Braudel 11

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    Marco Bulhes Cecilio

    FERNAND BRAUDEL NO MUNDO CONTEMPORNEO E AACUMULAO ACELERADA DE RIQUEZAS:

    ECONOMIA DE MERCADO E CAPITALISMO COMO OPOSTOS?

    Dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps-Graduao em EconomiaPoltica Internacional, do Instituto deEconomia / Ncleo de EstudosInternacionais, da Universidade Federal doRio de Janeiro, como parte dos requisitosnecessrios obteno do ttulo de mestreem Economia Poltica Internacional.

    Orientador: Prof. Dr. Mauricio Metri

    Rio de Janeiro2012

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    FICHA CATALOGRFICA

    CECILIO, Marco Bulhes

    Fernand Braudel no mundo contemporneo e aacumulao acelerada de riquezas: economia de mercado e

    capitalismo como opostos? / Marco Bulhes Cecilio.-

    Rio deJaneiro: UFRJ/IE, 2012.

    162f.

    Orientador: Mauricio Metri

    Dissertao (mestrado) UFRJ / IE / NEI / Programa dePs-graduao em Economia Poltica Internacional,2012.

    1. Capitalismo. 2. Economia de Mercado. 3. FernandBraudel. 4. Lucros. 5. Sistema Financeiro. I. Metri, Mauricio,orient. II. Fernand Braudel no Mundo Contemporneo e aAcumulao Acelerada de Riquezas: Economia de Mercado eCapitalismo como Opostos?

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    AGRADECIMENTOS

    Kant escreveu que fora "despertado de um sono dogmtico" pelas ideias de Hume, que o

    lanaram numa busca que o levaria a uma revoluo copernicana na filosofia. Este o poderdas ideias: ampliar nosso entendimento do mundo at o limite do que estas mesmas ideias

    possibilitam enxergar. De minha parte, tambm fui despertado de um sono dogmtico, o sono

    de um mundo sem poder. E Michelle Ferreti e seu incansvel grito de ateno que

    agradeo este despertar. Se s por isso eu j seria extremamente grato, Michelle tenho muito

    mais a agradecer: o companheirismo, a lealdade e o amor incondicionais. Que felicidade sinto

    em ter voc como companheira para a vida!

    Ao Professor Fiori agradeo por primeiro dar forma a este mundo ps-sono dogmtico e

    pelo incentivo ao pensamento livre e inovador. Ao Professor Ernani Torres agradeo pelas

    valiosas provocaes. Aos demais professores do PEPI tambm estendo este agradecimento:

    tive o privilgio de aprender com pessoas excepcionais, numa universidade pblica e sem

    qualquer custo. Espero que um dia isto no seja um privilgio, mas uma possibilidade aberta a

    todos. Ao meu orientador, Professor Mauricio Metri, serei sempre muito agradecido pelo

    incentivo, pelos almoos proveitosos e pelas pginas e mais pginas de comentrios e

    sugestes. Tenho, no entanto, um receio: de que sendo esta a minha primeira incurso no

    mundo acadmico, que os padres por ele estabelecidos de dedicao e acompanhamento

    tenham criado uma expectativa irrealista para meus prximos trabalhos.

    Pelas frutferas conversas e vivncias que me ajudaram a escrever esta dissertao

    agradeo a Borges, Carlito, Cntia, Fbio, Felipe, Flavinha, Gian Carlo, Joo, Luiza, Marina,

    Moiss, PM, Renato e Tininha. Agradeo em especial a 3 outros amigos que, alm de

    conversas, ajudaram ainda de outras formas: Zeza que num momento de muitas indefinies

    no s me apresentou o PEPI mas foi uma guia para que eu entrasse no mestrado; Luigi, por

    toda a bibliografia referente ao sistema internacional de direitos de propriedade intelectual; e

    Blunt, por me apresentar o jogo Presidente, to til para me ajudar a explicar o papel dashierarquias sociais em Braudel.

    Aos meus scios Cami, Flavinho e Monica agradeo a compreenso que me permitiu

    dedicar boa parte de meu tempo a esta dissertao enquanto tanta coisa acontecia na

    FbricaRH.

    Por fim, agradeo a meus pais. A sede de conhecimento, a disposio para o trabalho e a

    vontade de viver so a mais rica herana que vocs poderiam ter me transmitido. Obrigado!

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    "Somente pelo princpio da competio a economia poltica pode ter qualquer pretenso

    de ser uma cincia."

    (John Stuart Mill)

    "Quem duvidaria de que eles dispem dos monoplios ou, simplesmente, tm o poderio

    necessrio para, nove vezes em dez, apagar a concorrncia?"

    (Fernand Braudel)

    "Em geral no se menciona, no ensino da economia, o fato de que o mercado est sujeito a

    manipulaes especializadas e abrangentes. Esta a fraude."

    (John Kenneth Galbraith)

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    RESUMO

    FERNAND BRAUDEL NO MUNDO CONTEMPORNEO E AACUMULAO ACELERADA DE RIQUEZAS:

    ECONOMIA DE MERCADO E CAPITALISMO COMO OPOSTOS?

    Marco Bulhes Cecilio

    Orientador: Prof. Dr. Mauricio Metri

    Resumo da dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps-Graduao em Economia PolticaInternacional, do Instituto de Economia / Ncleo deEstudos Internacionais, da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obtenodo ttulo de mestre em Economia Poltica Internacional.

    Agentes ou setores que desfrutam de lucros excepcionais de forma permanente constituemum desafio de difcil soluo para a teoria econmica, especialmente porque esta no temincorporado o poder em suas diferentes formas como varivel terica importante. A pesquisahistrica de Fernand Braudel constitui um contraponto a esta deficincia ao identificar aexistncia de forma persistente entre os sculos XII e XVIII de duas camadas distintas deatividades econmicas, uma operando com lucros normais sob a fora competitiva dosmercados e outra que restringe a competio e manipula o mercado por meio do poder paraobter lucros excepcionais. Esta zona constitui a caracterstica essencial do sistema e nela

    que ocorre a acumulao de capital em larga escala, de forma que Braudel a denominacapitalismo. Esta dissertao revisita a obra de Braudel Civilizao Material, Economia eCapitalismo para extrair os elementos essenciais desta distino entre economia de mercadoe capitalismo. Realiza um debate entre crticos e seguidores de Braudel estabelecendo

    posturas metodolgicas e recorrncias histricas baseadas em sua obra. Utiliza esteselementos para avaliar o funcionamento de espaos do mundo contemporneo que seconstituram como privilegiados na acumulao acelerada de riquezas, em especial o setorfinanceiro mas tambm o sistema de direitos de propriedade intelectual e outros. Areconstruo do funcionamento destes mecanismos que geram lucros excepcionais feito pormeio de relatos concretos e fatos estilizados. Ao final, evidencia-se que h recorrncia noestabelecimento de atividades que operam s avessas do mercado e por isso geram grandes

    lucros; que estas operaes contam com o suporte da ao estatal; que outras hierarquias dasociedade cumprem papel importante na formao destes espaos de acumulao e, por fim,que o privilgio mximo capitalista ter os meios para recorrentemente mudar suas posies

    para explorar setores em que as condies assimtricas de poder permitem a obteno dosgrandes lucros. Assim, confirma-se a ideia de que contra-mercados que disparam grandeslucros constituem, do ponto de vista sistmico, na regra e no numa situao de exceo noque se refere acumulao acelerada de riquezas.

    Palavras-chave: Fernand Braudel. Economia de mercado. Capitalismo. Lucros. Contra-mercado. Sistema Financeiro. Direitos de Propriedade Intelectual.

    Rio de JaneiroJulho 2012

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    ABSTRACT

    FERNAND BRAUDEL NO MUNDO CONTEMPORNEO E A

    ACUMULAO ACELERADA DE RIQUEZAS:ECONOMIA DE MERCADO E CAPITALISMO COMO OPOSTOS?

    Marco Bulhes Cecilio

    Orientador: Prof. Dr. Mauricio Metri

    Abstract da dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps-Graduao em Economia PolticaInternacional, do Instituto de Economia / Ncleo de

    Estudos Internacionais, da Universidade Federal do Rio deJaneiro, como parte dos requisitos necessrios obtenodo ttulo de mestre em Economia Poltica Internacional.

    Agents and sectors that enjoy abnormal profits in a permanent way constitute a challenge hardto be solved by economic theory, which have not considered power in its different forms as animportant theoretical variable. The historical survey of Fernand Braudel constitutes acounterpoint to this deficiency by identifying the persistent existence between centuries XII toXVIII of two distinct layers of economic activity, one operating with regular profits undercompetitive market forces and another that restricts competition and manipulate the market

    through power for abnormal profits. This second zone constitutes the essential feature of thesystem and it is where capital accumulation occurs on a large scale, so that the Braudel calls itcapitalism. This paper revisits Braudels book Civilization and Capitalism to extract theessential elements of this distinction between market economy and capitalism. Performs adebate between Braudels critics and followers to establish methodological positions andhistorical recurrences based on his work. Uses these elements to evaluate the workings ofcontemporary world spaces that emerged as privileged in the accelerated accumulation ofwealth, particularly the financial sector but also the intellectual property rights system andothers. The reconstruction of the functioning of these mechanisms that generate huge profitsis made through concrete accounts and stylized facts. As a conclusion, it is shown that there isrecurrence in the establishment of activities that operate as a reverse of the market and

    therefore generate large profits, that these operations are backed by state action, that othersociety hierarchies fulfill a major role in shaping these accumulation spaces and, finally, thatthe most significant capitalist privilege is to have the means to repeatedly change their

    positions to explore areas where conditions allow asymmetric power to be used to obtain hugeprofits. Thus, it confirms the idea that counter markets that trigger large profits are the rulerather than the exception from a systemic point of view with regard to the acceleratedaccumulation of wealth.

    Keywords : Fernand Braudel. Market Economy. Capitalism. Profits. Counter-market.Financial System. Intellectual Property Rights

    Rio de JaneiroJulho - 2012

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    LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1. Proporo dos lucros corporativos totais por setor nos EUA .................................. 93Grfico 2. Balana de Pagamentos dos EUA (em US$ bilhes) ............................................ 111Grfico 3. Captura de valor em um iPod por empresa/pas .................................................... 130Grfico 4. Balana comercial dos EUA itens selecionados (em US$ bilhes) ................... 131

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    SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 9

    CAPTULO 1 - APRESENTANDO BRAUDEL ................................................................. 21

    1.1 VOLUME 1-AS ESTRUTURAS DO COTIDIANO ............................................................... 23

    1.2 VOLUME 2-OS JOGOS DAS TROCAS ............................................................................. 26

    1.3 VOLUME 3-OTEMPO DO MUNDO ................................................................................ 34

    CAPTULO 2 - DISCUTINDO BRAUDEL ......................................................................... 43

    2.1 POSTURA METODOLGICA 1-INJEO DA HISTRIA NA ECONOMIA............................. 45

    2.2 POSTURA METODOLGICA 2-UM ESPAO-TEMPO AMPLIADO...................................... 512.3 RECORRNCIA HISTRICA 1-OCONTRA-MERCADO NO EXCEO, REGRA............ 55

    2.4 RECORRNCIA HISTRICA 2-NO H CONTRA-MERCADOS SEM O APOIO DO ESTADO.. 63

    2.5 RECORRNCIA HISTRICA 3AS RAZES DO CAPITALISMO VO ALM DA ECONOMIA E

    DA POLTICA,ESTO NA SOCIEDADE COMO UM TODO ............................................................. 71

    2.6 RECORRNCIA HISTRICA 4-PODER ESCOLHER:O PRIVILGIO CAPITALISTA............... 76

    2.7 POSTURAS METODOLGICAS E RECORRNCIAS HISTRICASUM RESUMO................... 82

    CAPTULO 3 - BRAUDEL NO MUNDO CONTEMPORNEO ..................................... 843.1 SETOR FINANCEIRO E A CRISE DE 2007 ......................................................................... 92

    3.2.1. Recorrncia histrica 1 - O contra-mercado no exceo, regra .................. 92

    3.2.2. Recorrncia histrica 2 - No h contra-mercados sem o apoio do Estado ..... 107

    3.2.3. Recorrncia histrica 3 As razes do capitalismo vo alm da economia e da

    poltica, esto na sociedade como um todo .................................................................... 115

    3.2.4. Recorrncia histrica 4 - Poder escolher: o privilgio capitalista .................... 121

    3.2 OUTROS SETORES ........................................................................................................ 1243.2.1. Recorrncia histrica 1 - O contra-mercado no exceo, regra ................ 125

    3.2.2. Recorrncia histrica 2 - No h contra-mercados sem o apoio do Estado ..... 133

    3.2.3. Recorrncia histrica 3 As razes do capitalismo vo alm da economia e da

    poltica, esto na sociedade como um todo .................................................................... 139

    3.2.4. Recorrncia histrica 4 - Poder escolher: o privilgio capitalista .................... 143

    CONCLUSO ....................................................................................................................... 146

    BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 152

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    INTRODUO

    Desde meados da dcada de 1930 at a metade da dcada de 1980, os lucros no setor

    financeiro americano representaram em mdia 15% dos lucros totais da economia dos EUAde forma estvel1. As dcadas seguintes, no entanto, apresentaram um quadro muito diferente,

    com a sua representatividade no montante total de lucros mais do que dobrando de tamanho.

    Assim, praticamente ano aps ano entre 1986 e 2011, o setor financeiro gerou lucros recordes,

    tendo seu pico percentual no ano de 2001 quando representou metade dos lucros totais da

    economia.2 Um smbolo desta lucratividade sem igual a remunerao de seus principais

    executivos. Somando os valores dos anos de 2006 e 2007, o bnus pago pela Goldman Sachs

    a cada um de seus 3 principais gestores, Lloyd Blankfein, Gary Cohn e Jon Winkelried foi deUS$ 52 milhes.3 Embora esta lucratividade excepcional do setor financeiro seja uma das

    mais significativas marcas da economia mundial nas ltimas dcadas, explic-la no uma

    tarefa simples para a teoria econmica, em especial em funo da aparente intensa competio

    do setor. Paul Volcker - ex-presidente do FED - certa vez apontou que esta era uma

    contradio de difcil resoluo ao colocar a questo nos seguintes termos:

    Impressiona-me que quando se olha para o sistema bancrio, nunca antes em nossa histria estaindstria esteve sob tanta presso competitiva, com participaes de mercado em declnio em muitasreas e uma sensao de intensa tenso, mas ao mesmo tempo, a indstria nunca foi to lucrativa comtanta fora aparente. Como conciliar essas duas observaes?4

    Crotty5denominou esta questo o "paradoxo de Volcker": como poderiam existir grandes

    lucros se aparentemente o setor era altamente competitivo? A relevncia deste paradoxo

    advm do fato de que a fora da concorrncia sempre foi entendida no campo econmico

    como o elemento central na conteno e normalizao dos lucros. Ao se recuar no tempo, se

    v que j em 1848 John Stuart Mill escrevia que apenas por meio do princpio da competio

    1.Dados obtidos do Bureau of Economic Analysis do Departamento de Comrcio dos Estados Unidos - TabelaNIPA (National Income and Product Accounts) 6.16. Neste perodo de 50 anos entre 1935 e 1984, por apenas 6vezes a barreira dos 20% foi quebrada e nenhuma delas antes da dcada de 70, quando os primeiros movimentosque estruturalmente dariam suporte aos grandes lucros financeiros j comeavam a ser implementados. Ver

    pginas 107 a 110 e nota de rodap 407.2.Aps prejuzos pontuais em 2008, estes nveis excepcionais de lucratividade foram retomados: em mdia,entre 2009 e 2011, os lucros anuais do setor financeiro foram de US$ 470 bilhes, representando 37% da massade lucros do pas.3.Sopelsa, 2009. Estes nmeros representam apenas os bnus recebidos por estes profissionais, que alm destesvalores recebem salrios, aes, opes de aes e outros benefcios. Como exemplo, a remunerao total deLloyd Blankfein somente em 2007 foi de US$ 67,9 milhes. (Rushe, 2012)4.FDIC, 1997: 118. Traduo do autor, no original: "It strikes me that when one looks at the banking system,never before in our lifetime has the industry been under so much competitive pressure with declining marketshare in many areas and a feeling of intense strain, yet at the same time, the industry never has been so profitablewith so much apparent strength. How do I reconcile those two observations?"5.Crotty, 1997: 5.

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    299, captura US$ 80 por meio de seus direitos de propriedade sobre marcas e patentes

    tecnolgicas comparados a menos de US$ 4 de valor capturado pela montadora taiwanesa

    localizada na China que efetivamente produz o produto.11Foi isso que levou Galbraith a dizer

    que "a economia, como ensinada e entendida, est sempre um passo atrs da realidade,

    exceto nas faculdades de administrao de empresas."12

    Para explicar este enigma dos lucros excessivos que no desaparecem como prev a teoria

    econmica, uma extensa literatura se estabeleceu especialmente a partir da dcada de 70 sob o

    nome de "estudos de persistncia da lucratividade"13. Estes estudos identificaram, sem que

    houvesse um consenso, mltiplas razes para a sustentao dos lucros excepcionais como a

    concentrao do mercado em poucas empresas que passam a atuar em coluso, os ganhos de

    eficincia obtidos por empresas maiores e a presena de barreiras de entrada entre outrasrazes.14

    No entanto, DeLanda15 ao fazer um paralelo com a fsica, mostra um limite dessa

    abordagem. Os modelos fsicos clssicos, como os de Newton e Galileu, tambm eram

    modelos idealizados de como o mundo operava, sem qualquer frico ou rudo. O problema

    que a insero a posteriorideste rudo no possvel: o rudo na verdade parte constitutiva

    do fenmeno e circunstncias temporais - histricas - de como ele atuou podem gerar

    resultados finais totalmente diferentes dos esperados pelos modelos puros e idealizados16

    , queno podem assim ser considerados como verdades absolutas e a-histricas. por isto que

    DeLanda diz que "um dos eventos epistemolgicos mais importantes dos ltimos anos a

    11.Dedrick, Kraemer e Linden, 2009a. Ver esta discusso em mais detalhes nas pginas 129 a 131.12.Galbraith, 2004: 29. No campo da administrao, esta busca por espaos privilegiados abertamentedebatida, embora no incorpore todos os elementos que sero debatidos neste trabalho. Ver, por exemplo,Gadiesh e Gilbert, 1998.13.PP Persistence of Profitability14.O ponto de partida destes trabalhos so os estudos de Bain (1951) e Mueller (1977, 1986). Bain (1951)associa os lucros anormais uma concentrao da indstria em poucos players e a coluso entre eles. Tal

    abordagem criticada por Brozen (1971) e Demsetz (1973), que associam a lucratividade superior aos ganhos deeficincias originados pelo maior tamanho das firmas. McMillan & Wohar (2011) discutem o papel duvidoso dataxa de crescimento de uma indstria sobre a manuteno de taxas anormais de lucro, mas citam estudos que

    permitem verificar uma correlao positiva entre estas variveis. Destacam ainda que o market sharede umaempresa, e seu tamanho, so bons indicadores de uma alta lucratividade. Caves & Porter (1977) reconhecem o

    papel fundamental da existncia de barreiras de entrada e sada para a manuteno de taxas de lucro diferentes.Glen, Lee & Singh (2003) estendem sua pesquisa para os pases em desenvolvimento, contrariamente grandemaioria dos outros estudos no campo que concentram-se em dados dos pases desenvolvidos.Surpreendentemente, encontram coeficientes de persistncia de diferenciais de lucro menores nos pases emdesenvolvimento do que nos pases desenvolvidos, ao contrrio do que se esperava em funo do menortamanho e desenvolvimento destes mercados. McMillan & Wohar (2011) e Rigby (1991) apresentam ainda umasrie de outros estudos nestas linhas.15.DeLanda, 1996a16."Friction is very complicated because it interacts with other variables like velocity in a non- linear way, in akind of feedback loop. [...] However, now we know that when you add friction and a driving force to counteractthe friction to even a simple system such as a pendulum, the system becomes a non-linear pendulum with amultitude of dynamical behaviors that were undreamt of by the classics." (DeLanda, 1996b)

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    crescente importncia das questes histricas na reconceitualizao em curso das cincias

    exatas"17, pois ao analisar o fato histrico, o rudo deve ser parte essencial dos resultados e

    no uma nota de rodap.

    A questo dos lucros extraordinrios na economia padece deste mesmo mal que DeLanda

    aponta, sendo que a questo histrica ainda no conquistou o mesmo status que na fsica: os

    grandes lucros seguem tratados como uma exceo que pode ser estudada parte e os

    modelos continuam a ser concebidos sem rudos ou com os rudos aplicados por cima de um

    arcabouo idealizado e pr-concebido. Mesmo os "estudos de persistncia da lucratividade"

    no superaram esta questo. Dentro da imagem de DeLanda, como se estes estudos

    tentassem compreender parte do rudo, e no o fenmeno como um todo.18

    Na economia, o mais forte "rudo" ausente destas anlises tem nome: o poder em suasdiversas formas. Como aponta Strange, as teorias econmicas tem sido desenvolvidas de

    forma "parcimoniosa, rigorosa e elegante - todas palavras de louvor muito usadas por

    economistas contemporneos"19, mas que para atingir tais qualificativos tm abdicado de

    debater o papel do poder. Strange classifica este fato como uma miopia deliberada e chama

    em sua ajuda K. W. Rothschild:

    Como em outros importantes campos sociais, devemos esperar que os indivduos lutem por posies,que o poder seja usado para melhorar a situao no jogo econmico, e que tentativas sejam feitas para

    derivar poder e influncia de posies econmicas privilegiadas. O poder deveria ento ser um temarecorrente em estudos econmicos de natureza terica ou aplicada. No entanto, se olharmos para a linha

    principal da teoria econmica ao longo dos ltimos cem anos, descobrimos que ela caracterizada poruma estranha falta de consideraes sobre o poder.20

    17.DeLanda, 1996: 181. Traduo do autor, no original: "One of the most significant epistemological events inrecent years is the growing importance of historical questions in the ongoing reconceptualization of the hardsciences"18.Outras crticas aos "estudos de persistncia da lucratividade" sob a perspectiva deste trabalho seriam quemuitos dos estudos restringem-se um painel de empresas industriais, no analisando o setor de servios oufinanceiro. Os estudos de persistncia da lucratividade tambm pecam pois no se aprofundam nas construeshistricas e estruturas que levam uma determinada indstria a ser mais lucrativa. Alm disso, como seu mtodo

    principal consiste em buscar discrepncias na taxa de lucratividade de diferentes indstrias num determinadoespao de tempo e num determinado espao econmico, em geral um pas, tal abordagem impossibilita observara ao de agentes que mudem suas posies entre diferentes indstrias ou mercados geogrficos no espao detempo destes estudos, o que tornou-se recorrente com o desenvolvimento cada vez maior dos mercadosfinanceiros globalmente. Por fim, so limitados ao explorar unicamente o universo das empresas com balanosdivulgados, o que traz diversos problemas: a) os espaos de acumulao acelerada de riquezas podem estar foradestes espaos mais simples de serem estudados em funo de estatsticas to abundantes; b) os conceitos deriqueza e lucros no so substituveis uma supervalorizao de ativos, por exemplo, pode representar umaumento de riqueza sem aumento correspondente de lucros, enquanto estes no forem realizados, e estasvariaes no so levadas em conta; c) em ltima instncia as empresas so instrumentos de gerao de lucros

    para pessoas fsicas, mas os dados utilizados cobrem apenas a rentabilidade das empresas e no a expanso dariqueza de seus acionistas ou gestores.19.Strange, 1994: 35. Traduo do autor, no original: " 'parsimonious', 'rigorous', 'elegant' - all words of praisemuch used by contemporary economists."20.Rothschild apud Strange, 1994: 35. Traduo do autor, no original: "As in other important social fields, weshould expect that individuals should struggle for position; that power will be used to improve one's position inthe economic game; and that attempts will be made to derive power and influence from economic strongholds.

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    Assim, o poder uma varivel-chave para explicar o surgimento de espaos de alta

    lucratividade na economia ao abafar as foras competitivas, mas tem sido uma varivel pouco

    trabalhada. Strange, no entanto, faz um importante alerta21: esta deficincia na incorporao

    do poder se aplica muito menos economia aplicada ou descritiva, onde economistas que

    trabalham, por exemplo, em algum ramo setorialmente especializado - como agricultura ou

    transportes - ou que lidam com as questes do desenvolvimento econmico, precisam estar

    atentos ao mundo real e aos fatores polticos que efetivamente influenciam os resultados e,

    assim, esto atentos experincia histrica concreta. Isto porque, no campo da economia

    aplicada - assim como no da administrao, como apontado por Galbraith -, h muito menos

    espao para teorias elegantes: so os resultados prticos que contam e, com efeito, os fatores

    que de fato so efetivos precisam ser incorporados. Essas observaes so convergentes comuma das solues que DeLanda22aponta para os problemas dos modelos tericos idealizados:

    necessrio intensificar o uso da histria pois analisar o desenrolar dos fatos passados pode

    ajudar a desvendar, a despeito dos modelos tericos, quais foram os fatores efetivamente

    importantes na vida econmica.23

    E aqui que o trabalho de Fernand Braudel, o intelectual francs celebrado por muitos

    como o maior historiador do sculo XX, se apresenta em todo seu potencial. Lder da

    segunda gerao da Escola dos Annales,24

    Braudel formulou uma viso inovadora eheterodoxa sobre o capitalismo e o processo de acumulao de riqueza, baseado no em uma

    elaborada construo terica mas em farta pesquisa histrica. Esta viso foi apresentada no

    Power should therefore be a recurrent theme in economic studies of a theoretical or applied nature. Yet if welook at the main run of economic theory over the past hundred years, we find that it is characterized by a strangelack of power considerations."21.Strange, 1994: 3622.DeLanda, 1996b23.A outra soluo apontada por DeLanda a construo de modelos bottom-up: "Instead of the models of the

    past which began at the top assuming systematicity, assuming a totality of form and having certainproperties,[...] we need to proceed in the opposite direction, to begin at the bottom and move up. For example,instead of creating a computer model of a market, an ecosystem, or a computer network by using a small set ofmathematical functions that capture the behavior of an idealised whole, we need to create virtual environmentsin which we can unleash a population of virtual animals and plants, virtual buyers and sellers, or virtual clientsand servers; let these creatures interact; and allow the self-organized whole to emerge spontaneously within thisvirtual environment. In this way the bottom up modelling strategy compensates for the weakness of the top downstrategy. Emergent properties are the properties of the complex interactions between heterogeneous elements,

    but top down analysis dissects and separates these elements, and, therefore, breaks up the interactions and tries toadd them back together. But, of course, when you break up the interaction and add them back together, all youare going to get is the properties that are the sum of the individual parts. What we want to get is something that ismore than the sum of the individual parts, that is the synergetic surplus." (DeLanda, 1996a)24.A Escola dos Annales nome comumente dado a um grupo de historiadores estabelecidos em torno darevista acadmicaAnnales d'Histoire Economique et Socialee posteriormente da VI Section of the Ecole

    pratique des hautes etudes, Sciences economiques et socialesque teve imenso impacto na historiografia mundialdurante o sculo XX. A escola buscava superar uma histria baseada em uma seqncia de eventos pontuais poruma histria total, que englobasse diferentes campos disciplinares.

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    livro ao qual dedicou quase 30 anos de sua vida, entre 1952 e 1979: Civilizao Material,

    Economia e Capitalismo: sculos XV-XVIII (doravante CMEC), sua obra magna de mais de

    1.600 pginas. CMEC que, em princpio, deveria simplesmente fazer um balano dos estudos

    sobre a histria econmica europia pr-industrial, tomou dimenses maiores: Braudel "ousou

    construir uma grande teoria da histria, [...] uma leitura global do mundo, como ningum

    ousava mais tentar desde Marx."25 E no centro desta leitura est sua discusso sobre as

    caractersticas e a construo de posies que geram lucros excepcionais, numa viso que

    rompe com a teoria econmica que tem como marca distintiva os mercados competitivos

    perfeitos, mas, tambm, com as narrativas histricas dominantes que entendiam a histria

    econmica europia entre 1100 e 180026como a passagem gradual de uma ordem na qual o

    mercado no cumpria papel importante para uma nova realidade pautada pelo mercado e queganharia seu impulso decisivo com a Revoluo Industrial.

    A essncia da abordagem de Braudel deriva de uma observao das atividades

    econmicas concretas da poca, na qual percebeu "homens, atos e mentalidades"27operando

    de formas distintas em 3 diferentes "camadas econmicas" durante estes 7 sculos. Uma

    destas camadas, que ele coloca num nvel intermedirio, a economia de mercado. Ela

    compreende toda a atividade produtiva que est norteada pela troca, seja um agricultor que

    produz milho para venda no mercado de uma cidade ou um barqueiro que transporta pessoasentre duas vilas prximas. Todos estes atuam em espaos da vida econmica regidos pela lei

    da oferta e da procura, com um mecanismo de operao previsvel e regular. Assim, se por

    algum acaso a colheita de milho na regio reduzida, os preos que o agricultor consegue no

    mercado sero maiores; se um novo barqueiro passa a trabalhar no transporte entre as vilas, o

    valor do frete se reduzir. Assim, os lucros nesta camada esto sempre restritos pela

    concorrncia e h inclusive uma certa monotonia dos fatos que permite um clculo de lucros

    com razovel grau de confiabilidade. esta camada que se tornou o objeto central de estudodos economistas, desde seu incio como cincia at hoje.

    Contudo, a economia de mercado no ocupa todo o cenrio - nem hoje e muito menos

    entre os sculos XII e XVIII. Abaixo dela, h uma espessa camada de atividades econmicas

    que apenas resvala o mundo das trocas. So atividades elementares, em geral encerradas h

    muito no tempo e no espao, rotinas de produo voltadas para o auto-consumo, como uma

    dona de casa que tece uma camisa para seu marido ou que cria galinhas para seu prprio

    25.Atalli apud Daix, 1999: 54526.Embora Braudel tenha explicitado no prprio ttulo de seu livro que o perodo de tempo coberto seria entreos sculos XV e XVIII, ele recorrentemente em CMEC recua at o sculo XII.27.Braudel, 2005b: 8.

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    consumo. Para ela, o preo da camisa no mercado ou da carne de frango pouco impacta sua

    atividade produtiva: assim, o mercado no influencia a sua atividade econmica, que

    pautada pela tradio e pelo costume.28Embora esta camada, que Braudel denomina como

    civilizao material,29 seja extremamente significativa em termos de volume, pode-se dizer

    que ela opaca: este tipo de atividade econmica gera pouqussimos registros histricos e

    raramente o foco de economistas e at de historiadores.

    Se a economia de mercado contraposta por baixo por uma economia de subsistncia,

    Braudel identifica uma camada que se situa acima da economia de mercado, tambm opaca,

    mas por razes diferentes: ela inacessvel para a maioria e s operada por meio de

    mecanismos intrincados e de acesso controlado. Nela, a lei da oferta e da procura

    constantemente bloqueada e os constrangimentos provocados pela concorrncia no seimpem pois a prpria concorrncia inexiste ou contornada, cooptada ou conquistada. A

    mentalidade dos homens a de criar espaos de exclusividade e seus atos se do no sentido

    da manipulao das tendncias do mercado, pois

    [eles] tem mil formas de trapacear no jogo a favor deles, pela manipulao do crdito, pelo jogofrutuoso das boas contra as ms moedas, [... eles] tem a superioridade da informao, da inteligncia, dacultura. [...] Quem duvidaria de que eles dispem dos monoplios ou, simplesmente, tm o poderionecessrio para, nove vezes em dez, apagar a concorrncia?"30

    Assim, Braudel contrasta a economia de mercado, transparente e lgica, com este limite

    superior e opaco, reino natural das grandes concentraes, dos monoplios, o espao do

    contra-mercado.31Como nesta camada superior as foras de mercado so controladas, seus

    agentes podem desfrutar de lucros extraordinrios, muito maiores do que os lucros normais

    que a economia de mercado pode oferecer. E o ponto-chave para criao destes espaos o

    poder. Poder poltico, poder da informao exclusiva, poder de uma moeda forte, poder da

    abundncia de crdito, ou seja, algum desnvel, alguma desigualdade de condies que

    permita que a lgica de mercado seja curvada para o benefcio de uma minoria. Assim,

    Braudel est convencido de que existem grupos de atividades econmicas de natureza

    distintas e

    que as regras da economia de mercado que se encontram em certos nveis, tais como as descreve aeconomia clssica, atuam muito mais raramente sob seu aspecto de livre concorrncia na zona superior,

    28.A camada da economia de mercado, frente a esta camada de auto-suficincia, uma ordem ao mesmo tempolibertadora e opressora. Opressora pois busca desalojar estas atividades elementares do ritmo quase inconscientedas rotina, para uma lgica produtivista, pautada por uma lgica de custos, preos e competio. Mas tambmlibertadora pois um acesso a um outro mundo, uma abertura, j que uma economia de trocas coloca em contatomundos e realidades distantes.29.Ou vida material.30.Braudel, 1987: 3931.Contre-march, no original em francs. A traduo brasileira optou pelo termo anti-mercado. Neste trabalho,nas pginas 61 a 63, explica-se a opo pela traduo contra-mercado.

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    que a dos clculos e da especulao. A comea uma zona de sombra, de contraluz, de atividades deiniciados.32

    Braudel no est sozinho nesta anlise. Usando termos distintos, Lenin,33por exemplo, j

    colocava em lados opostos o que denominou imperialismo - um capitalismo monopolista que

    teria surgido no comeo do sculos XX - e o capitalismo em sua forma anterior, baseado

    numa lgica concorrencial. Galbraith34tambm colocava de um lado o sistema de mercado -

    de competio acirrada e caracterstico dos primrdios do capitalismo - com o sistema

    industrial, que teria se formado mais tarde concentrando o poder nas grandes empresas. Em

    seu mais recente livro diz que

    o pequeno empresrio, a pequena empresa de varejo de servio, assim como a famlia de agricultores,so ainda exaltados no ensino de economia e na oratria poltica. Eles representam o sistema econmicoclssico descrito nos livros didticos dos sculos passados. No so mais o mundo moderno, mas

    apenas confirmam uma tradio estimada. [...] No entanto, o domnio econmico e social do grande algo aceito. A celebrao poltica e social do pequenos estabelecimento e da agricultura familiar umatolerante e inocente forma de fraude. Tradio, romantismo: no a realidade."35

    Galbraith ainda avana e afirma numa direo que Braudel com certeza aprovaria: "Em

    geral no se menciona, no ensino da economia, o fato de que o mercado est sujeito a

    manipulaes especializadas e abrangentes. Esta a fraude."36 H, no entanto, uma

    especificidade em Braudel. Lenin e Galbraith enxergam o monoplio como fora dominante

    somente a partir do sculo XX, mas no o historiador francs. Para ele, esta camada de jogos

    no competitivos e lucros superiores uma marca recorrente da atividade econmica aomenos desde o sculo XII e isso que busca mostrar em seu livro com uma abundncia de

    dados histricos.

    Desta forma, a distino que Braudel faz entre estas 2 camadas, uma competitiva e outra

    de manipulao do mercado e o papel essencial do poder nesta separao, abre um enorme

    campo de dilogo com a questo dos lucros excepcionais, da acumulao acelerada de

    riquezas e as deficincias de muitas das teorias econmicas hoje dominantes. Mas h mais do

    que isso. Braudel possui uma diferena fundamental em relao abordagem da maior parte

    da economia. Enquanto a ltima entende os lucros extraordinrios como uma anomalia do

    sistema que precisa ser explicada, por outro Braudel enxerga nestes lucros anormais a

    essncia do sistema: eles so perenes, existiram em todas as pocas ao menos desde o sculo

    XII - embora mudem de lugar - e apenas por meio deles ocorre a acumulao de capital em

    larga escala. O papel desta camada de lucros superiores no secundrio: pelo contrrio, ela

    32.Braudel, 2005b: 833.Ver Braudel,1987: 73.34.Ver Braudel, 2005c: 584.35.Galbraith, 2004: 4136.Galbraith, 2004: 25

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    o que de mais distintivo existiu em termos econmicos neste sistema. isso que leva Braudel

    a fazer uma opo que torna suas posies ainda mais surpreendentes para a economia:

    denominar de capitalismo esta camada superior, numa formulao que o coloca em oposio

    tanto a marxistas quanto liberais, para os quais a concorrncia a regra. A ousadia desta

    opo de Braudel fica ainda mais evidente se considerarmos o que Arrighi37disse a respeito

    das cincias sociais e em especial da economia no ltimo sculo: que seu silncio sobre o

    capitalismo crescera na mesma medida em que este se tornara o seu nico assunto - a

    economia perdera assim a possibilidade de olhar o capitalismo de fora e analis-lo como

    objeto de estudo criticamente. Braudel no compartilhou deste silncio. Pelo contrrio, fez

    sua voz ser ouvida e num tom muito diferente do que as poucas vozes correntes, embora tenha

    tido muito pouca interlocuo no campo da economia.A respeito desta polmica posio, Braudel relata que aps prolongada tentativa abdicou

    de evitar o uso da palavra capitalismo para designar esta zona de lucros superiores: era

    "coloc-la porta afora, e ela retornava pela janela. Havia uma atividade econmica que,

    mesmo na poca pr-industrial, evocava irresistivelmente a palavra e no aceitava nenhuma

    outra.38" E mais:

    [...] lan-la (a palavra capitalismo) de supeto entre 1400 e 1800 no ser cometer o mais grave pecadoque pode cometer um historiador o pecado do anacronismo? Na realidade, isso no me perturba

    muito. Os historiadores inventam palavras, rtulos para designar retrospectivamente seus problemas eseus perodos: a guerra dos Cem Anos, o Renascimento, o Humanismo, a Reforma... Para essa zona queno a verdadeira economia de mercado, mas tantas vezes a sua franca contradio, eu precisava deuma palavra especial. E aquela que se apresentava de modo irresistvel era mesmo capitalismo. Por queno se servir desta palavra evocadora de imagens, esquecendo todas as discusses acaloradas que elalevantou e ainda levanta?39

    Tendo esta provocao em mente e considerando que Braudel trabalhou sobre um perodo

    que se estendia entre os sculos XII e XVIII e que sugeriu que sua estrutura de pensamento

    seguiria vlida para os tempos atuais, sem no entanto realizar esta aproximao, chega-se ao

    objeto deste trabalho: avaliar as possibilidades e limites da estrutura desenvolvida por Braudel

    para compreender os processos de acumulao e concentrao da riqueza no mundo

    contemporneo, observando quais as caractersticas da vida econmica so iluminadas pela

    sua leitura de mundo. Alm disso, pode-se considerar como um objetivo secundrio deste

    trabalho avaliar a adequao da escolha de Braudel de denominar a camada superior como

    capitalismo, avaliando se a distino entre economia de mercado e capitalismo, com a fora

    discursiva que tem, sustenta-se em termos tericos, especialmente quando se aproxima do

    37.Arrighi, 2001: 117. Nesta reflexo, Arrighi aponta estar parafraseando Sombart, que foi o primeiro aintroduzir o conceito de capitalismo nas cincias sociais.38.Braudel, 2005b: 19939.Braudel, 2005b: 8

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    mundo contemporneo. Pretende-se ainda avaliar quais os ajustes seriam necessrios neste

    esquema de Braudel para aproxim-lo das mais recentes dcadas.

    Para melhor esclarecer estes objetivos, importante estabelecer seus limites. Este trabalho

    no pretende realizar uma comparao entre a abordagem de Braudel e a de outros estudos

    que visam explicar a formao das taxas de lucro nem comparar a definio que Braudel

    ofereceu para o termo capitalismo com a definio de outros autores - o trabalho limita-se a

    observar os elementos a respeito destes processos que a abordagem braudeliana ilumina. Do

    mesmo modo, ao analisar o sistema financeiro e outros setores da economia, no pretende

    fazer uma anlise exaustiva da dinmica competitiva de cada um destes setores - em cada um

    deles h outros fatores atuando na constituio dos lucros como eficincia operacional, mas

    estes aspectos no sero abordados. Tambm no h neste trabalho uma abordagemquantitativa que busque validar estatisticamente as posies de Braudel. Ademais, embora o

    trabalho identificar os eixos principais necessrios para uma atualizao do esquema de

    Braudel que torne-o mais adequado para o mundo contemporneo, este trabalho no

    completar na integridade este movimento, apontando apenas as trilhas a serem percorridas.

    Assim, para cumprir seus objetivos e luz das observaes demarcadas e do debate aberto

    por CMEC, este trabalho far um levantamento dos elementos tericos e metodolgicos mais

    importantes em Braudel para se olhar o presente. Completada esta etapa, empreender umexerccio ao estilo braudeliano - com base em relatos concretos e fatos estilizados - de anlise

    da realidade econmica corrente, buscando compreender com base em Braudel a acumulao

    acelerada de riquezas nas ltimas dcadas sob um ngulo que a cincia econmica possui

    grande dificuldade em utilizar. O sistema financeiro ser o alvo prioritrio desta anlise,

    porm diversos outros setores sero abordados como forma de observar as ideias de Braudel

    em diferentes reas.

    Tal anlise que parte da essncia do trabalho de Braudel para discutir o mundocontemporneo no frequente. Talbot40, por exemplo, o fez para a cadeia de caf,

    englobando uma temporalidade que se inicia no sculo XVI mas que chega aos mais recentes

    dias. Arrighi41, partindo dos elementos mais importantes de Braudel, estruturou um novo

    modelo de anlise por meio de seus ciclos sistmicos de acumulao que tambm alcana o

    tempo recente. No entanto, embora sua anlise seja eminentemente histrica, trabalha com

    uma lente mais macro do que a que Braudel utilizou. O trabalho original de Braudel

    40.Talbot, 2011. Alm da estrutura tripartite de Braudel, Talbot tambm utilizada o modelo de ciclos sistmicosde Arrighi. Ver Arrighi, 199641.Arrighi, 1996. Embora a grande obra em 4 volumes de Wallerstein "The Modern World-System" no chegues mais recentes dcadas, ele tambm buscou fazer esta aproximao de Braudel com o mundo contemporneo.

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    metodologicamente era distinto, pois discutia temas estruturais, de grande alcance, por meio

    de histrias e relatos observados de muito perto, com a descrio de atividades econmicas

    concretas. Esta abordagem sem dvida possui o desafio de garantir o alinhamento simultneo

    entre uma lente macro e uma micro, porm potente ao tornar bastante concretos os jogos

    apresentados. Neste trabalho e diferentemente de como procedeu Arrighi, procurou-se

    estruturar esta aproximao ao mundo contemporneo da mesma forma que Braudel o fez.

    Para realizar este movimento, o trabalho est dividido em 3 captulos. O primeiro deles

    consiste em revisitar CMEC, a grande obra de Braudel. Um livro to extenso pode ser

    abordado por vrias frentes - Kinser,42que era bastante crtico ao livro, reconhecia que CMEC

    poderia ser a porta de entrada para uma galxia de temas fascinantes: aqui, se limitar a

    destacar os elementos mais relevantes a respeito desta distino entre economia de mercado ecapitalismo e os elementos metodolgicos essenciais para que esta distino fosse construda.

    J existe um grande nmero de resenhas e crticas escritas sobre CMEC,43 porm estas

    publicaes - como em realidade cabe a uma resenha - acabam por fazer um balano geral da

    obra. Aqui se pretende algo distinto: construir uma porta de entrada para esta discusso a

    respeito da oposio entre economia de mercado e capitalismo que contenha os relatos e

    histrias originais mais significativos da obra, e no apenas uma apresentao terica de seus

    conceitos. Assim, alm de servir de sustentao para o restante deste trabalho, este primeirocaptulo pode constituir uma apresentao do que Braudel escreveu para um economista ou

    cientista social interessado em suas idias sem que seja necessrio atravessar as 16 centenas

    de pginas do original; por mais que Braudel fosse um escritor talentoso,44a extenso de sua

    obra um fator que provavelmente reduziu sua penetrao entre os economistas.

    O segundo captulo buscar extrair a essncia da abordagem braudeliana por meio de um

    debate de suas ideias centrais envolvendo crticos e seguidores. Embora existam publicaes

    que faam a avaliao do que seriam os pilares do seu pensamento,

    45

    este captulo pretendeampliar o nmero de vozes includas na conversa, intensificar o debate entre elas e oferecer

    um resultado mais estruturado para esta discusso. Assim, sero obtidas posturas

    metodolgicas - formas de olhar a economia mundial adotadas por Braudel - que se mostram

    frutferas para pensar o mundo contemporneo e tambm recorrncias histricas, ou seja,

    42.Kinser, 1981: 67643.Ver, por exemplo, Cameron, 1978; Kinser, 1981; Tilly, 1981; Vries, 197944.Em 1984 chegou inclusive a ser eleito para a Academia Francesa. (McNeill, 2001: 145)45.Alm das j citadas resenhas (ver nota de rodap 43), vlido mencionar as avaliaes mais tericasrealizadas por Amin e Luckin, 1996; Arrighi, 2001; Caill, 1989; Fourquet, 1989; Howard, 1985; Lai, 2004;Morineau, 1989; zveren, 2005; Wallerstein, 2006.

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    padres de acontecimentos que parecem se repetir entre os sculos XII e XVIII e que so as

    marcas distintivas do processo de acumulao de riquezas neste perodo.

    Por fim, no terceiro captulo e como forma de responder s perguntas que se prope neste

    trabalho, as recorrncias histricas identificadas no captulo 2 - e iluminadas pelas posturas

    metodolgicas ali tambm definidas - sero trazidas para o mundo contemporneo. Para isso,

    este captulo se estrutura em duas sees: a primeira aborda a questo dos lucros excepcionais

    no setor financeiro, utilizando as operaes por trs da crise de 2007/2008 como porta de

    entrada para se analisar o setor de forma estrutural, enquanto a segunda seo aborda diversos

    outros setores econmicos sob a lente de Braudel. Assim, ao romper a barreira do sculo

    XVIII, se poder observar quais os elementos a respeito dos processos mais recentes de

    acumulao de riqueza so iluminados pela abordagem braudeliana.

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    CAPTULO 1 - APRESENTANDO BRAUDEL

    Quando Braudel comeou a escrever CMEC, j era um historiador acadmico respeitado.

    Havia publicado como livro a sua tese de doutorado sobre o espao em torno do MarMediterrneo,46obra inovadora no campo da histria, e construda segundo a viso de histria

    total to marcante da Escola dos Annales. Obcecado pela descrio, carregando uma

    inesgotvel coleo de narrativas e exemplos, e adepto de um mtodo de comparao

    sistemtica das diferentes civilizaes pelo tempo e atento aos rastros da geografia numa

    histria profunda, Braudel fez de CMEC a obra em que consolidou e aplicou com maior

    flego o mtodo que j vinha desenvolvendo.

    Sua grande marca, e pela qual costuma ser lembrado no campo da histria, suainovadora conceituao do tempo que tanto defendeu j antes desta obra.47 A respeito do

    tempo, Braudel dizia:

    Vivemos no tempo curto, o tempo de nossa prpria vida, o tempo dos jornais, do rdio, dosacontecimentos, como na companhia dos homens importantes que mandam no jogo, ou pensam mandar. o tempo, no dia-a-dia, de nossa vida que se precipita, se apressa, como que para se consumir depressae de uma vez por todas, medida que envelhecemos. Na verdade, apenas a superfcie do tempo

    presente, as ondas ou as tempestades do mar.48

    Braudel se refere assim ao tempo presente, ao curto prazo e seus eventos, como ondas do

    mar: fceis de serem vistas mas que no revelam a estrutura mais profunda das correntes que

    correm por baixo da superfcie e so muito mais relevantes na definio do movimento das

    guas. Assim, Braudel conduz uma pluralizao do tempo histrico, em ao menos 3 nveis.

    Alm deste primeiro estgio - o tempo dos acontecimentos, domnio do cronista e do

    jornalista, instantneo - h um tempo conjuntural, em geral de dcadas, que segue um ritmo

    mais lento, mas ainda no to revelador como o longo prazo, a longue dure, que constitui o

    tempo dos sculos. S a se revelam as estruturas de longa formao e que se movimentam

    apenas lentamente, e que com seu peso admirvel impe ao presente se no uma imobilidade,

    ao menos constncias, regularidades e resistncias que exigiro amplas foras - e tempo - para

    que se transformem. Para Braudel, a compreenso da histria dos homens requer o olhar

    atento a estas estruturas que se impe e do forma ao presente.

    46.O Mediterrneo e o Mundo Mediterrneo na poca de Felipe II, no qual ao invs de escrever um estudodiplomtico de Felipe II, inverte a ordem de seu livro partindo da geografia do Mediterrneo e suasdeterminaes histricas na longa durao para ao final chegar em Felipe II, sujeito do curto prazo.47.Em 1958 Braudel publicara o artigo Histria e cincias sociais: A longa durao, com uma defesa do seuconceito de tempo histrico. No entanto, as ideias j estavam em sua j mencionada tese de doutoramento e

    posterior livro de 1949 O Mediterrneo e o Mundo Mediterrneo na poca de Felipe II.48.Braudel apudMoraes, 347

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    A ideia da longa durao, mais do que um instrumento metodolgico explcito de Braudel,

    um ngulo de viso que quase naturalmente Braudel adota. E forma o pano de fundo sobre o

    qual Braudel pensa a histria econmica da Europa: quando cria seu esquema tripartido -

    civilizao material, economia de mercado e capitalismo - esta olhando para a longa durao

    da vida econmica europia e enxergando sistematicamente atravs dos tempos esta diviso

    de atividades em 3 camadas como uma constante. As atividades em si podem mudar, mas de

    forma recorrente se v uma grande maioria afundada numa vida material, a ordem da

    economia de mercado constantemente expandindo-se, obrigando mais e mais homens a

    entrarem numa lgica de mercado, mas sem a fora suficiente para impor a todos os seus

    destinos e pairando acima da economia de mercado uma camada de atividades capitalistas

    livre dos infortnios da concorrncia para gerar os grandes lucros.Braudel no era adepto de avanar concluses rapidamente. Em relao ao seu sistema

    tripartido,49chega a afirmar que no aceitou logo e sem hesitao essa maneira de ver, e que

    numa obra que fora composta " margem da teoria, de todas as teorias"50os elementos de

    observao se ordenaram por si neste esquema.51 Como apontam Tilly52 e Morineau,53

    bastante frequente em sua obra o apontamento de uma ideia seguido de um erudito balano de

    apoios e crticas, que muitas vezes culmina em um "no avancemos..." ou "no estamos to

    certos disso" . Esta prudncia s torna mais forte o fato de Braudel ter adotado este sistematripartido como referncia central de sua obra, em especial no que diz respeito distino

    entre economia de mercado e a zona que se encontra acima desta, com seus lucros

    exorbitantes em funo do bloqueio da concorrncia.

    Este esquema tripartido estruturou-se em um livro de 3 volumes.54O primeiro deles foi

    publicado em 1967 e os demais saram juntos, numa obra completa e revista com os 3

    volumes, em 1979. Trs anos antes da publicao definitiva, em 1976, Braudel proferiu uma

    srie de palestras na John Hopkins University na qual apresentou as ideias centrais da obra de

    49.As distines nesta casa de 3 andares so to fortes segundo Amin e Luckin, que a prpria academia acaboupor dividir seu objeto de anlise desta mesma forma e diz: "Sem entrar em caricaturas, pode-se dizer que ossocilogos estudam a base, os economistas o nvel intermedirio e os cientistas polticos e os historiadores onvel superior", fazendo a ressalva de que o poder da anlise dos grandes pensadores da sociedade foi justamenteintegrar estas clivagens artificiais. (Amin e Luckin, 1996: 222)50.Braudel, 2005a: 1351.Braudel, 2005a: 12-1352.Tilly, 198453.Morineau, 1989: 3854.Braudel dizia que seu livro comeara como uma investigao amistosamente imposta por Lucien Febvre(Historiador francs e co-fundador da Escola dos Annales), como parte de uma coleo de histria geral por este

    organizada chamada Destins du Monde e que posteriormente foi assumida por Braudel em razo do falecimentode Febvre. Originalmente, Febvre planejava escrever um livro com foco nos pensamentos e crenas do Ocidenteentre os sculos XV e XVIII. Esta obra que iria compor um excelente dilogo com o trabalho de Braudel, jamaisfoi publicado, o que o prprio Braudel explicitamente lamenta (Braudel, 1987: 7).

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    forma resumida, palestras que foram publicadas em forma de livro com o ttulo "Dinmica do

    Capitalismo".55So estes materiais que constituem o insumo bsico sobre o qual este captulo

    se estruturou, cabendo a cada um dos 3 volumes uma seo correspondente.

    O primeiro dos volumes, As Estruturas do Cotidiano, " uma espcie de 'pesagem do

    mundo', [...] o reconhecimento dos limites do possvel no mundo da pr-indstria."56Assim,

    Braudel avalia as condies materiais bsicas da sociedade nesta poca, que determinam as

    possibilidades de desenvolvimento econmico e assim aborda o funcionamento da primeira

    camada, a civilizao material. No segundo volume, "O Jogo das Trocas", quando Braudel

    de fato coloca economia de mercado e capitalismo frente a frente, e tenta distingui-las

    descrevendo uma srie de operaes econmicas da poca, sem se importar com o

    encadeamento temporal das atividades. Por fim, no terceiro e ltimo volume "O Tempo doMundo", Braudel busca reconstruir a histria entre os sculos XII e XVIII agora de forma

    cronolgica, utilizando todas as estruturas e elementos por ele desenvolvidos durante os 2

    volumes anteriores.

    Neste captulo, se buscar ser fiel ao mtodo de escrita de Braudel - avesso teorizaes e

    repleto de descries. um desafio faz-lo em menos de 25 pginas quando o original 60

    vezes mais longo, mas importante seguir tal mtodo: como argumentado no Captulo 2, esta

    uma das lies que a obra de Braudel impe. Mas preciso iniciar pela base - pelo primeirovolume - a reconstruo da obra de Braudel para se avanar nesta contraposio entre

    economia de mercado e a zona dos grandes lucros, o capitalismo e assim que aqui se

    procede.

    1.1 Volume 1 - As Estruturas do CotidianoRefazer a trilha de Braudel em CMEC implica um longo trabalho de base antes de chegar

    distino entre economia de mercado e capitalismo. Braudel s procura explicitar estas

    diferenas a partir da metade do segundo volume, mais de 700 pginas depois. Isto porque

    entende ser fundamental tornar vivas as condies materiais, as rotinas, os costumes e os

    hbitos dos homens naquela poca, apresentando assim os limites e possibilidades da

    sociedade. O foco, por enquanto, no sua cpula, de mudanas e grandes jogos, mas sua

    base, o cotidiano da gente que pouco muda, uma vida material em que "semeia-se o trigo

    55.Braudel, 1987.56.Braudel, 2005a: 13

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    como sempre se semeou; [...] navega-se no Mar Vermelho como sempre se navegou..."57. Este

    movimento importante pois a economia no est isolada e o seu territrio o mesmo onde o

    cultural, o social e o poltico trafegam. Ignorar estas realidades e saltar diretamente para o

    campo do mercado ignorar as bases que tornam esta economia possvel.

    O mtodo braudeliano, voltado para o longo prazo, exige um olhar capaz de encontrar

    relatos costumeiros que mostrem a fora dos hbitos mas tambm o trabalho incessante com

    grandes nmeros e contabilidades. S assim se pode comparar diferentes sociedades e

    diferentes tempos. Por isso, seu ponto de partida so as grandes massas populacionais, que

    flutuam nos ritmos das doenas, das boas ou das ms colheitas, revelando ainda a fragilidade

    da civilizao naquela poca frente a uma natureza que se impe. Em seguida, apresenta os

    hbitos alimentares, as bebidas, os pequenos luxos mesa, as moradias e vestimentas destessculos. Sua preocupao dar vida ao cotidiano, "aos fatos midos que quase no deixam

    marca no tempo e no espao"58 mas que em verdade so os relatos que revelam de uma

    sociedade para outra suas marcas e disparidades, nem sempre superficiais, alm de

    conformarem as bases sobre as quais uma vida econmica mais ativa e o capitalismo podero

    se estabelecer. Este pequeno relato apresentado a seguir um timo exemplo do mtodo

    comparativo de Braudel, que pina uma simples observao de um viajante para fazer um

    provocante balano entre sociedades e ao longo do tempo:Vejo um traje japons do sculo XV, encontro um semelhante no sculo XVIII, e um espanhol contasua conversa com um dignatrio nipnico, admirado e at chocado de ver os europeus, com apenasalguns anos de intervalo, usando roupas to diferentes. A loucura da moda estritamente europia. Serftil?59

    Observe-se que so os costumes de duas sociedades colocadas em choque, que exigiram

    um olhar atento s constncias para que a ruptura seja identificada. A pergunta ao final, "Ser

    ftil?", tambm caracterstica de Braudel. Ela no explica as concluses todas que podem

    ser tiradas da observao, mas ao mesmo tempo revela que h algo ali que merece um olhar

    mais que atento.

    Repleto de relatos como esse, seu balano da vida material passar ainda pelas fontes de

    energia,60 pelas grandes mudanas tcnicas da poca61 e um balano sobre a persistente

    lentido dos transportes, que constitui um limite economia.62Em seguida, Braudel prepara-

    57.Braudel, 2005a: 1658.Braudel, 2005a: 1759.Braudel, 2005a: 1760.Ao final do sculo XVIII a lenha apenas a terceira fonte energtica, abaixo da fora humana e suasferramentas e menos da metade do potencial energtico dos 14 milhes de cavalos na Europa61.Na opinio de Braudel a artilharia, a imprensa e a navegao de alto-mar62.Aqui Braudel cita Paul Valry para ilustrar este ponto: "Napoleo desloca-se mesma velocidade de JlioCsar." (Valry apud Braudel. 2005a: 391)

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    se para uma ruptura pois ir introduzir dois elementos, a moeda e a cidade, que j constituem

    uma passagem direta para o mundo da economia de mercado. Porm, antes deste avano,

    importante marcar o significado desta vida material, leito sobre o qual se ergue o mercado e

    tambm o capitalismo. Este o reino do

    hbito melhor, [d]a rotina mil gestos que florescem, se concluem por si mesmos e em face dos quaisningum tem que tomar uma deciso, que se passam, na verdade, fora de nossa plena conscincia. Creioque a humanidade est pela metade enterrada no cotidiano. Inumerveis gestos herdados, acumulados aesmo, repetidos infinitamente at chegarem a ns, ajudam-nos a viver, aprisionam-nos, decidem por nsao longo da existncia. So incitaes, pulses, modelos, modos ou obrigaes de agir que, por vezes, emais freqentemente do que se supe, remontam ao mais remoto fundo dos tempos. Muito antigo esempre vivo, um passado multissecular desemboca no tempo presente como o Amazonas projeta noAtlntico a massa enorme de suas guas agitadas. Foi tudo isso que tentei captar sob o nome cmodo mas inexato, como todas as palavras de significao excessivamente ampla de vida material.63

    No que as moedas e as cidades tambm no se formem e estejam presas neste passado

    que se projeta, mas ambas j constituem mecanismos - no caso da moeda - e protagonistas -

    quando se fala das cidades - deste salto rumo ao mercado e ao capitalismo. A respeito das

    moedas, Braudel as apresenta em suas diversas formas: metal, moedas de conta, de papel e

    crdito, mas ser mais frutfero v-las em ao em breve, na mo dos capitalistas. A sua

    natureza aparecer. Quanto s cidades, Braudel no tem dvidas: so "corte, ruptura, destino

    do mundo, [...] transformadores eltricos [que] aumentam as tenses, precipitam as trocas".64

    Assim, as cidades so os agentes centrais na insero do mundo na lgica de mercado, e

    tambm do capitalismo.65 As cidades so fruto da mais primria e revolucionria diviso detrabalho do mundo, a que se d entre campo e atividades urbanas. Porm, as divises de

    trabalho em Braudel quase nunca so neutras e justas. Embora existam interdependncias66,

    h sempre um jogo de foras, em que um dos lados - neste caso a rede urbana - tem o

    domnio, a capacidade de comando. Desta forma, em Braudel as cidades europias so os

    63.Braudel, 1987: 964.Braudel, 2005a: 43965.Braudel relembra os diversos estudos que identificam nas cidades europias uma liberdade sem par nomundo. Com esta liberdade, puderam na Europa talhar a formao dos estados territoriais, no estando sob asmesmas amarras imperiais marcantes da maior parte da sia e assim controlaram os destinos dos impostos, dasfinanas, do crdito e dos emprstimos pblicos. Braudel diz: "Com efeito, o milagre, no Ocidente, no estexatamente em que, tendo sido tudo destrudo, ou quase, com o desastre do sculo V, tudo tenha ressurgido a

    partir do sculo XI? A histria est cheia destas idas e vindas seculares, destas expanses, nascimentos ourenascimentos urbanos: a Grcia do sculo V ao sculo II antes de Cristo, Roma, se se quiser, o Isl a partir dosculo IX, a China dos Song. Mas houve sempre, nestas ascenses, dois corredores, o Estado e a Cidade.Habitualmente, ganha o Estado, a Cidade fica ento submetida e sob um punho de ferro. O milagre, nos

    primeiros grandes sculos urbanos na Europa, a cidade ter ganho plenamente, pelo menos na Itlia, na Flandrese na Alemanha. Durante bastante tempo fez a experincia de levar uma vida plena, colossal acontecimento cujagnese no se apreende com segurana. Todavia, so visveis enormes conseqncias." (Braudel, 2005a: 468)Ainda sobre as cidades, Braudel faz uma provocao que destaca o papel transformador e capitalista das elites

    econmicas das cidades: "Se, em imaginao, suprimssemos os Estados atuais, assim que as cmaras decomrcio das grandes cidades ficassem livres para jogar sua vontade, veramos coisas inusitadas!" (Braudel,2005a: 467)66.Braudel prefere o termo "reciprocidade das perspectivas"

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    agentes centrais que lideram a reorganizao e a expanso da vida econmica, assumindo as

    tarefas que lhe interessam e delegando as secundrias aos campos, organizadas porm

    segundo os seus interesses. Percorrendo diversas cidades do mundo, como Npoles, So

    Petersburgo, Pequim e Londres, Braudel encontrar outra diviso do trabalho, tambm

    hierrquica: a das grandes cidades e as que gravitam em sua rbita. Ao redor de cada grande

    cidade, h um arquiplago de outras menores geometricamente distribudas em funo dos

    tempos dos transportes e aquela que est ao centro comanda, lidera, em larga medida dita os

    destinos e as escolhas das cidades perifricas. Mais uma diviso de trabalho, e mais uma vez,

    no uma diviso justa ou equilibrada: "Poderamos multiplicar as viagens [pelas capitais do

    mundo] sem nada alterar nas concluses: o luxo das capitais pesa sempre nas costas dos

    outros. Nenhuma pode viver do seu prprio trabalho."67

    1.2 Volume 2 - Os Jogos das TrocasAntes de se aprofundar na distino entre economia de mercado e capitalismo, Braudel

    produz no incio do segundo volume uma tipologia dos instrumentos de troca, passando por

    mltiplos espaos geogrficos e do tempo. Para isso, apresenta os pequenos mercados locais,

    onde se faz o abastecimento das cidades, as lojas, que tornam perene o ponto de encontro para

    trocas que antes era eventual, as feiras, que congregam o comrcio mais distante e as bolsas,

    enxergadas como o limite superior deste jogos. Nesta viagem, fica evidente sua viso de que

    as trocas e seu processo de intensificao so como uma evoluo natural das sociedades

    humanas, um desenvolvimento quase automtico a medida que a produo se intensifica e que

    a sociedade ganha um certo volume. A grande parte destes instrumentos de troca, com larga

    semelhana, esto em todas as civilizaes.

    Aqui, porm, uma distino essencial faz-se necessria. Braudel diz que os economistas

    enxergam que o "crescimento [...] do mundo seria o de uma economia de mercado que no

    parou de ampliar seu terreno, prendendo na sua ordem racional cada vez mais homens, cada

    vez mais trficos prximos e distantes que tendem a criar, para todos eles, uma unidade do

    mundo".68Nesta perspectiva, a histria do sculo XII em diante seria a prpria histria da

    expanso do mercado auto-regulador, que de forma crescente integra sua ordem racional um

    nmero cada vez maior de reas e sociedades, afirmando-se especialmente a partir da

    67.Braudel, 2005a: 49468.Braudel, 2005b: 192

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    Revoluo Industrial. No entanto, a palavra mercado no tem a mesma conotao para a

    maioria dos economistas e para Braudel. Os economistas tendem a ver o mercado como uma

    entidade abstrata,69 independente de outros fenmenos sociais e portadora de uma lgica

    prpria em que procura e oferta determinam preos que por si definem os processos

    econmicos: este o mercado auto-regulador. Para Braudel, este mercado s pode ser uma

    criao da mente. O mercado "histrico", ou seja, material, aquele que de fato existe e existiu,

    no aceita este isolamento dos fatores econmicos dos fatores sociais. Constantemente h

    influncias de outras origens na formao do preo e no estabelecimento dos movimentos

    produtivos e comerciais, influncias dos costumes e tradies, do poder do dinheiro e do

    crdito, do Estado e dos capitalistas. Assim, o resultado do mercado dependente no apenas

    da demanda e da oferta e das condies de produo e de consumo, mas tambm de relaesde poder.

    Para ilustrar esta questo, Braudel cita um exemplo: no circuito comercial entre Espanha e

    o Novo Mundo que se estabelece aps 1550 h demanda nas Amricas por diversos produtos

    ofertados pelos europeus - mercrio, cobre, tecidos, azeite etc - assim como a oferta de prata

    americana demandada na Europa. Monta-se assim um circuito comercial justo e equilibrado

    pelas foras da oferta e da demanda? Apenas se nos esquecermos das relaes de poder a

    presentes. A corte espanhola recolhe um quinto dos lucros nas operaes de ida e volta eestima-se que a cada 5 anos partiam 40 milhes (de libras tornesas) de mercadorias da

    Espanha, enquanto retornavam 150 milhes em metais preciosos e outros produtos. Desnvel

    natural ou criado pelas assimetrias de poder? Neste contexto, a provocao de Braudel no

    poderia ser mais contundente: "Quando h uma relao de foras como esta, que significam

    exatamente os termos procura e oferta?"70

    E estes desnveis de fora no precisam necessariamente forjar-se no Estado. H outros

    atores, como vemos neste outro pequeno exemplo: no porto de Dunquerque no incio dosculo XVIII, os barcos atracados que trazem cereais s podem vend-los em grandes

    volumes - o que diz a tradio do lugar. Assim, apenas os grandes negociantes da cidade

    podem compr-los. Dali a algumas centenas de metros, todos podem comprar em volumes

    69.Braudel atribui esta posio Adam Smith e seus seguidores: "o mercado, que no dirigido por ningum, o mecanismo motor de toda a economia" (Braudel, 2005b: 192)70.Braudel, 2005b: 149. Tal ponto fica mais evidente, ao se observar que esta no uma troca baseada numa"demanda natural": a adoo do extrativismo mineral na Amrica uma imposio europia, no uma livreescolha feita na Amrica. Do mesmo modo, boa parte da demanda americana advm de costumes e hbitosimpostos pelos europeus com sua colonizao. O que vemos em cena uma relao de foras que reorganiza osarranjos produtivos em funo dos interesses do mais forte.

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    menores - mas com um lucro de 40% para os mercadores!71 Assim, na relao entre os

    barqueiros transportadores de cereais e os grandes mercadores, haver sim o dilogo de oferta

    e demanda para definir os preos, do mesmo modo que no prximo elo da cadeia entre os

    grandes negociantes e o pblico em geral oferta e demanda podero dialogar para encontrar o

    preo. Mas neste momento a hierarquia que assegura a alguns lucros superiores j est

    estabelecida e em ao. Tal hierarquia mantida pela fora da tradio, pelo poder de compra

    dos que dispe de grandes crditos e - no se deve duvidar - pela fora das armas se for

    necessrio assegurar que este privilgio se mantenha. Assim, novamente se pergunta: o que de

    fato nos revelam a oferta e a procura se as relaes de fora muitas vezes operam por trs ou

    s margens deste dilogo?

    Desta forma, Braudel conclui que demasiado fcil batizar de econmica uma forma de troca e de social uma outra. Na realidade, todasas formas so econmicas, todas so sociais. [...] A troca sempre um dilogo e, de vez em quando, o

    preo imprevisvel. Sofre certas presses (a do prncipe, ou da cidade, ou do capitalista, etc.), mastambm obedece forosamente aos imperativos da oferta, rara ou abundante, e no menos da procura.72

    a partir deste momento, e mantendo o olhar nestas presses que jogam com os preos e

    suprimem o dilogo natural da oferta e da demanda para beneficiar alguns, que Braudel passa

    a procurar e percorrer a trilha do capitalismo.

    Para realizar esta busca, necessrio primeiro compreender que, para Braudel, os

    capitalistas so essencialmente atores com uma atuao conjuntural, ou seja, se movem de

    setor para setor ao sabor das circunstncias e da possibilidade de se aplicar as foras que

    geram um lucro superior.73 Entre os sculos XII e XVIII, os capitalistas concentram-se

    eminentemente nas operaes mercantis e financeiras e mesmo nestas esferas continuamente

    mudam suas posies a medida em que encontram espaos mais rentveis. Agricultura,

    minerao e produo so ocupadas apenas eventualmente, e em geral por agentes da esfera

    da circulao que percebem que controlar determinado elo da produo lhes dar a vantagem

    que precisam na etapa seguinte.

    As minas, por exemplo, foram objeto de tentativas de monopolizao no sculo XV, como

    os Fugger tentaram fazer com o cobre e os Hchstetter com o mercrio, 74mas o montante de

    capital necessrio para tamanha expedio e o prprio retorno decrescente das minas

    71.Braudel, 2005b: 36672.Braudel, 2005b: 19573.O capitalismo - no sentido do terceiro andar do edifcio tripartite de diviso da economia concebido porBraudel - perene, porm os ativos especficos detidos por aqueles que operam nesta camada, so conjunturais,ou seja, mudam a medida que os grandes lucros a cada momento podem ser obtidos em uma ou outra atividade

    ou rea da vida econmica. Mais adiante nesta seo e tambm no captulo 2, discute-se porque apenas algunsagentes conseguem operar nesta camada superior - o capitalismo - com a flexibilidade para a constante mudanade posies.74.Braudel, 2005b: 281

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    competitivo tome conta delas, e a a presso da concorrncia reduz os preos de modo a

    ampliar a rentabilidade daqueles que usufruem do produto destas atividades. Braudel tambm

    nota que naturalmente a intensificao das trocas vai determinando uma especializao das

    funes e atividades, primeiramente na base da economia. Assim, as lojas especializam-se e

    tambm os profissionais. Curiosamente, no entanto, aqueles que atingem o topo fazem

    exatamente o oposto: raramente se especializam, reservando-se o direito de poder escolher e

    migrar de atividades conforme a conjuntura.76Os mercadores no foram iguais em nenhuma

    sociedade, e as distines esto inclusive na linguagem. Na Itlia, temos, de um lado, o

    grande importador e exportador - o negoziante- e, do outro, o mercante a taglio- lojista de

    pequenas trocas; na Inglaterra se contrapem o tradesman e o merchant. Na Alemanha, o

    Krmere oKaufherr,e mesmo no Isl o grande negociante o Tayir e o pequeno lojista, oHawanti77: E assim registra Braudel: "No se trata de meras palavras, mas de diferenas

    sociais manifestas de que os homens sofrem ou se envaidecem. No vrtice da pirmide, est o

    orgulho daqueles que, nec plus ultra, entendem de cmbio"78. H assim uma hierarquia

    mercantil e dessa posio privilegiada que o capitalista pode usar seu maior trunfo: a

    possibilidade de escolher, entre as muitas tarefas, aquelas nas quais seu jogo de poder poder

    ser exercido e os lucros excepcionais obtidos.

    Os exemplos deste ecletismo so mltiplos. A firma milanesa dos Greppi no sculoXVIII, originalmente um banco, atua com sal e tabaco na Lombrdia, mercrio em Viena,

    cobre sueco, tecidos e sedas na Itlia, alm do uso intenso dos instrumentos de cmbio e at

    contrabando de prata, sem entrar nunca na produo. Ou os Trip, na Amsterd do sculo

    XVII, remoldando continuamente sua atuao entre o comrcio de armas, de alcatro, de

    cobre, de salitre, operando navios, fazendo adiantamentos, numa malha comercial que atinge

    as Amricas e a frica.79 Outro exemplo desta ateno dos capitalistas s mudanas de

    conjuntura que podem provocar uma mudana de setor se d no comrcio de cereais. Seucarter previsvel e regular cria mltiplas conexes entre oferta e demanda, que regulam com

    eficincia os lucros e os capitalistas se mantm afastados deste setor. Porm, assim que se

    inicia uma crise de desabastecimento, como no Mediterrneo em 1591, vrios negociantes no

    76.Na verdade, a nica especializao que apresentam no manejo do dinheiro - ao reter a riqueza em suaforma mais lquida, ganham uma maior liberdade de movimentao.77.Braudel, 2005b: 33178.Braudel, 2005b: 33279.Braudel, 2005b: 335

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    especializados no comrcio de cereais entram neste circuito para garantir lucros que podem

    ter chegado a 300%.80Desta forma,

    o capitalismo81no aceita todas as possibilidades de investimento e de progresso que a vida econmica

    lhe prope. Vigia constantemente a conjuntura para nela intervir segundo certas direes preferenciais -o que equivale dizer quesabeepodeescolher o campo de sua ao. Ora, mais do que a prpria escolha- que varia incessantemente, de conjuntura e, conjuntura, de sculo para sculo -, o o prprio fato deter os meios de criar uma estratgia e os meios de modific-la que define a superioridade capitalista.82

    Esta superioridade do capitalista exercida por meio de uma srie de armas e conhec-las

    nos ajuda a tomar contato com estes agentes. A primeira destas armas a superioridade de

    informao. Em uma carta reproduzida por Braudel, dois mercadores scios num negcio

    com ndigo em 1977 escrevem em uma correspondncia: "recorde-se de que se o negcio se

    espalha estamos f... Acontecer com esse artigo o que aconteceu com muitos outros: assim

    que h concorrncia, acaba-se a gua para beber".83Para ter esta informao privilegiada, preciso ter recursos para compr-la, ou scios espalhados pelos pontos crticos de uma cadeia

    de comrcio ou simplesmente usar de uma posio social privilegiada para acessar certos

    espaos. Isto fica evidente em outra cena destacada por Braudel84e que se passa em um caf

    em Amsterd em 1688, prximo Bolsa. Ali entra um mercador e alguns dos clientes lhe

    perguntam a quanto estavam sendo vendidas certas aes. O mercador supervaloriza os

    preos e, vendendo-as mais caras, realiza seu lucro. Como possvel? Naquela poca no

    havia uma cotao pblica de preos e o reduto da bolsa, embora ficasse ao lado deste caf,era restrito aos que tinham o status e recursos para frequent-la. Assim, a simples posio

    social d acesso possibilidades que no so abertas a todos.

    Outra ttica capitalista fugir dos mercados pblicos, onde a fora da concorrncia ou a

    prpria regulamentao governamental controla os preos85 e passa a operar em mercados

    privados, nos quais os capitalistas tem liberdade no s para agir, mas tambm para ditar as

    80.Braudel, 2005b: 35781.Este trecho exemplifica bem uma ambiguidade que a maneira pela qual Braudel usa a palavra capitalismo

    pode acarretar. No nos parece que se possa dizer que "o capitalismo vigia a conjuntura..." Quem pode vigiaruma conjuntura e definir um rumo de ao so alguns agentes econmicos, que podemos denominar decapitalistas. Nos parece que o uso da palavra capitalismo - mesmo no sentido que Braudel d ao termo - deveriase restringir aos momentos em que se faz uma anlise sistmica, em que se observa que h recorrentemente umacamada superior de atividades gerando lucros excepcionais, reservando a palavra capitalista para designar oagente histrico que conduz as operaes. Procuramos neste trabalho ser cuidadosos no uso destas palavras, noutilizando-as de forma totalmente intercambivel como o fez Braudel.82.Braudel, 2005b: 35383.Braudel, 205b: 36184.Braudel, 2005c: 84. A cena deriva de uma descrio de Jos de La Vega em 1688 a respeito de uma "coffyhuisen" (casas de caf em Amsterd) prxima bolsa85.Braudel por muitas vezes destaca que mercados com preos regulados pelo governo podem vir a sermercados mais justos e competitivos, pois a interferncia governamental poderia eliminar ou controlar a forasuperior dos mercadores mais poderosos. No entanto, preciso ser cauteloso com esta afirmao pois muitasvezes o inverso a realidade: os preos regulados pelos governos so preos que do vantagem a uma das partese assim temos a regulao governamental definindo os vencedores num mercado pblico.

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    suas regras. A principal maneira de concretizar isto , de fato, evitar que o produtor v ao

    mercado, onde ter acesso a outros demandantes. Assim o capitalista "compra o trigo antes da

    colheita, a l antes da tosquia, o vinho antes da vindima"86 e seu instrumento de ao o

    crdito. Braudel conta, por exemplo, a respeito de um grupo capitalista que acerta contratos

    individuais antecipados com todos os produtores de garrafes de vinho em uma certa regio.

    Quando ocorre a colheita, no h garrafas no mercado e os monopolizadores tem a mo forte

    para subir os preos.87

    Os capitalistas tambm podem intencionalmente rarefazer uma mercadoria no mercado, e

    assim manipular seu preo. Os Hope, em 1787, tentam armar um monoplio com a

    cochonilha, produto para tingimento de txteis.88 Vendo os estoques europeus em baixa,

    previses de colheitas fracas e os principais demandantes do produto comprando apenas parasua necessidade imediata, arquitetam um carssimo plano de compra de 3/4 de todo o estoque

    europeu, em todas as suas praas de maneira dissimulada. O plano acaba frustrado, mas

    mostra o modus operandipara se rarefazer uma mercadoria. A arma destas operaes so,

    alm do crdito, os grandes armazns, mais caros do que navios. Para que se tenha uma

    dimenso destas operaes, os armazns em Amsterd em 1761 so equivalentes a quase 12

    anos do consumo de trigo em todas as Provncias Unidas.89

    fcil enxergar por trs de todos estes exemplos uma vantagem financeira, umacapacidade de usar amplos recursos para curvar o mercado. Este flego permite que o

    capitalista entre em negcios de maturao mais demorada e inclusive que assuma perdas, s

    vezes at intencionais. A respeito da Companhia Holandesa que fazia os trficos com o

    Oriente, descobrimos que "estes fazem tudo o que podem para [...] afastar e desiludir [os

    franceses ...], vendendo mais barato suas mercadorias, mesmo com muitas perdas, e

    comprando-as da regio mais caras, para que os franceses, vendo que tm perdas, percam a

    vontade de voltar."

    90

    Uma vez afastada a concorrncia, s retomar os negcios, agora comliberdade para definir os preos num novo patamar. Assim, Braudel cita uma receita para a

    riqueza de Claude Carrre a respeito da Barcelona do sculo XV: "A melhor maneira de

    ganhar dinheiro no grande comrcio [...] j o ter"91e resume:

    Dizer que o xito capitalista assenta no dinheiro evidentemente um trusmo, se pensamos apenas nocapital indispensvel a todas as empresas. Mas o dinheiro algo muito diferente da capacidade deinvestir. a considerao social, donde uma srie de garantias, de privilgios, de cumplicidades, de

    86.Braudel, 2005b: 36487.Braudel, 2005b: 36588.Braudel, 2005b: 37289.Braudel, 2005b: 36990.Braudel, 2005b: 37091.Carrre apud Braudel, 2005b: 338

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    protees. a possibilidade de escolher entre os negcios e as ocasies que se oferecem - e escolher ao mesmo tempo uma tentao e um privilgio -, entrar fora num circuito reticente, defendervantagens ameaadas, compensar perdas, afastar rivais, aguardar retornos muito lentos mas

    promissores, obter at os favores e as complacncias do prncipe. Enfim, o dinheiro a liberdade de termais dinheiro ainda, pois s se empresta aos ricos.92

    Esta superioridade financeira permite ainda que os capitalistas escolham qual moeda

    transacionar em cada praa e em cada operao, abrindo um amplo leque de oportunidades

    para os jogos de cmbio. Alm disso, sua riqueza acumulada os tornou financiadores dos

    "prncipes", assegurando assim privilgios e monoplios. A mquina dos Fugger de fazer

    dinheiro, por exemplo, descrita por Braudel de forma simples: emprstimos aos prncipes

    alemes, que lhes asseguravam monoplios na explorao de minas de prata, e que assim

    geravam recursos para emprestar ainda mais para os prncipes em expanso territorial, que

    consequentemente poderiam oferecer ainda mais propriedades exclusivas. A concesso dosemprstimos ao poder central no so em si a atividade de alta rentabilidade, mas passaportes

    para a explorao privilegiada de outras atividades, agora com a garantia da proteo

    governamental contra a concorrncia nestes mercados.

    A passagem acima destaca uma questo multifacetada em Braudel: a relao entre os

    capitalistas e o estado,93que assim por ele resumida: "O Estado ora seu [do capitalismo]

    cmplice, ora o importuno, o nico importuno que s vezes pode substitu-lo, afast-lo ou,

    pelo contrrio, impor-lhe um papel que no teria desejado."94

    O que Braudel quer nos dizer que, por um lado, o Estado fundamental para os capitalistas. a fora do Estado que cria os

    monoplios e os concede a estes agentes, ou ainda oferece incentivos e privilgios para seu

    desenvolvimento. Por outro lado, o Estado a nica fora capaz de barrar a criao dos

    privilgios ou regular e vigiar um mercado impedindo que os capitalistas ajam livremente.

    Um exemplo destas tenses entre capital e estado se d nas grandes companhias de comrcio,

    que confiscam para si vastas reas do comrcio de longa distncia para o enriquecimento de

    seus acionistas, alguns funcionrios mas tambm da autoridade central:Como diz o advogado Pieter Van Dam, o homem que melhor conhecia a Oost Indische Compagnie95(ea reflexo pode se estender-se s companhias rivais): 'O Estado deve regozijar-se com a existncia deuma associao que todos os anos lhe entrega somas to vultosas que o pas retira do comrcio e danavegao das ndias trs vezes mais lucro que os acionistas.96

    92.Braudel, 2005b: 33893."Em uma conferncia realizada pouco antes de sua morte, Braudel provoca seu colega Immanuel Wallersteina respeito desta natureza dupla e diz: "Immanuel, venha me ajudar. Explique por que o Estado indispensvel aocapitalismo, e depois eu te direi o contrrio". (Uma Lio de Histria de Fernand Braudel, 1989: 122)94.Braudel, 2005b: 329. Aqui mais uma vez nos parece que capitalista seria melhor empregado do quecapitalismo.95.V.O.C., a companhia holandesa de comrcio com as ndias.96.Braudel, 2005b: 393

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    Aps apresentar as companhias de comrcio - estes monoplios de direito, concedidos

    pelo Estado - Braudel reserva um ltimo captulo para recolocar a economia em face da

    sociedade. Esta uma marca da leitura totalizante que Braudel sempre tentou construir: a

    economia nunca entendida como um campo do conhecimento isolado, de modo que sozinha

    ela insuficiente para compreender a realidade do mundo. E o que Braudel enxerga que as

    desigualdades do jogo econmico - esmiuadas nas centenas de pginas anteriores - no so

    mais do que uma transposio da desigualdade social, marca recorrente de toda e qualquer

    sociedade. Tais desigualdades, porm, no tem o mesmo arranjo em todo o globo e os

    diferentes arranjos existentes foram fundamentais na emergncia ou no dos jogos de

    acumulao de riqueza em larga escala em diferentes civilizaes. As hierarquias polticas e

    sociais do Isl e da China, centros mais ricos do que a Europa no perodo de sua anlise,sempre atuaram contra a emergncia de uma hierarquia econmica dominante. Nestas duas

    sociedades, as elites polticas e sociais se constituam e atuavam de formas que inibiam a

    acumulao de riqueza em linhagens de longa durao e a acumulao contnua de capital, ao

    contrrio do que se passava numa Europa fragmentada politicamente. Houve na Europa uma

    liberdade das elites econmicas, com o apoio e no a oposio da hierarquia poltica, sem

    precedentes nestas outras regies e esta especificidade europia uma das razes essenciais

    para que o capitalismo tenha a se desenvolvido.

    1.3 Volume 3 - O Tempo do MundoO plano do terceiro volume de CMEC articular os elementos at ento apresentados - o

    sistema tripartite constitudo por uma civilizao material densa e que se arrasta no tempo, a

    zona interm