e nas vozes das

pessoas:

Viemos com o peso do passado e da semente

Esperar tantos anos torna tudo mais urgente

E a sede de uma espera só se estanca na torrente (2x)

Vivemos tantos anos a falar pela calada

Só se pode querer tudo quando não se teve nada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada. (2x)

Só há liberdade a sério quando houver

a paz, o pão, habitação, saúde, educação

Só há liberdade a sério quando houver

Liberdade de mudar e decidir

Quando pertencer ao povo o que o povo produzir.

Para ele, essa letra trazia algumas “ideias-base que transitavam no ar” e que eram

importantes repassar à população. Nas suas palavras:

A liberdade não é só um nome político do 25 de Abril, e há de fato uma

libertação para as culturas democráticas; mas a liberdade só faz sentido

se for preenchida com conteúdo, por isso que só há liberdade a sério se

houver a paz, o pão, a habitação, liberdade que mudar e decidir...

(GODINHO, 2014)

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A eficácia da canção também foi percebida pelo cantor, especialmente após o 25

de Abril, quando viu os resultados que canções dessa natureza alcançam. Ele próprio foi

chamado para apresentar suas canções em associações, instituições, programas de rádio

e televisão, pois esse tipo de composição se tornou uma das mais importantes para a

época, pelo seu poder de mobilização e de união.

Para Godinho, o PREC, apesar de ter sido um período de transição com muita

instabilidade política em Portugal, para a música produziu um efeito positivo:

[Godinho] reconhece, por outro lado, que o PREC foi importante em

termos musicais, pois deu para conhecer o país por dentro, e na altura

havia um tipo de convívio e de disponibilidade muito grande, entre os

músicos e os espectadores. (RAPOSO, 2014, p. 233)

Nas palavras de Godinho, “isso era muito gratificante. A seguir ao 25 de Abril

senti que devia haver uma espécie de contaminação positiva de todas essas coisas que

estavam a acontecer”. Ele também elogia o trabalho do Zeca Afonso e de outros músicos

como o Francisco Fanhais e Adriano Correia de Oliveira, em especial a disponibilidade

de Zeca Afonso e a capacidade crítica que desenvolveu ao longo do seu percurso como

cantor e compositor (RAPOSO, 2014).

Atualmente, percebe o retrocesso de várias situações que fizeram a população

voltar às ruas, especialmente com a crise econômica europeia. Ressalta a desigualdade

econômica, a distância maior entre pobres e ricos, e a emigração forçada de muitas

pessoas. Relembra, também, como a situação de muitos artistas piorou com o fim do

Ministério da Cultura em 2011 (voltando a ser restaurado apenas em 2015) e o pouco

apoio que essa área tem recebido por parte do governo.

2.2.4 António Borges Coelho

Figura 18 – Entrevista António Borges Coelho

António Borges Coelho em sua residência durante entrevista

(Parede, distrito de Lisboa, 16 de janeiro de 2015)

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O professor António Borges Coelho nasceu em 1928, em Murça, Trás-os-Montes.

Com uma vida marcada por intensas atividades políticas e acadêmicas, é respeitado

pesquisador da História portuguesa, tendo publicado diversas obras não somente frutos

de sua investigação acadêmica, mas também que incluem poesia e prosa ficcional. Após

anos de dedicação às aulas e orientações de dissertações e teses, deu sua última aula em

1998, mas continua atuante na área de pesquisa e colaborando de várias formas para a

continuidade desse trabalho.

Desde cedo Borges Coelho também se engajou na luta pela liberdade, e teve a

sensação de que a liberdade viria a Portugal com o término da Segunda Guerra Mundial,

com a vitória dos aliados, época em que se inicia um movimento de luta contra o regime.

Dois livros foram importantes para que Borges Coelho se conscientizasse dos danos que

o regime estava trazendo: “A Relíquia”, de Eça de Queiroz; e “A Mãe”, de Máximo

Gorki, que lhe “abriu um outro mundo completamente diferente” (BORGES COELHO,

201549). Na sua visão, enquanto perdurava o regime ditatorial, Portugal era “um país

pobre, um país triste, um país de emigrantes [...] não era livre” (idem), além do fato de

não gerar empregos ou quaisquer oportunidades, especialmente para os jovens. Borges

confirma os fatos mencionados em outras entrevistas, e relembra que as reuniões

estudantis também eram proibidas, mesmo havendo a Constituição que, teoricamente,

garantia essa possibilidade, algumas leis específicas lhes tiravam esse direito (idem).

Mesmo que a ditadura tenha durado várias décadas, não se pode generalizar que

durante todo o período as pessoas reagiram da mesma maneira – embora os adjetivos

usados por Borges Coelho, podem, segundo ele, se aplicar durante todo o processo. Na

entrevista, menciona alguns exemplos para se ter uma ideia de como funcionava o país,

e, segundo ele, Portugal era um país muito fechado (como citado no primeiro capítulo), o

centro da família era sempre a figura masculina, do “pai”, com total submissão da mulher

que, por exemplo, não podia sair sem a autorização do marido – e se acontecesse de ela

ter filho com o outro, o filho constava como sendo do marido, e não do outro. Outro

exemplo: para os jovens era muito difícil obter passaporte se não pertencesse às famílias

da elite, além do que as fronteiras eram sempre muito bem vigiadas para evitar a fuga.

Ele relembra que a fase final foi crucial para uma mudança de postura da

juventude universitária, especialmente com início da Guerra Colonial, e que essa situação

49 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 16 de janeiro de 2015.

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altera o país e o comportamento dos jovens, que passaram a emigrar para países como a

França, que recebeu a maior demanda de portugueses do período, a maior parte deles

fugindo para não participar da guerra. Segundo relembra o professor, Paris chegou a ter

quase 1 milhão de portugueses, como visto no capítulo anterior.

Após o término do ensino secundário, a essa altura já em Lisboa, e trabalhando,

Borges costumava dedicar parte do seu tempo à atividade política, integrando o MUD

Juvenil, “Movimento da Unidade Democrática [dos jovens]”, sendo, mais tarde,

funcionário político do Partido Comunista. Um dos motivos que levaram à prisão de

Borges Coelho foi o fato de ter criado uma biblioteca pública. Para conseguir livros e

doações entrava em contato com personalidades ricas, mas um deles, amigo do regime,

lhe respondeu: “um camponês precisa saber cavar bem, não precisa saber ler e escrever”.

(BORGES COELHO, 2015). Na segunda tentativa, a PIDE o prendeu e ele foi para o

interrogatório. Passou seis meses dentro de uma cela pequena e depois de julgado e

condenado, ficou seis anos e meio numa prisão, mas mesmo assim, continuava lutando:

Ora, eu estive lá seis anos e meio e pronto, isto significa é evidente

que nunca estive calado, e não tinha liberdade de falar, mas ninguém

podia tirar a liberdade de pensar[...]. (BORGES COELHO, 2015)

Em suas fichas, enquanto Borges esteve na prisão do Aljube, os agentes policiais

relataram na sua “Biografia Prisional”, como por exemplo, a data de entrada na prisão, o

motivo, suas idas à enfermaria, o tempo em que ficou sob os cuidados médicos, suas

transferências para outras prisões, seu julgamento e a data de término de sua pena, como

se pode ler na figura seguinte:

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Figura 19 – Biografia Prisional de António Borges Coelho50

Detalhes de seus movimentos enquanto esteve na Prisão, desde 1956 a 1959

50 Torre do Tombo sob a referência: PT-TT-PIDE-E-010-111-22153_m0001. Disponível para consulta

online em: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4302695. A segunda página consta nos anexos (ANEXO

B).

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112

Borges Coelho, durante a entrevista, revelou alguns detalhes de sua vida na prisão:

Tive 6 meses naquelas celas do Aljube e depois tive dois anos em cela,

[...], mas com uma hora de recreio, [iam] no máximo 14 [pessoas], mas

normalmente não iam todos – se não houvesse castigo. No recreio e se

não estivesse a chover. Portanto havia “a máxima” lá, quando éramos

chamados eram sempre dois homens armados para cada homem preso.

[...] estávamos em celas, mas depois estive numa sala com quatro, só

que essa sala tinha uma grade que dava para o corredor. E no corredor

estava um guarda, que ouvia até os nossos sonhos, se sonhássemos alto.

Depois havia uma porta gradeada e depois de outra porta estava outro

guarda. E qual que era a saída? Eram sempre dois guardas a acompanhar

um preso, lá dentro não eram permitidas as bibliotecas. Portanto se eu

recebesse um livro, e o livro tivesse dois volumes, só entrava o primeiro

e tinha que devolver o primeiro para receber o segundo. Depois da fuga,

os papéis eram controlados, ou melhor, apreenderam–me todos os

papéis que eu tinha escrito. Depois autorizaram a consultar os meus

papéis, mas só podia levar no máximo dez folhas de cada vez, e tinha

que os devolver para ir vê-los outra vez [...] (BORGES COELHO,

2015, grifo nosso baseado na ênfase dada pelo entrevistado)

As visitas da prisão eram controladas: inicialmente era permitido haver contato

físico, mas após um tempo, houve proibição e passou a haver uma distância para

conversar com alguém, somente “aos gritos”. Após o cumprimento da pena e ser

libertado, voltou a cursar Histórico-Filosóficas, e durante o curso lançou a obra Raízes

da Expansão Portuguesa (que foi logo proibida) e a Revolução de 1833.

António Borges Coelho foi amigo dos cantores Adriano Correia de Oliveira e Luís

Cília, também músico de grande importância nessa fase. Entretanto, para o professor, as

canções de Zeca Afonso foram as mais significativas e marcantes, embora não cite

nenhuma específica. Borges Coelho considerou a canção de intervenção uma maneira

muito eficaz de conscientizar as pessoas dos absurdos do governo. Ressalta que, mesmo

com a censura, muitos conseguiam mostrar a sua voz e os pensamentos, pois

encontravam formas muito genéricas de dizer as coisas que iam na

mente das pessoas, portanto, poema contra a guerra era proibido, mas e

se fosse buscar o poema de Fernando Pessoa, que é “O menino de sua

mãe” e era muito difícil proibir o “O menino de sua mãe” [...] Portanto,

não há dúvida nenhuma que toda aquela geração de músicos teve um

papel muitíssimo importante na conscientização da juventude e

inclusivamente dos militares na Guerra Colonial, e foi sim um momento

decisivo [...].(BORGES COELHO, 2015).

Durante a entrevista, o professor compartilhou seus sentimentos acerca do 25 de

Abril, e o modo como tomou conhecimento do movimento: “eu soube por um militar que

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morava aqui por cima, soube quando os acontecimentos estavam já em marcha naquela

noite... é claro que foi a maior alegria da minha vida ver as multidões pelas ruas” (idem).

Relembra o grande momento com o Primeiro de Maio, quando todos saíram às ruas e as

pessoas, ainda, com um pouco de receio, entreolhavam-se para certificar-se de que não

havia nenhuma metralhadora para interromper aquele processo (BORGES COELHO,

2015).

Quando perguntado sobre o período após a Revolução dos Cravos, Borges Coelho

utilizou a seguinte comparação: “a revolução é uma febre, e a febre não pode estar

continuamente no organismo social [...]”, justificando o fato de os acontecimentos

“esfriarem” após a revolução, e que também foi definido por ele como uma “grande

frustração”. Ao mesmo tempo, ele recorda as conquistas obtidas com um novo começo

para o país, como, por exemplo, no campo da educação, pois na época de Salazar, poucas

eram as pessoas que prosseguiam os seus estudos. Ele recorda que o local em que morava

quando menino devia haver em torno de três ou quatro mil pessoas, porém, pelo seu

relato, no máximo dez jovens fizeram o liceu, justamente porque a política do Estado

Novo destacava a importância de se trabalhar na agricultura, e que saber ler, escrever e

contar, como era ensinado nos três primeiros anos de escola obrigatória, era mais do que

o suficiente para a população em geral. Outros avanços citados por ele foram a melhoria

nas condições da saúde e a manutenção da liberdade da população conquistada com o fim

do regime.

Com a crise europeia após o ano 2000, o que chama a atenção é a quantidade de

portugueses que emigraram com o objetivo de conseguir melhores condições de vida, e

por isso a revolta e o descontentamento deram margem para que as canções voltassem a

ser evocadas pela população.

Em 2006, António Borges Coelho prestou uma homenagem aos “Tarrafalistas” –

pessoas que estiveram presas no Tarrafal durante o regime, por convite da União de

Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), realizada no Cemitério do Alto de S. João.

Nesta sua intervenção, vinda de alguém que também esteve preso e sabe de todas as lutas

engajadas por cada um, destacam-se alguns trechos:

Viemos homenagear homens comuns, operários, marinheiros,

intelectuais. Viemos prestar homenagem aos marinheiros do “Afonso

de Albuquerque”, do “Dão, do “Bartolomeu Dias” que ousaram

levantar-se contra a ditadura. [...]. Eram comunistas, anarquistas,

homens que se orgulhavam dos seus ideais e por eles arriscavam a vida.

Acreditavam na justeza da sua causa e que a história a tinha designado

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como vencedora. Me feriram, golpearam, até a morte me deram. Nunca,

nunca me dobraram. Os homens que hoje homenageamos

desembarcaram do navio “Loanda” no dia 29 de outubro de 1936 na

Achada Grande do Tarrafal, ilha de Santiago de Cabo Verde. Eram 158

presos políticos. Inauguravam o Campo de Concentração do Tarrafal,

concebido segundo o modelo nazi. Campo da Morte Lenta lhe

chamaram. “Daqui ninguém sai com vida. Vieram para morrer”. [...] É

tempo de preservar a memória. Não permitamos que apaguem e

destruam as marcas no Tarrafal, no Aljube, na sede da PIDE, no

Tribunal Plenário, em Caxias, na PIDE do Porto, na Fortaleza de Angra,

na Fortaleza de Peniche. Constituem um património indispensável para

a pedagogia da liberdade e da democracia. Preservemo-lo para que os

nossos filhos e os nossos netos digam conosco: NUNCA MAIS! [...]

Viemos homenagear os bravos do Tarrafal. Queria terminar com

palavras de esperança e um apelo: Gozemos este sol, a alegria, o dar

das mãos e dos corpos. 51

António Borges Coelho, mesmo sendo um dos que sofreram com a prisão, não se

retrai ao falar dos detalhes e nem do sofrimento pelo qual passaram – pois essa é uma

forma de divulgar as atrocidades vividas para que tais atos não voltem a ocorrer e para

que não se apague da memória das futuras gerações as agruras enfrentadas pela liberdade.

Em 2007, o ilustre professor, catedrático jubilado da Faculdade de Letras de

Lisboa, foi homenageado pelo também historiador José Mattoso, pela sua história, pelo

conjunto de seu trabalho e por suas conquistas. Registra Mattoso:

No princípio da sua vida adulta arriscou a vida e a liberdade lutando

contra a ditadura salazarista. Não virou a cara às agressões da tortura,

da humilhação, da violência física e da prisão. [...] Desprezou o cerco

das ameaças, da marginalização e da vigilância da PIDE, viveu do seu

trabalho como jornalista, e, sem bolsas, sem ajuda de ninguém, fez o

seu curso de histórico-filosóficas. [...]. Quero agradecer ao prof. Borges

Coelho ter-nos mostrado o caminho certo, seja o combate frontal como

o que ele travou na juventude, seja o da conquista de uma posição a

partir do qual possamos fazer e ouvir a nossa voz, como ele fez também,

subindo, pela sua competência científica e a sua autoridade moral, ao

topo da carreira universitária. Queremos agradecer-lhe ter tido a

coragem de, com risco da própria vida, militar no combate

revolucionário de assim contribuir para eliminar um regime opressor

injusto. [...]. 52

Ainda nesse texto acima, o professor José Mattoso (2007) exalta o fato de o

professor António Borges Coelho não ter deixado que as marcas de uma vida sofrida

51 Retirado do website da Associação Movimento Cívico “Não Apaguem a Memória”. Disponível em:

http://maismemoria.org/mm/2006/10/31/antonio-borges-coelho-na-homenagem-aos-tarrafalistas/ 52 José Mattoso, 2007. Retirado do website do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de

Lisboa. Disponível em: http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA4/medievalista-

mattoso.htm

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devido à opressão e às torturas às quais foi submetido, o silenciasse e o traumatizasse.

Pelo contrário, ainda sendo vítima, utilizou sua experiência, seu otimismo e toda a sua

inspiração para que servissem de estímulo para os outros e transmitissem essa alegria, em

vez de uma vida que destilasse amargura, ódio e rancor.

2.2.5 Pedro Calafate

Figura 20 – Entrevista Pedro Calafate

Pedro Calafate, durante entrevista à pesquisadora (Lisboa, 6 de fevereiro de 2015)

O professor da Universidade de Lisboa, Pedro Calafate, foi o mais jovem dos

entrevistados. É licenciado em História, mestre e doutor em Filosofia, e sua área de

pesquisa abarca a Filosofia Social e Política e História Política de Portugal e do Brasil.

Seu trabalho e pesquisa são reconhecidos nacional e internacionalmente, e, recentemente,

coordenou um projeto de pesquisa e edição das Obras Completas de Padre António

Vieira, dirigido pelo professor José Eduardo Franco.

Na época final do regime, o professor Calafate era um jovem adolescente e,

embora suas lembranças sejam poucas, já compreendia exatamente como funcionava o

controle do governo:

tinha 13 ou 14 anos...mas, em todo caso, já havia uma experiência

mínima do que era uma sociedade fechada, uma sociedade em que,

quando líamos nos jornais, sabíamos que não – que o que estávamos a

ler não era efetivamente aquilo que se passava. (CALAFATE, 201553)

Ele relata que havia “certo medo nos jovens da época”, pelo fato de não serem

livres e que uma reunião para discussão de ideais diferentes era algo impossível de se

53 Trecho da entrevista concedida à pesquisadora no dia 6 de fevereiro de 2015.

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realizar – havia um limite para as reuniões, e não era permitido reunir mais de quatro ou

cinco pessoas num mesmo evento.

Quando ocorreu o 25 de Abril, Calafate se recorda de que foi um dia de muita

alegria e festa para todos. Lembra-se também que apesar das recomendações vindas pela

rádio e televisão para que as pessoas evitassem sair às ruas, muitos saíram para presenciar

uma festa que dificilmente poderia se viver novamente. Com a queda de Marcello

Caetano, a sociedade que era antes “pesada”, “cinzenta”, abriu caminho para novos

rumos, novos horizontes, e embora de início houvesse uma “desorganização social”, o

momento era de euforia, uma festa que todos comemoravam, mesmo com a incerteza do

que haveria de acontecer em seguida. A ideia de que seria possível, dessa vez, fazer

reuniões, realizar comícios e discutir política, era motivo de grande festa, pois são atos

que alegrariam uma juventude que tinha sido amordaçada pelo regime.

Após o 25 de Abril, com o sucesso da música naquele período, Calafate formou

um grupo musical chamado Resistência, que se apresentava em diferentes lugares de

Portugal em reuniões e comícios. Para ele, foram experiências de muita alegria, e as

canções eram “simples”, mas veiculavam mensagens mobilizadoras, instigando a força

do poder de transformação da vida do homem, e nas suas palavras: “acabaram por não ter

esse poder, mas acreditávamos que tinha... mas isso é parte do jogo” (2015). Nesses

comícios, a música sempre estava presente. As canções, além de serem conscientizantes,

costumavam deixar os comícios mais animados:

A música fazia parte disso, a ideia de mudar o mundo, de salvar o

mundo, que é uma ideia que acompanhou sempre, a história das

ditaduras, da humanidade, transformar a vida do homem, e essa

transformação dar-se-ia por que vias? Dar-se-ia pela cultura, dar-se-ia

pela escola, dar-se-ia também pela intervenção através da música, da

arte; na altura, na escola, o Marxismo era fundamental e a concessão da

luta de classes, [...] da transformação da sociedade e, portanto a arte

dentro da arte, e a música, que era uma forma que estava mais ou menos

ao alcance de muitos daqueles jovens na altura, que sabiam tocar,

alguns acordes de música e que tinham lido grandes poetas portugueses,

poetas de intervenção e que procuraram musicá-los e dar liberdade de

expressão musical e muitos dos comícios, das reuniões políticas que se

realizavam na altura de 75, 76 organizados por sindicatos, por partidos

políticos, eram muitas vezes animados por intervenção dos grupos

musicais [...]. (CALAFATE, 2015)

As canções do Resistência traziam letras que procuravam espelhar a realidade,

mas com sentido transformador: transmitiam a importância de uma sociedade sem

classes, de uma economia estatizada, revelando a forte influência que o partido comunista

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exercia naquele período na vida política portuguesa e na mobilização dos jovens. Essas

canções visavam a incentivar os governos provisórios, (especificamente o governo do

primeiro ministro Vasco Gonçalves, de julho de 1974 a setembro de 1975), e também

retratavam a dificuldade da vida dos trabalhadores assalariados, da pobreza e da extrema

desigualdade. Para os jovens da época, sob uma forte influência do Marxismo, “O

Manifesto do Partido Comunista” era a chave para a compreensão do mundo

(CALAFATE, 2015).

O professor se inspirava nas obras poéticas de Manuel Alegre, sobretudo O

Lusíada Exilado e Praça da Canção, e também nas canções de Zeca Afonso e Adriano

Correia de Oliveira. Segundo ele, eram carismáticos, sempre queridos do público, e Zeca

Afonso, o mais importante, foi o precursor das canções revolucionárias da época.

Das canções que cita, a de referência foi Os Vampiros, que, juntamente, com a

famosa Grândola, foi marcante para toda aquela geração. Outra canção notável por

desvendar o quadro da sociedade na época, foi Cantar de Emigração, de Adriano Correia

de Oliveira. Esta canção, que será analisada adiante, mostra uma “sociedade triste,

depauperada” por causa da emigração, especialmente dos homens, para a França – que,

como mencionado no capítulo 1, na época assinara um acordo com o governo português

para “recrutar” trabalhadores portugueses. Assim, muitos homens deixavam suas famílias

forçadamente e, com a dificuldade de circulação entre os países na época, via-se uma

enorme quantidade de famílias incompletas, e as mulheres, as chamadas de “viúvas de

vivos”, viviam numa imensa saudade, como retratada pela canção que se popularizou

(CALAFATE, 2015).

O professor também compara essa emigração com a que ocorreu recentemente,

no ano de 2014, por ocasião da crise econômica europeia. A canção Cantar de Emigração

lançada em 1970 mostra o cenário que novamente toma lugar no país, tendo um número

de emigrantes ainda mais expressivo, revelando a insatisfação do povo com a situação de

Portugal. Frente a um panorama desfavorável e sem perspectivas de grandes melhorias, a

população não tinha outra alternativa a não ser a emigração em busca de melhores

condições de vida – e na época, além de os jovens estarem em busca de uma vida mais

estável, estavam também fugindo da repressão e da Guerra Colonial, quadro que já não

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se aplica no cenário atual. Em 201454 houve uma evasão de 134.624 portugueses,

enquanto em 1966 (ano de maior fluxo anteriormente ao de 2014) foi de 120.239. Mesmo

em circunstâncias diferentes, estima-se que essa quantidade referente ao ano de 1966 pode

ser diferente, pois sendo clandestina, era difícil obter a quantidade com precisão. Em

razão disso, para Calafate (2015), seria importante que as canções voltassem a mostrar

essa revolta popular, assim como ocorreu na década de 60.

2.2.6 Fernando Rosas

Figura 21 – Entrevista Fernando Rosas

Prof. Fernando Rosas, durante entrevista na Universidade Nova de Lisboa a 05 de

fevereiro de 2015

O Professor Fernando José Mendes Rosas nasceu a 18 de abril de 1946 e é

atualmente investigador e professor no departamento de História da Faculdade de

Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Sua vida marcada pela

política começa desde cedo, com influência de amigos e família, que já tinha uma tradição

republicana antifascista. Em uma de suas mais antigas recordações, registrada em uma de

suas obras (2013) ele conta quando deparou pela primeira vez com a violência da polícia:

Teria uns 5 ou 6 anos, no início dos anos 50, ia pela mão do meu avô

num dos meses de Verão, em Santo António, na Costa da Caparica,

quando nos deparamos num terreiro frente à porta de uma taberna, com

um guarda da GNR, fardado, espancando brutalmente a soco e a

pontapé um desgraçado que nem tentava defender-se, já todo

ensanguentado. Em redor, mudos de medo, sem ousar um menor gesto

ou palavra, meia dúzia de homens assistiam. Na consciência de cada

54 Informação retirada de jornal “Observador”, disponível em: http://observador.pt/2015/06/16/portugal-

2014-o-ano-em-que-emigramos-mais-do-que-nunca-e-morremos-ainda-mais-do-que-nascemos/

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um, na consciência do cidadão comum, e, sobretudo, na grande parte

dos pobres e socialmente desprotegidos, estava indelevelmente gravada

a mais indiscutível e mais eficaz das normas de prevenção policial do

regime: “com a autoridade não se brinca”. (p. 199)

Para ele, esse foi basicamente um dos pilares do regime: “com autoridade não se

brinca”, pois, a autoridade máxima era para ser respeitada e se necessário fosse, a polícia

podia abusar do poder e punir aqueles que infringissem as leis.

Seu envolvimento com a situação política do país foi natural, pois tanto na família,

como no liceu, havia muitas pessoas que lutavam contra o regime e a partir dos 15 anos

de idade, Rosas começou a ser ativista: foi militante da Resistência Antifascista, do

Partido Comunista Português, da Esquerda Democrática Estudantil e mais tarde fundou

o Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses (PCTP/MRPP - Maoísta). Em 1965,

aos 18 anos, foi preso pela primeira vez justamente por ser militante do Partido Comunista

após denúncia de Nuno Álvares Pereira, antigo funcionário do PCP que colaborou com a

polícia na perseguição de seus colegas. Rosas foi julgado pelo Tribunal Plenário, um

tribunal especial – eram “juízes vendidos à polícia, era uma espécie de braço judicial da

polícia política”55, e condenado a um ano e três meses de prisão correcional. Após sua

libertação, concluiu sua licenciatura em Direito, e fundou com outros três amigos o MRPP

e voltou a ser preso em 1971. Foi submetido à tortura do sono na sede da PIDE, foi

novamente julgado e condenado a um ano e dois meses de prisão, sendo proibido de

regressar à função pública após o cumprimento da pena.

Rosas quase foi preso uma terceira vez antes do golpe, em 1973, porém conseguiu

fugir da polícia, e se esconder em um local providenciado por um amigo angolano,

segundo relato a um programa da RTP – Rede de Televisão Portuguesa:

Eu fugi, fizeram uma perseguição de carro na rua, eu ainda tentei sair

do carro, não consegui; nessa altura o trânsito em Lisboa não é o que o

que era em 1973, e a certa altura, consegui ganhar uma vantagem sobre

eles, parei o carro, entrei pelas urgências da maternidade Alfredo Costa

e o homem que estava lá a entrar disse “tenha calma, onde é que está

sua senhora? Vá ali para fila pegar uma água”. Fui para fila, rasgando

todas as coisas que eu tinha, cartas, as que tinham folhas, ia rasgando,

ia comendo e tal e fui reparando que eles não vinham atrás de mim [...]

(ROSAS)56

Para se desviar da polícia, ficou em casa de amigos na clandestinidade, até que no

dia 25 de Abril, às oito da manhã, o acordaram para dar a notícia. Para ele, o 25 de Abril

55 Retirado da RTP, numa edição especial sobre o 25 de abril. Disponível em formato de vídeo:

http://media.rtp.pt/extremaesquerda/eu-estive-la/fernando-rosas-a-prisao/. Acesso em 15 de janeiro de

2015. 56 Disponível em: http://media.rtp.pt/extremaesquerda/eu-estive-la/fernando-rosas-prisao-falhada/

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“é uma grande mudança, o princípio do resto das nossas vidas [...] como diria o Sérgio

Godinho”. 57 Ele relata que viveu com intensidade esse momento em que o mundo estava

atento ao que ocorria em Portugal (ROSAS, 2015).

Acerca do Canto de Intervenção, pontua que a “curiosamente a Revolução dos

Cravos criou pouca música de resistência” (como, de fato, se lê no item dedicado a Zeca

Afonso), mas nessa época se utilizou bastante as canções das quais já tinham sido sucesso

anteriormente à Revolução. A Grândola Vila Morena, como ressalta Rosas (2015), surgiu

novamente como um “hino” de protesto contra a Troika e contra a política da Austeridade,

já durante a recente crise econômica europeia.

Após a queda do regime, ressalta Fernando Rosas, alguns dos grandes avanços no

país, sendo a “democracia” a grande marca deixada pela revolução. Portugal pôde crescer

em alguns aspectos:

[a Revolução] traz, sobretudo, conquistas em três domínios que são

absolutamente marcantes, educação, a criação da escola pública, não é

criação, é democratização do acesso à escola pública, o segundo é o

serviço nacional de saúde, e o terceiro é o sistema de segurança social.

São os três grandes pilares da democracia. (ROSAS, 201558)

Mesmo com o atraso em algumas áreas, como no caso do controle operário, da

reforma agrária e dos cortes de privatizações, ele acredita que os benefícios são muitos,

como no caso da educação, da saúde e segurança social.

Fernando Rosas também ingressou na política exercendo o cargo de deputado pelo

bloco de esquerda, foi candidato à Presidência da República, em 2001 – ficando em quarto

lugar. Trabalhou como articulista da seção de História do jornal Diário de Notícias e desde

1992 escreve quinzenalmente no jornal o Público. Concluiu mestrado e doutorado em

História e é professor da Universidade Nova de Lisboa. É, ainda, consultor da Fundação

Mário Soares e diretor da Revista História. A sua área de pesquisa engloba o Estado Novo

e sua mais recente obra (Magnus Opus) foi lançada em 2012, sob o título de Salazar e o

Poder: A Arte de Saber Durar.

57 Entrevista dada à Rádio Antena 2, no dia 25 de junho de 1999. Disponível em:

http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=Tc1335 58 Trecho da entrevista concedida a pesquisadora no dia 05 de fevereiro de 2015.

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2.3 SOBRE JOSÉ “ZECA” AFONSO

Figura 22 – Fachada da Associação José Afonso

Reprodução de foto de Zeca Afonso na entrada da sede da Associação José Afonso, em

Lisboa. Acervo pessoal.

José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, ou simplesmente “Zeca Afonso”, foi

o grande nome entre os cantores revolucionários, não somente pela qualidade de suas

músicas, mas também por ter sido praticamente o precursor do canto de revolução –

juntamente com Adriano Correia de Oliveira. Nascido em Aveiro, em 1929, morou em

Angola e Moçambique com os pais e em diferentes cidades de Portugal com os tios –

devido a problemas de saúde. Seu pai era delegado do procurador da República e morou

na África com sua família, e também em Timor, anos mais tarde. Aos nove anos de idade,

após um tempo com os pais e irmãos em Moçambique, foi morar com um tio defensor do

regime salazarista, que o obrigava a usar a farda da Mocidade Portuguesa. Mais tarde,

morou em Coimbra, continuou seus estudos, levou uma vida boêmia, foi duas vezes

reprovado e em 1949 iniciou o curso de Letras. A partir de 1953, começou a gravar

algumas de suas canções, e os primeiros discos, lançados ainda em 1953, são os Fados de

Coimbra, temas que costumava cantar em reuniões acadêmicas e pelos bares de Coimbra.

Nessa época também, cumpriu o serviço militar obrigatório, casou, teve filhos, e para se

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sustentar financeiramente, começou a dar aulas, e uma de suas características como

professor era despertar nos alunos o espírito crítico:

A minha ação como professor era mais de caráter existencial, na medida

em que queria pôr os alunos a funcionar como pessoas, incutir-lhes um

espírito crítico, fazer com que exercitassem a sua imaginação à margem

dos programas oficiais.59

Em 1964, mudou-se com sua esposa para Moçambique, onde passou três anos

também exercendo a função de professor. Com o início das atividades da FRELIMO

(Frente de Libertação de Moçambique), Zeca Afonso mostrou-se contra as práticas do

colonialismo e a PIDE o afastou do cargo de professor. Sem salário, decidiu voltar com

a esposa e os dois filhos mais novos para Portugal, deixando o primogênito em

Moçambique na casa dos avós. Mesmo em seu país, os tempos não foram fáceis: após a

retomada das atividades do ensino, e não deixando a prática da música de lado, a PIDE

voltou a persegui-lo e após a denúncia por uma de suas alunas, foi novamente expulso do

ensino. Zeca Afonso costumava fazer shows em diferentes lugares da Europa e participar

de muitas reuniões acadêmicas, e nessas reuniões mostrava o seu posicionamento político

e induzia os universitários com seus ideais.

A principal canção de Zeca Afonso, “Grândola Vila Morena”, foi escrita em 17

de maio de 1964 após sua visita à cidade de Grândola, a convite da Sociedade Musical

Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG) para um concerto, por ocasião do 52°

aniversário da fundação da sociedade. Neste evento, participou também Carlos Paredes,

um guitarrista muito apreciado por ele, embora não o conhecesse pessoalmente. Ao

chegar à cidade, foi muito bem recebido pelas pessoas, e percebeu também que o

empenho, a solidariedade e a fraternidade faziam parte dos ideais do povo, características

que colaboravam para a progresso da cidade. Soube que na SMFOG se escondia “um

ninho de progressistas, a maioria operários, entre os quais muitos comunistas

clandestinos, que escolheram a cultura como arma política” (GUERREIRO,

LAMAITRE, 2014, p. 51). Lá visitou a biblioteca, onde havia obras escondidas da polícia

sob o palco de madeira. A partir dessa visita, com o evento em si e a maneira pela qual o

povo da cidade enfrentava a censura, ficou encantado com o local, e compôs a canção

Grândola Vila Morena, logo após esse concerto. Quatro dias depois, enviou o poema

como forma de agradecimento à SMFOG pelo convite e pela receptividade. O poema foi

59 Trecho de uma entrevista retirada do site oficial da Associação José Afonso, concedida a Viriato Teles,

em “Se7e”, no dia 26 de janeiro de 1986. Disponível em: http://www.aja.pt/eu-dizia/

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lido no fim do mês ao público reunido na Associação. Sobre esse poema, que no fim se

tornou a canção mais emblemática da história da música portuguesa, Francisco Fanhais

registra:

Na sua alma de Poeta calou fundo a emoção de encontrar, numa

pequena comunidade alentejana, um possível caminho para a liberdade

e a felicidade dos homens e mulheres do seu povo e da humanidade em

geral. (FANHAIS, in: GUERREIRO; LEMAÎTRE, 2014, p. 7)

Em entrevista, o próprio Zeca Afonso conta sobre essa experiência de visitar uma

cidade com ideais diferentes dos que havia visto em outros lugares do país:

- Falamos há pouco da “Grândola Vila Morena”. Quando e como a

compuseste?

- Foi há uns dez anos, precisamente na altura em que comecei a visitar

com mais assiduidade as sociedades de cultura e recreio. Umas das

primeiras que conheci foi Sociedade Musical Fraternidade Operária

Grandolense, para a qual também o Paredes tinha sido convidado. Eu

vinha do Algarve, de um meio um pouco diferente, e as relações

humanas existentes naquela sociedade eram de tal ordem que não

cheguei a saber quais eram os membros da sua direcção. Havia uma

distribuição de responsabilidades que me deu a ideia, talvez simplista,

de que uma sociedade socialista seria assim. Uma sociedade sem

desigualdades, em que as pessoas assumiam conscientemente o papel

que lhes cabia. Por ampliação desse contacto, é que fui levado a fazer

uma canção dedicada a Grândola60.

Como a canção foi feita em 1964, e somente gravada em disco em 1971, explica

o motivo dessa demora na mesma entrevista:

Como se falava muito em proibições, comecei por entrar com pezinhos

de lã e a cantar as canções menos contundentes. Depois à medida que

encontrava brechas, ia fazendo passar ao lado de duas ou três canções

líricas outra com um sentido mais objetivo. Assim, cheguei à Grândola,

e, ultimamente já no limite da permissividade, à Morte Saiu à Rua.

(idem)

A canção integra o conjunto de textos que será analisado mais adiante. Ela foi

cantada pela primeira vez em 1972, em Santiago de Compostela. Cabe dizer que foi

percebida nessa apresentação como música com grande capacidade de mobilização, por

ter provocado efeitos emocionais no público quando entoada. Essa canção produziu esse

mesmo efeito no dia 29 de março de 197461, durante o espetáculo no Coliseu, por ter sido

a última canção a ser apresentada, e as pessoas, com punhos erguidos, cantaram

60 Entrevista à Revista Flama, do dia 7 de junho de 1974. Disponível em:

http://www.aja.pt/ficheiros/entrevistas/entrevistaflama.pdf 61 Haverá um subitem com mais detalhes sobre esse espetáculo no Coliseu no dia 29 de março. A canção

Grândola Vila Morena também será retomada no capítulo de análise.

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juntamente o refrão e partes da canção, considerada difícil de ser memorizada na ordem

correta.

Figura 23 – Álbum Cantigas do Maio

Álbum lançado em 1971, contendo a canção Grândola Vila Morena.

Fonte: Acervo pessoal.

Outras canções de Zeca Afonso, como Os Vampiros e Menina dos Olhos Tristes

também fizeram bastante sucesso na época e fazem parte do capítulo de análise. Era um

gênio poeticamente e suas letras alcançavam um sucesso enorme, fazendo com que a

polícia estivesse sempre perseguindo seus passos e proibindo a apresentação de algumas

dessas canções. Curiosamente, Grândola Vila Morena, nunca foi proibida, o que ajudou

na difusão da canção. Nos arquivos da PIDE, encontram-se inúmeros relatórios acerca de

Zeca Afonso e um dos selecionados destacava suas atividades de cantor numa das

reuniões de universitários que ele costumava participar sob a estrita vigilância da PIDE,

conforme se lê no processo de 1967, encontrado na Torre do Tombo:

No dia 11 de novembro findo foi organizada pelo “nice-club do

Barreiro”, sem qualquer licença, uma reunião de “universitários” de

Lisboa, que ali ocorreram em grande número durante a qual falou e

cantou o “elemento” desafecto bastante conhecido Dr. José Manuel

Cerqueira Afonso dos Santos, o “José Afonso”, professor do Liceu

Nacional de Setúbal, e cujos discos, de características subversivas, têm

sido quasi todos proibidos.

O José Afonso além de falar, cantou os “Vampiros” no que foi

acompanhado e aplaudido por toda a assistência.

19 de dezembro de 1967

(TORRE DO TOMBO: Proc. número 7407 – E – GT / NP – 1546, p.

2, grifo nosso)

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Vale ressaltar como a Polícia se refere ao chamar o cantor de “elemento desafecto

bastante conhecido”, claramente pelo que já foi mencionado anteriormente: nessa época,

Zeca Afonso, além de já ser bastante conhecido por todos, sempre fez questão de mostrar

e divulgar sua discordância com o sistema político vigente em Portugal, sendo uma dura

ameaça para o regime.

Entre os estudantes, a presença de policiais também os deixavam irritados com a

falta da possibilidade de se realizar reuniões estudantis, e a proibição dada a Zeca Afonso.

Segue a transcrição de uma cópia do panfleto circulado do seminário de 1968, apreendido

pela PIDE e encontrado atualmente também na Torre do Tombo, sob o mesmo número

acima, na página 33:

Cópia do panfleto subversivo denominado ‘Seminário 68’

Emanado ao setor universitário de Lisboa na parte respeitando ao Dr.

José Afonso

2. Vampiros e Estudantes

É verdade, amigos! A sessão de convívio de medicina em que devia

cantar o Dr. José Afonso foi proibida por alguns “passarocos”, que em

vez de asas exibiam cartões e alguns títulos bem sonantes. Os

estudantes é que não acharam graça nenhuma à “visita” dos tais

“bisnaus”. E vai daí, foram para o Técnico, onde ouviram música

gravada do Dr. José Afonso, e depois uma balada cantada por este em

“carne e osso”. Triste sina a dessa Pátria! Enquanto na América pululam

os “falcões”, entre nós voam os “Vampiros”! Somos na verdade um país

pequeno!

(TORRE DO TOMBO: Proc. número 7407 – E – GT / NP – 1546, p.

33, grifo nosso)

“Vampiros”, como escreveram os estudantes, se referem justamente a uma das

canções de Zeca Afonso, também a ser analisada adiante. A PIDE sempre tentou prender

o cantor, porém como as prisões sempre ocorriam perto do início de maio, o cantor

conseguia se esquivar nessa época, escondendo-se, por exemplo, em casa de amigos.

Segue um “mandato de captura”62 emitido pela PIDE/DGS em 1971, também sem

sucesso (sendo apenas preso em 1973, por apenas alguns dias):

62 Arquivo retirado do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra. Disponível em:

http://www1.ci.uc.pt/cd25a/media/Images/Zeca_mandato%20de%20captura1971.jpg. Acesso em abril de

2016.

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Figura 24 – Mandado de Captura ‘Zeca Afonso’

Mandato de captura de Zeca Afonso. O fato deveria ser comunicado imediatamente à Direção

de Serviços.

Zeca Afonso, só soube depois da revolução que sua canção Grândola Vila Morena

havia sido escolhida como a segunda senha do movimento militar. José Jorge Letria

(2013) registrou em uma de suas obras, sua conversa com ele mais tarde pelo telefone:

Falei com ele ao telefone e confessou-me a sua surpresa e satisfação.

Estava visivelmente emocionado e ainda um pouco perplexo com a

escolha, e eu sei que, se tivesse dependido dele, talvez não fosse essa a

opção. Preferia outras canções por terem refrões mais simples e

mobilizadores. (p. 150)

Em entrevista concedida à emissora RTP em 30 de abril de 1974, cinco dias após

a queda do regime, Zeca Afonso estava no aeroporto com José Letria para receber os

exilados que vinham da França, entre eles José Mário Branco (conf. imagem que consta

na abertura do capítulo 2). Nessa ocasião falou sobre a escolha da música e suas

expectativas para o futuro de Portugal:

A Grândola era um fator estimulante da congregação das pessoas,

congregação emocional, [...] [foi um] pontapé de saída, e aliás, como

eu digo, sem a minha participação consciente é uma coisa que me enche

de regozijo, mas acho que temos que passar uma fase menos emotiva,

e trabalhar, organizar sobretudo as camadas populares sobretudo,

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formarmos comissões... creio que neste momento é preciso congregar

uma frente da esquerda e organizar sobretudo as bases, há uma extensão

enorme de pessoas politizadas que vão neste momento entrar no

circuito, vão constituir os organismos que futuramente estarão a frente

desse facto revolucionário, desse país. (AFONSO, 197463)

A escolha da música como senha para a Revolução dos Cravos o deixou bastante

entusiasmado. Mas sempre agiu com naturalidade e, para ele, toda essa comoção acerca

da canção precisaria acabar, para que as pessoas pudessem agir logo com intuito de

melhorar o país. Ele reconhece que a canção foi “aquela a que mais condições reunia para

ser uma espécie de lugar geométrico, de pontapé de saída. Mas também poderia ser

qualquer canção, [...], pois se tratava apenas de um sinal convencional...” 64 . A canção

virou uma espécie de “hino popular”, e Zeca Afonso esperava que esse momento viesse

“a ser totalmente ultrapassado”:

De facto, a composição é um hino, embora seja vivida como uma

canção estimulante da união entre as pessoas, não propriamente da luta,

porque as canções de luta ainda terão de ser feitas pelas pessoas que

estão mesmo metidas na luta até o pescoço (como diz o José Jorge

Letria65). Já aí disse, num papel qualquer, que as canções não apontam

o caminho às pessoas, embora por detrás das canções exista uma visão

do mundo e uma ideologia política. O que as canções não podem é

apontar essa ideologia.66

Ele afirma, nesta entrevista dada poucos meses após a queda da ditadura, que o

importante seria lutarem pelos seus ideais e construírem suas próprias “canções”, pois ele

não concordava que suas letras tivessem um caráter de apontar um novo rumo a ser

tomado; se assim fosse, suas composições não poderiam mais ser vistas como canções, e

sim como “manifestos”, prontos para serem postos em prática. Ele também relata a falta

de criatividade para compor novas canções após o golpe, quando lhe perguntaram se ele

já havia composto algo: “Não. Pelo contrário, deixei de o fazer. Não fui capaz de compor

absolutamente nada.” Assim, o entrevistador compreendeu que ele estaria num certo

“embaraço” quanto ao que deve compor: “Estou. E ponho mesmo o problema de saber se

serei capaz de construir canções. ” 67

63 Entrevista de Zeca Afonso concedida à RTP no dia 30 de abril de 1974, por ocasião da chegada dos

exilados de Paris. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xXlresjhAqw. Acesso em

20/02/2016 64 Entrevista de Zeca Afonso concedida à Revista Flama, datada de 7 de junho de 1974, disponível no site

da Associação José Afonso: http://www.aja.pt/ficheiros/entrevistas/entrevistaflama.pdf 65 Zeca Afonso se refere ao disco de José Jorge Letria chamado “Até ao pescoço”, lançado em 1972. 66 Idem 67 Idem.

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Esperava-se que, após a queda do regime, a mídia aproveitasse o momento de

euforia para falar acerca das canções, e do movimento dos cantores, e de toda a trajetória

deles como forma de fazer o público conhecer mais sobre todos os percalços e situações

que eles atravessaram, já que qualquer coisa sobre eles e suas canções eram censuradas

antes de 1974. Zeca Afonso nunca gostou desses holofotes e queria que toda essa

repercussão acerca de sua música diminuísse e desse lugar a resultados concretos.

Assim, como visto em algumas entrevistas de José Jorge Letria acerca do que

ocorreu após o 25 de Abril e a (falta de) união entre os cantores, Zeca Afonso também

relatou sobre esse ocorrido ainda na entrevista à Revista Flama (1974, p. 38):

[Flama] Antes de 25 de Abril, um espectador mais ou menos atento teria

a sensação de que havia maior união entre quem estava envolvido,

subterraneamente, num mesmo – e musical – objectivo comum. Ora

depois daquele dia, e passados que foram certos incidentes já

registados, esse espectador deve pensar que já não existe tal união, se é

que ela existia antes de 25 de Abril. Portanto que pensas sobre união e

desunião. Das pessoas, dos seus processos ou objectivos. Ou trata-se

apenas de mal-entendidos de ocasião? [Zeca Afonso] Essa pergunta é difícil como o raio. Sei tanto como tu. É

evidente que se estão a esboçar tendências de carácter político, que se

concretizam em programas, os quais têm uma realização prática ou

denotam um desajustamento entre a sua definição e a sua vinculação

prática. Tudo isto será consequência das contradições sociais vividas

neste momento, num país que é simultaneamente colonizado e

colonizador. Enfim, essa desunião é infelizmente (ou felizmente, não

sei) real.

[Flama] E já existia anteriormente ao 25 de Abril?

[Zeca Afonso] Sim, e agora talvez se tenha acentuado mais.

Ainda que a união possa ter sido afetada, Zeca Afonso nomeia os seus amigos

nessa entrevista, três dos quais foram entrevistados para o presente trabalho:

- Já confirmaste a desunião, já reflectiste divergências. Por isso, será

que te consideras isolado de um grupo, de uma corrente que possa

existir ou vir a formar-se, no setor musical ou artístico?

- Sinto-me perfeitamente solidário com os outros meus amigos e posso

nomeá-los: Francisco Fanhais, José Mário Branco, Adriano Correia de

Oliveira, Luís Cília, Sérgio Godinho, Manuel Freire, Laranjeira, José

Jorge Letria, A. P. Braga, entre outros. Cada qual terá a sua tendência,

cada qual terá a sua forma pessoal de enfrentar as tais puerilidades, mas

isso não exclui de modo algum a solidariedade que tenho para com eles.

- E eles para contigo?

- Acho que têm, até porque não têm nenhum motivo em contrário.

Enfrentámos as mesmas situações, a tal ponto que não se pode dizer que

tenhamos tudo biografias muito distintas uns dos outros. (grifo nosso -

p. 39)

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Em 1985, em entrevista, Zeca Afonso afirma que não voltaria a cantar, - mas

meses depois, gravou o seu último disco, desta vez com José Mário Branco, quando

percebeu, por meio das críticas, que muitos o consideravam cantor de uma música só:

Não voltaria a cantar. Em nenhuma circunstância. Para o público, não.

Até porque possivelmente não teria nada de novo a apresentar. E acho

que as coisas devem acabar quando não adiantam nada. De resto sou

obrigado a concluir que o meu trabalho como cantor é menor… A

crítica em geral reduz-me ao autor das Cantigas do Maio, o que quer

dizer que antes e depois não fiz nada que preste. É uma bela crítica de

música, a nossa! Tem-me proporcionado notáveis baboseiras sobre o

trabalho de colegas, trabalho esse que em qualquer país decente seria

suficiente para afirmar o mérito dum cantor, pelo menos. (1985)68

O cantor foi o mais citado dentre as seis entrevistas realizadas para esta pesquisa,

além de ser constantemente mencionado nos registros escritos dos autores, especialmente

nas obras de José Jorge Letria:

Vi o Zeca pela primeira vez, de boina na cabeça, capote alentejano pelas

costas, camisa de flanela aos quadrados, calças castanhas e camisola

[suéter] azul escura. [...] José Afonso era, para os estudantes dessa

época e, sobretudo para os que enveredavam pela atividade musical e

pelo combate político contra a ditadura, uma referência, um símbolo e

um exemplo, embora ele fosse refractário a esse tipo de mitificação, que

reprovava e que visivelmente o inibia ou chegava mesmo a irritar.

(LETRIA, 2013, p. 46)

Zeca Afonso ficou conhecido como um líder, uma vez que procurou auxiliar na

conscientização da população diante dos absurdos da situação vivida. Esse despertar da

população precisava ocorrer urgentemente, pois o país não podia continuar naquela

condição sócio-político-econômica e a Guerra Colonial precisava ter um fim.

Zeca Afonso, sempre informal e fraterno, tinha a exacta noção dessa

urgência, da necessidade dessa síntese que nos levava a perceber o que

era urgente e inadiável e a dar-lhe a força e a eficácia, mas com imenso

desejo de agitar, mobilizar e despertar consciências. (LETRIA, 2013, p.

49)

Foi uma personalidade muito comentada em Portugal nos dias que se seguiram, e

até hoje muitos recordam o grande valor que Zeca Afonso trouxe para a música de

resistência, e seu poder influenciador:

Figura ímpar de seu tempo, Zeca Afonso teve o mérito de influenciar

uma geração de portugueses, que reconheceram no seu tempo e na sua

68 Entrevista concedida ao escritor e jornalista José Amário Dionísio em junho de 1985. Disponível em:

http://www.aja.pt/ficheiros/entrevistas/entrevistaamarodionisio.pdf

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obra uma personalidade fora de série e um percurso musical marcante

e marcado pela coerência e modernidade (TVGi, 1999, p. 45)69

Francisco Fanhais, em sua entrevista também mencionou aspectos marcantes

sobre a canção de Zeca Afonso: na primeira vez que o ouviu cantar, sentiu algo como

“um murro no estômago”, pois foi quando finalmente, por meio da letra, constatou o que

estava acontecendo em Portugal. Ele percebeu em Zeca Afonso uma “relação autêntica”

com a música, além de ficar admirado com uma “voz maravilhosa” que ele tinha. Ainda

segundo Fanhais, as canções O menino do bairro negro e Os Vampiros – as mais

marcantes para ele – são as que o despertaram para a personalidade de Zeca Afonso,

(FANHAIS, 2014). Fanhais não imaginaria que viria a conhecer o cantor cinco anos após

o lançamento dessas canções, e ainda, que se tornariam amigos. Ao fundar a Associação

José Afonso, Fanhais teve a chance de “manter viva a memória, não só do ponto de vista

de sua arte, mas do ponto de vista também e essencialmente da sua cidadania, da sua

posição na vida, em favor sempre dos mais fracos” (FANHAIS, 2014).

2.4 REUNIÃO DOS CANTORES NO COLISEU: 29 DE MARÇO DE 1974

Para o ramo da música, este dia foi considerado uma prévia do que viria a ser o

25 de Abril. Foi a partir deste momento que as pessoas puderam ter uma noção ou talvez

uma ideia de que a revolução estava prestes a ocorrer, pois a mobilização do público nesse

dia foi tão grande quanto ao que eles iriam ver pouco menos de um mês depois, no golpe

do dia 25 de Abril.

Os cantores se reuniram no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, aguardando a

autorização da polícia para o início do espetáculo que contava com quase sete mil

telespectadores para ouvir o grupo dos cantores mais importantes da época. Receberam

uma ordem para que usassem “o bom senso” e desistissem das apresentações, o que seria

praticamente impossível, após ver a sala lotada à espera do início. Havia muitas pessoas

que moravam fora de Lisboa, percorreram longos caminhos “para não perderem a

oportunidade de ver pela primeira vez todos os cantores da resistência juntos” (LETRIA,

2013, p. 151). A lista das canções proibidas de serem cantadas chegou: Menina dos Olhos

Tristes, Venham mais cinco, e A Morte Saiu à Rua. Rapidamente, os cantores resolveram

69 Retirada da Revista TVGi, de abril de 1999: José Afonso “A Utopia e a Música”, p. 45

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as canções e deixaram para encerrar com a Grândola Vila Morena por ser a única sem

cortes da Censura e que resumia tudo que desejavam dizer às pessoas naquela noite,

falando de fraternidade, amizade, e também por ser a “menos amputada” de todas aquelas

que poderiam ser cantadas (LETRIA, 1999). “Desculpa, Zeca, mas tens que ser tu a

fechar. – Mas por que eu? Qualquer um de vocês o fará melhor do que eu. – Não, tens de

se tu, porque tu é que representas tudo aquilo que temos para dizer, e é a ti que as pessoas

querem ver e ouvir.” (idem, p. 34).

Essa noite foi, sem dúvida, uma das mais marcantes antes do dia da Revolução,

após ver

Milhares de pessoas de pé, abraçadas, de isqueiros acesos nas mãos a

tentarem não perder uma palavra sequer de uma letra difícil de

memorizar pela ordem correta. Muita gente saiu a cantá-la, já depois da

1 hora da manhã, para uma Lisboa cheia de polícias a cavalo, de carros

de água e de agentes com pastores alemães pela trela. Apesar de tudo,

houve serenidade e contenção. [...]. Todos sentimos que algo de

decisivo estava prestes a acontecer, mas ignorávamos como, quando e

onde. (LETRIA, 2013, p. 152)

Figura 25 – Apresentação no Coliseu de Lisboa

Apresentação no Coliseu no dia 29 de março de 1974 (Letria, o segundo de pé, da esquerda para

direita; e Zeca Afonso, em pé, com as duas mãos no cabo do microfone, ao lado de Adriano Correia de

Oliveira, o primeiro da direita para esquerda.) Fonte: LETRIA, 2013, p. 7 (fotos)

A seguir, a representação deste show ocorrido após quarenta anos da queda do

regime, em 2014, no mesmo coliseu:

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Figura 26 – Apresentação no Coliseu 40 anos depois

Apresentação no Coliseu no dia 28 de março de 2014

Fonte: Folheto da Associação José Afonso

Figura 27 – Folheto “Cantar Grândola”

Folheto (frente e verso) retirado na Associação José Afonso sobre a reapresentação no Coliseu

em razão da comemoração dos 40 anos da Revolução dos Cravos.

Sobre o folheto acima, distribuído pela Associação José Afonso, vale ressaltar que

entre os cantores que fariam parte das apresentações estavam Francisco Fanhais e Sérgio

Godinho, entrevistados para esta pesquisa. No verso do folheto, o texto fala sobre o evento

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e da importância da canção Grândola Vila Morena. Além disso, menciona o fato de a

canção voltar a ser entoada nos dias atuais, em razão da crise socioeconômica iniciada

após o ano 2000, ratificando o caráter “intemporal e universal” da obra, por ter sido

cantada também em outros países, principalmente na Espanha, que, da mesma forma,

sofreu com a profunda crise financeira europeia.

A partir dos relatos acima, e do conhecimento de algumas canções que vieram a

ser famosas pelo conteúdo, segue-se a análise das sete canções mencionadas, na ordem

em que se segue: Trova do Vento que Passa; Os Vampiros, O Menino do Bairro Negro;

Grândola Vila Morena; Menina dos Olhos Tristes, Cantar da Emigração, e Liberdade.

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Figura 28 – Associação José Afonso (Acervo pessoal)

Só há liberdade a sério quando houver

A paz o pão, habitação

Saúde, educação

(Sérgio Godinho)

CAPÍTULO 3

ESCUTANDO AS VOZES DE QUEM RESISTE:

“HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE DIZ NÃO”

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3. ESCUTANDO AS VOZES DE QUEM RESISTE:

“HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE DIZ NÃO”70

Em Portugal, a canção como uma forma de protesto não se inicia à época da

Guerra Colonial: no início do século, antes da queda da monarquia, em 1910, o fado já

mostrava uma característica semelhante ao cantar sobre a vida rural e sobre temas que

incluíam a fome, a desgraça, a luta dos empregados e a esperança de um futuro melhor.

Com a chegada da República, e em seguida da ditadura, nem todos os tipos de músicas

foram bem aceites pelo governo, ocorrendo, assim, um desaparecimento gradual do fado

como tipo de intervenção, com a proibição dada pelo Secretariado Nacional de

Informação e a Emissora Nacional – obras do governo salazarista – mas, ainda assim, o

suficiente para inspirar outros cantores a continuarem fazendo o mesmo. O cante

alentejano também foi outro precursor do canto de intervenção, sendo, inclusive, uma das

grandes inspirações para algumas das composições que aqui são analisadas. Algumas

letras tinham tom de crítica social, contra a qualquer tipo de poder, pois relatavam as

injustiças e as condições precárias da população, mostrando a situação de um grupo

oprimido frente ao grupo opressor. (RAPOSO, 2014).

Letria (1978) aponta que desde o fim do século XIX canções dessa natureza foram

um refúgio e um modo de as pessoas condenarem a iniquidade e a opressão. Elas

ganharam força com as reinvindicações da classe operária, que incluíam redução da

jornada de trabalho e melhores salários – e essa união seria a única forma de (juntos)

pressionarem as autoridades com o objetivo de vencerem a repressão e a miséria. O

escritor ainda lista acontecimentos históricos pelo mundo que foram tema de várias

canções, mas a grande referência para o Canto de Intervenção do século XX veio com as

canções surgidas por ocasião da Revolução Cubana, em 1959, influenciando assim,

muitos movimentos na Europa e na América Latina, dentre os quais, destaca-se a canção

portuguesa:

Nos últimos anos da década de 60 existe já em Portugal um verdadeiro

movimento. Apesar da repressão, da apreensão de discos e da proibição

de espetáculos, os cantores cumprem a sua função, apelando para a

unidade de todas as forças democráticas e anunciando, por meio de

sátiras violentas, a agonia do fascismo. (1978, p. 27)

70 Versos da canção “Trova do Vento Que Passa”, de Adriano Correia de Oliveira.

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Outras formas de arte também demonstram o sentimento dos indivíduos frente ao

regime totalitário e opressor, mas, com a censura, muitas dessas manifestações foram

abafadas e algumas perdidas com o tempo. Por outro lado, vale ressaltar que há, por

exemplo, poemas de Fernando Pessoa (2015) – mesmo vivido tão pouco no regime

salazarista – exprimindo a insatisfação com a política ditatorial.

O canto de Intervenção teria sido, talvez, a maneira mais eficaz de mobilização

encontrada à época, pois, mesmo havendo a apreensão de discos, a propagação da música

aconteceria rapidamente, mesmo que os cantores só conseguissem cantar algumas vezes

em público devido à proibição da polícia. Os intérpretes aproveitaram a mobilização de

jovens, especialmente universitários, para difundir os seus ideais, e perceberam na música

a arte perfeita para isso: “A canção, desde que a carga política que transporta seja

claramente assumida por quem a faz ou difunde, pode ser um complemento activo da luta

de massas, devido à sua mobilidade e à sua capacidade de denúncia das contradições

sociais” (LETRIA, 1981, p. 19). O poder da canção aumenta se considerarmos o acesso

a ela, pois enquanto um livro, uma obra ou um panfleto chega às mãos de uma pessoa

pela leitura, que muitas vezes só se faz uma vez, uma canção é possível ser ouvida

diversas vezes, propiciando a disseminação de sua mensagem junto ao público.

Reconhecendo a importância da canção com caráter político como forma de

exprimir os mais sinceros anseios acerca de uma posição ideológica, e sabendo que cada

uma dessas canções apresenta um valor imensurável no que diz respeito ao conteúdo que

são capazes de exprimir, seguem-se análises das composições recorrentemente indicadas

pelos entrevistados (cf. capítulo 2). São elas:

a) Trova do Vento que Passa (1963): letra de Manuel Alegre; música de

António Portugal; interpretada por Adriano Correia de Oliveira.

b) Os Vampiros (1963): letra e música de Zeca Afonso

c) Menino do Bairro Negro (1963): letra e música de Zeca Afonso

d) Grândola Vila Morena (1964): letra e música de Zeca Afonso

e) Menina dos Olhos Tristes (1969): letra de Reinaldo Ferreira; música de Zeca

Afonso.

f) Cantar de Emigração (1970): letra de Rosalía Castro (1880); música de

Adriano Correia de Oliveira;

g) Liberdade (1974): letra e música de Sérgio Godinho

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137

Quanto à expressão utilizada para nomear esse tipo de composição - “Canção de

Intervenção”, “Música de Intervenção”, “Canção Popular Portuguesa” – nunca houve um

consenso entre os estudiosos e até mesmo entre os intérpretes sobre qual seria a mais

adequada. O próprio Zeca Afonso, em entrevista dada em 1985, destaca a indefinição do

conceito e não gosta da denominação de “Música Popular Portuguesa”:

- Música “Popular Portuguesa”, entre aspas. Por quê?

- Porque esse conceito é muito polémico. Não sei se lhe chame música

de texto, música social, música de intenção política, música de

intervenção. São tudo conceitos muito indefinidos, mas música popular

é ainda mais polémico. Senão voltaremos outra vez para a discussão

sobre música popular e música tradicional e eu não quero entrar nisso.

Prefiro dizer ‘a música da minha área’ ou ‘da nossa área’, abrangendo

um conjunto de colegas ou ex-colegas que sempre estiveram nessas

coisas, que sempre tiveram um recurso próprio.71

Neste estudo, optou-se por “Canto de Intervenção”, denominação que é

amplamente aceita por estudiosos (RAPOSO, 2014; LETRIA, 1999, 2013),

especialmente por aqueles que enfatizam a letra das canções, como é o caso deste

trabalho. A música engloba o esquema rítmico, sons, melodias e notas que não são

centrais nesta análise, mas que serão evocados sempre que contribuam para melhor

compreensão do conteúdo abordado.

As canções selecionadas foram, segundo os entrevistados, as mais expressivas e

significativas nos últimos dez anos da ditadura. Transmitiam esperança para o povo

“amordaçado”, e, metaforicamente, por meio delas, eram capazes de “libertar” o povo,

criando uma força coletiva mobilizadora de toda a população por um mesmo ideal.

Das sete canções, três foram interpretadas por Zeca Afonso, revelando, assim, o

grande impacto que este artista trouxe às massas em sua persistente contra o governo:

“suas canções são fruto de uma inquietação diária e de uma reflexão constante”,

“chamavam a atenção para as duras condições de vida da população” e “denunciavam a

falta de liberdade de expressão, a repressão, a Guerra Colonial e a hipocrisia de um

regime, alicerçado em fachadas e em mitos em decadência”. (VISEU, 2014, p. 71).

Importante destacar que essas canções, evidentemente, iam na contramão das promovidas

pelo regime, conhecidas como “nacional-cançonetismo”, que retratavam valores

tradicionais portugueses e que, naturalmente, divulgavam os ideais e princípios do

governo, exaltando o “conformismo” entre os portugueses.

71 Entrevista à Revista Se7e, do dia 27 de novembro de 1985. Disponível em:

http://www.aja.pt/ficheiros/entrevistas/entrevistaviriatoteles.pdf

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3.1 TROVA DO VENTO QUE PASSA

A canção Trova do Vento que Passa foi retirada de um poema de Manuel Alegre,

escrita em 1963 e interpretada e por Adriano Correia de Oliveira no álbum Fados de

Coimbra. O poema de Manuel Alegre é mais extenso, contendo quinze quartetos, ao passo

que na versão interpretada por Adriano Correia de Oliveira contém apenas três estrofes,

que serão trabalhadas aqui72.

Pergunto ao vento que passa

Notícias do meu país

E o vento cala a desgraça

O vento nada me diz

Mas há sempre uma candeia

Dentro da própria desgraça

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa

Mesmo na noite mais triste

Em tempo de servidão

Há sempre alguém que resiste

Há sempre alguém que diz não

Essa canção contesta o regime ditatorial em Portugal ao falar da “desgraça” que o

país vive. Quando fez estes versos, Manuel Alegre estava com Adriano Correia de

Oliveira, e desabafou “mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre

alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. Ao ouvi-los, Adriano Correia de

Oliveira profetizou que tais versos durariam para sempre (RAPOSO, 2014) e Manuel

Alegre logo finalizou o poema e tentaram musicá-lo, com ajuda de António Portugal

(músico e compositor que trabalhou com cantores como Adriano Correria de Oliveira e

Zeca Afonso). O sucesso dessa canção foi percebido três dias depois, quando cantaram

em uma festa de Calouros da Faculdade de Medicina: “foi um delírio, [Adriano Correia

de Oliveira] teve que repetir três ou quatro vezes, [...] Saímos todos para a rua a cantar.

A “Trova do Vento Que Passa” passou a ser um hino para aquele malta” (RAPOSO,

2014, p.194)

72 A cantora Amália Rodrigues também interpretou a canção em 1970, lançada no álbum “Com que Voz”.

Na versão dela, a única estrofe igual à versão de Adriano Correia de Oliveira foi a primeira; no restante, ela

seguiu a segunda e terceira estrofes da ordem correta do poema de Manuel Alegre.

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Ao analisar a canção – veremos aqui apenas os três versos utilizados por Adriano

Correia de Oliveira – percebe-se que há uma regularidade em termos de métrica e rima.

Todos os versos são classificados como redondilha maior, e as rimas intercaladas em

ABAB CACA DEDE. Na primeira e terceira estrofes do poema, as rimas também são

intercaladas em agudas (terminadas em oxítonas) e graves (paroxítonas), ao passo que na

segunda estrofe, há apenas rimas graves. A maioria das rimas são consoantes, enquanto

há apenas duas toantes, vistas em cadeia/semeia e servidão/não. Outra característica do

poema que chama a atenção é a questão da sonoridade, com as repetições de vogais com

sons parecidos, causando uma assonância, além de poderem ser consideradas rimas

internas e toantes, como se pode ver nos substantivos “vento”, “tempo”, nos advérbios

“sempre” e “dentro” e do pronome “alguém”, repetindo os sons “em”:

Pergunto ao vento que passa

Notícias do meu país

E o vento cala a desgraça

O vento nada me diz

Mas há sempre uma candeia

Dentro da própria desgraça

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa

Mesmo na noite mais triste

Em tempo de servidão

Há sempre alguém que resiste

Há sempre alguém que diz não

Destaca-se também no poema a prosopopeia, ao haver a personificação dos

substantivos “vento” – em que o sujeito faz uma “pergunta ao vento” – e da “noite” em

que é qualificada como “triste”, adjetivo comumente utilizado para seres vivos. Há

também casos de anáfora – muito comuns em canções, na repetição “Há sempre”,

podendo ser vistas no primeiro e terceiro versos da segunda estrofe e nos dois últimos

versos da terceira estrofe.

Essa canção revela a situação drástica de Portugal por causa do regime ditatorial,

em que a censura ainda agia com muita repressão e violência e o país ainda continuava

lutando contra as dificuldades – desemprego, onda de protestos, Guerra Colonial. A

primeira quadra, mesmo sendo criada por Manuel Alegre enquanto ele já estava em

Portugal [ficou preso em Angola por um período], poderia claramente ter sido escrito por

alguém que estivesse fora e precisasse de notícias do que estaria ocorrendo no país. Ao

fazer a pergunta ao vento, o cantor sabe que não haverá resposta, dando a ideia de que as

coisas continuariam à sombra da ditadura. O vento também poderia se referir a algo ou

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alguém que “escondesse” os fatos que estejam ocorrendo no país. O vento “varre” a

sujeira (desgraça) que lá ocorre, mas não a tira do local. A primeira estrofe é totalmente

pessimista em relação aos fatos que vinham ocorrendo em Portugal, mostrando ser uma

situação que ocorre há muito tempo e que virou rotina, ao utilizar os verbos apenas no

presente do indicativo nesta primeira estrofe “pergunto ao vento que passa e o vento cala

a desgraça/ o vento nada me diz”.

Na segunda estrofe, altera-se o rumo da letra, indicando um otimismo ao utilizar

a conjunção adversativa “mas”, em “Mas há sempre uma candeia”, referindo-se às

pequenas coisas boas que ocorrem dentro dessa “desgraça”: a utilização do substantivo

“candeia”, traz uma conotação de “luz”, “inspiração”, e ainda que “fraca” e “passageira”

(como sugere uma luz de candeia), o texto diz respeito às canções “semeadas” por

alguém. O verbo “semear” implica o ato de “plantar” ou “lançar”, e as pessoas farão com

que as “canções” sejam ‘divulgadas’. Nesses versos cabem o provérbio bíblico “Quem

semeia vento, colhe tempestade”73, trazendo para esse contexto, um sentido oposto ao

pretendido pela Bíblia: enquanto biblicamente, aquele que semeia vento, colhe resultados

improdutivos, aos que “semeiam canções no vento”, esperam colher bons frutos:

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa

Se o “vento que passa” pode levar notícias, aos que semeiam canções no vento podem ter

suas canções “levadas” por ele, isto é, divulgadas especialmente pela própria população,

alcançando popularidade. Ao mesmo tempo, o vento, por estar sempre em movimento,

pode também fazer com que a canção “semeada” nele passe e se distancie rapidamente,

pois sendo ela muitas vezes censurada pela PIDE, as pessoas poderiam perder o acesso à

essas canções.

Na terceira estrofe, novamente, o poeta utiliza outra conjunção para contornar a

situação de tristeza: “mesmo”, suavizando todo o restante da estrofe, assim como ocorrido

na quadra anterior. Nessa última estrofe o autor enfatiza a existência de pessoas que

resistem ao que lhes é imposto, sendo, nesse caso, todos aqueles que combatem a ditadura

que está em vigor no país, seja ela por meio de canções, da literatura, seja por meio

daqueles que utilizam sua influência para motivar o ativismo.

73 Conferir Oseias 8.7, Bíblia versão JFA.

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A principal mensagem desse poema diz respeito à esperança que esses poetas e

cantores sentem quando percebem que suas obras estão sendo divulgadas e bem recebidas

pelo público. É esse público que faz essa luta continuar, apesar de todo o clima opressor

e angustiante vividos.

3.2 OS VAMPIROS

A canção Os Vampiros, também de Zeca Afonso, foi uma das primeiras canções

de protesto surgidas na época da Guerra Colonial. Essa canção faz parte do disco Baladas

de Coimbra, lançado em 1963, e se tornou uma das canções mais emblemáticas do cantor.

Ressalta-se também, que essa é uma das canções mais citadas nas entrevistas, pois foi por

meio dela que muitos cantores passaram a conhecê-lo melhor e a seguir o mesmo caminho

percorrido por Zeca Afonso, como nos casos do Francisco Fanhais e José Letria, por

exemplo. Essa canção, possivelmente, nasceu da necessidade de mostrar mais

explicitamente o que vinha ocorrendo em Portugal por volta de 1963, quando esteve em

Coimbra. As canções mais cantadas da época não traziam o mesmo teor político e isso o

afetou, fazendo com que percebesse que as canções eram feitas unicamente para

entretenimento, mostrando um mundo perfeito e não condizente com a realidade. Dessa

forma, apontava que a canção também podia assumir um caráter informativo e

mobilizador, na expectativa de “fabricar um novo tipo de canção, cuja atualidade poderia

repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência

adormecida, em vez de o distrair” (VISEU, 2014, p. 79).

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Segue a letra original da canção dividida em estrofes, conforme o manuscrito74

(Figura 29):

(I)

No céu cinzento

Sob o astro mudo

Batendo as asas

Pela noite calada

Vêm em bandos

Com pés de veludo

Chupar o sangue

Fresco da manada

(II)

Se alguém se engana

Com seu ar sisudo

E lhes franqueia

As portas à chegada

Eles comem tudo

Eles comem tudo

Eles comem tudo

E não deixam nada

(III)

A toda a parte

Chegam os vampiros

Poisam nos prédios

Poisam nas calçadas

Trazem no ventre

Despojos antigos

Mas nada os prende

Às vidas acabadas

(IV)

São os mordomos

Do universo todo

Senhores à força

Mandadores sem lei

Enchem as tulhas

Bebem vinho novo

Dançam a ronda

No pinhal do rei

Eles comem tudo

Eles comem tudo

Eles comem tudo

E não deixam nada

(V)

No chão do medo

Tombam os vencidos

Ouvem-se os gritos

Na noite abafada

Jazem nos fossos

Vítimas dum credo

E não se esgota

O sangue da manada

(VI)

Se alguém se engana

Com seu ar sisudo

E lhes franqueia

As portas à chegada

Eles comem tudo

Eles comem tudo

Eles comem tudo

E não deixam nada

74Documentos retirados do “Centro de Documentação 25 de Abril”, da Universidade de Coimbra.

Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=dossierzeca. Acesso em abril de 2016.

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Figura 29 – Manuscrito de Os Vampiros

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144

Apesar de a canção ter sido composta em 1963, mais de cinquenta anos antes deste

trabalho, seu conteúdo é atemporal. Não raramente, o refrão “eles comem tudo e não

deixam nada” é visto como enunciados emblemáticos utilizados em protestos e

manifestações na sociedade portuguesa atual, além de muros grafitados com a letra da

canção (como a figura 31 abaixo), denunciando a indignação do povo frente ao governo,

que “suga” o dinheiro para as suas próprias necessidades e deixa, assim, de propiciar

melhores condições de vida para a população. Essa canção é sempre lembrada como uma

das canções mais presentes no Portugal contemporâneo, especialmente com a recente

crise europeia.

Figuras 30 e 31

Foto de um muro pichado com parte da letra de

“Os Vampiros”, como forma de

descontentamento do povo em relação ao

governo atual. Ressaltam-se ainda dois aspectos

nessa foto: as cores utilizadas remetendo a um

vampiro e ao sangue, preta e vermelha, e o

símbolo do jogo Pac-Man (come-come) em

vermelho, representação utilizada para mostrar

o que o governo “come”. Calçada de São

Francisco, Lisboa, em 19 de outubro de 2013.

Acervo pessoal.75

Muro pintado em homenagem a Zeca

Afonso, com a partitura da canção

“Os Vampiros” pela comunidade de

Ribeira Seca, Ilha da Madeira.76

75 Mais imagens de muros comemorativos do 25 de Abril poderão ser vistas no ANEXO F 76 Disponível no website da Associação José Afonso, em: http://www.aja.pt/mural-na-madeira/. Acesso em

abril de 2016.

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A canção, de acordo com a letra manuscrita, contém seis estrofes de oito versos

cada – seis oitavas - e o refrão está em conjunto com a segunda e a última estrofes,

aparecendo também na metade da canção, logo após a quarta oitava. É cantada a uma só

voz, sem coro, e tem o acompanhamento de apenas um instrumento, o violão, dando uma

atenção especial para a letra da composição. Ao se fazer a escansão dos versos, percebe-

se que a métrica é variável, podendo ter de 3 a 6 sílabas77.Levando em consideração a

questão do som de algumas palavras na variedade do português europeu, alguns versos

podem sofrer ligeiras diminuições da quantidade de sílabas métricas, não perdendo, dessa

forma, a simetria desejada pelo cantor. Como exemplo, cita-se o quarto verso da primeira

oitava, “Pela noite calada”, em que a última sílaba métrica é “la”, formando assim seis

sílabas métricas, sendo, dessa forma, díspar com relação ao restante da canção, que nessa

mesma posição, formam versos com cinco sílabas métricas. Pela sonoridade da canção e

para efeito métrico, a palavra “noite” pode sofrer alteração, tendo apenas uma sílaba

métrica, igualando, assim, as cinco desejadas pelo cantor:

Pe/la/noi/te/ca/la/da = 6

Pe/la/ noi/te/ ca/la/da = 5

As estrofes contêm oito versos com métrica em sua maioria intercalada em

tetrassilábicos e redondilha menor 4-5-4-5-4-5, após algumas variações entre um verso e

outro, como será visto de maneira mais detalhada. A divisão das sílabas não obedece ao

mesmo esquema de uma divisão feita em poemas, pois, nesse caso, é necessário ouvir a

canção para obter o efeito e a métrica desejados. Assim ficaria a estrofe eliminando-se as

sílabas não tônicas e não pronunciadas para o efeito métrico (de acordo com a

interpretação de Zeca Afonso):

Num/ céu/ cin/zen/to = 4

Sob/ o/as/tro/ mu/do = 5

Ba/ten/do_as/ a/sas = 4

Pe/la/noi/te/ ca/la/da = 5

Vê-(e)m/ em/ ban/dos = 4

Com/ pés/de/ ve/lu/do = 5

Chu/par/ o/ san/gue = 4

Fres/co/ da/ ma/na/da = 5

77 O único verso de 3 sílabas métricas consta na primeira estrofe, no quarto verso: “Vêm em bandos”. No

caso, a palavra “vêm” é prolongada e dá o efeito sonoro de uma sílaba a mais, totalizando 4 sílabas métricas

nesse verso.

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A segunda oitava, ao escandir levando em consideração apenas o poema, teremos

4-5-4-6-5-5-5-5. Ao analisar a canção e o efeito sonoro de Zeca Afonso, teremos uma

ligação entre os versos 3 e 4, e ainda, uma omissão da segunda sílaba dos versos 5, 6 e 7,

como no esquema a seguir:

Se_al/guém/se_en/ga/na = 4

Com/ seu/ ar/ si/su/do = 5

E/ lhes/fran/que/ia = 4

As/ por/tas/ à/che/ga/da = 6

E/les/co/mem/ tu/do=5

E/les/co/mem/ tu/do= 5

E/les/co/mem/ tu/do = 5

E/ não/ dei/xam/ na/da = 5

Se_al/guém/se_en/ga/na = 4

Com/ seu/ ar/ si/su/do = 5

E/ lhes/fran/que/ia_= 4

_As/ por/tas/ à/che/ga/da = 5

E/les/co/mem/ tu/do = 4

E/les/co/mem/ tu/do = 4

E/les/co/mem/ tu/do = 4

E/ não/ dei/xam/ na/da = 5

O restante do poema também segue a métrica 4/5/4/5/4/5/4/5 (com alguns versos

sendo respeitados conforme a interpretação da canção) e o esquema rítmico é variável,

podendo conter versos com diferentes sílabas acentuadas, sendo 1 e 4; 2 e 4 ou 2 e 5; 3 e

5; 1, 3 e 5. Os versos são regulares, apresentando rimas em toda a canção, especialmente

nos versos pares: “mudo”, “calada”, “veludo”, “manada” e “sisudo”, “chegada”, “tudo”,

“nada”.

Para começar o sistema interpretativo da canção, repara-se que há a descrição de

pelo menos três aspectos para ressaltar: o cenário (ambiente), os vampiros, e os vencidos.

Segundo a letra, o cenário está bastante favorável aos vampiros, pois fazem parte de um

grupo que está acima por ser mais poderoso que o restante:

Cenário Vampiros Vencidos

Superior:

Céu cinzento

Astro mudo

Noite calada

Noite abafada

Quem são:

Mordomos do Universo

Senhores a força

Mandadores sem lei

Quem são:

Manada

Vítimas dum credo

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Geral:

A toda a parte

Inferior:

No chão do medo

O que fazem:

Batem as asas

Vem em bandos

Chupam o sangue

Comem tudo e não deixam nada

Poisam nos prédios

Poisam nas calçadas

Trazem no ventre despojos antigos

Enchem as tulhas

Bebem vinho novo

Dançam a ronda

O que fazem:

Gritam

Jazem nos fossos

Como claramente diz a letra, há a comparação metafórica entre “vampiros” e

“governo” mostrando o cenário sombrio que Portugal estava vivendo naquela época –

assim como também há outra metáfora entre “manada” e “população”. A descrição do

ambiente como “céu cinzento” traz a ideia do Estado Novo que com seus métodos de

repressão e punição, amordaçava toda a população, a qual, por medo, seguia inerte e

passiva, sem confrontar o poderoso regime. Neste aspecto de silenciar a população, a letra

utiliza termos como “noite calada”, “astro mudo” e “noite abafada” para acentuar as

características do regime autoritário – personificando os substantivos “noite” e “astro”,

ao atribuir os adjetivos “calada” e “abafada” para o primeiro e “mudo” para o segundo.

Os verbos que se aplicam a cada função também são relevantes: enquanto os vampiros

voam, se alimentam, bebem e dançam, a manada (o povo) grita e morre. Essa discrepância

entre as funções, e a dominação do regime frente ao país inerte e sem reação, pode ser

vista também na ênfase ao falar do opressor, dando pouco espaço para o oprimido, como

se pode ver na tabela abaixo:

Estrofe A mensagem

1

Ênfase no opressor = recursos utilizados pelo regime de silenciar

a população: polícia repressora PIDE – DGS

Oprimido = manada: os recursos financeiros que deveriam ser

destinados à população sofriam com a “má administração” do

governo, e mesmo com o aumento de impostos, o povo não via

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melhoria na qualidade dos serviços públicos. Além disso, a partir

de 1961, com o orçamento de 40% sendo destinado à Guerra

Colonial, grande parte da produção dos trabalhadores via seu

lucro sendo “sugado” pelo regime.

2

Continua a ênfase no opressor, insistindo na imagem da polícia

opressora do regime, que podia prender qualquer um que se

posicionasse contra o governo. Volta a enfatizar que o governo

continua “roubando” o dinheiro que pertencia ao povo, com a

antítese revelada no verso “eles comem tudo e não deixam nada”

3

Ênfase no opressor, na polícia que está por toda a parte, e o fato

de dizimar a vida daqueles que lutavam contra a opressão. Ainda

realça a brutalidade do regime, e a falta de compaixão e remorso

ao cantar: “mas nada os prende às vidas acabadas”.

4 Ênfase no opressor, e no poder que detém. Além disso, revela a

satisfação e o prazer que demonstram ao usufruir de tudo isso.

5

Pela primeira vez, destaca-se o oprimido e a luta que ele trava (e

perde) contra o opressor, apesar de mostrar, ao fim da estrofe, que

os oprimidos continuam lutando, esperançosos: “e não se esgota o

sangue da manada”.

Ressalta-se esse predomínio que os opressores têm no poema, mostrando a sua

autoridade, e seu caráter austero e sombrio para com os dominados, que seria toda a

população portuguesa, vítima desse regime abusivo. Na mesma esfera, visto que essa

canção foi composta no início do período da Guerra Colonial, pode-se atribuir esse

conflito gerado no poema entre colonizador e colonizado; no caso, Portugal sendo o

opressor, os vampiros, e as províncias ultramarinas seriam os oprimidos, a manada, a

vítima desses vampiros. Portugal, como colonizador, explorava as províncias

ultramarinas, retirando-lhes as riquezas, deixando-as sem “nada”, sem recursos

financeiros e sem bens para a estruturação de suas terras. Assim, teremos:

Vampiros = Estado Novo, PIDE – Portugal

Manada = povo, vítimas – províncias ultramarinas

A seguir, o gráfico mostra a posição que se encontra o opressor e o oprimido de

acordo com o poema, e vemos claramente essa guerra entre o superior e o inferior.

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Simbolicamente, a figura “vampiros” traz essa dialética entre “perseguidor versus

perseguido”; “devorador versus devorado”, como o poema levanta. O triângulo procura

ilustrar a disposição dos vampiros, voando num céu cinzento, já pronto para atacar mais

uma vítima; enquanto as vítimas, no chão sem defesa, não resistem a mais um ataque,

tornando-se mais uma vítima do regime. O triângulo dá a ideia da quantidade de pessoas

existentes em cada um dos grupos: mesmo estando em número inferior, o governo utiliza-

se de armas e de ferramentas capazes de fazer o regime perdurar e vencer os oprimidos;

assim como Portugal sendo mais poderoso que as colônias ultramarinas, conseguia fazer

com que elas ainda estivessem submissas ao colonizador.

3.3 MENINO DO BAIRRO NEGRO

Outra canção de Zeca Afonso que também teve uma dimensão por falar da

realidade do país foi Menino do Bairro Negro. Lançada em 1963, como parte do disco

Baladas de Coimbra – mesmo álbum em que foi gravada a canção Vampiros, essa canção

tem grande importância pelo fato de ter sido praticamente aquela que marcou sua

‘ruptura’ com o ‘fado tradicional’, e traz características comuns das canções de

resistência: a desigualdade e esperança. Ao mesmo tempo em que há uma indignação

quanto ao momento presente, a esperança serve como um alento para a população e

principalmente para uma nova geração que está por vir, mostrando na canção, as crianças

(“meninos”) como o sujeito principal:

Opressor Céu Cinzento (Vampiros)

Oprimido Chão do Medo

Fosso

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Menino do Bairro Negro

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar (2x)

Menino sem condição

Irmão de todos os nus

Tira os olhos do chão

Vem ver a luz

Menino do mal trajar

Um novo dia lá vem

Só quem souber cantar

Virá também

Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão

Há-de um dia cantar

Esta canção

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar (2x)

Se até dá gosto cantar

Se toda a terra sorri

Quem te não há-de amar

Menino a ti

Se não é fúria a razão

Se toda a gente quiser

Um dia hás-de aprender

Haja o que houver

Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão

Há-de um dia cantar

Esta canção

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar (2x)

Zeca Afonso revela78 que uma das inspirações para o refrão dessa canção foi uma

das obras do brasileiro Josué de Castro, “Geopolítica da Fome”, lançada em 1951, que

trata sobre a questão da alimentação e desigualdade no mundo. Ele ressalta que o adjetivo

“negro” descrito no refrão em “Negro Bairro Negro” não tem relação com a cor da pele

dos meninos, mas sim com a condição deles de ‘exploração’, vistos na obra de Josué de

Castro. O “Bairro” se refere a um dos bairros da Ribeira, região típica da cidade do Porto,

local em que Zeca Afonso costumava ir para visitar alguns de seus amigos – e a primeira

vez que foi à cidade, chegou à noite, e ficou surpreso ao ver a dura realidade e a

desigualdade que havia no local e em seu país.

O início e o término da canção são marcados pelos sons de pássaros que dão a

impressão de liberdade e condizem com a vida dos “meninos” que vão “correndo, ver o

sol chegar”. No restante da música, o som do violão se faz presente, sempre

acompanhando a voz de Zeca Afonso. Nessa canção também se apresentam outros

elementos da natureza, tais como o sol, o mar e a terra.

A canção possui onze quartetos, dos quais quatro são repetição de estrofes

anteriores, e a maioria dos versos são classificados como redondilha maior, especialmente

78 Como visto no website da Associação José Afonso: http://www.aja.pt/verso-dos-versos/

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os dois primeiros versos de cada estrofe, ao passo que o refrão é intercalado em redondilha

menor e tetrassilábico. As rimas são alternadas e cada estrofe contém terminações

diferentes – nove rimas diferentes no total – apresentando assim, uma grande variação no

esquema sonoro da canção. O poema, mesmo contento onze estrofes e divisão métrica

diferentes, apresenta uma simetria em relação ao seu formato, como podemos ver exposto

abaixo, mostrando a ordem das estrofes, começando pela primeira em azul e seguindo

abaixo, obedecendo a ordem das setas:

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar (2x)

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar (2x)

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar (2x)

Menino sem condição

Irmão de todos os nus

Tira os olhos do chão

Vem ver a luz

Menino do mal trajar

Um novo dia lá vem

Só quem souber cantar

Vira também

Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão

Há-de um dia cantar

Esta canção

Se até dá gosto cantar

Se toda a terra sorri

Quem te não há-de amar

Menino a ti

Se não é fúria a razão

Se toda a gente quiser

Um dia hás-de aprender

Haja o que houver

Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão

Há-de um dia cantar

Esta canção

A quadra mais relevante do poema é a primeira, pois há a repetição dela na sexta

e décima-primeira estrofes, sendo o início, o meio e o término da canção, como ilustrado

em azul. Os versos dessas estrofes são heptassílabos (redondilha maior) e pentassílabos

(redondilha menor), e as rimas intercaladas (ABAB). Ainda em relação a essas estrofes,

há a presença de uma rima rica (“mar”, “chegar”) e pobre (“nascendo”, “correndo”) e o

substantivo mais importante é o “sol”, que revela a chegada de um novo dia, e a alegria

com que as crianças veem a chegada desse novo ciclo. Esse recomeço pode revelar uma

esperança, uma ansiedade por dias melhores sendo descritos na imagem do sol e também

dos meninos (crianças), que podem revelar uma nova geração, uma geração que traz uma

mudança para a humanidade. Ainda há a presença de dois verbos no imperativo (“olha”,

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“anda”, do português europeu), e pode apresentar uma ‘ordem’ ao ouvinte, aos adultos:

“olha o sol que nasce”, “anda a ver o mar”.

As segunda, terceira, quinta, sétima, oitava e décima estrofes são equivalentes,

sendo os dois primeiros versos classificados como redondilha maior; os terceiros versos

são hexassílabos e os quartos e últimos versos são tetrassilábicos. As rimas são todas

intercaladas, com exceção da oitava quadra, sendo ABBB.

Já o refrão, apresenta versos pentassilábicos (redondilha menor) e tetrassilábicos,

havendo uma intercalação entre eles. Esse refrão é caracterizado pelas repetições dos

adjetivos “negro”, do substantivo “bairro” e do advérbio de negação “não”, acentuando

uma situação cíclica e sem uma aparente mudança, sendo evidenciado também pelos

verbos no tempo presente.

De acordo com o esquema a seguir, o menino e a (falta de) condição dele são

vistos como a mensagem central do poema:

Presente Futuro

Atmosfera Menino Esperança

Sol nascendo, chegando

Não há pão

Não há sossego

Meninos correndo

Menino sem condição

Irmão de todos os nus –

todos são iguais, porém, a

desigualdade presente na

terra faz com que alguns

tenham mais que outros)

Menino do mal trajar

Menino pobre (é) o teu lar

(elipse)

Tira os olhos do chão, vem

ver a luz

Um novo dia vem

Quem souber cantar virá

também

Há de um dia cantar esta

canção

Um dia hás de aprender

Toda a terra sorri

O poema reforça a ideia da desigualdade perante os homens, mas traz a esperança

de que, um dia, esses meninos conseguirão ser felizes, visto que o ambiente se apresenta

na canção mostrando ‘esperança’: o sol nasce para todos, a terra sorri [prosopopeia], e

por isso, um dia, os meninos haverão de sorrir e cantar também. O poema enfatiza que o

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lugar é um bairro (que sabemos por Zeca Afonso que ele se refere a um bairro situado no

Porto), porém pode ter relação com qualquer lugar do mundo em que a desigualdade

esteja presente, cabendo, dessa forma, uma crítica ao problema social do mundo em geral

– inclusive de Portugal. Essa desigualdade faz com que falte o “pão” necessário,

referindo-se metonimicamente a qualquer tipo de alimentação que deveria ser adequada

para todas. No restante do refrão “onde não há pão/não há sossego” cabem duas leituras:

a primeira, sem a presença do pronome relativo “onde” na frase “não há sossego”, como

escrito abaixo:

“onde não há pão não há sossego”,

Com essa leitura o local representado pelo “bairro” revela a impossibilidade de

haver paz e tranquilidade uma vez que não são todas as pessoas que têm uma chance de

ter alimentação adequada. Na segunda leitura, – caso tenha ocorrido um zeugma com a

omissão do “onde”, ficaria assim descrito:

“Onde não há pão,

“(Onde) não há sossego”

No caso acima, o “bairro” apresenta dois grandes problemas: além de não haver

alimentação adequada para todos, também não há “paz”, podendo fazer alusão à Guerra

Colonial, já iniciada nesse período, indicando a falta de paz das famílias ao saber que seus

filhos ou maridos estariam combatendo nas províncias ultramarinas.

Ao mesmo tempo em que o poema apresenta as dificuldades de Portugal – e do

mundo por extensão - ele também mostra uma forma de se ter esperança nos versos em

que fala da natureza e da necessidade de os homens tomarem alguma providência, descrita

na “condição”: “Se não é fúria a razão; se toda a gente quiser” e “Se até dá gosto cantar;

se toda a terra sorri”. O poema também pode ser uma chamada para que todos “cantem”

contra a injustiça, e que os cidadãos possam utilizar suas vozes como arma contra

governos e regimes opressores, como se percebe nos versos: “queira ou não queira o

papão, há de um dia cantar esta canção”. Aqui o “papão” é uma metonímia de “governo”

ou daqueles que se enriquecem às custas do outro, provocando uma enorme desigualdade

econômica e social no país. O poema contém uma anáfora ao iniciar, pelo menos por

quatro vezes, um verso com a conjunção “se”: Se até dá gosto cantar/ se toda a terra

sorri; se não é fúria a razão/ se toda a gente quiser, mostrando que depende da população

uma mudança em relação à realidade apresentada no poema.

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Embora o poema fale de um espaço e momento específicos, ele dá margens para

ser utilizado em contextos e épocas distintas, sendo, portanto, tão atual e presente nos dias

de hoje. Pensando à época em que o poema foi feito, durante a Guerra Colonial, o “bairro”

também poderia ser interpretado como uma das províncias ultramarinas, atribuindo toda

a desigualdade em que lá existia (e ainda existe) em relação a outros países desenvolvidos.

3.4 GRÂNDOLA VILA MORENA

Grândola Vila Morena, a canção-senha da Revolução dos Cravos, é a mais

importante da história da música revolucionária portuguesa, valor que lhe é atribuído não

somente pelo fato de ter sido escolhida como senha da revolução, mas também pela sua

força na atualidade, sendo reconhecida por sua atemporalidade. Desde a Revolução dos

Cravos até a presente data, essa é a canção de Zeca Afonso que mais versões apresenta,

sendo gravada e interpretada em várias partes do mundo, possuindo, ao todo, mais de

vinte versões em idiomas diferentes.79

Além dessa ampla divulgação à esfera mundial, e com duas diferentes versões em

português, essa força também pôde ser vista em alguns momentos em que essa canção foi

lembrada pelo público também na atualidade, especialmente com a crise europeia, após

o início do século XXI. Nessa ocasião, insatisfeitos com algumas medidas tomadas pelo

governo, especialmente em 2012, um grupo de jovens portugueses criaram o movimento

Que Se Lixe a Troika para protestar contra a recessão e o desemprego. E foi este grupo

que entoou a canção Grândola Vila Morena durante uma sessão plenária ocorrida em 15

de fevereiro de 2013, interrompendo o discurso do então primeiro ministro Pedro Passos

Coelho, com transmissão ao vivo pela ARTV. Após alguns minutos, os jovens foram

retirados e a sessão foi retomada. Outra situação marcante ocorreu na mesma época,

durante uma onda de protestos da mesma natureza na Espanha, em que uma orquestra

sinfônica tocou a canção de Zeca Afonso como protesto contra o governo espanhol na

Praça do Solem Madrid. Já em 2016, logo após os atentados ocorridos em Bruxelas, no

dia 22 de março, um coral belga também apresentou a canção em praça pública, mas dessa

vez em repúdio às ações terroristas do grupo do Estado Islâmico (EI), demandando, com

79 No site da Associação José Afonso encontra-se reunido pelo menos vinte e duas versões gravadas da

Grândola Vila Morena, em idiomas diferentes, e até mesmo versões que são apenas orquestradas.

Disponível em: http://www.aja.pt/20-versoes-para-grandola-vila-morena/

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a canção, ideais de igualdade e liberdade, que têm sido perdidos ultimamente.80 Em

situações diversas, e em épocas diferentes, podemos perceber a força da canção por conter

expressões e valores gerais e sempre almejados. Além de seu caráter atemporal, destaca-

se também que a mensagem da canção pode ser considerada universal. Num ensaio de

Engelmayer (1999) é atribuída a canção uma ideia de um “futuro utópico”.

Esse valor atribuído à canção também lhe foi dado logo nas primeiras vezes em

que foi apresentada ao público, em 1972, contribuindo para seu forte poder de

mobilização, apesar da aparente singeleza de seus versos. A canção foi escrita em 1964,

por ocasião da visita de Zeca Afonso à cidade de Grândola, composta, preliminarmente,

três estrofes, tendo sido a última delas alterada antes de ser gravada em disco em 1971:

Original

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

Capital da cortesia

Não se teme de oferecer

Quem for a Grândola um dia

Muita coisa há de trazer

Gravação em 1971

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

80 Tais informações estão registradas em sites de notícias, e algumas delas, com vídeos do ocorrido

disponíveis no youtube: quanto ao primeiro episódio aqui descrito, sobre a interrupção da fala do primeiro-

ministro: http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/grandola-vila-morena-interrompe-passos-coelho-no-

parlamento=f712989. Sobre a canção entoada em Madrid, na Espanha, a notícia está disponível em

http://www.tsf.pt/internacional/europa/interior/grandola-vila-morena-com-sotaque-castelhano-video-

3057894.html. E por último, sobre o coral belga:

http://www.cmjornal.xl.pt/mundo/detalhe/_grandola_vila_morenaem_bruxelas.html

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Em cada rosto igualdade

O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

Jurei ter por companheira

Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade

Jurei ter por companheira

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

Originalmente o poema, feito especialmente como uma forma de gratidão pelo

acolhimento e receptividade dos habitantes de Grândola para com o cantor, seguiu uma

forma simples, com três quartetos heptassílabos (redondilha maior). Esse tipo de versos,

sob a ótica da métrica, é considerado simples por não precisar ter sílabas acentuadas

simetricamente, o que estimula sua utilização em canções populares, como é o caso dessa

canção, e esse estilo foi bastante utilizado em poemas de diversas épocas, tanto em

Portugal como Brasil.

As rimas são alternadas em ABAB CBAB DEDE (com mudança de rima em

apenas dois versos da segunda estrofe), com destaque para o fato de que nenhuma palavra

no poema rima com amigo. Em uma época em que o verso livre já era bastante utilizado,

inclusive por Zeca Afonso, em muitas de suas canções utilizava a métrica tradicional,

como foi no caso da Grândola, e, em poucas outras, apresentava versos livres, com

poucas rimas. Nesta canção, especificamente, o uso de versos com rimas e metrificados,

assim como outras da mesma época, pode revelar uma necessidade do autor de se

enquadrar em um “regime” fechado, em uma sociedade que não era livre – tudo devia ser

rigorosamente respeitado.

Antes da gravação da canção em 1971, ela tinha sido cantada uma vez, já com a

nova estrofe no final, porém sem os arranjos feitos para a gravação por José Mário

Branco. Como a canção retrata uma cidade na região do Alentejo, José Mário Branco

decidiu moldá-la de acordo com as características de uma canção alentejana, como a

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repetição com inversão de estrofes – para ajudar na memorização – o ritmo lento, o coro

de vozes e os passos produzidos pelos cantores em cima da pedra britada.81O coro de

vozes é uma característica marcante no cante alentejano, por sua origem ser de pessoas

do trabalho agrícola, em que um dos trabalhadores costumava cantar uma parte e em

seguida o restante do grupo entrava com suas vozes, formando um coro polifônico.

Ressalta-se que, claramente, não havia qualquer acompanhamento instrumental,

utilizando apenas de suas vozes para entoar as canções, e a respeito do coro, as vozes

eram inteiramente masculinas ou inteiramente femininas – não havia a mistura entre eles

(NAZARÉ, 1979). Seguindo essa tradição, José Mário Branco colocou a canção

Grândola Vila Morena nos moldes do Cante Alentejano, visto que a cidade de Grândola

está situada na região do Baixo Alentejo:

[a canção] tinha aquela estrutura do modo alentejano, o que foi feito foi

um trabalho de estrutura só da canção a partir do material que Zeca

trazia, [...]. O nosso trabalho por proposta minha foi transformar a

canção com a estrutura de modo alentejano, ou seja, com, digamos, a

junção de vozes diferentes. [...] E por outro lado, a estrutura da letra,

fazer aquela inversão das quadras que é comum nas modas alentejanas.

E outro elemento que foi acrescentado também, por proposta minha, foi

o elemento dos passos, que acompanhou o que se ouve na canção.

(BRANCO, 2012, transcrição nossa)82

Sobre a inversão das estrofes, pode-se perceber na letra da canção gravada, que a

segunda, a quarta e a sexta estrofes foram repetições dos versos anteriores, porém com

ordens aleatórias. As rimas continuam em sua maioria alternadas em ABAB BABA

CBAB BABA DBDB, e a última estrofe interpolada em BDDB. Segue abaixo o esquema

81 O Cante Alentejano pode ter tido suas origens em músicas gregorianas e eclesiásticas ou também ter tido

influência árabe, visto que a região do Alentejo foi ocupada pelos mouros por cinco séculos. Essa região é

vasta e está situada entre o Tejo e o Algarve, é predominantemente rural, e com uma população com uma

quantidade bem limitada. Este canto tem como principal característica o canto polifônico, ou seja, há um

coro de vozes sendo guiado por um cantor central. Geralmente não há instrumentos e os versos costumam

ser invertidos nas estrofes seguintes, usando o último verso como o primeiro do seguinte, para facilitar a

memorização. Os temas mais utilizados no cantar alentejano são: vida rural, natureza, amor, religião e

mudanças no contexto social e cultural. Esse tipo de música é entoado desde o início do século XX durante

a lavoura nos campos e os operários costumavam cantar em coro enquanto trabalhavam, e esse ato ajudava

uns aos outros em termos de solidariedade, e serviam de estímulo, pois conseguiam passar pelo sofrimento

físico (GUERREIRO; LEMAÎTRE, 2014). Ressalta-se que durante o desenvolvimento dessa pesquisa, o

Cante Alentejano foi inserido como patrimônio Cultural da UNESCO, em novembro de 2014, fato

mencionado também pelo Francisco Fanhais, durante entrevista concedida à pesquisadora em dezembro de

2014. Registrado no website na UNESCO, disponível em: http://www.unesco.org/culture/ich/en/RL/cante-

alentejano-polyphonic-singing-from-alentejo-southern-portugal-01007

82 Entrevista de José Mário Branco à RTP, divulgado em 10 de maio de 2012. Disponível [em áudio] em:

http://www.rtp.pt/noticias/cultura/jose-mario-branco-recorda-composicao-de-grandola-vila-

morena_a552408. Acesso em 10 de março de 2016.

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utilizado na canção em cada uma das estrofes, com uma numeração correspondente em

cada verso para facilitar na visualização da ordem da estrofe inversa:

Grândola, vila morena 1

Terra da fraternidade 2

O povo é quem mais ordena 3

Dentro de ti, ó cidade 4

4 Dentro de ti, ó cidade

3 O povo é quem mais ordena

2 Terra da fraternidade

1 Grândola, vila morena

Ao cantar a segunda estrofe, os versos são exatamente os mesmos da primeira,

porém com a ordem distinta. Nesse caso, a segunda estrofe é precisamente inversa à

primeira, dando uma ideia de “espelho”, e nenhum verso igual (de nenhuma outra estrofe)

se encontra numa mesma posição, como se vê no esquema a seguir:

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade 1

Grândola, vila morena 2

Terra da fraternidade 3

3 Terra da fraternidade

2 Grândola, vila morena

1 Em cada rosto igualdade

O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira 1

Que já não sabia a idade 2

Jurei ter por companheira 3

Grândola a tua vontade 4

4 Grândola a tua vontade

3 Jurei ter por companheira

1 À sombra duma azinheira

2 Que já não sabia a idade

Seguindo a tradição alentejana, os últimos versos do primeiro, terceiro e quinto

quartetos se transformaram em primeiros versos da segunda, quarta e sexta estrofes

respectivamente, e, como já mencionado, sem repetir a posição.

O verso Grândola Vila Morena, por exemplo, aparece nas quatro primeiras

estrofes nas seguintes posições: 1, 4, 3, 2; e o mesmo ocorre com o verso Terra da

Fraternidade, que aparece nas posições 2, 3, 4, 1 também das quatro primeiras estrofes.

Com essa repetição em ordens aleatórias, a impressão é de que a canção não tem uma

ordem correta, podendo os versos serem utilizados em ordens aleatórias, sem indicação

de começo, meio e fim, mostrando um movimento cíclico. Nessa mesma esfera, este

movimento cíclico caracteriza essa canção considerada atemporal, pois com teor político,

que prega a “liberdade, igualdade e fraternidade” – ideais da Revolução Francesa, valores

contrários aos do regime – mostra claramente o clamor do povo pela democracia e pelos

mesmos direitos, princípios que são pregados sempre em qualquer parte do mundo, em

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qualquer época, assim como vimos recentemente em lugares como Espanha e Bélgica,

além de Portugal. E pelo fato de os versos poderem ser utilizados em qualquer ordem –

com exceção dos versos A sombra duma azinheira/ Que já não sabia a idade – a letra da

canção torna-se difícil de ser memorizada na ordem correta da gravação, como

mencionado por cantores em algumas obras, pois qualquer uma delas confere sentido ao

que foi dito no verso anterior. Ao mesmo tempo, essa dificuldade com o conteúdo da

canção é superada pela escolha da estrutura que facilita sua memorização.

Ressalta-se que a letra dessa canção não foi proibida pelo regime, talvez pela falta

de compreensão da ideia real da mensagem, e, consequentemente, a divulgação da letra e

o valor que ela traz tiveram uma dimensão ainda maior, por poder ser entoada entre a

população, mesmo partindo de um cantor perseguido pela PIDE.

A canção foi gravada a quatro vozes - Zeca Afonso, Francisco Fanhais, José Mário

Branco e Carlos Correia - e todos fizeram o movimento dos passos que davam o ritmo à

canção, sendo ora mais fracos, ora mais fortes. Esses passos, como diz José Mário Branco

numa entrevista à RTP83, não era alusão à marcha militar, mas uma simulação dos passos

que os alentejanos dão quando caminham abraçados, cantando – por isso, também, os

quatro cantores fizeram esses passos abraçados, ditando o ritmo da canção. Ao se

aproximar a entrada da voz, os passos ficam mais fortes, e, em seguida, voltam a

enfraquecer. A gravação da voz de Zeca Afonso, ocorrida posteriormente, foi feita em

cima dos passos gravados, e o cantor começa a canção sozinho. Já o coro entra a partir da

segunda estrofe, no segundo verso: O povo é quem mais ordena, procurando representar,

justamente, a força que o povo tem sobre o poder, ordenando a democracia. O coro

somente canta os segundos, terceiros e quartos versos das segunda, quarta, e sexta estrofes

– das que já são a repetição da anterior.

A canção pretende mostrar que os ideais imaginados para Portugal seriam os

mesmos encontrados na cidade de Grândola, numa espécie de relação metonímica, da

parte pelo todo. A canção serve como um apelo da população para que tais características

possam ser estendidas ao país todo – especialmente por ver que naquela cidade havia

pessoas engajadas na luta contra o regime. A canção é um apelo à igualdade para todos

83 Entrevista de José Mário Branco à RTP, em 2012. Disponível em: http://www.rtp.pt/noticias/cultura/jose-

mario-branco-recorda-composicao-de-grandola-vila-morena_a552408. Acesso em fevereiro de 2016.

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os portugueses e à união. A música é utilizada como uma crítica ao governo, daquilo que

se gostaria de se ver em Portugal, mas que ainda não existia:

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena (democracia, liberdade)

Grândola

Em cada esquina um amigo (confiança nas pessoas)

Em cada rosto, igualdade

Não há fraternidade, há a maldade, a brutalidade

Portugal Não há liberdade, há a censura, a ditadura

Não há confiança: há a desconfiança por parte do governo

Não há igualdade, e sim a desarmonia, a desigualdade.

Substituindo-se Grândola por Portugal, como a referida metonímia, tem-se:

Em Portugal

O povo é quem mais ordena:

(O que o povo ordena? O que o povo quer ver?)

-Terra da fraternidade (um lugar harmonioso, livre)

-Em cada esquina um amigo (um lugar no qual se pode confiar nas pessoas, fazendo

alusão à desconfiança que os portugueses – e, principalmente, os cantores – sentiam no

regime, naqueles que estão a favor da censura e que os podem delatar à PIDE, e também

à própria PIDE que estava em todo lugar).

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-Em cada rosto igualdade (um lugar no qual todas as pessoas sejam iguais e em que o

povo possa ter os direitos comuns de cidadãos, e que tenham voz e poder para fazer suas

mudanças, diretos existentes em um país democrático).

Nos dois últimos versos acima há uma elipse, a omissão do verbo “haver” ou “ver”, mas

que não interfere na significação. Poderiam estar assim escritos:

Em cada esquina há um amigo

Em cada rosto há igualdade

Do ponto de vista rítmico, mesmo que houvesse a palavra “há”, a contagem silábica não

mudaria nos versos; embora soaria estranho no segundo verso devido à sucessão de

diferentes sons vocálicos:

Em/ca/da es/qui/na_há_um/ a/mi/go

Em/ca/da/ros/to_há_i/gual/da/de

Para manter um paralelismo sintático, o cantautor optou por deixar sem o verbo nos dois

versos.

Nas duas últimas estrofes, o poema revela a vontade do povo português de ser

como Grândola, de ter como ideal aquilo que é a vontade de Grândola. O povo admite ter

como “ideal, companheira”, a vontade de Grândola, todos esses ideais descritos no

decorrer do poema. A palavra “azinheira”, que aparece no primeiro verso da quinta quadra

e se repete no penúltimo verso do poema, refere-se a uma árvore típica da região do

Alentejo e de alguns lugares na Europa e na África, que pode ser baixa de estatura, mas

por ser muitas vezes bem frondosa, dispõe de uma sombra, que pode dar conotações

diferentes.

Por um lado, a azinheira pode denotar o regime, no qual Portugal já vivia há muito

tempo, e as pessoas estariam abaixo dessa sombra “que já não sabia a idade”, revelando

uma duração muito longa do regime. Essa ideia é reforçada com a definição simbológica

de azinheira encontrada em Cirlot (1984), pois, de acordo com a mitologia romana, essa

era a árvore que consagrava Júpiter e Cibele, e era o símbolo da força e duração – tal

qual se mostrava o regime. Ao mesmo tempo, a “azinheira” pode trazer o sentido de

“liberdade”, posto que árvore, simbolicamente traz a ideia de vida, crescimento de alguém

ou de um povo – e, nesse contexto, poderia revelar o crescimento do povo português como

um povo unido, e que essa união seria capaz de trazer uma esperança maior para a

população, e a liberdade tão sonhada frente ao regime opressor. Observe-se, ainda, que

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azinheira é uma árvore símbolo de Fátima: foi justamente nela onde ocorreram, segundo

a tradição do catolicismo português, as aparições de Nossa Senhora de Fátima aos três

pastorinhos, em 1917. As crianças rezavam o terço à sombra de uma azinheira, de onde

esperaram e viram as seis aparições, uma vez por mês – e tal árvore é mantida até hoje na

cidade de Fátima, como símbolo sagrado do local. Associando a “azinheira” de Zeca

Afonso à de Fátima, pode-se perceber que em ambas, aqueles que estão à sombra dessa

azinheira esperam o milagre – as crianças de uma aparição da Nossa Senhora e de seus

milagres, e o povo português, que espera o milagre do término do regime opressor.

3.5 MENINA DOS OLHOS TRISTES

A canção Menina dos Olhos Tristes foi escrita pelo poeta Reinaldo Ferreira84,

musicada e interpretada por Zeca Afonso85 e lançada em 1969. A canção é muito

melódica, marcadamente sentimental, sendo acompanhada apenas pelo violão, e critica a

Guerra Colonial, que ceifava a vida de milhares de jovens que lutaram em Angola, Guiné-

Bissau e Moçambique, entre 1961 e 1974:

Menina dos olhos tristes

o que tanto a faz chorar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

Senhora de olhos cansados

porque a fatiga o tear

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

Vamos senhor pensativo

olhe o cachimbo a apagar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

Anda bem triste um amigo

uma carta o fez chorar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

84 Reinaldo Ferreira nasceu em 1922, em Barcelona (Espanha) e viveu em Moçambique. Sua poesia só

ficou conhecida após a sua morte, ocorrida em 1959. 85 O cantor Adriano Correia de Oliveira também interpretou a canção em 1964, antes, portanto de Zeca

Afonso, podendo ser considerada a primeira versão. Como foi primeiramente musicada por Zeca Afonso,

Adriano Correia de Oliveira teria pedido ao cantor a permissão para gravá-la.

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A lua que é viajante

é que nos pode informar

o soldadinho já volta

Do outro do mar

O soldadinho já volta

está quase mesmo a chegar

Vem numa caixa de pinho

desta vez o soldadinho

nunca mais se faz ao mar

Do ponto de vista formal, a composição obedece ao mesmo padrão da divisão

silábica poética tradicional, com poucas exceções: no último verso das quadras 1 a 4, não

há a junção das sílabas “do” e “outro” na frase “do outro lado do mar”, para que a métrica

permaneça a mesma da dos versos anteriores, sendo todos eles caracterizados como

redondilha maior. O oposto ocorre na quinta estrofe, também no último verso: “está

quase mesmo a chegar”, em que a palavra “está” é contraída para igualar a quantidade de

sílabas, formando apenas uma sílaba com a palavra “stá”. Todos os versos pares terminam

com a última sílaba sendo forte, por serem verbos no infinitivo (todos terminados em -

AR) ou monossílabos tônicos (mar), sendo a única rima recorrente no texto inteiro – que

são classificadas como rima rica, visto que há a rima de um substantivo com um verbo;

outra rima encontrada nessa canção ocorre nos substantivos ‘soldadinho e pinho’, no

último verso.

O aspecto sonoro dessa canção é importante e merece atenção especial antes de

proceder ao comentário sobre a letra: a canção tem um ritmo lento, uma melodia

sentimental, melancólica, e até a quinta estrofe as notas obedecem a esse padrão que foi

imposto logo na primeira quadra. Ao término das estrofes 2, 4 e 6, na versão cantada por

Zeca Afonso, há um tom de lamentação (“huuum”), cantado juntamente com o violão,

instrumento bem marcado em todos os versos até a penúltima estrofe. As notas também

seguem um mesmo tom, não sendo tão agudas e nem tão graves, até a chegada da última

estrofe, quando se atinge o clímax com o final da narrativa que há no poema e a melodia

é alterada, mostrando uma “morbidez na vocalização de José Afonso”86 ao anunciar: “O

soldadinho já volta”

Assim, ao fim da quinta estrofe a expectativa do ouvinte é quebrada de duas

maneiras: a primeira delas, em relação ao som, deixando de se ouvir o violão, que não é

86 http://www.aja.pt/verso-dos-versos/

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mais tocado entre os versos, como uma alusão ao luto, e com a subida do tom da nota,

que passa a ser mais aguda, nos versos “vem numa caixa de pinho, desta vez o

soldadinho”, além de serem tocados numa duração temporal maior que os versos das

estrofes anteriores. A segunda quebra de expectativa dá-se com relação ao conteúdo da

letra, por não mais manter a repetição ocorrida nas quadras anteriores, e pelo real

significado de o soldadinho “estar de volta do outro lado do mar”, agora morto, pois não

era esse o desfecho esperado pelo ouvinte e nem pela família.

Relativamente à letra destaca-se em cada estrofe a presença da palavra soldadinho

sendo o centro da mensagem, e também, outras personagens que fazem parte da família

do soldadinho enviado à guerra. Juntos (a menina, o senhor, a senhora e o amigo), todos

enfrentam a saudade e a dor de ter que conviver com a ausência do ente querido.

Em relação à escolha das palavras da canção, ressalta-se a preferência do

compositor pelo uso do diminutivo em “soldadinho”. Sabendo que muitos dos soldados

portugueses que iam à guerra estavam no auge da sua juventude, muitos com dezessete

ou dezoito anos, e inexperientes, eram obrigados a abdicar do convívio familiar, de seus

sonhos para lutar numa guerra que não lhes tinha apoio, nem lhes fazia qualquer sentido.

Além dos sonhos, os jovens deixavam para trás seus pais, namoradas e amigos, e os que

ficavam conviviam com a dor de ver alguém partir. Ao utilizar o diminutivo “soldadinho”,

além de enfatizar a juventude e a falta de experiência, ainda aumenta a compaixão por

parte de quem ouve a canção, atentando para uma das crueldades de se manter a guerra,

ao retirar do jovenzinho um futuro que lhes reservava. Ressalta-se que também o

compositor, Zeca Afonso, na altura do lançamento dessa canção, tinha em torno de

quarenta anos de idade, convivendo amigos bem mais jovens, como José Letria e

Francisco Fanhais, e a partir deles via como seria partir tão cedo, com tanta vida e

aspirações, e sentia-se penalizado e envolvido no lamento dessas vidas desperdiçadas.

As palavras escolhidas para caracterizar os entes dos soldadinhos que sofrem com

a ausência dele apontam que a situação não seria “temporária”, como nos versos “menina

dos olhos tristes” e “senhora de olhos cansados” – e não “menina com os olhos tristes”

ou “senhora com os olhos cansados”. O uso da preposição “de”, traz a ideia de algo

permanente – com o sofrimento que começou há tantos anos e se prolongará para o resto

da vida – pois aos jovens que morreram na guerra, a família carregará para sempre essa

dor – para os sobreviventes, com certeza, carregarão marcas físicas e psicológicas difíceis

de serem cicatrizadas.

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Nas estrofes 1 a 4, nos dois últimos versos, o poema trabalha com uma repetição

que é reforçada pela negação: “O soldadinho não volta, do outro lado do mar”. Essa

repetição comunica uma história que não tem fim, e que se repete ano após ano (ao todo,

a Guerra Colonial durou treze anos). Além disso, a repetição também revela a longa

espera, por parte dos familiares, de notícias que nunca chegavam. A ausência dessas

informações podia ser para o bem, ou para o mal, pois a chegada de uma carta, por

exemplo, seria sinônimo de que a notícia poderia acabar com a esperança de qualquer um.

Já no penúltimo verso, em vez da repetição com a negação, no lugar no “não” há uma

ênfase no advérbio “já”, desvendando o incomum – confirmado pelo verso seguinte:

“desta vez o soldadinho”, mostrando a triste diferença em relação à rotina relatada nos

versos anteriores.

Esses dois últimos versos admitem múltiplas leituras: a) pode dar a ideia de uma

situação corriqueira, todos já sabem que o soldadinho “não volta”, e, por isso, as primeiras

estrofes já mostram o luto, pois expondo nas palavras utilizadas nos dois primeiros versos

de cada estrofe a tristeza e o choro dos familiares. Talvez por já saberem do desfecho e

esperarem a chegada do corpo do soldado – que podia voltar, ou não. Mas essa espera,

demonstrada nas estrofes, se refere à espera do corpo – talvez a certeza de que o

soldadinho realmente morreu em combate – e poder enterrar no seu país, de maneira

digna; b) As estrofes também podem revelar que a falta de notícias é angustiante para os

familiares – eles não sabem do desfecho, mas aguardam ansiosamente por notícias. Era

como se a família estivesse à espera todos os dias perto do mar, vendo os barcos que iam

e vinham das províncias ultramarinas, mas o soldadinho que tanto esperavam, não estava

no meio deles. Assim, com a última estrofe, indicando a volta do soldadinho, para as duas

interpretações há a quebra de expectativa: na primeira, o corpo realmente voltou e a

angustiante espera da família também acaba, podendo finalmente certificar de que o que

já sabiam, era a dura realidade. Na segunda hipótese, o desfecho se revela ainda mais

trágico, visto que havia uma esperança de que o soldado voltasse vivo da guerra, e não

em um “caixão”.

O termo “caixa de pinho” é utilizado como um “eufemismo”, no lugar da palavra

“caixão”, sendo uma maneira mais suave para “minimizar” a real expressão. Essa

expressão ainda colabora com a duração do verso da canção e ao mesmo tempo, com a

rima para “soldadinho”, sendo a única palavra da canção com essa terminação, mostrando

uma relação muito próxima entre eles.

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Por meio do esquema abaixo, pode-se ver o destaque de cada estrofe e a razão da

tristeza de cada uma das pessoas. Em todas elas, o motivo é a ausência do soldadinho:

1 Menina Olhos tristes, de tanto

chorar

Soldadinho

Não volta

2 Senhor

Pensativo, cachimbo a

apagar

3 Senhora Olhos cansados, fatiga Já volta

4 Amigo

Triste, uma carta o fez

chorar Numa caixa de

pinho

5 Lua Viajante, vem informar

Temos na penúltima estrofe uma prosopopeia, com a personificação da “lua”,

assumindo o papel de “viajante”, “mensageira” e “informante”. Essa escolha pode ser

justificada pelo fato de ela ser um elemento único e onipresente e sendo viajante, fazendo-

se presente em vários lugares ao mesmo tempo, poderia ser a única que soubesse do

desfecho, ao acompanhar (mais ainda: ao guiar) os soldadinhos no triste regresso.

Simbolicamente, a lua, possuidora de quatro fases, assume ritmos biológicos: ao nascer,

crescer, decrescer e desaparecer, representando os ciclos da vida, do nascimento à morte

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006).

A escolha da lua no poema indica em que momento a ação se passa, pois, sendo à

noite, pode trazer a ideia de um tom sombrio, como se isso trouxesse desesperança,

tristeza e melancolia, confirmando os sentimentos demonstrados ao longo do poema.

A canção se encerra com outra negação, contida no advérbio “nunca”, também

relativo ao ‘soldadinho’, que tanto se refere ao tom de negação presente na canção inteira,

quanto à noção de temporalidade (em tempo algum, jamais): o soldadinho que “não volta

do outro lado do mar” também “nunca mais voltará ao mar”.

3.6 CANTAR DE EMIGRAÇÃO

Esta canção faz parte de um poema composto pela escritora galega Rosalía de

Castro (1837 - 1885), que faz referência à emigração ocorrida em Santiago de Compostela

em torno de 1880. Inicialmente em galego, Adriano Correia de Oliveira interpretou e

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lançou a canção em 1970, no álbum Cantaremos. Adriano, juntamente com Zeca Afonso,

é um dos grandes nomes da Canção de Intervenção, e também sempre gravou letras de

sucesso. “Adriano foi responsável pela divulgação de muita da melhor poesia portuguesa”

(RAPOSO, 2014, p. 30), e nas palavras de Manuel Alegre, ele possuía uma voz “alegre e

triste, solidária e solitária, havia ternura e mágoa, esperança e desesperança, amparo e

desamparo, festa e luto, amor e luta” (ALEGRE apud RAPOSO, 2014, p. 26).

A canção “Cantar de Emigração” em português está totalmente fiel à letra em

galego, também fazendo alusão à emigração em massa ocorrida especialmente a partir de

1960 em Portugal para outras terras da Europa, especialmente França. O poema retrata os

desafios que a emigração traz ao país, que além de perder homens trabalhadores, perdiam

também suas famílias, que ficavam desamparadas, sem a figura paterna para dar o suporte

à esposa e aos filhos. Esta canção foi lembrada pelo professor Pedro Calafate como uma

das canções que marcaram o período da Guerra Colonial, período de uma das maiores

emigrações ocorridas em Portugal – e o professor recorda que o período atual também

tem sofrido com as mesmas questões. Em galego, o poema contém cinco partes, e o

trecho utilizado na interpretação de Adriano Correia de Oliveira foi apenas a quinta e

última parte do poema original, como segue:

Pra Habana (v)87

Este vaise i aquel vaise,

E todos, todos se van,

Galicia, sin homes quedas

Que te poidan traballar

Tésen cambio, orfos e orfas

E campos de soledad.

E nais que non teñen fillos

E fillos que non tén pais

E tés corazóns que sufren

Longas ausências mortás

Viudas de vivos e mortos

Que ninguén consolará.

Cantar da Emigração

Este parte, aquele parte,

E todos, todos se vão

Galiza ficas sem homens,

Que possam cortar teu pão

Tens em troca, órfãos e órfãs

Tens campos de solidão

Tens mães que não têm filhos

Filhos que não têm pai

Coração, que tens e sofre

Longas ausências mortais

Viúvas de vivos mortos

Que ninguém consolará

A versão em português cantada pelo Adriano Correia de Oliveira tem o

acompanhamento de uma flauta transversal e uma viola, que são bem marcados durante

toda a canção, e especialmente a flauta, nessa canção, dá uma impressão de passar o

87 Retirado do website da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em:

http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=139&p=38&o=r

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sofrimento das pessoas que se encontram sós, como descritos nas estrofes. A relação entre

a viola e a flauta está bem sincronizada, e ambos os instrumentos são tocados algumas

vezes sem o acompanhamento um do outro, havendo uma intercalação, dando a ideia de

diálogo entre eles.

Os versos são todos classificados como redondilha maior, e as rimas não seguem

uma sequência lógica, mas há muitas repetições presentes no poema que ajudam a manter

uma sonoridade regular. Se destacarmos apenas as rimas veremos “vão, pão, solidão e

coração” (em vermelho), que aparecem no segundo verso das duas primeiras estrofes, no

quarto verso da segunda estrofe, e ainda no primeiro verso da terceira estrofe. Já a

sequência “pai, mortais” segue a mesma sonoridade encontrada no quarto verso da

segunda estrofe e no segundo verso da terceira estrofe. O restante das palavras se repete,

mantendo a sonoridade estabelecida pelo poema como podemos ver em alguns dos

seguintes vocábulos, marcados no texto em azul: “parte”, “todos”, “órfãos e órfãs”,

“filhos”, “que não têm” “viúvas e vivos” “mortos – mortais”. Mesmo algumas das

palavras não sendo totalmente iguais, elas apresentam sons semelhantes.

Essa canção contém algumas figuras de linguagem que contribuem para destacar

a grave questão da emigração, e assim chamar a atenção do ouvinte para a escolha das

expressões que acentuam o problema. No segundo verso da primeira estrofe, ao dizer

“todos, todos”, além da aliteração, causada pela repetição da palavra, há uma hipérbole,

ao exagerar que “todos” os homens emigrariam. Galiza, nesse caso, seria uma

comparação metonímica de Portugal, já que estaria enfrentando o mesmo problema que

já foi enfrentado pela região galega. No último verso, o “pão” seria uma relação

metonímica com “alimento”, ou ainda “sustento” – já que aqueles homens que produzem

o alimento e, consequentemente, o sustento para os outros não estarão mais presentes.

Na segunda quadra, há uma anáfora, ao repetir, no início de cada verso a palavra

“tens”, para enfatizar o que ficaria nas terras vazias, ainda, há a omissão da palavra “tens”

no último verso, causando um zeugma, o que não prejudica no sentido, pois o verbo já

tinha sido utilizado três vezes anteriormente. Ainda pode-se dizer que há uma assonância,

ao conter muitas palavras com sons vocálicos parecidos – o “ã” ou “anasalado”, mesmo

entre aquelas que que não contribuem para a rima da canção: “órfãos”, “órfãs”,

“campos”, “solidão” “não”, e “mães”.

Na última estrofe, ocorre uma prosopopeia ao personificar o órgão “coração”,

comumente utilizado para mostrar o sentimento da pessoa em relação a alguma situação,

como podemos ver no verso “coração que [tens e] sofre longas ausências mortais”. No

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terceiro verso, em “viúvas de vivos mortos” há uma aliteração, com a presença de

mesmos sons consonantais que chamam a atenção para o verso – no caso “viúvas de

vivos” – e anteriormente “mortais” com “mortos”. Ainda, há um paradoxo, ao chamar

“vivos” de “mortos”, pelo fato de os maridos não estarem presentes fisicamente.

Tantas repetições enfatizam a ameaça do problema da emigração, mostrando

uma ação corriqueira, e avisa a necessidade de se fazer algo para amenizar o problema.

O poema mostra a emigração forçada dos homens por questões da Guerra Colonial ou

financeiras, o que geraria maior problema para o país. Veremos estrofe a estrofe, como a

escolha das palavras, seja em galego ou em português, ajudam a desvendar desafios

enfrentados pela população.

Cenário: Essa época a agricultura ainda é a principal atividade econômica em Portugal, e a essa

altura muitos estão deixando seus trabalhos no campo para tentar vida mais rentável em outro

país, e assim tais trabalhos têm um risco de ficarem defasados com poucas vendas de produtos:

1ª estrofe

Pouco a pouco os homens vão partindo até que – se as autoridades não se

atentarem para esse problema – todos irão sair. (A palavra “todos” se repete, para

confirmar essa ameaça).

A palavra “Galiza” faz parte do poema original, e não houve a mudança com a

tradução. Galiza se refere a Portugal, que está sofrendo nessa altura o que a

Galícia sofreu em torno de oitenta anos antes.

Os trabalhadores homens que fazem serviço em agricultura são os responsáveis

pelo movimento financeiro do país, e são eles que cultivando a alimentação,

garantem a produção necessária para a população portuguesa. Sem a presença

deles, a produção se tornará escassa, e logo, não haverá nenhum homem que

possa fazer esse serviço da agricultura, e, assim, a movimentação financeira

também deverá baixar. Sem eles, quem irá garantir o pão para o povo português?

“Galiza ficas sem homens que possam cortar teu pão”

2ª estrofe

A segunda estrofe atenta para outro grande problema da emigração: o desfalque

das famílias. Com os chefes de família procurando outro meio para o sustento ao

viajar para fora do país, ele abdica de sua família, seu conforto e seus sonhos e

parte para o incerto. O que o país tem em troca com a saída desses homens, é,

além da falta de mão de obra, a quantidade de mulheres sós e filhos sem a

presença do pai. Os campos que seriam para o cultivo da agricultura, agora, sem

os homens, seriam “campos de solidão”, onde as mulheres chorariam a falta do

marido e não haveria mais plantação.

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3ª estrofe

A terceira estrofe prolonga as consequências ditas na segunda estrofe, apelando

para o lado emocional do “coração” das pessoas que sofrem a ausência do

homem. A saudade se torna “mortal”, pois o fato de o homem não estar presente

fisicamente com a esposa, e sem saber por onde ele anda e o seu desfecho, muitas

mulheres tornaram-se “viúvas” mesmo sem estar. Para elas, era como se os

maridos já estivessem mortos, por causa da longa ausência, e o longo tempo sem

notícias. Ninguém seria capaz de consolar uma dor como essa.

1ª estrofe

repetição

O cantor volta a cantar a primeira estrofe, revelando ainda o grave problema de

muitos partirem. Mais uma vez a repetição se atenta para uma ação que não para

de ocorrer e eles precisam de medidas urgentes para conter a emigração. A única

saída para uma melhora seria a mudança política e econômica para que o país

voltasse a prosperar, e atualmente não há esperança de isso ocorrer.

Este poema também revela uma característica marcante da música e literatura

portuguesa de modo geral, a saudade. Uma definição já marcante do povo português

(CRISTÓVÃO, 2007), o poema mostra aspectos que revelam essa sensibilidade,

especialmente em toda a última estrofe: o sofrimento da mulher com a ausência do

marido, e sua condição de “viúva de vivo”, que nunca será aliviada. No poema o

sofrimento das mulheres também tem relação com a inexistência de soluções que

poderiam ter evitado a partida de muitos homens: a falta de uma boa vida, de trabalho, de

alimento, e as consequências que essa dificuldade financeira vivida no país trouxe para a

vida das pessoas. Essa nostalgia era um aspecto muito comum no decorrer dos anos

sessenta e setenta: as mulheres eram as que mais sofriam com esse panorama uma vez

que maridos e filhos poderiam ser chamados à Guerra Colonial, ou, em outros casos, a

emigração forçada era a solução tomada para fugir não apenas dessa convocação para a

guerra, mas também para fugir de uma vida instável que pairava sobre o país.

3.7 LIBERDADE

A canção Liberdade é a única dessa seleção que foi composta logo após a

Revolução dos Cravos e traz uma temática relevante em relação ao período português que

sucedeu o regime ditatorial. Composta e lançada por Sérgio Godinho (um dos

entrevistados) no seu disco À Queima-Roupa, ainda em 1974, logo após o seu retorno a

Portugal, foi um enorme sucesso por realçar os problemas que Portugal estaria

enfrentando e por ser um dos primeiros discos da fase do PREC, o teor das composições

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reforça a preocupação com a política e com o país naquele período significativo que

deveria ser de mudanças. Esta canção é ainda muito lembrada atualmente, por discorrer

sobre desigualdade social, tema que continua recorrente em esfera global:

Viemos com o peso do passado e da semente

Esperar tantos anos torna tudo mais urgente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

Vivemos tantos anos a falar pela calada

Só se pode querer tudo quando não se teve nada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

Só há liberdade a sério quando houver

A paz, o pão

habitação

saúde, educação

Só há liberdade a sério quando houver

Liberdade de mudar e decidir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

A canção contém quatro estrofes, sendo as duas últimas apresentadas como

‘refrão’. Contém quatro versos em cada, podendo ser regulares e/ou livres, devido à

mudança da contagem da sílaba métrica nas duas últimas estrofes. Nas duas primeiras

quadras, todos os versos contêm quatorze sílabas métricas, e no refrão, podem variar entre

quatro e quatorze. As rimas são emparelhadas, sendo a primeira estrofe: AAAA, a

segunda BBBB, e, no refrão, segue a ordem: CDDD CEEE. As rimas das duas primeiras

quadras são graves, formadas apenas por paroxítonas, enquanto as rimas do refrão são

todas agudas, por serem oxítonas. Todas as rimas são externas, por aparecerem ao fim de

cada verso e perfeitas ou consoantes, por apresentarem correspondência total de sons.

A canção segue um estilo bem diferente dos estilos vistos em Zeca Afonso e

Adriano Correia de Oliveira, sendo esta com um ritmo mais acentuado para o rock e folk,

com o acompanhamento de viola, baixo, guitarra elétrica, bateria, além de outras duas

vozes. A letra serve como aviso tanto à população quanto aos “militares’ que tomaram o

poder em abril de 1974, pois mostra um conjunto de aspirações do povo que vivenciou

uma repressão por mais de quarenta anos e agora, diante da perspectiva da mudança,

precisa rapidamente ‘resolver’ as pendências acumuladas. Com a presença de antíteses,

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o cantautor mostra situações vividas no país naquele período, como veremos estrofe por

estrofe:

Viemos com o peso do passado e da semente

Esperar tantos anos torna tudo mais urgente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

Já no primeiro verso, ocorre uma antítese e um tipo de metáfora (catacrese) ao

revelar “o peso do passado e da semente”. A antítese é descrita pelo tempo “passado” e o

substantivo “semente”, que nesse caso, pode fazer alusão a algo que ocorrerá no futuro.

E o “peso”, nesse caso, não se refere a um peso comum, volume, mas de uma “força”,

“gravidade”, provocando uma catacrese ao utilizar uma palavra no lugar de outra mais

adequada: o “peso”, nesse caso, pode trazer dois sentidos: 1. o “peso” do país, que o

próprio Salazar deu à História portuguesa, com toda a contribuição de Portugal em relação

às grandes navegações e conquistas do passado, e 2. faz alusão ao “fardo” que Portugal

carregou nos últimos quarenta anos de opressão. Assim, tanto em um sentido como em

outro, esse peso “aumenta” em relação ao futuro, pois há a expectativa das pessoas de

voltarem à época dos grandes avanços, em que a nação se mostrava próspera; ou ainda,

quanto a sentir uma necessidade de haver (finalmente) um presente ou futuro favorável

às pessoas, após mais de quarenta anos na opressão.

No decorrer da canção, percebe-se que a leitura mais apropriada é em relação à

segunda hipótese, especialmente com o segundo e terceiro versos. O segundo verso

também apresenta uma antítese com a “espera de tantos anos” e “urgente”, referindo ao

tempo da ditadura salazarista. Pela história portuguesa, desde a queda da monarquia, em

1910, pode-se dizer que Portugal esteve sempre à espera dessa mudança que parecia vir

e não somente em relação ao período em que Salazar esteve no poder. No terceiro e quarto

versos (repetição) vemos outra figura metonímica utilizada por Sérgio Godinho, ao

afirmar que a “sede de uma espera só se estanca na torrente”.

Nesse caso, a sede pode se referir a um anseio de um povo, a uma série de

expectativas que as pessoas têm em relação a Portugal, que só será boa caso seja

concretizada; e ao mesmo tempo, essa “sede” também faz parte da necessidade de

sobrevivência, pois, sem “água” uma pessoa não sobrevive, e no caso da canção, sem as

necessidades básicas, também não. Muitos que emigraram foram a procura de trabalho,

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liberdade e vida melhor para a família, caso contrário, não viveriam. Essa sede, essa

necessidade de sobrevivência só seria saciada com a melhoria em todas as áreas, e na

canção, a palavra “torrente”, vem confirmar essa ideia, pois, como uma “enxurrada de

água”, mostra que a melhoria não seria suficiente em apenas um ou outro setor, e sim, em

muitos setores, de tão atrasado que o país se encontrava.

Vivemos tantos anos a falar pela calada

Só se pode querer tudo quando não se teve nada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

Mais algumas figuras de oposição são exploradas nessa estrofe, começando pelo

paradoxo logo no primeiro verso, ao “falar pela calada”. O silêncio do povo reflete a

censura, já que, na verdade o povo não esteve em silêncio, mas sim, foi silenciado. Por

meio da censura e do silêncio forçado, as pessoas exprimiam o que de fato estava

ocorrendo, e esse ato, por si só, já era uma forma de “denúncia” ao mundo. O segundo

verso mostra novamente a ansiedade das pessoas de desejarem tantas coisas (tudo),

porque nada tiveram, mostrando outra antítese. Assim, a vida cheia - que antes não era,

por falta de emprego, de voz, de saúde - hoje é uma vida que se deseja plena, com trabalho,

saúde, disposição e uma participação mais efetiva na luta. A repetição dos dois últimos

versos reforça a necessidade de uma mudança, além da anáfora, que ocorre com a

repetição das iniciais “só”, em três dos quatro versos.

Só há liberdade a sério quando houver

A paz, o pão

habitação

saúde, educação

A anáfora continua no refrão iniciado com a partícula adverbial “Só”. Nele, o

poema traz o que mais se exigia pelos portugueses quando do fim da ditadura: a

“Liberdade”. A canção reforça que a liberdade real só existe mediante a existência de

todos os aspectos que não eram possíveis de se ter com o regime salazarista. Como

exemplifica a canção: a paz (alusão à guerra que ainda ocorria), o pão (metonímia para

alimentação, que ainda não era adequada para todos), a habitação (a moradia, que também

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não era uma realidade para todas as pessoas); a saúde (melhoria no sistema de saúde,

melhores hospitais) e a educação (melhoria e reforma no sistema de ensino)

Só há liberdade a sério quando houver

Liberdade de mudar e decidir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

Com a imposição da censura durante o regime as pessoas não tinham o direito de

intervir e nem de reivindicar mudanças, após o Golpe Militar, as pessoas esperavam que,

com a instauração da democracia, passassem a ter o direito de participar ativamente das

mudanças. O último verso encerra o poema referindo-se à injustiça da má distribuição de

renda.

O antagonismo presente na canção refere-se a uma gama de expectativas que não

foram concretizadas durante o salazarismo, e pareciam não se concretizar após a queda

do regime. Se a liberdade é tão desejada pelo povo, significa que durante todo o regime

salazarista as pessoas não se sentiam livres: se o regime acabou, a ideia, ou a expectativa,

era de que a liberdade fosse, enfim, conquistada também. Mas a canção adverte que essa

autonomia só seria conquistada de verdade, uma vez que todos os percalços e problemas

advindos com o salazarismo fossem igualmente extintos. Além disso, a liberdade não

seria de verdade: de que valeria uma liberdade com as expectativas frustradas? O que

seria a liberdade, se, no fim, as pessoas teriam de permanecer caladas e sem o poder de

decisão? Ou, ainda, se não houvesse investimentos nas áreas prioritárias, que realmente

seria a solução para as melhores condições de vida? Esse livramento causaria a verdadeira

ruptura entre o passado e o presente, mas essa ruptura só seria quebrada quando todos os

outros problemas citados na canção fossem vencidos também.

Essa canção foi uma forma de as pessoas perceberem que uma mudança não

acontece rapidamente, como todos esperam. Antes, é preciso que se lute para que ocorram

de maneira eficiente e gradativa, especialmente com ação do povo. A letra dessa canção

é ainda hoje recorrente em Portugal, não somente como uma forma de protesto contra a

desigualdade social, mas também em ocasiões em que se exaltam a conquista da liberdade

– ainda que parcial. A seguir, uma imagem retirada de um muro comemorativo de Abril,

que estampa as letras mais conhecidas da canção de Sérgio Godinho:

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Figura 32 – Muro Liberdade88

Coletivo PCP da Figueira da Foz

“Paz, pão, habitação, saúde, educação”.

88 Disponível em: http://pallasathena-pt.blogspot.com.br/2014_08_01_archive.html

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término da pesquisa, faz-se necessário destacar a relevância do papel da

música de intervenção na dinâmica da sociedade global e, neste caso em particular, no

contexto português. Retomando a epígrafe com que se abre este estudo, como canta Chico

Buarque, “sei que há léguas a nos separar”, mas essa distância Brasil – Portugal deveria

ser somente geográfica. Com essa perspectiva, propiciada pela ideia de lusofonia que aqui

se adota (cf. Brito 2010 e 2013), quanto mais nos aproximarmos da história, da cultura,

das experiências dos outros espaços lusófonos, maior a compreensão de nós mesmos.

Nessa direção, a lusofonia supõe o conhecimento e reconhecimento da história e da

cultura de outros países que falam a nossa língua, considerando, nesse caso, Portugal

como um componente do espaço lusófono, pois falar de lusofonia não é apenas falar da

África “portuguesa” ou de Timor-Leste; é falar, também, da matriz. Compreender a

história portuguesa oferece suporte para que nós, brasileiros, possamos entender também

a literatura, a música e a identidade, de tal forma que as reconheçamos junto de nós, como

parte de nós. E prossegue Chico Buarque: “Sei também quanto é preciso, pá, navegar”

para que esse conhecimento seja melhor difundido neste “lado do mar”.

Com esse enfoque de base, a presente investigação destacou elementos

linguísticos e poéticos de composições portuguesas que contribuíram para uma

conscientização política durante o Estado Novo, e que se mantem, ainda hoje, como

componente significativo no construto identitário do povo português.

Cada capítulo mostrou a importância para a compreensão das letras analisadas à

luz da História Portuguesa e possíveis razões para que cada uma delas tenha posição de

destaque no Canto de Intervenção. Percebe-se, primeiramente, que desde o início do

Estado Novo, as ideias inculcadas por Salazar tencionavam mostrar um Portugal perfeito,

um país de finanças equilibradas, a grandiosidade do Império Português, que exaltava um

passado heroico ao fazer referência à Época das Grandes Navegações; um país “pacífico”,

por exemplo, ao adotar, estrategicamente, uma posição neutra na Segunda Guerra

Mundial. Além disso, com o lema “Deus, Pátria e Família”, assume a importância da

submissão a Deus, da veneração à Pátria e do valor do papel de cada membro da família,

cabendo ao homem o lugar central e à mulher a os cuidados do lar e das crianças. Todos

que se preocupam em desempenhar corretamente suas funções, e seguissem os valores

pregados por Salazar, seriam bem-sucedidos, pois segundo mostravam as propagandas

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panfletárias e os livros escolares, as imagens apresentavam crianças sempre felizes ao

ajudar os pais e as mulheres satisfeitas ao cuidar da casa, enquanto o marido cuidava do

campo e da agricultura.

Como visto, se tais valores recomendados traziam satisfação, sucesso e felicidade,

as pessoas o obedeciam, pois entendiam que o governo sabia o que era bom para o país e

para a população. O aprendizado escolar, restrito e mecânico, facilitava a difusão de tais

valores ao passo que as crianças – que seriam a próxima geração – não eram encorajadas

a pensarem criticamente.

Para a população mais instruída, ainda que utilizasse meios para reprovar as

práticas do governo, a PIDE sabia prontamente como repreender e punir a todos os que

se desviavam dos ensinos dogmáticos impostos por Salazar. A população foi por vezes

vista como submissa e conformada, porém, entende-se que essa passividade era, na

verdade, totalmente controlada pelo governo, para passar uma sensação de que a

população era ‘obediente’ porque praticava os seus preceitos. A punição era

imediatamente realizada, para que os grupos de oposição ao governo não influenciassem

o restante menos instruído e inibissem a insistência de tais práticas. Percebe-se que todo

esse conformismo foi, de certo modo, um “mito” de Salazar, elaborado para que não

surgissem outros grupos que pudessem desestabilizar o governo e a violência repressiva

e punitiva sempre funcionava muito bem a favor do regime.

Ao resgatar valores que engradeciam o país, Salazar criou uma nova identidade

portuguesa, e as propagandas idealizadas por António Ferro e o restante das exposições

confirmariam a importância dessa identidade. Gradualmente, o regime foi trabalhando

esse tipo de nacionalismo e patriotismo forjados, mostrando como deveria ser ‘um bom

português’ e como fazer para se sentirem identificadas com o ideário salazarista.

É nesse cenário que a música se revela como uma importante arma contra o

governo, pois o aparecimento dessas canções com cariz político alastrou o mundo juvenil

politizado e influenciou grupos que antes nunca haviam pensado por tais perspectivas.

Mas as canções só tiveram esse poder de influência porque as letras afirmavam as

necessidades gerais de um país que não andava em conformidade com o que era passado

pelo governo. A nação se mostrava melhor representada a partir das letras das canções, e

não por meio dos discursos do regime ou das propagandas exaustivamente veiculadas. Se

o retrato da sociedade estava contido na letra das canções, então os discursos de Salazar

mostravam uma ideia fictícia de um país que não condizia com a realidade, levando assim,

às pessoas a uma maior identificação com as letras, em detrimento do que era

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representado midiaticamente. Salazar imaginou um país como ele queria que fosse visto

pelos portugueses e pelos estrangeiros, adotando uma figura imaginária que sustentasse

suas afirmações, conseguindo, portanto, a adesão das pessoas menos instruídas,

prolongando o seu controle sobre o país. Com as canções, ao ver que o país estava

representado ali, e que elas passavam exatamente a imagem como as pessoas se

enxergavam, originou um conflito identitário causando uma tensão entre as pessoas e o

ideário salazarista.

Para ilustrar, veremos como as canções aqui analisadas desmistificaram toda essa

ideologia pregada por Salazar, agrupando-as por contexto:

Canção O que Representa Contraste com o Ideário Salazarista

Menino do

Bairro Negro

Liberdade

Desigualdade Social

Em quase todos os panfletos em que haviam a

propaganda do Salazarismo havia escrito: “Tudo a

Bem da Nação”. E os relatórios da PIDE sempre

finalizavam “A Bem da Nação”. O bem da nação

almejado pelo povo era uma sociedade em que as

pessoas tivessem acesso à boa educação, saúde,

alimentação e a distribuição de renda fosse justa.

Se as pessoas realmente não viam que as

necessidades básicas não eram supridas, as

canções confirmavam o que de fato ocorria.

Menina dos

Olhos tristes

Guerra

Famílias

desestruturadas

Como um dos lemas, “Deus, Pátria e Família”, e

como uma nação de “paz”, Salazar mostraria que

tais valores faziam parte do seu governo e da

identidade do povo português. Com o início da

Guerra Colonial (e a contradição de um dos seus

ideais, a paz), desestruturou a população, não

apenas em termos identitários, mas também

financeira e ideologicamente. Além disso,

famílias ficavam incompletas, sem o pai ou sem o

filho que haviam ido à guerra.

Grândola Vila

Morena

Opressão

Superação

Grândola era a canção que trazia o modelo de uma

sociedade justa, igualitária e democrática, com

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valores utópicos, ao contrário dos princípios

criados por Salazar. Se o Estado Novo pregava o

autoritarismo e a censura, a canção desfazia desses

princípios ao revelar que para o “bem da nação” a

sociedade devia seguir os valores que “Grândola”

seguia.

Cantar da

Emigração

Emigração

Novamente, a realidade desestrutura um dos lemas

de Salazar que exaltava a família e o trabalho na

agricultura. Com a emigração (forçada), e saída de

homens, as famílias se viam sem a figura

masculina que as sustentariam com o trabalho no

campo. Sem trabalho, sem homens, as mulheres

viravam “viúvas de vivos” e as crianças, órfãs,

abalando a estrutura familiar.

Trova do Vento

que passa

Tristeza, Opressão,

Resistência

Nessa canção, o país é caracterizado por estar

vivendo uma “desgraça”, que pode ser sobre a

questão da fome, emigração, opressão,

autoritarismo, etc. A tristeza (um dos sentimentos

mais utilizados nas canções), também mostra a

insatisfação popular de se viver sob tal regime,

mas que, ao mesmo tempo, é compensado por ver

que há pessoas que resistem e lutam por uma

sociedade mais justa.

Os Vampiros

Opressão

Má administração

O autoritarismo era pregado por Salazar, mas sob

a imagem de que seria uma forma eficaz de

alcançar seus objetivos, como a independência

política e financeira, sem ter problemas com a

oposição. Mas se o país demonstrava estar

financeiramente equilibrado, mas ao mesmo

tempo faltavam recursos para a população

enquanto eles gozavam de seus benefícios, essa

má administração denunciava o grave problema

do regime. Além disso, a brutalidade com o que a

PIDE trabalhava para defender os ideais do regime

causava ainda mais a revolta da população.

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Vale ressaltar também que as imagens difundidas pelo Estado Novo transmitiam

cidadãos aparentemente satisfeitos, mostrando felicidade por estarem vivendo boas

condições na pátria. Nas imagens, o salazarismo trazia a conquista, o sucesso, felicidade.

A realidade mostrava que as pessoas lutavam pela liberdade, pelo trabalho, pela paz – o

que gerava a insatisfação e melancolia. Assim, com a ideia oposta ao que era pregado,

mas uma vez as canções se identificavam mais com a realidade das pessoas do que a

realidade pregada pelo Estado Novo.

A partir do momento em que as canções atingiram as pessoas – inicialmente

jovens universitários – a população passou a enxergar aquela realidade de outra forma e

a desconstruir toda aquela identidade que tinha sido criada anteriormente pelo governo.

O sentimento dos cidadãos em cada canção analisada contrasta com o sentimento

pregado por Salazar, o que nos faz entender a dificuldade do povo de construir e aceitar

a identidade imposta por Salazar, visto que a realidade é exposta de outra maneira:

Música Possíveis motivos de identificação com o público

Menino do Bairro Negro Pobreza e esperança.

Menina dos Olhos Tristes Tristeza, choro, cansaço e luto.

Trova do Vento que passa Desgraça, tristeza e esperança.

Vampiros

Na perspectiva do Governo e da PIDE: Enchem

as tulhas; bebem vinho novo; dançam a ronda =

Felicidade, Satisfação

Na perspectiva da População: No chão do medo;

tombam os vencidos; ouvem-se os gritos; na noite

abafada; jazem nos fossos = Medo, grito, opressão

e morte.

Cantar da Emigração Solidão e sofrimento.

Grândola Vila Morena Utopia.

Liberdade (Des)esperança.

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A partir da exposição acima se percebe que tudo o que era sustentado pelo

salazarismo, foi sendo “desmascarado” pela realidade que muitos se recusavam a ver, seja

por conformismo, seja por ignorância ou medo. Como se pôde verificar ao longo deste

estudo, o papel que as canções tiveram para essa sociedade foi além de apenas informar:

elas desmistificaram a ideologia construída por Salazar, a identidade que demoraria anos

para ser produzida, por meio de muito trabalho propagandístico e censura. Inicialmente,

muitos ainda aceitavam a imposição e tentavam se identificar com o país criado pelo

Estado Novo, mas, a partir do momento em que o regime passou a se mostrar vulnerável

e a enfrentar problemas (como a fraude das eleições, pressões internas e externas, e grupos

de oposição, somando-se ao início da Guerra Colonial), inicia-se uma tensão, e o povo

entra em conflito com a identidade que lhe foi forjada pelo regime, passando a questioná-

la.

Dessa forma, a identificação com as canções favoreceu sua difusão durante a

Guerra Colonial, quando a revolta atingiu principalmente a juventude: é essa mesma

identificação que parece ocorrer atualmente, garantindo a manutenção da popularidade

dessas canções, por abordarem os mesmos entraves sócio-político-econômicos.

As declarações dos entrevistados colaboraram para a compreensão da dimensão

não apenas dos problemas do Estado Novo, mas também do papel que o Canto de

Intervenção desempenhou nesse período. A perspectiva mostrada por eles abarcou a

memória de cada um, e muitos dos dados relatados não estão ainda documentados pela

História (“oficial”), visto que eles presenciaram eventos e situações que muitas vezes não

possuem registros comprobatórios, assim, são obrigados a recorrer à própria memória

para compreender e analisar o que de fato ocorreu.

As entrevistas feitas com as personalidades mostraram que embora suas

experiências tenham sido diferentes na resistência à ditadura, todos compartilharam da

alegria e da esperança que sentiram com o fim do governo opressor. Conforme se

observou, a memória depende dos contextos em que cada um viveu, da faixa etária, dos

grupos a que pertenciam e da importância que cada um deu ao evento e às experiências

vividas no seu país (SOBRAL, 1998). Dessa forma, nesta pesquisa foi possível, também,

observar como cada um deles reagia e compartilhava experiências durante as entrevistas.

Para ilustrar a atitude de cada um deles perante um fato levantado nesta

investigação, tem-se, abaixo, como as memórias se aplicam, e como eles podem divergir

ou não em termos de sentimento ou reação, considerando que as experiências que tiveram

tanto anterior como posteriormente, foram completamente distintas:

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Depoente Antes do 25 O 25 de Abril Pós 25

José Letria

influência de

amigos; impulso:

Guerra Colonial

antecipadamente

soube do Golpe

Militar

Temor; medo (de não

ocorrer); angústias em

relação ao futuro;

dúvidas; e após o

ocorrido: o dia mais

feliz da vida dele.

Expectativas, Motivação,

Euforia, Dúvidas, acerca

do futuro, mas o 25

representa a concretização

de um sonho. Conquista da

liberdade.

Referências Musicais: Vampiros; Menina dos Olhos tristes e Trova do Vento que Passa

Francisco

Fanhais

Influência de

amigos; proibido de

exercer suas funções

de padre, cantor e

professor – Emigrou

para a França

“Dupla alegria”: fim da

ditadura e por ter

participado da história

da gravação de

Grândola, canção

senha para o Golpe.

Voltou a Portugal.

Lutas, manifestações,

criação de cooperativas;

Criação da Associação

José Afonso em 1987.

Referências Musicais: Vampiros, Menino do Bairro Negro

Sérgio

Godinho

Influência da

família;

possibilidade de ser

recrutado para a

Guerra Colonial:

Emigrou para Suíça,

posteriormente para

a França e em

seguida, Canadá.

Estava no Canadá

quando houve a

revolução e só soube

depois dos detalhes.

Voltou a Portugal e

participou ativamente

do PREC.

O PREC trouxe efeitos

positivos para a música,

mas Portugal viveu

períodos difíceis com a

desigualdade econômica

(até hoje), e em alguns

pontos, foi um retrocesso.

Democracia.

(No caso do Sérgio Godinho, por ele ter feito uma canção memorável (Liberdade) lançada

após o 25 de Abril – e que até hoje faz sucesso, também foi escolhida para compor a parte

analítica, uma vez que seria a única que traria uma visão do país após a Revolução dos

Cravos)

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António

Borges

Influenciado

especialmente por

meio da literatura;

ativista; país era

pobre, triste, sem

liberdade e sem

emprego.

Soube por um militar

Maior alegria da vida

dele

Mas ainda receio nos

dias que sucederam.

Euforia (que baixou);

grande frustração; mas

houve conquistas nas áreas

da educação e saúde, além

da democracia.

Referências Musicais: Canções de Zeca Afonso

Pedro

Calafate

Via Portugal como

uma sociedade

fechada, pesada,

cinzenta, opressora.

Dia de muita alegria e

festa para o povo,

euforia.

Incertezas, liberdade de

fazer reunião e discutir

política; criação de um

grupo musical: Resistência

Referências Musicais: Grândola Vila Morena, Cantar da Emigração, Vampiros

Fernando

Rosas

Influência de amigos

e família; ativista;

preso.

Viveu intensamente,

‘país de pernas para o

ar’; grande mudança

para todos, o “princípio

do resto das nossas

vidas”

Conquistas em áreas

importantes como:

educação, saúde, sistema

de segurança social; além

da liberdade – democracia

Referências Musicais: Grândola Vila Morena

No quadro acima, é possível visualizar as diferentes respostas e visões de cada um

acerca de um tópico específico sobre a revolução, pois com vivências que diferem um do

outro, as canções, as memórias, as histórias e as opiniões a respeito da revolução também

podem divergir, dependendo também de como cada um deles seguiu após a mudança do

regime. As diferentes escolhas da música também refletem a área deles e onde estavam

no momento, mas todos foram unânimes ao falar que Zeca Afonso e a sua composição

Grândola Vila Morena foram os mais memoráveis nesse período. Visto que a canção já

tinha sido anteriormente escolhida para análise pela sua trajetória, muitos cantores não a

mencionaram durante a entrevista, por saber de antemão a ideia da pesquisa.

Ressalta-se ainda, a partir do quadro, que embora as experiências de cada um

sejam divergentes, todos viram no 25 de Abril uma concretização de um sonho, uma nova

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fase para a democratização de Portugal, e com uma esperança de um futuro próspero e a

expectativa de mudanças significativas para toda a população. O fato de Francisco

Fanhais e Sérgio Godinho retornarem ao país logo após a Revolução mostra também que

a esperança que eles sentiam de uma sociedade mais justa e igualitária – e que passaram

a lutar por isso e a participar ativamente – podia também ser vivida em Portugal.

Com relação aos objetivos propostos, acredita-se que tenham sido todos atingidos,

uma vez que o trabalho apontou os impactos que a fase ditatorial teve sobre o país e sobre

a construção de identidade do povo português, assim como seus reflexos no Portugal

contemporâneo; levantou algumas das principais canções de intervenção compostas

durante os períodos pré e pós-Revolução dos Cravos a partir das entrevistas feitas com

cantores, intelectuais, jornalistas que vivenciaram o período em estudo; analisou nas

canções selecionadas elementos linguísticos e poéticos reveladores de marcas de opressão

do regime ditatorial, observando como elas contribuíram para a (des)construção

identitária e, por fim, destacou a importância da música como forma de protesto e o

impacto que ela teve e ainda tem na História de Portugal.

Por fim, uma palavra à experiência que tivemos diante dos depoimentos sobre a

Revolução dos Cravos, nas vozes dos que a vivenciaram. Sem dúvida, trata-se de

referência no que tange à ideia de revolução com tom pacífico. Embora as últimas marcas

deixadas por Salazar e Marcello Caetano tenham sido decorrentes da Guerra Colonial, a

reação desvelou-se de maneira poética: com música e com flores. A Revolução

desabrochou com uma canção e prosseguiu com os canos das armas repletos de cravos,

simbolizando a paz, a união, a força e, por fim, a liberdade. É preciso, mais uma vez,

concordar com Chico Buarque: “Foi bonita a festa, pá”!

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ANEXOS

____________________________________________________________

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193

ANEXO A

E-MAILS

EXEMPLO DE E-MAIL ENVIADO AO ENTREVISTADO

RESPOSTAS

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194

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195

UTILIZAÇÃO DAS IMAGENS DISPONÍVEIS NO

SITE DA TORRE DO TOMBO

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196

ANEXO B

PRISIONEIROS DO TARRAFAL (p. 1 e 6)

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197

PRISIONEIROS DO TARRAFAL

BIOGRAFIA PRISIONAL DE ANTÓNIO BORGES COELHO

(continuação da p. 111)

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198

ANEXO C

CRIAÇÃO DA PIDE (1)

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199

CRIAÇÃO DA PIDE (2)

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200

CRIAÇÃO DA PIDE (3)

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201

CRIAÇÃO DA PIDE (4)

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202

ANEXO D

CARTA DE HUMBERTO DELGADO À ONU

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203

ANEXO E

POEMA DE JOSÉ JORGE LETRIA

Eu não estava em casa nessa noite, filho,

Nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados

Que rumavam às rádios e aos quartéis,

Engalanados de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite

Ia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.

E tu, filho, tinhas a idade rumorejante

Desse Abril embalado por uma canção do Zeca.

Como posso eu explicar-te tudo aquilo

Que tu nasceste para aprender, para viver?

Eu estava aquartelado no meu silêncio

de pétalas, sílabas e marés, num dédalo

de vozes embriagadas pelo vento,

na coragem errante das pelejas da infância

e pouco ou nada sabia do mistério desse mês

capaz de transformar em assombro as nossas vidas

Sim, sou eu neste retrato antigo,

A receber em festa os exilados, os que chegavam

Com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão

Bordada a sangue e espuma no capote das nocturnas caminhadas.

Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem

Do primeiro de muitos dias em que o tempo

Deixou de contar, em que os relógios

Se tornaram corolas de paixão e riso

Na lapela larga da alegria desta pátria.

Eu não estava em casa nessa noite, filho,

Estava a afinar o coração pelo tom

Das mais belas melodias que alguém pode aprender

Só para dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.

José Jorge Letria

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204

ANEXO F

Muro da Câmara Municipal De Lisboa, em Alcântara-Mar, com a Ponte 25 de Abril ao fundo.

Pintura em comemoração dos 40 anos da Revolução dos Cravos. Fotos tiradas em 14 de

setembro de 2014. (Acervo pessoal)

Detalhes das gravuras: referência à prisão do Tarrafal, em Cabo Verde. (Acervo pessoal)

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205

Referência à Guerra Colonial e às pessoas assassinadas pela PIDE. (Acervo pessoal).

Referência ao PREC e à falta de empregos. No canto direito é possível ver algumas das palavras

que constam na canção Liberdade, como “Educação” e “Habitação”. (Acervo pessoal).