21
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, n o 35, p. 15-35, 2008 15 CALEIDOSCÓPIO LATINO-ROMÂNICO: DEMONSTRATIVOS César Nardelli Cambraia Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet RESUMO: No presente trabalho discute-se a constitui- ção histórica dos sistemas de demonstrativos de línguas românicas a partir do latim, enfocando algumas das mudanças fundamentais (modificação do escopo de iste; constituição de formas reforçadas; tratamento do neu- tro; e diferenciação de formas substantivas e adjetivas) e tendências contemporâneas (simplificação do inventá- rio e adjunção adverbial). PALAVRAS-CHAVE: lingüística românica; variação e mudança lingüística; demonstrativos 1. Introdução S eguramente o principal patrimônio cultural deixado pelos latinos foi o lingüístico: em função do processo de expansão secular do Império Ro mano, um dialeto falado por uma pequena comunidade na região do Lácio, no centro-oeste da Península Itálica, difundiu-se através de territórios, depois províncias, tão distantes entre si como a Lusitânia e a Dácia. O resulta- do desse processo não foi, no entanto, a constituição de um bloco lingüístico monolítico, mas sim de um verdadeiro caleidoscópio, no qual formas original- mente latinas se modificaram e se organizaram de maneiras peculiares geran- do sistemas românicos distintos: como exemplos desse processo “caleidoscópico”, podem-se citar os sistemas de demonstrativos. No presente trabalho pretende-se discutir brevemente, através de uma abordagem estrita- mente qualitativa, como era o sistema de demonstrativos no latim e como é em diferentes línguas românicas, evidenciando aspectos distintivos fundamen- tais e tendências pan-românicas.

Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 15

CALEIDOSCÓPIO LATINO-ROMÂNICO:DEMONSTRATIVOS

César Nardelli CambraiaSandra Maria Gualberto Braga Bianchet

RESUMO: No presente trabalho discute-se a constitui-ção histórica dos sistemas de demonstrativos de línguasromânicas a partir do latim, enfocando algumas dasmudanças fundamentais (modificação do escopo de iste;constituição de formas reforçadas; tratamento do neu-tro; e diferenciação de formas substantivas e adjetivas) etendências contemporâneas (simplificação do inventá-rio e adjunção adverbial).

PALAVRAS-CHAVE: lingüística românica; variação emudança lingüística; demonstrativos

1. Introdução

Seguramente o principal patrimônio cultural deixado pelos latinos foi olingüístico: em função do processo de expansão secular do Império Romano, um dialeto falado por uma pequena comunidade na região do

Lácio, no centro-oeste da Península Itálica, difundiu-se através de territórios,depois províncias, tão distantes entre si como a Lusitânia e a Dácia. O resulta-do desse processo não foi, no entanto, a constituição de um bloco lingüísticomonolítico, mas sim de um verdadeiro caleidoscópio, no qual formas original-mente latinas se modificaram e se organizaram de maneiras peculiares geran-do sistemas românicos distintos: como exemplos desse processo“caleidoscópico”, podem-se citar os sistemas de demonstrativos. No presentetrabalho pretende-se discutir brevemente, através de uma abordagem estrita-mente qualitativa, como era o sistema de demonstrativos no latim e como éem diferentes línguas românicas, evidenciando aspectos distintivos fundamen-tais e tendências pan-românicas.

Page 2: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos16

2. Demonstrativos no latim

Os demonstrativos latinos compunham um sistema complexo constitu-ído de um conjunto de formas tradicionalmente vinculadas às pessoas dodiscurso (hic, 1a pessoa; iste, 2a pessoa; e ille, 3a pessoa)1 e ainda de um anafóricois, que declinavam em caso, número e gênero, em concordância com o termoque substituíam ou com o termo que determinavam2. Além desses elementos,por razões históricas classificam-se como demonstrativos dois compostos deis: ipse (“o próprio”), marcador de reforço formado de is + pse, e idem (“omesmo”), marcador de identidade formado de is + dem3. Todos esses seiselementos podiam ser empregados em função substantiva [substituindo no-mes] ou adjetiva [acompanhando nomes]4.

Como assinala Andrade5, uma nova proposta de classificação desseconjunto foi feita por Bigorra6, que os diferencia levando em conta sua fun-ção primordial: hic/iste/ille, dêitica (por isso, propriamente demonstrativos);is, fórica (anafórica ou catafórica), podendo também ser enfática; idem, si-multaneamente fórica e enfática; e ipse, enfática. Os propriamente demons-trativos apresentavam, porém, também funções secundárias, como a fóricae a enfática: como anafóricos, hic/iste se neutralizavam e, como catafórico,empregava-se apenas hic; ille apresentava progressivamente os valores fóricosde is, substituindo esse fórico por excelência; como enfáticos, eram usadosiste e ille, sendo o primeiro de valor positivo e o segundo negativo. Segundoa proposta de Bigorra, os itens latinos propriamente demonstrativos se di-

1 En nome da concisão, toma-se a forma do gênero masculino como referência, mas normal-mente os fatos descritos aplicam-se também à forma do feminino e neutro. Pela mesmarazão, também não se apresenta aqui o paradigma flexional dos demonstrativos latinos, quepode ser visto, p. ex., em ERNOUT, A. & THOMAS, F. Syntaxe latine. 2. ed. rev. e aum. Paris:Librairie C. Klincksieck, 1953, p. 192; e FARIA, E. Gramática da língua latina. 2. ed. rev. e aum.Brasília: FAE, 1995, p. 288.

2 MEILLET, A. & VENDRYES, J. Traité de grammaire comparée des langues classiques. 4. ed. Paris:Librairie Ancienne Honoré Champion, 1966, p. 496.

3 BLATT, F. Précis de syntaxe latine. Paris: Lac, 1952, p. 141-145; FARIA, op. cit, p. 283.4 BLATT, op. cit., p. 141-145.5 ANDRADE, A. Demonstrativos e [ana]fóricos em latim. Ágora: Estudos Clássicos em Debate,

Aveiro, n. 1, p. 155-171, 1999; p. 160.6 BIGORRA, S. M. Contribución al estudio funcional de los pronombres latinos. In: ACTAS

del III Congreso Español de Estudios Clásicos (Madrid, 28 marzo-1 abril 1966). Madrid:Sociedad Española de Estudios Clásicos,1968. Vol. 3, p. 131-143.

Page 3: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 17

ferenciavam em termos de sua função da seguinte maneira: hic, dêitico efórico; iste, dêitico, fórico e enfático (negativo); e ille, dêitico, fórico e enfáti-co (positivo).

Segundo Andrade7, a tradição gramatical de associação dos demonstra-tivos às pessoas do discurso teria se iniciado com o trabalho de Brugmann8

mas não seria correta do ponto de vista lingüístico, pois os demonstrativosestabeleceram-se, do ponto de vista morfológico, sobre temas distintos dospronomes pessoais e sua oposição abarca noções distintas, como locação es-pacial e temporal. Assim, segundo Andrade9, se hic e iste indicavam respectiva-mente proximidade à 1a e à 2a pessoa, não seria correto dizer que ille indicavaproximidade à 3a, mas sim que indicava distância em relação às duas primeiras:por isso, dever-se-ia entender a associação dos demonstrativos à categoria depessoa apenas como conseqüência do seu valor localizador.

A idéia de que não havia uma correlação rígida entre os demonstrativose as pessoas do discurso no latim é corroborada por estudos como o de Keller10,que evidencia a possibilidade de ocorrência de hic, iste e ille em contextos quenão estavam ligados às pessoas do discurso a que tradicionalmente apareciamvinculados.

Em seu estudo baseado em Plauto (254-184 a.C.), em Terêncio (190/195-159 a.C.) e nos Scaenicae Romanorum Poesis Fragmenta, Keller defende queiste ocorria em contextos com força de 2a pessoa ou depreciativo e tambémpor vezes em contextos normalmente reservados a hic ou ille, significando quesua força primária era fortemente dêitica, da qual desenvolveu uma forçaresumptiva e preparativa, e sua força de 2a pessoa era secundária, decorrendode seu uso freqüente nesse contexto. Dentre as especificidades do uso de isteno latim, Keller cita duas de especial interesse para a presente discussão: o usode iste no lugar de hic e no de ille. Esses dois usos são classificados em diferen-tes tipos que convém apresentar resumidamente a seguir.

7 ANDRADE, op. cit., p. 157 e 163-164.8 BRUGMANN, K. Die Demonstrativpronomina der indogermanischen Sprachen.

Abhandlungen der Sächsischen Gesellschaft der Wissenschaften, Leipzig, n. 22, 1904.9 ANDRADE, op. cit., p. 164.10 KELLER, Ruth Mildred. Iste deiktikon in the early roman dramatists. Transactions and Proceedings

of the American Philological Association, v. 77, p. 261-316, 1946.

Page 4: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos18

Os casos de iste no lugar de hic são classificados por Keller11 em quatrotipos. No tipo 1, iste e hic ou, em alguns casos, todos os três pronomes sãousados pelo mesmo falante em referência à mesma pessoa ou coisa — comoum dos exemplos, Keller12 menciona os versos 215-216 da peça Andria, deTerêncio, em que o personagem Davos emprega haec para designar (forçadêitica) a personagem Glycerium, mulher de Andros, e depois ista para umaretomada enfática da referência13:

(01) DA. [...] haec Andria, si[ve] ista uxor sive amicast, gravida ePamphilost”. (grifos nossos)

No tipo 2, iste é usado por dois falantes sucessivos em referência à mes-ma pessoa ou coisa — como um dos exemplos, Keller14 cita os versos 388,389 e 405 da peça Adelphoe, de Terêncio, em que a personagem Demea indagasobre uma cantora usando istaec mas Syrus se refere a ela empregando primei-ro ellam e em seguida ista:

(02) DE. Quid? istaec iam penes uos psaltriast? SY. Ellam intus.[...] DE. Quid autem? SY. Adortus iurgiost fratrem apudforum de psaltria ista. (grifos nossos)

No tipo 3, iste é usado em associação com palavras de referência à 1a

pessoa em um contexto tradicionalmente reservado para hic — como umdos exemplos, Keller15 menciona o verso 658 da peça Asinaria, de Plauto, emque o personagem Leonida emprega istuc para designar o fardo (bolsa de di-nheiro) que tinha aos seus próprios ombros:

(03) LEON. Nolo ego te, qui erus sis, mihi onus istuc sustinere.(grifo nosso)

No tipo 4, iste substitui hic na fórmula hic...ille — como único exemplo,Keller16 menciona o verso 502 da peça Pseudolus, de Plauto, em que o persona-gem Pseudolus emprega istuc como referência ao item mais distante na referi-

11 KELLER, op. cit., p. 280-290.12 KELLER, op. cit., p. 281.13 A transcrição dos exemplos, não apresentada por Keller, é aqui feita a partir das edições

disponibilizadas pela The Latin Library (www.thelatinlibrary.com).14 KELLER, op. cit., p. 286-287.15 KELLER, op. cit., p. 287.16 KELLER, op. cit., p. 288.

Page 5: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 19

da fórmula (igualmente relevante é observar que illud é usado duas vezes noverso como referência ao mais próximo):

(04) PS. Quia illud malum aderat, istuc aberat longius; illud eratpraesens, huic erant dieculae. (grifos nossos)

Os casos de iste no lugar de hic são classificados por Keller17 igualmenteem quatro tipos. No tipo 1, iste e ille ou, em alguns casos, todos os três prono-mes são usados pelo mesmo falante em referência à mesma pessoa ou coisa— como um dos exemplos, Keller18 menciona os versos 42 e 53 da peçaCasina, de Plauto, em que no prólogo se refere a Casina utilizando illam eistanc:

(05) [...] adit extemplo ad mulierem, quae illam exponebat: orat,ut eam det sibi. [...] Pater adlegauit uilicum, qui posceret sibiistanc uxorem: is sperat, si ei sit data [...] (grifos nossos)

No tipo 2, iste substitui ille na fórmula hic...ille — como um dos exem-plos, Keller19 cita o verso 708 da peça Bacchides, de Plauto, em que o perso-nagem Chrysalus emprega istuc como referência ao item subseqüente nareferida fórmula:

(06) C. Ah, placide volo unum quidque agamus: hoc ubi egero,tum istuc agam. (grifos nossos)

No tipo 3, iste e ille são usados em imprecações, existindo três varia-ções: o falante lança uma maldição (a) sobre um personagem indefinido,que, pela natureza do caso, não está presente nem é conhecido, (b) sobreum personagem definido, que não está presente (e em alguns casos, aindanão apareceu na peça); ou (c) sobre um personagem definido, que está pre-sente na cena — como um dos exemplos para terceira variação, Keller20

menciona o verso 467 da peça Asinaria, de Plauto, em que o personagemLeonida lança uma maldição sobre o comerciante em cena referindo-se aele por istum:

17 KELLER, op. cit., p. 290-299.18 KELLER, op. cit., p. 290.19 KELLER, op. cit., p. 294.20 KELLER, op. cit., p. 296.

Page 6: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos20

(07) LEON. Hercle istum di omnes perduint. (grifo nosso)

No tipo 4, iste é usado em referência a um personagens que não estápresente, mas foi mencionado, em um contexto tradicionalmente reser-vado para ille — como um dos exemplos, Keller21 cita os versos 1041 a1045 da peça Amphitruo, de Plauto, em que o personagem Amphitruoemprega istic, illum e ille para se referir a Júpiter, que tinha deixado a cena,fato de que Amphitruo ainda não estava ciente:

(08) AMPH. [...] numquam edepol me inultus istic ludificabit,quisquis est; nam iam ad regem recta me ducam resque utfacta est eloquar.~ ego pol illum ulciscar hodie Thessalumveneficum, qui pervorse perturbavit familiae mentem meae.sed ubi illest? (grifos nossos)

O conjunto de padrões de variação que Keller apresenta é muitosignificativo, pois evidencia que a “revolução” por que passaria o siste-ma de demonstrativos do latim para as línguas românicas já tinha suasemente plantada desde épocas pretéritas da história do próprio latim.Grandgent22 chama ainda a atenção para alguns fatos importantes: hic,iste e ille chegaram a ser utilizados indistintamente, havendo exemplosde iste por hic no tempo de César (séc. I a.C.); havia confusão entre hic eis por parte de escritores tardios; e em autores cristãos era comum acombinação de dois demonstrativos — is ipse, iste ipse, ipse ille, ille ipse, isteille, iste hic, hic ipse — tendo formas dos quatro primeiros deixado rastrosem línguas românicas: id ipsu > it. desso, iste ipsu > it. stesso, ipse illu > fr.arc. es le, ille ipsu > reto-rom. arc. less/esp. arc. eleiso/cat. arc. (e)leix.

De acordo com Väänänen23, o sistema de demonstrativos passoupor uma reestruturação que compreendeu basicamente as seguintes mu-danças: (a) is desapareceu em função de sua brevidade (formal), tomandoinicialmente seu lugar hic; (b) hic também desapareceu em seguida, passan-do a exercer sua função iste; (c) ipse perdeu seu valor próprio, entrou emconcorrência com iste e ille e, além disso, tomou o lugar de idem, ocupando

21 KELLER, op. cit., p. 297.22 GRANDGENT, C. H. Introducción al latín vulgar. 2. ed. Madrid: CSIC/Revista de Filologia

Española,1952, p. 70.23 VÄÄNÄNEN, V. Introducción al latín vulgar. 3. ed. 1. reimpr. Madrid: Gredos, 1988, p. 212-213.

Page 7: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 21

por fim o posto de iste (originalmente, vinculado à 2a pessoa). Väänänen24

assinala também que na língua empregada em conversas se reforçavam osdemonstrativos iste e ille com a partícula anteposta ou prefixada ecce (eeccum), como se podem ver pelos seguintes exemplos retirados respectiva-mente da obra Mercator (verso 434), de Plauto, e da Peregrinatio ad Loca Sancta(cap. 14, linha 3):

(09) DEM. Eccillum video. iubet quinque me addere etiamnunc minas. (grifo nosso)

(10) Nam ecce ista via, quam videtis transire inter fluviumIordanem et vicum istum, haec est qua via regressus estsanctus Abraham de caede Codollagomor [...]. (grifo nosso)

O largo emprego dos demonstrativos em função substantiva eadjetiva levou à perda de seu valor primitivo e gerou dois grandes proces-sos de mudança envolvendo essencialmente o demonstrativo de 3a pessoaille25: criação de um pronome pessoal de 3a pessoa, a partir de seu empregoem função substantiva (p. ex., port. ele, esp./oc./reto-rom./rom. el, cat.ell, fr. il); e criação do artigo definido, a partir de seu emprego em funçãoadjetiva (p. ex., port. o, esp./cat. el, fr. le, oc. lo, reto-rom./it. il, rom. -(u)l)26.Para Meillet & Vendryes27, ille é sempre um pronome demonstrativo em latim,mesmo em contextos em que se pode associá-lo ao emprego românico; Ernout& Thomas e Faria28, entretanto, afirmam que se podem encontrar indíciosdessas transformações no latim falado, especialmente nos textos dos cômicose em autores do período imperial.

Bianchet29 aponta que no Satyricon, de Petrônio (séc. I d.C), obra tidacomo uma das principais fontes para se ter acesso à modalidade oral dalíngua latina, se apresenta um emprego em larga escala de demonstrativos, em

24 VÄÄNÄNEN, op. cit., p. 216.25 É digno de nota que em algumas variedades românicas, como o sardo, o artigo e o pronome

pessoal não derivam de ille mas sim de ipse.26 ERNOUT & THOMAS, op. cit., p. 192; FARIA, op. cit. , p. 288.27 MEILLET & VENDRYES, op. cit., p. 590.28 ERNOUT & THOMAS, op. cit., p. 192; FARIA, op. cit. , p. 288.29 BIANCHET, S. M. G. B. Satyricon, de Petrônio: estudo lingüístico e tradução. São Paulo: FFLCH/

USP, 2002. (Tese, Doutorado em Língua e Literatura Latina).

Page 8: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos22

função tanto adjetiva quanto substantiva, observando que grande parte dasocorrências se concentra nos demonstrativos hic (mais freqüente) e ille (segun-do mais freqüente). Em função adjetiva, as poucas ocorrências de iste são comum sentido especial — há um matiz depreciativo —, mas os demais (is, ipse eidem) conservam suas significações próprias de anafórico, de reforço e de iden-tidade, respectivamente. Prevalece nesse texto a anteposição hic, iste, is e idemem relação ao nome que determina e a posposição de ille e ipse (apesar de estesdois apresentarem um número significativo de anteposições, mais freqüenteque os de posposições daqueles quatro). O freqüente uso dos demonstrativosnas diferentes seções do Satyricon (episódios iniciais: caps. 1-26; CenaTrimalchionis: caps. 27-78; episódios finais: caps. 79-141), com predomínio nestaúltima, sugere que este uso não constitui simplesmente uma marca da lingua-gem descuidada própria da fala dos convivas da Cena. Em função substantiva,sobressai uma tendência, mais acentuada nos episódios da Cena, de se empre-gar o demonstrativo ille como pronome pessoal de 3a pessoa para preencher alacuna no paradigma de pronomes pessoais, em lugar do anafórico is, concor-rendo, porém, com ille nessa função hic. Os dados relativos a emprego dedemonstrativos no Satyricon permitem que se identifiquem os estágios em quese encontravam os diferentes processos de mudança relativos a esses elemen-tos no séc. I d.C.: (a) não há indícios nítidos do processo de criação de artigodefinido a partir de ille nessa obra, já que em função adjetiva há o predomínioabsoluto de hic, sugerindo, assim, que esse processo seria posterior ao séc. I,sendo, no entanto, precedido de um período de aumento significativo noemprego de demonstrativos; e (b) ille em função substantiva já apresenta-seem um estágio bastante avançado de emprego como pronome pessoal de 3a

pessoa (em muitos casos já destituído de seu valor de demonstrativo), caracte-rística marcante na linguagem descuidada dos episódios da Cena.

3. Demonstrativos nas línguas românicas

3.1. Apresentação dos sistemas

Considerando a diversidade que constitui o universo lingüístico românico,convém apresentar os sistemas de demonstrativos que servirão de referênciapara a discussão a ser conduzida neste trabalho. De forma geral, toma-se comoreferência o sistema da variante estândar (dialeto-padrão) de seis línguas româ-nicas (português, espanhol, catalão, francês, italiano e romeno) e de uma dasvariantes a cuja descrição foi possível ter acesso no caso de outras três línguas

Page 9: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 23

(ocitânico [linguadociano], reto-romano [romanche grisão] e sardo [nuorês deBitti]), aqui organizados adotando-se critérios comuns de descrição30:

30 Os sistemas foram extraídos das seguintes descrições: português, LUFT, C P. Gramática resumida:explicação da Nomenclatura Gramatical Brasileira. 10. ed. São Paulo: Globo, 1989, p. 90; espanhol,LLORACH, E. A. Granática de la lengua española. Madrid: Espasa Calpe, 2000, p. 91-92; catalão,FABRA, P. Gramática catalana. 3. ed. Barcelona: Teide, 1966, p. 30-31 e 35; ocitânico[linguadociano], ALIBERT, L. Gramatica occitana segon los parlars lengadocians. Montpellier: Centred’Estudis Occitans, 1976, p. 74; francês, MONNERIE, A. Le français au présent. Paris: Didier,1989, p. 26-27, 89-92; reto-romano [romanche grisão], CADUFF, R.; CAPREZ, U. N. & DARMS,G. Grammatica d’instrucziun dal rumantsch grischun. Friburg: Seminari da Rumantsch da l’Universitadda Friburg, 2006, p. 83-84; sardo [nuorês], WAGNER, M. L. La lingua sarda: storia, spirito e forma.Nuoro: Ilisso, 1997, p. 297; italiano, SALMOIRAGHI, A. Conoscere l italiano. Firenze: Le Monnier,1989, p. 122-124; e romeno, COJOCARU, D. Romanian grammar. Durham (NC): The Slavic andEast European Language Research Center, 2003, p. 77-79.

31 Quando em função substantiva, os demonstrativos masculinos e femininos em espanholsão representados na escrita com um acento agudo sobre a vogal tônica.

32 Ce apresenta a variante cet diante de palavras iniciadas por vogal ou pelo chamado h mudo: p. ex.,cet avion/homme. Monnerie afirma que a diferença entre ceci e cela se refere à oposição retomada ×apresentação (p. 90), mas Brunot & Bruneau (BRUNOT, F. & BRUNEAU, C. Précis de grammairehistorique de la langue française. Paris: Masson et Cie, 1949) consideram que diz respeito à oposiçãoo que se segue × o que precede (p. 250) e também à oposição proximidade × distância (p. 256). É curiosoque os valores propostos por Monnerie e por Brunot & Bruneau são inversos!

Page 10: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos24

33 Segundo os dados do Pledari Rumantsch (www.pledari.ch), esse sistema coincide com o dodialeto obváldico (sobresselvano e subselvano).

34 Wagner (op. cit., p. 297) esclarece que as formas de masculino singular apresentam varian-tes terminadas em -e que se referem apenas a pessoas e continuam existindo em dialetoscentrais, como de Bitti. Além disso, os demonstrativos de forma geral, quando precedidosde preposição terminada em consoante, apresentam e- ou i- inicial.

35 Quello apresenta variantes determinadas pelo início da palavra que acompanha: sg. quelloscolaro, quel cavallo, quell’orologio e pl. quegli scolari, quei cavalli, quegl’individui.

36 Cojucaru (op. cit., p. 79) informa que as formas coloquiais (ãsta e suas flexões), quando emfunção adjetiva, aparecem apenas pospostas ao nome.

Page 11: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 25

3.2. Aspectos históricos morfossintáticos

A gênese da diversidade na configuração do sistema de demonstrativosnas línguas românicas deriva de um conjunto de mudanças fundamentais, dentreas quais se destacam: (a) modificação do escopo de iste; (b) constituição deformas reforçadas; (c) tratamento do neutro; e (d) diferenciação de formassubstantivas e adjetivas.

3.2.1. Modificação do escopo de iste

O demonstrativo iste era uma forma tradicionalmente vinculada à 2a pes-soa do discurso, indicando geralmente proximidade a quem se fala. No cursodos tempos, quatro foram os destinos dessa forma nas línguas românicas: (i)deslocamento do seu escopo da 2a para a 1a (proximidade a quem fala),como em português (este), espanhol (este), catalão (aquest), italiano37 (questo) esardo (custu); (ii) formação de variantes, ficando uma vinculada à 1a pes-soa e outra à 2a pessoa, como em ocitânico (respectivamente, aiceste e aquest);(iii) ampliação parcial do seu escopo também para 2a pessoa, como emreto-romano (quest) e romeno (ãsta/acest(a)); e (iv) ampliação total do seuescopo para todas as pessoas, como em francês (ce) em função adjetiva38

(optativamente acompanhada por advérbio).

Nas línguas românicas em que houve apenas deslocamento do escopode iste, ipse (originalmente pronome de reforço) tornou-se forma para 2a pes-soa, fato que se deu em português (esse), espanhol (ese), catalão (aqueix) e sardo(cussu). Constitui um sistema à parte o italiano, em que a forma da 2a pessoaderivou de um composto constituído de uma partícula de reforço (cf. seção3.2.2), do dativo do pronome de 2a pessoa e ainda da forma acusativa de iste— assim, lat. eccu tibi istu > ital. codesto.

37 Em função substantiva, há também no italiano uma forma (costui) derivada de eccu *istui —esta última, uma forma analógica para o dativo singular istibaseada no dativo singular cui(LAUSBERG, H. Lingüística románica. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1981, p. 350).

38 Em função substantiva, há também no francês uma forma única (celui) mas derivada de ecce*illui — esta última, uma forma analógica para o dativo singular illi baseada no dativosingular cui (LAUSBERG, op. cit., p. 350).

Page 12: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos26

3.2.2. Constituição de formas reforçadas

Já em latim, os demonstrativos ocorriam acompanhados por outras for-mas, que poderiam ser os próprios demonstrativos (cf. hic ille) e a partícula dêiticaecce (port. eis). Em quase todas as línguas românicas existiram demonstrativosderivados de forma simples e de forma reforçada (fruto do referido acompa-nhamento), embora em várias dessas línguas apenas uma dessas formas fosse seimpor, não necessariamente apenas a simples ou apenas a composta.

Não há na literatura especializada consenso sobre qual terá sido a partí-cula que entrou na composição das formas reforçadas de demonstrativos ro-mânicos - vejam-se a seguir as principais propostas: atque39; hic ou hicce40; eccum41;ecce ou *accu > atque + eccum42; ecce [quando segue à consoante velar latina vogalposterior: lat. eccu’ille > it arc. quillo > it. mod. quello] × eccum [quando segue àconsoante velar latina vogal anterior: lat. ecc’ille > fr. arc. cel]43; e ecce-/eccu- parafrancês e italiano × *accu- para línguas ibero-românicas44. A grande diversida-de de propostas deriva da necessidade de dar conta de algumas particularida-des das formas românicas: (a) a existência de formas com a inicial (cf. port.aquele) exige propostas como a da variante *accu-, derivada seja de mudançafônica de um e inicial para a seja de fusão entre atque e eccu; e (b) a existência deformas com u medial (cf. ital. quello) e sem u medial (cf. rom acel) exige propos-tas que admitam a adoção de eccu- para algumas línguas e de ecce para outras, talcomo propôs Diez.

Tão complexo quanto o processo de formação dos demonstrativos re-forçados foi o destino que tiveram na história das línguas românicas. Apesarde ter existido demonstrativo reforçado para as três pessoas do discurso emquase todas as línguas românicas, houve sua fixação de forma quase unânime

39 MEYER-LÜBKE, W. Grammaire des langues romanes. Genève/Marseille: Slaktine Reprints/Laffitte Reprints, 1974.

40 LEWIS, G. C. An essay on the origin and formation of the romance languages. 2. ed. London: Parker,Son & Bourn, 1862, p. 155.

41 IORDAN, I & MANOLIU, M. Manual de lingüística románica. 1. ed. 1. reimpr. Madrid: Gredos,1980, vol I, p. 300.

42 BOURCIEZ, É. Éléments de linguistique romane. 5. ed. Paris: Klincksieck, 1967, p. 95.43 DIEZ, F. Grammaire des langues romanes. 3. ed. Paris: Vieweg, 1874-1876, vol. 3, p. 421.44 ENTWISTLE, W. J. Las lenguas de España: castellano, catalán, vasco y gallego-portugués. Madrid:

Istmo, [1973], p. 94.

Page 13: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 27

para a 3a pessoa. A explicação para essa fixação está no fato de o demonstra-tivo latino ille ter assumido a função de pronome pessoal de 3a pessoa e/ou deartigo definido, deixando assim apenas a forma reforçada para ocupar a fun-ção de demonstrativo, tal com se passou em português (aquele), espanhol (aquel),catalão (aquell), ocitânico (aquel), francês (celui/ce), reto-romano (quel/tschel),italiano (quello) e sardo (cuddu). Especificamente em romeno, sobreviveramtanto a forma simples (ãl), atualmente de uso coloquial, quanto a reforçada(acel), de uso formal, já que a simples não se identificou com o pronome pes-soal de 3a pessoa (el) nem com o artigo definido (-(u)l). Considerando apenasa 1a e a 2a pessoa, as línguas românicas se distribuem em três grupos: (i) asque fixaram apenas as formas simples, como o português (este e esse) e oespanhol (este e ese); (ii) as que fixaram apenas as formas reforçadas, comoo catalão (aquest e aqueix), o ocitânico (aiceste e aqueste), o francês (celui/ce), osardo (custu e cussu) e o italiano (questo/questi/costui e codesto); e (iii) a que man-teve ambas as formas, que é o caso do romeno (ãsta [coloquial] e acest(a)[formal]).

3.2.3. Tratamento do neutro

O sistema de gêneros latino se modificou na passagem às línguas româ-nicas, sendo a mudança mais freqüente o desaparecimento do neutro: de for-ma geral, formas latinas de singular do neutro foram reinterpretadas como degênero masculino (cf. lat. n. sg. tempus > port. m. sg. tempo) e formas de pluralcomo singular de gênero feminino (cf. lat. n. pl. ligna > port. f. sg. lenha) -exceto em romeno, que apresenta gênero neutro regularmente (cf. nom.-ac.sg. m. om, f. femeie e n. lapte)

Nos sistemas de demonstrativos românicos, o tratamento do neutro(normalmente indicando seres inanimados) se manifesta de três formas: (i)presença regular de forma neutra, que é variável em número e desempe-nha função substantiva e adjetiva, como no romeno (m. acest, f. aceastã e n.acest)45; (ii) presença de resquício de neutro, que é invariável em número edesempenha apenas função substantiva, podendo esse resquício estaretimologicamente correlacionado às formas de masculino e feminino (cuja

45 Embora no singular a forma de demonstrativo do masculino e a do neutro no romeno sejamhomônimas, no plural a homonímia se dá entre a forma do feminino e a do neutro —especificidade que justifica reconhecer a existência do neutro como gênero autônomo.

Page 14: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos28

base é iste) — como no português (m. este, f. esta e n. isto), no espanhol (m. este,f. esta e n. esto) e no reto-romano (m. quest, f. questa e n. quai) — ou não estarcorrelacionado — como no catalão (m. aquest, f. aquesta mas n. açò [< lat. eccehoc]), no ocitânico (m. aiceste, f. aicesta mas n. aiçò [< lat. ecce hoc]), no francês46

(m./f. ce mas n. ceci [< ce + (i)ci < lat. ecce hoc + ecce hic]) e no italiano (m. questo,f. questa mas n. ciò [< lat. ecce hoc]); e (iii) ausência de neutro, como no sardo(m. custu e f. custa)47.

3.2.4. Contraste entre função substantiva e adjetiva

Os demonstrativos em latim eram empregados substituindo nomes (=função substantiva) ou acompanhando nomes (= função adjetiva), sem queessa diferença significasse alguma mudança na sua forma. Em algumas lín-guas românicas, porém, constituíram-se sistemas em que a forma do demons-trativo varia segundo o referido contexto sintático.

Em função da oposição entre formas de função substantiva e deadjetiva, os sistemas de demonstrativos das línguas românicas podem serdistribuído em cinco tipos: (i) ausência de oposição, podendo qualquerdas formas exercer ambas as funções, como em sardo (custu/custa em fun-ção substantiva ou adjetiva); (ii) oposição restrita ao neutro, que exercesomente a função substantiva, enquanto as demais podem exercer qualqueruma, como em português (este/esta em função substantiva ou adjetiva × istoem função substantiva), espanhol (este/esta × esto), catalão (aquest/aquesta ×açò), ocitânico (aicest/aicesta × aiçò) e reto-romano (quest/questa × quai); (iii)

46 No francês, modernamente o demonstrativo masculino ce é homônimo à base do neutro ceci,mas etimologicamente são distintos: enquanto o masculino se origina do lat. ecce iste, a base doneutro deriva do lat. ecce hoc (BRUNOT & BRUNEAU, op. cit., p. 246). Os demonstrativos substan-tivos celui/celle também se diferenciam do neutro, pois sua base é apenas ecce (+ *illui/illa).

47 Em função provavelmente de evolução convergente no sardo, as formas latinas acusativasde masculino (istum) e de neutro (istud) teriam resultado, após anexação de partícula inicial,em uma forma única (custu), encaixada no sistema de demonstrativos simplesmente comode gênero masculino. Como já assinalado, Wagner (op. cit., p. 297) informa que há variantesde masculino terminadas em -e, que se referem apenas a pessoas, mas lembre-se aqui de queas formas masculinas terminadas em -u se referem tanto a seres animados quanto a inani-mados, razão pela qual ainda assim a idéia de ausência de neutro é defensável. Para o refe-rido estudioso, as formas em -e foram constituídas tomando ipse como modelo, mas umahipótese igualmente possível seria a de que derivariam do nominativo masculino iste.

Page 15: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 29

oposição parcial nos três gêneros (formas distintas para cada gênero emuma dada função e formas distintas para masculino e feminino — sem neu-tro — em outra adjetiva), como em francês (celui/celle/ceci em função subs-tantiva × ce/cette em função adjetiva) e em italiano (questi~costui/costei/ciòapenas em função substantiva × questo/questa em função substantiva ouadjetiva); (iv) oposição plena em três gêneros, como em romeno (acesta/aceasta/acesta em função substantiva × acest/aceastã/acest (antepostos) em fun-ção adjetiva48).

4. Tendências contemporâneas

Como já explicado, os sistemas apresentados na seção 3.1 referem-sevia de regra à variante estândar das línguas em questão, aparecendo normal-mente na modalidade escrita em estilo formal. Se, considerando apenas es-ses sistemas, a natureza caleidoscópica do universo lingüístico românico jáse manifesta claramente, tal natureza mostra-se ainda mais intensa — e, porisso, intrigante — quando se levam em conta as diferenças relativas especi-almente à época (diacrônica), à região (diatópica), ao estilo (diafásica), aogênero (literário × não-literário) e à modalidade (língua escrita × falada).Naturalmente não seria possível descrever aqui todas as particularidadesrelativas a esses aspectos, mas há duas tendências bastante notáveis nos sis-temas de demonstrativos românicos que merecem ser mencionadas, pare-cendo estarem ambas intimamente relacionadas: (a) simplificação do inven-tário e (b) adjunção adverbial.

4.1. Simplificação do inventário

A modificação do inventário de demonstrativos começou no própriolatim: desapareceram hic, is e idem de forma geral. É interessante notar, porém,que, em um primeiro momento do processo de constituição dos sistemas dedemonstrativos românicos, houve na verdade uma proliferação de formas noinventário, de maneira que, no período arcaico das línguas românicas, essasformas eram mais abundantes: assim, por exemplo, havia, no português, este/

48 Em romeno, os demonstrativos em função adjetiva (antepostos) se diferenciam dos em subs-tantiva basicamente pela presença da desinência -a nestes, com exceção do nom.-ac. sg. f.acea, que passa a aceea. Essa desinência ocorre também quando os demonstrativos em funçãoadjetiva aparecem pospostos ao nome que acompanham.

Page 16: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos30

aqueste, esse/aquesse e aquele49; no espanhol, este/aquest(e), es(e)/aques(e) e aquel 50;no catalão, est/aque(s)t/cest, elex/ex/(a)quex e aquell51; no francês, caso sujeito(i)cist/caso oblíquo [dativo] (i)cestui, (i)cesti/caso oblíquo [acusativo] (i)cest e casosujeito (i)cil/caso oblíquo [dativo] (i)celui, (i)celi/caso oblíquo [acusativo] (i)cel52.Como se vê, a riqueza do inventário decorre, de forma geral, da convivênciaentre formas simples e reforçadas e, no francês, da persistência de um sistemabicasual (caso sujeito × oblíquo). Da época medieval para a moderna, houveuma tendência de redução do inventário, desaparecendo, de forma geral, aoposição entre formas simples e reforçadas para uma mesma pessoa do dis-curso e, no francês, a oposição entre casos53. Como conseqüência dessa sim-plificação, as formas se tornaram freqüentemente polissêmicas (referindo-sea diferentes pessoas do discurso), mas essa ampliação de escopo semânticonão ocorre apenas após uma simplificação: basta que se lembre que, no latim,várias são as ocorrências de demonstrativo sendo usado em contexto em queoutro normalmente seria (cf. acima exemplos 01 a 08), antes mesmo de havero desaparecimento de certas formas.

A tendência histórica de simplificação do inventário ainda hoje tem semostrado em curso. Em relação ao português do Brasil, Nascentes54 assinalouuma competição entre este e esse, prevendo uma vitória para o primeiro; jáCâmara Jr.55 considerou que prevaleceria o segundo, previsão que tem sidoconfirmada por estudos mais recentes56. Em relação ao catalão, Badia i

49 CÂMARA JR, J. M. História e estrutura da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Padrão, 1985, p. 102.50 ALVAR, M. & POTTIER, B. Morfología histórica del español. Madrid: Gredos, 1987, p. 107.51 BADIA I MARGARIT, A. M. Gramática catalana. 3. reimpr..Madrid: Gredos, 1985, p. 313.52 BRUNOT & BRUNEAU, op. cit., p. 252-253.53 Em francês, em função adjetiva, restou apenas uma forma, derivada do caso oblíquo [acusativo]

de 1a/2a pessoa (cest > cet > ce); e, em função substantiva, a forma de masculino originou-se dooblíquo [dativo] da 3a pessoa (celui) mas a de feminino do oblíquo [acusativo] da 3a pessoa (celle).

54 NASCENTES, A. Este, esse. In: Miscelânia Clóvis Monteiro. Rio de Janeiro: Editora do Profes-sor, 1965, p. 5.

55 CÂMARA JR, op. cit, p. 104.56 PAVANI, S. Os demonstrativos este, esse e aquele no português culto falado em São Paulo. Campinas:

UNICAMP, 1987. (Dissertação, Mestrado em Lingüística); RONCARATI, C. Os mostrativosna variedade carioca falada. In: PAIVA, M. da C & DUARTE, M. E. L. (Org.) Mudançalingüística em tempo real. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003; e PEREIRA, H. B. ‘Esse’ versus‘este’ no português brasileiro e no europeu. São Paulo: FFLCH/USP, 2005. (Dissertação, Mestradoem Filologia e Língua Portuguesa).

Page 17: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 31

Margarit57 informa que, em barcelonês e na maior parte do domínio catalão, alíngua falada reduziu a tripla gradação locativa a apenas dois termos, de proxi-midade (aquest) e de distância (aquell), mas, segundo Badia et al.58, em algunsfalares a forma de proximidade é aqueix (em lugar de aquest) e, nos falaresvalencianos e em alguns norte-ocidentais, o sistema ternário permaneceu,mantendo-se inclusive as formas simples (est e eix). Quanto ao ocitânico,Wheeler59 informa que prevalecem atualmente apenas as formas aqueste e aquelcomo expressão de contraste. Em relação ao italiano, Salmoiraghi60 e Dardano& Trifone61 assinalam que a forma codesto é usada apenas na Toscana, sendosubstituída em outros lugares, até mesmo na língua literária, por questo, e queas formas questi/costui e quegli/colui são de uso literário e raro, sendo substituí-das respectivamente por questo e quello. Enfim, verifica-se de forma geral nossistemas românicos a tendência ao binarismo de formas, sendo uma vincula-da à 1a/2a pessoa (ou proximidade) e outra à 3a pessoa (ou distância), padrão jáconsumado há tempos para o francês, o reto-romano e o romeno.

4.2. Adjunção adverbial

Outra tendência notável em relação aos demonstrativos em línguas româ-nicas é a adjunção adverbial. Especificamente no caso do francês, trata-se de umprocesso que já está profundamente incorporado ao seu sistema, tendo, segun-do Brunot & Bruneau62, iniciado por volta do séc. XIV, embora haja registro deadjunção adverbial já desde o séc. XIII (cf. cestui chi no v. 5817 de Huon de Bordeaux).

Modernamente, entretanto, constata-se em diferentes línguas români-cas63 o emprego de adjunção adverbial (eventualmente intermediado por pre-posição). Vejam-se a seguir exemplos modernos com demonstrativos em fun-ção substantiva com adjunção adverbial (grifos nossos):

57 BADIA I MARGARIT, op. cit., p. 216.58 BADIA, J. et al. El llibre de la llengua catalana per a escriure correctament el català. 2. ed. corr. i rev.

Barcelona: Castellnou, 1997, p. 185.59 WHEELER. M. W. Occitan. In: HARRIS, M. & VINCENT, N. (Eds.) The romance languages.

New York: Oxford University Press, 1990, p. 259.60 SALMOIRAGHI, op. cit., p. 123.61 DARDANO, M & TRIFONE, P. Grammatica italiana con nozioni di linguistica. 3. ed. Bologna:

Zanichelli, 1997, p. 226 e 276.62 BRUNOT & BRUNEAU, op. cit., p. 250.63 Não foi possível encontrar exemplos de adjunção em reto-romano (advs. qua/là) e em

sardo (advs. inoghe/addae).

Page 18: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos32

- Português do Brasil64:

(01) “Esse aqui é o nosso amigo Zé Geraldo, e ali é a MariaPreta, esposa do Valdemar padeiro.. lá o Paulo Boto...”(Pedro Corrêa Cabral, Xambioá: Guerrilha No Araguaia, 1993)

(02) “Aquele ali afirma que não era corcunda, que ficou assimno campo de concentração de Dachau” (José Geraldo Vieiria,A Mais que Branca, 1974)

- Espanhol europeu65:

(03) “Quiero recordarte que aquí estoy, pero este aquí estáun poco más hacia un costado de lo que suponés” (DanielRubén Mourelle, Miramar: la Gesta del Pez, 1999)

(04) “Ya, pero el otro está a nombre de Lucas ya ¿eh? Ah¿aquel de allí, del Valejo? No, éste, éste.” (España Oral:CCON019A, 1991-1992)

- Catalão:

(05) “si veus alguna postal que aquest incorrecta, o algunapostal en espanyol que no aquest aquí, envia’ns la correccióo traducció de la mateixa” (http://www.ciberpostales.com/catala/ayuda/, acesso em 10.02.2008)

(06) “Però em vaig adonar que aquell allà només servia per fer‘bulto’.” (http://www.diarisegre.com/opinio.html?id=1569;acesso em em 10.02.2008)

- Francês:

(07) “Ce sont bien les sondages qui ont imposé M. Sarkozy aulong des cinq dernières années, et avec la participation active decelui-ci, comme le candidat incontournable de l’UMP” (http://www.agoravox.fr/article.php3? id_article=20292; acesso em10.02.2008)

64 Dados extraídos da base Corpus do Português (www.corpusdoportugues.org). De forma geralessas formas aparecem na base a partir do séc. XVIII, embora haja um exemplo de este aquino séc. XVI e outro no séc. XVII.

65 Dados extraídos da base Corpus del Español (www.corpusdelespañol.org). De forma geralessas formas aparecem na base a partir do séc. XVII.

Page 19: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 33

(08) “avec celui qui regarde et qu’il emporte au passage, et surtoutavec celui, là-bas, au bout du geste qui est visé mais jamaisatteint parce qu’il ne peut pas l’être (http://www.thauma.fr/ir_encres.html; acesso em 10.02.2008)

- Ocitânico:

(09) “Malavalisco! lou libre de ma cousino em’ aquest d’eici sesemblavon coume de bessoun, coume dos gouto d’aigo, e doucop, pres d’uno fernisoun estranjo, tout moun paure de cors sedounè pòu...” (Batisto Bonnet, La Fiero de Bello-Gardo, 1939[1993], p. 7)

(10) “Ah! pèr eisèmple, cridè lou manescau, aquelo-d’aqui tubo!e coume ferron, à toun. endré, sènso teni lou pèd?” (Léon Spariat,Lou Sant Aloi de Broussinet, 1926 [1999], p. 6)

- Italiano:

(11) “Domani spero tanto che sia un giorno meglio di questoqui che sta finendo” (Gatto Panceri, Accarezzami Domani, 2003)

(12) “Ma chi è quello lì con le cosce come copertoni” (MinaMazzini, Ma Chi è Quello Lì, 1987)

- Romeno:

(13) “- Nu-l recunoºti? A murit! - Murit?! Ãsta de aici e unstrãin. - Moartea l-a fãcut aºa. - Cine-i moartea asta?” (http://www.agonia.ro/index.php/prose/224364/index.html; acessoem em 10.02.2008)

(14) “Probabil cã încearcã unii sã facã presiuni: „dom’le hai sã-l supãrãm pe ãsta poate vorbeºte ãsta de acolo.” (http://www.adevarul.ro/articole/convorbirile-telefonice-intre-omar-hayssam-si-procurorul-ciprian-nastasiu/337220; acessoem em 10.02.2008)

É interessante notar que, apesar de o recurso ser sempre o mesmo(adjunção adverbial), o resultado acaba ficando específico para cada língua emfunção do número de advérbios empregados: no português, aqui/aí/ali/lá; noespanhol, aquí/allí/allá, no catalão, aquí/allí/allà; no francês, ci/là/là-bas66; no

66 Especialmente em relação ao francês moderno, há ainda um aspecto complicador: o advérbiolà tem se tornado polissêmico de tal forma que expressa não só distância como até mesmoproximidade.

Page 20: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cambraia, César Nardelli; Bianchet, Sandra Maria Gualberto.Caleidoscópio Latino-Românico: Demonstrativos34

ocitânico, eiça(eici)/aqui/eila, no italiano, qui/qua/lì/lá; no romeno, aici/acolo.Enfim, aparentemente a tendência uniformizante de simplificação do inven-tário (com predominância de sistemas binários) não estaria gerando um siste-ma românico único, pois a adjunção adverbial dá origem, por exemplo, a umsistema de quatro categorias no português mas a apenas de duas no romeno.

Considerações finais

Analisando a história dos demonstrativos do latim às línguas românicas,percebe-se que foi marcada por uma permanente instabilidade, ou seja, ossistemas passaram por mudanças de forma contínua. É interessante verificarque, desde o latim do séc. III a.C até as línguas românicas de hoje, há doisprocessos especialmente recorrentes nos sistemas de demonstrativos: sim-plificação de inventário e adjunção de elementos67 (neste caso, no latim,pela combinação de mais de um demonstrativo ou pela combinação com apartícula dêitica ecce; nas línguas românicas, pela combinação com advérbioslocativos).

Há duas formas possíveis de se relacionarem esses dois processos: (a) asimplificação do inventário desencadearia a adjunção de elementos para especi-ficar mais definidamente o valor do demonstrativo; ou (b) a adjunção de ele-mentos para dar ênfase (reforço) ao valor do demonstrativo desencadearia umenfraquecimento dos valores dos demonstrativos quando desacompanhados deoutros elementos e tornaria desnecessária a existência de muitas formas, geran-do uma simplificação do inventário. A falta de estudos especificamente sobre osdemonstrativos, tanto em latim quando nas línguas românicas, seriados do pon-to de vista cronológico, impede que se defina com segurança qual das duasreferidas formas de correlação entre os processos refletiria a realidade, emboraos dados fornecidos por Grandgent68, relativos à combinação de elementos nolatim, apontem fortemente para a segunda opção. Deve-se, porém, deixar sem-pre aberta a possibilidade de que a forma como se deu o processo de transfor-

67 Como lembram Corominas & Pascual (COROMINAS, J. & PASCUAL, J. A. Diccionario críticoeimológico castellano e hispánico. 1. ed. 3. reimpr. Madrid: Gredos, 1991, vol. I, p. 305-306), tam-bém em outras línguas houve um processo de adjunção de partícula dêitica na formação dedemonstrativos (cf. russo é-tot e grego å-êåéíïò). A adjunção de advérbios junto a demonstra-tivos não parece ser, aliás, privativa de línguas românicas, pois encontram-se estruturas seme-lhantes, p. ex., em inglês (this one here) e em alemão (dieses hier).

68 GRANDGENT, op. cit.

Page 21: Caleidoscópio latino-românico: demonstrativos

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 15-35, 2008 35

mação do sistema de demonstrativos no latim pode ser distinta da como tem sedado atualmente nas línguas românicas, apesar da óbvia semelhança.

É possível perceber que a ausência de descrições sistemáticas, realizadasexatamente sob os mesmos parâmetros, tanto para o latim quando para asdiversas línguas românicas em suas diferentes fases históricas, dificulta sensi-velmente a tarefa de até mesmo apenas reconhecer os padrões efetivos deorganização dos sistemas de demonstrativos. De forma geral, o cerne da insu-ficiência dos estudos disponíveis parece estar na ausência de descrições siste-máticas realizadas a partir de corpora de mesma natureza para cada língua (nosestudos tradicionais, há sempre mistura entre dados retirados de fase arcaica emoderna, texto literário e não-literário, prosa e poesia, textos de diversos gê-neros e estilos, dialeto-padrão e variedades vernaculares, etc.). As informa-ções apuradas no presente trabalho revelam que se trata de um tema aindacarente de estudos históricos e comparados sistemáticos, o que evidencia serum campo fértil para pesquisa.

RESUMEN: En este trabajo se discute la constituciónhistórica de los sistemas de demonstrativos de lenguasrománicas desde el latim, enfocando algunos de loscambios fundamentales (modificación del escopo de iste;constitución de formas reforzadas; tratamiento del neu-tro; y diferenciación de formas sustantivas y adjetivas) ytendencias contemporáneas (simplificación del inventarioy adjunción adverbial).

PALABRAS CLAVE: lingüística románica; variación ycambio lingüístico; demonstrativos.

Recebido em 01/12/2007Aprovado em 05/06/2008